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ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE

VOLUME 1
DIRETORES

Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva


Universidade Federal de Minas Gerais

Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri


Universidade Federal de Minas Gerais

COMITÊ EDITORIAL

Prof. Dr. Alessandro Gomes Enoque


Universidade Federal de Uberlândia

Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri


Universidade Federal de Minas Gerais

Profa. Dra. Alessandra de Sá Mello da Costa


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Amon Narciso de Barros


Fundação Getulio Vargas

Profa. Dra. Ana Silvia Rocha Ipiranga


Universidade Estadual do Ceará

Prof. Dr. Bruno Eduardo Freitas Honorato


Universidade de Brasília

Prof. Dr. Diogo Henrique Helal


Fundação Joaquim Nabuco

Prof. Dr. Eduardo Paes Barreto Davel


Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Elisa Yoshie Ichikawa


Universidade Estadual de Maringá

Prof. Dr. Eloisio Moulin de Souza


Universidade Federal do Espírito Santo

Profa. Dra. Fernanda Tarabal Lopes


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Prof. Dr. Luciano Mendes


Universidade de São Paulo

Profa. Dra. Ludmila de Vasconcelos Machado Guimarães


Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais

Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva


Universidade Federal de Minas Gerais

Profa. Dra. Raylene Rodrigues de Sena


Universidade do Estado do Amazonas
ESTUDOS ORGANIZACIONAIS
E SOCIEDADE

VOLUME 1

Organizadores
Luiz Alex Silva Saraiva
Alexandre de Pádua Carrieri
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Arthur Roveda
Revisão: Os organizadores

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências


bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq) pelo apoio que permitiu a publicação desta obra.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E82 Estudos organizacionais e sociedade [recurso eletrônico] / Luiz Alex Silva Saraiva,
Alexandre de Pádua Carrieri... [et al.]. – Porto Alegre : Fi, 2023.

V. I ; 320p.

ISBN 978-65-5917-713-4

DOI 10.22350/9786559177134

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Ciências sociais – Estudos organizacionais – Sociedade. I. Saraiva, Luiz


Alex Silva. II. Carrieri, Alexandre de Pádua.

CDU 303:314/316

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

1 9
ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE: UMA NECESSIDADE, UMA AGENDA
Luiz Alex Silva Saraiva
Alexandre de Pádua Carrieri

PARTE 1
PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO

2 17
PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA GESTÃO NA VIDA
ORGANIZADA NAS/DAS SOCIEDADES
Alexandre de Pádua Carrieri
(Krrieri ou só K)

3 33
A EDUCAÇÃO COMO UMA PROMESSA DA MODERNIDADE
Denis Alves Perdigão

4 75
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E SABERES POPULARES: REFLEXÕES E APROXIMAÇÕES COM
A GESTÃO ORDINÁRIA
Paula Gontijo Martins
Gabriel Farias Alves Correia

5 114
DE SPRAY NA MÃO: RESISTÊNCIAS DE GRAFITEIRAS EM BELO HORIZONTE
Alexsandra Nascimento da Silva
Fabiana Florio Domingues
Alexandre de Pádua Carrieri
PARTE 2
CIDADES, TECNOLOGIAS E DIFERENÇAS

6 149
CIDADES, TECNOLOGIAS, DIFERENÇAS E VIDA SOCIAL ORGANIZADA: PASSOS DE
UMA AGENDA INTEGRADA
Luiz Alex Silva Saraiva

7 175
ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL: OS VÍNCULOS TRANSITÓRIOS ENTRE A CIDADE E AS
VIDAS QUE NÃO GERAM ACÚMULOS
Bruno Eduardo Freitas Honorato

8 213
CONTATOS NÃO TÃO IMEDIATOS EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS: FAZER
PESQUISA SÓCIO-ESPACIAL COM OS “MALUCOS DE ESTRADA” EM BELO HORIZONTE
Jessica Eluar Gomes

9 258
BLACK MONEY E AFROEMPREENDEDORISMO
Elisângela de Jesus Furtado da Silva
Ana Flávia Rezende
Danielly Mendes dos Santos

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 313


ÍNDICE REMISSIVO 315
ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE:
1
UMA NECESSIDADE, UMA AGENDA
Luiz Alex Silva Saraiva 1
Alexandre de Pádua Carrieri 2

Por que estudos organizacionais e sociedade? Responder a esta


questão pode parecer óbvio, mas, definitivamente, não o é. O campo de
estudos organizacionais, apesar de positivista em termos hegemônicos,
em boa parte rejeita a filiação funcionalista da Administração, razão
pela qual terminou se constituindo predominantemente teórico e, de
certa maneira, de afastado do mundo real, uma vez que lidar com ele
significava apresentar soluções. Esta agenda levou a um dilema: como
construir teorias úteis, isto é de alguma forma relevantes para as
práticas organizacionais? Essa discussão não é recente e tem sido
reacendida aqui e ali com movimentos como a practice turn e outros que
reivindicam foco para além do domínio teórico.
Como o Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS)
postula outro lugar, alinhado com perspectivas não positivistas de
conhecimento, não enxergamos uma situação polarizada teoria versus
prática porque não estamos interessados em aplicação associada ao
acúmulo do capital, tampouco em teorização descolada do mundo que nos

1
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da
Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. E-mail: saraiva@face.ufmg.br.
2
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular da Faculdade
de Ciências Econômicas da UFMG. E-mail: alexandre@face.ufmg.br.
10 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

cerca. Mas não estamos interessados em qualquer parte do mundo


também, mas naquela que tem sido desprezada pela Administração por
estar fora do mundo tomado como organizacional, em geral, e
empresarial, em particular. Este grupo abraça “uma insurreição de
saberes assujeitados pelo mainstream da Administração. Nossas
preocupações são os saberes locais, descontínuos, desqualificados, não
legitimados e, somos, portanto, contra discursos unitários” (NEOS, 2023).
Estamos interessados na parte, no fragmento, no desqualificado,
no não legítimo, e portanto, nosso olhar termina recaindo sobre o que
não é digno de ser considerado aceitável em termos sociais, e muito
menos pesquisável academicamente. Nossa rejeição coletiva ao padrão
da grande empresa capitalista industrial nos possibilitou alçar voos
bastante interessantes, pois tivemos de abrir e pavimentar um percurso
alternativo muito rico, que permitiu a interlocução com outros grupos
de pesquisa no país e a construção de uma posição qualificada nos
fóruns acadêmicos que os pesquisadores do grupo frequentam.
Olhar para a árvore e para a floresta, assim, é uma “tradição
inventada”, nos termos de Hobsbawm e Ranger (1997), em um grupo que
nada tem de tradicional. No ano em que completamos 21 anos e
alcançamos a maioridade, o lançamento deste livro, “Estudos
organizacionais e sociedade – volume 1”, marca uma das formas de
celebrar as concepções e práticas de um grupo de pesquisa fiel às suas
tradições de jamais ser tradicional nas suas escolhas e percursos. Esta
obra é dividida em duas partes.
Na parte 1, “Produção social do cotidiano”, Alexandre de Pádua
Carrieri apresenta o Grupo de Estudo e Trabalho (GET) “Produção social
Luiz Alex Silva Saraiva; Alexandre de Pádua Carrieri • 11

do cotidiano: histórias e memórias da gestão na vida organizada nas/das


sociedades”, destacando os pontos principais das suas atividades. Além
deste, esta parte do livro é composta por três capítulos. No primeiro
deles, “A educação como uma promessa da modernidade”, Denis Alves
Perdigão explora a relação entre educação e desenvolvimento no Brasil,
destacando o projeto de educação republicana libertadora que sempre
se viu desafiado por governos pouco comprometidos com a
emancipação popular, em especial por meio da educação.
Paula Gontijo Martins e Gabriel Farias Alves Correia tratam, em
“Histórias, memórias e saberes populares: reflexões e aproximações
com a gestão ordinária” de discutir a teorização necessária a pesquisas
nos estudos organizacionais voltadas para saberes populares.
Informados pelo conceito de gestão ordinária (Carrieri, 2012), os autores
discutem, a partir das práticas que organizam o cotidiano de pessoas
comuns, conhecimentos e práticas historicamente marginalizadas
pelos estudos da gestão, ampliando os olhares em direção á pluralidade
dos modos de organizar em nossa sociedade, questionando os regimes
de verdade dominantes na área de Administração.
Voltados a examinar os processos de resistência no âmbito do
grafite em Belo Horizonte, Alexsandra Nascimento da Silva, Fabiana
Florio Domingues e Alexandre de Pádua Carrieri apresentam o último
capítulo da primeira parte do livro, “De spray na mão: resistências de
grafiteiras em Belo Horizonte”, no qual foi identificado que o grafite,
arte e reflexo de lutas, pode ser tanto manifestação de conivência com
– quando se volta ao espetáculo e para angaria clientes – quanto de
12 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

resistência, ao abordar temáticas como a do negro, indígena e da mulher


– ao capitalismo.
A parte 2, “Cidades, Tecnologias, Diferenças”, é composta por
quatro textos. No primeiro deles, “Cidades, tecnologias, diferenças e
vida social organizada: passos de uma agenda integrada”, Luiz Alex Silva
Saraiva discorre sobre os quatro elementos que articulam as atividades
do GET de mesmo nome, sob sua coordenação. Neste texto ele explora a
necessidade de outra universidade, que reconheça sua vocação urbana,
embora não desprendida do rural, a intensa mediação das relações
sociais por tecnologias, as diferenças, constitutivas de quem somos
enquanto seres humanos, e a necessidade de se ampliar a noção
organizacional pela proposta do conceito de vida social organizada, com
implicações para as atividades universitárias de ensino, pesquisa e
extensão.
Bruno Eduardo Freitas Honorato nos apresenta o capítulo “Entre o
visível e o invisível: os vínculos transitórios entre a cidade e as vidas que
não geram acúmulos”, texto que se origina na sua dissertação de
mestrado associado à experiências posteriores baseadas na
construção de conhecimento “sobre”, “com” e “para” a População
em Situação de Rua. Retomando discussões anteriores e nelas
avançando , o autor apresenta uma agenda de pesquisa para abordar a
situação de rua no Brasil como um tema transversal que perpassa várias
áreas de conhecimento e tangencia outras como a precarização social e
má distribuição de renda no país.
“Contatos não tão imediatos em estudos organizacionais: fazer
pesquisa sócio-espacial com os malucos de estrada em Belo Horizonte”,
Luiz Alex Silva Saraiva; Alexandre de Pádua Carrieri • 13

o capítulo de autoria de Jéssica Eluar Gomes, apresenta uma reflexão


metodológica a respeito de pesquisas sócio-espaciais. Se por um lado
são desafiadoras do ponto de vista de pesquisadores que precisam se
aproximar de grupos com os quais tiveram pouco ou nenhum contato,
como no caso dela com os “malucos de estrada”, por outro isso significa
compreender as tensões entre estratégias e técnicas de sobrevivência,
lutas pelo direito de existir, e as complexas relações entre conciliação e
conflitos com a institucionalidade vigente.
No último capítulo desta parte e do livro, escrito por Elisângela de
Jesus Furtado da Silva, Ana Flávia Rezende e Danielly Mendes dos
Santos, “Black money e afroempreendedorismo”, as autoras procuram
demonstrar a que se referem os termos em perspectiva no contexto
histórico brasileiro, problematizando a dimensão econômica como via
de inclusão. A partir dos temas da exclusão social e da distribuição de
renda, elementos importantes e basilares da desigualdade crescente no
país, o texto é construído problematizando o racismo estrutural em uma
perspectiva histórica, e que os dois eixos da discussão tendem a ser
pouco efetivos se desarticulados de uma via política para a construção
de mecanismos de mudança social.
Boa leitura!

REFERÊNCIAS

Carrieri, A. P. (2012). A gestão ordinária. Tese de Professor Titular, Universidade Federal


de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.

Hobsbawm, E. & Ranger, T. (1997). A invenção das tradições (6a ed). Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
14 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade – NEOS. Diretório dos Grupos de


Pesquisa no Brasil (DGP) – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Recuperado em 5 março, 2023 de: http://dgp.cnpq.br/dgp/
espelhogrupo/778640#identificacao.
PARTE 1

PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO


PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO:
2
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA GESTÃO NA VIDA
ORGANIZADA NAS/DAS SOCIEDADES
Alexandre de Pádua Carrieri 1

(Krrieri ou só K)

Este grupo temático que faz parte do (grande) NEOS, também é


conhecido como “NEOS turbinados do K” ou do “lobinhos apavorados,
de queixos trêmulos e rabinhos chamuscados” & do “porco mau” nas
redes não tão sociais (Trivizas & Oxenbury, 1996, p.25). É um grupo,
antes de tudo, bem humorado que trabalha “a invenção e concretização
colaborativa de novos projetos de pessoas” (Faustino, 2022, p. 100), de
outras possibilidades de mundo, outras pesquisas, sem perder o senso
de nossa realidade social e de seu dever de fazer a crítica ao complexo
sociometábólico do capital. Assim como, ao mainstream da área das
Ciências Sociais Aplicadas, sobretudo dos Estudos Organizacionais.
Partimos das colocações do Fanon (2022) de que a identidade social do
pesquisador colonizado não é um luxo, mas é, antes de tudo, um
programa histórico e coerente de dominação, programa que
violentamente apaga ou silencia as diferenças, as homogeneíza e, por
isto mesmo, precisa ser transformado radicalmente (ou destruído?).
Para Silva e Carrieri (2022) e Paula (2008), trabalhos críticos
precisam enfatizar, também, a subjetividade, o sujeito e a ação, além de

1
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular da Faculdade
de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: ale.krrieri@gmail.com.
18 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

questionar a “gestão dita como universal”, as formas de fazer, pensar


ditas dominantes. O posicionamento teórico para os pesquisadores é
muito importante. Como propõem Barley e Kunda (1992), qualquer
discurso, mas, principalmente, aqueles relacionados à gestão,
propagam, mesmo que implicitamente, um conjunto de pressupostos
sobre a natureza dos objetos com os quais lida. Nesse sentido, cabem aos
pesquisadores anunciarem suas posições teóricas. As subjetividades e os
sujeitos devem ser contemplados na observação das interações sociais,
nas inter-relações sociais do cotidiano, das experiências e vida
organizada.
O grupo temático é composto por vários sujeitos singulares e, a
partir de suas identidades e de suas diferenças, é que emergem as nossas
pesquisas, suas ações e suas produções. No plano da vida cotidiana, por
assumirmos o organizar como um movimento incompleto, temos a
oportunidade de “desvendar” as possibilidades concretas de realização
da sociedade. Ainda, temos a consciência que a realidade enquanto
objeto de estudo, de ação “apenas se constitui como objeto para um
sujeito singular, atravessado por mediações históricas, sociais”
(Faustino 2022, p. 18), espaciais e temporais.
Das diferenças que compõe o grupo, os conflitos e as ambiguidades
que aparecem neste coletivo criam possiblidades de pensamento e de
produção de conhecimento das /nas formas de fazer e organizar o
cotidiano e a vida na sociedade (Correia & Carrieri, 2019). A vida
cotidiana tem sido palco de diversos estudos nas mais diferentes áreas
do saber. Este alastramento se deve, de certo modo, por ela ser o “lugar
em que se formulam os problemas concretos da produção em sentido
Alexandre de Pádua Carrieri • 19

amplo: a maneira como é produzida a existência social dos seres


humanos, com as transições da escassez para a abundância, e do
precioso para a depreciação” (Lefebvre, 1991, p. 30).
Visto de dentro para fora, o cotidiano pode parecer inalterável
(Matos, 2002), porém, esta não é uma afirmação plausível, tendo em
vista ser um espaço de construção e desconstrução histórico-social.
Souza (2006) já indicava que seria preciso compreender o cotidiano
como a causa e, ao mesmo tempo, o efeito das relações sociais. São as
relações sociais que nos permitem reconhecer o outro, com sua
identidade e diferença, e suas formas de pensar e agir. Este cotidiano,
enquanto espaço de criações e interações constantes, é construído
mediante intervenções e probabilidades interpessoais, abrindo para
possiblidades de se compreender como os diversos saber-fazeres se
interrelacionam na vida cotidiana por meio do que é efêmero. As
cotidianidades, porém, não se desfazem de maneira simplória, como
alguns estudos e práticas discursivas tentam, de forma funcional, ainda
argumentar.
Os estudos sobre o cotidiano de Lefebvre apontam para a
consolidação de um campo de estudo multidisciplinar, caracterizado
por “uma pluralidade de influências, na tentativa de reconstruir
experiências excluídas” (Matos, 2002, P. 23). Seriam estas influências as
responsáveis por romper com a ideia de linearidade e cronologia da
história, esta narrativa única. Le Goff (1996, p. 14) já diria que “a crença
num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve
segundo um modelo em todas as sociedades já quase não existe”. A
partir deste entendimento, não há um protagonista histórico universal,
20 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

e sim diversos personagens. Múltiplas histórias ganham corpo,


vencendo o método “único e racional” do conhecimento histórico.
Gestos, palavras e atos do homem comum ou ordinário são revelados,
conforme propõem Martins (2021b; 2008), Carrieri e Correia (2020) e
Carrieri et al. (2018). O sujeito comum é o centro, em oposição a um
modelo de “Homem”, às grandes narrativas e a uma universalidade das
histórias. No entanto, este sujeito comum não seria, conforme Patto
(1993, p.124) “um indivíduo abstrato ou excepcional, mas sim o indivíduo
da vida cotidiana, isto é, o indivíduo voltado para as atividades
necessárias à sua sobrevivência”.
O valor está no cotidiano vivido, marcado por relações de interesse
concordantes ou não, lutas e solidariedades, significados estruturados
pelos próprios sujeitos, entendimentos práticos, fazeres e saberes.
Todos estes aspectos negligenciados por anos pelos estudos de gestão,
que valorizaram a objetividade, a racionalidade e a unificação, adquirem
papel de destaque (Capaverde, Oliveira & Scheffer, 2017). Levigard e
Barbosa (2010) já apontavam anteriormente que as alterações ocorridas
ao longo do Século XX foram frutíferas para desencadear os estudos
sobre o cotidiano. As autoras evidenciam que o mundo do just-in-time,
marcado por uma única racionalidade e uma homogeneização
(i)limitada e rasa, discrepa do mundo cotidiano, por sua vez
caracterizado por racionalidades ilimitadas e temporalidades paralelas
diversas. No segundo universo, temos inúmeras possibilidades de
criação.
Por um lado, temos a vida cotidiana que se refere às atividades que
reproduzem a existência do indivíduo. Por outro lado, está a esfera não-
Alexandre de Pádua Carrieri • 21

cotidiana, que diz respeito às atividades reprodutoras da sociedade. A


principal característica da vida cotidiana seria o agir e o pensar
apartados de uma reflexão crítica, ou seja, a espontaneidade regendo
todas as relações. Não seria viável um pensamento crítico perene, como
já diria Rossler (2004, p. 106): “é necessário que atividades,
pensamentos, e ações dos indivíduos sejam espontâneos nessa esfera de
sua vida, pois senão se tornaria inviável a produção e reprodução da sua
existência social”.
Outras características, para além da espontaneidade, são o agir
econômico, sem profundidade ou intensidade. E encontramos, também,
o pragmatismo, pois as atividades cotidianas não poderiam ser
teorizadas, caso contrário, a sua realização se revelaria um tanto
complexa. Rossler (2004, p. 107) argumenta nesse sentido ao dizer que
“não haveria uma mediação teórica, reflexiva, crítica e aprofundada [...].
Na vida cotidiana, os pensamentos e as ações são muito mais
determinados por sua funcionalidade [...] imediata do que por razões de
ordem teórica ou filosófica”.
Autores como Levigard e Barbosa (2010) e Martins (2021b; 2008)
interpretam que na visão de Lefebvre, o poder social da vida cotidiana
está para além do domínio do trabalho, incluindo também no domínio
do espaço, do cotidiano. Tal poder está relacionado as formas de poder
social paralelas, tais como o domínio do tempo e do dinheiro. Lefebvre
(1969) já argumentava que o espaço que se produz das relações sociais é
híbrido: ao mesmo tempo em que é meio de produção e de controle, é
também instrumento de ação e de pensamento. O espaço corporifica o
22 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

cotidiano, enquanto objeto empírico, e exerce a intermediação entre o


particular e o universal.
Lima (2009, p.39) corrobora o que propôs Lefebvre (1991) ao
argumentar que “a mera descrição do privado não o torna cotidiano,
pois este deve se localizar em um contexto maior da produção das
relações sociais”. Enfatizamos que nossas investigações, para além de
descreverem o cotidiano, objetivam conectá-lo às suas próprias
interações com as cidades, uma espécie de mônada mineira e brasileira
(dependendo da abrangência de nossas ações e pesquisas). Para
apreender o cotidiano em toda sua complexidade, faz-se necessário
tanto analisar os pormenores quanto manipular, em alguma medida,
categorias sociais (Caldeira, 1995). Ao mesmo tempo, devemos analisar
como ambas, especificidades e categorias sociais, se enlaçam.
Partindo das propostas de Lefebvre (2002) buscamos pensar que as
relações sociais devem ser analisadas quanto à (re)produção – seja das
próprias relações sociais, seja dos instrumentos materiais e técnicos
indispensáveis à produção e ao consumo. Os pesquisadores devem
buscar o repetitivo e a sugestão do autor é que eles também se atentem
para os recomeços, recriações e retomadas das condições reprodutoras
de obras ou objetos ou de seus elos constitutivos ou ainda de suas
transformações paulatinas ou súbitas.
Ao estabelecer uma relação entre vida cotidiana e modernidade,
Lefebvre (1991, p. 17) reflete que “a vida cotidiana se apresenta como não
filosófica, como mundo real em relação ao ideal”. O autor fundamenta
sua tese no sentido de que a filosofia se apresenta superior à vida
cotidiana, na tentativa de dissociar a sua pureza da impureza da vida
Alexandre de Pádua Carrieri • 23

cotidiana, ressoando o antigo dilema que sustenta a dualidade entre o


mundo de ideias e o mundo real. Além disso, o autor nos convida a tomar
uma decisão por meio de suas formulações teóricas: “ou erigimos em
absolutos, em ideias platônicas as instâncias que se elevam acima do
cotidiano com a pretensão de regê-lo – ou então (...) ajudamos a humilde
razão do cotidiano” (Lefebvre, 1991, p. 21).
Ao iniciar sua análise do cotidiano, Lefebvre (1991, pg. 20) destaca
que “é a interação dialética da qual seria impossível não partir”. Nesse
sentido, o autor procura encontrar a combinação entre o filosófico e o
não filosófico, o conhecimento racional e a vida real. Ainda segundo o
autor, o cotidiano é o lugar dos conflitos, “dos problemas concretos da
produção em sentido amplo: a maneira como é produzida a existência
social dos seres humanos”. Ao utilizar do estudo do e no cotidiano para
melhor entender a sociedade, o autor pretende situá-lo na estrutura
global do Estado, da cultura e da ciência, pressupondo que não existem
fatos sociais que não estejam relacionados, tampouco grupos sociais que
não estejam reunidos.
Para Lefebvre (2002) precisamos situar os estudos do e no cotidiano
em nossa sociedade moderna urbana e burocrática de consumo burguês
dirigida. Desse modo, precisamos apreender a vida urbana como trans-
histórica, em que o espaço adquire centralidade sobre o tempo. Este
modo de pensar tem como argumento a explosão dos referenciais
vindos da história que apontam na modernidade, momento no qual as
relações capitalistas se tornaram determinadas pelo processo de
produção do espaço. Nesse sentido, observamos um movimento do foco
24 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

central do processo de acumulação capitalista, qual seja, da produção de


mercadorias clássicas para a produção do espaço.
Ao trabalhar a cidade, o urbano e os espaços, o grupo temático parte
da visão desta como mercadoria, evidenciando o processo contraditório
na produção do espaço que se torna moeda de troca como um momento
significativo do processo de valorização do capital. O valor de troca se
mostra superior ao valor de uso, restringindo-o, apresentando como
principal resultado a degradação das relações sociais na cidade, de forma
a realçar a segregação espacial. Resistências e lutas sociais por
determinados espaços se justificam conforme tais movimentações
ocorrem no curso da história. O pensamento crítico se destaca por se
tratar de um momento indispensável para que se compreenda a realidade,
assim como apresenta possibilidades de transformação, visto que o ato de
conhecer traz também em si uma utopia.
Dessa forma, para este grupo de pesquisa, o materialismo
apresenta uma necessidade de junção entre dois princípios opostos: não
há pensamento sem utopia (sem exploração do possível), e não há
pensamento sem referência a uma prática que, compreendida por meio
do debate urbano, estaria interligada à produção do habitar e do uso,
compreendendo a apropriação como ato fundamentalmente humano e
criativo.
Como resultado, a prática espacial urbana reproduz a separação
dos elementos que sustentam a vida organizada em sociedade, a qual é
estilhaçada na separação dos espaços-tempo da vida cotidiana,
degradando as relações sociais. Temos, então, um urbano “vivido-
vivenciado-percebido” mediante a privação das restrições ao uso e à
Alexandre de Pádua Carrieri • 25

normatização/programação do cotidiano em um ambiente desigual. A


vida cotidiana organizada passa a ser observada a partir da
fragmentação dos elementos da prática socioespacial urbana em
espaços-tempo distintos enquanto elementos autônomos da vida.
Observamos que a vida cotidiana, como bem mostrou Lefebvre
(2002), expõe a ordem capitalista, que, ao se desenvolver, reproduz os
elementos essenciais à sua manutenção. São criados espaços
fragmentados, configurando lugares e não lugares, como favelas,
condomínios fechados, guetos. Todos estes espaços realçam a
segregação, a atomização das pessoas pela desagregação dos indivíduos.
O ponto importante que é discutido no grupo consiste nos
questionamentos da parcela relevante da sociedade que tem reduzida
sua luta pela sobrevivência, reduzida às suas necessidades básicas, como
comer, beber e dormir. E, por meio das lutas diárias, é possível, também,
perceber as disputas pelo espaço (de sobrevivência) da vida na cidade.
O espaço social permanece impresso nas estruturas espaciais e nas
estruturas cognitivas dos indivíduos. Tem-se, assim, um produto da
incorporação destas estruturas. Nesse sentido, estruturas espaciais são
consubstanciadas por estruturas mentais e ambas atuam como
catalisadoras umas das outras que se dá sobre a produção de bens
tangíveis e intangíveis que se apresentam no espaço (social) e na sua
reprodução. Lefebvre (2002) relembra que o conceito de espaço social é
compreendido na medida em que é ampliado. Se introduz no interior do
conceito de produção, o arrebata, inclusive, chegando a fazer parte (até
mesmo essencial) de seu conteúdo. Desta forma, conduz um movimento
dialético individualizado que não exclui certamente a relação produção-
26 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

consumo aplicada às coisas (bens, mercadorias, objetos de troca), mas


que altera conforme sua ampliação.
Articulamos, enquanto grupo, o dia a dia, as visões de mundo, os
usos dos espaços e do tempo, as práticas de gestão, as estratégias, táticas
e resistências de sobrevivência na vida social organizada. Procuramos
avançar nos Estudos Organizacionais, partindo não mais da
organização, enquanto objeto maior de estudo, mas da própria
sociedade, elegendo para nossas pesquisas a ação coletiva e todos os
fenômenos de organização, desde que sejam compreendidos e
estudados como fenômenos indissociáveis da vida humana e social.
As identidades e diferenças dos componentes do grupo, como
apresentamos, abre para possibilidades de pensarmos a vida organizada
e também a gestão ordinária, considerada menor do ponto de vista
histórico, a partir da tríade lefebvriana: do que é percebido, do que é
vivido e do que é produzido. A tríade nos move às suas influências sobre
os sujeitos que vivem sua cotidianidade em uma sociedade burocrática de
consumo dirigido. Essas categorias nos trazem mais clareza sobre o
objeto de estudo e seus cruzamentos, assim como delimita o concreto e as
consciências. É importante destacar que a cotidianidade torna a realidade
social privatizada, burguesamente individualizada e rotinizada.
Essa cotidianidade e sua funcionalidade, e por este motivo, é capaz
de produzir e reproduzir a alienação, atrofiando as possibilidades de ação
e de organização do social. A alienação, por sua vez, pode ser descrita com
a tríade lefebvriana: alienação, desalienação e reificação. E,
diferentemente das contradições, que são inerentes à vida organizada e
que evidenciam possibilidades de ação, a alienação elimina o outro, sua
Alexandre de Pádua Carrieri • 27

identidade e diferença, comprometendo o coletivo. Para Lefebvre (1991) a


pior alienação é a ignorância, a falta de consciência de que o outro existe,
que há um social, um coletivo e não somente o privado burguês.
O olhar histórico e memorialístico que este grupo trabalha sobre o
tema da vida organizada da sociedade identifica no cotidiano os
arranjos e práticas de gestão desenvolvidas pelo conjunto social, pelas
inter relações sociais produzidas em nosso tempo e espaço. Assim,
estudos que enfatizam a história da gestão podem contribuem para a
produção de conhecimentos que possuem como implicação prática de
“transformação radical das condições sociais de existência” (Faustino,
2022, p.89).
As discussões que aliam os campos da História e da Administração
são amplificadas desde o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com
importantes trabalhos publicados por Zald (1988; 1993; 1996). O autor
consolidou essas possibilidades a partir de estudos sobre diferentes
tipos de organizações, destacando a importância de estarmos atentos ao
setor em que elas estão localizadas, aos acontecimentos históricos
globais e particulares para que o trabalho histórico seja realizado com
maior coerência. A diversidade que circunda a área da Administração é
considerada pelo autor como fator que beneficia a interface com outras
áreas do conhecimento nas ciências humanas e sociais, sendo
importante que o olhar da gestão sobre os fenômenos seja acompanhado
de certo grau de criticidade quanto ao que está sendo posto.
Mais recentemente, a abordagem histórica e sua aproximação com
a Administração tem sido trabalhada há alguns anos, com recente
aumento de trabalhos na última década (Carrieri & Correia, 2020;
28 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Correia; Carrieri, 2019; Carrieri et al., 2018; Barros & Carrieri, 2015;
Carneiro, 2016; Costa & Silva, 2019). Os mesmos autores retratam que a
discussão histórica na Administração avançou no sentido de discutir a
gestão (management history), as histórias dos negócios (business history)
e das organizações (organizational history). No entanto, consideramos
importante discutir e avançar em novas visões e abordagens no campo,
incentivando trabalhos direcionados às memórias da gestão e dos
sujeitos que vivenciaram os acontecimentos no âmbito do próprio
trabalho, em seu cotidiano e na vida organizada da sociedade. Cabe
destacarmos, sobretudo, a visão localizada do território que ocupamos.
É impossível falarmos de uma ciência administrativa brasileira sem
considerarmos um passado de aniquilação da população indígena da
região e a negra trazida para a região. É preciso retomarmos os
ensinamentos indígenas de contato com a natureza que sofreram
diversas tentativas de apagamento ao longo de nossa história. De igual
modo, não cabe falarmos dos Estudos Organizacionais se não
estivermos atentos ao nosso passado escravocrata pautado no trabalho
à base da violência como instrumento de competitividade no mercado.
Estes aspectos influenciam, direta ou indiretamente, nossos modos de
gerir, ser e estar no território brasileiro, bem como em nossas práticas
e estratégias cotidianas.
A tríade dialética entre vida organizada, história e memória e
cotidiano produz para o grupo uma encruzilhada. Este termo
encruzilhada já é trabalhado por Martins (2021a, p. 50) e é utilizado
como “conceito e como operação semiótica que nos permite clivar as
formas que daí emergem”. Ao pensar a encruzilhada temos que explorar
Alexandre de Pádua Carrieri • 29

as inter-relações espiralares entre corpo, oralidade, gestos, tempos,


memórias, espaço e tempo. Nessa encruzilhada, compartilhada pelos
diferentes pesquisadores que compõem este grupo, almejamos novas
perspectivas em torno de uma Administração que transforma o que
rompe, o que modifica, o que inventa, cuidadosa com a potência,
multiplicidade e interdependência inerente aos modos de organizar e
compor cotidiano das vidas e das organizações. Assim, produzimos
outras encruzilhadas, um vir a ser de possiblidades reais de pesquisa,
para continuar existindo enquanto grupo:

 (re)construir histórias e memórias da gestão e das formas de organizar a vida;


 conhecer as diversas práticas de gerir tendo como possiblidade as mônadas e
as constelações benjaminianas;
 estudar a gestão e, mais particularmente, as estratégias, como um processo
de negociação, de táticas e de relações de poder;
 pesquisar as diferenças e identidades de gênero, classe, etnoraciais e
sexualidade frente a dominação do patriarcado moderno e sociabilidade
burguesa;
 cartografar a administração “menor”, popular, cotidiana, corriqueira como
potência de aprendizagem de novos modos de gerir e de reinvenção do que
temos estabelecido como gestão;
 pensar a ciência e a gestão em seu caráter coletivo quando parte da construção
grupal por meio da realidade dos sujeitos e a ela retorna de forma crítica e
criativa;
 a vida organizada sendo um exercício político e uma construção coletiva pela
via da complementaridade e não da exclusão social.

Trabalhar no/com o grupo NEOS é pensar um amanhã em que a


transformação da realidade brasileira de fato faça parte de nossas ações.
30 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Isso significa incluirmos os 62,9 milhões de brasileiros com renda


domiciliar per capita de até R$ 497 que representam 29,6% da população
total do país (FGV, 2022) e os mais de 11 milhões de brasileiros
analfabetos (IBGE 2019). A transformação do país exige um trabalho
grande de extensão/ensino/pesquisa para efetivamente diminuir
(acabar com) estes números. Somente considerando estes fatos é que
podemos falar de uma gestão que considera a história local e que se
busca, efetivamente, inclusiva. Por fim, convidamos todas e todos que
queiram, conosco, compartilhar das diversas encruzilhadas e da
transformação da vida organizada cotidianamente e, portanto, do país.

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3
A EDUCAÇÃO COMO UMA PROMESSA
DA MODERNIDADE
Denis Alves Perdigão 1

Quando se pensa sobre o que falta para o Brasil deslanchar e se tornar


finalmente o “país do futuro”, todos nós brasileiros temos na ponta da
língua a resposta: Educação, é claro. Afinal, um país que não investe ou
investe pouco em suas escolas só por milagre vai conseguir se tornar uma
nação rica e desenvolvida (Freitas, 2009, p. 281).

A afirmação de Freitas, transcrita acima, é assertiva quanto às


expectativas que a sociedade deposita na educação. Essa expectativa é
justificável, visto que, na sociedade moderna, o conhecimento é um
importante meio de valorização de nosso capital simbólico (Bourdieu,
2005; 2007; 2010; 2013; Bourdieu & Passeron, 2010; 2014) e, portanto, um
importante meio para a obtenção de ascensão social.
Esse reconhecimento da educação como fonte potencial de
desenvolvimento dos indivíduos a tornou símbolo da promessa do
Estado e do mercado na construção de uma nação rica e desenvolvida.
Não obstante, a educação da camada social mais pobre, a que Souza
(2009) chama de ralé brasileira, foi historicamente negligenciada. A
inclusão da ralé no âmbito educacional ocorre de forma lenta e tímida,
e essa inclusão somente se fortalece devido à necessidade das
organizações industriais da década de 1940 por empregados

1
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da
Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: denis.perdigao@ufjf.br.
34 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

minimamente preparados, o que significava saber, pelo menos, ler e


escrever. A esse respeito, Lopes (2010, p. 137) diz que

[...] a educação brasileira foi-se complexificando na medida em que o debate


pela democratização da escola e da luta pela escola pública se passava às leis
e à ação. Evidentemente, a concretização de tudo isso só viria muito mais
tarde. Mas era o próprio processo de industrialização que requeria maior
qualificação da mão de obra. Cada vez mais, saber ler e escrever era uma
exigência e uma demanda de uma sociedade em que 57,6% da população era
analfabeta.

Se a modernidade, por meio da expansão do regime capitalista


industrial, influenciou o movimento de propagação da educação à classe
popular no seu processo de formação de mão de obra, por outro lado,
desencadeou o agravamento das desigualdades sociais ao transformar a
sociedade brasileira agraria em uma sociedade industrial incapaz de
incluir todos os seus membros.
Neste texto busquei resgatar o percurso histórico da educação
popular brasileira na modernidade, compreendida pelo período que
marca as primeiras décadas do Século XX aos dias atuais, quando a
promessa educacional se renova com a expansão do ensino superior no
Brasil, o que possibilitou o acesso de membros da ralé brasileira a cursos
de nível superior. Apresento, também, as contribuições do pensamento
crítico de Pierre Bourdieu para a área da educação produzidas por meio
de suas pesquisas a respeito do sistema de ensino francês.
Denis Alves Perdigão • 35

A DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO BRASILEIRO NA MODERNIDADE

O processo de democratização do ensino promoveu uma série de


reformas educacionais ao longo do Século XX influenciada por variadas
retóricas. Faria Filho (2010, p. 18) informa que um desses argumentos
retóricos é o de fazer coincidir a reforma da escola com a reforma social,
“[...] de tal modo que do sucesso da primeira – a reforma da educação –
depende o êxito da segunda”. Atribui-se à educação um papel de
relevância no desenvolvimento social, que chega a ter primazia, até
mesmo, sobre os problemas de natureza econômica (Faria Filho, 2010).

Essa premissa, atualizada em cada proposta de reforma da educação, é


pedra de toque da retórica que nos quer fazer acreditar que o emprego, a
distribuição de renda, o desenvolvimento econômico e social, a saúde, a
diminuição da criminalidade. etc., tudo isto depende da educação (Faria
Filho, 2010, p. 21).

Se a premissa é de que tudo depende da educação, reformas


distintas são realizadas para que a educação cumpra o papel social que
dela se espera. Entre tais reformas se destaca a reforma do corpo da
escola, do ponto de vista de suas estruturas físicas, transformando-as
em templos da civilização, para poder reformar o corpo na escola, de
forma que a escola deveria não apenas “[...] ensinar a ler, mas o que ler.
Não apenas ensinar a escrever, mas o que escrever. Não apenas ensinar
a pensar, mas o que pensar, o que fazer e, mais, o que não se deve fazer”
(Vago, 2010, p. 96). O objetivo é o de criar o que Foucault (2010) chama de
corpos dóceis. Corpos domesticados para a sociedade, corpos
domesticados para o trabalho, de forma a serem úteis e produtivos.
36 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Magaldi (2010, p. 134) resume bem o papel civilizador que se esperava da


escola.

Em um quadro de industrialização e de urbanização crescentes, de


afirmação do trabalho livre e de condições de exercício da cidadania em
bases distintas daquelas próprias da sociedade imperial, a constituição de
cidadãos ciosos da ordem e das hierarquias sociais, conhecedores das leis e
obedientes a elas, a conformação de trabalhadores disciplinados e de
eleitores que exercessem seu direito de voto com responsabilidade,
constituíam-se em tarefas essenciais a serem desempenhadas pela escola
pública.

Nesse contexto histórico, conforme informa Xavier (2010), desde os


anos de 1930 ocorriam debates que objetivavam discutir a relação entre
a educação escolar e a necessidade de modernização da sociedade
brasileira. Em tais debates se iniciou o movimento que defendia a
instituição de uma educação pública, laica, obrigatória e gratuita
(Xavier, 2010). Nesse âmbito, Anísio Teixeira se destaca como um grande
defensor desse propósito. Nunes (2011, p. 163) descreve o tipo de
educação que defendia Anísio Teixeira.

Uma escola primária comum a todos, capaz de ministrar uma educação de


base que habilite o homem comum ao trabalho nas suas mais diversas
formas. Uma escola descentralizada, com finalidade própria. Uma escola
prática de iniciação ao trabalho, formação de hábitos de pensar, fazer,
trabalhar, conviver e participar em uma sociedade democrática, na qual a
soberania é do próprio cidadão. Uma escola de dia integral, com seu
programa vinculado às tradições, às características e à vida da comunidade
a qual pertence. Uma escola enraizada no meio local, servida por
professores da região e com ela identificados, uma escola reconciliada com
a comunidade.
Denis Alves Perdigão • 37

O modelo educacional defendido por Anísio Teixeira tem um forte


apelo para a emancipação dos indivíduos, não somente no que se refere
aos aspectos econômicos decorrentes do desenvolvimento das
habilidades para o exercício do trabalho, mas também pelo
desenvolvimento da capacidade de pensar. Esse modelo extrapola os
pressupostos básicos dos modelos de educação ao qual se referem Vago
(2010) e Magaldi (2010), que punham em prática uma educação
formadora de cidadãos pacatos, respeitadores das leis e hierarquias
empresariais e governamentais. Portanto, cidadãos pouco politizados e
críticos. Assim, o modelo de Anísio Teixeira é, também, uma
possibilidade de ruptura com a manutenção das desigualdades sociais
por meio da escola tradicional, como denunciavam Bourdieu (2012),
Bourdieu e Passeron (2010; 2014).
Se, por um lado, a defesa de Anísio Teixeira por uma educação
escolarizada, pública, gratuita e laica, com as configurações explicitadas
na citação acima, atendia ao interesse de uma sociedade que se
industrializava ao formar as pessoas para o exercício do trabalho, por
outro lado, era severamente criticada e combatida pelas lideranças
católicas brasileiras, que se viam ameaçadas por esse modelo
educacional laico que lhes excluía a possibilidade de exercer influência
direta na formação das pessoas (Nunes, 2011).
As propostas de Anísio Teixeira convergem para que a educação
seja uma responsabilidade dos municípios, de forma que possa ser
popularizada e deixar de ser um privilégio para uma parcela elitizada da
sociedade. Projetos de outros pesquisadores, também interessados no
desenvolvimento do Brasil, aprofundaram os debates no campo da
38 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

educação e os tornaram mais complexos. A esse respeito Xavier (2010, p.


197) diz que

[...] além da expansão do ensino superior e das iniciativas de extensão da


escolarização primária às camadas populares, surgiam movimentos em prol
da alfabetização de adultos, campanhas para ampliação da oferta da
educação rural, debates sobre o financiamento educacional e sobre a
necessidade de elaboração de diretrizes para uma política nacional de
educação mais adequada aos princípios republicanos.

Para Xavier (2010), no período compreendido entre 1946 e 1962,


houve o encerramento do ciclo de debates sobre o estabelecimento de
um projeto educacional de âmbito nacional capaz de auxiliar na
consolidação de uma nação republicana. Esse período, marcado por
ampla liberdade de pensamento, fez com que se pensasse que a
construção no Brasil de uma sociedade moderna, industrial e
democrática já estava em curso (Xavier, 2010). Não se contava, portanto,
com um golpe militar que prejudicaria os avanços até então obtidos na
construção de um projeto de educação para uma sociedade moderna e
democrática.
Duarte (2010), ao analisar as reformas educacionais na América
Latina nas décadas de 1980 e 1990, informa que vários países de nosso
continente se caracterizaram por apresentar um processo tardio de
escolarização de sua população, culminando na manutenção das
desigualdades relativas ao acesso à educação básica, ao rendimento
quanto ao aprendizado e à qualidade do ensino. Em tais países, entre os
quais podemos incluir o Brasil, combinou-se a baixa escolarização com
a pobreza e exclusão social (Duarte, 2010), de forma que a
Denis Alves Perdigão • 39

universalização da educação básica e a evasão escolar ainda fazem parte


da agenda de problemas desses países.
A necessidade de se adequar à lógica das necessidades capitalistas
motivou a realização de muitas reformas educacionais no Brasil e nos
demais países da América Latina, a partir da década de 1980, renovando
a promessa da educação para a sociedade moderna. Duarte (2010) divide
as reformas em três gerações. Na primeira delas, o foco foi a expansão
do ensino primário e básico. No entanto, cada país, de acordo com o grau
de desenvolvimento de sua educação formal, teve uma conotação
distinta. Enquanto no Brasil, conforme salienta Duarte (2010), foi
necessário atuar na universalização do ensino fundamental, em outros
países, como o México, Argentina e Chile, por estarem adiantados no
processo, foi possível se preocupar com a expansão do ensino médio.
Na segunda geração das reformas, o foco foi o desenvolvimento de
políticas de gestão para a educação e a implantação de avaliação dos
sistemas de ensino. Objetivou-se, também, a realização de alterações
nos processos e nos conteúdos curriculares. Nessa ocasião se
estabelecem, no Brasil, na Argentina, no Chile e no México, sistemas
nacionais de avaliação via reformas educacionais (Duarte, 2010). Por
meio dos indicadores, foram estabelecidos mecanismos de controle e
responsabilização das escolas e seus corpos docentes por seus
resultados educacionais.
A terceira geração de reformas objetivou o compartilhamento de
deveres entre o Estado e a sociedade no gerenciamento das instituições
de ensino por meio de colegiados e conselhos. Segundo Duarte (2010, p.
177), “[...] a reforma educacional brasileira normatizou a organização de
40 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

conselhos e colegiados com a participação de todos os atores sociais


envolvidos com as escolas, entre eles, pais e comunidade”. O interesse
em aproximar a sociedade da escola não é recente. Desde as décadas de
1920 e 1930, as reformas educacionais, conforme assevera Magaldi
(2010), objetivavam essa aproximação da sociedade, representada pelas
famílias dos estudantes, da escola. A esse respeito, ela diz que,

[...] no entanto, o projeto que ela enunciava, de colaboração entre escola e


família, não parece ter se concretizado de forma consistente, nem na
sociedade brasileira e nem em outras sociedades, nas quais a discussão
sobre o tema também esteve em pauta no passado, atualizando-se ainda no
presente (Magaldi, 2010, p. 131).

Na contemporaneidade, se o objetivo da escola era o de promover


a cidadania por meio da educação, esse objetivo, no que tange à parcela
mais pobre da sociedade, foi comprometido por graves problemas
(Freitas, 2009). A escola não logrou êxito em ampliar o capital simbólico
dos alunos oriundos da classe popular. A escola não foi capaz de
aproximar-se suficientemente da sociedade e incluir a família [dos
estudantes pobres] no contexto educacional. Conforme assevera Freitas
(2009, p. 288), “[...] o universo escolar não tem espaço na maioria das
famílias da ralé, seja nas brincadeiras que exigem pouco domínio de si
e pouco esforço intelectual, seja nas atividades nas quais pais e filhos
podem compartilhar os raros momentos juntos”. Esse distanciamento
favorece a naturalização do desinteresse e da indisciplina na escola, de
forma que somente aqueles que reconheceram a importância da
educação e introjetaram a disposição para apreender como parte
fundamental de sua autoestima “[...] podem almejar os prêmios que a
Denis Alves Perdigão • 41

instituição oferece àqueles que conseguem cumprir as metas que ela


impõe” (Freitas, 2009, p. 289).

A RENOVAÇÃO DA PROMESSA EDUCACIONAL NA EXPANSÃO DO ENSINO


SUPERIOR

É no contexto de uma educação pública de qualidade incipiente, no


que se refere ao ensino fundamental e médio, que a educação desponta,
novamente, como uma promessa da modernidade. A necessidade de
mão de obra qualificada motivada pelo processo de reestruturação
produtiva no mercado global propiciou, no final da década de 1990, uma
significativa expansão do ensino superior no Brasil, como se pode
verificar na tabela 1.

Tabela 1: Evolução do Número de Instituições,


segundo a Categoria Administrativa - Brasil - 2002 a 2021

Pública
Ano Total Total Federal Estadual Municipal Privada

2002 1.637 195 73 65 57 1.442


2003 1.859 207 83 65 59 1.652
2004 2.013 224 87 75 62 1.789
2005 2.165 231 97 75 59 1.934
2006 2.270 248 105 83 60 2.022
2007 2.281 249 106 82 61 2.032
2008 2.252 236 93 82 61 2.016
2009 2.314 245 94 84 67 2.069
2010 2.377 278 99 108 71 2.099
2011 2.365 284 103 110 71 2.081
2012 2.416 304 103 116 85 2.112
2013 2.391 301 106 119 76 2.090
2014 2.368 298 107 118 73 2.070
2015 2.364 295 107 120 68 2.069
2016 2.407 296 107 123 66 2.111
2017 2.448 296 109 124 63 2.152
42 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

2018 2.537 299 110 128 61 2.238


2019 2.608 302 110 132 60 2.306
2020 2.457 304 118 129 57 2.153
2021 2.574 313 119 134 60 2.261
Fonte: Censos da Educação Superior de 2008 a 2017, adaptada pelo autor (INEP, 2009;
2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016; 2017, 2022).

O INEP (2011, p. 3), como se pode ler abaixo, explicita sua


interpretação a respeito dos dados levantados no ano de 2010. Esse ano
tem importância histórica por ser aquele que encerra o segundo
mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, cujo governo
manteve e ampliou os incentivos à expansão do ensino superior privado
iniciado no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e
empreendeu uma significativa política de expansão do ensino superior
público federal, continuada no governo da ex-presidente Dilma
Rousseff, que o sucedeu.

O número de matrículas, nos cursos de graduação, aumentou em 7,1% de


2009 a 2010 e 110,1% de 2001 a 2010. Vários fatores podem ser atribuídos a
essa expansão: do lado da demanda: o crescimento econômico alcançado
pelo Brasil nos últimos anos vem desenvolvendo uma busca do mercado por
mão de obra mais especializada; já do lado da oferta: o somatório das
políticas públicas de incentivo ao acesso e à permanência na educação
superior, dentre elas: o aumento do número de financiamento (bolsas e
subsídios) aos alunos, como os programas Fies e ProUni e o aumento da
oferta de vagas na rede federal, via abertura de novos campi e novas IES,
bem como a interiorização de universidades já existentes.

Por meio dos dados apresentados na Tabela 1 pode-se inferir que


do ano de 2002 a 2021 o crescimento de instituições de ensino superior
foi da ordem de 57,24%. As razões para esse crescimento são as mesmas
Denis Alves Perdigão • 43

já apresentadas no excerto acima, com a ressalva de que, a partir de


2013, o Brasil passou a enfrentar uma crise política e econômica que,
ainda vigente em 2019, traz sérios impactos nos investimentos
educacionais públicos e privados. Neste mesmo período (de 2002 a 2021),
as instituições públicas de ensino superior cresceram 60,51%, enquanto
instituições privadas tiveram um crescimento de 56,80%. Nota-se que,
apesar da crise política e econômica iniciada no Brasil a partir de 2013,
bem como da pandemia por COVID-19 e seus impactos econômicos e
sociais sobre o Brasil a partir de 2020, o número de instituições privadas
de ensino superior manteve seu crescimento, enquanto as públicas
reduziram seu número em 5 unidades, entre 2013 e 2017, possivelmente
em função das dificuldades em manter o investimento em um cenário
orçamentário difícil, voltando a crescer em números de instituições a
partir de 2018 chegando a 313 em 2021, em especial, pela emancipação
de campus avançados de universidades federais que se tornaram
unidades autônomas com novas identidades jurídicas.
Chama a atenção o crescimento ocorrido nas instituições públicas
estaduais de ensino superior, que apresentaram um aumento de
106,15%, índice muito acima da média das universidades e institutos
federais, que tiveram um crescimento de 63,01% no mesmo período, e
das instituições públicas municipais de ensino superior, que cresceram
apenas 5,26% nesse intervalo de 19 anos. Esse indicador evidencia que
os estados da federação também se motivaram a adotar políticas de
criação ou expansão de suas redes públicas de ensino superior, embora
esse investimento não lhes seja uma obrigação constitucional, como o é
o investimento educacional na formação em nível de 2º grau.
44 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Pesquisadores como Lima (2011), Barreto e Leher (2008) e Dourado


(2002) defendem que o processo de expansão do ensino superior
brasileiro ocorreu por influência do Banco Mundial, que desenvolveu, a
partir de 1994, diversas diretrizes para a reformulação política de países
periféricos como o Brasil, em especial, de suas políticas educacionais.
Para Barreto e Leher (2008), o Banco Mundial, com base em seus
interesses econômicos ligados à globalização, se coloca na postura de
quem sabe o que é melhor para o mundo e usa seu poder político-
econômico para persuadir os Estados nacionais, principalmente os
países periféricos, a ajustarem-se às diretrizes propostas. A proposta do
Banco Mundial envolvia uma mudança de concepção de uma educação
superior pautada no desenvolvimento intelectual dos alunos, tanto na
vertente filosófica, quanto científica, para uma educação
essencialmente técnica, que implicava em uma flexibilização da
educação superior – em termo de currículos, cursos e instituições – com
foco específico na formação profissional dos discentes (Lima, 2011;
Barreto & Leher, 2008; Dourado, 2002). A perspectiva educacional do
Banco Mundial tem para Dourado (2002) um caráter utilitarista, que
objetiva fragmentar e desarticular a luta pela democratização da
educação em todos os seus níveis, como um direito social inalienável.
Lima (2011) diz que, em consonância com as diretrizes do Banco
Mundial, a partir de 1994, adota-se no Brasil uma série de reformulações
na política educacional do País que podem ser divididas em dois eixos
principais: a diversificação das instituições de ensino superior e seus
cursos (a expansão propriamente dita), e a diversificação das fontes de
financiamento educacional. Assim, a expansão do ensino superior
Denis Alves Perdigão • 45

inicia-se, primeiramente, no governo do então presidente Fernando


Henrique Cardoso, com o estímulo ao investimento empresarial nessa
área, por meio da liberação para a abertura de novas instituições
privadas de ensino. Posteriormente, ocorreu “[...] a privatização interna
das universidades públicas, através das fundações de direito privado,
das cobranças de taxas e mensalidades pelos cursos pagos [cursos de
pós-graduação lato sensu e outros] e do estabelecimento de parcerias
entre as universidades públicas e as empresas redirecionando as
atividades de ensino, pesquisa e extensão” (Lima, 2011, p. 87). Essas
medidas são as mesmas presentes nos documentos do Banco Mundial,
conforme Lima (2011) e Barreto e Leher (2008). No que se refere à
diversificação das fontes de financiamento das universidades públicas,
o Banco Mundial ia além da cobrança de mensalidade aos alunos.
Defendia o corte de qualquer tipo de custeio pelo Estado de atividades
não relacionadas diretamente com a educação, como a oferta de
moradia estudantil ou alojamento, alimentação, entre outras. Por outro
lado, o Banco Mundial estimulava o recebimento de doações de
empresas privadas e de associações de ex-alunos e a venda de serviços
educacionais às empresas como a prestação de consultoria e a realização
de pesquisas de seu interesse (Lima, 2011). Essa venda de serviços
deveria ser mediada pelas fundações de direito privado, que teriam uma
estrutura mais flexibilizada e maior liberdade legal para executar as
atividades privatizantes da educação.
Segundo Barreto e Leher (2008), já no documento publicado em
1994, o Banco Mundial defendia a oferta de cursos a distância e o
desenvolvimento de instituições privadas de ensino, que estariam mais
46 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

aptas a produzir as qualificações exigidas pela economia de mercado.


No documento publicado pelo banco em 1997, conforme Lima (2011),
propunha-se, em especial, aos países periféricos, a perspectiva liberal
de que o Estado deveria atuar como um impulsionador do processo de
desenvolvimento econômico e social, mas não como agente direto. Esse
papel caberia à iniciativa privada, inclusive no que se refere à educação,
visto que ela teria melhor competência para atuar nesse âmbito. Esse é
o discurso que se busca naturalizar, não apenas na sociedade brasileira
como na mundial, de demonização do Estado e exaltação da gestão
empresarial, tida como ética e eficiente, digna de confiança (Souza,
2006).
A reformulação do ensino superior, iniciada a partir de 1994, tem
sequência na década seguinte, em especial, no governo do ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva. Um conjunto de leis, decretos e medidas
provisórias foram promulgados nesse sentido, como as elencadas por
Lima (2011, p. 89).

a) o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES), Lei n.


10.861/2004;
b) o Decreto n. 5.205/2004, que regulamenta as parcerias entre as
universidades federais e as fundações de direito privado, viabilizando a
captação de recursos privados para financiar as atividades acadêmicas;
c) a Lei de Inovação Tecnológica n. 10.973/2004, que trata do
estabelecimento de parcerias entre universidades públicas e empresas;
d) o Projeto de Lei n. 3.627/2004, que institui o Sistema Especial de Reserva
de Vagas;
e) os projetos de leis e decretos que tratam da reformulação da educação
profissional e tecnológica;
Denis Alves Perdigão • 47

f) o Projeto de Parceria Público-Privada (PPP), Lei n. 11.079/2004, que


abrange um vasto conjunto de atividades governamentais;
g) o Programa Universidade para Todos (ProUni), Lei n. 11.096/2005, que
trata de “generosa” ampliação de isenção fiscal para as instituições privadas
de ensino superior;
h) o Projeto de Lei n. 7.200/2006, que trata da Reforma da Educação Superior
e se encontra no Congresso Nacional;
i) a política de educação superior a distância, especialmente a partir da
criação da Universidade Aberta do Brasil, Decretos n. 5.800/2006 e
5.622/2005;
j) o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades
Federais (Reuni), Decreto n. 6.096/2007, e o Banco de Professor-
Equivalente;
k) o “pacote da autonomia”, lançado em 2010 e composto pela Medida
Provisória 495/2010 e pelos Decretos n. 7.232, 7.233 e 7.234/2010. Esse
“pacote” amplia a ação das fundações de direito privado nas universidades
federais; retira das universidades a definição dos projetos acadêmicos a
serem financiados, transferindo essa prerrogativa para as fundações de
direito privado; legaliza a quebra do regime de trabalho de Dedicação
Exclusiva (DE); não resolve a falta de técnico-administrativos, criando
somente um mecanismo de realocação de vagas entre as Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES); cria as condições para a diferenciação
dos orçamentos das IFES, de acordo com índices de produtividade,
intensificando ainda mais o trabalho docente e, por fim, cria o Programa
Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), sem deixar claro de onde sairão
os recursos financeiros para realização do Programa e
l) a Medida Provisória n. 520, de 31 de dezembro de 2010, que autoriza a
criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Embora estatal e
vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a nova entidade terá
personalidade jurídica de direito privado, flexibilizando a contratação de
trabalhadores dos hospitais universitários.
48 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Entre os programas governamentais instituídos para favorecer a


expansão do ensino superior, o PROUNI , o FIES e o REUNI vêm 2 3 4

proporcionando a oportunidade de inserção e permanência de pessoas


oriundas das camadas mais populares em cursos de graduação. No
entanto, não estão isentos de críticas por parte de membros da
comunidade acadêmica. Catani, Hey e Giglioni (2006), por exemplo,
problematizam se o PROUNI seria um instrumento de democratização
da educação superior no Brasil ou um mero programa de estímulo à
expansão das IES privadas. Os autores argumentam que, desde a
apresentação no Congresso Federal do projeto de lei que instituiria o
PROUNI, o mesmo começou a ser desfigurado pelas emendas que
objetivavam atender às pressões impostas pelos representantes das
mantenedoras. Os impasses obrigaram o governo federal a negociar
com tais representantes e, após acordo, o PROUNI foi instituído por
medida provisória. As concessões por parte do governo tornaram o
PROUNI, conforme os autores, altamente benéfico e lucrativo para as
mantenedoras. Catani, Hey e Giglioni (2006) concluem que o PROUNI
acabou por estabelecer um falso sentido de democratização do ensino
superior, mas que, em realidade, legitima a desigualdade social ao
priorizar a inserção precária dos estudantes pobres nas instituições
privadas. Carvalho (2006) também questiona o PROUNI como política
pública de democratização do ensino. Para a autora, “[...] a
democratização do ensino é bastante complexa no Brasil, diante da

2
PROUNI – Programa Universidade para Todos.
3
FIES – Financiamento Estudantil.
4
REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais.
Denis Alves Perdigão • 49

brutal desigualdade de renda entre as famílias e a reduzida parcela do


ensino gratuito e de qualidade” (Carvalho, 2006, p. 992). A autora
também critica o FIES, visto que ele não seria interessante para o aluno
de baixa renda por haver uma defasagem entre a taxa de juros do
empréstimo e a taxa de crescimento da renda do recém-formado, que
se complica com o aumento do número de pessoas desempregadas com
curso superior.
Além dos programas mencionados, em 29/08/2012, foi sancionada
pela ex-presidente Dilma Rousseff a Lei n. 12.711, que estabelece a
reserva de 50% das vagas dos processos seletivos para ingresso nos
cursos de graduação das universidades federais para os estudantes que
cursaram, integralmente, o segundo grau em escolas públicas. Metade
dessas vagas reservadas deverão, ainda, ser destinadas a estudantes
cujas famílias tenham uma renda per capita inferior a 1,5 salários
mínimos. Em relação às cotas, a lei estabelece, também, que as pessoas
autodeclaradas negras, pardas ou indígenas devem compor, no mínimo,
o percentual de representatividade dessas etnias levantados nos
estudos do IBGE para a região onde se encontra a instituição de ensino.
5

Em seu pronunciamento na sanção da Lei de cotas, a ex-presidente


6

Dilma Rousseff disse que

[...] A importância desse projeto e o fato de nós sairmos da regra e fazermos


uma sanção especial tem a ver com um duplo desafio. Primeiro é a
democratização do acesso às universidades e, segundo, o desafio de fazer
isso mantendo um alto nível de ensino e a meritocracia. O Brasil precisa de

5
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
6
Pronunciamento realizado em 29/08/2012 na cerimônia de sancionamento da Lei 12.711.
50 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

fazer face a esses dois desafios, não apenas a um. Nada adianta eu manter
uma universidade fechada e manter a população afastada em nome da
meritocracia. Também de nada adianta eu abrir universidade e não
preservar a meritocracia.

A fala da ex-presidente pontua os dois desafios fundamentais


relacionados à democratização do acesso às universidades federais.
Deve-se incluir a classe da ralé nas universidades, mas, em
contrapartida, não se pode permitir a queda da qualidade de ensino. No
entanto, para que essa queda de qualidade não ocorra, é imprescindível
consolidar uma educação pública, no ensino médio e fundamental, que,
além de gratuita, laica e democrática, seja, também, de qualidade. A
qualidade da educação nos ciclos educativos que antecedem o ensino
superior é primordial, também, para que se não permita a queda da
qualidade no ensino superior privado, que, como já o disse, recebe em
maior número os alunos provenientes da classe popular. Afinal, para
que a educação superior possa efetivamente mudar a trajetória
profissional desse aluno que hoje é pobre nos três quesitos do capital
simbólico (econômico, cultural e social), é necessário que ele seja, no
mínimo, intelectualmente bem formado.
No entanto, as mudanças educacionais empreendidas desde a
década de 1990 não priorizaram, em nível de graduação, a formação
intelectual dos alunos. O modelo de educação terciária defendido pelo
Banco Mundial acabou sendo inserido nas universidades públicas por
meio do REUNI e se solidificou nas IES particulares com o PROUNI e
FIES, entre outros programas e medidas, redirecionando o foco da
formação intelectual para a formação técnico-profissional, atendendo
Denis Alves Perdigão • 51

aos interesses do empresariado. A liberalização da oferta de serviços


educacionais e as isenções fiscais garantidas pelo PROUNI, associada à
demanda reprimida de alunos das classes populares e média, tornaram
o investimento na área da educação atrativo para empresários
interessados em explorar esse setor. Conforme autores como Chaves
(2010) e Saraiva (2011), ocorre no Brasil uma mercantilização do ensino
superior, que leva, conforme Chaves (2010), à formação de oligopólios
por meio da compra e fusão entre IES privadas. “Em um quadro de
intensa competição, as organizações de educação superior se
transformaram em centros efetivos de negócio, convertendo a educação
em uma commodity, concebendo-a, produzindo-a e comercializando-a
como tal” (Saraiva, 2011, p. 42). A partir de 2007, quando começam a abrir
seu capital e negociar suas ações na bolsa de valores, os grandes grupos
expandem significativamente seus negócios pelo País, atraindo mais
investidores, entre os quais, o próprio Banco Mundial.

Desde 2007, o processo de mercantilização do ensino superior brasileiro


vem adquirindo novos contornos. Observa-se um forte movimento de
compra e venda de IES no setor privado. Além das fusões, que têm formado
gigantes da educação, as “empresas de ensino” agora abrem o capital na
bolsa de valores, com promessa de expansão ainda mais intensa e
incontrolável. São quatro as empresas educacionais que mais se destacam
nesse mercado de capitais: a Anhanguera Educacional S. A., com sede em
São Paulo; a Estácio Participações, controladora da Universidade Estácio de
Sá, do Rio de Janeiro; a Kroton Educacional, da Rede Pitágoras, com sede em
Minas Gerais; e a empresa SEB S. A., também conhecida como “Sistema COC
de Educação e Comunicação”, com sede em São Paulo. É importante
ressaltar que grande parte do capital dessas empresas é oriunda de grupos
estrangeiros, em especial, de bancos de investimentos norte-americanos,
52 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

que encontraram, nesse setor, um mercado muito favorável aos aumentos


de seus lucros (Chaves, 2010, p. 491).

Os grandes grupos educacionais adotaram processos operacionais


e de gestão típicas das organizações industriais e comerciais para
reduzir seus custos, tornarem-se mais competitivas e ampliar seus
lucros. Elas conseguem ofertar cursos de graduação com mensalidades
mais acessíveis e inviabilizam o negócio de pequenas faculdades, que
acabam sendo vendidas para esses grupos. No entanto, conforme
Chaves (2010), os lucros exorbitantes e a sua atratividade no mercado de
ações não têm relação com a qualidade de ensino. Essas redes
precarizaram a função docente com a oferta de baixos salários, o
descompromisso com os percentuais mínimos exigidos de permanência
de mestres e doutores no quadro docente, e a retirada da autonomia dos
professores para conduzir o processo pedagógico, tornando-os meros
reprodutores do modelo preestabelecido. “Esse ‘novo’ modelo
organizacional é movido pela ideologia do valor econômico e do
marketing e fundamenta-se em princípios neoliberais como
flexibilidade, racionalidade, produtividade e competitividade,
transformando a educação superior em negócio altamente lucrativo”
(Chaves, 2010, p. 496). A qualidade do ensino foi afetada em decorrência
dessa precarização do trabalho docente e da mercantilização do ensino,
que transformou os alunos em clientes e os professores em mercadores
conforme denuncia Saraiva (2011).
Os cursos de administração também passaram pela precarização
do ensino e sua mercantilização. Seu baixo custo operacional e seu alto
Denis Alves Perdigão • 53

retorno, associado ao interesse dos alunos/clientes que veem nesse


curso uma alta possibilidade de inserção ou reinserção no mercado de
trabalho, propiciou um crescimento exponencial da oferta de cursos de
administração pelo país (Saraiva, 2011). Contudo, conforme esse autor,
o direcionamento dos projetos pedagógicos para atender os interesses
do mercado profissional levou a sociedade a um perigo preocupante. “O
perigo reside na redução da educação e do seu papel transformador ao
ensino e seu papel reprodutor. A maioria dos profissionais formados em
administração se encontra longe da formação reflexiva” (Saraiva, 2011,
p. 44).
A formação em administração é influenciada pelo modelo
gerencialista americano, que busca expandir estrategicamente seus
métodos e técnicas de gestão pautados na racionalidade instrumental.
Essa racionalidade baseia-se na lógica liberal que objetiva fortalecer as
organizações e seus negócios globais, enfraquecendo a atuação,
influência e poder do Estado sobre eles. A formação reflexiva vai de
encontro a essa razão instrumental, tornando-a inapropriada e
perigosa aos interesses do mercado, visto que a reflexão leva aos
questionamentos e críticas que se quer evitar. Interessa ter um
trabalhador capacitado e disciplinado para o trabalho e, não, um
trabalhador capaz de resistir à ordem social que se quer manter. Assim,
o fenômeno do pop-management tornou-se um importante instrumento
para a disseminação do gerencialismo. As pesquisas realizadas em torno
desse fenômeno por Wood Jr e Paula (2002a; 2002b; 2002c) apontam que,
não somente a classe popular, mas como membros das demais classes
sociais estão sendo influenciados a acreditar que caminham, ou
54 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

deveriam caminhar, para o sucesso. A literatura do pop-management


“[...] compreende livros e revistas produzidos pela mídia de negócios
para consumo rápido dos leitores” (Wood Jr. & Paula, 2002c, p. 1) e surgiu
para atender aos dilemas, anseios, receios e dúvidas dos gestores e
profissionais da administração, apresentando soluções para os
problemas relacionados ao cotidiano das organizações frente aos
cenários de alta competitividade no mercado. Wood Jr. e Paula (2002c)
salientam que boa parte dessa literatura é baseada na experiência de
profissionais supostamente bem-sucedidos e nas análises dos
chamados gurus da administração, relatando feitos heroicos de
gerentes, exaltando as novas tecnologias gerenciais e apresentando
conselhos para o sucesso profissional (Wood Jr. & Paula, 2002a; 2002b;
2002c). Essa literatura tem relevante influência na legitimação do que
se deve entender por sucesso, bem como do que se deve fazer para
alcançá-lo.

Por seu alcance e apelo popular, tal literatura vem desempenhando um


papel importante na disseminação de novas ideias e tecnologias gerenciais,
além de influenciar, podemos especular, a construção das agendas dos
executivos e dos pesquisadores da Administração. Adicionalmente, a
literatura de pop-management também oferece aos seus leitores recursos
cognitivos e discursivos para interpretação e racionalização de suas
realidades (Wood Jr. & Paula, 2002c, p. 1).

Para Ituassu (2012), o conceito de sucesso absorvido pelo Brasil é


um modelo americano – made in USA – carregado com os princípios
neoliberais que o acompanham. Junto às tecnologias gerenciais
relacionadas à cultura do management absorvemos, também, uma
Denis Alves Perdigão • 55

determinada visão do homem, da sociedade, do trabalho e, por que não


dizer, do sucesso. “Um sucesso a ser obtido, sobretudo, via habilidades
relacionais e de comunicação, e que reside na posse crescente de bens,
na ascensão profissional e no poder e prestígio que acompanham as
conquistas anteriores” (Ituassu, 2012, p. 204). Entretanto, além de
apresentar um conceito de sucesso e atribuir-lhe habilidades
comportamentais, o pop-management estabelece, em seus implícitos
discursivos, as características físicas do bem-sucedido. Ituassu (2012)
assevera que, na cultura do management, a pessoa de sucesso tem uma
aparência claramente definida. O “[...] bem-sucedido que é branco, do
sexo masculino, maduro no início do período analisado [décadas de 1970
e 1980] e jovem no final [a partir da década de 1990]; ele cuida do seu
visual, se veste bem, é magro, alto e bonito” (Ituassu, 2012, p. 201).
Quanto à posição que esse indivíduo de sucesso ocupa no ambiente de
trabalho, ela refere-se a posições de quem se encontra no topo das
organizações, pois foi institucionalizado o sentido de que a pessoa bem-
sucedida é aquela com “[...] posses, altas rendas e altos postos” (Ituassu
& Tonelli, 2012, p. 212).
A influência do pop-management não está restrita à literatura. Os
demais meios de comunicação como a televisão e as redes sociais, por
exemplo, assimilam seus postulados e contribuem para a disseminação
em massa da cultura do management. Como esclarecem Ituassu e Tonelli
(2012), as mídias desenvolvem um papel de significativa relevância no
que concerne a sua capacidade de moldar a sociedade e promover
alterações nas relações das pessoas com o mundo entre elas e consigo
mesmas. Assim, não é necessário que membros da ralé leiam as revistas
56 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

e livros do pop-management para serem influenciados por suas


concepções de carreira e sucesso, uma vez que seu discurso está
presente nas novelas, nos programas de entrevistas e nos telejornais,
nas redes sociais, entre outros, criando modelos de referência para o
que se deve considerar uma pessoa de sucesso e uma carreira de sucesso.
No entanto, o discurso do pop-management, como integrante de uma
cadeia de negócios, está impregnado de interesses econômicos e não
representam a realidade do cotidiano organizacional e social. Seja para
a classe popular, seja para as demais classes sociais, cabe refletir sobre
a afirmação de Wood Jr. e Paula (2002a, p. 118) de que

[...] podemos optar por consumir avidamente a literatura de pop-


management, com seus modismos gerenciais e receitas de como vencer na
vida, procurando nos manter seguros e atualizados em relação a tudo aquilo
que está disponível no mercado do management. Porém também podemos
nos arriscar a construir uma atitude, nos valendo do livre-arbítrio para
estabelecer critérios de avaliação e questionar tudo aquilo que nos é
apresentado, assumindo completa responsabilidade por nossas decisões
organizacionais e escolhas profissionais, bem como pelas consequências
que as mesmas terão na vida social.

A reflexão a que nos convida a citação acima ganha maior


relevância a partir da observação de Tonelli (2001), ao dissertar sobre o
fenômeno da globalização e seus impactos consumistas na sociedade, de
que no contexto contemporâneo tudo é descartável. “Os objetos, as
relações amorosas e o trabalho, tudo é efêmero, passageiro, volátil, feito
para não durar” (Tonelli, 2001, p. 10). A classe popular se insere, tanto
quanto a classe média, nesse contexto consumista, embora em
condições de desigualdade ante sua capacidade social, econômica e
Denis Alves Perdigão • 57

cultural. Embora sejam seduzidos por esse sentido de sucesso que o pop-
management busca legitimar, a classe social da ralé brasileira (Souza,
2009), enquanto uma classe subcidadã, não consegue corresponder à
sedução. Configura-se, portanto, como excluída, pois como esclarece
Tonelli (2001, p. 10), os excluídos são, justamente, “[...] aqueles que não
conseguem, apesar de seduzidos, corresponder à dedução”.
Por outro lado, a sociedade, em um sentido geral, não percebeu
ainda que essa concepção de sucesso é uma construção influenciada,
principalmente, pelos valores capitalistas americanos, que atendem,
portanto, a interesses relacionados à colonização de nosso País. O
sucesso, assim como o gosto (Bourdieu, 2013), passou a ser uma criação
social influenciada pela elite dominante. A sociedade, como um todo,
carece de uma reflexão sobre outras possibilidades de sucesso, outros
sentidos.

Partem todos em busca de um determinado tipo de sucesso, ainda que os


resultados não cheguem e que esta busca traga perdas, desconsiderando-se
a possibilidade de um sucesso particular, privado, diferente ou único, como
se o sucesso fosse naturalmente sinônimo de posses, altas posições, bons
salários e prestígio, quando esse sentido foi construído coletiva e
interativamente e pode, portanto, ser reconstruído (Ituassu & Tonelli, 2012,
p. 213).

É no contexto dessa sociedade de consumo que a educação, mais


uma vez, desponta como uma promessa da modernidade, seduzindo os
jovens da classe popular com promessas de sucesso em seu
desenvolvimento socioeconômico que não tem garantias de cumprir. A
realidade social nos convida a olhar o sistema educacional com um olhar
58 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

mais crítico, o que se pode fazer a partir das contribuições de Pierre


Bourdieu e sua sociologia da educação.

A EDUCAÇÃO E SEU PAPEL NA MANUTENÇÃO DAS DESIGUALDADES


SOCIAIS

Na obra de P. Bourdieu, a família e a escola estão envoltas em um


mercado de bens simbólicos atuando como instituições reprodutoras de
normas e valores morais, estabelecidos pelas elites dominantes, que
impactam as competências necessárias para que cada agente atue
adequadamente nos seus respectivos campos. Dessa forma, as classes
herdeiras de um elevado capital cultural, consequentemente portadoras
de um elevado capital escolar, sobrepõem-se sobre as demais classes
sociais desprovidas ou menos aquinhoadas desse capital. Porque para
Bourdieu e Passeron (2014), a cultura que se fez legitima, validada pelos
exames e consagrada pelos diplomas, é a da elite. O ensino, para esses
autores, mesmo no campo das ciências, implicaria um corpo de saberes,
de saber-fazer e de saber-dizer que constitui um patrimônio das classes
cultas. Para Bourdieu e Passeron (2014), a escola republicana
libertadora, tida como instrumento político de democratização e de
garantia da igualdade social a todos, e de promoção da mobilidade
social, é um mito.
Assim, o diploma escolar passa a ser investido de um elevado poder
simbólico, como pontua Alves (2008), levando a escola a se transformar
em uma importante instituição mantenedora da ordem social nos
diversos países da comunidade mundial. “A obtenção do diploma, por
definição, “fixa” as disposições dominantes. Trata-se de uma delegação
Denis Alves Perdigão • 59

simbólica que desapossa e separa os menos competentes em favor dos


mais competentes; os menos instruídos, em favor dos mais instruídos”
(Alves, 2008, p. 6). É nesse contexto que Bourdieu (2012; 2013); Bourdieu
e Passeron (2010; 2014), interessados em estudar o problema das
desigualdades escolares, descontrói o mito da escola republicana
libertadora e apresenta sua teoria de que a instituição escolar é, ao
contrário, reprodutora das desigualdades sociais.

É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos


tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a
ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a
mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois
fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a
herança cultural e o dom social tratado como dom natural (Bourdieu, 2012,
p. 41).

Segundo Nogueira e Nogueira (2002), até a metade do Século XX,


era predominante nas ciências sociais brasileira e, também, no senso-
comum, uma visão extremamente otimista, inspirada no
funcionalismo, que designava à escolarização um importante papel no
processo de superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos
privilégios de classe, pertencentes às sociedades tradicionais, e de
construção de uma nova sociedade, que deveria ser justa (pautada na
meritocracia), moderna (com a valorização da razão e do saber científico
), e democrática (com base na autonomia individual). Pensava-se,
conforme os autores, que, por meio da escola pública e gratuita, o
problema do acesso à educação no Brasil seria resolvido, garantindo a
igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. Os alunos
60 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

competiriam, dessa forma, em condições de igualdade no âmbito do


sistema de ensino, de forma que aqueles que se destacassem o fariam
em decorrência de seus dons individuais e avançariam em suas
carreiras escolares e, consequentemente, na hierarquia profissional e
social, de forma justa. Essa perspectiva coloca a escola na posição de
uma instituição neutra, propagadora de conhecimento racional e
objetivo e que selecionaria seus alunos com base em critérios racionais
(Nogueira & Nogueira, 2002).
Bourdieu e Passeron (2010; 2014) defendem tese contraria a essa
visão da escola como uma instituição imparcial. Os autores questionam
frontalmente a neutralidade da escola e do conhecimento escolar, “[...]
argumentando que o que essa instituição representa e cobra dos alunos
são, basicamente, os gostos, as crenças, as posturas e os valores dos
grupos dominantes, dissimuladamente apresentados como cultura
universal” (Nogueira & Nogueira, 2002, p. 18). Ao definir seus currículos,
seus métodos de ensino e suas formas de avaliação, a escola teria um
papel ativo no processo social de reprodução das desigualdades. Além
de reproduzir as desigualdades sociais, a escola promoveria, ainda,
conforme Bourdieu e Passeron (2010; 2014), a legitimação dessas
desigualdades que estariam dissimuladas na meritocracia. Isso porque
a escola justificaria as diferenças acadêmicas e cognitivas como sendo
diferenças relacionadas aos méritos e dons individuais. Logo, o trabalho
de Bourdieu e Passeron (2010; 2014) é uma denúncia de que o
Denis Alves Perdigão • 61

desempenho escolar no sistema de ensino francês 7 não dependeria,


como simplesmente se defendia, dos dons individuais, mas da origem
social dos alunos. Para os autores,

[...] a cegueira às desigualdades sociais condena e autoriza a explicar todas


as desigualdades, particularmente em matéria de sucesso escolar, como
desigualdades naturais, desigualdades de dons. Atitude idêntica está na
lógica de um sistema que, repousando sobre o postulado da igualdade
formal de todos os alunos, condição de seu funcionamento, não pode
reconhecer outras desigualdades que aquelas provenientes dos dons
individuais (Bourdieu & Passeron, 2014, p. 92).

A origem social exerceria uma influência sobre o desempenho


escolar ainda mais forte que o sexo e a idade e, sobretudo, mais do que
um ou outro fator claramente percebido, como a afiliação religiosa
(Bourdieu & Passeron, 2014; Nogueira & Nogueira, 2002), por exemplo.
E ainda.

Definindo chances, condições de vida ou de trabalho totalmente diferentes,


a origem social é, de todos os determinantes, o único que estende sua
influência a todos os domínios e a todos os níveis da experiência dos
estudantes e primeiramente às condições de existência. O hábitat e o tipo
de vida cotidiana que lhe estão associados, o montante de recursos e sua
repartição entre os diferentes postos orçamentários, a intensidade e a
modalidade do sentimento de dependência, variável segundo a origem dos
recursos, como a natureza da experiência e os valores associados à sua
aquisição, dependem diretamente e fortemente da origem social ao mesmo
em tempo que substituem sua eficácia (Bourdieu & Passeron, 2014, p. 28).

7
Embora as pesquisas de P. Bourdieu tenham sido realizadas na França e digam respeito ao sistema de
ensino francês, o autor nos convida a ultrapassar a leitura particularista buscando verificar a pertinência
e alcance de suas teorias à nossa realidade local (Bourdieu, 2011a).
62 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Bourdieu e Passeron (2014) observaram que os estudantes


pertencentes à classe alta têm maior facilidade em adquirir a cultura
ensinada nos bancos escolares, adquirindo-a quase que de maneira
osmótica. Isto seria explicado pelas facilidades de que dispõe na sua
rotina familiar, tais como acesso a livros e bibliotecas, visitas a teatros
e museus, o aprendizado de música e línguas estrangeiras e a realização
de viagens internacionais, entre outros fatores. Portanto, tais
estudantes teriam acesso privilegiado a diversos elementos da cultura
hegemônica no seu próprio cotidiano. No sentido oposto, para os
estudantes das classes sociais desfavorecidas (para os filhos de
camponeses, de operários, de empregados ou de pequenos
comerciantes), a cultura escolar tem por objetivo aculturá-los por meio
de uma aprendizagem vivida artificialmente, visto que a cultura
hegemônica está socialmente distante de suas realidades concretas
(Bourdieu, 2012; Bourdieu & Passeron, 2010; 2014). “Portanto, o que a
escola qualifica como dom natural nada mais é, na maioria das vezes,
que a manifestação de uma afinidade ligada a valores sociais e às
exigências do próprio sistema escolar” (Nogueira & Nogueira, 2002, p.
10). Assim, na perspectiva de Bourdieu e Passeron (2010), os alunos
oriundos dos meios culturalmente favorecidos teriam na educação
escolar uma continuação da educação familiar. Para os demais
estudantes, a educação escolar representaria algo estranho, distante ou
mesmo ameaçador (Nogueira & Nogueira, 2002).

A cultura da elite é tão próxima da cultura escolar que as crianças


originárias de um meio pequeno-burguês (ou, a fortiori, camponês e
operário) não podem adquirir, senão penosamente, o que é herdado pelos
Denis Alves Perdigão • 63

filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom-gosto, o talento, em síntese,


essas atitudes e aptidões que só aparecem naturais e naturalmente exigíveis
dos membros das classe cultivada, porque constituem a “cultura” (no
sentido empregado pelos etnólogos) dessa classe (Bourdieu, 2012, p. 55).

Na sociologia da educação de Pierre Bourdieu, a posse de capital


cultural é determinante no êxito escolar por favorecer o desempenho
de seus detentores nos processos formais e informais de avaliação,
como observaram Nogueira e Nogueira (2002). Bourdieu (2012) observa
que a avaliação extrapola a função de uma simples verificação da
aprendizagem escolar. A avaliação acarreta em julgamento cultural e,
até mesmo, moral dos estudantes. Julgamento este que ocorre segundo
a escala de valores das classes privilegiadas. Portanto, cobra-se que os
estudantes apresentem um estilo elegante de falar e de escrever, uma
maneira adequada de se comportar, que sejam intelectualmente
curiosos, interessados e disciplinados, sabendo cumprir com adequação
as regras sociais da boa educação. “Essas exigências só podem ser
plenamente atendidas por quem foi previamente (na família)
socializado nesses mesmos valores” (Nogueira & Nogueira, 2002, p. 21).
Embora Bourdieu (2012; 2013); Bourdieu e Passeron (2010; 2014)
tenham atribuído uma relevância maior ao capital cultural em sua
teoria, isso não implica uma falta de reconhecimento da importância do
capital econômico e social. Aliás, a constante interrelação entre os
diversos capitais é fundamental para a economia das trocas simbólicas
(Bourdieu, 2005). Em relação ao capital social, Bourdieu (2012) o aponta
como um importante instrumento de acumulação do capital cultural. O
autor explica que o volume de capital social que um indivíduo tem
64 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

depende do alcance da rede de relações que ele é capaz de mobilizar e


do volume de capital – econômico, cultural ou de outro tipo simbólico –
que pertence aos indivíduos a que ele está ligado por meio dessa rede de
relações. O autor continua a explicação afirmando que

[...] embora seja relativamente irredutível ao capital econômico e cultural


possuído por um agente determinado ou mesmo pelo conjunto de agentes a
quem está ligado (como se vê no caso do novo rico), o capital social não é
jamais completamente independente deles pelo fato de que as trocas que
instituem o inter-reconhecimento supõem o reconhecimento de um
mínimo de homogeneidade “objetiva” e de que ele exerce um efeito
multiplicador sobre o capital possuído com exclusividade (Bourdieu, 2012,
p. 67).

O capital social e o capital econômico funcionariam, na


interpretação de Nogueira e Nogueira (2002), mais comumente, apenas
como meios auxiliares na acumulação do capital cultural. O capital
econômico permitiria, por exemplo, o acesso a produtos e serviços
compatíveis com o volume acumulado desse capital que, no caso do
sistema de ensino, permitiria o acesso a uma educação privada de
qualidade, bens culturais mais caros como as viagens de estudo,
frequência a cursos de idiomas e, no caso brasileiro, desde que
acompanhado de um bom capital cultural acumulado, implicaria uma
facilidade maior de acesso dos estudantes mais abastados às melhores
universidades públicas do País.
Conforme alertam Nogueira e Nogueira (2002), não devemos
entender a bagagem herdada por cada indivíduo como um simples
conjunto de capitais, mais ou menos rentáveis, que cada indivíduo
Denis Alves Perdigão • 65

utilizaria a partir de critérios idiossincráticos. Cada grupo social, a


partir das condições objetivas que caracterizariam suas posições na
estrutura social, criaria um sistema específico de disposições para a
ação social que, na forma do habitus, seria transmitido aos indivíduos a
eles vinculados (Nogueira & Nogueira, 2002). Bourdieu (2011a; 2011b;
2013) defende que as experiências de êxito e de fracasso acumuladas nos
grupos sociais construiriam um conhecimento prático – o senso prático
(Bourdieu, 2011b) – que não seria plenamente consciente e que
permitiria aos indivíduos ter uma noção das possibilidades mais ou
menos favoráveis do que se pode ou não conquistar a partir da realidade
social em que se encontram, bem como os meios adequados de
empreender tais conquistas. Para Nogueira e Nogueira (2002, p. 23),

[...] dada a posição do grupo no espaço social e, portanto, de acordo com o


volume e os tipos de capitais (econômico, social, cultural e simbólico)
possuídos por seus membros, certas estratégias de ação seriam mais
seguras e rentáveis e outras seriam mais arriscadas. Na perspectiva de
Bourdieu, ao longo do tempo, por um processo não deliberado de
ajustamento entre investimentos e condições objetivas de ação, as
estratégias mais adequadas, mais viáveis, acabariam por ser adotadas pelos
grupos e seriam, então, incorporadas pelos sujeitos como parte do seu
habitus.

Quando aplicamos esse raciocínio à educação escolar, percebemos


que os grupos sociais, com base nos exemplos de sucesso e fracasso
vivenciados por seus representantes, estimam suas chances de sucesso,
geralmente de forma inconsciente, conforme Bourdieu (2010), e passam
a adequar seus investimentos a essas chances. Isso implica que os
investimentos (não apenas financeiro, mas em um sentido mais amplo
66 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

que envolve outros fatores como tempo e qualidade da dedicação)


corresponderão à expectativa de sucesso que se vislumbra alcançar por
meio da educação. Tais investimentos na carreira escolar dos filhos
serão, portanto, maiores ou menores, conforme percebam as
probabilidades de êxito.
Bourdieu (2012) observou que os investimentos escolares variam
também de acordo com os interesses de cada classe social, ou fração de
classe, no que se refere à manutenção de sua posição social ou a busca
por ascensão. Para o autor, os membros das classes dominantes, que
buscam a manutenção de seu status quo e não dependem muito da
educação escolar, não necessitam investir tanto quanto os membros da
classe média que dependem de uma boa formação para atingir ou
manter sua posição social. Portanto, para Bourdieu (2012), a
importância dada ao investimento escolar é baseada no provável
retorno que os títulos escolares podem propiciar. Esse retorno não se
aplica somente ao mercado de trabalho com o acesso a determinadas
profissões mais prestigiadas e rentáveis, mas também a outros
mercados simbólicos como o matrimonial, como lembraram Nogueira e
Nogueira (2002). Como a classe dominante conta com um acesso fácil
aos títulos escolares, acaba por não lhes dar um valor tão significativo
quanto o fazem as demais classes.
Nesse contexto, Bourdieu (2012) avalia separadamente as
implicações e características do investimento escolar para as diferentes
classes. Sobre as classes populares, que interessam particularmente
neste texto, o que se percebe é que, para esse grupo social, o
investimento escolar é um investimento de risco. Cabe lembrar que, por
Denis Alves Perdigão • 67

investimento, não tratamos apenas dos valores econômicos envolvidos,


mas também do empenho de tempo, dedicação e outros recursos
simbólicos. As classes populares são detentoras de pouco capital
econômico e cultural e, portanto, tendem a investir pouco em educação
escolar. O baixo investimento estaria associado a vários fatores. Um
deles é a baixa expectativa de retorno que está relacionada à percepção
de que as possibilidades de sucesso são reduzidas devido ao pouco
acúmulo de capital, em especial, o cultural, essencial para o bom
desempenho escolar. O risco do investimento é alto para as classes
populares devido à incerteza quanto ao retorno desse investimento. O
risco se amplia devido aos muitos anos de estudo necessários para a
obtenção dos títulos acadêmicos. As famílias brasileiras das classes
populares dificilmente dispõem da possibilidade de manter seus filhos
afastados do mercado de trabalho para que se dediquem exclusivamente
aos estudos. Ao contrário, a renda proveniente dos filhos jovens
costuma ser imprescindível para que a família tenha uma melhor
qualidade de vida. Bourdieu e Passeron (2014) observaram que, nas
classes populares, a hereditariedade social das aptidões pode ser mais
facilmente percebida. A dificuldade em ter sucesso com o investimento
escolar evoca os dons individuais que, diferentemente dos dons
relacionados à capacidade educacional atribuídos aos membros das
classes dominantes, estariam relacionados às práticas profissionais. A
habilidade, muitas vezes transmitida de pai para filho, de trabalhar nas
atividades artesanais ou em outras habilidades práticas no emprego de
técnicas produtivas, frequentemente invocam “[...] a interrupção dos
estudos para salvaguardar, na ausência de todo sucesso, a virtude do
68 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

dom individual, segundo a mesma lógica pela qual as classes altas


podem atestar-se o dom atualizado no sucesso” (Boudieu & Passeron,
2014, p. 95).
Nogueira e Nogueira (2002) lembram que o sucesso do retorno
proveniente dos títulos escolares ainda depende, mesmo que
parcialmente, do capital econômico e social da família para que possam
ser potencializados. O que se quer dizer é que, mesmo com um título
acadêmico de médico, advogado, engenheiro, administrador ou de
qualquer outra profissão, os filhos das classes populares enfrentam uma
acirrada competição no campo socioprofissional pelas melhores
posições e oportunidades. O pouco capital econômico e social
acumulado permanece sendo um empecilho para esse grupo social em
sua trajetória escolar e profissional. Isso não implica a impossibilidade
de sucesso – pensando o conceito de sucesso estabelecido pela elite
dominante – mas que se exige dos filhos das classes populares um
esforço muito maior do que o exigido das demais classes. Não há,
portanto, igualdade de condições, o que justifica a crítica de P. Bourdieu
à meritocracia e à visão idealizada de uma escola republicana
libertadora.

O DILEMA ENTRE A EDUCAÇÃO SE QUE QUER E A EDUCAÇÃO QUE SE TEM

Nesse texto buscou-se fazer um breve apanhado sobre o


desenvolvimento do projeto educacional brasileiro ao longo do Século
XX chegando ao período histórico contemporâneo. Em todo esse período
esteve presente o desejo de se instituir uma educação republicana
Denis Alves Perdigão • 69

libertadora, emancipadora dos homens e mulheres, para que esses


construíssem a nação brasileira do futuro, mais justa, igualitária e
desenvolvida econômica e socialmente. Esse desejo, que figura como
uma promessa que se renova ao longo do tempo, renovou as esperanças
populares com o processo de expansão do ensino superior ocorrido a
partir do final da década de 1990.
Tal iniciativa permitiu que milhares de brasileiros pobres
chegassem aos bancos universitários, de instituições públicas e
privadas, em busca de uma formação capaz de lhes mudar a trajetória
profissional e o destino social. Não se contava, entretanto, que este
projeto, além de cometer o erro de não estar associado a um
investimento mais amplo, envolvendo o desenvolvimento educacional
da população brasileira desde a educação em nível básico, garantindo
que as crianças e jovens das classes populares tivessem acesso a uma
educação de maior qualidade, chegando melhor preparados ao nível
terciário, fazia parte de um projeto obscuro, influenciado pelas elites
capitalistas representadas pela figura do Banco Mundial.
A educação libertária das consciências alheias, presente na
ideologia de grandes pensadores da educação como Anísio Teixeira,
Darcy Ribeiro e Paulo Freire, vai de encontro aos interesses das elites
dominantes que, conforme demonstrou Pierre Bourdieu,
instrumentalizaram os sistemas educacionais para que estes
reproduzissem as desigualdades sociais legitimando os sistemas de
privilégios socialmente estabelecidos. O projeto de desenvolver homens
e mulheres, para além das competências para o trabalho, capazes de
avaliar criticamente sua realidade social, deu lugar, no interesse das
70 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

elites dominantes, a um projeto de formação de mão de obra qualificada


para o trabalho, engajada com os interesses organizacionais, e alinhada
com a perspectiva moral da meritocracia, legitimadora da ordem social
vigente.
É neste contexto que a educação, enquanto uma promessa da
modernidade, renova as esperanças da sociedade sem, contudo, até o
presente momento, ter conseguido se estabelecer como um
instrumento efetivo de transformação social. Quando falamos em
educação é importante estabelecermos de que educação falamos e para
que tipo de país. Há uma significativa diferença entre a educação que
queremos e a educação que nos é ofertada. O problema, é claro, não está
na educação em si, mas na instrumentalização que dela se faz para
atingir objetivos outros que não aqueles capazes de promover a
sociedade do futuro: livre, igualitária e fraterna, como inspirada pela
Revolução Francesa.
Para alcançarmos a educação que queremos devemos, assim como
o fez Bourdieu, lançar nosso olhar crítico para a própria educação e seu
sistema de reprodução, reconhecendo as limitações e direcionamentos
que lhe estão sendo impostas pelos interesses antagônicos das elites
dominantes. É preciso reconhecer que estamos envoltos em um
intrincado jogo de relações de poder para subverter o processo de
dominação social a que estamos submetidos, para enfim termos sucesso
na construção de uma educação transformadora, pautada em uma
pedagogia crítica, que há de nos tornar mais humanos, vivendo em uma
sociedade mais humanizada.
Denis Alves Perdigão • 71

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4
HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E SABERES POPULARES:
REFLEXÕES E APROXIMAÇÕES
COM A GESTÃO ORDINÁRIA
Paula Gontijo Martins 1
Gabriel Farias Alves Correia 2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objetivo deste trabalho é elaborar direcionamentos teóricos para


trabalhos que busquem a apreensão de histórias e memórias dos saberes
populares nos Estudos Organizacionais, a partir do interesse pela gestão
ordinária ou pelas práticas que organizam o cotidiano de pessoas
comuns. A proposta se torna relevante com base nas diretrizes de
autores como Barros e Carrieri (2015), Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018)
e Joaquim e Carrieri (2018) de sobrelevar práticas historicamente
desconsideradas pelos estudos do mainstream da Administração,
fomentando novas possibilidades de compreensão do fazer social e que
suportam a expansão do conhecimento por meio da pluralidade,
rejeitando quaisquer tentativas de estabelecimento de históricas únicas
e universais. Desta forma, reconhecemos a diversidade e as múltiplas
significações que compõem o campo.

1
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Substituta na
Universidade Federal de Alfenas. E-mail: pgontijomartins@gmail.com.
2
Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Substituto na
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. E-mail: correiagfa@gmail.com.
76 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

A abordagem histórica e sua aproximação com a Administração


tem sido trabalhada há alguns anos, com recente aumento de trabalhos
na última década, mas que ainda possuem forte dependência teórica do
exterior (Costa, Barros & Martins, 2010; Vizeu, 2010; Carneiro, 2016;
Costa & Silva, 2019; Carrieri & Correia, 2020; Costa & Wanderley, 2021).
Além disso, os mesmos autores retratam que a discussão histórica na
Administração avançou no sentido de discutir a gestão (management
history), as histórias dos negócios (business history) e das organizações
(organizational history). No entanto, consideramos importante discutir
e avançar em novas visões e abordagens no campo, incentivando
trabalhos direcionados aos modos de saber e aos modos de fazer
populares a partir do olhar da gestão ordinária.
Destacamos neste trabalho as vivências para além de modos de
vida de grupos específicos, tradicionais ou não, mas que fazem, de
alguma forma, resistência à sujeição e à homogeneização. O popular, o
pequeno e os movimentos vinculados à literatura menor (Deleuze &
Guattarri, 1978) resistem ao apagamento histórico, suas prescrições e
legitimações dogmáticas, como lampejos para outras possibilidades de
nos organizarmos. Lampejos na escuridão como vaga-lumes, como diz
Didi-Huberman (2011). Fazer com o que se tem, arte de golpes, prazer
em alterar as regras de um espaço opressor, destreza tática. O popular,
o que acontece no dia a dia, no cotidiano das pessoas comuns, é um
protesto ético contra sua fatalidade, contra a fatalidade da ordem global
capitalista e estabelecida. O uso popular reivindica outro
funcionamento das hierarquias de saber e de poder (Certeau, 2012).
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 77

Para Bosi (2003), as culturas e os saberes populares guardam


práticas que rompem com a pragmática utilitarista da ordem econômica
à qual pertencemos, na qual os fins são preponderantes aos meios.
Marginais às promessas de sucesso, fatigados pela fome, sede e excesso
de esforço físico, a cultura popular valoriza o simples do cotidiano. A
autora ainda ressalta a cooperação e o afeto como fundamentais à
cultura popular.
Indagamos ainda sobre as histórias que não são contadas, sobre as
histórias dos vencidos, como colocado por Benjamin (2006). E na busca
por estas fissuras, por estas lacunas, por estas brechas entre o que ainda
existe e o que pode ser dito, perguntamos sobre a importância da escuta
sobre o que os marginais do sucesso dizem sobre suas próprias
histórias, sobre o que eles optam por rememorar e também sobre quais
preceitos sustentam suas memórias.
Coerente a escolha do popular ao erudito, do sujeito simples ao
modelo de sucesso, resgatamos a importância da memória na formação
da história não oficial. A memória possibilita o resgate de práticas e
saberes populares que possuem pouco ou nenhum registro. É a partir
disso que Bosi (1994/2015) e Neves (2010) atestam a possibilidade de
acesso das experiências de sujeitos marginalizados pelos estudos do
mainstream por meio da memória. Nessa perspectiva, a história
ordenada e que procura estabelecer fontes mais “confiáveis” como
documentos oficiais e grandes narrativas se recolhe ao segundo plano
para que a percepção e os sentimentos individuais conexos aos
acontecimentos ou determinados períodos históricos sejam
protagonistas.
78 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Propomos uma reflexão que perpasse a importância da história, da


memória e dos saberes populares para a gestão. Para uma gestão
ordinária, para uma gestão que se preocupa e valoriza os saberes de
pessoas comuns no cotidiano. A gestão ordinária, para Carrieri,
Perdigão e Aguiar (2014), é aquela realizada no cotidiano de negócios
pequenos, distantes das grandes corporações e próximas às práticas
culturais e sociais plurais, diversas. É o que ocorre no dia a dia dos
negócios, a fuga de modelos de gestão para aproximação dos
acontecimentos particulares, micro, atendendo aos interesses pessoais
e relacionais. A gestão ordinária critica os modelos gerenciais
institucionalizados pelo mainstream da Administração, que defendem
um conhecimento tido como neutro e universal. Formas estas de pensar
que escondem e apagam um cotidiano hipercomplexo (Mattos, 2009;
Bertero et al., 2013; Carrieri et al., 2018).
No que tange a organização deste ensaio, o subdividimos em seis
partes, incluindo essas considerações iniciais. Na segunda parte,
buscamos discutir os aportes teóricos relacionados às histórias e
memórias. Logo após, apresentamos as possibilidades dos saberes
populares. Na quarta parte discorremos sobre as discussões
relacionadas à gestão ordinária para, em seguida, apresentarmos
possibilidades de estudo que podem (e devem) ser extrapoladas. Por fim,
apresentarmos nossas considerações finais.
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 79

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS

A abordagem histórica na Administração em conjunto com a


memória permite, segundo as reflexões de Pena et al. (2016),
apreendermos o passado. O trabalho com a história nos Estudos
Organizacionais, de acordo com Maclean, Harvey e Clegg (2016),
Carneiro (2016) e Costa e Souza (2019) tem sido fomentado nas últimas
décadas, mas ainda existe espaço para diversos avanços teóricos e
epistemológicos.
Algumas características que auxiliam o processo de fomento
histórico na Administração são: 1) cada vez mais a área apresenta
pesquisas de caráter interdisciplinar, oferecendo resultados mais ricos
para o campo e isto inclui também a adoção de abordagens históricas; 2)
por não ser muito disseminado como método, ainda existem muitos
setores da Administração brasileira a serem estudados por meio deste
método; 3) a sociedade brasileira apresenta suas próprias peculiaridades,
quanto ao seu modo de administração e gerenciamento, o que estimula o
desvelamento de suas especificidades; e; por último; 4) tanto a Nova
História quanto a história tradicional são estudadas em profundidade no
país pelos historiadores brasileiros, ou seja, existem muitas informações
valiosas ainda não aproveitadas pelos pesquisadores em Estudos
Organizacionais (Fontoura, Alfaia & Fernandes, 2013).
A realização da pesquisa na perspectiva histórica deve para Jacques
(2006) seguir certo rigor científico, focando o método e a metodologia, o
que não significa aproximação com as bases positivistas. O que o autor
chama atenção é a realização de teorizações informadas dentro da
80 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

perspectiva histórica, incluindo certo rigor na elaboração metodológica e


do referencial teórico. Isso ocorreria por meio de diálogos e reflexões em
conjunto para o fortalecimento das pesquisas historiográficas rigorosas,
cabendo aos pesquisadores dos Estudos Organizacionais não somente
utilizar as teorias desenvolvidas na história, mas auxiliar e contribuir na
ampliação das teorizações sobre a abordagem. Vizeu (2010, p.38),
complementa reforçando a importância desse movimento, já que a
incompreensão destas teorias “compromete o entendimento mais acurado
das abordagens atuais justamente porque reproduzem distorções
perigosas sobre o processo de formação do pensamento administrativo”.
Importantes encaminhamentos foram expostos por Carrieri,
Perdigão e Aguiar (2014), Barros e Carrieri (2015), Carrieri et al. (2018),
Carrieri e Correia (2020), Palhares, Correia e Carrieri (2020), Palma et al.
(2021) e Oliveira et al. (2021) no sentido de acentuar histórias e saberes
locais frente a hegemonia que a Administração estadunidense instiga e
sua temporalidade transitória. Reavivar as histórias e as práticas
específicas, refletindo e contrariando as generalistas, as adaptadas e as
que somente são replicadas sem qualquer senso crítico são
questionamentos pertinentes do ponto de vista histórico. É nesse
sentido que “ao expor os processos específicos que permitiram a
consolidação de certos discursos em detrimento de outros, bem como a
forma específica de apropriação dos conceitos, seria possível ressaltar
as singularidades das dinâmicas que acontecem localmente” (Barros &
Carrieri, 2015, p.156).
O particular, o pequeno, o esquecido, o ordinário, o singular nos
interessam aqui. Trabalhar com estudos que não servem a generalização
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 81

e a busca das “melhores práticas” instigam as pesquisas deste caminho,


investigando as práticas e saberes como eles são, sem quaisquer
julgamentos de valores, descomprometidos com a “eficiência” e
“eficácia” comum nos estudos de gestão (Barros & Carrieri, 2015).
Desvinculados com a necessidade de um fim à priori, a complexidade do
meio processual é evidenciada e, nesse caminho, a memória dos
praticantes, como nos ensina Stengers (2018), se apresenta como uma
importante alternativa às tentativas de homogeneização do
conhecimento da gestão.
A reflexão de como, quando, onde, por que, para que, para quem e
por quem a memória é acionada, organizada e efetivamente
apresentada é importante para discutirmos o ato de rememorar. É
importante ressaltarmos que a memória é fonte de conflitos, com
interesse de apresentar o que deve ser exposto, mas também o que deve
ser silenciado. É um valor disputado a todo tempo. Essas questões
mostram que a memória é um fenômeno socialmente construído
(Neves, 2010).
O estudo da memória possui uma diversidade de temas e reflexões.
Pollak (1989, 1992) elucida, com base em Maurice Halbwachs, que a
memória parece ser um fenômeno individual. No entanto, ela deve ser
considerada como fenômeno coletivo e social, construído e
transformado coletivamente de forma dinâmica e fluída.
A memória é tratada como cimento da vida cotidiana em
Guarinello (2004). Ela é simultaneamente habilidade natural e
construção social, atividade, movimento, atuante em uma espécie de
trabalho que dá sentido ao passado, considerado como trabalho morto,
82 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

mas que “compõe o palco da vida” (Guarinello, 2004, p.29). A memória,


seja ela individual ou coletiva, não é um simples repositório passivo de
fatos, pelo contrário, se caracteriza como produto cultural imensurável.
Essa posição é adotada por Joaquim e Carrieri (2018) quando reforçam o
caráter construtivo e reconstrutivo de significações que é a memória,
distanciando da compreensão objetiva que a coloca como depósito
passivo de fatos, ocorrendo no tempo presente sobre questões do
passado. Ela, para os autores, nem sempre transmite informações
completas, mas traz uma imensurável riqueza de possibilidades.

O processo de recordar é uma das principais formas de nos identificarmos


quando narramos uma história. Ao narrar uma história, identificamos o que
pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente
e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são
representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse
passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações
atuais. Assim, podemos dizer que nossa identidade molda nossas
reminiscências: quem acreditamos que somos no momento e o que
queremos ser afetam o que julgamos ter sido. Reminiscências são passados
importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa
vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância
entre identidades passadas e presentes (Thomson, 1997, p.57).

A mutabilidade, multiplicidade e riqueza da memória é


considerada neste trabalho como a que sofre influência do tempo
presente que é evocada. Thomson (1997) destaca que ela envolve um
processo que reconstrói e transforma as experiências que são
lembradas, interferindo naquelas que se escolhe recordar e relatar,
dando sentido no presente para as questões do passado. No contexto dos
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 83

Estudos Organizacionais, Costa e Saraiva (2011) destacam que o tema


possibilita a reflexão de seu caráter modificador, tendo em vista que os
conhecimentos passados são vinculados com perspectivas presentes.
Ademais, Joaquim e Carrieri (2018) ressaltam a importância de
considerarmos a memória diversa e plural, fazendo com que o processo
que resulta tanto na lembrança quanto no esquecimento seja um
processo de gestão, ou seja, uma atividade gerida intencionalmente e de
caráter político.
Bosi (2003) destaca a possibilidade de acessarmos, por meio da
memória, as experiências de sujeitos marginalizados pelos saberes
tradicionais e que muito têm a contribuir para ampliação dos estudos
das práticas de sujeitos comuns. No mesmo sentido, a memória nos
Estudos Organizacionais, nos auxilia no processo de evidenciar escolhas
por lembranças e esquecimentos. As ponderações sobre passado e
presente fogem de qualquer tentativa de neutralidade, exteriorizando
as atribuições de valores de determinadas épocas (Costa, Barros &
Martins, 2010; Costa & Saraiva, 2011). É a partir disso que afirmamos que
o processo em que a memória é formada sofre interferência do meio
social que o indivíduo se insere, sendo realizado a partir do ato de
recuperar o passado no presente (Pena et al., 2016).

Memória é o vínculo, material ou ideal, entre passado e presente que


permite manter as identidades a despeito do fluxo do tempo, que permite
somar os dias de modo significativo. É ela que dá sentido ao presente. É
essencial tanto para indivíduos como para a sociedade ou para grupos
dentro dela. Seu contrário, a amnésia, tanto individual como social,
corresponde à inação quase absoluta. Não existe ação que não seja calcada
na memória. Mas memória não é apenas um recurso que possibilita a ação.
84 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

É uma poderosa estrutura, um instrumento para o agir social e, portanto,


uma fonte de poder (Guarinello, 2004, p. 29).

A partir da indicação de Pena et al. (2016) de que a aproximação


entre história e memória embasa a materialização das vivências dos
indivíduos, consideramos que a reconstrução da primeira a partir da
segunda possibilita sobrelevar fatos, sujeitos, narrativas, saberes,
práticas e conhecimentos marginalizados. A memória e seu caráter
construtivo e reconstrutivo de significações é evidenciado no estudo de
Joaquim e Carrieri (2018), o que nos auxilia no distanciamento da
objetividade que anseia defini-la como simples depósito de fatos.
Com base em autores como Pollak (1989, 1992), Bosi (2003,
1994/2015), Meihy (2005) e Neves (2010) indicamos que neste trabalho a
memória é tratada como fonte de imensurável riqueza de
possibilidades, mesmo que ela não transmita informações completas e
precisas sobre os fatos e eventos. Não é isso que nos interessa. Pelo
contrário, estamos comprometidos com a apreensão dos inúmeros
modos de se recontar histórias e dos saberes populares que circulam
somente nestes meios, que é onde o conhecimento formal não alcança e
não possui interesse de alcançar. São as práticas de sujeitos reais,
comuns e ordinários que nos despertam atenção.
Apostamos que as práticas, comuns, ordinárias, tidas como
insignificantes, acessadas e possibilitadas pela memória, contêm
potencial revolucionário que nos possibilitam resgatar e (re)imaginar
outras formas de ações possíveis no mundo. Benjamin (2006) e Didi-
huberman (2011) sustentam esta aposta. Cabe destacar que este
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 85

movimento se manifesta na história do tempo presente. Baseados em


Santhiago, Borges e Rodrigues (2020), consideramos igualmente
importante o fomento de estudos que olhem para o cotidiano e para as
histórias silenciadas de pequenos sujeitos, espaços e memórias. Esses
olhares auxiliam na expansão do fenômeno organizacional e uma
ruptura com a instrumentalidade dos fatos sociais.
Segundo Benjamin (2006), memorar perpassa a possibilidade de
acumulação de experiências, o que tem se tornado cada vez mais
problemático na contemporaneidade, ou sejam no tempo presente. A
quantidade e a sobreposição de estímulos imagéticos e perceptivos atual
diminui nossa capacidade de absorção e costura das experiências, o que
impossibilita a construção de narrativas costuradas no tempo, no
espaço e em coletivo. O esquecimento provém de vivências não
experimentadas, não incorporadas, não vividas, apenas passadas.
Prevalecem assim, as imagens-pensamento fragmentadas, recentes,
individuais, desconectadas.
Benjamin (2006) ressalta a importância das histórias tidas como
insignificantes, das imagens e dos resquícios do cotidiano sufocados. É
no cotidiano das experiências que as possibilidades de recriação das
ações se fazem possíveis, o que Didi-Huberman (2011), inspirado em
Benjamin, intitula de experiências vaga-lumes. Para este autor, os vaga-
lumes são práticas populares de resistência histórica. São experiências
de sobrevivência, reconhecidas ao observar seus modos de (re)existir no
presente, no dia-a-dia. Constituem condições revolucionárias
imanentes à possibilidade de existência. São o brilho dos desejos que
iluminam os corpos no vazio das decisões cotidianas.
86 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Por meio do destaque das vivências, das experiências, dos


sentimentos e das percepções dos sujeitos (e de seus saberes) populares,
que a memória pode auxiliar no estudo de histórias que pouco ou nada
conhecemos. O registro histórico possibilitado por meio da oralidade é
uma fonte ímpar para estudos que considerem as impressões de épocas
e de contextos que os documentos ditos oficiais não conseguem ou não
estão interessados em captar. A reflexão em torno do como, quando,
onde, por quem e por quê determinados fatos são narrados em
detrimento de outros, se torna primordial para adotarmos olhares
críticos em e sobre os nossos estudos, sobre nós pesquisadores. Nesse
sentido, conectarmos os estudos históricos nos Estudos
Organizacionais com práticas, ações e saberes populares permite que
fontes históricas antes desconsideradas nas investigações acadêmicas,
possuam protagonismo. É por meio da interconexão com os saberes
populares, que buscamos fomentar o estudo das brechas e das fissuras.
Das vidas que se distanciam do “sucesso” e que, com seu formato
comum, podem provocar a expansão do conhecimento.

OS SABERES POPULARES

A dicotomização e hierarquização do norte sobre o sul global, da


mente sobre o corpo, do masculino ao feminino, caminha associada à
valorização do erudito e científico frente ao saber popular. Raciocínio
este que transpomos para o universo administrativo. O mainstream da
Administração, ou o pop-management, como classificam Wood Jr. e
Paula (2002; 2006), que encorajam a formulação de modelos e padrões
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 87

universais de gestão, apagam a complexidade de um cotidiano de


racionalidades diversas (Foucault, 1987; Didi-Huberman, 2011), e assim,
desvalorizam e desarticulam modos de saber e modos de fazer
populares, reais e familiares à vida das pessoas comuns.
Para Alcadipani e Rosa (2010, p. 372), as teorias tradicionais de
Administração são anglocentradas e, até mesmo, eurocentradas, o que
inibe a possibilidade, com base na realidade local, de sermos sujeitos da
nossa própria história de gestão. Para os autores essas teorias
administrativas têm como base: um tipo de “racismo epistêmico” que
segrega e dispensa o conhecimento produzido fora de suas fronteiras
sob o argumento de ele ser particularístico, incapaz de alcançar a
“universalidade” dos modelos de gestão.
Para Federici (2017), o que é tido como popular ameaça o projeto
moderno colonial europeu que ainda estrutura o modelo de produção
capitalista global. Para que o modelo de produção e trabalho vigente seja
possível é preciso desassociar e descoletivizar a força de trabalho, bem
como impor um uso mais produtivo do tempo livre. O sistema
capitalista funda-se em uma moralidade que perpassa o cercamento
físico, pela privatização das terras e dos meios de produção, e pelo
cercamento social, dada pela transição do campo para o lar, da
comunidade para a família, do espaço público para o privado.
Cercamento das condições possíveis ao popular, simples, público,
comum. Para que nosso sistema produtivo exista, faz-se necessário a
privatização da vida, por meio da quebra do senso de identidade
cultural, da solidariedade entre os pobres e da destruição dos espaços
comunais e solidários.
88 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Os espaços comuns de produção econômica e cultural, festas,


encontros artísticos, partilha sobre modos de fazer, transmissão oral de
saberes ancestrais, passaram a ser um problema a ordem capitalista. Foi
preciso criminalizar e destruir os espaços de encontro dos corpos, de
identificação e afirmação de laços sociais, os espaços de criação e
coletivização de saberes populares (Federici, 2017). No sentido contrário
é preciso que estes saberes sejam conformados, precificados e
consumidos.
No mesmo sentido, autores decoloniais como Quijano (1992) e
Mignolo (2010) denunciam que por trás da defesa do padrão de
racionalidade econômica, mecanicista e funcionalista, estrutura-se o
pensamento colonial racista que tem a exploração e destruição do
“outro”, do outro diferente ao detentor de poder, sua principal
engrenagem. Mignolo (2010) defende que na raiz etimológica da
expressão cartesiana que funda o iluminismo europeu, “penso logo
existo”, está a palavra latina “conquiro”, “conquiro logo existo”, pois o
padrão de racionalidade defendido está baseado na expropriação, na
aquisição. O que resulta bastante divergente de lógicas organizacionais
africanas e americanas anteriores à invasão europeia.
A retórica da modernidade que promete a salvação (conversão,
civilização, desenvolvimento) está diretamente relacionada à lógica
colonial de apropriação (trabalho, terra, gênero, sexualidade,
conhecimento) (Mignolo 2010). São faces da mesma moeda. E, dessa
forma, para que o sistema econômico gere acumulação de capital,
desenvolvimento e prosperidade, é necessário explorar e dominar os
territórios e saberes das raças ditas inferiores ou menos desenvolvidas.
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 89

Em outras palavras, para que haja progresso para alguns, é preciso


inventar o outro, o diferente, e assim, desqualificá-lo para que seja
justificado e legitimado o processo de exploração, acumulação e
apropriação. Estes outros podem ser os proletários, as massas
trabalhadoras ou “vagabundas”, as mulheres, os escravos, os indígenas,
e todos os outros “outros” estranhos ao padrão determinante do modelo
hegemônico (Mignolo & Tlostanova, 2006).
De forma a reforçar todo este processo de dominação, a
colonialidade do saber-poder constrói separações e dicotomias entre
saberes, a partir de um logocentrismo europeu, o qual está naturalizado
como a única racionalidade capaz de ordenar o mundo. Segundo Walsh
(2007) e Lugones (2011) a lógica moderna/colonial do conhecimento é
construído pelo exercício da razão mental e especulativa, sendo que os
saberes que não compartilham dessa epistemologia são destituídos de
importância. As autoras ressaltam a importância de rompermos com a
“lógica categorial” moderna, lógica mental, homogênea, dicotômica e
hierárquica, que nega e invisibiliza outras formas de saber e existir.
Walsh (2007) destaca a injustiça inerente ao sistema de valores
impostos pelos europeus aos povos pertencentes aos “novos mundos”,
quando o padrão de raciocínio, interpretação e avaliação, ou seja, os
critérios para a determinação do que é verdade ou justiça (os
mecanismos legais existentes), foram ditados pelos próprios
colonizadores, ignorando as outras matrizes epistemológicas locais. O
saberes providos pela prática, pelo corpo, resultado do convívio e
observação da natureza, são classificados como saberes inferiores à
90 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

racionalidade científica, e assim, deslegitimados, passam a ser


denominados como saberes tradicionais, mitos, lendas e folclore.
Neste sentido, a memória como fonte histórica de conhecimento, a
memória como arcabouço para a transmissão de saber é invalidada. Os
saberes populares, amparados pela transmissão oral de memórias
ancestrais, ou seja, experiências acumuladas por gerações, são tidas
como de menor valor. Carvalho (2010) denuncia a espetacularização e a
canibalização das culturas populares da América Latina como
continuidade do processo colonial dos últimos 500 anos. Culturas e
experiências que possuem como princípios organizativos a autogestão
e a sustentabilidade comunitária, além da oralidade como meio
predominante de expressão e de transmissão. O autor destaca, que um
dos traços principais que caracterizam esses grupos é a capacidade de
resistir à pressão das elites para homogeneizar uma cultura nacional
segundo a perspectiva da cultura erudita ocidental. Resistir crendo que
os ensinamentos que recebem de outras fontes que não às oficiais ou
institucionais, possuem valor e importância.
Carvalho (2010) aproxima a espetacularização da cultura popular
às vivências fugazes trazidas pela modernidade, discutidas
anteriormente por Benjamin (1987b). Estas são contrapostas a
possibilidade de experiências que apontam para um possível impacto
existencial no indivíduo (de cunho estético, emocional, intelectual,
espiritual, afetivo) que ajuda a conectá-lo com a comunidade a que
pertence e com a sua tradição específica, permitindo-lhe um maior
enraizamento do seu próprio ser. Espetacularizar significaria, então,
entre outras coisas, dissolver o sentido do que é exibido para deleite do
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 91

espectador (Benjamin, 1987a). Segundo ele, a folclorização e a


espetacularização destroem a experiência. E, por consequência,
destroem a memória.
Percebemos assim a descaracterização e o desmonte das práticas
organizativas de cunho popular, baseadas em práticas que são
ensinadas de geração em geração, predominantemente de forma oral e
memorativa. Estas são ridicularizadas perante um saber organizar
científico, baseados em modelos gerenciais, na maioria das vezes,
testados no e para o norte global, direcionados a mercados
completamente distintos à realidade local.
Neste ponto podemos alinhavar o conceito de memória e saber
popular como dimensões sociais valoradas como menos significativas,
mas que trazemos neste texto, como fundamentais para compreensão
da complexidade da vida, e assim, fontes e possibilidades, para a
reconstrução de outros caminhos organizativos. A memória que
questiona a história oficial contada e o saber popular que se alimenta de
conhecimentos negados afirmam a existência de experiências
ancoradas no infinito agora (Benjamin, 2006), que nos dão pistas para a
construção de conhecimentos outros.
E ao destacar a dicotomização e a hierarquização dos padrões
morais aos quais estruturam nossa sociedade, não pretendemos
reforçá-los, muito menos defender um padrão ao outro. Ao contrário,
os evidenciamos para reforçamos a necessidade de compreensão de uma
realidade complexa, na qual os diversos padrões estão articulados. É
importante ressaltar e valorizar a complexidade, buscar entender suas
diferentes implicações e importâncias. Segundo Rocha e Aguiar (2003,
92 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

p. 65), devemos entender a complexidade como “um outro modo de


organização de nossas ideias, um modo capaz de religar os
conhecimentos fragmentados em especializações na era moderna. Um
pensamento complexo ou uma análise da complexidade seria, então,
capaz de articular o local, o singular (microssocial), com as
representações e formas instituídas em um contexto mais amplo
(macrossocial), favorecendo as análises das implicações sócio-
histórico-políticas pelo coletivo.”

A GESTÃO ORDINÁRIA

“É no ínfimo que eu vejo a exuberância”


(Barros,1996, p. 55)

Ao pensarmos a gestão ordinária, precisamos considerar as bases


que envolvem a temática, bem como suas discussões. Ela é embasada na
noção de cotidiano de Certeau (2012), considerando que as práticas que
nele ocorrem são difíceis de serem delimitadas, sendo interdependentes
em um conjunto amplo de procedimentos. Nesse sentido é que as
práticas que buscam a subversão de forma silenciosa se apresentam
como objetos para o autor. As imposições, que ocorrem pelos sujeitos de
maior poder, são trabalhadas a partir da ótica dos sujeitos que as
descaracterizam, praticando movimentos quase que imperceptíveis no
interior do sistema. Aqueles que produzem ações legitimadas por um
sistema que os privilegiam, são renegados ao segundo plano nessa
abordagem. As ações que ocorrem nas margens e nas brechas,
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 93

produzidas pelos que não constroem para o mainstream conhecimento


válido, são colocadas em evidência pelo filósofo.

Muitas vezes bem debaixo do nariz do poder, dando força à massa anônima
e a sua subversão silenciosa. Gente agindo como toupeiras, minando os
edifícios bem instalados da moral e da lei, sem objetivos políticos
determinados. Pequenas subversões sem propósitos, mas que temperam o
cotidiano de ‘maravilhas’ como ‘festas efêmeras que surgem, desaparecem
e voltam’ (Sousa Filho, 2002, p.132).

Guarinello (2004) reflete que as construções históricas que focam os


olhares nos episódios usuais devem envolver o todo, mas também as
partes. Os estudos que envolvem ações em um ambiente micro,
contribuem para a compreensão de uma história que reflete o todo, mas
que nunca conseguirá abranger a totalidade. Essas ações do micro, são
realizadas pelos “Homens comuns” por vezes vencidos e ocultados das
histórias oficiais e é por isso que “ao homem ordinário sobra um ‘domínio’
adaptado, pois ele carece do ‘próprio’, da propriedade, do espaço, mas,
pela astúcia e pelas artimanhas, pelas práticas e por suas ações cotidianas
subversivas no espaço do outro, ele consegue atuar” (Ichikawa, 2014,
p.201). Nesse sentido, a concepção trabalha com a possibilidade do sujeito
menor do ponto de vista histórico praticar e ter protagonismo no
cotidiano, não sendo somente recusado e excluído por ele.
Ainda que exista no senso comum o pensamento de que o cotidiano
é composto por repetições lineares, dia após dia, na concepção de
Certeau (2012) ele é mutável, sendo erigido a partir de ações plurais dos
sujeitos. Nesse sentido é que Barros e Carrieri (2015), Cabana e Ichikawa
(2017), Marins e Ipiranga (2017) e Wanderley e Barros (2018) afirmam que
94 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

o cotidiano não pode ser considerado constante, mas como aquele que
pode ser construído e reconstruído. Os sujeitos que estão envolvidos na
construção do cotidiano se identificam com formas variadas de existir
diferentes umas das outras, sendo impactados pela forma de organizar
o tempo e pelos contextos em que estão inseridos em uma estrutura
social. É por isso que Cantoral-Cantoral (2016, p.74), afirmou que o
“acontecer cotidiano se encontra organizado por um tecido de tempos e
espaços que garantem a reprodução da ‘ordem social’ construída e
dinamizada [...]”
O estudo que envolve o cotidiano abarca, sobretudo, as ações dos
sujeitos, suas formas criativas e não lineares de apropriação do real. O
comprometimento com o realce de interações que são múltiplas
permite uma oposição à história hegemônica (Joaquim & Carrieri, 2018).
Estudar o cotidiano possibilita ainda identificar a forma com que as
grandes estruturas afetam as ações cotidianas das pessoas comuns,
além de permitir a reflexão de como essas ações são compreendidas e
rebatidas, confrontadas por meio de pequenas astúcias que resistem à
dominação (Gouvêa, Cabana & Ichikawa, 2018; Wanderley & Barros,
2018; Correia, Pereira & Carrieri, 2019; Martins, 2021).
O trabalho com o cotidiano tem sido utilizado em termos de gestão
por meio das reflexões denominadas por Carrieri, Perdigão e Aguiar
(2014, p.700) de gestão ordinária. Para os autores, ela é a “gestão realizada
no cotidiano dos pequenos negócios e constitui uma prática social e
cultural formada por uma pluralidade de códigos, referências, interesses
pessoais e relacionais”. Ela se refere à gestão exercida por pessoas
comuns, à gestão popular de seus cotidianos, de acordo com suas diversas
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 95

formas de fazer e saber, que, por vezes são dissonantes de modelos


administrativos preestabelecidos ou ditos científicos e universais.

Entender o dia a dia dos pequenos e médios negócios perpassa pela


compreensão das práticas cotidianas, dos fatos históricos, sociais, culturais
e identitários que distinguem os sujeitos e pluralizam a sua gestão. Foca-se,
então, no cotidiano do homem comum, distanciando-se dos parâmetros
gerencialistas, podendo assim entender como este indivíduo conduz os
negócios ordinários (Pena et al., 2016, p. 13-14).

Barros e Carrieri (2015) colocam que o estudo do cotidiano na


gestão deve considerar eventos não sistemáticos, que não podem ser
enquadrados e geridos pela racionalidade positivista que domina a
Administração. É por isso que Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018)
afirmam que os estudos da gestão ordinária, permitem inserir nos
estudos da área saberes que muito têm a contribuir para a construção
de conhecimento.
A gestão ordinária lida, conforme Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018)
com tentativas de inserir nas reflexões administrativas os que são
excluídos e marginalizados pelos saberes já estabelecidos no campo.
Nesse sentido, o trabalho com a história do cotidiano na gestão
apresenta a possibilidade de dar ouvidos para novas vozes, fugindo da
realidade que considera números e modelos como fundamentais para se
discutir as organizações.
Em Cabana e Ichikawa (2017) e em Correia e Carrieri (2019)
podemos compreender que as imposições realizadas nas organizações
para com os indivíduos ou grupos, podem ser aceitas, recusadas ou até
receber bricolagens a partir de micropráticas. Os movimentos de
96 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

resistência às imposições em âmbito organizacional se realizam por


práticas por vezes ocultas, que não se caracterizam como ameaça ao
poder dos dominantes, possibilitando com isso as invenções e
reinvenções das práticas.
Trabalhos como os de Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014), Barros e
Carrieri (2015), Carrieri et al. (2018), Wanderley e Barros (2018), Carrieri
e Correia (2020) e Oliveira et al. (2021) nos auxiliam a refletir que os
pesquisadores que se propõem a estudar saberes e práticas cotidianas
no âmbito da Administração devem estar treinados para o
reconhecimento das complexidades da realidade. Ademais, os autores
afirmam nesses trabalhos, é de fundamental importância o
compromisso com uma abordagem crítica diante do que está
estabelecido como gestão, para que não se reproduza a visão
hegemônica com a qual se busca rompimento.
É na crítica à Administração tradicional e sua busca desenfreada pela
maximização dos lucros por meio de uma lógica instrumental que Barros
e Carrieri (2015) consideram que estão as bases da gestão ordinária.
Diferente da divisão entre a razão e a emoção, da distinção entre aqueles
que praticam e aqueles que refletem, a gestão ordinária auxilia na
investigação das formas de gestão que ocorrem nas práticas de grupos
afastados da legitimação dos saberes acadêmicos, viabilizando a
observação das “intencionalidades institucionais e de grupos sociais em
conduzir um acordo implícito e objetivo da não incorporação do valor
humano nas práticas sociais” (Barros & Carrieri, 2015, p.159). Distante da
concepção racionalista, Carrieri et al. (2012, p.222) detectam que os
sujeitos “escapam silenciosamente dessa conformação dita racional”,
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 97

facilitando a constante mutação do cotidiano da gestão, fazendo com que


não exista uma forma única e determinada de gerir. A concepção da
gestão ordinária não caminha para estabelecer modelos de gestão,
prontos para simples aplicação. Pelo contrário, ela reconhece que gerir
envolve pluralidade e que é a partir das diversas artes de fazer que uma
parte da realidade pode ser compreendida.
A gestão ordinária, a partir do movimento de dar ouvidos aos que os
estudos hegemônicos calam (Gouvêa, Cabana e Ichikawa, 2018) se
aproxima do saber popular e de suas memórias. Ela valida e possibilita a
percepção da complexidade das formas de se organizar popular no
cotidiano (Carrieri et al., 2018). O estudo das formas populares de
organização tanto amplia o repertório de possibilidades de ação, quanto
destitui a soberania do gerencialismo institucionalizado, ou de técnicas e
modelos de gestão classificados como mainstream nos centros de ensino
universitários. No gerencialismo, a organização tende a ser estruturada
de forma rígida e formal, sendo a divisão hierárquica e a adoção de
métodos de medição e controle da produtividade como necessários para
cumprimento de objetivos econômicos (Carrieri et al., 2018).
Para Certeau (2012), popular é “a maneira de utilizar sistemas
impostos. Constitui a resistência à lei histórica de um estado de fato e a
suas legitimações dogmáticas” (Certeau, 2012, p. 74). O fazer com o que
se tem, a arte de golpes, o prazer em alterar as regras de um espaço
opressor. Destreza tática. Para ele, a “vida não se reduz ao que se vê”
(Certeau, 2012, p. 73). E o popular, o que acontece no dia a dia, no
cotidiano das pessoas comuns, é um protesto ético contra sua
fatalidade, contra a fatalidade da ordem global, capitalista, estabelecida.
98 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

O uso popular modifica o funcionamento das hierarquias de poder e do


saber à sua razão. O popular são as:

[...] maneiras de falar que transformam a linguagem recebida em um canto


de resistência, sem que essa metamorfose interna comprometa a
sinceridade com a qual por ser acreditada, nem a lucidez com a qual se veem
as lutas e as desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida
(Certeau, 2012, p. 74).

Popular aqui se equipara ao pensamento selvagem e às lógicas dos


corpos constituídos como estranhos, mas que “renovam a interpretação
e a produção de nossos próprios discursos” (Certeau, 2012, p. 76). O
popular pertence à uma historicidade cotidiana, constituída pelos
modos de usar as coisas e as palavras, segundo ocasiões, nada
premeditadas. Pertence à uma historicidade social, constituída por
instrumentos manipuláveis por usuários, as táticas possíveis em um
sistema social dado. Ou seja, são as artes de (sobre)viver no campo do
outro que transgridem a economia do lucro, seja pelo excesso
(desperdício); seja pela contestação (rejeição do lucro); seja pelo delito
(atentado contra a propriedade). O saber popular subverte “a lei que, na
fábrica científica, coloca o trabalho a serviço da máquina, e, na mesma
lógica, aniquila progressivamente a exigência de criar e a obrigação de
dar”. (Certeau, 2012, p. 85).
Certeau (2012) chamou de “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas
de resistência”, que alteraram os objetos e os códigos e acabam por
estabelecer uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um.
Para o autor, existem os (micro) exercícios, as táticas, de oposição e
afrontamentos contra as estratégias incluídas no cotidiano pelos
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 99

aparatos de repressão, pelas estruturas de dominação, elas mesmas, em


constantes aberturas aos praticantes e ‘empreendedores’ de fissuras, de
brechas.
Foucault (2013, p. 28) ressalta a importância destas brechas, destas
fissuras, destes espaços-tempos que rompem, paralisam, ressignificam
a “vida ordinária”, e os denominam como espaços ou possibilidades
heterotópicas. As heterotopias nos colocam em contato com
complexidades que tensionam dicotomias naturalizadas em nosso
comportamento social. As heterotopias abrem possibilidades para
práticas de liberdade no momento em que possibilitam o deslocamento
do que é dado como padrão, certo, normativo, ao modelo tradicional de
gestão, permitindo a experimentação de relações diferentes, outras,
estranhas. Experimentação de oportunidades antes não imaginadas,
que recriam o que estava estabelecido como norma e reescrevem o
conceito de organização (Hjorth, 2005).
Para Foucault (2013, p. 19), “há – em toda sociedade – utopias que
têm um lugar preciso e real, um lugar que podemos situar no mapa;
utopias que têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar
e medir conforme o calendário de todos os dias”. Ele destaca a
importância da localização destes espaços pois não vivemos em um
espaço neutro e branco. “Não se vive, não se morre, não se ama no
retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, em um espaço
quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras”
(Foucault, 2013, p. 19).
Foucault (2013) declara sonhar com a criação de uma “ciência” para
o estudo destes espaços-tempos heterotópicos. Ele explica:
100 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

“sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por objeto
esses espaços diferentes, estes outros lugares, essas contestações míticas e
reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é
preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não tem lugar algum,
mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros” (Foucault, 2013, p.21).

O desafio então é acessar e resgatar as memórias dos saberes


populares organizativos para que estes ajudem a compor o repertório
de imagens-pensamentos (Benjamim, 2006) de nossas possibilidades de
convivência e produção conjunta de um nova ciência. Saberes populares,
as formas de saber e fazer rotineiras, cotidianas, do povo simples, ditos
sem histórias, que possuem suas formas próprias de sobreviver e fazer
a vida acontecer em seus contextos específicos. Experiências do saber-
fazer costuradas pelas memórias de gerações, transmitidas de
mães/pais para filhas e filhos. São pescadores, artesãos, costureiras,
paneleiras, doceiras, pessoas do fazer comum que antes de
classificações profissionais, sabiam como organizar seus afazeres, sua
rotina, seus propósitos, conforme as necessidades de seu povo, da sua
terra, os ciclos da natureza, os ciclos do sol. Pessoas em que a
classificação do tempo e do espaço segundo a lógica industrial não faz
sentido. Que o nascer e o pôr do sol são mais significativos que a
determinação dos dias de trabalho formal da semana. Jeitos de fazer que
hoje são considerados estranhos, preguiçosos ou ineficientes, mas que
guardam sabedoria transmitida por outros meios que não a escrita
formal. Sabedorias guardadas em memórias individuais e coletivas, que
para serem acessadas é preciso expandir os parâmetros de pesquisa e
avaliação da ciência moderna tradicional.
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 101

RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA, SABER POPULAR E


GESTÃO ORDINÁRIA

Ao fomentarmos trabalhos que envolvam as interconexões entre


as histórias e memórias, os saberes populares no cotidiano de pessoas
comuns e suas formas de gestão do dia a dia, buscamos auxiliar as
discussões que envolvam os invisibilizados, silenciados e os menores do
ponto de vista da grande História. Quando pontuamos as gestões,
falamos aqui não somente das (grandes) empresas que compuseram e
continuam a compor o mainstream da Administração. Sobrelevamos as
pequenas empresas, os pequenos negócios, compostos de inúmeros
saberes populares ignorados pelas escolas de gestão, e também, o que
destacamos como grande contribuição deste capítulo, os saberes
organizativos das pessoas e grupos comuns, nem sempre organizados
como negócio, mas que sustentam o dia a dia da luta pela sobrevivência
de si e dos saberes que acumulam.
Dessa forma, ao destacar as memórias populares, enfatizamos o
organizar do cotidiano de pessoas comuns. Organizar as tarefas
domésticas, da sequência do dia, da forma de dividir e estruturar seus
compromissos e agendas. Como exemplo, entre a associação de
pescadores em Cumuruxatiba, Bahia, não existe agenda, planejamento,
ou acordo futuro. As ações dependem do tempo, da lua, da maré 3. Das
condições do barco, do humor da família. Para que haja pesca, é
necessária uma conjunção de fatores em que a ansiedade da produção
precisa ser controlada. Há entre eles, o saber da espera, o saber observar

3
Conversa informal com pescadores na associação de pescadores de Cumuruxatiba, distrito de Prado,
Bahia, em agosto de 2019.
102 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

as condições do mar, que os destoam da lógica de produção fordista, a


qual nossa subjetividade já incorporou como “natural”.
Os saberes de como, onde e quando pescar são transmitidos pela
observação e fazer conjunto, pela partilha dos acontecimentos ao
entardecer, quando retornam à praia, pelas histórias contadas e
inventadas do que aconteceu no mar, e também, pelas cantigas
partilhadas. A música, cantada em coro, conta detalhes do fazer e do
remo. Ao participar de uma das reuniões da associação, um dos
pescadores canta: “o mar é coisa que não se pega, mas o conheço com
minha mão”.
Outro exemplo que poderia nos ajudar a pensar sobre as relações
conceituais propostas neste texto, são as relações de produção de
mulheres ceramistas no interior do estado de Oaxaca, México 4. Estas
mulheres, não estão organizadas em associações, empresas ou negócios.
Cada uma produz em sua própria casa. Ajudam-se em etapas coletivas,
como a coleta do barro ou a queima das peças. No entanto, o fazer da
cerâmica, mistura-se com o cuidar da roça e dos filhos, fazer comida e
limpar o quintal. Depende da luz relativa à estação do ano, e dos tempos
disponíveis no dia. Se há colheita ou não. No entanto, os tempos, o
preparo do barro, o dia da queima das peças, requerem saberes
partilhados entre avós, mães e amigas. Detalhes comentados enquanto
desgranam o milho, ou quando cozinham juntas. Partilha de memórias
de saberes e fazeres populares que determinam o organizar do dia a dia
daquelas mulheres e de sua comunidade. Assim, memória, saber-fazer,

4
Pesquisa realizada nos meses de fevereiro e março de 2018, em vigem para o Estado de Oaxaca, México.
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 103

produção e cotidiano estão completamente imbricados, são


indissociáveis das formas de sobrevivências de um determinado grupo.
A queima das peças de barro é realizada de forma bastante
peculiar, no chão, em fogueira disposta em ângulo específico em exatos
15 minutos de fogo alto. No barro, misturam um pouco de areia para que
a peça vitrifique. Tais técnicas são tidas como erradas, ou
inapropriadas, nos cursos de cerâmica tradicionais. Nestes, ensina-se
que a queima direta ao fogo, rompe a peça. Da mesma forma, é preciso
retirar toda a areia do barro para que não quebre ao queimar. Ao
perguntar para as mulheres sobre estas contradições, contam que
aprenderam assim com suas antepassadas. E assim vão testando
misturas de matérias primas e memórias de famílias. Os acertos e erros
são compartilhados quando preparam comida para os mutirões.
De forma semelhante, donas de casa nas roças de Caldeirão Grande,
município no interior da Bahia, ensinam sobre como lavar louças e
roupas com o mínimo de água 5. Elas questionam o uso desmedido de
água por pessoas que nunca passaram por situação de escassez ou que
possuem sistema de água encanada em casa. Para a limpeza da louça de
uma refeição para a família de 8 pessoas, usam dois baldes de água. Um
apenas com água, outro com água e sabão. Iniciam a lavagem pelas peças
menos sujas para as mais sujas, aproveitando a água de um para o outro.
Lara, criança de oito anos, ensina como lavar o coador de café, sem sujar
o restante da água. Dessa forma, contabilizam o uso da água do dia.
Sabem sobre a média de uso diário e a diferença para os dias de festa.

5
Pesquisa realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2019, em viagem para a cidade de Caldeirão
Grande, Bahia.
104 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Em conversa com senhora, frequentadora assídua de baile popular


de terceira idade localizado no centro da cidade de Belo Horizonte, ela
conta sobre suas estratégias/táticas de sobrevivência financeira e
emocional em relação à vida doméstica (casa, filhos, marido). Ela conta
que começou a vender produtos cosméticos como justificativa para
poder sair, dançar, encontrar amigas, e, além de tudo, garantir sua
independência financeira do esposo. Não apenas ela, mas outras
mulheres que ali conversamos, relatam que o trabalho informal, sem
lugar fixo e criando clientela fidelizada indo de casa em casa, seja como
vendedora, cabeleireira, cozinheira ou quituteira, modos de fazer por
vezes aprendidos com suas mães e avós, foram ou são suas formas
outras de reinventar a vida para além de difíceis condições de opressão. 6
Dessa forma, o esforço empreendido neste capítulo é atentar para
as importantes contribuições das memórias populares para os estudos
em gestão ordinária. Buscamos assim contribuir teoricamente para
encorajar trabalhos que discorram sobre as gestões das vidas, dos
corpos, das ideias, dos espaços, das festas, dos laços sociais, dos saberes,
das comunidades, das práticas e as experiências que podem contribuir
para o avanço de estudos históricos em organizações. E no intuito de
contribuirmos com trabalhos que visem aprofundar sobre a riqueza do
cotidiano, suas possibilidades de construção, sejam pelas memórias,
sejam pelos saberes populares, ressaltamos as questões listadas abaixo.
As perguntas que se seguem, não são questões para serem respondidas,

6
Fragmentos de pesquisa realizada como trabalho de doutorado de Martins (2021).
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 105

mas questões reflexivas que podem nos ajudar a expandir as


possibilidades de pesquisa na administração.

 Como a memória pode atuar em conjunto com a história na preservação de


sabedorias populares?
 Quais histórias e memórias sobre organização pertencem ao repertório de
determinada localidade/comunidade?
 Quais memórias e saberes sobre as formas de organizar foram silenciados?
Como identificar os resquícios, as lacunas, os silenciamentos que nos dizem
sobre saberes que não existem mais?
 De que forma pessoas e grupos populares (bem como suas memórias,
costumes, crenças, mitos e práticas) organizam as relações com o tempo e o
espaço no cotidiano, ou seja, sobrevivem, de forma que confrontam o padrão
de uma administração científica, produtivista, generalista e universal?
 Quais memórias locais contam sobre outras lógicas organizacionais
diferentes da lógica mercantilista de privatização, cercamento e apropriação
física e social?
 De que forma a oralidade e a transmissão de memórias elaboram o cotidiano
de grupos e organizações?

Perguntas como estas poderiam nos ajudar a expandir o que


entendemos como gestão, assim como expandir as discussões de gestão
ordinária, trazendo à tona a riqueza de possibilidades que grupos
populares trazem para a organização científica. Os saberes populares
que enfatizamos aqui, experimentados por meio da memória de seu
povo, evidenciam a complexidade de quem insiste em sobreviver como
vaga-lumes (Didi-Huberman, 2011).
Assim, para estudos das possibilidades de sobrevivência, faz-se
necessária uma genea-arqueologia dos contra-poderes, onde se buscaria
106 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

compreender como os vaga-lumes sobrevivem no presente. E, para tanto,


Didi-Huberman (2011) ressalta que é preciso coragem e poesia. Coragem
como virtude política. Poesia como a arte de fraturar a linguagem,
quebrar as aparências e desmistificar a unidade do tempo e do espaço.
Para visualizar o cotidiano dos vaga-lumes é preciso profanar o que é tido
como sagrado, debruçar-se sobre rotas de fuga, “saberes clandestinos”,
“saberes heterotópicos” (Didi-Huberman, 2011, p. 138), que criam fissuras,
intervalos desconhecidos, no infinito presente cotidiano.
São essas formas de gestão sobreviventes no cotidiano, que
possuem um voo incerto dentro do conhecimento administrativo
considerado racionalmente válido, que prosperam no interior das
estruturas do sistema, alterando seu funcionamento, mas também
deturpando-lhe, ressignificando-lhe, questionando-lhe (Souza Filho,
2002). Desta forma, não se trataria mais de precisar, na perspectiva
foucaultiana, como a violência da ordem faz uso da tecnologia
disciplinar, mas de perceber nas táticas desenvolvidas nas sutilezas do
cotidiano, “uma espécie de sabedoria milenar orientando o
enfrentamento da uniformização e do controle pretendidos pelos
poderes e administradores que intentam governar em nome de um
saber superior e do ‘interesse comum’” (Souza Filho, 2002, p. 133).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente capítulo destaca a importância da memória como


registro histórico, bem como dos saberes populares, para a ampliação
das referências e possibilidades dos modos de organizar possíveis em
Paula Gontijo Martins; Gabriel Farias Alves Correia • 107

nossa sociedade. Coadunamos assim com o fomento de novas


possibilidades de compreensão do fazer social que suportam a expansão
do conhecimento por meio da pluralidade, rejeitando quaisquer
tentativas de estabelecimento de históricas únicas e universais.
Segundo Benjamin (1987a, 1987b, 2006) e Bosi (2003) a capacidade
de rememorar está atrelada a capacidade de experienciar. E estas duas
habilidades têm caído de cotação diante da profusão de estímulos
sensoriais na contemporaneidade. Dar atenção ao pequeno, ao popular,
ao que é tido como insignificante, é perceber a complexidade inerente à
vida, é buscar nas lacunas e nos silenciamentos, aquilo que coexiste com
a história oficial e que possibilita a existência das pessoas comuns.
Assim, o resgate à memória popular critica a falta de perspectiva
histórica por parte da Administração enquanto saber-poder (Carrieri et
al., 2018). Partimos do pressuposto que os saberes, as verdades, são
localizadas no espaço e no tempo. No estudo da Administração faz-se
necessário historicizar conceitos e aceitar a transitoriedade do
conhecimento (Barros & Carrieri, 2015; Carrieri et al., 2018; Carrieri &
Correia, 2020). Faz-se necessário a atenção e a escuta sobre a gestão
ordinária do dia a dia das pessoas comuns, as quais sinalizam no seu
fazer aquilo que realmente importam para elas.
Apostamos que a compreensão histórica da memória dos saberes
populares nos ajuda a questionar os regimes de verdade de nossa época
que dominam a Administração e evidenciam a variedade de verdades
que se tornam pouco perceptíveis frente uma dominante. O
conhecimento normalmente intitulado de popular, atribuído ao sujeito
comum, com suas práticas próprias de organização de suas atividades
108 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

diárias, ou de seus pequenos empreendimentos formais ou informais,


são sempre estigmatizados, rotulados como amadores, improvisados e
desprovidos de profissionalismo. São indignos de credibilidade, pois,
como argumentado por teóricos decoloniais, entre eles Mignolo (2010) e
Walsh (2007), além de Federici (2017), o saber popular ameaça as
estruturas de poder coloniais ainda presentes, pois desarticula a lógica
mercantilista de cercamento e apropriação física e social.
Dessa forma, as reflexões aqui trazidas encorajam o profanar o que
é tido como sagrado (Didi-Huberman, 2011, 2012). Encorajam olhar a
gestão para além do que foi institucionalizado como convencional, e
buscar saber sobre outras práticas que compõem a memória das pessoas
que não participam da história oficial. Estas memórias, podem conter
pistas, restos, fagulhas, de modos de existir outros, que desmistificam a
história única. Podem contar fragmentos e encadeamentos próprios que
nos façam perceber que outras formas de conviver são possíveis.

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DE SPRAY NA MÃO: RESISTÊNCIAS
5
DE GRAFITEIRAS EM BELO HORIZONTE
Alexsandra Nascimento da Silva 1

Fabiana Florio Domingues 2


Alexandre de Pádua Carrieri 3

INTRODUÇÃO

Considerando a cidade como um lugar (Auge, 1994) habitado por


um conjunto de grupos heterogêneos com aspirações das mais variadas
possíveis, os usos dos espaços urbanos exemplificam a luta por diversos
interesses. Os grupos hegemônicos propagam um discurso estético, não
só determinando o que é o belo ou o que é arte como também definindo
quais intervenções no espaço urbano são permitidas ou não. Em nome
de uma gestão estética do urbano, controlam-se inclusive
manifestações rebeldes à ordem, como os grafites (Ramos, 1994; Gitahy,
1999).
A inquietação que motiva esta pesquisa diz respeito aos impactos
da mercantilização sobre o caráter das manifestações de resistência. Ao
serem transformadas em objetos de consumo, a sua transgressão deixa

1
Administradora na Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Administração pela Universidade
Federal de Minas Gerais. E-mail: Alexsandra.n.silva@gmail.com.
2
Professora da Professora da Faculdade de Ciências Contábeis e Administração de Cachoeiro de
Itapemirim. Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
fabianafd@gmail.com
3
Professor Titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: ale.krrieri@gmail.com.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 115

de ser intrínseca? Ou seus autores se valem disto como tática para


continuarem existindo? Elas se tornam uma obra que se submete ao
capitalismo? (Ramos, 1994; Gitahy, 1999)
Inicialmente expressão de grupos marginalizados, os grafites são
desenhos pautados numa estética que não é a erudita e, assim, podem
veicular mensagens transgressoras. Os grafismos estão em um
movimento de arte da margem prestes a ser tornar do centro. Pouco a
pouco eles estão perdendo sua aura marginal e adquirindo a aura de
arte. Como arte, existem espaços legítimos para eles nas cidades. A arte,
a estética, o valor, o trabalho, são todos elementos que transformam
uma manifestação rebelde e marginal em algo socialmente adequado,
belo e de bom gosto (Ramos, 1994).
Mercantilizável o grafite foi levado às galerias para ser consumido
(Gitahy,1999). Esse grafismo passa então a ser benquisto no muro, mas
agora, numa cidade que se torna vitrine, um adorno. Isto não implica
necessariamente um controle da arte urbana porque, apesar da
domesticação do grafite ser um movimento possível, a adesão do
grafiteiro não a confirma por si. É perfeitamente possível que, em uma
obra existam signos transgressores invisíveis para quem não esteja
familiarizado com eles ou diversas possibilidades de sentido contidos
em uma mesma tela.
Temos então um cenário que comporta um espaço urbano em que
algumas formas de consumo são consideradas mais adequadas que
outras e que se sobrepõem hegemonicamente a elas. Uma dessas formas
dissidentes de apropriação do espaço seria o grafite, que
contemporaneamente tem passado por um processo de massificação,
116 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

sendo incorporado ao mundo do consumo – o que não quer dizer que


isto ocorra sem resistências.
Paralelamente a estes pontos, temos a questão de gênero no
grafite, de acordo com Morena (2009). Ser mulher no grafite não é igual
a ser um homem no grafite. O contexto feminino reproduz as questões
presentes na sociedade patriarcal. Desta dinâmica, emerge o problema
desta pesquisa: como ocorrem os processos de resistência na cena do
grafite feminino em Belo Horizonte?
Tem ocorrido efervescência de eventos que envolvem o grafite em
Belo Horizonte, tais como o festival CURA, o Telas Urbanas, Projeto
Gentileza e o Mural da Liberdade. A baixa representatividade feminina
nos eventos de grafite tem tanto suscitado debates quanto colaborado
para a criação de eventos específicos para mulheres, como o Delas,
idealizado pelo grupo de grafiteiras Minas de Minas. Ainda são tidas
como subalternas e desmerecidas as atividades desenvolvidas pelas
mulheres, comparativamente às dos homens, mesmo aquelas que são
desenvolvidas fora de casa.

SOBRE SUBJETIVIDADES E CAPITALISMO

A subjetividade não está no campo do social, ela está em todos os


processos de produção material e social. O indivíduo é onde essa
subjetivação é produzida e não criada. A singularização é quando o
indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade. De acordo
com Carvalho (2015), a subjetividade, no contexto da sociedade de
consumo, é criada em um corpo social e possui uma dupla função: 1)
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 117

colocar os indivíduos em uma relação semiótica em que seus modos de


existir são moldados por uma sociedade na qual tudo se torna objeto de
consumo, as próprias pessoas inclusive; 2) conectar os indivíduos e
estimular as relações de consumo. Nessa perspectiva, cada vez que o
sujeito consome, recria formas de ser, e, no consumo, tudo se subjetiva.
Desta forma, os processos de subjetivação acontecem via
elementos heterogêneos que se combinam entre si de múltiplas formas.
Nesta dinâmica, é preciso considerar não apenas os aspectos biológicos
ou psíquicos envolvidos como também aqueles que dizem respeito à
tecnologia, à política, ao Estado, ao espaço urbano como faremos neste
trabalho, enfim, às diversas facetas dos fluxos sociais (Souza, 2016).
Neste contexto, existe o Capitalismo Mundial Integrado (CMI) que
seria um momento caracterizado pelo estabelecimento hegemônico do
modo de produção capitalista em todo o mundo. Nesse ínterim, as
ideologias políticas tornam-se indistinguíveis, e o capital torna-se o
estruturante das relações humanas, mercantilizando e massificando as
formas de se vestir, de se alimentar, de sentir, produzindo a relação do
indivíduo com o mundo e consigo mesmo (Guattari & Rolnik, 1996;
Soares & Miranda, 2009).
De acordo com Lazzarato (2010), a produção de subjetividade
funciona de duas maneiras, denominadas dispositivos de sujeição social
e servidão maquínica. A sujeição social é responsável por dar aos
sujeitos uma subjetividade, via atribuição a ele de um sexo, uma
profissão, um corpo, etc. Essa sujeição ocorre para atender às
necessidades da divisão social do trabalho, produzindo sujeitos
individuados, com seus comportamentos, representações e consciência.
118 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Por sua vez, esses sujeitos individuados passam, concomitantemente,


por um processo oposto, o de dessubjetivação, no qual, via servidão
maquínica, tem suas representações e consciências desconstruídas. É
por isso que Guattari defende que o capitalismo coloca os sujeitos sob
servidão maquínica.
Ainda para Lazzarato (2010), é na interseção entre a sujeição social
e a servidão maquínica que a subjetividade acontece. O capitalismo
funciona com essa especificidade da servidão maquínica, e isto se dá de
forma mais acentuada nos dias atuais, uma vez que os maquinismos
conquistaram nosso dia a dia e estão presentes na nossa forma de falar,
ver, ouvir e sentir enquanto constituímos nosso capital social.
Uma conjunção entre o fluxo econômico e produção de
subjetividades não diz respeito apenas ao capitalismo como também às
formas de resistência neste contexto. Engendrá-las se torna cada vez
mais difícil porque é preciso pensar em novas instituições a nível
macropolítico que pudessem constituir uma nova resistência diante deste
capitalismo. Estas deveriam romper com a profunda distância entre o
capitalismo e aqueles que a ele estão submetidos (Lazzarato, 2010).
Para Guattari e Rolnik (1996), a produção de subjetividades não é
algo que depende apenas das estruturas de interações sociais, e sim
ingrediente primordial das forças produtivas. Ela faz parte do
movimento que faz acontecer a crise mundial, alimentando as
revoluções científicas e a incorporação de equipamentos coletivos e de
mídia. As forças capitalistas entenderam que a produção de
subjetividades pode ser mais importante do que qualquer outro tipo de
produção. As mudanças geradas na subjetividade pelo sistema
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 119

capitalista alteram o modo que os sujeitos percebem o mundo, com os


processos maquínicos do trabalho, com a ordem social que sustenta as
forças produtivas. Por isso, a questão da produção de subjetividade deve
ser levada em consideração por movimentos de emancipação. Tudo o
que é produto de subjetivação capitalística tem a ver com as grandes
máquinas produtivas, as de controle social e as formas de perceber o
mundo. Assim, até as produções de grafite podem seguir uma lógica
capitalista, mesmo quando alegam ser contra o sistema.
De acordo com Guattari e Rolnik (1996) e Miranda (2000), a
produção contemporânea de subjetividades está severamente ligada a
mecanismos de dominação capitalistas. No entanto, isto não significa
impossibilidade de resistências via desvio e singularização. Desse modo,
esses autores propõem processos de singularização, que seriam uma
forma de repúdio a essas subjetividades massificadas, pré-estabelecidas
e manipuladas e também oportunidade para a criação de outras formas
de perceber o mundo, produzir e interagir com o outro. Esses processos
de singularização se tornam viáveis não só pelas fendas que o próprio
capitalismo provoca em si mesmo, como pela própria natureza
processual da subjetividade, que está continuamente em movimento.
Ainda para Guattari e Rolnik (1996), aceitamos a ordem
capitalística porque ela parece ser a ordem do mundo. A força da
subjetividade capitalística é que ela é criada tanto no nível dos
oprimidos quanto dos opressores, inserindo-os em uma lógica que
naturaliza as contradições em suas relações. Isso desestabiliza as
alianças sociais e de classe. No entanto, não é nosso destino inexorável
estar incluso nesse modo de produção de subjetividades capitalísticas.
120 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Existem formas de resistência. As revoluções moleculares são


resistência sobre a serialização das identidades, em uma tentativa de
valorizar os processos de singularização subjetiva e original. A
revolução molecular tem como característica capturar os elementos da
situação, construindo seus próprios tipos de referências práticas e
teóricas sem ficar dependente do poder global, nem a nível econômico,
nem a técnico, a saber, segregação e tipos de prestígio. Quando isso
ocorre os grupos obtêm um mínimo de capacidade de criação e
conseguem preservar sua autonomia. A recusa ao trabalho tal qual ele
se apresenta atualmente é uma forma de revolução molecular. Será que
isso se aplica ao modo de trabalho das grafiteiras por não se encaixarem
em uma economia formal? Ou é justamente a tentativa de se encaixarem
que as empurra para um processo de individuação? A inclusão delas
numa economia formal implica uma desistência de resistência? A
revolução molecular diz respeito à produção de condições não apenas
de uma vida coletiva, como também da encarnação de uma vida para o
próprio indivíduo, tanto subjetivo quanto materialmente. Não se trata
de voltar a uma condição anterior, e sim de criar condições para um
novo tipo de subjetividade. É necessária a criação de novos modos de
referência, em que cada um fique firme em sua singularização e que
resista à individuação.

O GRAFITE

O surgimento do spray, na década de 1950 contribuiu para a


proliferação do grafite pela cidade, tendência que continuou pelos anos
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 121

1960 e 1970. Foi nos anos 1980 que os grafites se consagraram como
linguagem artística, quando conquistaram espaço na mídia e chegaram
a ser expostos inclusive na Bienal (Gitahy, 1999). Nas revoltas de maio
de 1968, os estudantes escreveram as suas reivindicações nas paredes,
e, em pouco tempo, elas se espalharam pela cidade. Por serem
manifestações subversivas, elas eram feitas à noite, no intuito de seus
autores se esconderem das autoridades policiais. Para Ivo (2007) e
Furtado e Zanella (2012), os espaços urbanos são meios de comunicação
e espaço para expressão de grupos e indivíduos. E, nesse contexto, o
grafite seria uma arte rebelde, e o discurso do hegemônico a seu
respeito é que se trata de uma poluição visual.
O suporte para o grafite não é apenas o muro, mas é a cidade como
um todo, estando presente também em postes, calçadas, chão,
escadarias que são preenchidos por imagens enigmáticas repetidas
várias vezes à exaustão, sob influência da Pop Art. Suas mensagens,
dentre diversas possibilidades de sentido passam por várias questões
tais como a crítica social ou o humor com fins de descontração e se
contrapõem aos outdoors e às publicidades, procurando ser uma
expressão que convida as pessoas para o diálogo ao invés da posição
passiva a que os indivíduos são submetidos enquanto consumidores
(Baudrillard, 1979; Gitahy, 1999).
Os grafites eram considerados expressões de grupos
marginalizados, eles são desenhos pautados numa estética que não é a
oficial e veiculam mensagens transgressoras, ou não-mensagens, de
acordo com Baudrillard (1979). A própria existência deles já é um desafio
às normas, pois os muros devem ser mantidos em branco. No entanto,
122 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

o grafite se tornou mercantilizável: ele foi levado às galerias para ser


consumido. E, numa cidade que se torna vitrine, o grafite é usado como
adorno. Será que este grafito consumível se tornou domesticável?
Considerado até poucos anos atrás como crime ambiental, o grafite
passou a ser uma manifestação aceitável.
Todas as pinturas, placas, letreiros e signos se unem para compor
uma enorme tela sem moldura na cidade. Grafismos urbanos seriam
uma espécie de rebelião tribal contra opressora civilização industrial e
uma ação anárquica social (Ramos, 1994). A cidade é o espaço urbano de
conflitos de culturas e também, devido à diversidade de grupos que nela
convivem, é o espaço de produção de signos. Estes seriam produzidos e
consumidos de acordo com uma lógica que implica uma adequação deles
para os padrões capitalistas, ou seja, numa tendência à sua
mercantilização. .
Assim, a cidade seria um sistema semiótico, e o grafite, uma
suposta manifestação simbólica contra essa sociedade de consumo,
contra a segregação de grupos excluídos e uma reação à dominação do
urbano pelas classes dominantes, ao subverterem o uso de seus espaços
(Baudrillard, 1979; Ramos, 1994; Penachin, 2004).
De acordo com Antunes e Margarites (2017), ainda é pequena a
representatividade feminina no mundo do grafite, sendo este ambiente
preconceituoso e hostil. A presença da mulher neste espaço é sinal de
resistência. Elas advogam que a mulher tem um espaço menor, seja pelo
horário restrito em que podem estar nas ruas, por questões de padrões
de comportamento ou segurança, seja por outras questões como a
religião, a ordem doméstica, a moral, a decência e o pudor. Para elas, é
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 123

importante também a dicotomia entre público e privado que coloca a


mulher sob o domínio do lar, ao passo que aos homens é destinado o
espaço das ruas. Além disso, questões como a maternidade afastam a
mulher do mundo do grafite, e o mesmo não se observa com os homens.
Tudo isto contribui para que o espaço das mulheres nas ruas seja menor
do que o dos homens.

O GÊNERO NESTE CONTEXTO

Para Neves (2013), são três as principais contribuições da produção


em gênero e trabalho. A primeira delas é dar visibilidade à presença
feminina no mercado de trabalho. A segunda diz respeito a trazer à tona
a discussão sobre a divisão sexual do trabalho e sobre as relações do
espaço produtivo/espaço reprodutivo e trabalho profissional/trabalho
doméstico. Já a terceira contribuição nos leva a uma reflexão sobre os
desdobramentos das mudanças provocadas pela globalização e a
reestruturação da produção nos modos de inserção da mulher no
mercado de trabalho e na vida familiar. O tema do trabalho foi
responsável pela entrada da temática de gênero na agenda da pesquisa
brasileira em Ciências Sociais. Isso ocorreu porque o trabalho já era um
tema relevante na teoria sociológica e também porque era uma bandeira
importante para o feminismo.
O trabalho feminino ganhou grande proeminência no Século XIX,
de acordo com Scott (1994) não por ter começado a existir ali, e sim por
ter ganhado significado até para o que significa ser mulher e
trabalhadora assalariada, ponto com o qual concorda Federici (2017).
124 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Neste contexto, às mulheres eram destinados os cuidados com os filhos


e não era considerado adequado que as mulheres tivessem ocupações
que as desviassem destas, cabendo ao homem o papel de mantenedor da
casa. No contexto da industrialização este discurso ganhou força,
naturalizando-se.
O termo “gênero”, de acordo com Scott (2012), é uma forma de
rejeitar as explicações biológicas, que são usadas como forma de sujeitar
as mulheres amparando-se no fato da mulher dar à luz aos filhos e do
homem possuir força física superior. O gênero chama a atenção para o
que é totalmente uma construção social, rejeitando a concepção
biológica da coisa. O gênero não é uma verdade interna e nem uma
aparência externa, ele é “uma constante indecibilidade jogada e
encenada entre os campos da psique interna e aparência externa, sendo
ambas reguladas pelas normas de inteligibilidade heterossexual”
(Souza, 2016, p. 39).
Todos nós estamos inscritos no sistema patriarcal, e o feminismo
é uma luta por direito também para todos, no sentido em que liberta as
pessoas de uma matriz heteronormativa e de papéis pré-estabelecidos
que amarram as definições de “homem” e “mulher”, constituindo uma
amarra binária para os indivíduos (Tiburi, 2018; Borba, 2014). Para Neves
(2013), o sistema patriarcal impede uma posição melhor das mulheres
no mercado de trabalho, pois relega a elas a responsabilidade pela
criação dos filhos e das tarefas domesticas. Apesar de as mulheres já
terem aumentado a sua participação no mercado de trabalho, ainda há
um número expressivo delas trabalhando em situações precárias e com
salário menor do que o dos homens na mesma posição, como reflexo da
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 125

discriminação sexual. Grande parte do trabalho feminino é invisível,


desvalorizado e sequer considerado como atividade econômica.
Ainda para Neves (2013), o desafio tanto do feminismo quanto dos
estudos de gênero é o de buscar igualdade de sexo no mercado de
trabalho ao mesmo tempo em que se busca proteção à trabalhadora na
reprodução, pois continua uma relação em que o trabalho masculino é
valorizado e o feminino é precarizado. Outra dificuldade diz respeito ao
tempo de trabalho, uma vez que o tempo dedicado ao cuidado com
outras pessoas não é considerado como tempo de trabalho, e sim como
uma obrigação devido aos papéis de gênero. É necessário abandonar a
noção de homem provedor e mulher cuidadora e como força de trabalho
secundária. Essas visões são estruturadas a partir de uma separação e
hierarquização entre os planos do público e do privado. A diferença na
divisão de tarefas no âmbito doméstico tem relação com as observadas
no mundo do trabalho.
Para Schefler (2013), as relações de gênero referem-se a relações
sociais mais amplas. O conceito de gênero vai além de suas implicações
teórico-metodológicas para alcançar uma prática-política: legitima
cientificamente as lutas feministas, uma vez que questiona o
determinismo biológico, demonstrando a sua historicidade e
consequente transformação e transcendência. As mulheres têm
ocupado posições hierarquicamente inferiores aos homens, tanto a
nível simbólico quanto na prática social. “Por força de ideologias de
gênero e da consequente divisão sexual do trabalho, mulheres e homens
se engajam em diferentes tipos de atividades sociais, econômicas,
políticas e culturais” (Schefler, 2013, p. 5).
126 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Apesar de a divisão público/espaço masculino e privado/espaço


feminino ser antiga e amplamente discutida pelo movimento feminista,
ainda há desigualdade de gênero. Isso se reflete, por exemplo, em
discriminação e salários mais baixos para mulheres que desempenham
as mesmas funções que os homens.
É ponto importante neste artigo o tema do trabalho, considerando
as grafiteiras enquanto trabalhadoras e o trabalho como elemento
importante da sociedade capitalista. Para Tiburi (2018) e Fonseca (2018),
não há como falar em feminismo sem considerá-lo como algo imposto
pela civilização, que se opõe ao prazer, que custa caro. O feminismo é
algo que grita dentro de um mundo capitalista uma vez que uma das
formas de aprisionar as mulheres no machismo é por meio dos
trabalhos domésticos, que são um verdadeiro problema de gênero.
De acordo com Federici (2017), o trabalho feminino tal como
configurado atualmente é fruto da ordem capitalista. Como forma de
dominar as mulheres, elas receberam o legado irrecusável do trabalho
doméstico e do cuidado da prole, cujo discurso construído é o de que são
atividades inerentes à mulher. Assim, a elas é negado o espaço da rua, o
público, ficando restritas apenas aos cuidados com o privado. O
patriarcado é um sistema profundamente arraigado na cultura e nas
instituições, que o movimento feminista busca desconstruir. No
entanto, às vezes, o próprio feminismo é usado como um rótulo e
colocado a serviço do capitalismo (Saffioti, 1994; 2001; Federici, 2017). De
acordo com Fonseca (2018), o patriarcado se assenta sobre a misoginia,
isto é, um ódio masculino em relação às mulheres. Os homens tomaram
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 127

o lugar de fala das mulheres, de modo que tudo sobre as mulheres foi
inicialmente dito por um homem. As vozes nunca são neutras.
Saffioti (2001), Fonseca (2018) e Tiburi (2018) definem o patriarcado
como algo que representa uma estrutura tida como natural, que
favorece uns ao passo que desprivilegia outros na sociedade, por meio
da violência. O patriarcado, para se manter, jamais dará espaço ao
feminismo, por isso é preciso a luta para que as mulheres saiam deste
lugar de subalternidade. Para Fonseca (2018), no patriarcado, a mulher
foi criada como um outro para a servidão, tal qual no sistema capitalista
em que o trabalhador é escravo.

METODOLOGIA

Nossa primeira aproximação do campo nos chamou atenção pelo


papel desempenhado pelas grafiteiras. Grafitar sendo mulher é
diferente de grafitar sendo homem. O grafite é uma atividade de origem
transgressora, no entanto, espera-se que o trabalho feminino seja
“delicado”, restringindo as possibilidades de expressão das artistas. Não
se leva a sério também a carreira da grafiteira, considerando que ela –
por ser mulher – está ali por capricho momentâneo e que logo irá
abandonar a atividade em prol de ocupações tidas como mais femininas.
Tudo isso são indícios de que a questão de gênero se faz importante
nesse contexto, o que nos instigou a incorporar este elemento na nossa
pesquisa.
Assim, são objetivos desta pesquisa analisar como ocorrem os
processos de resistência nesse contexto em Belo Horizonte. Para tanto,
128 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

construiu-se um corpus de pesquisa com dados verbais (Bauer & Aarts,


2008), a partir de duas estratégias principais: a observação participante
e as entrevistas.
A observação participante (Valladares, 2007; Richardson, 2012)
proporciona um ambiente para que o pesquisador vá além do papel de
mero observador, se insira no ambiente de pesquisa e interaja com seus
atores. A coleta de dados no próprio ambiente contribui para uma maior
compreensão de hábitos, atitudes, relações pessoais e características do
cotidiano do grupo que está sendo estudado.
Fez-se a inserção no mundo dos grafiteiros via participação em
eventos relacionados e acompanhando esses atores quando os mesmos
foram executar suas obras. As impressões, notas e outras informações
relevantes foram registradas no diário de campo (Martins, 2016). Além
disso, conversamos com sete grafiteiras, para ouvir delas as histórias, o
que pensam sobre essas manifestações, sobre o momento atual e sobre
o que seria o seu futuro.
Os dados foram analisados via análise de conteúdo (Colbari, 2014)
Seus procedimentos reconstroem a representação em duas dimensões
principais: a sintática e a semântica. A primeira descreve os meios de
expressão e influência e diz respeito ao modo como algo é dito ou
escrito; e a segunda dirige seu foco para a relação entre os sinais e os
sentidos – denotativos ou conotativos - que assumem no texto (Bauer &
Gaskell, 2008). Neste trabalho analisaremos as manifestações que dizem
respeito a sinais de resistências ou de submissão ao capitalismo
vivenciados pelas grafiteiras neste contexto.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 129

RESISTÊNCIAS E IRRESISTÊNCIAS

Se no cotidiano das grafiteiras ocorrem discriminações, também é


nele que surgem resistências. Observamos que ela se processa de
diversas formas. A própria insistência em permanecer no meio já é um
sinal dela. Por outro lado, as concessões que muitas vezes são feitas nos
levam a questionar até onde vai a resistência e até onde vai a
acomodação ao sistema neoliberal no mundo do grafite. De acordo com
Lugones (2014, p. 940):

A resistência é a tensão entre a sujeitificação (a formação/informação do


sujeito) e a subjetividade ativa, aquela noção mínima de agenciamento
necessária para que a relação opressão ← → resistência seja uma relação ativa,
sem apelação ao sentido de agenciamento máximo do sujeito moderno.

É no movimento entre a tentativa de ser cooptado pelo capital e a


oposição a este, conforme vimos no grafite em certos momentos, que
pode aparecer a resistência. Ora há a consciência de que o sistema está
se apropriando do grafite para fazer dele uma outra coisa, ora essa
cooptação é ignorada. Não é tarefa trivial saber se quando cooptado e
quando não está, pois estes são movimentos que se confundem. Ainda
para Lugones (2014, p. 940):

A subjetividade que resiste com frequência se expressa infrapoliticamente,


em vez de em uma política do público, a qual se situa facilmente na
contestação pública. Legitimidade, autoridade, voz, sentido e visibilidade
são negadas à subjetividade oposicionista. A infrapolítica marca a volta para
o dentro, em uma política de resistência, rumo à libertação. Ela mostra o
potencial que as comunidades dos/as oprimidos/as têm, entre si, de
constituir significados que recusam os significados e a organização social,
130 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

estruturados pelo poder. Em nossas existências colonizadas, racialmente


engendradas e oprimidas, somos também diferentes daquilo que o
hegemônico nos torna. Esta é uma vitória infrapolítica. Se estamos
exaustos/as, completamente tomados/as pelos mecanismos micro e macro
e pelas circulações do poder, a “libertação” perde muito de seu significado
ou deixa de ser uma questão intersubjetiva. A própria possibilidade de uma
identidade baseada na política e o projeto da descolonialidade perdem sua
base ancorada nas pessoas.

O espaço que há para a resistência passa pela consciência, apesar


de nem sempre haver o alarde do público, no entanto, não podemos nos
esquecer do potencial libertador deste movimento, que mostra como os
opressores lutam contra o poder que os sufoca – a possibilidade de ser
diferente daquilo que o sistema espera de nós. No entanto, se as pessoas
estão tomadas pelas circulações de poder, perde-se o seu potencial
libertador.
Para Dutra, Palhares e Mello (2018), o grafite está associado à
resistência, à manifestação de uma minoria oprimida, como no caso
deste trabalho, numa provocação que visa levar à reflexão. Grafites são
imagens capazes de desestabilizar a coesão imposta pelo poder
hegemônico que planifica as diferenças. A arte é uma forma de
resistência perante o presente, no conceito deleuziano. O grafite pode
ser considerado como reflexo da luta de classes que se manifesta na
cidade, como forma de resistência. Há uma disputa territorial do espaço
urbano, e a arte do grafite denuncia os problemas acarretados pela
priorização, por parte do Estado, dos interesses do Capital,
constituindo-se, assim, uma fonte de resistência.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 131

Um exemplo da relação entre grafite e neoliberalismo e resistência


foi verificado em um evento ocorrido na Praça da Liberdade em meados
do ano de 2018. A Praça da Liberdade, em torno da qual localizavam-se
todos os prédios da gestão estadual, encontra-se numa região nobre da
cidade de Belo Horizonte. Atualmente, os prédios que outrora ocupavam
diversos órgãos burocráticos, abrigam museus, galerias, cafés, além da
própria arquitetura do lugar ser considerada uma atração - a própria
Praça, por exemplo, ou o Palácio do Governo. Podemos pensar então
numa modificação do discurso da praça, de sede de governo a espaço de
lazer e cultura. Mas não se trata de uma cultura ou lazer acessível a
todos, apesar de que a maior parte das atrações do espaço é gratuita. A
Praça da Liberdade atrai um público determinado (brancos, ricos,
heterossexuais) ao mesmo tempo em que exclui outros: o favelado, o
pobre, o morador de rua, atores que, mesmo assim, reivindicam o
espaço da praça. A praça passou por reformas e, neste ínterim, teve que
ser fechada com uma cerca. Então, a Prefeitura, em parceria com outras
entidades, promoveu um evento chamado Mural da Liberdade, que
consistiu em um dia para grafiteiros selecionados realizarem seus
grafites em tapumes posicionados ao longo da praça.
Quando o grafite sai da periferia para ser consumido em um espaço
elitizado, como a Praça da Liberdade, podemos falar ainda em sua
conotação de resistência? Ou, quando o grafite está lá, ele significa outra
coisa? O dia da pintura foi considerado um evento, como carros de food
truck, brinquedos para as crianças, música. As pessoas compareceram à
praça para ver os artistas pintando, o grafite virou um espetáculo. O
grafite ganhou uma segunda dimensão, além da pintura. A sua execução
132 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

também serve de ação de entretenimento. Esta perspectiva se encaixa


na visão da cidade como espetáculo (Mascarenhas, 2014), em que esta é
vista como um empreendimento que, como tal, precisa atrair clientes.
As pessoas paravam para contemplar os artistas pintando.
Inclusive parece que esta era a intenção da organização do evento, que
disponibilizou cadeiras próximo aos artistas, para que as pessoas
pudessem sentar. Cadeiras, comida, distração para as crianças,
distração para os adultos... Formou-se um ambiente para que as pessoas
ficassem ao invés de apenas transitar.
Neste mesmo evento, Luana fez seu grafite dedicado aos
moradores da Praça da Liberdade, deslocados por causa das obras. No
dia seguinte à pintura, estávamos na praça e uma pessoa perguntou a
nós e a Letícia como que a autora do grafite sabia seu nome, pois estava
escrito nele o seguinte: ´”Salve.... salve para todas as malocas e todos os
doido da praça. Que nunca falte a cachaça para esquentar o peito. Salve
Raflik, Doidera, Cawboy, Deco, Barba, Cascão, Grande, Raflik, Leandro
Falecido, Adriano, Shurak, Tatu, Patricia, Seu Jorge, Baiano, Ceará,
Flautista”. Contamos para a Luana depois sobre a surpresa do morador
(Seu Jorge) e ela me disse que foi por eles mesmo que ela foi grafitar na
Praça da Liberdade, para representar os dela, senão ela não tinha ido.
Sua obra tem forte inspiração na cultura negra e da periferia. De acordo
com a legenda que ela postou em seu Instagram, seu grafite é composto
por duas personas. Uma delas representa a Maria Papuda, uma senhora
que morava no local onde hoje fica o Palácio do Governo, antigo centro
do governo do Estado. Inconformada por ser tirada à força de sua casa,
ela rogou uma praga dizendo que nenhum dos governadores que
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 133

passassem por ali iriam terminar o mandato vivo. Ainda de acordo com
Luana, a praga pegou, porque três governadores morreram e dois, que
não terminaram o mandato, morreram também. Ela acrescenta dizendo
que ela será novamente retirada da Praça da Liberdade junto com os
tapumes, ao final da obra. A outra era de um morador da praça . Isto
demonstra que há sim uma reflexão a respeito sobre o significado do
grafite ali na praça, e não podemos supor que a mera presença do grafite
ali significa a sua perda de sentido de resistência, apesar de todas as
críticas que se pode fazer a uma arte de rua em um local elitizado. Gitahy
(1999) traz também essa questão do grafite sair da rua e ir para espaços
mais elitizados, no caso, as galerias de arte. No entanto, para este autor,
isto não quer dizer nada em relação ao teor de resistência e transgressão
da obra, que permanece a mesma.
Como diz Lazzarato (2010), o capital destrói as subjetividades como
consequência dele mesmo criando oportunidades para se pensar
diferente. Então, ao mesmo tempo que vemos uma arte que surge como
resistência ser cooptada pelo capital, virando produto e espetáculo, o
resistir a isto aparecerá na reinvenção daquela arte. Então, é uma arte
que sai da periferia, mas que não se esvazia do seu significado – ele se
reinventa. Sobre isto, Betânia comenta:

Então, eu tenho visto que tem crescido, assim. Muito recentemente, mas
existe um viés. É muito doido, né, como é que também, o sistema dá um jeito
de se apropriar, né?! É uma cultura e uma arte, que ela nasce de contramão,
é totalmente uma crítica à sociedade, né, mas aí, hoje em dia, tipo assim, a
Nike quer grafite nas roupas dela. As grandes marcas, a Coca-Cola quer um
grafite na latinha dela... Então, o grafite, ele pode ser associado a muita
coisa, pelo mercado, sabe?! (Betânia)
134 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Não se questiona o fato de o grafite ser uma ocupação remunerada


ou de seus autores fazerem produtos inspirados neles, ou de vender a
sua arte. A crítica que fazemos vai em direção a uma apropriação da arte
urbana por um modo de produção capitalista, que segue uma lógica de
produção e consumo que desconsidera as pessoas em prol do capital
(Lazzarato, 2010).
Por isto, Betânia considera que grafites remunerados não são
grafites, justamente pela falta de liberdade criativa e pela perda de
espontaneidade.

o grafite hoje é popular. Eu acho que usar a terminologia grafite é


interessante pra um monte de coisa sabe, assim, isso chama a atenção... não
sei, traz talvez uma visibilidade pra coisa ali. Hoje eu já vejo muito design,
muita gente de outras áreas usando o grafite pra... pra tornar o seu trabalho
popular, pra ter seu trabalho reconhecido. Então, eu acho que é isso, eu vejo
por exemplo, eu participei recentemente de uma pintura não espaço com
vários outros artistas, chamava Festival de Grafite, sabe, assim...e aí, isso
atrai um público. Mas é... é uma coisa pra atrair os outros.

Para elas, esses trabalhos devem ser chamados simplesmente de


murais. Isso nos leva a um ponto interessante, de que para ela o grafite
precisa ter uma carga de transgressão associada. O grafite feito sob
autorização tem o consentimento do dono do grupo e, com isto, perderia
um dos seus elementos – a própria transgressão. Neste trabalho,
consideramos grafite independente dessa classificação, mas é
interessante notar essa classificação feita por uma das artistas, pois é
uma faceta de resistência à mercantilização do grafite, considerando
que um dos primeiros passos para o grafite ser pago é ele ser autorizado.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 135

Resistir a isto pode significar uma repulsa à cooptação do grafite pelo


capitalismo. Assim, o grafite permaneceria longe de trocas comerciais
e, a princípio, livre de relações capitalistas.
Outra característica que denota resistência é quando o artista não
aceita modificar seu traço porque está fazendo um trabalho pago. Isto
também não é unanimidade entre as grafiteiras, mas existem aquelas
que não aceitam fazer outros desenhos que não sejam aqueles que sejam
seus característicos, como Elisabeth nos conta:

(...) É... eu não faço trabalho comercial. A gente fala que trabalho comercial
é quando a pessoa paga, fala o que quer que a gente pinta, e a gente pinta,
né: “Ah, eu quero uma borboleta ou não sei o que, na minha casa”. Eu não
me identifiquei com esse tipo de trabalho. Tem pessoa que trabalha só com
isso, grafiteiro que vivem disso, mas eu não me identifiquei, assim. Então
eu busquei que meu traço tivesse uma força que as pessoas quisessem
aquele trabalho específico. Quisessem a indígena, não a borboleta. Não
desmerecendo a borboleta, porque a borboleta é linda. (risos)

Além dos produtos comerciais, outra possibilidade para


remuneração do grafite são os live paints, sobre os quais Elisabeth nos
explica:

Nós: O que é um live painting?


Elisabeth: É pintar uma tela, enquanto o evento está acontecendo, pras
pessoas verem a gente pintando a tela. É quase uma performance, né?! A
gente pintar e a pessoa assistir a gente pintar, durante o evento.

O live painting, conforme vimos em campo, é uma das facetas do


grafite que o espetaculariza. Talvez seja aí que o grafite mais perca seu
teor transgressor, quando ele passa de uma arte realizada às escondidas
136 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

a uma arte cuja própria produção passa a ser algo a ser assistido e
fotografado, conforme vimos na Praça da Liberdade.
Outra possibilidade da carreira de grafiteira é atuar como agente
cultural, como nos conta Luiza:

Hoje eu faço um curso de agente cultural que eu tô tendo uma base, mas
isso é hoje, depois de muitos anos que eu tô correndo atrás disso. E assim,
muita coisa, eu fui aprendendo, errando, quebrando a cabeça... lendo,
entendendo, perguntando pro outro que eu sabia que entendia, que tinha
paciência de explicar... então foi muito por essa linha assim. E eu acho que
artista no Brasil, todo mundo já sabe, né?! (...) E é uma resistência mesmo.
Você colocar seu próprio dinheiro, seu próprio material, seu próprio tempo,
que o tempo também... quanto tempo você vai escutar.... isso eu, não muito,
mas, eu sei das meninas que escuta a família falando “nossa, que você tá
ganhando com isso, né?! Nossa, tá perdendo dia em rua”...então, assim,
muito... tem gente que escuta isso até hoje.

O grafite feito em grupo, como na crew Amargem, abre 4

possibilidades de resistência, pois em grupo é possível se organizar sob


uma lógica diferente da requerida do capital, com mais força do que
individualmente. Em relação a este aprendizado, a crew também
funciona como espaço de compartilhamento de experiências e
conhecimentos. No entanto, até o momento de fechamento da fase de
campo dessa pesquisa, havia uma tendência à fragmentação do grupo
com as artistas buscando a carreira solo. Podemos entender a carreira
solo como uma servidão ao capital, pois representa o artista abrindo
mão da carreira em grupo para atender aos interesses do capital.

4
Crew é um termo que indica um grupo de grafiteirxs.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 137

Para Luiza, resistir também está ligado a insistir na carreira


artística, apesar das dificuldades:

E eu acho que artista no Brasil, todo mundo já sabe, né?! Então assim, se a
gente não correr atrás... eu acho que é o mínimo assim, que a gente tem um
pouco de acesso, pra gente querer mover um pouco. (Luiza)

Além disto, o grafite também está associado a uma atividade lúdica:

Porque, o grafite, ele é uma arte, que se pode ganhar dinheiro com ela. Mas,
as pessoas que fazem grafite, elas gostam de pintar por pintar também. Ela
num quer o tempo todo ganhar dinheiro. Às vezes, ela quer sair e pintar de
bobeira, pra dar um rolê, conversar, trocar ideia... ficar ali sozinho... então,
o grafite é uma arte, que ela tem essa possibilidade. Então, as pessoas, às
vezes, elas não entendem isso. (Luiza)

Observamos em campo também como a questão do vestuário é


forte para as grafiteiras. Elas não podem ir pintar simplesmente do jeito
que se sentem mais à vontade, e sim de uma forma em que minimizem
o assédio masculino. Dessa forma, é uma triste faceta da resistência
vencida das mulheres em relação ao machismo, pois elas tiveram que
ceder a usar roupas que cobrem seus corpos como forma de terem seu
trabalho reconhecido.
Além das roupas, elas também resistem pouco ao mansplaining, que
é quando o homem explica para uma mulher algo óbvio, por julgar que
ela não seria capaz de entender aquilo sozinha. No caso do grafite, vimos
homens arrancando sprays das mãos de grafiteiras com mais de dez
anos de experiência para lhes ensinar como se manuseava aquela
ferramenta. No entanto, em nenhum momento, as vimos protestarem
138 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

quanto a isso e tivemos a sensação de que se tratava de algo tão


arraigado em seu cotidiano que elas nem davam mais atenção a isso.
Apesar disto, não é fruto do acaso a criação de uma oficina de
grafite feminino, o que pode sim ser interpretado como uma forma de
resistência a este machismo institucionalizado. Se a elas é negado o
aprendizado e a livre expressão em conjunto com homens ou nas ruas,
elas se organizam e estudam sozinhas.
Constitui-se também resistência apropriar-se de espaços
proibidos da cidade, fazer grafites em locais não autorizados. No
entanto, é difícil resistir a isso quando existe uma penalidade legal
associada. Ao mesmo tempo, o grafite torna-se uma transgressão
permitida em alguns lugares porque virou adorno de uma cidade que é
consumida e virou sinal de bom gosto assemelha-se a metrópoles que
abraçaram o grafite, como Nova Iorque.
Resistir significa dar visibilidade ao trabalho feminino, a figura do
negro, do indígena, e, neste sentido, os grafites analisados constituem
resistência. Por outro lado, ao considerarmos que, em maio de 1968, os
grafites faziam partes de manifestações e hoje são mercadorias,
podemos considerar que o grafite entrou no mundo capitalista e agora
se guia por alguns preceitos do capital.
Estes pontos são interessantes para pensarmos em possíveis
contradições entre os sentidos do grafite ao longo do tempo,
principalmente problematizando a sua inserção numa lógica capitalista.
Será que, ao se transformar em produto, o grafite se torna outra coisa?
Será que, ao se tornar passível de ser negociado, o grafite perde seu
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 139

caráter crítico? Existe uma essência do grafite ou ele é algo que vai se
transformando ao longo do tempo?
Para Guattari e Rolnik (1996), a criação da arte já se constitui em
um ato de resistência, porque não há sistemas para controlar sua
criação, assim o caráter crítico do grafite ainda está presente na sua
produção. No entanto, há formas de controlar sua distribuição e
consumo, o que contribui para sua cooptação pelo capitalismo. Nesse
contexto, a subjetividade criada possui elementos de resistência, mas
também colocam as pessoas em uma relação semiótica em que tudo vira
uma relação de consumo, inclusive os próprios artistas, uma vez que
existe apenas uma subjetividade com o poder de absorver todas as
demais – a subjetividade capitalística – considerando o capital torna-se
o estruturante das relações humanas.
A produção de subjetividades se dá via sujeição social e servidão
maquínica (Lazzarato, 2010), sendo que, na sujeição, o indivíduo recebe
uma subjetividade quando é entregue a ele uma identidade pré-
fabricada, para atender as necessidades do capital. Paralelamente, na
servidão maquínica, ocorre uma dessubjetivação, uma destruição da
consciência. É na intersecção desses movimentos que há a possibilidade
de construção de uma nova subjetividade, com oportunidade para a
singularização. Neste sentido, é difícil constituir uma resistência
porque é preciso pensar em novas instituições a nível macropolítico
para representar uma barreira a isto.
A produção de subjetividades é elemento importante para todo tipo
de produção, e no grafite não é diferente. As grafiteiras são trabalhadoras
sociais, pois desenvolvem um trabalho pedagógico ou cultural voltado
140 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

para uma comunidade. Neste sentido, estão numa encruzilhada política,


pois, ao mesmo tempo que constituem em uma voz de resistência ao
sistema, passam por uma movimento de cooptação pelos sistema, estando
numa posição ambígua. Há uma tendência a compactuar com o sistema
porque a subjetividade capitalística é a dominante. No entanto, há
possibilidade de resistência via desvio e singularização.
Para Guattari e Rolnik (1996) o capitalismo parece ser a lógica do
mundo. Existe uma força da subjetividade capitalística que vigora tanto
entre oprimidos quanto entre os opressores, reforçando este
pensamento. No entanto não é este o único destino, pois existem formas
de resistências, as revoluções moleculares, que são resistências contra
a serialização das identidades, o que ocorre no grafite com cada uma
delas tendo um traço bem definido, valorizando seus processos de
singularização. No momento em que estão fazendo um trabalho
comercial, podem estar resistindo, não aceitando modificar sua
identidade visual, como faz Elisabeth, ou não, como faz Luiza, que aceita
fazer qualquer desenho que a pessoa queira quando é contratada, numa
tentativa de se encaixar ao que o mercado espera delas.
A revolução molecular diz respeito à produção de condição não
apenas de uma vida coletiva, como no caso das crews, quanto de uma
vida para o próprio indivíduo. Quando um grupo social rejeita algo,
abre-se a possibilidade de resistência ao que está vigente, por isso
defendemos aqui que a organização das grafiteiras em grupo constitui
uma estratégia de resistência. Conforme diz Didi-Huberman (2011), isso
abre oportunidade para que elas possam, via união, se juntarem e se
fazerem fortes.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 141

Existem, no capitalismo, duas promessas de emancipação. Uma


delas diz respeito ao trabalho imaterial ou empreendedorismo de si –
que seria a possibilidade do indivíduo viver de forma autônoma e
independente de um emprego formal. As grafiteiras são empurradas
nessa direção do empreendedorismo, como forma de organização de seu
trabalho e a observação em campo nos mostra que realmente isto é
considerado como modo de vida. Não vimos em nenhum momento esta
ordem ser questionada. É exigido do indivíduo uma maior autonomia,
compromisso e iniciativa, o que seria imprescindível para a sua
empregabilidade. Não é fácil resistir, mas também não é fácil ser
cooptado pelo sistema. Ser empreendedor de si e gerenciar uma carreira
solo também é uma coisa que exige esforço.
Na resistência há uma recusa em aceitar o homogêneo, como
resposta ao empobrecimento da resistência advogado pelo espírito
empreendedor.

Eu acho que o ato, só o ato de eu tá pintando, deu tá pintando um rosto


feminino e d’eu ser mulher pintando na rua, já é um ato político, um ato de
resistência. (Letícia)

Ser melhor do que os homens em qualidade técnica é algo que lhes


confere credibilidade frente ao trabalho desenvolvido pelos homens.
Apesar de tentarem resistir, acabam cedendo ao abdicarem de suas
formas de se vestir para se protegerem dos homens.
Para Ramos (1994), o grafite pode ser considerado como uma
rebelião contra a civilização industrial. O espaço é político porque diz
respeito a noções de territorialidade que são exploradas no grafite.
142 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Nesse contexto, constitui uma resistência definir onde vai ser realizada
a pintura, ao passo que só pintar em lugares autorizados denota certa
passividade.
Para Baudrillard (1979), escrever seu nome na parede já é um modo
de resistência no meio da subjetividade massificada, pois é um tipo de
desvio da norma e esforço de singularização. Ainda para o autor os
grafites, quando reprimidos e considerados apenas como meras obras
de arte, foram cooptados pelo sistema. No entanto, acreditamos que
nem sempre essa visão do autor é verdadeira, uma vez que podem haver,
sim, signos transgressores ocultos nas obras que passam despercebidos
para quem não tem olhos treinados para percebê-las.
Conforme Rink e Mattrau (2010), os grafites e pichações podem ser
interpretados como processos de subjetivação pois envolvem criação. É
importante buscar modos criativos para lidar com o mundo e produzir
resistência pela propriedade de vencer a força que assujeita produzindo
novas formas de viver. Os autores ainda argumentam que, para alguns,
o grafite da atualidade se tornou a pichação permitida e por isso morreu
politicamente. Mas, por outro lado, “a prática de grafitar se vista pela
ótica de um conceito corresponderia à possibilidade de cidadãos e
pessoas desconhecidas atuarem subversivamente no cenário público”
(Rink & Mattraup, 2010, p. 87). Se o grafite foi engolido pelo capitalismo,
pensaríamos na lógica de um capital que produz exclusivamente
consumidores; nesta visão, o grafite não poderia ser outra coisa além de
mercadoria. No entanto, não concordamos com essa visão de que o
grafite deve ser uma coisa ou outra, e sim que as duas possibilidades
coexistem, sendo o grafite mercadoria e resistência ao mesmo tempo.
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri • 143

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Rink e Mettrau (2010), Deleuze e Guattari, em suas obras, nos


ajudam a entender que os grafites podem ser compreendidos como
processos em que se forma a subjetividade, pois, para estes autores, é
através da criação que se atende ao desejo que se produzam novos
territórios.
Podemos considerar que o grafite a princípio fez parte de uma
contracultura, mas que agora está sendo cooptada pelo capitalismo,
apesar de ainda haver sinais de resistência. Por exemplo, há resistência
do grafite enquanto arte e reinvenção da arte, como reflexos das lutas
que se manifestam na cidade pela ocupação dos espaços.
No entanto, podemos considerar que há irresistência dos grafites
quanto à sua temática e quando ele se espetaculariza. Essa
espetacularização foi observada principalmente em eventos de grafite,
quando o foco deixa de ser o grafite e passa a ser o fazer grafite,
esvaziando o seu significado em alguns casos. No entanto, a
rentabilização do grafite não é o grafite. O grafite virou sim uma
mercadoria, mas, ao mesmo tempo, ainda é uma forma de resistência
na cidade. O capitalismo só suporta as vozes que defendem ou que
servem a seus interesses (Tiburi, 2018). Daí vem o grafite enquanto
resistência. O lugar de fala pede um lugar de escuta. Se essa escuta não
vem de forma espontânea, faz-se necessária a luta que se manifesta na
forma de resistência, de convite ao diálogo. O grafite é como um
vagalume descrito por Didi-Huberman (2011), o qual incomoda e
convida a uma reflexão.
144 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Para alguns artistas, o grafite “de verdade” seria aquele ausente de


transações comerciais, o que eliminaria seu caráter transgressor,
transformando-o em outra coisa – um mural – mesmo que os desenhos
envolvidos sejam iguais. Não comungamos desta opinião de que não é a
venda do grafite que determina se ele é uma obra de resistência ou não,
e sim o seu significado.
Concluímos também que é forte neste meio o discurso
empreendedor – principalmente as noções de que o sucesso pode ser
considerado pelo próprio esforço e que se pode chegar aonde quiser
apenas por mérito pessoal. Sabemos que isto faz parte do discurso
neoliberal (Lazzarato, 2010) e que, na realidade, elas vivem uma situação
de trabalho precarizado. No entanto, apesar de o capitalismo parecer
ser a lógica do mundo, elas resistem via desvio e singularização ao
fazerem obras autorais, escrever seus nomes em paredes. Há também
resistência quando se retrata a figura das minorias – do negro, da
mulher, do índio, do nordestino.

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PARTE 2

CIDADES, TECNOLOGIAS E DIFERENÇAS


6
CIDADES, TECNOLOGIAS, DIFERENÇAS E VIDA SOCIAL
ORGANIZADA: PASSOS DE UMA AGENDA INTEGRADA
Luiz Alex Silva Saraiva 1

PRIMEIROS PASSOS

A tarefa de trabalhar como pesquisador em um país como o Brasil,


em que historicamente a educação tem sido pouco priorizada, é árdua.
Isso não impede, contudo, que a educação, em particular a de nível
superior em universidades públicas, constitua uma carreira
interessante em face das possibilidades que suscita. A pesquisa, em
particular, é um dos grandes trunfos da carreira acadêmica, e neste
capítulo discutirei uma experiência específica, no Núcleo de Estudos
Organizacionais e Sociedade (NEOS), da Faculdade de Ciências
Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Fundado em 1991 no Departamento de Ciências Administrativas da
Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG como GGI – Grupo de
Gerência Internacional e Alianças Estratégicas pela Professora Suzana
Braga Rodrigues, com o ingresso do Professor Alexandre de Pádua
Carrieri em 2002, este grupo passou a ser denominado Núcleo de
Estudos Organizacionais e Simbolismo (NEOS), sendo compatível com
os interesses de pesquisa que este professor possuía na época. Com o

1
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da
Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
saraiva@face.ufmg.br.
150 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

desenvolvimento das pesquisas, o núcleo passou a se chamar Núcleo de


Estudos Organizacionais e Sociedade, mantendo a mesma sigla. Esta
mudança de nomenclatura permitiu uma ampliação considerável de
perspectivas epistemológicas, teóricas e metodológicas, o que precedeu
uma grande expansão das atividades a partir do final dos anos 2000.
Ingressei no grupo em 2006, no início do doutorado, e alguns anos
após a conclusão da minha tese, em 2009, me tornei subcoordenador.
Data aproximadamente dessa época uma primeira reformulação geral
de atividades, com o início das atividades da Farol – Revista de Estudos
Organizacionais e Sociedade e a publicação de novo site, com maior
articulação entre os distintos projetos levados a cabo pelo núcleo.
Operamos dessa forma alguns anos, e a chegada de novos professores
ao núcleo demandou que nos reorganizássemos, mais uma vez. Mais
recentemente, passamos a nos organizar por meio de GETs (Grupos de
Estudo e Trabalho), que abrigam linhas de atuação específicas de acordo
com os interesses dos oito pesquisadores do núcleo.
Os sete GETs do NEOS – 1) Cidades, tecnologias, diferenças e vida
social organizada; 2) Cultura do Management; 3) Organização, Ciência e
Natureza; 4) Organizações e Literatura; 5) Produção social do cotidiano,
história e memória da gestão na vida organizada nas/das sociedades; 6)
Raça, Gênero e Sexualidade; e 7) Trabalho, Subjetividade e Política – são
autônomos, com agendas e atividades próprias de ensino, pesquisa e
extensão, articulados em torno de um núcleo gestor que organiza as
atividades para evitar sobreposições, conforme já detalhei em outro
momento (Sá et al., 2020).
Luiz Alex Silva Saraiva • 151

Neste capítulo, eu me debruço sobre alguns passos da agenda


integrada de pesquisa “Cidades, Tecnologias, Diferenças e Vida Social
Organizada”, levada a cabo no GET de mesmo nome no Núcleo de
Estudos Organizacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal de Minas Gerais, sob minha coordenação.
Pretendo apresentar de forma breve cada um dos elementos da referida
agenda, e como eles dialogam entre si em uma rica e promissora base
que tem originado muitos estudos interessantes no campo de estudos
organizacionais. Penso que romper os limites disciplinares, e forçar
mesmo o que se considera como “fora da curva” é tarefa dos que se
dedicam à pesquisa, particularmente sob a égide de um pensamento não
positivista, como tem sido feito no NEOS.

UM PASSO PARA TRÁS – PARA REFRESCAR A MEMÓRIA E AVALIAR O


PERCURSO

Quando fiz o concurso para Professor Associado em 2019, um dos


examinadores foi assertivo quanto à necessidade de que eu trabalhasse
de forma “mais estratégica” na universidade, otimizando esforços tendo
em vista quem eu desejava ser como Professor Titular. O comentário se
devia ao fato de eu tinha nove áreas de interesse declaradas na época, o
que, apesar de muito estimulante, me faziam dispersar energia. Não
obstante sempre ter sido muito organizado do ponto de vista do
trabalho, e isso de certa forma arrefecesse os efeitos, eu sentia uma
crescente sobrecarga e problemas iniciais de falta de foco, o que
provavelmente começaria a criar situações desnecessárias de tensão e
de frustração. O alerta da colega mais experiente me pôs nos trilhos, por
152 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

assim dizer. E isso significou um período muito interessante de


autorreflexão, no qual pude sobrepesar várias questões pessoais e
profissionais.
Uma análise curricular na época mostrava que eu tinha uma
atuação profissional interessante, mas que carecia, em geral, de pontos
de convergência. Muitos temas explorados, mas de forma pontual e com
pouca amarração entre si. Isso era expresso em projetos de pesquisa
com temáticas amplas, inovadoras, oportunas, mas sem continuidade,
sugerindo a ausência de linhas de investigação mais sólidas. Além disso,
outra questão que era evidente era o foco em pesquisa, mas
desarticulada do ensino e da extensão. As publicações refletiam esta
dispersão. Embora distribuídas em periódicos e livros interessantes e
de boa qualidade, careciam de uma direção comum, que otimizasse
esforços e que permitisse articulação com o ensino e com a pesquisa.
O ensino, embora contasse com a oferta de uma gama significativa
de disciplinas optativas tanto na graduação quanto na pós-graduação,
carecia da mesma falta de um fio condutor que as articulassem. As
disciplinas terminavam, assim, por ser uma espécie de respostas
pontuais a demandas que se apresentavam aqui e ali, sem maiores
desdobramentos e reflexões sobre como a oferta era planejada e levada
a cabo. Havia, por exemplo, grande oferta de disciplinas que associavam
estudos urbanos a estudos organizacionais, mas pontualmente ligadas
a interesses de projetos de pesquisa desenvolvidos por mestrandos e
doutorandos, e não a uma perspectiva mais ampla, diria mesmo
estratégica, de minha parte. Graduação e pós-graduação pouco
conversavam nesse sentido, sendo apenas formal a integração entre os
Luiz Alex Silva Saraiva • 153

dois níveis de formação, na medida em que os estudantes precisavam


realizar estágio docente, um dos requisitos de sua formação, e era
desejável que isso fosse ligado aos seus temas de trabalho, mas sem
maiores articulações.
Até então, a extensão era o “patinho feio” do meu currículo, o que
de certa forma refletia os padrões gerais da universidade, nos quais a
pesquisa sempre figurou como estrela maior, o ensino como parte
obrigatória na missão de formação, mas mais como um requisito
obrigatório e sobre o qual pouco se refletia e se criava, e a extensão
“corria por fora”, como se fosse algo dispensável da formação dos
estudantes e na minha própria atuação e mais, como se a integração
entre ensino, pesquisa e extensão prevista na Constituição Federal nada
tivesse a ver com a formação superior.
Esta autoanálise franca me colocou diante de questões que me
desafiavam frontalmente. Pelo tempo de carreira eu poderia prosseguir
mais ou menos da forma como estava sem maiores problemas, já que na
universidade, como pessoas diferentes possuem perspectivas e
trajetórias distintas, eu tinha muitos colegas que pouco fizeram, ou
nada fizeram de extensão e haviam conseguido progredir sem maiores
problemas. O mesmo quanto a pensar ensino e pesquisa de forma
articulada. Mas esta era uma questão sensível para mim, uma franca
fonte de incômodo. As provocações da banca examinadora me
assombravam na medida em que eu me importava com o meu próprio
trajeto e a minha contribuição para a universidade de que eu fazia parte.
Eu sentia, pelos temas que me interessavam, que podia dar um
passo além articulando ensino, pesquisa e extensão em torno de
154 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

algumas temáticas centrais. Mas me faltavam elementos para


identificar com clareza que pontos eram esses – e como poderiam ser
gerenciados, literalmente: de forma irônica, o administrador que sou
precisava planejar, organizar, dirigir e controlar para conseguir
alcançar seus objetivos. Eu, que sempre rejeitara a funcionalização da
vida, em especial nas organizações, me via diante de uma situação em
que, para poder seguir na direção que desejava, precisava administrar a
situação. Os elementos me pareciam à mão, quase como se pudesse tocá-
los, mas não conseguia identificá-los com nitidez.
Das muitas coisas boas que tirei do concurso para professor
associado foi esse olhar ao mesmo tempo voltado para a universidade em
que você está e para a qual você contribui com o seu trabalho e para a sua
própria carreira, entendida como uma série de escolhas a respeito de
percursos mais ou menos interessantes em termos pessoais e
profissionais. As provocações da banca, que me levaram a um autoexame
franco a respeito da minha própria trajetória, também indicaram que se
eu quisesse dar um salto qualitativo na minha carreira, precisava pensar
no próximo nível, isto é, como um professor titular, para isso fazendo um
uso mais inteligente dos recursos à minha disposição.
Todo esse processo me levou à conclusão que há três grandes eixos
no trabalho que desenvolvia há alguns anos, e que, ainda que
desarticulados naquele momento, eram sem dúvida estruturantes das
minhas concepções e práticas de ensino, pesquisa e extensão na
universidade: cidade, tecnologias e diferenças. Depois de algum tempo,
percebi que tais eixos eram permeados por um quarto elemento, a vida
social organizada. Mas vamos por partes.
Luiz Alex Silva Saraiva • 155

DOIS PASSOS PARA FRENTE – PARA ORGANIZAR O TRABALHO

Por que cidades, na Administração? Esta questão não é trivial,


apesar de parecer que a resposta esperada é: “porque as cidades
precisam ser administradas!”. Formação não implica destino
inescapável e, apesar de minha formação em Administração nos níveis
de Bacharelado, Mestrado e Doutorado, nunca tive a pretensão de
administrar o que quer que fosse. Como nunca tive pendores para a
gestão, pude me encontrar na pós-graduação stricto sensu e ver que
poderia me especializar nos Estudos Organizacionais, um campo de
conhecimento interdisciplinar informado, mas não circunscrito pela
Administração. Adotando uma perspectiva bastante crítica até mesmo
das pretensões científicas das ciências administrativas (cf. Burrell,
1998), os estudos organizacionais dão margem a reflexões
surpreendentes para os estritamente comprometidos com uma visão
funcional e racionalizada da universidade e suas distintas áreas
científicas. Sem saber, era o que eu buscava.
Apesar de se tratar de um campo de conhecimento
hegemonicamente positivista, esta nunca foi a minha filiação, razão
pela qual a cidade entrou na minha agenda distante do olhar da
administração pública de algo “a ser administrado”. Sempre levei a que
“uma cidade é mais do que um espaço delimitado em que uma dada
população reside. Ela é, de fato, o seu povo...” (Saraiva & Carrieri, 2012,
p. 574), e por isso as pessoas na cidade, e as formas pelas quais elas levam
a cabo suas existências, em particular as formas pelas quais elas se
organizam, sempre foram do meu interesse direto. Para mim isso
156 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

sempre foi mais importante do que sua disposição urbanística ou seus


equipamentos e monumentos, apesar de ter publicado trabalhos nessa
linha, como em Silva e Saraiva (2019), Correia, Colares e Saraiva (2017),
Saraiva, Carrieri e Soares (2014), Carrieri e Saraiva (2008), Carrieri et al.,
(2008) e Saraiva e Machado (2007).
Todavia, quanto pesquisador, meu olhar sempre se voltou para as
pessoas, que são a cidade. Tenho consciência de que essa visão pode ser
um tanto quanto romântica, porque uma cidade, em especial no Sul
Global, possui heterogeneidades difíceis de ignorar. E que raramente
elas são tomadas pelo que são na maior parte do seu território: inchadas,
pobres, violentas e desiguais. Todavia, isso não me impede de me
debruçar sobre partes da cidade e conhecê-las em profundidade
mediante abordagens qualitativas de investigação. A escolha de
profundidade em detrimento da generalização se reflete em uma sólida
agenda de pesquisas sobre cidades que caminha para duas décadas.
A cidade que me interessa, definida pelas pessoas em suas
diferentes particularidades e configurações sociais, precisa de um
aparato que possa acolher aspectos muito distintos, mas que compõe o
mosaico urbano. A cidade a que refiro, assim, pode ser de lavadores de
carro e flanelinhas e a forma pela qual eles são construídos de forma
discursiva na mídia (Bretas & Saraiva, 2013), de um grupo de pessoas
negras e periféricas que se reúne no centro de Belo Horizonte para
dançar soul music (Coimbra & Saraiva, 2014; Coimbra & Saraiva, 2013), de
camelôs removidos para shoppings populares (Perdigão, Carrieri &
Saraiva, 2014), de pichadores que registram visualmente sua existência
em uma cidade que os exclui (Viegas & Saraiva, 2015), de idosos
Luiz Alex Silva Saraiva • 157

ocupando uma das principais praças da cidade, o que leva à reflexão


sobre o quanto o urbano se preocupa com o envelhecimento (Colares &
Saraiva, 2016), dos ditos “hippies” e sua resistência às formas
hegemônicas de sociabilidade de trabalho (Gomes, 2016).
Esta cidade pode ser ainda composta de pessoas em situação de rua,
a forma como isso como desafia os estudos organizacionais (Honorato
& Saraiva, 2016), os discursos e políticas sociais (Honorato & Saraiva,
2017), e como eles subvertem a ordem estabelecida (Honorato, Saraiva &
Silva, 2017), de jovens negros e periféricos que ousam levar a cabo
práticas de lazer em shopping centers (Nascimento et al., 2016), da relação
entre estética, simbolismo e a produção urbana (Saraiva, 2017; Saraiva
& Carrieri, 2014), de quilombolas urbanos e seu direito à terra em que
construíram sua resistência (Silva, 2019) e a um trabalho que não
envolva apenas a subsistência (Silva & Saraiva, 2020), de mulheres
negras periféricas e seus processos de subjetivação em bailes funk na
favela (Santos, 2020), de candomblecistas e seu direito à liberdade de
expressão religiosa e cultural (Gomes, 2022),de festas populares como o
carnaval e seus inúmeros não ditos (Rezende & Saraiva, 2022), entre
outras pessoas (e cidades) possíveis.
Em Saraiva (2019a, p. 22), assumo que a cidade:

se situa em uma paisagem do ponto de vista geográfico, constitui um espaço


específico repleto de lugares situados e percebidos simbolicamente, e de
inúmeros territórios em disputa pelos que a habitam. Eivada de edificações
e vias, sujeita a limites e regulamentações, habitada por pessoas que
pertencem a grupos sociais diversificados, a cidade se vê concretamente
experimentada de maneira distinta pelos diversos grupos urbanos, o que
158 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

multiplica as possibilidades de aproximação e de análise, bem como os


desdobramentos para sua compreensão.

Trata-se, a rigor de uma megaorganização que abriga organizações


(Fischer, 1996), em uma escala que dificilmente é tomada como um
fenômeno organizacional tomado na perspectiva hegemônica. Mas ouso
insistir nas dimensões organizacionais do urbano em razão de
encontrarmos inúmeras evidências de um cerne organizacional nos
estudos urbanos, o que transcende a perspectiva funcional de algo a ser
administrado. Dois desses elementos, tecnologias e diferenças, são
aspectos centrais nas organizações e, também compõem este cenário.
Sobre tecnologias, não é preciso ir longe no conceito: referem-se a
formas de mediação, materiais ou não, pelas quais as pessoas se
relacionam com o contexto em que se situam. Este conceito, amplo e
vago assim, é plural, uma vez que depende de quem está envolvido na
situação. Trata-se, assim, de tecnologias, no plural. Tecnologias que vão
de elementos mecânicos, hidráulicos, computacionais, linguísticos,
simbólicos etc. Virtualmente qualquer tipo de conhecimento humano
possui o potencial de ser tomado como tecnológico, depende de haver
uma possibilidade de mediação.
No âmbito específico do Grupo de Estudo e Trabalho Cidades,
tecnologias, diferenças e vida social organizada, enxergarmos estas
tecnologias mediando aspectos de alguma maneira alimentados pela
existência humana nas cidades. Entre esses, o foco do GET tem sido um
fenômeno recente, mas avassalador, as plataformas virtuais, que tem
alterado algumas das bases do capitalismo, ao mesmo tempo em que
Luiz Alex Silva Saraiva • 159

intensificam outras, como o processo de acumulação. O espírito


humano se vê afetado pelas tecnologias (Turkle, 2005), sendo as vidas
pressionadas a se ajustar a uma lógica produtiva na qual precisam ser,
antes de qualquer coisa, aptas para o consumo (Bauman, 2008), sendo o
amor, nos termos de Illouz (2011) um vestígio do que foi, atualizado no
sistema de produção capitalista. As tecnologias atualizam a acumulação
capitalista mediando de forma irrestrita, a exemplo do aluguel de
imóveis, da mobilidade urbana, de compras em variados segmentos, da
alimentação, e, em particular, no que se refere a relacionamentos, o que
tem sido foco de atenção dos pesquisadores deste GET.
As investigações nessa linha levadas a cabo pelo NEOS têm
dialogado com a sociologia digital, que tem se debruçado de forma
crescente sobre as possibilidades das mídias digitais, conforme Padilha
e Facioli (2018) e Miskolci (2009). Em produções recentes, aplicativos de
relacionamento voltados para homens gays e bissexuais como o Grindr
e o Scruff tem sido examinados, com discussões muito provocativas a
respeito da forma pela qual os usuários se organizam em resposta aos
algoritmos destes aplicativos (Saraiva, 2021a), o papel da solidão como
grande motor desse segmento, uma vez que apesar das promessas de
encontro, contar com usuários sozinhos é que ativa o negócio (Saraiva
& Vasconcelos, 2021), e o quanto esse processo implica uma verdadeira
economia digitalizada dos corpos (Vasconcelos & Saraiva, 2021).
Em Saraiva, Santos e Pereira (2020) foram exploradas algumas das
dimensões presentes em tais aplicativos, como o fato de independente
de ser concebido para um público gay e bissexual, toda a lógica do
aplicativo é baseada em uma perspectiva heteronormativa de
160 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

masculinidade, com a reprodução digital de muito do preconceito


existente nas relações sociais presenciais. Um ano antes, eu já discutir
que não obstante o discurso de “construir pontes” entre homens gays
por meio da tecnologia, os aplicativos de relacionamento implicavam
alterações e permanências nas dinâmicas de virtualidade e de
sociabilidade entre os seus usuários.
As cidades são o palco para onde ocorrem as mediações pelas
tecnologias, um cenário que só é possível se forem assumidas as
diferenças como constitutivas de quem somos enquanto seres humanos.
Historicamente as diferenças foram relegadas a um lugar de
excepcionalidade na sociedade, já que a ordem e o ajuste a essa ordem
era que definia o que era “normal” em termos sociais. Esta visão do que
é ou não é normal, do que se enquadra ou do que não se enquadra no
que é socialmente esperado configurou um horizonte de apagamento de
diferenças e de assunção de estereótipos de funcionalidade social que
não são as únicas formas de sociabilidade em um mundo como o de hoje
(Saraiva, 2020a).
Dos pós-estruturalistas do final dos anos 1960 vem uma série de
referências importantes, como a de diferenças e a de performatividade,
para orientar vidas que se desenrolam em uma sociedade cada vez mais
fragmentada e plural, na qual os atravessamentos são múltiplos sobre
as pessoas. Todos somos simultaneamente várias coisas ao mesmo
tempo, frequentamos vários circuitos sociais, interagimos com pessoas
de círculos distintos, e isso não o fazemos a partir de uma essência única
e imutável. Pelo contrário, performamos nossas interações à medida
Luiz Alex Silva Saraiva • 161

que as diferenças das pessoas com quem interagimos demandam ajustes


e adaptações a fim de nossas relações existirem.
A vida, especialmente em sociedade, é incerta e ambivalente
(Demo, 2003), o que faz com que existir e conhecer sejam aspectos
complexos, razão pela qual nos afastamos de conceitos e noções
“digeríveis” e “passíveis de gerenciamento”, como a de diversidade
organizacional, perspectivas essas esperadas e mesmo desejadas no que
é hegemônico nos estudos organizacionais. Em essência, a base de
operação é a mesma de sempre da Administração – aproximação de uma
ideia original interessante e disruptiva no seu campo de origem,
deformação da ideia mediante recortes e adaptações que terminam por
desfigurar o conceito original e, por, fim, ampla disseminação de uma
ideia empobrecida, mas com forte potencial de reprodução e mesmo de
comercialização – um verdadeiro ciclo produtivo do conhecimento (ou
de algo que se parece com ele) em uma perspectiva prêt-a-porter.
As diferenças que nos interessam não são gerenciáveis. São de
difícil verbalização porque se referem a quem nós somos, a como
vivemos nossas vidas, às escolhas que fazemos ou que somos forçados a
fazer por ser quem somos, e nem sempre isso significa clareza
conceitual ou consciência cognitiva: somos o que somos no infinito de
nossas diferenças, como bem coloca Deleuze (2006). Não sabermos como
verbalizar ou como definir nossas existências e nossas diferenças não
as fazem menos importantes que outras, bem definidas e ajustadas à
ordem social. A possibilidade de existir, de ser quem se é do ponto de
vista das diferenças é que marca nosso interesse (Saraiva, 2020b).
162 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Investigar os ditos “diferentes”, assim, é um exercício interessante


para uma academia acostumada a ser “a dona” dos conceitos. Em uma
tradição que remete muito a Platão, a possibilidade de definir uma ideia
e depois ver em que medida o real consegue lhe corresponder termina
sendo um esquema de submissão da realidade ao plano da idealidade,
algo perigoso em se tratando de uma sociedade baseada em uma noção
de ordem de Durkheim (2016). Isto é, se você é “diferente” na sua vida,
na sua existência, é porque não entendeu o que é “normal”, ou se
esforçou para sê-lo, um argumento que torna a diferença como desvio
a ser corrigido e que tem sido a base de muitas organizações que negam
as diferenças como comunidades terapêuticas, por exemplo.
Cidades, tecnologias e diferenças são perspectivas inter
relacionadas e que se articulam em torno de um fio condutor comum, a
vida social organizada. Considero que a noção hegemônica de
organização não consegue dar conta da dinâmica social porque seu foco
está no que é econômico, uma vez que organização é um grupo de
pessoas voltado para o alcance de objetivos comuns. Esta visão, que
pressupõe harmonia e racionalidade predominantemente econômica,
não corresponde às formas pelas quais se vive em sociedade. Por isso
adotamos no GET o conceito de vida social organizada. Este conceito:

se refere a como os distintos grupos sociais põem em prática a organização


de suas múltiplas formas de existência em sociedade. Isso implica
considerarmos as diversas concepções e práticas pelas quais esses grupos
planejam, organizam, controlam, representam, ressignificam, resistem,
narram e preservam a suas histórias e memórias, levando a cabo dinâmicas
plurais e construídas em diversos sentidos, só para ficar em algumas
dimensões. Trata-se de um objeto de análise organizacional por excelência,
Luiz Alex Silva Saraiva • 163

já que o organizar transcende a ideia de resultados a serem alcançados. As


pessoas envolvidas, suas dimensões subjetivas, suas diferenças, seus
propósitos, o próprio processo e suas variáveis, bem como aspectos
institucionais também compõem o que organiza a vida social é, e, portanto,
integram este quadro de referência (Saraiva, 2020a, p. 13).

Há vários pontos que são de certa forma informados por este


conceito, mas gostaria de destacar alguns pontos neste texto para não
estender de forma demasiada, ligados à pluralidade de existências e
como ela desafia a academia. Mesmo com alto nível de escolaridade, e
mesmo nos campos de conhecimento sensíveis às diferenças de toda
ordem, os pesquisadores são acostumados a partir para o campo
munidos de conceitos, que precedem as interações que por lá
acontecerão. Tais conceitos “enquadram” os pesquisados dentro de uma
forma confortável aos pesquisadores, uma vez que a teoria e a
metodologia em conjunto definem limites e abordagens adequadas para
interagir com as pessoas, tomadas como “objetos de pesquisa”. Nada
mais distante de como a vida realmente se mostra à academia, e por isso
não surpreende que tantas comunidades periféricas se recusem a
participar de pesquisas da universidade.
Isso é sintoma de uma grande incapacidade de interlocução que se
deve ao fato de que falta uma efetiva horizontalidade aos membros da
academia para tratar os grupos que eles investigam como parceiros,
pessoas que não se pesquisa “sobre”. Se são pessoas diferentes, e que
precisam ser consideradas de forma equânime a partir de suas
diferenças, precisamos aprender com elas e, portanto, a fazer pesquisa
164 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

“com” elas, o que implica rever nossos autorreferenciados esquemas de


investigação. Concordo com Dadusc (2014, p. 58) quando afirma que:

deslocar e reconhecer os pontos de vista dos pesquisadores não é suficiente


para desafiar as relações de poder que a produção de conhecimento implica,
como métodos de pesquisa frequentemente tendem a reproduzir a dialética
positivista entre objeto e sujeito de conhecimento, e relações hierárquicas
entre teoria e práxis, pesquisadora e pesquisada, acadêmica e ativistas.
Embora possa ser impossível sair completamente das normas que
governam modos de pensamento acadêmicos, é importante problematizar
os efeitos exercidos pelos acadêmicos de verdade, e refletir sobre como se
engajar em modos de pesquisa que não sejam apenas orientados para
universidades e governos, mas que em si mesmas funcionam como práticas
de resistência (tradução nossa).

Como disse em outro momento (Saraiva, 2020b), isso é o mínimo


que precisamos fazer para nos afastarmos de esquemas que, no fundo,
tratam as pessoas como “objetos”, tal como se fossem ratos de
laboratório à nossa disposição para quando neles tivermos interesse. A
sociedade não está à disposição da universidade, pelo contrário.

MAIS ALGUNS PASSOS À FRENTE – PARA COLOCAR AS COISAS PARA


FUNCIONAR

Para continuar a caminhada, nesta seção reproduzo algumas


experiências do GET Cidades, tecnologias, diferenças e vida social
organizada para demonstrar que, apesar de contra intuitivo, é possível
trilhar um percurso coerente entre conceitos e práticas de investigação.
Valho-me dos dados publicados em Saraiva (2021b), ocasião em que
Luiz Alex Silva Saraiva • 165

registrei duas experiências bem sucedidas de integração entre ensino –


na graduação e na pós-graduação, pesquisa e extensão.

No início de 2018, discutíamos a possibilidade de encontrarmos uma


organização polar para nossas atividades, um caso que propiciasse
simultaneamente formas variadas de atividades de extensão e uma
complexidade interessante para poder se prestar à pesquisa, permitindo, ao
final, que pudéssemos aprender e ensinar a partir da experiência. Assim
chegamos a um quilombo urbano localizado na região na capital mineira.
Após contatos preliminares, foi elaborado e aprovado um projeto de
extensão que contava com uma equipe de cinco estudantes (dois de
doutorado, dois de mestrado e um de graduação) sob a coordenação de um
professor.

Fizeram parte dessa iniciativa integrada ações in loco, debates, rodas de


conversa, além da oferta de disciplinas. No primeiro semestre de 2018, na
pós-graduação stricto sensu, foram oferecidas duas disciplinas, com carga
horária total de 45 horas, que tratavam de temáticas liga à cidade sob as
óticas das diferenças e das territorialidades. Nessas disciplinas foram
tratados conteúdos simultaneamente aderentes ao projeto de extensão e
aos projetos de pesquisa dos membros da equipe. Em cada aula o tema se
referia a um projeto em particular, e todos liam a bibliografia e apontavam
questões a serem debatidas, aprofundadas ou desenvolvidas pelo estudante
de pós-graduação. Associadas às experiências da extensão e aos dados
preliminares de pesquisa, essas disciplinas permitiram oferecer na
graduação em Administração a disciplina optativa com temática
semelhante com carga horária total de 60 horas, no segundo semestre de
2018. Os resultados foram muito positivos aos olhos dos estudantes de pós-
graduação e de graduação envolvidos, uma vez que eles não haviam
experimentado o ensino integrado com a pesquisa e com a extensão.

A segunda experiência deu continuidade à iniciativa, mas de forma


distinta:
166 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

O grupo de trabalho no ensino era composto do professor e de três


estudantes de pós-graduação (duas doutorandas e uma mestranda) que
tinham em comum o fato de serem negras, e abordarem em seus trabalhos
de pesquisa temáticas relacionadas ao que se convencionou denominar de
“estudos raciais”. Como já dispúnhamos do referencial já relatado, foi
oferecida uma disciplina com foco nas questões da territorialidade e da
negritude, cuja razão de ser era discutir o silêncio sobre a questão racial na
formação de administradores.

A disciplina, que contava formalmente para as estudantes como parte das


atividades de formação de estágio docente, um requisito da pós-graduação
stricto sensu em um programa de pós-graduação em administração de uma
universidade pública brasileira, contou com a sua participação desde o
primeiro momento na concepção de conteúdo, na definição de
metodologias e de formas de avaliação. Os conteúdos foram distribuídos em
seis unidades: I – Território, territorialidade, territorialização; II –
Organizações não-hegemônicas e práticas organizativas; III –
Interseccionalidade e marcadores sociais; IV – Fenômenos organizativos:
Baile funk; V – Fenômenos organizativos: Quilombo; e VI – Fenômenos
organizativos: Festividades afro-brasileiras.

Foi definido com as estudantes que elas ficariam encarregadas de conduzir


as discussões a cada aula, atendo-se ao conteúdo dos 61 textos da disciplina,
e que o professor assumiria um papel de “articulador”, procurando ligar as
discussões ao contexto da Administração e trazendo as questões para um
plano mais próximo do que se compreende na formação de
administradores. Elas próprias subdividiram o trabalho para facilitar a
abordagem de acordo com suas competências para tratar dos temas, sempre
em torno de uma pessoa que se encarregaria da aula propriamente dita, e
das outras duas que levantariam questões, animando o debate.

Dada a familiaridade das estudantes com os temas e a experiência anterior


do grupo, a disciplina ficou, como os estudantes costumam dizer, “pesada”;
isso significa que se tratava de muitos textos para ler, muitas atividades,
Luiz Alex Silva Saraiva • 167

muitas discussões, não sendo “créditos fáceis” (aqueles que dependem de


pouco esforço). Essa disciplina demandava muito envolvimento e dedicação
dos estudantes, que precisavam não apenas ler os textos, mas entregar
periodicamente resenhas, elaborar pensatas (textos posicionados e mais
elaborados) e ainda apresentar um trabalho final em duas partes, com
reflexões de mais fôlego sobre organizações negras à sua escolha. Não
obstante as exigências, a disciplina correu conforme o planejamento,
acredito que em parte por conta de ter sido oferecida como optativa. Os
estudantes que se matricularam tinham uma ideia do que encontrariam e
tinham certa familiaridade e/ou abertura para as discussões, que foram
frequentes, intensas e muito interessantes.

No encerramento da disciplina foi feita uma rodada ampla de intervenções,


sendo solicitado aos presentes que se manifestassem a respeito do que
aconteceu, o que podia incluir críticas, sugestões etc. Os estudantes de
graduação presentes foram extremamente elogiosos quanto à proposta e à
execução da disciplina, dizendo-se surpresos sobre o quanto a questão
racial faz parte do curso, mas nele é negligenciada. Foram muito positivos
quanto à atuação das estudantes de pós-graduação, destacando seu
engajamento e dedicação para fazer das aulas momentos de ganho mútuo.
As três estudantes de pós-graduação agradeceram pela experiência, e
destacaram os ganhos obtidos por elas em termos de formação, por terem
podido perceber como pode se dar a articulação entre ensino, pesquisa e
extensão e por terem levado a cabo uma disciplina que permite formar
administradores mais críticos sobre o seu papel em sociedade (Saraiva,
2021b, p. 6-7).

PARA ONDE ESSES PASSOS LEVAM?

Parando um pouco para avaliar os passos dados até aqui e os


próximos passos, devo admitir que tudo é muito estimulante. As
possibilidades embutidas em outra forma de articulação entre teoria e
prática, e como isso se amarra em ensino, pesquisa e extensão é
168 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

extraordinariamente provocativo. Mas é preciso que se diga, longe de


ser fácil ou intuitivo. A forma pela qual as coisas estão dispostas na
universidade impelem a fazer as coisas como sempre foram feitas, com
baixo nível de inovação e com alta possibilidade de reprodução
burocrática de procedimentos já estabelecidos. Ir contra isso requer
paciência, organização e articulação contra um establishment reativo a
mudanças.
Por que fazer isso então? Penso que a melhor pergunta seria: por que
não fazer isso? Por que não buscar uma forma mais coerente de operar
em uma universidade que tem sido criticada enquanto instituição em
todo o mundo pela sua incapacidade de definir se serve ao mercado ou à
sociedade, se está ali para formar pessoas para atuar profissionalmente
ou prover a sociedade de soluções para os seus múltiplos problemas (Fry,
2015)? Por que não fazer com que as teorias adquiram novos sentidos ao
serem cotejadas e coloridas com práticas que podem trazer surpresas e
fugas aos esquemas teóricos pré-concebidos? Por que não abrir a
pesquisa às possibilidades que a sociedade pode trazer, em especial para
a parcela social que tem sido historicamente alijada de ser considerada
interlocutora efetiva da universidade? Por que não expandir as fronteiras
do conhecimento para fazer da ciência um constructo atravessado por
gênero, sexualidade, raça, origem, e diversos outros marcadores sociais
que só somariam e dariam respostas mais precisas para a vida
contemporânea (Tight, 2010)?
Posso responder com tranquilidade e firmeza estas questões:
porque outra universidade é necessária. Uma que seja aberta às
diferenças, que seja universal nos saberes que abriga, que seja
Luiz Alex Silva Saraiva • 169

concretamente democratizada, entre outras coisas, em termos raciais,


sociais, de gênero e sexualidade, que distribua melhor os recursos de
maneira a combater a hierarquia de campos da ciência e possibilite a
permanência de grupos dela excluídos ao longo da história, que seja
voltada para e dirigida pelas necessidades da sociedade, e assim por
diante. De forma despretensiosa, é o que procuramos fazer no âmbito
deste GET com as concepções e ações aqui descritas, mas não se trata de
um processo simples.
Humanização parece ser a palavra-chave para pensarmos os
passos rumo à universidade que queremos. Isso implica que o ensino, a
pesquisa e a extensão sejam integrados e humanizados, e tal
humanização precisa se dar em múltiplos sentidos, da forma como nos
aproximamos de grupos sociais para as atividades de extensão, nos
procedimentos de pesquisa e na forma como ensinamos a partir do que
aprendemos. Para tanto, precisamos nos “desarmar”,
desinstrumentalizando muito do que é naturalizado nas nossas práticas
universitárias. Em primeiro lugar, precisamos nos colocar na posição de
aprendizagem, saindo da cristalização de pessoas que ensinam. O
mundo tem muito a nos ensinar, e portanto podemos aprender com a
sociedade que nos cerca desde que estejamos disponíveis para tanto. Há,
assim, vários saberes, e vários lugares em que o conhecimento pode
estar, circular e ser difundido, e precisamos nos aproximar para
reverter o crescente insulamento da universidade.
Além de humanizar, precisamos de passos firmes rumo à
horizontalização acadêmica. Hierarquias tiveram sua razão de ser em
outro momento da sociedade. A popularização da tecnologia, a
170 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

aceleração das comunicações, a flexibilidade do cotidiano sugerem que


o mundo tende a ser cada vez mais horizontalizado, e isso é algo que a
universidade como um todo precisa aprender. Os saberes – mesmo os
acadêmicos – não se encontram apenas em livros e artigos científicos,
estão disponíveis de várias formas, e ignorá-los é não fazer parte de um
movimento mais amplo no campo da educação. Isso se estende a
relações nas salas de aula, nas formas como pensamos a extensão e no
jeito como concebemos a pesquisa, abrindo-nos para possibilidades
concretas de troca com as pessoas. É nessa agenda que acreditamos e
investimos, passo a passo.

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ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL:
7
OS VÍNCULOS TRANSITÓRIOS ENTRE A CIDADE
E AS VIDAS QUE NÃO GERAM ACÚMULOS 1
Bruno Eduardo Freitas Honorato 2

ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL: A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO


BRASIL

Um dos primeiros contatos teóricos que tive com o tema da


situação de rua foi por meio do livro Desafortunados: um estudo sobre o
povo da rua de Snow e Anderson (1998), na época sugerido pelo meu
orientador de mestrado Luiz Alex Silva Saraiva. Lembro-me ainda hoje
da sensação marcante que fiquei depois de praticamente devorar o livro
em menos de uma semana. Em minha mente ressoava apenas um
pensamento: “poderia ter sido eu” – pensava em relação àquelas pessoas
de rua, seus traumas, suas trajetórias de rompimentos e seus
enfrentamentos cotidianos em um mundo hostil descritos
detalhadamente no livro a partir do estudo etnográfico dos autores. A
dúvida que me instigava no momento daquela leitura e que ainda hoje
me compõe enquanto pesquisador era: se todos somos humanos, o que

1
O termo “vidas que não geram acúmulos” foi tomado de empréstimo de Mendes (2007).
2
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da
Universidade de Brasília. E-mail: brunoefh@gmail.com.
176 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

nos torna iguais ou diferentes de uma pessoa que por escolha,


consciente ou não , opta por viver nas ruas?
3

A curiosidade é o que nos move dentro de um tema. Entendo a


pesquisa como um processo investigativo que tem na curiosidade o seu
substrato mais essencial. Toda a vocação do pesquisador é dada na
medida em que a curiosidade dele sobre um tema torna impossível não
investigar mais, não ler mais, não conhecer mais sobre esse tema. Ao
nos movermos e investigarmos mais sobre um tema encontramos os
caminhos que antes não estavam visíveis no nosso ponto de partida. Isso
é o que torna a pesquisa um processo social construtivo e constitutivo
do pesquisador. O pesquisador que se embrenha por uma investigação,
seja a social ou não, constrói conhecimento sobre o tema que estuda,
porque não consegue evitar a sede por mais detalhes e nuances de uma
certa realidade.
À época do mestrado, minha pesquisa caminhou, como era de se
esperar, por caminhos que me levaram à questionamentos daquilo que
até então parecia óbvio. A naturalização da ordem social nas cidades; a
construção de um regime de utilidade nas cidades; os discursos de
manutenção dessa ordem; a marginalização dos desviantes. A questão
da opção pelas ruas acabou sendo secundária, por se tratar de um campo

3
Especialmente no que diz respeito às populações vulneráveis, a questão da consciência, no sentido de
escolha racional, é problemática. A “opção” ou “escolha”, para essas populações, sempre vem
acompanhada de um estigma que a deslegitima: o estigma da “inconsciência” ou da incapacidade de
decidir. A depender da linha argumentativa que se opta, essa inconsciência pode ser atribuída a um
trauma anterior que “quebra” a psiquê do indivíduo; a questões de ordem temporária e condicionadas
a situação de extrema vulnerabilidade em que o sujeito está inserida; ou mesmo, em uma noção mais
determinista, a uma condição genética. O entrelaçamento entre a situação de rua, adoecimento mental
e utilização de drogas lícitas e ilícitas, compõe um dos principais tópicos que torna a situação de rua
uma questão social de alta complexidade.
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 177

de estudos mais específico, ligado essencialmente à psicologia e não


propriamente aos estudos organizacionais. Por ser meu primeiro
contato com o tema, tive muitas surpresas, algumas agradáveis e outras
nem tanto.
Uma das surpresas mais agradáveis que tive durante a pesquisa foi
a de que Belo Horizonte, por volta de 2012, era referência em
atendimento à população em situação de rua no Brasil. Isso me foi
confirmado em vários momentos da pesquisa. O fórum da População em
Situação de Rua realizado na Pastoral de Rua, o albergue, os abrigos, as
repúblicas, o Comitê de Acompanhamento da Política Municipal para
População em Situação de Rua, o programa de Bolsa Moradia, Centro
Pop, o Serviço de Abordagem Social nas Ruas, dentro outros serviços
oferecidos em Belo Horizonte, todos funcionando, ainda que com
algumas limitações. A expectativa após a publicação da Política Nacional
para Inclusão da População de Rua em 2008 era de aprimoramento das
políticas públicas municipais para inclusão e acolhimento dessa
população.
Passados mais de 10 (dez) anos da publicação da política nacional,
a condição de precariedade social da população em situação de rua no
Brasil tem se agravado. Especialmente, a partir de 2017 após a crise
econômica e política que viveu o país e com o crescente desemprego que
têm forçado famílias a migrarem de cidade em busca de trabalho. Essa
precarização da situação de rua tem ocorrido não apenas em Belo
Horizonte, mas em vários lugares do país, incluindo Varginha, local em
que temos realizado pesquisas junto ao grupo de pesquisa Cidadão de
Rua. Segundo informações fornecidas pelo Centro Pop de Varginha, a
178 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

população em situação de rua, na condição de migrante, em Varginha


cresceu em torno de 25% (vinte e cinco por cento) nos últimos dois anos.
Esse dado não é exato, porque Varginha, como a maioria dos municípios
brasileiros não conta com um censo periódico da população em situação
de rua. Restando aos equipamentos da prefeitura, em geral aos Centros
Pop e aos serviços de Abordagem Social fazer a contagem “por alto” das
pessoas em situação de rua atendidas pelos serviços. Apesar dessas
informações serem registradas pelos sistemas de informação das
prefeituras, isso não garante a mesma precisão de um censo periódico,
que poderia também balizar a atribuição de recursos das prefeituras
para a questão da situação de rua nos municípios.
O número de migrantes é crescente e mesmo em Belo Horizonte,
onde a política municipal foi referência para vários municípios,
atualmente, isto é, em 2019, é possível encontrar famílias de migrantes
em situação de rua, buscando abrigo nas praças e viadutos da cidade.
Além disso, com as prefeituras e estados em suposta crise econômica,
os investimentos sociais são os primeiros a serem preteridos a outros
ditos mais rentáveis. Nesse sentido, a condição atual da PSR é precária
4

e a expectativa, em termos de investimento social, é baixa. Esse


horizonte pouco favorável a PSR é o cenário em que temos caminhado
com o grupo de pesquisa Cidadão de Rua e no qual temos afirmado a
relevância da pesquisa, tanto quantitativa quanto qualitativa, que possa
fornecer subsídios a elaboração de políticas públicas mais eficazes,

4
Abreviação de População em Situação de Rua.
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 179

considerando o caráter altamente complexo do atendimento a essa


população e urgência inegável de suas demandas.
Tendo em vista esses aspectos, que problematizam a situação de
rua e sua condição atual no Brasil, abordarei brevemente minhas
pesquisas feitas em parceria com meu orientador e com colegas de
trabalho nos próximos tópicos e discutirei a relação entre a cidade e a
PSR; a noção de ordem e subversão a partir de um entendimento das
práticas sociais da PSR; e, por fim, a relação entre discurso e políticas
sociais voltadas para essa população. Logo após, descreverei
brevemente a trajetória do grupo Cidadão de Rua e finalizarei com
percursos investigativos que, enquanto coletivo de pesquisa,
percebemos proveitosos e possíveis para novos empreendimentos de
pesquisa no tema da situação de rua. Meu objetivo com esse capítulo é
afirmar a importância da pesquisa científica na construção de
conhecimento sobre temas sociais complexos como a situação de rua e
sua potencial contribuição para o desenvolvimento de políticas públicas
mais eficazes.

CIDADES, POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E ESTUDOS


ORGANIZACIONAIS: APROXIMAÇÕES

Viver no mesmo espaço geográfico não significa viver de forma


semelhante. Como afirma Buarque (2003), portugueses e indígenas que
se encontravam em terras brasileiras há 500 (quinhentos) anos atrás
tinham mais em comum, em termos de condições de vida, do que um
rico e uma pessoas em situação de rua que habitam hoje a mesma cidade.
A migração dos campos para as cidades provocada principalmente pelo
180 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

desenvolvimento concentrado acelerou o processo de urbanização


brasileiro, principalmente a partir da metade do Século XX. Novos
fenômenos e relações tornaram as cidades o palco de uma composição
social incipiente, sem precedentes. O processo de migração forçada
aliada a uma lógica de consumo incorporada ao processo de
desenvolvimento econômico produziu e ainda produz um espaço
urbano redutor da diversidade.
O crescimento da desigualdade e o desenvolvimento de fronteiras
internas tem sido estudado por antropólogos e sociólogos de várias
épocas (Velho, 2000). No Brasil, os estudos de alguns pesquisadores
(Velho, 2000; 2006; Venturini, 2009; Souza, 2009; Limena, 2001; Martins,
2011; Sawaya, 2006) ressaltam a importância de se entender o contexto
urbano como o locus da sociedade moderna e da sua dinâmica
comportamental e investigá-lo não somente em suas dimensões
materiais, mas também simbólicas (Saraiva & Carrieri, 2012),
ideológicas (Leite, 2008) e socioambientais (Costa, 1997). Nesse sentido,
a cidade é um tema interdisciplinar que requer visões complementares
e abordagens que compreendam aspectos da complexidade inerente às
relações sociais que ela engloba, possibilita e produz.
A cidade nos faz fazer certas coisas, agir de determinadas
maneiras, ter paciência, ter pressa, sermos mais práticos,
ambientalmente conscientes, e, sobretudo, úteis, para não
atrapalharmos o fluxo. É nela que se realizam grande parte de nossos
anseios e é nela que se criam grande parte desses anseios. Também é
nela que ficam mais evidente os produtos da expansão de uma lógica
ocidental capitalista. A marcha social que vai da desigualdade à exclusão
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 181

e da exclusão à dessemelhança entre os indivíduos. A dessemelhança


nos afasta, rompe vínculos, gera guerras. Marcel Bursztyn (2003) nos
alerta que, se continuarmos nesse caminho, com o uso das técnicas ditas
modernas, especialmente as médicas, para o benefício de apenas uma
parte da população, logo a humanidade pode ser rompida e a
dessemelhança transformada (novamente) em diferença biológica.
A parte nosso senso de urgência, a ocorrência de indivíduos que
residem nas ruas de grandes centros urbanos não é recente. Segundo
Bursztyn (2003), desde começo do Século XVII, por haver muitos pobres
migrando para os centros das cidades, foram realizadas políticas
públicas a fim de consolidar essas pessoas em seus locais de origem.
Com o final do sistema servil, não era mais de interesse dos senhores
cuidar das classes inferiores, dessa maneira, as pessoas ficaram livres
para procurar seu sustento no novo mercado. Com o passar dos anos as
diferenças foram aumentando, de acordo com Bursztyn (2003) as
pessoas que viviam na classe abaixo do ciclo econômico começaram a
ter suas vidas prejudicadas pela falta de moradia e comida, tendo como
consequência a dificuldade de conseguirem empregos. Essa situação
persiste, bem como persiste o desenvolvimento econômico concentrado
nas cidades.
As cidades do Século XXI, como agravante, ainda tem como
peculiaridade a busca por uma imagem de cidade passível de ser
consumida tanto pela população local quanto pela mídia mundial; sendo
esta última, muitas vezes, representante de acionistas e agentes do
capital privado que buscam aproximar a imagem da cidade àquelas
consideradas molde, ou modelos, para elevar o potencial lucrativos dos
182 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

investimentos privados nas cidades. Esse tema foi amplamente


discutido por Sánchez (2001). O potencial especulativo das cidades se
baseia essencialmente no que Sánchez (2001) chamou de marketing
urbano ou como afirmam Duarte e Czajkowski Junior (2007) e Leite
(2010) o city marketing.
Conforme adotamos em Honorato e Saraiva (2016), o olhar que
coloca a cidade enquanto um empreendimento a ser gerido, pode ser
melhor entendido se tomarmos a cidade como objeto de análise dos
estudos organizacionais. A incorporação de discursos ligados ao
ambiente empresarial privado pela gestão municipal é um fenômeno
crescente. A utilidade produtiva das cidades e do potencial lucrativo dos
espaços têm sido objeto de especulação financeira pelos investidores
interessados especialmente no ramo imobiliário. A consagração de
espaços e usos da cidade, interagem diretamente com a criação de
políticas públicas pelo governo e com a gestão do espaço público
municipal. Os pesquisadores, atentos a essa relação, têm usado os
termos gentrificação (gentrification), revitalização e limpeza social, para
caracterizar um dos tipos dessas políticas que surge com interesses
específicos das classes médias e altas na reapropriação de espaços que
foram, na maioria das vezes, por muito tempo, abandonadas ao povo.
Lugares que perderam a centralidade em outras épocas e agora
retornam a um centro de preocupações político-ideológicas (Leite,
2008; Botelho, 2005). Por gentrificação entende-se

um tipo específico de intervenção urbana que altera a paisagem urbanística


e/ou arquitetônica com forte apelo visual, adequando a nova paisagem às
demandas de valorização imobiliária, de segurança, de ordenamento e de
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 183

limpeza voltadas ao uso, ou à reapropriação, por parte das classes médias e


altas (Leite, 2010, p. 751).

A pergunta certa, feita por Botelho (2005, p. 54), entretanto, é “até


que ponto as intervenções são ou não excludentes?”. Segundo Lefebvre
(1998), a mercantilização das cidades vai além de apenas torná-las
mercadorias vendendo pequenas parcelas do espaço, pois procura
realizar um projeto de reorganização da produção subordinada às
cidades e aos centros de decisão. A ideia é estabelecer rumos para uma
produção global do espaço. Para vender a cidade, entretanto, são
necessárias formas de divulgação, que, na gestão urbana, se consolidam
na produção de imagens sobre a cidade; imagens essas que representam
uma determinada visão de mundo sintetizada na forma de slogan, ou de
afirmação sobre determinada característica atribuída à cidade. Essas
visões que proclamam a imagem-síntese da cidade ou as chamadas
cidades-síntese têm seus critérios de construção pautados na
valorização de determinados aspectos que fortaleçam a imagem da
cidade segundo uma visão hegemônica de qualidade de vida.
À margem da “vida social organizada” (Saraiva & Carrieri, 2012, p.
548) e gerida pelos grupos sociais que acessam a disputa pela
legitimidade dos discursos sobre a cidade estão as pessoas em situação
de rua, as quais politicamente carecem de espaços legítimos de fala em
que sua visão sobre a cidade possa ser incorporada às politicas
municipais. No âmbito da disputa por legitimidade dos discursos sobre
a cidade, as políticas públicas passam a compor não apenas o quadro da
natureza objetiva da gestão, mas também da disseminação de uma
184 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

ideologia predominante que está ligada àqueles que dispõem de maiores


recursos para determiná-las. Nesse sentido a força dos atores que
legislam a cidade é assimétrica, ficando as populações vulneráveis à
mercê de representantes com os quais não tem poder de barganha.
Os fóruns de discussão sobre a população em situação de rua, as
pastorais de rua e os comitês de acompanhamento das políticas públicas
para as pessoas em situação de rua foram avanços nesse sentido,
embora estejam agora ameaçados pelos discursos da crise econômica
atual. Por outro lado, o poder político dado pela capacidade de acessar o
âmbito legislativo municipal não é a única forma de poder que os
habitantes – domicialiados ou não – de uma cidade dispõe na relação
com a gestão dessa cidade. O que nos leva a uma discussão dos
micropoderes ou microliberdades e da noção de ordem e subversão nas
cidades.

ORDEM E SUBVERSÃO NAS CIDADES: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS DA


POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

A cidade é, por definição, habitada e é o fato de ser habitada que


garante a cidade e aos lugares que a compõe a característica que define
o que Michel de Certeau chamou de espaço. Para Certeau (1998) o que
determina o espaço é a prática que dele se faz (Certeau, 1998). O olhar
sobre a dinâmica das formas de existir na cidade tem a expectativa de
enriquecer a noção de construção social do espaço. Morar na rua é uma
forma de praticar a cidade, tanto quanto visitá-la, construí-la, caminhar
nos parques e praças dela. Enquanto sujeitos dessa cidade, a população
em situação de rua opera não sem considerar os muros (Certeau, 1998)
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 185

que representam as limitações ao fluxo da vida social na cidade.


Entretanto, as estratégias de controle que estabelecem os momentos de
poder da gestão municipal podem e são contornadas pelos seus
habitantes no cotidiano.
Os conceitos de ordem e subversão e as implicações políticas de se
estudar a população em situação de rua durante nossa pesquisa
(Honorato, Saraiva & Silva, 2017) foram pensados a partir do subsídio
intelectual de Michel de Certeau (1925-1986). A noção de controle social
conflita com os interesses do ser e constrange as ações mais ínfimas do
seu dia a dia. Certeau lança-se na busca de uma abordagem que coloca
em questão esse aspecto. O pensador francês, admirador de Michel
Foucault, constrói seu pensamento centrado na captura das práticas
cotidianas, isto é, dos momentos do dia a dia que revelam os aspectos
sutis e profundos da dinâmica de interação entre o sujeito e o poder
disseminado na estrutura social (Josgrilberg, 2005). Após a leitura de
“Vigiar e Punir” de Foucault, Certeau entende que, nas ações de controle
social – representado pela imagem do panóptico de Jeremy Bentham
consagrado por Foucault – existem fissuras, as quais os sujeitos têm
acesso, ainda que de maneira não consciente. Essas ações que exploram
tais fissuras são chamadas, por Certeau (1998), de táticas: movimentos
clandestinos que revelam momentos de transgressão do sujeito em
relação às imposições do controle social. As táticas são, para o filósofo,
a arte do fraco, o ato criador e insurgente por excelência diante das
estratégias organizadas para a manutenção de uma hegemonia. Ordem
e subversão, estratégia e tática no léxico de Certeau, são movimentos
que não se separam e na sua oposição constante produzem-se
186 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

mutuamente. Esse é um ponto chave na analítica de Certeau. Mais do


que tipificar os atos como ordeiros ou desviantes, cabe ao pesquisador
descrever o jogo discursivo que engendra essa diferença – e constrói seu
significado necessariamente social, pois é fruto das relações entre os
homens – e suas implicações na configuração de posições na sociedade.
Portanto, é pela via das microrrelações estabelecidas no cotidiano, que
Certeau compreende o poder e a política. Para Certeau as lutas políticas
são também lutas pela produção do espaço ordinário.
5

Nesse enquadramento, a subversão, entendida como a capacidade


humana de ressignificar a realidade a partir de convicções outras, que
não as consideradas hegemônicas e normais (Josgrilberg, 2008),
representa a possibilidade de criação de espaços de ação que permitam
a renovação das práxis culturais. Resistir, ainda que de uma forma sutil,
representa, para Certeau (1998), uma fração da história em que o fraco
persiste e se impõe ao forte numa relação de poder. Portanto,
compreender o significado da subversão no modo de vida da população
em situação de rua permite conhecer com mais profundidade o sentido
de ordem e os seus transbordamentos (como o preconceito) e como a
sociedade lida com as pessoas e os fatos que ela não tolera. Permite
compreender como o conceito de intolerância é construído (e se escora),
evocando-se os ideais de legalidade definidos pelo Estado, quando essa
via de pensamento, evidentemente, é conveniente para quem a aciona.

5
O termo “produção” é utilizando em seu sentido amplo, seguindo conceituação de Henri Lefebvre
(1998). Para esse autor, os homens enquanto seres sociais produzem sua vida, história, consciência,
imaginação e seu mundo. Toda a realidade que se pode observar, toda a natureza que se pode imaginar
é uma produção humana, isto é, efeito de uma permanente construção (simbolização) realizada pelo
homem no cotidiano (no plano dos sujeitos em ação) de suas vidas.
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 187

Desse modo, a escolha de Certeau não se deve apenas à


caracterização peculiar que propõe das táticas e estratégias enquanto
momentos de poder, mas também pela relação da sua teoria com a
capacidade de insurgência dos anônimos sociais, dos fracos, daqueles
que se encontram no silêncio e nas fissuras da estrutura dominante. Na
análise das entrevistas que fizemos em Honorato, Saraiva e Silva (2017)
apontamos para (i) um uso subversivo dos espaços públicos da cidade
(construção de malocas, espaço como depósito de necessidades
fisiológicas, ocupação de praças de modo não convencional, etc.); (ii) um
questionamento do enunciado-síntese de Belo Horizonte: uma “cidade
para todos”; (iii) a existência de padrões de sociabilidade e acordos
tácitos que regem a relação entre os moradores e os demais agentes
sociais(domiciliados, comerciantes, polícia, etc.), ainda que esses
acordos variem e sejam suspensos em algumas situações; (iv) a
insatisfação que o albergue provoca em alguns moradores e em sua
vizinhança, essa última enxerga essa instituição como um dispositivo
de estímulo à vida nas ruas; (v) a construção da noção de normalidade
(isto é, de um indivíduo incluído socialmente) alicerçada no domínio de
competências e no cumprimento de funções que ofereçam uma
contribuição útil para a sociedade organizada em torno do trabalho
capitalista e da cidade eficiente; (vi) a prática da “caridade
contraditória” caracterizada por um comportamento social vacilante:
ora vigora o desinteresse e o preconceito que legitima as ações de
repressão social e higienização, ora a compaixão e o assistencialismo;
(vii) o reconhecimento político da “escolha pela rua” e pelo
questionamento de uma adaptação obrigatória à ordem funcional da
188 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

sociedade como um pressuposto para o usufruto de direitos civis e para


obtenção de um respeito social
A observação de tais práticas suscitou o debate de vários temas
complexos, dos quais julgamos que dois desses temas merecem breves
comentários, a saber: o sentido atribuído à noção de transgressão; e a
vida na rua como uma escolha política. Quanto ao primeiro tema, limite
e transgressão, inspirados por Mosé (2012), compreendemos que os
homens precisam de limite para se organizar, isto é, de cultura (como
sinônimo de civilização e de normalidade, não no seu sentido
antropológico mais contemporâneo); ao mesmo tempo, necessitam
suspender esses limites aproximando-se de sua natureza primária, a
fim de refletir sobre si e despertar sua potência criativa. Morar na rua é
uma experimentação dessa ausência de limites (essa experimentação
varia em intensidade e duração). A pesquisa mostrou que essa vivência
não suspende completamente os limites sociais, na medida em que os
moradores possuem uma lógica própria –e heterogênea entre o grupo –
de se organizar, e na medida em que a transgressão surge na relação
com a sociedade.
Viver em situação de rua é uma via de retorno a um modo de
manejar o mundo mais fracamente mediado pela cultura ocidental que
produz um ideal de normalidade. Não estamos sugerindo que os limites
sejam desnecessários, sem eles não haveria pensamento, linguagem,
sociedade, etc. A ideia que assumimos é que o homem (no sentido mais
geral de espécie humana) constrói-se permanentemente por meio da
relação limite-transgressão. É o jogo entre esse par que formula o
conceito de humanidade. A transgressão traz para o primeiro plano a
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 189

heurística e as justificativas que levaram ao estabelecimento de limites.


Esse é o seu potencial transformador – ou não, pois na medida em que
acentua os limites ela também tem a possibilidade de fortalecê-los, se
nada for feito para mudá-los. Na transgressão o homem coloca em
questão o seu ser – é nesse sentido que, para Mosé (2012), a transgressão
é uma potência orgânica da vida, o desafio é dirigi-la e potencializá-la,
simultaneamente.
Esse é um aprendizado relevante que extraímos do contato com os
moradores em situação de rua. Ao conhecer suas práticas ficamos
subitamente tocados pela necessidade de lutar para modificar
características desse modo de viver (referimo-nos às condições
sanitárias, de saúde, de invisibilidade e violência física) e atuar na
direção de retirá-los da rua. Somos alimentados pelo impulso de
compreender a vida nas ruas como o signo da decrepitude humana. Mas,
ao mesmo tempo, perguntamo-nos: é possível outra leitura?
Acreditamos que sim. A experiência de contato com os moradores
também nos provocou um novo olhar: a cultura humana fundada na
razão (o nascimento da civilização reduziu o homem a pensar) é capaz
de produzir um ideal de normalidade/verdade que é excludente. A
cultura deu-nos a liberdade de pensar, mas, paradoxalmente, criou uma
nova natureza, que também nos tiraniza (Mosé, 2012). A cultura da
normalidade é, pois, essa estranha liberdade, que a população em
situação de rua não quer para si.
O segundo tema, que se refere a morar na rua, implica considerar
esse aspecto também como uma escolha política que deve ir além.
Quando a população em situação de rua é colocada no lugar de vítima
190 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

ou de descartável urbano, ou ainda, de incapaz/inconsciente, há um


esvaziamento político-identitário desse grupo que tende a legitimar as
políticas assistencialistas e de higienização. Mudar o enunciado
discursivo hegemônico de descartável/incapaz para o de “escolha” é
importante para reconhecer a identidade (coletiva e individual)
daqueles que optaram por morar na rua. É a base para a politização da
luta identitária que deve ter como propósito informar as políticas
públicas sobre a necessidade de reconhecer essas vozes anônimas.
Acreditamos que esse é um caminho possível para a diminuição do
estigma cravado nesses indivíduos. Evidentemente, essa mudança
impõe desafios à própria população em situação de rua, pois este
cenário implica novas responsabilidades que não sabemos se os
moradores desejarão assumir.
Portanto, um aspecto que nos parece central é compreender avida
nas ruas como uma possibilidade biopolítica. Estimulados pela
argumentação de Axel Honneth (2003), entendemos que a melhoria
qualitativa de vida desse grupo passa pelo usufruto de direitos civis e
respeito por suas escolhas, contudo esses aspectos não são suficientes
como sugerem os textos subsequentes do autor (ver Honneth 2001;
2008). Honneth (2003; 2008) sugere que a luta pelo reconhecimento
envolve conquistas nos campos afetivo, político (ligado aos direitos
civis, à possibilidade de participação e representação na sociedade) e de
estima social. Essa última se justifica pela necessidade humana de
desenvolver relações solidárias (partilha de valores e capacidades) no
grupo ao qual pertence, objetivando a conquista de prestígio social, mas
não prescinde do acesso a recursos materiais para a sobrevivência –
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 191

dimensão econômica no seu sentido estrito, também chamada de


dimensão (re)distributiva. Honneth (2001; 2008) deixa claro que o
reconhecimento humano é (também) fruto da contribuição dada ao
grupo sob a forma de trabalho social. O autor sugere que o grande
desafio é pensar como colocar em prática tal conceito: “[...] como a
categoria trabalho social deveria ser incluída no marco de uma teoria
social para que dentro dela abra uma perspectiva de melhoria
qualitativa que não seja apenas utópica?” (Honneth, 2008, p. 48).
Pensamos que esse é também o desafio em relação às pessoas em
situação de rua. Assim como Honneth (2008), acreditamos na relevância
do trabalho como meio de melhoria qualitativa de vida, por reconhecer
nessa atividade a possibilidade de autorrealização e subsistência
humanas. Parece-nos que o reconhecimento político da vida nas ruas
deve passar obrigatoriamente pela necessidade de se pensar em formas
de trabalho capazes de envolver os moradores de rua, criando novas
sociabilidades. Essa é uma via possível para fugirmos de um
culturalismo banal (ver Fraser, 2002, especialmente o tópico 2). Atuando
nessa lacuna, a pesquisa sociológica tem condições de melhor informar
os agentes envolvidos no amparo à população em situação de rua e, de
fato, interferir na realidade dos moradores. Portanto, seguir nessa
direção é nosso estímulo para a continuidade do trabalho com a
população em situação de rua.
192 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

DISCURSOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS DO


RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO

Dizermos que as pessoas em situação de rua podem optar pela vida


nas ruas e dizermos que a transgressão é um convite a construção – ao
menos a reflexão – de novos limites para a dinâmica citadina, não é ao
acaso. A questão do reconhecimento desse grupo, enquanto um grupo
de direitos e deveres, passa pela discussão dos discursos que legitimam
a miséria nas sociedades contemporâneas (Resende, 2008). Discursos
que são extraídos em diversas fontes, têm efeitos ideológicos imediatos,
e contribuem, muita vez, para a manutenção da injustiça social. A
precariedade das condições de vida dessa população e a negação dos
seus direitos, enquanto grupo, estão no cerne da questão da justiça
social. As justificativas que se dão à perda do “sentimento de
semelhança” e do juízo ético que faz com que os seres humanos sintam-
se parte de uma mesma espécie estão explícitos em construções
sociodiscursivas que naturalizam a miséria como um fenômeno social
se não justo, pelo menos, aceitável socialmente.
A população em situação de rua foi praticamente excluída das
políticas brasileiras até a década de noventa. Entretanto a luta pelos
direitos dessa população já acontecia há algum tempo, mostrando
contornos desde 1950 na cidade de São Paulo (Melo, 2015). A
consolidação das políticas enquanto texto manifesta uma prática
discursiva importante para a população em situação de rua, em termos
de direitos previstos na constituição brasileira.
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 193

A participação dos diferentes segmentos da sociedade na


formulação das políticas, inclusive da própria população em situação de
rua pela representação do MNPR , indica uma possibilidade de
6

apropriação das demandas sociais por meio dos debates, como afirma
Decreto s/n (2008, p.2),

a consolidação das idéias inseridas neste Documento percorre um processo


necessário de discussão de seu texto nos diversos fóruns de debate de
políticas públicas sociais, de forma a permitir a mais ampla participação de
diferentes segmentos da sociedade.

Os problemas relacionados à utilização da cidade pelas pessoas em


situação de rua e os confrontos com a população domiciliada, colocam a
administração pública municipal em uma posição de mediadora, ao
mesmo tempo em que se situa como produtora e mantenedora da ordem
social também possibilita a ação de agentes engajados na transformação
das práticas discursivas relacionadas à população em situação de rua.
Em Belo Horizonte o Decreto 14.146 (2015) de 07 de outubro de 2010
institui o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Municipal para a População em Situação de Rua responsável por
acompanhar, assessorar e monitorar a política voltada para a população
em situação de rua. São doze representantes do poder público e doze
representantes da sociedade civil. Sendo que dos doze representantes
titulares e suplentes da sociedade civil são eleitos cinco representantes
da população em situação de rua organizada, por meio de movimentos
sociais, fóruns e comissões de usuários de serviços; um representante

6
Movimento Nacional de População de Rua.
194 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

de instituições acadêmicas e de pesquisa; dois representantes de


instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da
população em situação de rua; três representantes de instituições de
assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua;
um representante de outras entidades, instituições, organizações e
associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da
Política Municipal para População em Situação de Rua.
As respostas que são dadas à existência dessas populações,
consideradas ociosas, têm sido, por vezes, “medicalizantes” , no sentido
de “reduzir a dimensão de um problema social complexo a um
diagnóstico médico clínico, ou entendê-la na dimensão dos preceitos
higienistas e sanitaristas, na ótica da remoção das populações em
circulação pelas cidades” (Adorno & Varanda, 2004, p. 57), ou proibitivas
(Nardi & Rigoni, 2005, p. 275), no sentido de não permitir manifestações
que tenham visibilidade negativa diante desse regime, tal como no caso
dos usuários de drogas (ilícitas, principalmente). Embora disponibilize,
também, organizações que amparam essas populações, como albergues,
repúblicas, casas de recuperação, essas organizações no Brasil são, em
sua maioria, fundadas e mantidas por órgãos religiosos e por entidades
caritativas (Costa, 2005; Mendes, 2007).
Por outro lado, em alguns casos, os agentes municipais, têm
adotado uma proposta de redução de danos. Baseada na criação de
vínculo entre agentes sociais e populações vulneráveis, a partir de um
método de atuação não proibitivo, a fim de reduzir os agravantes de
risco de saúde nas práticas cotidianas dessas populações (Nardi &
Rigoni, 2005). Em princípio, a redução de danos,
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 195

pode ser definida como um conjunto de medidas em saúde que tem a


finalidade de minimizar as consequências adversas do uso/abuso de drogas.
Tais ações possuem como princípio fundamental o respeito à “liberdade de
escolha” (Nardi & Rigoni, 2005, p. 274).

Embora, hoje, as técnicas que foram desenvolvidas para


tratamento de usuários de drogas também sejam utilizadas em uma
perspectiva de saúde pública para as pessoas em situação de rua. A
noção de redução é baseada em políticas de desestimulo do uso abusivo
do álcool e de drogas ilícitas. No Brasil, a redução de danos tem seus
primeiros empreendimentos realizados em São Paulo, em 1989, e
somente a partir de 1995 foi permitido que algumas técnicas fossem
realizadas legalmente (Nardi & Rigoni; 2005). A principal característica
que constitui as políticas de redução de danos é o pressuposto de que o
usuário, ou no caso, a pessoa em situação de rua, é livre para agir da
maneira que bem entender. Isso influi diretamente no tratamento
“sempre respeitando o momento e a vontade do usuário” (Nardi &
Rigoni, 2005, p. 275). O respeito e o trato com a população de rua, bem
como com as populações vulneráveis, pode ser diferencial na formação
de vinculo, e, por conseguinte, na abertura de novas possibilidades essas
populações.
Apesar disso, a política de redução de danos ainda é incipiente, tem
sido adotada em vários âmbitos de tratamento com populações
vulneráveis. De maneira geral, as políticas públicas encontram
dificuldades para o tratamento dessa população dada a sua alta
complexidade. Muitas vezes, a falta de endereço fixo corrobora para a
dificuldade de acesso a hospitais, postos de saúde, para colocar os filhos
196 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

na escola etc. Além disso, falta de documentação é um problema que


atinge ampla parte dessa população e dificulta o acesso aos serviços
públicos (Resende, 2008).
Na pesquisa que empreendemos em Honorato e Saraiva (2017),
entendemos, com Fairclough (2001), que os significados extraídos nas
falas constituem discursos que de forma intertextual estão presentes na
formulação das políticas sociais em maior ou menor grau,
especialmente, no contexto de políticas formuladas sob procedimentos
mais democráticos. A legitimação da participação dos movimentos
sociais, o MNPR, das entidades de apoio material e amparo religioso à
população em situação de rua qualificam circunstancias em que a
demarcação de objetivos de determinadas ações governamentais
possam ser influenciadas pelos significados compartilhados por esses
diferentes grupos e atores sociais. O caráter político e histórico da
formação das políticas sociais para as pessoas em situação de rua, em
suma, perpassa a participação das pessoas em situação de rua como
atores e defensores dos seus direitos sociais garantidos
constitucionalmente.
Nesse sentido, nos dados obtidos por meio de entrevistas
semiestruturadas, observação participante e registro em diário de
campo, observamos que, dentre as estratégias discursivas utilizadas
pelos atores para persuadir o ouvinte em relação a seus argumentos,
podem ser destacados alguns significados que subsidiam as falas na
expectativa de justificar as ações dos atores na lida com a população em
situação de rua. Esses significados não são apenas individuais, são
compartilhados socialmente em determinados grupos e detém força
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 197

política de atuação institucional segundo a posição dos atores que têm


direito a fala nessas instâncias. Portanto, são forças argumentativas,
que empreendem significados estrategicamente legitimados nos
discursos, e subsidiam a formulação das políticas sociais seja em
contextos democráticos, seja em contextos autoritários, tecnocráticos e
de formulação política de gabinetes.
Dentre os significados destacados na pesquisa, temos i) o “controle
das intenções”, que evidencia uma relação direta entre o discurso do
trabalho como elemento necessário à dignidade humana e o
merecimento às políticas sociais, isto é, apenas aqueles que virem a
cidade para trabalhar merecem apoio institucional, estabelecendo um
interdiscurso com o discurso da meritocracia; ii) A tentativa de
estigmatizar ou marginalizar a população em situação de rua nas falas,
o que implica diretamente na possibilidade de ação política,
reconhecimento de direitos e deveres dessa população, uma vez que o
estigma “crackeados” implica um significado de inconsciência ou
invalidez que caracteriza uma incapacidade de cuidar si; iii) o sentido
da legalidade da vida nas ruas e a possibilidade de intervenção do
Estado, ou do município, no sentido de uma coerção ao cidadão que
assume conduta que implique em desvio da ordem social; iv) o “controle
pela limpeza dos corpos” que implica a discussão de provimentos para
necessidades físicas dessa população, sob resposta à necessidade de
organização e controle das condutas das pessoas em sociedade.
A partir dos significados destacados sugerimos a reflexão sobre a
questão da população em situação de rua no âmbito aplicado a
administração pública, isto é, pela revisão dos significados atribuídos a
198 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

população em situação de rua, nas instâncias de formulação de políticas


sociais, enquanto grupo social e historicamente em luta por
reconhecimento e realização dos seus diretos; e no âmbito teórico pela
possibilidade de interlocução entre a discussão dos direitos sociais dos
anônimos, nas palavras de Certeau (1998), e as práticas sociais dessa
população enquanto resultado do seu posicionamento na estrutura
social.

CONSTRUINDO CAMINHOS: A TRAJETÓRIA DO GRUPO CIDADÃO DE RUA

Em meados de 2018 fui procurado por um grupo de cinco alunos


que após um seminário oferecido por mim e pelo professor Everton
Rodrigues da Silva por meio do grupo de pesquisa Organizações Outras
(O2) estavam entusiasmados com a possibilidade de pesquisar e
contribuir para questões sociais relevantes no Brasil. O curso de
Administração Pública da Universidade Federal de Alfenas (Unifal –
Campus Varginha) têm se mantido durante seu pouco tempo de
existência em uma proposta de discussão ativa e preparo dos alunos
para a gestão de políticas públicas considerando especialmente as
questões éticas e humanas ligadas ao desenvolvimento social. Os alunos
após o seminário buscavam mais que apenas pesquisar, buscavam
suprir o anseio por fazer algo pela sociedade.
Desse ímpeto inicial surgiu o Grupo de Pesquisa Cidadão de Rua.
Ainda interno à Unifal e lentamente se constituindo pelas atividades
que fomos traçando. Inicialmente o grupo se prontificou a estudos
teóricos sobre a PSR conduzidos por uma das integrantes, cujo trabalho
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 199

de conclusão, orientado por mim, estava ligado ao tema. Os estudos


eram feitos quinzenalmente a partir de um referencial teórico definido
pelo professor. Nesse começo do grupo, fizemos visitas ao Centro Pop,
contato com gestores ligados a PSR e pudemos contar com um
seminário especialmente relevante sobre a pesquisa com a população
em situação de rua oferecido pelo professor Frederico Poley Martins
Ferreira da Fundação João Pinheiro. O título do seminário foi: Novos e
antigos desafios na mensuração e formulação de políticas públicas para
as populações de rua em Minas Gerais e no Brasil. Desse seminário
saíram várias ideias e possibilidades de continuidade para a pesquisa
com a PSR.
O primeiro trabalho de conclusão produto dos estudos do grupo e
sob minha orientação foi intitulado: Uma análise qualitativa do
atendimento à população em situação de rua na cidade de Varginha/MG
a partir da perspectiva de gestores: um estudo sobre o Centro Pop. Nesse
trabalho o objetivo foi analisar o atendimento à população em situação
de rua da cidade de Varginha/MG a partir da perspectiva de gestores da
rede pública ligados a essa população. A análise, de natureza qualitativa,
foi realizada a partir de categorias construídas a posteriori. Na coleta de
dados foram realizadas análise documental e entrevistas
semiestruturadas com quatro gestores envolvidos diretamente com a
política pública de atendimento à população em situação de rua de
Varginha/MG – em especial tratando do principal equipamento de
atendimento essa população na cidade: o Centro Pop de Varginha/MG.
Os principais resultados i) reforçam a necessidade de revisão do caráter
eminentemente quantitativo e formal da avaliação da política no
200 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

município e ii) apontam para várias inconsistências operacionais em


relação às instruções dos manuais sobre o Serviço Especializado em
Abordagem Social e o manual de Orientações Técnicas sobre o Centro
Pop.
As deficiências na avaliação da política pública municipal se dão na
medida em que a forma de avaliar os atendimentos privilegia relatórios
mensais e anuais que não correspondem diretamente a realidade do
Centro Pop. Segundo contam os entrevistados os relatórios não são
exigidos para serem interpretados com propósito de investigar as
limitações do programa e resolver problemas, são exigidos apenas para
controle de verbas. Nesse sentido, os relatórios deveriam ter como
finalidade também um retorno para o desenvolvimento da política
pública, pois é muito importante um maior conhecimento da população
em situação de rua da cidade, suas necessidades, quais problemas
psicológicos, de saúde e familiares são recorrentes.
Do ponto de vista intraorganizacional a organização do Centro Pop
deve se manter fiel ao manual de Orientações Técnicas: Centro de
Referência Especializado para População em Situação de Rua – Centro
Pop. Conforme observamos em Varginha a composição de funcionários
de acordo com o que é estipulado no manual não estão de acordo. As
atividades principais concentram na coordenadora e na referência
técnica do local, pois não possuem o conjunto de assistente social e
psicólogo que é imprescindível para o tratamento da população em
situação de rua. Constatamos que existe uma carência de funcionários
no Centro Pop de Varginha, que de acordo com o psicólogo nas
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 201

condições atuais acaba sendo mais importante lidar com a demanda da


instituição do que com a do usuário.
Também analisamos a capacidade de atendimento do Centro Pop e
do Abrigo Institucional, os quais, segundo a percepção dos gestores, são
capazes de abarcar a quantidade de PSR no município. Quanto a
infraestrutura física o Centro Pop de Varginha possui uma deficiência
de espaço de acordo com o que é estipulado no manual de Orientações
Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em
Situação de Rua – Centro Pop, limitando o atendimento que poderia ser
oferecido, além de terem pouca privacidade, local para estocagem de
alimentos e outros produtos, e área de convívio para essas pessoas.
Porém, devido à dificuldade de conseguir a locação de um lugar
adequado para ser o Centro Pop há essa limitação que pode justificar a
permanência nesse local que é considerado pequeno para o tipo de
trabalho ofertado lá. Realizar um diagnóstico territorial visando
encontrar o melhor lugar para ter mais atendimentos possíveis fica
difícil com o impedimento da vizinhança, as pessoas não aceitam e
colocam empecilhos para a instalação de determinados programas
sociais perto de suas casas. O mesmo acontece com o Abrigo
Institucional, porém o local atende as necessidades do tanto de pessoas
que recebem por noite.
Em relação a multidisciplinaridade da equipe do Centro Pop
também não condiz com a estipulada no manual de “Orientações
Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em
Situação de Rua – Centro Pop”, que não possuem psicólogo, assistente
social e auxiliar administrativo. Por fim, em relação a recursos
202 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

financeiros e autonomia para realizar ações, constata-se a insuficiência


de recursos que é encaminhado para a Sehad em que encaminha para os
fins do Centro Pop e Abrigo Institucional. Não há a falta de alimentos,
pois os programas sociais distribuem entre si em caso de carência, mas
fica evidente que as verbas são escassas e que se tivesse um reajuste os
atendimentos poderiam ser mais eficazes, podendo ter a contratação
dos funcionários que faltam no Centro Pop. Esses resultados foram
apresentados aos gestores do Centro Pop de Varginha em 2019, por meio
de uma devolutiva agendada na Unifal. Nessa reunião traçamos uma
parceria de trabalho que tem frutificado em mais pesquisas e no
planejamento de ações de extensão para atuação com a PSR de Varginha.
O segundo trabalho de conclusão de curso que desenvolvemos no
grupo de pesquisa Cidadão de Rua foi intitulado: Trajetórias de vida de
pessoas em situação de rua: Um estudo sobre a população em situação
de rua em Varginha/MG. Nesse trabalho optamos por conhecer
trajetórias de rua de pessoas em situação de rua. O problema de pesquisa
foi tentar entender a opção pelas ruas, como também os encadeamentos
para os indivíduos que estão na rua e seus familiares, levando em
consideração sua trajetória de vida, desde sua infância até os dias atuais,
na busca de compreender as dificuldades enfrentadas por este grupo
social. Para isso foram entrevistadas quatro pessoas em situação de rua,
no Centro de Referência Especializado à População de Rua – Centro POP,
além de uma gestora de uma organização de amparo. A metodologia
utilizada proporcionou a realização de uma entrevista com uma riqueza
de reflexões. A metodologia utilizada buscou inspiração nos métodos
biográficos de história de vida e história oral, entretanto por se tratar
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 203

de um trabalho de conclusão de curso de graduação nos contentamos


com uma descrição inicial das trajetórias de vida ligadas a passagem
pela situação de rua dos entrevistados sugeridos pelo Centro Pop aos
pesquisadores.
Os fatores que levam a situação de rua são complexos. Cada
trajetória é rica em detalhes e possibilita refletirmos sobre a
possibilidade de construção de políticas públicas mais eficazes para essa
população. Estudar as trajetórias das pessoas em situação de rua nos
coloca de frente com um dos principais desafios no que diz respeito a
essa população: como criar políticas que compreendam situações
particulares e peculiares como a quebra de vínculos sociais e
emocionais? Essa questão ainda estamos por compreender. Mas, o
esforço é necessário.
A abordagem das políticas públicas, no geral, tende a maximizar
resultados por meio do comprometimento com as maiorias estatísticas.
Parte da população fica à margem e não pode ser incluída nas mesmas
políticas que são feitas para as classes medias e altas da sociedade. Nesse
sentido, a opção por compreender as trajetórias de vida das pessoas em
situação de rua é uma tentativa incipiente de nos aproximarmos de
medidas que possam compreendê-los do ponto de vista político e social.
Uma base de dados formada por histórias particulares e por trajetórias
de vida de pessoas em situação de rua poderia nos auxiliar na
compreensão dessa população e em formas alternativas de lidar com
ela. A expectativa é otimista, eu concordo, mas sem otimismo não
teríamos nem mesmo chegado até aqui.
204 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

POSSIBILIDADES DE PESQUISA: PERCURSOS INVESTIGATIVOS SUGERIDOS

Caminhando já para a finalização desse capítulo sugiro alguns


percursos investigativos que nos tem parecido oportunos a partir da
experiência do grupo Cidadão de Rua.

ABORDAGENS DE MAPEAMENTO E CARTOGRAFIAS DAS POLÍTICAS


PÚBLICAS PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL

Faltam pesquisadores engajados no entendimento das questões


relativas à situação de rua no Brasil, bem como faltam informações
sobre como e onde são implementadas as políticas públicas,
especialmente as municipais, que abarcam essa situação. A ação dos
municípios é variável a depender do tamanho, população, região etc. Por
isso, um primeiro passo para aproximação das questões relacionadas a
situação de rua no Brasil é conhecer o que é feito e como é feito no que
diz respeito a essa população em âmbito municipal. Mapear essas
políticas públicas em um município pode ser feito em uma atividade de
grupos de pesquisa, mas precisaríamos de um esforço de pesquisa maior
e mais consistente para cartografarmos essas políticas em vários
municípios.
Tanto são validas as cartografias de políticas publicas quanto às
cartografias da situação de rua nos municípios. Nessa segunda
abordagem, podemos traçar as rotas, os percursos, os usos da cidade
pela população em situação de rua na esperança de compreender
melhor onde e como se movem pela cidade a fim de oferecer os serviços
de assistência social, médica e odontológica nesses lugares.
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 205

ABORDAGENS DE HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA ORAL DAS PESSOAS EM


SITUAÇÃO DE RUA

Também são especialmente relevantes as abordagens de história


de vida e história oral das pessoas em situação de rua. A abordagem de
história de vida auxilia na percepção de questões objetivas, como o
contexto político, social e histórico. Além disso, também contribui nas
questões subjetivas, como a importância do espaço que o indivíduo
frequenta e dos seus sentimentos (Closs & Rocha-de-Oliveira, 2015).
Compreender a abordagem de vida contribui para o entendimento da
relação da pessoa em situação de rua com a cidade, quem faz parte deste
grupo social, como chegaram a instituição que os acolhe e sua relação
com ela, as relações com as políticas públicas que aumentam a
vulnerabilidade destes sujeitos, além da dificuldade na reinserção na
sociedade.
Uma narrativa de histórias de vida oferece a oportunidade de
refletir sobre o que é contado. Bertaux (1980) diz que o indivíduo ao
contar sua história, reflete sobre ela durante o processo. Assim, o
pesquisador tem acesso a diversos relatos de grande relevância na
construção do indivíduo como ele é atualmente, como também permite
ao pesquisado a possibilidade de refletir sobre seu próprio eu, suas
lembranças, memórias e pessoas importantes na sua vida, contribuindo
para a compreensão sua trajetória de vida (Maccalli et al., 2014).
As particularidades das pessoas em situação de rua são elementos
importantíssimos que faltam às políticas públicas. Talvez o ponto de
vista qualitativo seja o mais importante no que diz respeito às
206 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

populações vulneráveis e, ao mesmo tempo, o mais negligenciado.


Tenho reforçado isso sempre que possível: a abordagem qualitativa de
pesquisa tem uma contribuição inexorável à construção de políticas
públicas. No caso da população em situação de rua são escassas as
pesquisas qualitativas o que é uma lacuna importantíssima para o
desenvolvimento de políticas eficazes.

ABORDAGENS DE HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA ORAL DOS GESTORES DE


ORGANIZAÇÕES QUE LIDAM DIRETAMENTE COM AS PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE RUA

É tristemente comum, para quem está em contato com o tema da


situação de rua, ouvir de gestores e coordenadores de Centros Pop,
Abrigos e Albergues Institucionais que “tomar aquele tarja preta pra dar
conta do dia é mais que normal”. Os casos de adoecimento mental que
presenciei nesses mais de sete anos de contato com o tema são
incontáveis. A maioria dos coordenadores relata isso após a entrevista,
informalmente. Entretanto é assustadora a quantidade de pessoas que,
ao se envolverem com a lida direta com as pessoas em situação de rua,
adoecem, entram em crises psicológicas ou simplesmente param de
responder aos desafios, ficando inertes ou indiferentes.
Estudar com os gestores pode auxiliar no enfrentamento das
condições precárias de trabalho a que esses profissionais são
submetidos sem nenhum acompanhamento psicológico. A maioria é
submetida a condições desumanas diariamente. Além disso, há um
enfrentamento pouco declarado entre os órgãos das prefeituras e a falta
de apoio intersetorial continua a ser um problema cotidiano desses
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 207

profissionais. Nesse sentido, compreender a história dessas pessoas e


seus desafios também pode auxiliar na construção de melhores
condições de trabalho e forçar uma reflexão do poder público sobre o
tema

DINÂMICAS INTRAORGANIZACIONAIS E PROCESSUAIS DAS


ORGANIZAÇÕES QUE LIDAM DIRETAMENTE COM AS PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE RUA E OUTRAS PERSPECTIVAS

Do ponto de vista da avaliação das políticas públicas é interessante


pensar em como funcionam os equipamentos das prefeituras e os
processos a que estão submetidos. Compreender melhor a dinâmica
desses equipamentos nos leva a repensar o atendimento a população em
situação de rua considerando suas peculiaridades. Nesse sentido a
pesquisa organizacional é de fundamental importância para contribuir
no aprimoramento desses equipamentos.
Também são relevantes as pesquisas quantitativas que buscam
relacionar os dados de atendimento com dados relativos a miséria e a
precarização social no Brasil. Muito pouco em termos de pesquisa
quantitativa tem sido feita com o tema da população em situação de rua.
As pesquisas censitárias feitas por Ferreira (2006) não foram
expandidas em nível nacional e não tiveram continuidade.
À época de minha dissertação de mestrado eram raros os
migrantes que andavam pelas ruas de Belo Horizonte, hoje, sete anos
depois, a situação mudou e os migrantes têm se espalhado a procura de
trabalho nos grandes centros novamente. Uma pesquisa que relacione o
quantitativo de migrantes com as novas condições de trabalho no Brasil
208 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

seria interessante tanto quanto uma aproximação estatística dessa


situação com o desemprego, conforme comentam informalmente as
pessoas que trabalham com a PSR.
Não poderia deixar de citar também as ricas oportunidades de
projetos de extensão que o trabalho com a PSR oferece. Cinemas de Rua,
arte cênicas e plásticas nos Centros Pop, escritórios de direito para
atendimento a PSR dentre outros. A extensão é fonte riquíssima de
trabalho e pesquisa em conjunto com o atendimento as pessoas em
situação de rua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São muitas as possibilidades de trabalho com a população em


situação de rua. Todas elas, entretanto, sugerem um engajamento do
pesquisador com a questão da vulnerabilidade, que, a meu ver, nasce da
curiosidade ativa, da sensibilidade e da necessidade de contribuir para
o desenvolvimento social na luta pela inclusão e pela garantia de
direitos fundamentais para as populações vulneráveis. A população em
situação de rua carece de recursos tanto quanto de reconhecimento
social, trabalhar com e para eles é sempre desafiador, porque coloca em
xeque nossos valores enquanto humanos.
A possibilidade de contribuir para ampliação da justiça social é
inerentemente otimista e utópica. Entretanto, o otimismo é uma
necessidade para quem lida com problemas sociais de alta
complexidade. Nesse sentido, finalizo esse capítulo com um convite aos
colegas pesquisadores para que estejam atentos aos invisíveis e
Bruno Eduardo Freitas Honorato • 209

anônimos. Neles está a chave para compreendermos mais sobre o


mundo em que vivemos, sobre nossa condição humana e social e,
sobretudo, sobre nossas próprias vulnerabilidades.

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210 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

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CONTATOS NÃO TÃO IMEDIATOS 1
8
EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS:
FAZER PESQUISA SÓCIO-ESPACIAL COM OS
“MALUCOS DE ESTRADA” EM BELO HORIZONTE
Jessica Eluar Gomes 2

O movimento hippie, com suas cores psicodélicas, seu lema de vida


baseado em “paz e amor” e seu estilo militante e rebelde, normalmente
são as principais associações feitas com o conceito de contracultura. Em
geral, esse termo é empregado pelos estudiosos para definir os
movimentos sociais de contestação surgidos a partir da década de 1960,
que incluem, além do movimento hippie, os movimentos negro e
feminista. Há que se considerar, no entanto, a problematização do
termo, uma vez que a diversidade, a existência de diferentes
possibilidades dentro de uma cultura e a própria oposição aos padrões
hegemônicos de determinada cultura são padrões desta cultura, são
parte dela e, portanto, não formam uma nova. É a existência de
contrapontos e resistências o que faz da cultura ela mesma. A negação
aos padrões hegemônicos contribui também para seu reforço, para sua
posição de dominação e hegemonia.

1
Em alusão ao filme de 1979, Contatos Imediatos de IV Graal, que trata da Sociedade Alternativa (Costa
& Musse, 2016), para enfatizar que são muitas as mediações culturais que antecedem e permeiam as
interações sociais.
2
Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Funcionária do Banco de
Desenvolvimento de Minas Gerais. E-mail: jessica.eluargomes@gmail.com.
214 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Os fenômenos chamados de contracultura” nas sociedades modernas, como


por exemplo o movimento “hippie” nas décadas de sessenta e setenta, são
apenas uma forma de manipulação da cultura global de referência à qual
eles pretendem se opor: eles se utilizam de seu caráter problemático e
heterogêneo. Longe de enfraquecer o sistema cultural, eles contribuem
para renová-lo e para desenvolver sua dinâmica própria. Um movimento
de “contracultura” não produz uma cultura alternativa à cultura que ele
denuncia. Uma contra-cultura não passa definitivamente de uma
subcultura (Cuche, 2012, p. 102, grifos meus).

Podemos, então, pensar também o termo contracultura a partir de


uma ótica conceitual mais ampla, mais geral e abstrata, em que, ao invés
de definir um movimento específico e datado, o conceito se referiria a
certo espírito, certo modo de contestação, de enfrentamento diante da
ordem vigente, de caráter radical e divergente das próprias formas
tradicionais de oposição a essa mesma ordem dominante. Seu
posicionamento é de contestação dos padrões impostos e oficializados
pelas principais instituições das sociedades ocidentais. Contracultura
vista assim é uma cultura marginal, independente do reconhecimento
oficial, um tipo de crítica anárquica que rompe com as normas até
mesmo no modo de se fazer oposição aos padrões hegemônicos. Olhar
para a contracultura por tal perspectiva nos leva a perceber um
movimento que ressurge de tempos em tempos, em diferentes
momentos históricos e situações, e costuma ter um papel fortemente
revigorador da crítica social (Pereira, 1984).
Como Cuche (2012) explica, para os antropólogos interacionistas a
pluralidade dos contextos de interação leva ao caráter plural e instável
de todas as culturas e, também, aos comportamentos aparentemente
Jessica Eluar Gomes • 215

contraditórios de um indivíduo que não está necessariamente em


contradição consigo mesmo. Isso permite enxergar a heterogeneidade
de uma cultura.
A interação não é sinônimo de relação pacífica e harmoniosa, pois
a própria diferença implica possibilidade de contradição. O estudo das
trajetórias individuais é tido como estratégico e revelador em temos
antropológicos. As decisões e escolhas individuais dão-se em um campo
de possibilidades socioculturais, entremeado por relações de poder. São
processos políticos de negociação do cotidiano, escolhas feitas com base
em sistemas de referência de símbolos, valores, crenças e interesses. O
pesquisador então, como mediador, procura identificar situações e
contextos mais ou menos propícios à atividade mediadora, pois essa
nem sempre é possível ou será bem-sucedida. A mediação é uma ação
social permanente nem sempre óbvia, presente nos mais variados níveis
e processos interativos (Velho, 2014). A pesquisa vista assim como
mediação, torna-se um espaço de intersecção cultural que permite um
fluxo, uma transposição ou trânsito entre domínios culturais distintos.
Com base nessa abordagem, seria questionável diferenciar cultura
de subcultura, pois se a cultura nasce das interações entre os indivíduos
e entre grupos de indivíduos, não faz sentido separar a subcultura de
uma cultura global preexistente. Não haveria essa subdivisão
hierarquizada do universo cultural. O que vem primeiro é a cultura do
grupo, é a cultura local, pois é aí que os indivíduos se ligam em interação
uns com os outros. Cultura global seria o resultado das relações dos
grupos sociais que estão em contato uns com os outros, o que torna
inapropriado, na perspectiva interacionista, o uso do termo subcultura.
216 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Não se trata, pois, de conceituar contracultura, definir exatamente suas


bases e limites. Pelo contrário, trata-se de tentar compreender os
movimentos, os fenômenos contraculturais, as formas de ver o mundo.
Este capítulo é produto de uma pesquisa realizada em Belo
Horizonte em que, ao estudar a construção de identidade do grupo
social em meio ao urbano, busquei compreender como se dão as relações
e em que medida elas impactam e constroem as identidades dos
‘malucos de estrada’, popularmente conhecidos como hippies na cidade 3

de Belo Horizonte ao longo da pesquisa de campo realizada em 2015 e


2016 para minha dissertação de mestrado em Estudos Organizacionais
e Sociedade (Eluar Gomes, 2016).
O ponto de partida que me levou a me dedicar àquela pesquisa foi
a escolha do objeto. O intuito era o de olhar para um grupo social que se
apropria dos lugares da cidade de Belo Horizonte, expondo seu trabalho
e sua forma de viver, chamando-me a atenção por não se fixar, dando
valor a seu caminho errante e construindo-se nas estradas, levando sua
forma de viver por onde passa. A curiosidade e inquietação fomentaram
a busca por compreender quem são esses indivíduos e como suas
identidades são construídas enquanto indivíduos e enquanto grupo
social nessa relação com os lugares por onde passam, em especial, com
a cidade de Belo Horizonte.

3
Nem todos os entrevistados se denominam hippies. Alguns se chamam de “malucos de BR”, “malucos
de estrada”, “micróbios”, “artesãos nômades” ou, simplesmente, “malucos”. Utilizei a nomenclatura
“maluco de estrada” por ser essa mais difundida e aceita pelos entrevistados. O termo hippie foi utilizado
em alguns momentos por ser a forma socialmente reconhecida e por ser também mencionada pelos
entrevistados. A própria visão dos artesãos sobre si como um grupo coeso ou não, como um grupo que
pode ser chamado de hippie ou não é parte dos resultados da pesquisa.
Jessica Eluar Gomes • 217

Meu objetivo maior foi o de construir e ampliar zonas de sentido


que permitissem entender como se constroem as identidades dos
malucos de estrada, popularmente chamados de hippies, no seu
cotidiano e ao longo dos processos de apropriação de territórios em Belo
Horizonte. A construção de zonas de sentido, como colocado por
Gonzalez-Rey (2005) possibilita o avanço e o surgimento de novas zonas
de ação sobre a realidade, levando à produção de novos conhecimentos
e ao aprofundamento das representações teóricas.
Para tanto, me propus a compreender como foi a decisão pelo modo
de vida de ‘maluco de estrada’, como isso influencia a construção de
identidade do indivíduo e do grupo social, como se dá a relação dos
‘malucos de estrada’ com o território, principalmente do ponto de vista
da apropriação, como os constrangimentos institucionais no cotidiano
urbano interferem nas suas práticas e como a confluência das
identidades individuais leva à constituição de identidade de um grupo
social.
Foram cerca de 25 idas à Praça Sete no total, em dias e horários
alternados. Na maior parte das vezes, me concentrei no quarteirão
fechado da Rua Rio de Janeiro, onde os ‘malucos de estrada’ costumam
ficar, em diferentes pontos da rua. Além disso, em quatro domingos,
também fui à Feira Hippie na Avenida Afonso Pena, para observar e
conversar com os indivíduos que ficam mais próximos do movimento
da feira. Essas idas ao campo aconteceram de julho a setembro de 2015.
No entanto, desde outubro de 2014 eu já frequentava a Praça Sete,
conversando com alguns indivíduos e me aproximando aos poucos do
objeto de pesquisa. Algumas fotos foram tiradas nesse período que
218 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

antecedeu as entrevistas e algumas anotações no diário de campo


também já estavam sendo feitas, embora ainda sem a mesma
sistematização. Como muitos malucos são nômades ou seminômades,
apenas alguns dos que ali estavam permaneceram durante todo o
período de observação.
No intuito de ampliar o olhar para os sujeitos de pesquisa, tracei
também um percurso de análise não verbal, tentando absorver aquilo
que os sujeitos silenciam no discurso ou que não é possível ser expresso
em palavras, por meio de fotografias e desenhos feitos pelos
entrevistados. Nessa tentativa de compreender as ideologias históricas
que se tornaram práticas incorporadas e reproduzidas irrefletidamente,
tentei conciliar com a análise do discurso a observação das práticas
sócio-espaciais, observando os indivíduos em ação no seu cotidiano. A
observação seguiu um roteiro dividido em três dimensões, a saber, as
relações dos indivíduos com o espaço da Praça Sete; com os demais
membros do grupo; e com as outras pessoas que passam pela praça.
Além disto, foi realizada ainda uma pesquisa documental dos
instrumentos legais da prefeitura que influenciam a vida dos artesãos,
tentando abarcar, ainda que parcialmente, a complexidade desse objeto
de pesquisa para além de uma caracterização romântica dos malucos,
apontando os conflitos e as contradições na relação desse grupo com o
Estado.
Para a compreensão do que propus na pesquisa, os indivíduos
foram entrevistados seguindo um roteiro semiestruturado e,
posteriormente, tentei captar os sentidos das falas para os sujeitos, por
meio da análise do discurso, em sua abordagem francesa. Abordagem
Jessica Eluar Gomes • 219

considerada adequada para o estudo, por ser o processo de construção


identitária o resultado de uma sobreposição de fatos e símbolos que
fazem parte da construção do que os sujeitos são e a análise do discurso
se propor ao posicionamento em relação às ideologias e ao olhar sobre
os aspectos mais relevantes explícitos, implícitos e silenciados,
mesclando categorias linguísticas com aspectos sócio-históricos e
ideológicos. A partir desse olhar, o discurso é uma forma de legitimação
do poder, o que a torna ainda mais coerente com o estudo das
identidades dos ‘malucos de estrada’.
Nos Estudos Organizacionais, a análise do discurso vem sendo
empregada como método que ultrapassa as práticas discursivas
escritas, faladas e interacionais no ambiente das organizações. Seu
principal objetivo é servir de instrumento de leitura e desvendamento
do objeto, respaldando, ainda, as possibilidades de teorização (Carrieri,
Perdigão & Aguiar, 2009). De acordo com Godoi (2010), no campo
organizacional não se pretende uma análise de textos, mas a
reconstrução dos sentidos dos discursos e dos interesses dos sujeitos na
organização. Segundo Melo (2009, p. 3), “o objeto de estudo de qualquer
análise do discurso não se trata tão somente da língua, mas o que há por
meio dela: relações de poder, institucionalização de identidades sociais,
processos de inconsciência ideológica, enfim, diversas manifestações
humanas”. Assim, considero que o discurso ultrapassa a linguagem, pois
ideias, filosofias e ideologias também se constituem como discursos,
bem como as ações e interações, sejam elas intencionais ou espontâneas.
O discurso abrange mais que o enunciado em si, e, portanto, sua análise
deve levar em consideração os agentes ou participantes do discurso,
220 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

buscando também saber por que, como e quando o discurso foi


proferido. Nesse sentido, um discurso adquire caráter circunstancial e
deve ser analisado em função de seu contexto local ou global (Van Dijk
& Koch, 2002).
O discurso é visto como prática social, uma prática em si mesma,
que depende de um contexto interpretativo: O que a pessoa naquele
momento quer dizer? Quem são os envolvidos? Qual a situação descrita?
Como são as crenças pessoais, os seus valores e as ideologias
reproduzidos (Orlandi, 2003; Mazière, 2007)? Nesse sentido, até a ordem
das palavras ou frases pronunciadas em um argumento não ocorre de
maneira arbitrária, assim, extrair o que permeia o discurso só é possível
por meio da identificação de elementos explícitos, implícitos e
silenciados no texto, além das estratégias de persuasão empregadas pelo
enunciador (Souza & Faria, 2009, p. 2).
Levo em conta, assim, as premissas de que o discurso é estruturado
pela dominação; que cada discurso é historicamente produzido e
interpretado, isto é, está situado no tempo e no espaço; e que as
estruturas de dominação são legitimadas pelas ideologias dos grupos
que detêm o poder legítimo, não sendo os signos arbitrários. Com essas
bases, é mister analisar também as possibilidades de resistência às
relações desiguais de poder, que figuram como convenções sociais.
Essas afirmações levam a crer que a análise do discurso é ideal para a
proposta deste estudo, tendo em vista a perspectiva de que a realidade
é uma construção social e que os sujeitos se constroem em meio às
relações de poder, legitimam ideologias por meio do discurso e
Jessica Eluar Gomes • 221

interpretam o mundo que os cerca a partir de suas formas de


representação.
O que faço agora aqui, neste capítulo é provocar reflexões a partir
dos resultados da pesquisa, enfatizando a relação complexa entre
pesquisadora e pesquisados, tecida pela discussão sobre distância e
proximidade, sobre modos de fazer da pesquisa, permeados por
perguntas sem respostas objetivas na pesquisa sócio-espacial em
Estudos Organizacionais. O objeto de análise é a experiência de
pesquisa, potencializada por se tratar de uma pesquisadora em
formação, experimentando novas formas de lidar com o objeto em
estudo, situação tratada por Pessoa, Cruz e Oliveira (2016, p. 1) como
sendo o pesquisador um “marinheiro de primeira viagem” ao também
analisar a experiência da pesquisa com inspirações antropológicas em
Administração, englobando a discussão sobre os desafios do
antropólogo.
Na perspectiva de Misoczky, Flores e Böhm (2008), é uma tarefa
fundamental para os estudiosos críticos das organizações enquanto
agentes políticos explorar os processos de organização de resistência e
das lutas sociais que tendem a ser ignoradas pelo discurso
organizacional contemporâneo. Como tal discurso trata essencialmente
do gerencialismo e nega outras possibilidades para a organização fora
da busca por produtividade, acredita-se que somente ao se dedicar a
esses processos de resistência pode-se contribuir para a contestação da
hegemonia da organização. As diversas possibilidades de existência são
marginalizadas, tendendo a ser negligenciadas, pois os discursos
hegemônicos tentam naturalizar e essencializar a si mesmos como
222 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

única forma pela qual a organização pode se articular, tornando não


existente a multiplicidade de diferentes mundos organizacionais.
Assim, a ideia de trazer o estudo das identidades dos grupos sociais
para os Estudos Organizacionais tem o intuito de ampliar nossa
capacidade de compreensão das organizações. Ressalto que não tratei
das identidades da organização, mas sim identidades na organização.
Estando o objeto de estudo escolhido inserido em outro objeto, a cidade,
vista como organização. São várias as possibilidades de interpretar o
que ocorre na organização-cidade, o que pode ser fonte de
compreensões e interpretações importantes para os Estudos
Organizacionais como um todo.
Pensando na organização-cidade e em suas características,
aprofundar os estudos sobre a cidade de Belo Horizonte e suas
especificidades que contribuem para a configuração dos movimentos
sociais que aqui tomam corpo, também é uma possibilidade de
contribuir para a pesquisa sócio-espacial, pensando em movimentos
contra-hegemônicos ao consumismo e à violência simbólica sofrida
pelas massas. Isso contribui para pensar a organização-cidade e as
formas de ocupá-la, expandindo as zonas de sentido sobre os distintos
modos de viver contrários ao padrão dominante. Torna-se, portanto, de
fundamental importância estudar a cidade repensando as categorias de
análise para além do par público-privado, posto que se trata de um
espaço da dominação, concebido pela convergência dos interesses
estatais e privados, e que, por sua vez, é rigidamente vigiado e
controlado, manipulado para atender e proteger os interesses da
Jessica Eluar Gomes • 223

propriedade privada, base (condição e meio) para a reprodução do modo


de produção capitalista.
Compreender as peculiaridades da organização-cidade implica,
portanto, conceber como os aspectos sociais de práticas organizativas
se relacionam com os aspectos espaciais da cidade, construindo um
conceito mais abrangente, vinculado à prática sócio-espacial.
Constituindo-se uma prática que, ao longo do tempo, transforma a
realidade – sociedade e espaço – em seus aspectos tanto objetivos
quanto simbólicos e culturais, não a cada dimensão em separado. Nesse
sentido, o social e o espacial possuem a mesma importância na análise
e, apesar de se relacionarem dialeticamente, não devem ser confundidos
como iguais nem na realidade e nem na teoria (Souza, 2013). 4

Uma das bases corroboradas na pesquisa foi a de que o processo de


construção das identidades é construído a partir das práticas dos
indivíduos, o cotidiano dos ‘malucos de estrada’ colocado em foco,
produto do conjunto social, permitiu localizar processos de apropriação
do espaço e compreender a maneira como tal grupo constrói sua
identidade com o espaço. A prática sócio-espacial da apropriação
tornou-se, assim, um conceito operacional central para a pesquisa.
A pesquisa tratou-se, talvez, de uma metaconstrução, uma vez que
o processo de construção identitária dos sujeitos de pesquisa que foi
traçado era uma construção minha, com os conceitos que julguei
necessários, a partir dos questionamentos surgidos no próprio campo e
ao longo das minhas leituras, aprendizados, reflexões, subjetivos, pois.

4
Motivo pelo qual, inclusive, o termo sócio-espacial é grafado por esse autor assim mesmo, com hífen,
enfatizando cada dimensão e contrariando a norma culta da língua portuguesa vigente.
224 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Não se pode negar que ocorria, para além da pesquisa, outro processo
de construção identitária, o meu, que é o único lugar a partir de onde eu
falo. O próprio fato de eu estar lá também já possibilitava novas
interações e construções entre membros e não-membro do grupo,
sendo de partida utópica a tentativa de tornar invisível quem fez a
pesquisa.
O maior valor da pesquisa junto aos ‘malucos de estrada’, sem
dúvida, foi a escuta da percepção de cada indivíduo sobre sua situação
de vida em geral. As falas, expressas no trabalho, são o registro das
vivências no campo e das conversas com entrevistados que sempre
situavam historicamente os movimentos que conheciam e/ou tinham
vivido, localizavam os acontecimentos em seus contextos de vida,
observando o ambiente político a sua volta e as construções sociais
reproduzidas em cada momento e espaço.
O fato de estar na Praça, no território dos malucos foi fundamental
para perceber as interações dentro e fora do grupo. As interrupções das
entrevistas por clientes que se interessavam pelo artesanato ou por
outro artesão que vinha oferecer comida, pedir material emprestado ou
dicas para a confecção de uma peça foram fundamentais para compor
minha percepção geral. Em alguns momentos, eram justamente tais
interrupções que faziam fluir as entrevistas, fugindo ao roteiro
previamente estabelecido, mas enriquecendo os diálogos com histórias
já vividas com alguém que passava. Um exemplo disso foi uma das
entrevistadas, Amana , que se emocionou ao ver passar um jovem que
5

5
Nomes fictícios.
Jessica Eluar Gomes • 225

ela havia ajudado a criar quando viajou com a família dele, ou o Arthur,
que falava comigo enquanto orientava sua filha a tomar o sorvete sem
se sujar.
A intenção era a de inserir-me no território, compartilhar o mesmo
espaço, passar o dia todo em interação, conversando, observando-os e
repetir isso por algumas vezes, conhecendo e ganhando a confiança dos
indivíduos do grupo. Assim, colocando-me ali, sentada no chão, fazendo
artesanato, vivendo um pouco, muito pouco certamente, do que é ser
‘maluco de estrada’, pude perceber o olhar dos transeuntes sobre mim,
o olhar dos demais artesãos sobre mim, as relações identitárias se
construindo. A observação participante, que fiz na pesquisa, tem
justamente o mérito de abordar as pessoas “enredadas em relações
sociais que são importantes para elas” (Becker, 1999, p. 76). São
justamente essas restrições sociais que o pesquisador está interessado
em conhecer, pois são elas que tornam “difícil para as pessoas que ele
observa fabricarem seu comportamento segundo o que acham que o
pesquisador poderia querer ou esperar”.
A observação participante é uma estratégia de campo que combina
a um só tempo a participação ativa com os sujeitos, a observação
intensiva em ambientes naturais, entrevistas abertas informais e a
análise documental. A observação participante “refere-se a uma
situação onde o observador fica tão próximo quanto um membro do
grupo do qual ele está estudando e participa das atividades normais
deste” (Mann, 1975, p. 95), também envolve a introspecção, sendo uma
construção da visão do pesquisador sob diversos ângulos (Denzin &
Lincoln 1994).
226 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

O objeto, que é uma imagem com sentido, é sempre um objeto construído


pelo imaginário do sujeito e da sociedade. Isto não quer dizer que o objeto
seja inventado - subjetivismo - ou que a realidade não exista - idealismo -
senão que as coisas para o ser humano só existem enquanto reconstituídas
pelo sentido que as compreende, prendendo-as e as interpreta
interpenetrando-as (Bartolomé Ruiz, 2004, página).

Traçar um esquema objetivo do que é contracultura teria sido


absolutamente incoerente com o universo onde pretendia adentrar. A
partir dos discursos, vistos como prática, é que as percepções e os
significados foram emergindo e se construindo. Os significados,
também para os indivíduos entrevistados foram ficando mais claros ao
longo das conversas. Para Schutz (1979, p. 252), passamos a entender os
sistemas simbólicos dos outros através de um choque que se procede da
seguinte maneira: a realidade que nos parece ser “natural” em forma de
“realidade suprema” (da qual não temos dúvida) nos mantém dentro de
nossa província finita de significado até que vivenciamos um choque
que nos leva a romper os limites dessa província, e propõe mudar o
acento dessa realidade para outra. O que acontece no “choque” é uma
modificação radical da tensão de nossa consciência.
Vários entrevistados, ao buscar caracterizar uma cultura hippie,
falavam sobre a existência de comunidades fechadas onde haveria uma
cultura mais pura, uma vez que nesses locais a mudança cultural
originada a partir do contato com o restante da sociedade seria menor
e os costumes seriam mais próximos dos originais, como no trecho
abaixo:
Jessica Eluar Gomes • 227

(01) [Se] alguém chamar: “Ô hippie”, eu nem olho. Sou artesão, trabalho com
arte. Não existe nem nunca teve aqui [um movimento hippie]. O pessoal aqui
foi no embalo da turma de lá, entendeu? Nunca teve. Existe uma cultura
própria do artesão, que tem muita comunidade que o pessoal é ali fechado,
que tem sua cultura de subsistência. A educação dos filhos em escola, eles
mesmo que educam. Tá todo mundo fechado. É tudo pessoal da antiga
mesmo, que é um pessoal já de idade, entendeu? (Arthur)

Neste trecho de uma das entrevistas, Arthur mencionou a 6

existência das comunidades fechadas, nesses locais isolados teria


acontecido menos o que é denominado na Antropologia de
“aculturação”, isto é, “o conjunto de fenômenos que resultam de um
contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas
diferentes e que provocam mudanças nos modelos culturais iniciais de
um ou dois grupos” (Cuche, 2012, p. 111). Durante muitos anos, o
interesse antropológico era de fato por estudar somente uma cultura
7

pura e intocada. No entanto, de acordo com Cuche (2012), a partir de


Herskovits se percebeu que a aculturação também é fato autêntico e
digno de ser estudado, pois o contato entre as culturas pode levar à
formação de algo novo. A interação leva a uma nova construção, o que
aparentemente é incoerente entre culturas se choca, se mescla e
constrói uma nova possibilidade de ser no mundo que transcende os
pressupostos originais.

6
Nesta e nas demais transcrições das entrevistas não levei em consideração os eventuais erros
linguísticos e gramaticais, visto que minha intenção foi preservar a espontaneidade das expressões dos
entrevistados.
7
A antropologia e a administração intensificaram relações, especialmente na década de 1980 (Jaime,
1996), sendo a etnografia, por exemplo, adotada por pesquisadores na área da administração nos
variados contextos, entre o quais posso citar: Zimmer (2009), Flores-Pereira e Cavedon (2009), Tureta
(2011), Pinto e Santos (2012), Oliveira e Cavedon (2013), Davel e Santos (2015).
228 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

DOS CHOQUES

O pesquisador, em um universo exótico ou familiar, tem a missão


de “mergulhar” no contexto em estudo de maneira a estar tão próximo
que passe a identificar regularidades, arranjos, dinâmicas. A
familiaridade com o contexto observado pode trazer vantagens, mas
também desafios ao pesquisador que deve se desprender de
preconcepções já estabelecidas. Mesmo com mecanismos de
acomodação e continuidade do sistema social, o potencial de conflito é
permanente e a realidade social é constantemente negociada entre os
atores que têm interesses conflitantes. Segundo Velho (2013), os
diferentes tipos de divergências resultam em adaptações cujo resultado
pode ser inconstante ou até imprevisível, diante disso, a ciência social é
constantemente desafiada na tarefa de examinar criticamente a
sociedade, fazendo questionamentos, repensando posicionamentos,
revendo ideias. Seja em um contexto social exótico ou familiar, o desafio
do pesquisador será o de identificar o que há de intrigante contido nas
relações comuns, de pessoas comuns em cotidianos comuns.
O principal choque que tive durante a pesquisa com os ‘malucos de
estrada’ foi em relação a determinações de comportamentos no
cotidiano marcadamente relacionados ao gênero, como no trecho de
entrevista abaixo mostrado.

(02) Movimento hippie, não. Existe uma cultura, de malucos de estrada, uma
malucada. Tem cara que chega aqui e não cumprimenta, “Olá! Bom-dia”.
Tem gente que vem aqui, faz um brinco, um colar, aprende na internet. É
isso que nós chamamos hippies, porque são burgueses, que vem, faz umas
coisas aí, passam por hippie, mas não têm nem ideia do que é nossa cultura.
Jessica Eluar Gomes • 229

Não troca ideia, não nos respeita. Chega com sainha curtinha... Nós não
aceitamos isso, pra não ter briga entre nós. Somos sérios. Mulheres são
sérias. Não pode chegar aqui mostrando as pernas aqui. (Juan)

Neste trecho (02), Juan afirmou existir uma cultura dos malucos e
que muitas pessoas desconhecem isso, acreditando que apenas o fato de
chegar fazendo o artesanato já os colocaria dentro do grupo, mesmo
tendo apenas aprendido a técnica na internet. Esses que tentam se
passar por malucos é que seriam os hippies, na visão dele, por serem
burgueses e não respeitarem a cultura. O respeito implicaria então, o
seguimento das regras, para que não houvesse conflitos internos. Entre
as práticas das pessoas de fora que desrespeitam o grupo, Juan
apresentou exemplos como: não cumprimentar, não trocar ideia e não se
adequar ao padrão de vestimenta aceito, visto na fala chega com sainha
curtinha. Nós não aceitamos isso. O fato de serem homens e mulheres
sérios é o que justifica que os corpos devem ser cobertos em respeito uns
aos outros. Ou, como ficou ainda mais claro neste outro trecho de
entrevista:

(03) Então, hoje em dia é totalmente diferente. Uma mulher, pra virar hippie,
tá ligado, no mínimo, ela tem que ter um saião até o joelho, tem que ter uma
calça por baixo do saião, ela tem que usar uma blusa, um topper e outra blusa
por cima, porque nós ficamos 24 por 48 horas juntos, cara, homem e mulher.
Então não preciso falar mais nada, né, cara. Homem e mulher dá choque,
venhamos e convenhamos. É uma convenção...
Porque têm pessoas casadas no meio, né, velho...
Então, não fica muito legal minha mulher ficar sentada e o cabra ficar
olhando pras pernas dela ou alguma coisa assim. Não que não aconteça,
porque, venhamos e convenhamos, acontece mesmo, mas é pra evitar.
(Miro)
230 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Outro entrevistado, Miro, colocou no trecho 03 que há uma


convenção estabelecida de como a mulher deve se comportar, de como
deve se vestir. O implícito é que, para evitar os conflitos da relação de
gênero, a mulher é que deve moldar seu comportamento, mantendo-se
totalmente coberta, com várias blusas, saia e calça, para que o homem
não a deseje, silenciando sobre nem considerar a possibilidade de o
homem respeitar a mulher independente da roupa que ela use. Essa
afirmação, justificada pela interação conflituosa entre homens e
mulheres, assinalada pela metáfora dá choque, confirma que há uma
“disputa simbólica acerca das marcações corporais, na qual as roupas
são artifícios que, além de demarcarem as fronteiras da divisão entre os
gêneros masculino e feminino, registram marcações hierárquicas de
poder” (Helene, 2013, p. 74). Isso quer dizer que o que as mulheres podem
ou não fazer influencia diretamente sua construção de identidade e
marca uma relação sexista de poder e dominação no grupo social. O
interdiscurso de que o padrão normativo é machista se faz presente ao
enunciar Então, não preciso falar mais nada, né, cara. Isto é, a justificativa
é tão óbvia que nem precisa ser explicada.
Na argumentação de Butler (2008), os regimes de saber-poder
constituem o sexo como um definidor natural da identidade, ou seja, o
sexo aparece como principal objeto produzido para a normalização do
social. Ainda segundo a autora,

Essa produção constringida funciona ligando a categoria do sexo com a da


identidade; haverá dois sexos, distintos e uniformes, e eles vão se expressar
e se tornar evidentes no gênero e na sexualidade de modo que qualquer
Jessica Eluar Gomes • 231

manifestação social de não identidade, descontinuidade, ou incoerência


sexual será punida, controlada, repudiada, reformada (BUTLER, 2008, p. 97).

Para a autora, ainda, é por meio das estratégias de normalização


que a sexualidade se torna um dos referentes para a objetificação, na
relação consigo e com os outros, e para a ordenação dos sujeitos a partir
do Século XIX, sendo sua produção relacional aos movimentos de
circunscrição das ciências da reprodução e da razão, as quais, em certa
medida, colocam em jogo ligações supostamente inequívocas entre
sexo, gênero e sexualidade (Butler, 2008).
Quanto a mim, no texto da dissertação reconheci meu incômodo ao
vivenciar tais questões no campo, registrados no diário de campo. O
trecho abaixo contribui para a percepção do contexto:

(DC01) Me levantei do pano do Juan após a entrevista. Andei um pouco entre


os artesãos e logo me aproximei da Vanessa, que tem 38 anos e é daqui de
Belo Horizonte. Estávamos na calçada da Afonso Pena com Rio de Janeiro.
Ela parecia ressabiada quando comecei a falar sobre minha pesquisa e a
fazer perguntas. Respondia desconfiada e me disse que se eu comprasse
algo dela, poderia ser entrevistada. No meio da conversa, me disse para não
sentar no pano de maluco com uma saia curta dessa. Ao questionar o
motivo, ela disse que é porque pode mostrar minha calcinha. Enquanto eu
conversava com a Vanessa, a Luana se aproximou e nos chamou para uma
“roda só de Lulu”. Fomos subindo a praça. Elas chamaram mais uma moça,
que eu não conhecia, a Marli e a Graziela, que estavam mais acima na rua
Rio de Janeiro. A Luana me apresentou como estudante e contou que estou
fazendo uma pesquisa sobre os malucos. Disse que eu já tinha conversado
muito com a mãe dela. Percebi que as outras mulheres ficaram um pouco
desconfiadas. A Luana acendeu um cigarro de maconha e começou a rodar.
Pensei que se eu recusasse elas não me deixariam ficar ali. Então, ao passar
por mim, coloquei o cigarro na boca e fingi tragar. O clima se descontraiu.
232 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Me pediram para tirar fotos com elas, para colocar no Facebook. Todas
tinham celulares. Luana disse que ia me dar uma ideia. Falou para não eu
não me sentar com saia curta no pano de maluco. Disse: “Ah! A gente gosta
da saia comprida. É mais bonita... Mas não é só isso. Maluca é muito
ciumenta. Se você tiver falando com o namorado dela e ela tiver bêbada, já
vai chegar te dando voadora”. Me disse que, para evitar problema, era
melhor eu ter cuidado. A Graziela disse que às vezes até usa saia no joelho,
mas aí coloca uma calça por baixo. E levantou a saia para me mostrar que
estava de calça, pois às vezes precisa usar as pernas e pés para fazer algum
trampo e pode ficar à vontade. As outras concordaram e me disseram para
eu também chegar primeiro conversando com a mulher que estiver por
perto, nunca com o homem, porque a maior parte ali na praça era de casal.
E Luana disse que, como maluco chama muita atenção, as “cocotinhas”
gostam. (Trechos de diário de campo)

A situação relatada acima aconteceu em um domingo à tarde, em


que, após passar pela Avenida Afonso Pena, para conversar com alguns
artesãos que ficam mais próximos da Feira Hippie aproveitando o
movimento para vender o artesanato, fui para a Praça Sete ver como
ficava por lá em dias de feira. Nesse dia havia poucos artesãos. O
movimento de pessoas era pequeno. Então aproveitei para me
aproximar de alguns e conversar. Enquanto eu entrevistava o Juan,
percebi seu incômodo com o fato de eu estar usando uma saia acima do
joelho quando perguntei se podia me sentar para entrevistá-lo. Ao longo
da entrevista, ele chegou a mencionar que os malucos são considerados
machistas, mas na verdade, era respeito. Ele não me olhava diretamente
nos olhos. Evitava o contato visual.
Quando já estávamos quase no fim da entrevista, ele estava menos
incomodado. Como estava organizando suas peças no pano para expor,
Jessica Eluar Gomes • 233

perguntei se podia ajudar. Enquanto conversávamos, já não em tom de


entrevista, e eu o ajudava a colocar o artesanato, ele pegou seu casaco e
o colocou sobre minhas pernas, dizendo: “Aqui a gente faz é assim”.
Fiquei um pouco intrigada, mas percebi que ele havia ficado mais
tranquilo por eu estar coberta. Depois, ele se ofereceu para me ensinar
a fazer uma pulseira. Entregou-me um pedaço de linha e começou a me
mostrar como era. Percebi uma agitação entre os demais artesãos, pois
estavam organizando um churrasco. Juan me mostrou a lata onde
assariam a carne, que ficava guardada nos galhos de uma árvore.
Percebi que ele queria ir ao supermercado com os outros para comprar
as coisas para o churrasco. Então, agradeci e me levantei, para tentar
conversar com mais alguém.
Foi quando me aproximei da Vanessa, como relatado acima. Depois
da conversa com as malucas, percebi o quanto minha atitude não havia
sido bem vista. E, como pretendia voltar ali mais vezes e me aproximar do
grupo, não fiz mais nenhuma entrevista nesse dia. Saí logo dali, com
minhas pernas descobertas. Aproveitei para passar na Feira Hippie e
comprar umas saias longas, pois, mesmo que problematizasse a
determinação de comportamentos por outrem, entendi que não poderia
voltar a campo e obter uma aceitação se não fosse dessa forma. Optei por
moldar parte do meu comportamento durante o tempo da coleta de dados.
Inicialmente justifiquei como tendo sido esta situação favorecida
pelo dia em que eu fazia as entrevistas. Era domingo de sol, eles estavam
se preparando para fazer um churrasco, a praça estava vazia, sem o
tumulto dos dias de semana em que se tem menos a ideia de lazer do que
de trabalho. Eu estava vestindo o que para elas era uma saia curta e que
234 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

no fim das contas, portanto, meu intuito ao estar ali naquele dia deveria
ser o de conquistar algum dos malucos e não o de fazer pesquisa. Para
minha subjetivação da construção cultural, não havia problema nenhum,
justamente por ser um domingo de sol e calor, não faria sentido usar duas
blusas de manga sobrepostas com saia longa sobre calça. Mas, quando na
“Roda de Lulu” as mulheres me repreenderam, aprendi de forma explícita
que era necessário respeitar os códigos para estar ali e, só
posteriormente, refletindo sobre o processo, é que elaborei como aquela
roda foi um rito de passagem meu entre as mulheres do grupo.
A sensação logo depois que saí da praça foi de estar inadequada e
culpada, pois de certa forma eu havia invadido o espaço delas, sem me
aproximar das mulheres primeiro, sentia como se tivesses ferido a um
tácito código de ética feminino, mas que, como percebi ao me deter um
pouco mais na questão, mais do que tudo reforça a rivalidade entre
mulheres e é pautado em padrões heteronormativos de dominação
masculina e disputa pelo falo. Hoje, acredito, um dos meus focos da
pesquisa no/do grupo social seria o de tensionar o pensamento dicotômico
instituidor do sexo e definidor do gênero e da ação compulsória da
heterossexualidade. Sobre a relação heterossexualidade versus
homossexualidade, por exemplo, não tenho dados para validar, pois não
fiz este recorte nos questionários. Certo é que não registrei em nenhum
relato sobre casal homossexual no grupo dos ‘malucos de estrada’, também
não me lembro de ter conversado com nem ouvido falar sobre alguma
pessoa transexual no grupo. Assim, a partir do que observei, suponho
apenas que haja dois únicos gêneros representados prioritariamente, com
seus papeis muito marcados na cultura dos malucos.
Jessica Eluar Gomes • 235

As relações homens/mulheres, analisadas aqui como relações sociais


de sexo, parecem ser em todos os casos, o produto de um paradigma, qual
seja a pseudonatureza superior dos homens, que remete à dominação
masculina, ao sexismo e às fronteiras rígidas e intransponíveis entre os
gêneros masculino e feminino; e a visão heterossexuada do mundo na
qual a sexualidade considerada como “normal” e “natural” está limitada
às relações sexuais entre homens e mulheres. As outras sexualidades,
homossexualidades, bissexualidades, sexualidades transexuais não
partilham do mesmo padrão de naturalidade.
Outro exemplo que corrobora essa visão é o fato de a maior parte das
mulheres que estavam na praça estar com o marido ou namorado. No dia
descrito acima, por exemplo, somente Luana e Marli estavam sozinhas.
Marli disse que viaja sempre com o filho, que é muito ciumento, motivo
pelo qual ela não pode namorar. Então, tem que fazer isso escondido dele,
mas não vê a hora de ter um “cobertor de orelha”. Luana vive com seus pais,
também artesãos e, segundo Amana, sua mãe, ela vai começar a “carreira
solo” agora e logo vai arrumar um “rapaz bem bonito” para viajar junto.
Essas questões podem dizer sobre o papel da mulher na cultura dos
‘malucos de estrada’. Há um silenciamento sobre a construção das
relações que pode ter como causa, por exemplo, o medo de violência nas
estradas e nas ruas, o que faz com que as mulheres busquem alguma
forma de segurança e proteção na relação com um homem.
Desde que comecei a me aproximar dos malucos, decidi fingir não
ter percebido alguma forma de assédio nas falas de homens para poder
continuar a conversa, principalmente nos dias em que fui para a praça
à noite. Quando eles pareciam estar bêbados era ainda pior e eu me
236 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

afastava. Vários chegavam a me convidar para viajar com eles, dizendo


que se eu estivesse junto seria mais fácil eles pegarem carona, situações
que me possibilitaram ter uma percepção de mulher objetificada e
usada. Nas sensações experimentadas durante abordagens assim, senti
inteiro desconforto.
Posso dizer, que na vivência do campo, me uno a Kuschnir (2003),
Soares da Costa (2003) e Piccolo (2003), que, ao lado de outras
pesquisadoras, falam do medo na cidade. Enquanto a primeira autora
analisa o cotidiano da política no Rio de Janeiro, a segunda estuda os
usuários de drogas na cidade de Porto Alegre, e a terceira centra-se num
grupo carioca vinculado ao movimento hip hop. Os artigos contribuem
para a discussão sobre o medo na cidade, principalmente pelo fato das
autoras relativizarem e problematizarem as noções de risco e violência
geralmente associadas às camadas populares urbanas. Tomando cada
situação com suas singularidades e proporções, falamos e vivenciamos
o medo que as mulheres sentem na cidade. Um medo que não será o
mesmo sentido por nenhum pesquisador, ainda que este também seja
real. Como percebeu Kuschnir (2003), “uma antropóloga mulher talvez
seja exposta com mais facilidade e recorrência a questões morais do que
pesquisadores do sexo masculino”, o que é explorado no
aprofundamento dos estudos no meio urbano contemporâneo, mas
também se aplica à estudante, à artesã, à maluca de BR, à professora, à
mulher, de qualquer profissão que seja, com maiores ou menores
vulnerabilidades, em relação ao seu oposto masculino.
Tive medo de tomar a ‘voadora’ durante uma entrevista, tive medo
de ser mal interpretada, tive medo de sofrer qualquer abuso, outras
Jessica Eluar Gomes • 237

vezes tive medo da polícia, tive medo de ser assaltada, agredida, senti
ainda mais como estar na rua é estar exposta; com minha quase
nenhuma experiência tão intensa na rua, mal consigo imaginar o medo
que todas essas mulheres sentem. Se as malucas constroem couraças é
porque pode ser necessário para aguentar a dureza do asfalto. Aprendi
muito com a força e o olhar delas. Hoje talvez eu reagisse de forma
diferente a cada situação, mas somente por me permitir ir mais fundo
em muitos conflitos internos, resultando em muitas desconstruções dos
meus valores, todo o tempo.
A cobertura do corpo com saia até os pés e várias blusas de manga
comprida que, tal qual uma burca, podem ser consideradas
aprisionadoras, podem esconder e isolar a mulher, além de uniformizar
a aparência e apagar a subjetividade. Mas, é necessário expandir a
percepção para o fato de que eu também não posso dizer que tenho um
corpo livre por ser o uso de saia curta ou short permitido em minha
cultura ocidental, há diversas outras prisões inscritas em meu corpo
mais ou menos sutis. Fiz essas considerações de ordem particular, que
julgo importantes para situar as percepções feitas sob o meu olhar, e
ressalto que, assim como a burca pode não incomodar às muçulmanas,
o uso da saia longa foi reafirmado pelas ‘malucas de estrada’, como
vimos, e, mais ainda, que não é possível separar as mulheres que usam
porque querem daquelas que usam por uma questão social,
considerando que todas foram socializadas nessa cultura. Como bem
analisou Ferreira (2013, p. 184), “considerar que toda mulher que usa
burca é submissa e deve ser ‘salva’ pelos ocidentais é tão violento quanto
obrigá-la a usar tal vestimenta. É importante dizer que o véu não subtrai
238 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

o pensamento, e a ausência dele não é significado de autonomia.” A


autora cita feministas muçulmanas que falam a partir de seu lugar na
cultura, com suas próprias experiências, desconstruindo e
reconstruindo os movimentos por dentro, em seus processos
disruptivos e de empoderamento a partir de seus costumes. O
aprendizado ratificado é de que não é possível, portanto, compreender
a essência e a natureza humanas esvaziadas do social.
Um exemplo metafórico simples é perceber como hoje considero,
por exemplo, que as saias que comprei naquela época viraram as roupas
mais confortáveis do meu guarda-roupa. Usando-as, passei a entender
bastante a vontade das mulheres de se vestirem assim, me sinto
conectada a elas e a todas as mulheres, e irônico é que a sensação de
conforto se aproxima muito mais de liberdade do que prisão. Apesar de
ter pré-noções antes de ir a campo, a permissão a explorar as atitudes,
sem buscar uma crença mais autêntica ou verdadeira mostrou-se
reveladora, rompendo gradativamente com os estereótipos a respeito
do tema e construindo novas percepções.
A descrição de Cavalcanti (2003, p. 118) sobre o “deixar-se levar”,
no trabalho de campo, pode traduzir mais aproximadamente a
conclusão a que chegamos com a experiência aqui relatada. Deixar-se
levar, porém com intencionalidade, pela sensibilidade de pesquisador,
mais que pela preocupação de padronização das técnicas e dos
instrumentos; pelas relações que vão se construindo com os
interlocutores e que, por serem constituídas por uma "via de mão-
dupla", também não podem ser padronizadas. Estar disposto a essas
relações, particularmente delicadas, possibilitou a construção do campo
Jessica Eluar Gomes • 239

de estudo em sua diversidade, pois cada pessoa entrevistada


determinou uma dinâmica própria para o desenvolvimento da pesquisa,
um grau de abertura variável, uma forma diferente de lidar com os
instrumentos de pesquisa, assim como me concederam, e a si próprios,
diferentes posições ou "papéis" durante a realização do trabalho.
Os estranhamentos por ser alguém de fora do grupo fizeram com
que eu adotasse estratégias de aproximação, de alguns eu comprei
alguma peça de artesanato, com outros fui convidada a aprender
técnicas de artesanato e ajudei a colocar as peças no pano e mesmo a
vendê-las. Foram se multiplicando vivências que aproximam, como
partilhar comida, participar da roda de mulheres, ajudar a decorar as
grades da praça para o Natal.
Conseguir me aproximar e ganhar a confiança dos entrevistados
era fundamental para que passassem a olhar para mim menos como
uma pesquisadora do que como alguém curiosa em ouvir seus relatos,
permitindo que a conversa fluísse de forma mais amena, menos
controlada. Da mesma forma, os entrevistados também desenvolvem
estratégias para se relacionar com o outro, e, estando em sua zona de
conforto, possivelmente suas habilidades para negociar e controlar a
situação seriam maiores do que as minhas como interlocutora.
Foram somente por alguns instantes, por alguns dias, em que
participei do cotidiano dos ‘malucos de estrada’. Por isso o que realizei foi
uma observação participante, não uma etnografia, que exigiria maior
mergulho no universo do objeto, uma vivência contínua por um período
de tempo mais extenso. Mesmo que eu tenha convivido com eles por um
tempo, mesmo que eu não fosse mais vista como desconhecida, eles
240 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

continuaram expondo-se com intencionalidade, produzindo


racionalmente, talvez não conscientemente, um contexto de atos
discursivos.
Conforme eu aumentava minha experiência no campo, fui
descobrindo familiaridades e exotismos, distanciamentos e
aproximações. Agora que não estou no momento da pesquisa, nem mais
imersa na temática do objeto, me sinto ainda mais distante do grupo
social. Intrusa. Estranho reler de relatos de intimidade, uma intimidade
que naquele momento eu tive com indivíduos, mas que não permaneceu
com o passar do tempo. Ao passo em que tenho também ainda mais
similaridades agora, pois permaneço construindo aprendizados a partir
de vivências ao longo e após o estudo.

DAS EXPANSÕES

O outro é condição para nossa existência como pessoa, ao passo que


a alteridade é paradoxal, pois é o que nos aproxima e o que nos distancia
do mundo (Bartolomé Ruiz, 2004). Sendo a alteridade parte de nossa
constituição, inerente à condição de seres humanos dotados de
consciência de si, resulta importante perceber que não é possível
dissociarmos nossa identidade autônoma da identidade que se forma
com o outro, pois o outro é também parte de nós, é parte de nossa
construção enquanto seres humanos em todos os momentos. Os
aprendizados se dão no cotidiano, nas práticas, nos diálogos, nas
relações. É no pano estendido na rua onde se aprende a fazer a
artesanato com os mais experientes, onde ocorrem as trocas de
Jessica Eluar Gomes • 241

materiais, o compartilhamento de alimentos, onde a cultura é


retroalimentada e ressignificada.

(04) Eu tive a oportunidade de ver os malucos antigos. Os malucos antigos


saíram na ideia de paz e amor. Foi na época que eles estavam recentes saídos
da ditadura. Era muita amizade, muita alegria. Rolou muito jeans
esfarrapado. (...) Esses dias, passou no meu pano aqui um senhor de idade.
Ele também é professor de faculdade e ele foi hippie, foi maluco de BR, e ele
fala que eles sentavam e conversavam. Liam muito. Era muita leitura, muito
livro, sabe? (...) Sempre existiu a droga, a maria juana, né, que na verdade, é
uma droga mais light, né, é uma droga só pra viajar mesmo, pra sair do
stress. Mas os malucos da década de 1960 foram esses, né. Eles deram
abertura, eles deram abertura pra gente hoje. (Amana)

Na percepção de Amana sobre os hippies da década de 1960, a


entrevistada traçou um percurso semântico a partir da figura dos
malucos antigos, que estavam vivendo todo o contexto da ditadura no
Brasil, período que foi do golpe militar em 1964 até a redemocratização
em 1985, fazendo um paralelo com os malucos de hoje, enfatizando que
foram os malucos antigos que deram abertura, isto é, foram precursores,
iniciaram algumas rupturas sociais, que possibilitaram o surgimento
dos malucos de hoje. Ao longo do discurso, apareceram os termos
maluco, hippie e maluco de BR como sinônimos para denominar os
indivíduos pertencentes ao grupo.
Seja em se tratando do grupo dos Provos , na Holanda, dos Hippies
8

dos EUA ou dos ‘Malucos de Estrada’ no Brasil, é possível perceber como

8
Grupo social nascido na Holanda, na década de 1940. Responsável por antecipar os questionamentos
à ordem social e propor, por exemplo, o abandono dos automóveis e o uso do transporte público,
marcado pelas bicicletas brancas de propriedade coletiva. Ligados ao movimento feminista, os Provos
defendiam libertação sexual da mulher, a adoção de métodos de contracepção e a disseminação da
242 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

os momentos histórico e político do local contribuem para o surgimento


novas formas de viver fora dos padrões preexistentes. Os percursos
históricos apresentados estavam intimamente relacionados às
memórias dos indivíduos e a suas representações simbólicas, para além
de uma história oficial, uma vez que as significações e ressignificações
dos indivíduos sobre sua cultura dão sentido à construção de suas
identidades individuais e do grupo (Pollak, 1989). A contextualização
não é somente histórica ou externa ao grupo, é também a
contextualização do indivíduo, de seus valores de percepções, do
momento da entrevista, das observações do ambiente e de como as
relações estão se estabelecendo ali.
Ao narrar um encontro que teria tido com um desses hippies da
década de 1960, no momento do encontro senhor de idade e professor
universitário, a entrevistada tratou das principais características dos
jovens daquele período, explicitando o que ficou conhecido como o lema
do movimento paz e amor, bem como a amizade, a alegria e o
despojamento na figura do jeans esfarrapado, além de ressaltar o caráter
cultural dos encontros estabelecidos, por meio dos diálogos e leituras,
que eram frequentes. Foi como ela viu e viveu o período. Ao longo das
interações, a entrevistada constrói suas opiniões e posicionamentos,
sua identidade. Como ela explica neste outro trecho:

(05) A liberdade é forma de fugir dessa política, dessa política corrupta.


Fugir desse... desse... tentar um novo. Você tá me entendendo? O que que é

educação sexual. Pode ser considerado um dos resultados das manifestações dos Provos na sociedade
holandesa o reconhecimento, não jurídico, mas fatual, do uso de drogas leves e política de contenção
de dano das drogas pesadas (Guarnaccia, 2001).
Jessica Eluar Gomes • 243

um novo? É tentar um novo. Olha, pra você ver: você nasce, você já nasce
com uma coisa pronta e que antigamente era bem mais forte de “faz o que
eu mando e guarda o que você sabe, entendeu?” E, como se sabe, se cada ser
humano é único. Todos nós somos feitos de conviver com o outro, do que
você vê, do que você percebe, do que você convive, das pessoas com quem
você convive. Então, você vai virando dentro de você um porquê, uma
vontade de trilhar um caminho. E, muitas das vezes, o sistema, que que ele
faz? Você olha pra dentro da escola hoje. O que que é essa escola? É uma
escola falida! Por quê? Porque você vai dentro da escola, muitas das vezes,
e o próprio professor que tá ali dentro (... ) quer passar o que ele acha. E ele
é o dono daquele saber ali. E ele quer fazer com que todos os alunos pensem
como ele ali, senão ele vai ser excluído. Uma coisa muito que chamou a
atenção comigo: “dê a sua resposta, sua opinião”. Aí, você dá sua opinião e
você tira zero na prova por que não era a opinião do professor, não era
aquilo que ele queria. No fugir disso, você consegue perceber, você começa
a perceber que tem um furo ali. (Amana)

(06) A sociedade tem resistência, uma resistência aos meus dogmas, à minha
ideia de vida. Ao mesmo tempo, eu me sinto um pouco parceira, porque, ao
mesmo tempo que eles são resistência pra mim, eu sou resistência pra eles.
Então, há aí um choque, e nesse choque... Quando você tem um choque com
uma pessoa, você tá querendo entender ela. Então, em muitos momentos, as
pessoas começam a compreender, em muitos lugares, como eu tô tendo com
você aqui agora, a gente acaba tendo direito à fala. Muitos lugares já é uma
exclusão. Então, aqui você não entra, né. Do seu jeito, não. Só se você mudar.
Hoje é menos, antes era mais. Eu já tive, muitas vezes, de você ser mandado
embora do local por você não saber dos seus direitos. Hoje não. Hoje, pra
você ver, eu estou dentro de uma escola. Às vezes, não tão estereotipada, mas
com uma ideia que continua a mesma dentro da cabeça. No momento que eu
estou com educadores, eu posso me expressar. É uma resistência. Em alguns
momentos, ela não é boa, mas é precisa. Eu aprendo também a respeitar o
sistema e até dentro do próprio sistema eu tento me colocar e ser respeitada,
me impor com respeito. (Amana)
244 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Como diz Sartre (2003, p. 383), “não é suficiente que eu negue a mim
o outro para que o outro exista, mas é preciso também que o outro me
negue a si, em simultaneidade com minha própria negação. É a
facticidade do ser-para-outro”. Há uma negação instantânea recíproca
entre o “eu” e o “outro”, mas, ao mesmo tempo, como esses não têm
como se negarem a si mesmos, estão se “colidindo entre si”, e a partir
desse momento, não há como retroceder, pois ambos estão refletindo
um no outro. Assim, nas palavras de Amana no trecho 10, a sociedade
tem resistência a mim e eu tenho resistência a eles. Há uma dupla negação,
e esse choque da negação recíproca estabelece uma proximidade, me
sinto parceira, pois, para negar o outro, é preciso compreendê-lo em suas
bases, ainda que seja para desconstruí-las. Embora pareça ser
movimento de separação, o choque que denuncia rupturas, é o que
forma algo novo, sendo o próprio fenômeno da aculturação tomando
corpo e produzindo novas realidades.
A relação de negação opressora e excludente por parte da
sociedade, que só aceita o contato se você mudar, se deixar de ser como
é fez com que ela tivesse que se adaptar para estar dentro da escola,
onde estava cursando faculdade de Pedagogia. As ideias continuaram as
mesmas dentro da cabeça, mas externamente ela teve que mudar para
entrar e ser aceita. Em verdade, ela não foi aceita de fato pela sociedade,
pois teve que modificar sua imagem, deixar de ser estereotipada para
parecer mais próxima do ideal de normal. Amana fala que tal relação
naquele momento da entrevista, em comparação a um período anterior,
estaria melhor, por ter direito à fala e conhecer seus direitos. No entanto,
observando os rumos cíclicos da história, podemos traçar um paralelo
Jessica Eluar Gomes • 245

em que, assim como os ‘malucos de estrada’ antigos que Amana havia


tido a oportunidade de conviver, que viveram os anos da ditadura, nos
vemos agora vivendo os prenúncios de uma nova ditadura no Brasil,
com incontáveis perdas de direitos e das liberdades que pareciam
definitivamente conquistadas. Neste contexto, urge ainda mais resistir,
de dentro do sistema, utilizando suas bases compreendendo a
resistência como Foucault (1979, p. 136, grifos meus):

Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva,
tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de "baixo" e se
distribua estrategicamente. (...) Não coloco uma substância da resistência
face a uma substância do poder. Digo simplesmente: a partir do momento
em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência.
Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua
dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa.

A partir das palavras de Amana no trecho 09, buscar o novo e fugir


dessa política pronta do sistema é negar o poder disciplinar, é resistir a
ele. Talvez o que os malucos busquem seja algo nesse sentido, sentirem-
se livres, na tentativa de inventar uma nova maneira de viver por
perceber que tem um furo ali, e concentrar sua energia revolucionária
especialmente no questionamento da repressão internalizada em cada
um, na busca de si mesmo e do significado da existência.
Amana foi uma das únicas entrevistadas que reecontrei depois do
fim da pesquisa, por acaso, em outra cidade. Em janeiro de 2019, quase
três anos após as entrevistas em Belo Horizonte, eu passava por uma
feira de artesanato que acontecia no início da noite na orla de uma praia
em Vila Velha, no Espírito Santo, quando vi um homem conversando
246 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

com uma das mulheres que expunha ali seus trabalhos. O homem
questionava o posicionamento político da mulher, descreditando das
afirmações que ela fazia sobre as políticas educacionais com as quais ela
concordava, de governos posicionados à esquerda do espectro político
no Brasil. A conversa estava acalorada, o homem defendia o novo
presidente eleito no Brasil em 2018. Passei por eles, reconheci a voz da
mulher e percebi que era Amana. Olhei para ela e tentei verificar se ela
se lembraria de mim, resgatei na memória nossa conversa sobre a
Pedagogia, curso que ela estava fazendo à época, seu conhecimento
sobre as escolas para ciganos que não existiam para os malucos, e as
políticas públicas de educação e assistência social.
Resolvi intervir e contei para o homem que eu havia entrevistado
aquela mulher em Belo Horizonte alguns anos antes para minha
dissertação de mestrado sobre o grupo dos ‘malucos de estrada’, que a
admirava pelo seu conhecimento em educação, suas sugestões de
políticas públicas e que eu, assim como ela, tinha visões semelhantes
sobre política e relações sociais de poder, inclusive na visão sobre o
momento político vivido no Brasil sobre a vitória da direita e a ascensão
do fascismo. Ele pareceu impressionado, se assustou ao ver defendendo
o mesmo que Amana defendia, do mesmo lado que ela, embora ali eu
fosse turista como ele.
Quando aconteceu esta situação, percebi que quando fiz a pesquisa,
nos idos de 2016, embora já estivessem mais fortes do que em anos
anteriores, as discussões políticas ainda não estavam tão espalhadas por
todo o país, de forma tão intensa, urgente e polarizada como se mostrou a
partir de 2018. Fosse este o momento das entrevistas, pressuponho que
Jessica Eluar Gomes • 247

certamente o assunto eleições surgiria nas conversas, as visões sobre


política, democracia, enfim. Não tenho dados hoje sobre o posicionamento
político dos ‘malucos de estrada’ que entrevistei, nem mesmo a opinião de
todos sobre seu papel na política, o que consideram sobre a decisão de
votar ou não, o quanto estão fora deste sistema, e por aí vai.
Conversamos nas entrevistas, como era um dos objetivos do
trabalho, sobre lutas por direitos, incoerências na atuação da prefeitura
de Belo Horizonte, que, de forma paradoxal e parcelar, reconhece em
documentos oficiais a existência de um grupo social de “artesãos
nômades/hippies” com características próprias, que os diferenciam dos
ambulantes, por exemplo, mas nega as especificidades do grupo e faz
determinações de disposição espacial e comportamento aceitos que se
opõem e interferem na identidade do grupo. Mas depois do encontro
com a Amana na feira de Vila Velha ficou mais nítido o fazer política dos
‘malucos de estrada’. As práticas de resistência e ressignificação do
espaço público são atos totalmente políticos, sem que os indivíduos
precisem ter título de eleitor ou comprovante de residência que limite
sua atuação ao espaço geográfico definido. É ato totalmente político,
criticar em voz alta o governo eleito numa praça do Espírito Santo ou
questionar as políticas da prefeitura da capital mineira.
O controle do indivíduo no espaço e no tempo prevê uma
distribuição dos indivíduos orientada pela ideia de se ter cada sujeito
em um lugar específico. Tal procedimento teria a finalidade de evitar a
formação de grupos, o que facilitaria o controle das frequências e
ausências, assim como determinaria a localização exata de cada um no
sistema. O princípio da ordem, desse modo, estabeleceu cada sujeito em
248 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

um lugar, hierarquicamente controlado. A vigilância dos corpos e o


controle do indivíduo no espaço e no tempo são, portanto, segundo
Foucault (1979), estratégias utilizadas pelo poder para garantir a
docilização do indivíduo e torná-lo útil à sociedade.

(07) A gente não se enquadra na sociedade de forma alguma. Nem um


pouquinho. A sociedade, o mundo dele é um, o nosso mundo é outro, cara.
A sociedade, tipo assim, você tá viajando, você tá não lugar que você não tá,
que você não mora, as pessoas olham você, velho, tipo assim, você tá
vendendo artesanato, então você tá se traficando, você tá roubando. Daí
pra lá. Eu vejo as outras pessoas como muito nego frustrado, muita gente
que tem grana pra caramba, que só vai atrasar o lado da gente. (Rogério)

Tendo a sociedade moderna, por meio de práticas disciplinares,


construído um sistema de poder baseado no controle e na submissão dos
corpos, a prática exposta pelo entrevistado Rogério no fragmento 10, de
viajar, estar não lugar em que não mora, é vista com repulsa pela
sociedade. Os artesãos não estariam, então, no mesmo mundo,
enquadrados nas regras do sistema. Percebamos que negar o trabalho
disciplinador fixado espacialmente é fazer com que ninguém saiba onde
ele está, não ter comprovante de residência é não permitir ser
controlado e vigiado. Embora esteja nas ruas expondo-se, pode estar
aqui hoje em outra cidade amanhã. Além disso, ser nômade também tem
relação com o desapego da propriedade privada, da necessidade de ter
casa, carro, móveis. Basta uma mochila com poucos pertences. É se opor
à ideologia capitalista e às referências sociais de ordem e estabilidade.
No que se refere ao trabalho realizado, seu artesanato é negado
socialmente, desvalorizado, confundido com tráfico e roubo,
Jessica Eluar Gomes • 249

criminalizado, portanto. O próprio trabalho, para Foucault (1979), tem


um papel disciplinar importante:

Acontece que me ocupei de pessoas que estavam situadas fora dos circuitos
do trabalho produtivo: os loucos, os doentes, os prisioneiros e atualmente
as crianças. O trabalho para eles, tal como devem realizá−lo, tem um valor
sobretudo disciplinar. A função tripla do trabalho está sempre presente:
função produtiva, função simbólica e função de adestramento, ou função
disciplinar. A função produtiva é sensivelmente igual a zero nas categorias
de que me ocupo, enquanto que as funções simbólica e disciplinar são muito
importantes. Mas o mais frequente é que os três componentes coabitem
(FOUCAULT, 1979, p. 124, grifos meus).

O artesanato que, diferentemente da arte, possui uma função mais


prática, enquanto aquela tem sido valorizada por sua estética e
contemplativa (Figueiredo & Marquesan, 2014), é um tema relevante
para os estudos das e nas organizações, permite observações sobre os
modos de saber e de aprender no cotidiano (Faria & Leite-da-Silva,
2017). Ainda assim, nos Estudos Organizacionais por vezes é tratado
como amador e desimportante às disciplinas funcionalistas que tratam
do gerencialismo (Carrieri, Perdigão & Aguiar, 2014). O movimento
gerencialista com a intenção de enquadrar a atividade artesanal à lógica
capitalista, tem embasado uma empresarização do artesanato, uma
perda de autenticidade da atividade. O artesanato se posiciona,
portanto, como um caminho de resistência frente aos enfoques
dominantes (Figueiredo & Marquesan, 2014). Definido como uma forma
de arte inferior, o artesanato acaba sofrendo toda sorte de limitações
conceituais tomadas como absolutas que reforçam a marginalidade
250 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

dessa forma de expressão em relação àquelas reconhecidas como


principais, nomeadamente, as chamadas belas artes.
No que diz respeito à análise organizacional, Figueiredo e
Marchesan (2014), reafirmando Cox e Minahan (2002), colocam que “a
própria subordinação do artesanato à arte pode ajudar a explicar
fenômenos organizacionais que também estão submetidos à
marginalidade” (Figueiredo & Marquesan, 2014, p. 131). Em especial,
fenômenos relacionados à vivência dos artefatos enquanto portadores
de significados da cultura organizacional.
Dentro da perspectiva do próprio artesanato como resistência, o
caso dos ‘malucos de estrada’, embora também almejem uma
compensação financeira imediata para o seu produto, e isto influencie
até mesmo a forma como são tratados pelo poder público , tem como 9

principal função, vejo, a função simbólica. Simboliza liberdade do corpo,


espacial e temporalmente, simboliza falta de vínculo social, simboliza a
própria vontade de fuga da função disciplinar exercida por outros
trabalhos socialmente valorizados. Em outras formas de fazer

9
Na dissertação (Eluar Gomes, 2016) fiz um resgate histórico das políticas públicas de uso e ocupação
dos espaços públicos de Belo Horizonte, desde o primeiro Código de Posturas de 1898. O último
documento analisado no trabalho foi a Portaria SMSU 111/2014 (Belo Horizonte, 2014), que
“regulamenta, no Município de Belo Horizonte, as atividades exercidas pelos artesãos nômades/hippie,
em logradouro público, de caráter nitidamente artesanal e transitório”. O texto do documento menciona
o “direito à livre expressão artística e cultural dos artesãos nômades/hippie que transitam na cidade de
Belo Horizonte e vivem da confecção e exposição, no logradouro público, de peças e objetos artesanais
produzidos manualmente” A portaria obriga os artesãos a ficar em pontos da Praça Sete fora da Rua Rio
de Janeiro, sua “pedra”, seu lugar de identificação escolhido, afirma que a fiscalização pode obrigar o
artesão a fabricar peças em sua presença para comprovar que não está comercializando produtos
industrializados e, ainda, que o artesão nem pode colocar valor para venda, mas sim, aceitar
“contribuições pecuniárias espontâneas”. Analisei que, ao mesmo tempo em que o intuito pode ser o
de diferenciar o artesãos nômades/hippie, como denominados no texto, dos camelôs, o que já é um
avanço na forma como os hippies são vistos pela sociedade e certa valorização das especificidades de
sua cultura, a determinação de que a fiscalização pode obrigar o artista a fazer o trabalho na hora, para
certificar-se de que foi fruto de trabalho manual, é uma interferência arbitrária na relação do artesão
com seu trabalho, parte fundamental de sua construção identitária.
Jessica Eluar Gomes • 251

artesanato, os autores acima citados também mostram, a aprendizagem


se dá na prática, com a troca de saberes e habilidades e isso influencia
nas identidades, em um entendimento de que o saber é inseparável do
fazer. E nestas trocas no cotidiano é que os ‘malucos’ interagem uns com
os outros, se encontram, se relacionam, se constroem. Precisando de
pouco material, o pano pode ser pequeno e caber dentro da mochila pra
viajar, coletar materiais diversos, aprender outras técnicas, fugir da
fiscalização, ser ‘maluco de estrada’.

(08) Enfiei a mão no bolso, tirei uma porrada de grão de arroz, joguei no
chão e falei: “Então, pega. Se ficar um, eu vou falar que você num sabe o que
tá fazendo”. Minha estratégia pra fugir da repressão foi essa, começar a
escrever no grão de arroz, porque essa arte eu levo pra todo lugar e quem
souber quanto vale um grão de arroz com dez nomes escritos em trinta
segundos, então me fala que eu pago à vista. “Se você num me falar o preço
agora, vou te falar procê procurar outro emprego pra você”. (Eduardo)

O que Eduardo no trecho 12, chama de estratégia desenvolvida para


burlar a repressão policial estaria, nos termos de Certeau (2000), mais
próximo das táticas. Certeau (2000) traz a distinção entre tática e
estratégia da prática militar para as ciências sociais. Enquanto a
estratégia equivale ao grande plano e pressupõe uma posição de
dominação com certa visão de totalidade (por mais distorcida ou
equivocada que ela seja), a tática é o procedimento que tira proveito da
ocasião, do improviso local, da contingência, da circunstância particular.
Pode-se dizer que a tática está para a estratégia como o cotidiano
está para o institucional. Ou, inversamente, que a ação
institucionalizada tende a agir por meio de estratégias, impondo uma
252 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

organização dominante, enquanto a ação cotidiana é tática, mais


imediatamente relacionada a uma situação específica, cujas
peculiaridades escapam à visão panorâmica dos estrategistas, estando
passível de alterações contínuas. A ação tática no cotidiano pode se
organizar a partir de regras próprias no polo oposto dos expedientes
estratégicos de dominação. Assim, a arte de escrever nos grãos de arroz,
por exemplo, permite que o artesão não se fixe em nenhum lugar,
podendo viajar ou fugir da fiscalização, além de levar todo seu estoque
de materiais em um pequeno pote na mochila.
Faz-se mister observar que, ao longo do tempo, as interações
sociais também se modificam pelas tecnologias que surgem na
sociedade. Isto é, os malucos também se utilizam das novidades
tecnológicas, a internet permite transcender a lógica de espacialização
dos corpos, de como estar em cada lugar, também ajuda em questões
como ensino e comunicação dos nômades. Como já mencionei, muitos
dos indivíduos que observei e/ou entrevistei, possuíam celular e conta
em rede social. Há sites e páginas em rede social de que os indivíduos
fazem parte, combinam de ser encontrar ao longo das viagens, postam
fotos e oferecem dicas de artesanato e materiais utilizados, comentam
sobre conflitos com a polícia, entre outras trocas. Assim como no
restante da sociedade, as tecnologias têm influenciado a forma como os
‘malucos de estrada’ se relacionam entre si, com outros grupos sociais
e com os territórios.
A mobilização para a luta pelos seus direitos e para a organização
de grupos de representação que confrontem as decisões institucionais
foi facilitada pela internet e pelas possibilidades que ela traz. Vídeos
Jessica Eluar Gomes • 253

com cenas de violência policial e outras formas de agressão postados na


internet, por exemplo, são formas de demonstrar a repressão e ganhar
apoio de outras pessoas. A percepção geral dos indivíduos nas
entrevistas era de que a auto-organização estava levando a uma
diminuição da repressão. Apesar disso, como chamam a atenção Lopes,
Kapp e Baltazar (2010) se não há um processo emancipatório, ocorre
uma manutenção do status quo, mesmo em políticas que pressupõem a
participação. Ou seja, a aparência de conciliação sem a alteração do
campo de ação dos agentes pode emparelhar ações emergentes e anular
as possibilidades de transformação social, pois o fato de a nossa
sociedade ter mecanismos que podem ser utilizados para a
representação e a reivindicação dos direitos não quer dizer que não haja
disciplina dos corpos ou que todos tenham as mesmas armas para lutar.
Tais emaranhados de relações permitem resgatar as mesmas
palavras utilizadas no início da argumentação deste capítulo, acerca da
visão da contracultura enquanto constitutiva e reprodutiva da cultura.
Retomando a ideia da aculturação e das construções sociais que se
revelam a partir das interações sociais entre indivíduos com padrões de
comportamentos distintos, que reproduzem ao mesmo tempo em que
transcendem os valores originais de cada cultura, pontuo que são as
interações, as relações no espaço que fazem emergir saberes, estratégias
e táticas de poder e resistência. Enquanto eu estava ali, no centro da
cidade, ao lado dos que são colocados à margem, de fora do grupo dos
‘malucos de estrada’, sentada com eles em seus panos, muitos papeis
foram reproduzidos e, ao mesmo tempo questionados e transcendidos,
desde o meu de pesquisadora, até os muitos de artesãos, artistas de rua,
254 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

nômades, psicólogos das ruas, moradores de rua, filhos que saíram de


casa, pais que viajam com os filhos, entre inenarráveis outros.
As reflexões feitas aqui foram permitidas e vivenciadas nos
aprendizados ao longo do processo de fazer uma pesquisa sócio-espacial
nos Estudos Organizacionais. As duas dimensões se mostraram como
igualmente fundamentais para a ampliação das zonas de sentido sobre as
organizações, principalmente no que tange aos processos de organização
de resistência e das lutas sociais que tendem a ser ignoradas pelo discurso
organizacional hegemônico. A percepção de que a Administração e os
Estudos Organizacionais não se prestam apenas ao gerencialismo e à
busca por produtividade permite ampliar o horizonte das pesquisas para
a multiplicidade de diferentes mundos organizacionais.

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BLACK MONEY E AFROEMPREENDEDORISMO
9
Elisângela de Jesus Furtado da Silva 1

Ana Flávia Rezende 2


Danielly Mendes dos Santos 3

A discussão que tecemos aqui é fruto da Roda de Conversa realizada


na Faculdade de Ciências Econômicas FACE da Universidade Federal de
Minas Gerais em novembro de 2018, integrando a programação do
novembro Negro da UFMG 4. O nosso objetivo é o de demonstrar a que se
refere os termos Black Money e Afroempreendedorismo em perspectiva
ao contexto histórico brasileiro, problematizando a dimensão
econômica como via de inclusão, tal como defendido por Nascimento
(2018).
Essa discussão não pretende oferecer alternativa definitiva, mas
compreendemos que seu valor reside na proposta do debate e reflexão
sobre temas tão caros à sociedade brasileira: exclusão social e
distribuição de renda, elementos importantes e basilares da
desigualdade crescente no país. Para tanto, damos início destacando

1
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Fundação Dom
Cabral. E-mail: elisangela.jfs@yahoo.com.
2
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta da
Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: anaflaviarezendee@gmail.com
3
Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Produtora Cultural. E-mail:
dannymendescanal@gmail.com.
4
A Roda de Conversa Black Money e Mercado de Trabalho aconteceu no dia 13 de novembro de 2018,
integrando a programação do novembro Negro UFMG e as atividades do Núcleo de Estudos
Organizacionais e Sociedade (NEOS). Evento divulgado pela UFMG em: https://ufmg.br/comunicacao/
noticias/evento-na-face-discute-empreendedorismo-negro
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 259

alguns eventos importantes ligados ao quadro de desigualdade. Na


sequência, abordamos alguns aspectos ligados à noção de Black Money e
Afroempreedorismo. Outros temas a reboque e que dizem respeito ao
contexto histórico são tratados em “Brasil: Exclusão social e racismo
estrutural em perspectiva histórica”. Seguimos apresentando os
dilemas atuais que marcam o Afroempreendedorismo e o Black Money e
sua interface com outras esferas sociais, seguido de uma discussão em
torno de apontamentos alternativos, sem, contudo, pretendermos
oferecer uma solução definitiva. Por fim, nas considerações finais
retomamos alguns dos principais argumentos e encerramos ao
demonstrar que a via política é o caminho mais sólido que dispomos na
construção de mecanismos de mudança social.

INTRODUÇÃO

“Um só povo e um só destino”. Esse é o lema do Movimento Black


Money, uma startup baseada em associativismo e empreendedorismo
negro. A proposta da organização está ligada a um contexto específico,
já que há alguns anos, um clima de otimismo e euforia pode ser
percebido tanto em narrativas de representantes políticos negros,
quanto em pesquisas que analisam comportamento social,
principalmente de mercado. Eventos comerciais como a Feira Preta
realizada em São Paulo, encorajam a crença de que estamos diante de
um clima favorável em função do aumento da renda de pessoas negras.
Será?
260 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Em um país marcado por um histórico tão complexo como o Brasil


no que se refere a violência a determinados grupos sociais marcados por
diferenças, como a étnica/racial, não se pode negar que estamos diante
de um processo social em que houve a ascensão econômica de uma
parcela considerável da população, pertencente às chamadas classes C e
D, sobretudo na década de 2000 (Lavinscky et al., 2014).
Com maior renda disponível, esses grupos antes sequer
considerados como cidadãos, tiveram acesso a inclusão, ao menos no
que se refere na capacidade de consumir produtos e serviços que
outrora não tinham acesso. O incremento financeiro proporcionou a
esses grupos demandar produtos e serviços, o que foi observado como
um tipo específico de consumo configurado por pessoas negras, como
estética, moda, cinema, música e educação. De forma simultânea, a
promoção e a representação racial negra se tornaram crescentes, com
aumento do número de artistas, músicos e empresários negros.
Essas mudanças apresentaram contornos distintos na esfera
social. Alguns profissionais procuraram conciliar o aspecto político
contido na luta antirracista e o mercado, configurando nichos de
mercado. Surge então empresas especializadas, consideradas exemplos
de sucesso, sobretudo do ramo estético, como a Beleza Natural, uma
rede especializada em cabelos crespos e cacheados, sendo que em 2013,
a fundadora da empresa Zica Assis foi incluída na lista da revista Forbes
como uma das 10 mulheres mais poderosas do Brasil. Atualmente a rede
está em expansão internacional. O caso dessa empresa reforçou a
possibilidade conciliar consumo e inclusão social. Grandes figuras do
movimento negro passaram a ver no empreendedorismo uma
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 261

alternativa promissora e concreta de acesso à oportunidade,


encorajando o chamado afroempreendedorismo.
Antes de refletir sobre esse movimento, é válido descrever o
cenário no qual ocorre, algo que tem profunda relação com a luta
antirracista travada no Século XX. Durante esse período o esforço era o
de visibilizar a perpetuação da opressão imposta ao povo negro no
Brasil, mesmo depois da formalização da abolição da escravização. Essa
opressão na atualidade está materializada tanto na exclusão social como
na observação dos efeitos do racismo estrutural (Almeida, 2018), que
empurra milhares de pessoas a condições de vida precárias, sendo-lhes
negado o acesso às oportunidades que grupos sociais com
características distintas, como as pessoas brancas não pobres, já
possuem.
O passado de denúncias e lutas travadas contra racismo conferiu
possibilidade de que as diferenças étnico/raciais e o racismo se
tornassem pauta social e de política pública. Em conjunto, esses
processos foram importantes avanços em uma esfera que outrora fez do
mito da democracia racial 5 o manto mascarador das desigualdades
sociais e econômicas, ligadas à questão racial. Nesse cenário, o
embranquecimento foi estratégia para o acesso precário, tanto a nível
de Estado quanto no nível individual. De um lado tem-se medidas
governamentais voltadas a atração de etnias brancas europeias,

5
O mito da democracia racial é a crença que o Brasil é um país constituído por uma sociedade que não
possui conflitos raciais abertos. Havendo uma crença fortemente difundida do país como uma nação
democrática no que diz respeito a questão racial. Para aprofundamento, sugere-se a leitura de:
Guimarães, A. S. A. (2001). Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos Cebrap, 61, 147-
162.
262 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

movimento iniciado ainda antes do fim da escravização instituciolizada


em 1888. Esses imigrantes receberam incentivos do Estado para facilitar
sua fixação no país. Em contrapartida, as pessoas escravizadas ao serem
“libertas” foram abandonas tanto pelos antigos senhores quanto pelos
governantes, sem qualquer contrapartida (Santos, 2003).
Essa situação foi decisiva para o estabelecimento de uma lógica
social pautada na desigualdade e exclusão social, que tem se atualizado
e continua a empurrar as pessoas para a exclusão, na mesma medida em
que promove o aumento da concentração de renda, o que delineia o
processo de desigualdade racial (Osorio, 2009). Segundo dados de 2018,
as seis pessoas mais ricas do país, detém renda equivalente à de 100
milhões das mais pobres, o que representa quase a metade da população
brasileira (Welle, 2018).
Justamente em função desse processo histórico é que os
movimentos negros concentraram esforços para denunciar o racismo
que no Brasil apresenta uma manifestação diferenciada que em outros
países (Nogueira, 2007), mas com os mesmos resultados trágicos, como
genocídio negro e exclusão social. Sendo o segundo maior país em
número de população negra, atrás somente da Nigéria, o debate racial
somente ganhou destaque no Século XX.
As lutas empreendidas no passado, promoveram a questão política
das pessoas negras no Brasil e uma crescente consciência e mobilização
social em torno de formas de inclusão e promoção étnico/racial. A
Convenção de Durban 6 foi um passo importante nesse sentido, já que

6
A Terceira Convenção Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Forma
Correlatas de Intolerância (Conferência de Durban), foi um evento mundial promovido pela ONU,
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 263

nesse evento mundial promovido pela ONU, diversas medidas foram


discutidas e propagadas como forma de reparação histórica aos povos
afrodescendentes. Como resultado desse quadro, surgem as Ações
Afirmativas, como política governamental de promoção da inclusão. No
Brasil, essas ações foram implementadas por meio de cotas em
instituições de ensino superior e reserva de vagas em concursos
públicos, ficando excluído o setor privado.
Após denúncias de racismo em organizações bancárias brasileiras
a Organização Mundial do Trabalho, já que não possuíam pessoas negras
em seus quadros, o debate em torno da desigualdade racial no mercado
de trabalho se intensificou (Jaime, 2016). A pandemia pela Covid-19
contribuiu para a intensificação desse processo, já que pessoas negras
foram as mais afetadas no acesso à educação, à saúde, ao saneamento
básico e são o maior grupo em situação de insegurança alimentar
(Bierrenbach, 2022). É nesse cenário permeado por avanços, mas ainda
cheio de desafios é que emerge a discussão em torno do Black Money e
Afroempreendedorismo.

NOÇÕES SOBRE BLACK MONEY E AFROEMPREEDORISMO

Iniciemos esse tópico falando sobre o Empreendedorismo, pois


dele decorre o Afroempreendedorismo. Mas afinal, o que devemos
compreender sobre empreendedorismo? De acordo com Kirzner (1973),
esse conceito remete a um comportamento específico presente em

realizado em 2001, na cidade de Durban, África do Sul. Ela marcou uma sequência de eventos mundiais
sobre racismo e discriminação durante o século XX, bem como o estabelecimento de formas de
reparação histórica aos povos negros em diáspora.
264 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

pessoas com elevada percepção de oportunidade. Uma infinidade de


compreensões foi elaborada, sob distintos enfoques, mas em síntese,
podemos evidenciar a dimensão da prática empreendedora. A esse
comportamento, podemos destacar alguns termos recorrentes, tais
como inovação, assertividade e flexibilidade, por exemplo.
Empreendedorismo tem origem no contexto econômico e por meio
de grandes revistas de negócios, é possível perceber que o conceito
comparece em uma narrativa que vincula o tema a crescimento e
enriquecimento (Costa; Barros & Martins, 2012). Segundo os autores, a
discussão está em voga desde a década de 1990, procura estabelecer
vínculos entre inovação e aumento de produtividade no âmbito das
organizações. O perfil do empreendedor baseado na abordagem
behaviorista embasada em estudos comportamentais se refere às
práticas ao nível dos indivíduos, que supostamente aumentariam a
possibilidade de projeção profissional na medida em que adotam
determinadas posturas, como assertividade, flexibilidade, iniciativa e
“espírito de liderança”.
Algumas pessoas desenvolveram a capacidade de ler situações e
perceber oportunidades e, embora esses elementos estejam presentes
em narrativas ficcionais de grandes líderes, que os alçam quase a
condição de divindade, no interior do campo da Administração trata-se
de um comportamento que pode ser aprendido. Assim, o repertório
acerca do empreendedorismo prega formas que possibilitariam às
pessoas o aumento das chances de obter êxito no sistema capitalista. No
Brasil, o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 265

Empresas) é uma das principais organizações na produção de conteúdo


e qualificação profissional voltada ao empreendedorismo.
Atrelado ao empreendedorismo, o afroempreendedorismo é
encarado como via alternativa à exclusão social e econômica a que estão
submetidas de forma mais significativa pessoas negras (Nascimento,
2018). O principal entusiasta desta concepção, no Brasil, é o próprio
SEBRAE, com a divulgação de dados que apontaram o aumento de
empreendedores negros entre os anos de 2002 e 2012. Essa concepção
configura o duplo movimento, a maior renda disponível entre pessoas
negras e a possibilidade de criação de produtos e serviços voltados as
necessidades dessas pessoas.
O afroempreendedorismo nada mais é do que o empreendedorismo
realizado por pessoas negras. Em 2015, o SEBRAE publicou um estudo
intitulado “Os Donos de Negócio no Brasil: Análise por Raça/Cor (2003-
2013). O estudo procurou demonstrar o perfil dos Donos de Negócios, os
empreendedores brasileiros, baseado nos dados da PNAD do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. De acordo com os dados,
observou-se uma tendência de crescimento no número de donos de
negócios no país, sendo que em 2003 negros perfaziam um total de 9,5
milhões, esse total sobe para 11,8 milhões, o que representa um aumento
de 24%.
266 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Gráfico 1: Distribuição dos Donos de Negócio no Brasil, em 2003 e 2013, por Raça/Cor

Fonte: SEBRAE (2015).

No gráfico 1, é possível perceber a relação de empreendedores


segundo a relação de pertença racial, no qual há a indicação de mais da
metade das pessoas que trabalham por conta próprias são negras,
situação que é inversa ao se analisar os empregadores, sendo que
pessoas brancas perfazem o total de 68%. Entre 2005 e 2015 o número de
pessoas negras entre o grupo mais rico do país, que representa 1% da
população total, apresentou crescimento, passando de 11,4% para 17,8%,
o que significa dizer que 8 a cada 10 brasileiros mais ricos é branco. No
entanto, no grupo composto pelas pessoas mais pobres, três a cada
quatro pessoas são negras (Vieira, 2016). As poucas pessoas negras no
grupo mais rico, têm condições diferentes. Segundo Gomes et al. (2022),
a atual política tributária frente a composição da renda das pessoas. As
pessoas brancas mais ricas do país têm sua renda baseada em lucros e
dividendos, para as quais a alíquota do imposto de renda é de 8,8%. Já as
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 267

pessoas negras mais ricas do país, possuem renda associada ao trabalho,


o que faz com que a alíquota suba para 13,14%.
O estudo do SEBRAE (2015) alimentou a euforia em torno de um
cenário considerado favorável ao empreendedorismo negro. A ascensão
econômica experimentada por classes menos favorecidas, nas quais as
pessoas negras são o maior contingente, aliado ao aumento da
consciência racial e representação política, pareciam apontar um
ambiente favorável ao desenvolvimento de negócios voltados a esse
público. Ocorre que os dados podem ter uma outra explicação, mais
coerente com o desenvolvimento do Brasil e que precisa ser explicitada,
como forma de compreender as diversas faces do
Afroempreendedorismo.
Ao se falar do Afroempreendedorismo, outro termo a reboque é o
Black Money, que em tradução literal pode ser entendido como dinheiro
preto (negro é uma expressão brasileira). Não estamos diante de um
termo novo e sim de um fenômeno de ressemantização, já que Black
Money já foi utilizado para denotar “dinheiro sujo”, corrompido. A
expressão foi criada para denotar uma ocorrência econômica indiana,
especificamente para evidenciar a sonegação de impostos diretos e
indiretos (Sundaram & Pandit, 1976). Segundo os autores, os recursos
não tributados naquele país eram imunes a qualquer política monetária
e fiscal, e significavam uma liquidez não previsível, provocando a
desmonetização da economia. Segundo os autores “já que a maioria dos
produtores desses bens estão no setor organizado, deve ser possível
trazer os lucros para a rede tributária. Em outras palavras, a eliminação
268 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

de controles converte rendas negras em 'brancas' 7 (Sundaram & Pandit,


1976, p. 132). Seguindo a lógica do movimento antirracista, que se
apropria dos termos usados de forma pejorativa, estabelecendo uma
nova significação positiva, Black Money tem sido usado para denotar um
consumo politizado. Assim, se outrora a expressão indicava uma
situação criminosa, ao ser apropriada pelos movimentos sociais negros
passou a indicar um evento positivo na luta antirracista.
Na medida em que pessoas negras adquirem consciência dos
problemas em um contexto histórico e social de racismo estrutural e de
relação existente com a exclusão social e a pobreza, passam a perceber
sua posição de consumo como possibilidade de agenciamento. Em face
à necessidade de consumir produtos e serviços, podem fazer uso do seu
poder de compra de forma politizada, optando por profissionais e
empresas cujos proprietários sejam negros. Nessa lógica, o intuito é
fazer com que o capital obtido por pessoas negras circule mais entre o
grupo, promovendo um efeito alavanca.
O Black Money seria um novo target, uma oportunidade de
impulsionar a economia e consequentemente, maior e melhor
distribuição de renda entre pessoas negras por meio da formação de
uma rede de cooperação. Isso também não é um fato novo. Durante a
era colonial e escravocrata brasileira, pessoas escravizadas
constituíram organizações denominadas irmandades (Reis, 1996). Essas
eram dotadas de um fundo mantido coletivamente para ajuda mútua,

7
Do original “Since the majority of the producers of these goods are in the organised sector, it should
be possible to bring the additional profits within the tax net. In other words, the elimination of controls
converts black incomes into 'white'” (Tradução nossa).
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 269

por meio do qual realizava-se funerais, missas fúnebres, assistência em


caso de doença, construção de templos, compra de alforrias,
financiamento do retorno de escravizados à África além do
financiamento de estudos (Valente, 2011). Esse apoio proporcionou a
ascensão econômica e intelectual de pessoas negras, mesmo durante o
período colonial e escravocrata.
Nessa época, uma organização social de escravizados desenvolveu-
se, dotada de recurso próprio e com poder de negociação com outros
grupos sociais, como senhores, autoridades coloniais e clérigos, o que
Reis (1996, p. 5) chama de “microestruturas de poder”. As irmandades
eram bem-vistas pelos clérigos católicos, pois acreditavam que essas
organizações reforçavam a catequização de pessoas escravizadas. O
autor relata que apesar das irmandades remeterem à religião católica,
aspecto que conferiu a elas passe livre para desenvolvimento sendo uma
organização aceita, no interior de muitas delas observou-se o
estabelecimento de um espaço autônomo, de partilha tanto de recursos
quanto de conhecimentos e da promoção de identidades africanas.
As irmandades não podem ser consideradas opostas ao sistema
vigente à época, mas uma forma organizada e coletiva de sobreviver da
melhor maneira possível considerando-se a conjuntura. O fato é que
podemos perceber que esse movimento pode ser considerado Black
Money, já que se refere a uma rede de cooperação entre pessoas negras
e aliados políticos. Porém, o simples aumento de renda das pessoas
negras não pode ser associado a esse fenômeno, pois está ligado a um
movimento muito mais amplo marcado por organização, com práticas
270 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

e discursos que reforçam interesses e postura politizada de uma


coletividade, preocupadas com transformação social.
Para que possamos compreender a interface entre Black Money e
Afroempreendedorismo, tendo em perspectiva as peculiaridades da
sociedade brasileira é preciso trazer à baila alguns fatores históricos, no
sentido de elucidar aspectos localizados entre a inclusão precária e a
emancipação social.

RAÇA E ETNIA: UMA ALTERIDADE CONSTRUÍDA SOB O IDEAL DE


HIERARQUIZAÇÃO

Eu estou em condições de suspeitar serem os negros naturalmente


inferiores aos brancos. Praticamente não houve nações civilizadas de tal
compleição, nem mesmo qualquer indivíduo de destaque, seja em ações seja
em investigação teórica. Não há artesãos engenhosos entre eles, não há
artes, não há ciência. Por outro lado, os mais rudes e bárbaros dos brancos,
como os antigos alemães, os atuais tártaros, têm ainda algo de eminente
entre eles, em sua coragem, forma de governo, ou alguma outra
particularidade. Tal diferença uniforme e constante não poderia ocorrer,
em tantos países e épocas, se a natureza não tivesse feito uma distinção
original entre essas raças de homens. Sem citar as nossas colônias, há
escravos negros dispersos por toda a Europa, dos quais ninguém alguma vez
descobriu quaisquer sinais de criatividade, embora pessoas de baixa
condição, sem educação, venham a progredir entre nós, e destaquem-se em
cada profissão. Na Jamaica, realmente, falam de um negro de posição e
estudo, mas provavelmente ele é admirado por realização muito limitada
como um papagaio, que fala umas poucas palavras claramente (Hume, 1875,
p. 252).

Se estamos falando de fenômenos ligados a uma alteridade


humana, que tratemos de entendê-la, começando por evidenciar como
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 271

raça e etnia foram fatores ligados a hierarquização de pessoas. O trecho


acima reproduzido representa a visão racializada de Hume (1875) em
relação às pessoas negras. Mais trágico que perceber o racismo em seu
argumento, é saber que ele e outros tantos cientistas tais como Voltaire,
Kant, Hegel, influenciaram milhares de pessoas, se valendo do manto
científicos para legitimarem esses e vários discursos que hierarquizam
pessoas e processos civilizatórios.
Hume reflete a dimensão epistemológica do racismo (Oliveira,
2003), responsável pelo desenvolvimento de várias outras ideias no
campo científico voltadas a legitimar as diferenças hierarquizantes
entre pessoas brancas e não-brancas. Hume (1875) chega a comparar e
generalizar o que ele considera como desempenho de pessoas que
progrediram com o de escravizados. Ao fazer tal comparação, Hume
(1875) atribui as pessoas negras responsabilidade pelas condições
impostas pelas próprias relações entre metrópole e colônia e senhorio e
escravidão.
Umas das ideias oriundas da ciência racializada é a da Eugenia,
termo cunhado em 1883 por Galton (1973), que busca o controle racial, a
fim de gerenciar as qualidades raciais, de modo a suprimir as inferiores.
Tal crença foi totalmente desacreditada pela ciência. Porém, a falácia
genética foi apropriada por outras áreas da sociedade, e teve
repercussão drástica (Apple, 2001).
No Congresso Mundial de Raça realizado em 1991, João Batista
Lacerda, um antropólogo e médico brasileiro apresentou um artigo
onde afirmou que por meio de seus estudos, estava convencido de que
em função da miscigenação, as pessoas negras seriam “extintas” em 100
272 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

anos, uma vez que os fenótipos de pessoas negras eram recessivos. Nos
Estados Unidos e na África, houve a institucionalização de políticas de
segregação, impedindo casamento inter-racial, prevendo espaços
separados para pessoas brancas e não brancas (Pereira, 2011).
Tomados como animais sem humanidade e mais tarde como seres
inferiores, as pessoas negras sofreram violência brutal, tanto física
quanto simbolicamente. No nível simbólico, houve um processo de
apagamento histórico por meio de discursos homogeneizantes e de
mercado (Bernardino, 2002; Apple 2001; Oliveira, 2003). Apesar de não
problematizada, a raça por diversas questões se mantém como presença
ausente (Apple, 2001). Ou seja, embora não existam diferenças genéticas
significativas para embasar a ideia de raças humanas distintas, o termo
passou a ser chave para compreensão de importantes questões sociais.
Raça é entendida como uma construção, um conjunto inteiro de
relações sociais baseada na existência de diferenças que resultam na
existência de diferenças no nível racial, concepção originária no campo
da Biologia (Apple, 2001; Bernardino, 2002; Pereira, 2011). Em oposição
a noção de raça, surge a noção de etnia, que diz respeito às diferenças
culturais (Oliveira, 2003).
Franz Fanon é um teórico negro que nasceu em Martinica, uma das
quatro ilhas localizadas no Caribe, se mudando para a França ainda
criança, em busca de formação profissional. Fanon formou-se em
medicina psiquiátrica e atuou em áreas de conflito civil na Argélia, em
prol da descolonização. Em seu doutorado aos 25 anos, Fanon (2008) ao
estudar as consequências físicas e psicológicas impostas pela
colonização, aborda questões psicossociais e filosóficas ligadas ao
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 273

processo de colonização. Ele percebeu a existência de uma hierarquia


social baseada na proximidade física, cultura além de características
físicas nas pessoas, entre as colônias e metrópole, que funcionavam
como filtros de acesso. Assim, quanto mais características fenotípicas
de pessoas brancas presente em não brancos e proximidade física com
a metrópole, melhor a pronúncia do francês, mais status essas pessoas
reivindivicavam. Quanto "menos atributos negros", maior a tolerância
dessas pessoas em espaços no qual a maioria era branca.
Pele Negra e Máscaras Brancas é o título da obra do autor, tendo
sido rejeitada pela banca de professores. Fanon escreveu um novo
trabalho seguindo o cânone acadêmico e publicou sua tese original em
um livro, em 1952. Em 1983, Walker, uma autora feminista
estadunidense publicou um ensaio sob a mesma temática, e inaugurou
o conceito de colorismo, em que as variações da cor da pele, nariz e boca
foram associadas ao grau de acesso que pessoas negras apresentavam
em espaços até então brancos (Walker, 1983). Uma consequência direta
do colorismo é que a assimilação e reconhecimento social do mestiço
ocorria à custa da depreciação dos negros (Bernardino, 2002). No Brasil,
o uso de eufemismos conferiu ares amenos ao colorismo e ao racismo,
fato que contribuiu para a construção de um ideal de democracia racial
no país (Freire, 1995). Assim, o colorismo nada mais é do que um
processo de assimilação, uma estratégia que permitia algum trânsito
social às pessoas negras em tempos. A ‘aceitação’ promovida pela
assimilação não gera igualdade entre os sujeitos, o que significa que sua
ocorrência somente reforça o cenário racista.
274 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

As lutas sangrentas ocorridas em vários países pela


descolonização, foram seguidas pelo surgimento de movimentos sociais
organizados nos Estados Unidos na década de 60. O Partido Panteras
Negras foi uma organização extraparlamentar voltada para a proteção
de pessoas negras expostas à violência policial. O Partido Panteras
Negras surgiu em 1966 na Califórnia e esteve ativo até o ano de 1982,
após anos de perseguição e assassinatos de membros do grupo. Houve
confrontos violentos entre ativistas e a polícia em diversos momentos,
exacerbada pela permissão estatal de porte e uso de armas por civis
naquele estado, fato que foi alterado somente em 2011, permitindo o
porte somente em residências.
A cultura também foi uma forma importante de resistência, uma
vez percebidas as consequências do racismo, como o genocídio de
pessoas negras, a segregação no mercado de trabalho, no acesso à
educação e à moradia. Diversos movimentos culturais de grupos étnicos
pelo mundo ganharam força e promoveram a negritude, como o
movimento Black Power, além de estilos musicais de origem negra como
soul, jazz e samba. Esses movimentos buscaram a afirmação da
identidade negra (Azevedo, 2018). Mesmo em suas especificidades, esses
movimentos apresentavam similaridades, já que indicavam povos
originários da diáspora africana (Nascimento, 2007). Para Singleton e
Souza (2009), esse fenômeno pode ser entendido como abjunção,
dissipação dos povos de origem africana, bem como de seus
descendentes de seu território originário, contra sua vontade e em
função da escravização. Outro processo diaspórico conhecido é do povo
judeu (Safrai & Stern, 1974).
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 275

Como forma de combater o racismo, os movimentos sociais negros


criticavam os processos de assimilação, e reforçaram a promoção da luta
antirracista por meio de uma estética inspirada nos povos africanos. O
Black Power pregava o empoderamento negro por meio do confronto da
estética dominante. Para tanto, as pessoas não deveriam se submeter aos
tratamentos químicos para transformação dos cabelos, mas usá-los ao
natural (Johnson & Bankhead, 2013; Ellington, 2014). Movimentos como
esse foram os primeiros de cunho crítico ao racismo e importantes no
fortalecimento da negritude enquanto diferença humana.
Contudo, o ideal essencialista defendido por alguns ativistas criou
cisões nos movimentos negros. Se por um lado o colorismo
hierarquizava os vários tons de negro reforçando a hegemonia branca,
por outro, a inegável miscigenação configura uma impossibilidade em
generalizar um biotipo. Na década de 1990 Michael Jackson vivia o auge
de sua carreira. Em 1991 ele lançou o clipe de Black and White, causando
grande repercussão. As mudanças físicas ocorridas desde o início de sua
carreira, foram usadas por diversos ativistas como evidência de
"embraquecimento" e negação da raça. Em meio às polêmicas, Michael
lança o clipe, este que é carregado de simbolismos, e evoca as Panteras
Negras e Marilyn Monroe, atriz que questionou ao seu modo, o
comportamento tido como "ideal e esperado" por meio da afirmação de
liberdade. Assim como Michael, Monroe recebeu diversos rótulos e sua
atuação no cinema deu origem ao estereótipo de "loira burra". No clipe,
Michael ataca símbolos do KuKluxKan e do Nazismo. O clipe foi seguido
de censura nos Estados Unidos, considerado pelos críticos como
incitação à violência e ao sexo.
276 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Mais recentemente, em fevereiro de 2017, a história parece se


repetir nos Estados Unidos. No intervalo do jogo que marcava a final do
campeonato de futebol americano de maior audiência, o Super Bowl,
Beyoncé fez uma performance de sua música recém-lançada,
"Formation". Os trajes referenciados às Panteras Negras e a letra
contestatória da cantora deram origem a um novo e intenso debate
sobre colorismo e embraquecimento. Tal como Michael, Beyoncé foi
duramente criticada por nunca ter se assumido negra, algo entendido
em função da estética "branca" percebida por alguns na cantora.
No dia 25 de maio de 2020, nos Estados Unidos, mais
especificamente em Minneapolis (Minnesota), uma ação policial
resultou no assassinato de George Floyd, um homem afro-americano,
de 46 anos, que foi asfixiado até a morte por um policial branco, que
colocou o joelho sobre o seu pescoço, enquanto Floyd estava algemado e
imobilizado no chão. George foi acusado de entregar uma nota
supostamente falsa em um mercado que ele tinha o costume de
frequentar. Após a trágica morte de George Floyd, vimos uma intensa
mobilização, inclusive no Brasil, em volta do movimento conhecido
como Black Lives Matter. Mais uma vez, a conscientização da pauta
antirracista global voltou a ser tratada.
No Brasil, a cantora Anitta também é alvo de críticas semelhantes
as de Beyoncé. Em seu trabalho, Santos (2019) relatou que a cantora
adota elementos estéticos que remetem à favela e as pessoas negras,
como forma de se legitimar em clipes. Porém, em grandes eventos
internacionais ela adotaria uma estética que a aproxima de uma mulher
branca.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 277

Essas situações se conectam à ideia de que as diferenças contidas


nas características fenotípicas entre pessoas negras foram
hierarquizadas. Nessa situação, assimiliar mudanças que distanciam as
pessoas do fenótipo negroide, poderia conferir certo trânsito no que se
refere a acesso às oportunidades.
Diversas pessoas se submeteram a processos que “amenizam” a
pertença racial como forma de ser aceitas socialmente. Porém, em nossa
concepção, as análises desses processos, que vinculam as mudanças a
uma ideia de embraquecimento, afroconveniência ou apropriação
cultural, como suposta negação ou traição à raça, demonstram uma
postura antiética e irresponsável. Antiética porque a análise do suposto
processo de embraquecimento de uma pessoa, é baseado em um
argumento que atribui à pessoa analisada, as contradições e
assujeitamentos impostos pela lógica social e estrutural de racismo
existentes na sociedade. Essa situação pode ser considerada
irresponsável por alimentar um ideal essencialista, algo que culmina no
controle de corpos, de comportamentos e de afetividades.
Não por acaso, o cume dessa situação termina no controle da
afetividade da mulher negra, que para afirmar sua negritude, deveria
usar determinada estética, vestuário e relacionar-se somente com
homens negros. Desse modo, análises como a Santos (2019), se ocupam
de um julgamento de fundo moral, que culpabiliza sujeitos por
estruturas sociais amplas e se distanciam de um debate profícuo e ético,
do ponto de vista científico, acerca do racismo bem como de formas
atualizadas de agenciamento. É preciso reconhecer e pontuar a
importância do campo estético enquanto campo de crítica e promoção
278 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

das diferenças sociais inerentes às pessoas negras. Porém, é preciso


reconhecer que o racismo, enquanto discurso, se mantém ativo
justamente por sua atualização no campo discursivo. O apego a um
modo de ser e viver baseado em uma noção essencialista, puritana,
negligencia o argumento mais básico da luta antirracista: que as pessoas
devem se sentir livres para ser e viver suas diferenças.
Procuramos nesse tópico, destacar aspectos que ressaltam como a
raça e a etnia foram diferenças enquadradas de forma hierárquica. Se
por um lado, até o Século XX a assimilação conferiu alguma
possibilidade de acesso a oportunidade para alguns grupos, por outro
ela não representou enfrentamento ao racismo. As diferenças do
transito social em função das diferenças conferiu algum transito social
às pessoas negras, mas nunca em igualdade de condições de pessoas
brancas. O ponto central é que, nesta lógica, em um contexto racista,
não importa quantas características negroides os sujeitos apresentem,
qualquer uma delas poderá ser lida como um marcador de
subalternidade. No próximo tópico, trataremos de forma mais detida
acerca dos desdobramentos sociais relacionados ao racismo.

BRASIL: EXCLUSÃO SOCIAL E RACISMO EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

As expectativas são muitas, os ideais são elevados e


consequentemente os dilemas são inerentes no que se refere ao
Afroempreendedorismo e o Black Money, então sigamos por partes.
Comecemos considerando-se a dimensão étnico/racial em uma
perspectiva histórica. O discurso de democracia racial somente serviu
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 279

para acobertar os conflitos de sociedade que viveu e, ainda vive,


intensamente o sonho do embraquecimento (Cerqueira & Coelho, 2017).
O projeto de política social do embranquecimento teve início em
1870, baseado na atração de imigrantes europeus para terras brasileiras.
Os indícios de exaustão do modelo societal escravocrata conferiu que de
forma processual a desenvolvimento do sistema capitalista, baseado na
exploração do trabalho assalariado. Assim, os imigrantes brancos
europeus, além de proporcionar a mudança quantitativa da composição
étnica do país, também foram desejados para o mercado de trabalho em
construção (Figueredo, 2014).
E o que foi feito aos ex-escravizados recém libertos após 1888? Na
verdade, a concessão da liberdade foi apenas a dimensão formal de um
sistema social que já não era interessante para os ‘proprietários’. A
liberdade, nesse sentido, não foi uma conquista, mas um marco de
transição de um modelo de exploração para seu sucessor (Santos, 2003).
As pessoas ex-escravizadas foram abandonadas, sem qualquer
possibilidade de concorrer em igualdade de condições no mercado de
trabalho formal. Sem acesso à terra e sem qualificação profissional,
essas pessoas não receberam nenhum tipo de reparo nem do Estado,
nem dos antigos senhores, o que já indica o acesso precário ao mercado
de trabalho como elemento inicialmente imposto pela lógica do capital.
Essas pessoas passaram a habitar espaços de baixo interesse
imobiliário, às margens da urbanidade crescente. Nesses locais, é
possível perceber a alta concentração de pessoas negras, mas também
de outras, como indígenas e brancos pobres (Bernardino-Costa, 2013;
Santos, 2003).
280 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Em um país constituído por raças e etnias distintas, a miscigenação


foi algo não somente inevitável, quanto foi planejada. Em 1911, no
Congresso Universal de Raças, o médico e antropólogo João Batista
Lacerda, afirmou que a miscigenação no Brasil foi marcada pela
harmonia, diferentemente de outras sociedades. Para Lacerda (1911), o
fato de senhores terem relações sexuais com mulheres escravizadas e
com elas terem filhos, teria conferido uma pluralidade racial pacífica no
país.
O convívio democrático e harmônico existente no Brasil teria sido
fruto de uma relação diferenciada entre senhor e escravizado, onde os
senhores foram considerados ‘benevolentes’ (Bernadino, 2002). Após o
trabalho de Forestan Fernandes e Roger Batiste na década de 1970, ficou
evidenciada a irrealidade da democracia racial. Os autores concluíram
que no país havia o preconceito de ter preconceito. O reconhecimento
público da existência do racismo no Brasil ocorreu somente em 1996,
pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, ex-orientando de
Forestan Fernandes em sua tese intitulada "Formação e desintegração
da sociedade de castas: o negro na ordem" em 1961. A declaração de
Cardoso não ocorreu de forma desconectada do contexto, além da
abordagem racial presente em seus estudos, a segregação que marcava
a sociedade brasileira atingia patamares alarmantes.
Lacerda (1911) encerrou sua apresentação no Congresso Universal
de Raça com a exposição de seu argumento fundamental: a de que em
100 anos, ou seja, em 2011, não haveria mais negros no Brasil. Para ele
isso seria possível pela seleção sexual, que denota que parceiros com
fenótipo negroide seriam preteridos nas relações. Outro fenômeno que
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 281

contribuiria para o desaparecimento da raça negra no país estaria


ligado a condição de pobreza e abandono imposta as pessoas ex-
escravizadas. Assim, para ele a miscigenação e a pobreza iriam conferir
as bases de mudança do Brasil, para um país branco e com isso, uma
referência de civilidade no mundo.
O pensamento de Lacerda (1911), que representou o Brasil no
primeiro evento mundial que evidenciou a questão racial, pode ser
considerado o reflexo do ideal perseguido no país. A partir desse evento
é possível perceber que a negritude é associada a atraso, enquanto a
branquitude simbolizaria a civilidade, em um enunciado que revela o
sonho do embranquecimento (desaparecimento da população negra).
Esse ideal entranhou-se nas relações sociais, tal como ele previa.
Hoje temos um intenso debate em torno da solidão da mulher
negra e dos efeitos de machismo e do patriarcado na constituição do
país, refletido na violência, genocídio de mulheres e pessoas de
sexualidade dissidente, além de relações afetivas abusivas. Outro
desdobramento está vinculado entre oportunidades e as diversas
nuances de cor resultantes da mestiçagem. Quanto menos
características fenotípicas que aproximassem os sujeitos da
branquitude, maiores as chances de acesso às oportunidades, como
afirma Fanon (2008). Somado a esses fatores, a cordialidade apregoada
por Lacerda em função das relações inter-raciais desenvolvidas no
período escravagista, se apoia no silenciamento da violência sexual,
como o estupro e o assédio, às mulheres e às crianças negras. O
resultado é nefasto, já que 3 em cada 4 casos de abuso sexual ocorre a
pessoas com menos de 18 anos (Ministério Público do Paraná, 2020). O
282 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Brasil é o segundo país com mais casos de abuso sexual contra crianças
e adolescentes, atrás apenas da Tailândia (Agência Senado, 2022).
Esses são os fatores que demonstram o discurso racista existente
no país, o que remete que visões que apresentam o racismo brasileiro
um caso “a parte” sendo invisível ou cordial, na verdade são rasas, já que
estamos falando de um processo social altamente eficaz na
configuração de modos de ser e viver e com desdobramentos
dramáticos, que operam no nível do apagamento de humanidades.
Estamos falando de gerações inteiras em que o debate em torno da raça
e etnia era inexistente e falar de racismo era um verdadeiro tabu. Desse
modo, podemos inferir que o preconceito motivado pelas diferenças
raciais nem sempre é imediatamente associado ao racismo.
Ainda que o nível de debate social sobre o racismo não tenha
alcançado todos os grupos sociais no país, podemos observar que houve
avanços importantes. Como fruto das mobilizações iniciadas em 1960,
houve a criação das Ações Afirmativas. Essas dizem respeito à criação
de políticas públicas voltadas à promoção das pessoas negras, por meio
da discriminação positiva, ou seja, concessão de benefícios sociais
baseando em critérios racializados, de modo a corrigir as desigualdades
socioeconômicas além de valorizarem as pessoas negras, valorizando o
pertencimento (Bernardino, 2002,). Nos Estados Unidos as Políticas
Afirmativas compreendem o mercado de trabalho e a educação, por
meio de cotas, que devem refletir nos diferentes níveis hierárquicos o
percentual de pessoas negras percebido na população. No Brasil, houve
a institucionalização das cotas no ensino superior, privilegiando
pessoas negras, quilombolas e indígenas.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 283

Porém, há quem seja crítico as Ações Afirmativas, na compreensão


de que as cotas seriam injustas e teriam dado origem a um grupo de
afroconvenientes. Ali Kamel em 2006 lançou um livro se valendo do
mesmo argumento, o de deslegitimar contestação política em função do
“branqueamento”. O autor, dedica um capítulo inteiro de sua obra ao
esvaziamento da categoria negro, intitulado “Sumiram com os pardos”.
O racismo foi algo imposto a toda a sociedade, e os artistas como as
demais pessoas, estavam imersos nessa lógica. Considerando-se a
ausência de pessoas negras em posições expressivas, como cargos de
alto nível hierárquico, políticos e artistas, o grau de assimilação explica
o acesso de algumas pessoas negras. Ocorre que a partir desse lugar de
destaque, muitos se perceberam implicados politicamente como a luta
antirracista e, em função da lógica que lhes oportunizou ascensão, são
desconsiderados.
Historicamente, os dados estatísticos têm sido usados como meio
de retratar, ainda que parcialmente, a realidade social em que as pessoas
vivem. Se já existem sérias críticas quanto a essa capacidade de
reproduzir a realidade por meios matemáticos, a situação se agrava pela
ausência ou manipulação das informações. Por muito tempo, o IBGE não
havia encontrado uma forma de obter informações sobre as pessoas
negras. Inicialmente, as pessoas pretas conformam categoria distinta
do restante da população, sendo diferidas dos demais não brancos. Essa
divisão não conseguia refletir a situação vivenciada pelos pardos, uma
vez que esse grupo apresentava condições socioeconômicas muito
parecidas com os pretos.
284 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Após edições do censo do IBGE, convencionou-se agrupar na


categoria negro, pretos e pardos, dando uma dimensão que procurava
retratar a realidade dessas pessoas (Petruccelli & Saboia, 2013). Após
essa mudança, a constituição do Brasil foi afirmada como sendo de
maioria negra. Essa informação é fundamental para o direcionamento
de políticas públicas voltadas para esse grupo, que apresentava
características peculiares em relação aos demais. Ocorre que esse
agrupamento é alvo constante de críticas, como a do diretor de
jornalismo da Globo, Ali Kamel. Nesse ponto é pertinente questionar, a
quem interessa deslegitimar atos políticos de defesa de pessoas negras?
E a quem interessa o esvaziamento da categoria de pessoas negras?
Percebe-se que existe uma intencionalidade nos argumentos contrários
aos atos políticos, no nível ideológico, que procura separar as pessoas,
evocando os ‘privilégios oriundos do embraquecimento’.
Ao falar sobre racismo, o autor demostra ideias ambíguas, pois
inicia um trecho da obra afirmando que racistas são iguais,
independente do contexto, para logo em seguida, afirmar que o racismo
explícito percebido nos Estados Unidos é “rotineiramente mais duro”
que no Brasil. Ele ainda lança o questionamento aos leitores sobre como
medir qual tipo de racismo “dói mais” (Kamel, 2006, p. 22).
A questão estatística e as provocações feitas por Kamel (2006) nos
levam a interrogar o que é negro. Para essa resposta, existem dois
grupos com visões diferenciadas. O primeiro deles, defende a
essencialidade da identidade, e isso pode ser percebido no ideal
imagético do negro reproduzido por eles. Esse ideal reproduz
características presentes em comunidades tradicionais na África,
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 285

marcadas pelos costumes e tradições completamente distintos das


pessoas negras pelo resto do mundo.
Já outro grupo, defende a fluidez e a mobilidade da identidade
(Oliveira, 2003) em oposição a um ideal essencialista (Oliveira, 2003).
Coerente com essa visão, Munanga (2003) afirma que ser negro hoje é
algo atrelado profundamente ao contexto, o que significa que Brasil,
Estados Unidos e o continente africano apresentam particularidades.
Montinho (2008) agrega complexidade a questão, ao falar da
sobreposição de fatores usados para marginalizar pessoas, como as de
gênero, sexo e classe. Ao racismo, outros fatores se acumulam levando
ao aprofundamento da segregação.
Para nós, a análise de fatos históricos como a diáspora africana, os
modos de vida e as possibilidades observadas para os descendentes no
Brasil, as lutas pelo fim da escravização até o Século XIX, as
reivindicações dos movimentos negros observadas a partir do Século
XX, indicam que negro diz respeito a uma categoria sócio-política.
Nessa categoria, são agrupadas as pessoas de cor parda e preta. A
confusão em torno do conceito de negro ocorre em função de se
confundir cor e categoria sócio-política. A identificação dos povos
negros no país é vital para o desenvolvimento de possibilidades e de
ações capazes de promover mudança social.
A densidade das questões abordadas e aqui expostas sinalizam
parcialmente a profundidade do debate em torno da raça/etnia, racismo
e luta antirracista. Porém, neste momento a reflexão feita diz respeito
a perspectivas futuras. As referências imagéticas e culturais
essencialistas baseadas em comunidades tradicionais africanas foram
286 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

responsáveis em dar visibilidade e valorização às pessoas negras. Ocorre


que a manutenção desse ideal não contempla o quadro dinâmico
observado na atualidade, sobretudo no Brasil onde a mestiçagem
ocorreu de forma tão intensa.
Assim, consideramos que os processos sociais ocorridos no Brasil
que envolvem a população negra, indicam um quadro de subcondição
humana apoiada no racismo. Esse fator tem desdobramentos diversos,
como os altos índices de violência, abuso sexual, as desigualdades
raciais no mercado de trabalho, o baixo acesso a oportunidades e a sub-
representação em esferas de tomada de decisão. Esses fatores
combinados indicam um quadro de exclusão social ao maior
agrupamento social do país, já que pessoas negras representam mais da
metade da população.
É justamente em função desse quadro, que diversas ideias em torno
de possibilidades de mudança surgiram. As iniciativas podem surgir
como forma de as pessoas negras obterem melhores condições em um
cenário permeado pelo racismo e por profundas mazelas sociais. Dentre
as várias, existem aquelas que dialogam diretamente com a esfera
econômica, como o Afroempreendedorismo e o Black Money. Assim
compreender esses processos, em nossa visão, deve considerar o quadro
social, político e histórico específico do qual emergem. Feito esse
percurso, no próximo tópico tecemos considerações acerca das questões
e possibilidades acerca dessas iniciativas.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 287

EM EVIDÊNCIA: OS DILEMAS LIGADOS AO BLACK MONEY E


AFROEMPREEDEDORISMO

“Se não me vejo não compro”, disse Nina Silva em entrevista à


Agência Brasil (Nascimento, 2020). Ela é uma das fundadoras de uma
organização nomeada Black Money, criada em 2017. Sua formação em
Administração e Tecnologia, além de um período vivendo nos Estados
Unidos teriam inspirado a criação da startup. O foco da organização é
promover comunicação e empoderamento negro por meio da geração
de negócios entre pessoas pretas, mediados pela tecnologia. Até 2020, os
R$ 1,8 trilhão ao ano movimentados por cerca de 56% da população
negra, fomentaram holofote quase automático para a discussão.
A matéria feita pela Agência em novembro de 2020 é representativa
de diversas outras, dando destaque para eventos como o Feira Preta em
São Paulo, as diversas startups de nicho e os hubs de negócios. Até esse
período, havia uma euforia em torno do potencial de consumo das
pessoas negras e das possibilidades de criação de produtos e serviços
específicos, ou seja, o desenvolvimento simultâneo do Black Money e do
Afroempreededorismo. Esse processo foi influenciado por mudanças
em diversas esferas, dentre as quais elencamos 3 que consideramos
centrais.
As políticas públicas criadas durante os governos do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2011) e Dilma Rousseff (2011 a 2016),
promoveram certo incremento à renda de determinados grupos sociais,
sendo chamados ‘emergentes’ ou ‘nova classe média’ (Neri, 2010).
Muitas das pessoas que ascenderam economicamente eram negras e foi
288 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

justamente esse incremento de renda que impulsionou demandas por


novos produtos e serviços. Essa ascensão econômica pode ser considera
a primeira e a mais imediata mudança ligada ao Black Money e ao
Afroempreendedorismo.
Além desse incremento financeiro, as camadas menos favorecidas
do ponto de vista econômico também tiveram acesso ao ensino superior
promovido pelos governos do Partido dos Trabalhadores. Dentre os
beneficiários, estão as pessoas negras, que passaram a representar
38,15% do total de matriculados no ensino superior (Caixeta, 2022), o que
representa um aumento de 400% de pessoas negras no ensino superior,
entre os anos de 2010 a 2019, em relação aos anos anteriores. Embora
sujeitos à desigualdade racial no mercado de trabalho, a qualificação
profissional pode ser relacionada ao aumento de renda.
Ao nos lembrarmos de Bourdieu (2011) e de suas proposições em
torno dos tipos de capitais, é possível inferir que o processo de
profissionalização também tencionou as necessidades das pessoas. A
simples convivência de pessoas com origens distintas produziu reflexos
sobre a necessidade de investimento em capital simbólico, seja por meio
de viagens, acesso a cultura e ao lazer e também os tipos de produtos e
serviços. Nesse sentido, tanto o repertório formal da educação superior
quanto o capital simbólico construído para visando a legitimação do
profissional perante a sociedade, indicam mudanças na forma como
esses grupos passaram a consumir.
Resta ainda o processo de mudança mais sólido em relação aos que
já destacamos, que é todo o percurso formativo provocado pela luta
antirracista. O percurso histórico que realizamos demonstra
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 289

justamente um processo de intensa mobilização social, que por meio de


diversas formas de atuação denunciou processos de violência, opressão
e desigualdade motivadas por racismo. As lutas travadas até o Século
XIX em torno da liberdade e a partir do Século XX, por melhores
condições de vida, deram origem a conhecimentos formativos do ponto
de vista político. Esse processo é tão demarcado, que embasa a tese de
Gomes (2017), de que o movimento negro é educador. Tratamos aqui, de
uma educação politizadora, na qual as pessoas passaram a compreender
os sentidos de ser negro no Brasil, quais os desdobramentos sociais
dessa diferença e também de possibilidades de agenciamento.
Esses fatores produziram mudanças substâncias na forma de ser e
viver de pessoas negras consideradas emergentes, do ponto de vista
econômico. O acesso ao conhecimento formal, o nível de consciência
política e o incremento de renda foram consideradas demarcadoras do
surgimento de um grupo social com características distintas. Uma das
questões mais básicas percebidas foi decorrente da observação de
mudança no comportamento de consumo entre pessoas negras e
anteriormente pertencentes às classes ‘C’ e ‘D’. Um evento marcante
desse processo foram os ‘rolezinhos’ feitos por adolescentes pobres,
sendo a maioria negros em shoppings de capitais. Em Belo Horizonte
(MG) durante o ano de 2013, foram registrados rolezinhos em cinco
shoppings (Kifer, 2014).
O aumento da representatividade de pessoas negras em espaços de
poder, como a cultura e a política também foi acompanhado pelo
crescimento dos empreendimentos especializados. Todos esses fatores
290 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

foram lidos com muito entusiasmo pela mídia especializada em


negócios.
Porém, outras duas mudanças contextuais representaram um
forte golpe nesse cenário. O primeiro deles foi a ascensão ao poder de
grupos com ideais fortemente conservadores. Diversas políticas diretas
e indiretamente criadas e implementadas a partir do ano de 2017,
frearam o crescimento financeiro desse grupo.
A situação sofreu duro agravante face a Pandemia pela Covid-19,
que gerou uma crise sanitária e econômica no país. O Brasil voltou a
figurar no Mapa da Fome, realizado pela Organização das Nações Unidas
(Agência Senado, 2022). Houve agravamento da desigualdade social (Luz,
2021) e da racial (Garcia, 2022). Esses problemas produziram profundos
desdobramentos nos processos sociais observados até 2018 e suscitam
algumas reflexões sobre o Black Money e Afroempreendedorismo, e que
dialogam com processos semelhantes envolvendo outros grupos sociais.
A crescente precarização da qualidade de vida motivou a reação de
diversos grupos sociais. Em meados do Século XIX, a Europa assistiu os
movimentos LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros) lutarem contra a criminalização de
pessoas e relações sexuais dissidentes. Nos Estados Unidos em 1960
diversos grupos começaram a denunciar essa situação (Alves & Galeão-
Silva, 2004). As Panteras Negras por exemplo, deram visibilidade ao
genocídio e da sub condição de vida imposta as pessoas negras naquele
país.
A luta antirracista travada, no mundo e no Brasil, sobretudo na
última década do Século XX, concedeu visibilidade para os efeitos
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 291

opressores do racismo, em seu efeito de exclusão social. Esse


movimento foi importante na construção de alternativas capazes de
promover a inclusão de pessoas negras, tanto na educação quanto no
mercado de trabalho. No campo da Administração, a Diversity
Management (Cox, 1991) ou Gestão da Diversidade (Fleury, 2000) foi
considerada uma tecnologia gerencial capaz de transformar a inclusão
em valor para as organizações. Passados mais de trintas anos após a
criação do conceito, o quadro que temos no Brasil indica que a
diversidade pode ter sido reduzida a um selo, como possibilidade de
acessar mercados até então não considerados. Esse fenômeno pode ser
associado ao tokenismo (Rosário, Gomes & Tomé, 2022). A expressão é
derivada do termo token, que em português significa símbolo. No campo
dos Estudos Organizacionais, o termo remete ao esforço raso e
incoerente de algumas organizações que se dizem politicamente
alinhadas com a diversidade e inclusão.
Jaime (2016) realizou um trabalho etnográfico com executivos
negros a fim de entender as estratégias pessoais adotadas para
conseguir ascender profissionalmente em um contexto adverso. Nos
relatos, é possível perceber que as empresas, todas do setor bancário,
adotaram formas de promoção da diversidade, mas na perspectiva
gerencial. Assim, a diversidade que interessava aquela estritamente
capaz de promover ganhos financeiros.
As empresas usaram o selo da diversidade, visando o mercado
especializado em produtos e serviços para pessoas negras, essas que
haviam aumentado seu poder de compra em grande medida nos últimos
anos. A maior parte dos relatos dos executivos que participaram do
292 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

estudo de Jaime (2016), tem início com a negação de alguma experiência


racista. Na medida em que os relatos avançam, várias ocorrências
surgem. Todos os executivos disseram que quando expostos a situações
racistas ignoraram os incidentes, já que evidenciar o conflito não era
algo desejado no ambiente corporativo. As mulheres relataram diversas
situações envolvendo violências físicas inclusive, além de, em alguns
casos, a impossibilidade em ocupar certos cargos ou em caso da
ocupação, sujeitando-se a salários expressivamente menores pagos
para outros funcionários de igual posição. O estudo demonstra que
entre executivos negros, a prática da assimilação ainda é usada como
forma para pessoas negras serem aceitas no ambiente corporativo, o
que indica a manutenção do racismo.
As questões expostas até esse ponto remetem ao fato de que o
racismo possui desdobramentos no âmbito econômico, mas também
social, político, cultural e social, para citar alguns. O movimento político
que denunciou as diversas formas de opressão foi importante em
proporcionar visibilidade para a questão. Ocorre que, o discurso
capitalista historicamente tem se desenvolvido por meio da apropriação
da crítica. Assim, reivindicações de movimentos sociais, como os dos
negros por ampliação de direitos sociais, no plano econômico é reduzido
a identificação de uma demanda, de um público específico, e
consequentemente de produtos e serviços adequados.
Sistematicamente, diversas questões sociais complexas foram
incorporadas na lógica do mercado. O movimento por aceitação das
pessoas LGBTQIA+ nos Estados Unidos, deu origem ao Pink Market
(Moreschi, Martins & Craveiro, 2011), como um target já definido, com
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 293

capacidade de consumo e sensível pela possível dimensão política no


consumo de bens e serviços voltados a um grupo social que outrora
somente era alvo de preconceito e violência, passando a demarcar o Pink
Money. Esse mercado se tornou altamente lucrativo, conferiu ascensão
econômica a organizações, mas não representou a superação da
lgbtfobia nem da violência.
Podemos ainda destacar o caso dos alimentos orgânicos. A crítica
ao uso de agrotóxicos e do mal que deles decorre à saúde das pessoas,
tem sua origem nos modus operandi específico de pequenos agricultores
frente à grande indústria do agronegócio. Esse movimento levou a
consolidação de um nicho de mercado, caracterizado por pessoas que
passaram a consumir somente produtos orgânicos. O processo de
certificação que assegura a produção isenta de agrotóxico, transformou
o orgânico em um selo acessível somente a grandes empresas, em
função da complexidade dos processos e custos associados à obtenção
da certificação.
Ao acionar o termo negro, dialogamos diretamente com problemas
sociais. Para Munanga (2003), negro é um termo com significados
distintos, se considerarmos África do Sul, Estados Unidos e Brasil. A
consciência política das quais os sujeitos se valem para significar sua
vivência e sua relação com os demais em sociedade, no caso brasileiro,
possui uma nuance de ter sido silenciada sob o mito da cordialidade
entre os diferentes grupos étnicos existentes no país.
O silenciamento sobre o processo de desenvolvimento do Brasil,
ocasionou a marginalização de grupos sociais e é fruto de um discurso
tão forte e hegemônico que mesmo após a observação dos níveis de
294 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

desigualdade social, violência, encarceramento em massa, retrocessos


nas leis que regem o trabalho, fatores esses com diferentes
manifestações considerando-se a raça, diversas pessoas ainda negam a
existência do racismo, como Kamel (2006). O silêncio acerca da condição
das pessoas negras na sociedade brasileira pode ser considerado uma
estratégia discursiva que visou impedir a percepção da fragmentação,
do conflito, por serem ameaças à coesão, unidade e a relação de
pertença, elementos considerados importantes para a possibilidade de
uma ideia de nação.
Como vivemos em uma economia política, antes de sermos uma
organização social pautada em preceitos democráticos, somos
entendidos, por alguns grupos hegemônicos ao menos, como um grande
mercado. Ainda que a experiência democrática contemporânea seja
frágil e sujeita a críticas, oferece mais possibilidades do que um
ambiente visto somente em termos de mercado. Desse modo, as
questões sociais são privatizadas, passando a ser tratadas no interior
das organizações. O sistema econômico vigente cria e aprofunda
mazelas sociais, os grupos em questão se manifestam, o Estado reage
com políticas, que logo são incorporadas pelo capital como “inovação”.
No que se refere ao empreendedorismo, de acordo com a lógica a
ele pertinente, o esforço conduz ao sucesso, ao passo que o fracasso é
responsabilidade de cada sujeito, por não ter se esforçado o suficiente.
A generalização é um processo perverso que desconsidera os desníveis
sociais, o acesso amplamente desigual a informação, repertorio cultural
e político, além das redes sociais nas quais as pessoas estão inseridas.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 295

A crítica ao discurso empreendedor se deve a lógica de


responsabilização dos sujeitos por sua própria empregabilidade e
sucesso financeiro. Ao percebermos a tendência de redução do emprego
formal na busca de redução de custos pelas empresas, podemos inferir
que o empreendedorismo máscara o contingente de pessoas
desempregadas, sendo-lhes oferecido como alternativa empreender.
Nos últimos anos, a criação do MEI (Microempreendedor Individual) e
EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada) estão em
sintonia com a tendência de redução do emprego formal. Todas essas
mudanças podem sinalizar a precarização do trabalho e o
empreendedorismo não pode ser considerado como solução para esse
quadro, por justamente contribuir na promoção e reforço da lógica do
emprego precário.
Ao retomarmos os dados do SEBRAE (2015), é possível
problematizar questões não tão explícitas em torno do
Afroempreendedorismo. O fato de maioria das pessoas negras
trabalharem por conta própria, reforça a lógica excludente do mercado
de trabalho. Não se pode ignorar que as pessoas negras foram
empurradas para a informalidade desde o fim da escravização, lhes
restando desenvolver atividades que em relação aos empregos formais
se estabeleciam como formas altamente precárias de trabalho.
Assim um grande contingente de pessoas, que tiveram como única
alternativa de trabalho a informalidade, são apresentadas como
empreendedoras. Procuramos nesta exposição demonstrar que existem
razões históricas para que esses dados sejam tão previsíveis quanto
296 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

cruéis em demonstrar que avanços no acesso às oportunidades ainda é


precário.
Para os céticos, podemos continuar evidenciando a contradição
exposta na própria pesquisa, por meio da qual se observou que, quando
se fala em trabalho por conta própria, a maioria é negra, mas quando o
foco é empregador, daí a relação é totalmente invertida, já que brancos
representam 68% do grupo de empreendedores que empregam. Ou seja,
nos negócios sólidos e robustos com capacidade de empregar outras
pessoas e que, de fato, podem ser considerados negócios, negros são a
minoria. Em razão disso, o anúncio de que pessoas negras são maioria
dentre os empreendedores desproblematiza as assimetrias observadas
entre esses sujeitos.
A adesão de práticas e técnicas de forma desproblematizada ou
despolitizada (Alves & Galeão-Silva, 2004) pode resultar em inserção
profissional, mas implica manutenção das lógicas preconceituosas,
racistas, machistas, homofóbicas,xenofóbicas, e tantas outras,
presentes na sociedade e consequentemente nas organizações.
Organizações não resolvem questões sociais, elas as reproduzem.
A inclusão social não pode ser reduzida ao acesso às oportunidades,
ligadas ao plano econômico. O fato é que, em um país marcado pelo
racismo, a ascensão econômica não leva a emancipação social.
Reconhecemos que se pode deixar de valorizar as iniciativas que nos
trouxeram até o presente momento e que proporcionaram melhorias na
condição de acesso à educação, as oportunidades de trabalho e de
criação de empreendimentos. O que não se deve deixar de pautar é a
necessidade de reflexão sobre esses processos ocorrem na sociedade.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 297

Ainda que a diversidade seja celebrada como avanço, é preciso discutir


exaustivamente a origem dessa concepção: nossos preconceitos, nossa
intolerância e nosso racismo. Esses não podem ser superados somente
pela simples adoção de técnicas ou criação de grupos de afinidades nas
organizações.
O Black Money, entendido como potencial de consumo politizado
por pessoas negras, embora sinalize um aspecto potente. As
reivindicações e lutas travadas pelos movimentos negros até o Século
XX resultaram em avanços, inclusive econômicos. Porém, o nível de
enraizamento do racismo na formação da sociedade brasileira, com
desdobramento em todas as esferas sociais, indica que essas conquistas
estão sob constante ameaça de retrocesso.
A Pandemia pela Covid-19 e o direcionamento político
governamental adotado nos últimos anos impactou a tendência de
crescimento percebidos até 2018. A fragilidade dessas conquistas também
acomete o campo do Afroempreendedorismo. O aprofundamento das
desigualdades, sejam elas baseadas nas diferenças de gênero ou raça,
representam uma atmosfera com baixo potencial para o fortalecimento
dos empreendimentos existentes, bem com de novos.

ALTERNATIVAS AO CANTO DA SEREIA

As questões expostas até aqui nos indicam que o


Empreendedorismo silencia discussões sobre a precarização do
trabalho ao não considerar a relação entre empreendedores e pessoas
que são empurradas para a informalidade. Por tabela, além do
298 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Afroempreendorismo refletir esse mesmo problema, soma-se ainda a


dimensão do racismo estrutural observado no país, que além da
violência simbólica e física, também está relacionado com a exclusão
social, desigualdade e reprodução da pobreza. Além disso, diante do
cenário no que se refere ao nível do debate sobre raça e racismo no país,
por mais que algumas pessoas consigam ascensão econômica, não
significa que tiveram acesso à inclusão social.
Ascensão econômica está ligada ao processo explicitado
parcialmente na introdução deste texto, em que muitas pessoas
obtiveram um aumento expressivo de renda, provocando uma
reclassificação baseada em renda. Ocorre que o incremento na renda diz
muito pouco sobre a condição de vida das pessoas. Sendo um aumento
pouco expressivo e evanescente, a próxima crise já é suficiente para
provocar o decréscimo na renda e retorno às classes com menos poder
de compra, como foi percebido nos últimos 4 anos.
Dessa forma, eventos sociais podem assumir diferentes aparências
sob a luz das narrativas que os explicam e assim é a ideia criada em
torno da ascensão econômica. A perversidade presente nas relações
sociais mediadas pelas instâncias comunicacionais se dá em função de
que as diferenças existentes entre as pessoas são transformadas em
desigualdades, que condicionam as possibilidades da maior parte das
pessoas. Diferenças como origem classe social, gênero, raça e tantas
outras funcionam como elementos responsáveis pela hierarquização
dos sujeitos e que tem reflexos nas oportunidades a que as pessoas têm
acesso, como a ocupação profissional.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 299

Dito de outra forma, a sociedade é responsável por criar os


próprios mecanismos que marginalizam e segregam sujeitos. Porém,
dada a inconveniência de tal fenômeno, de forma paralela desenvolvem-
se discursos cínicos que além de negar tal evidência, podem chegar a
responsabilizar sujeitos marginalizados pela condição estrutural em
que vivem, tal como observado no discurso empreendedor.
Como forma de se incluir, aqueles ditos “diferentes” se submetem
a condições precarizadas com relação ao grupo de referência, o que
Sawaia (2001) chama de inclusão perversa. Os efeitos dessa situação são
lastimáveis, pois além de manter, pode aprofundaras desigualdades
sociais, o que significa pobreza, má qualidade de vida e perda para toda
a sociedade em termos de possibilidade de desenvolvimento.
No que toca as diferenças raciais, as implicações sociais do
racismo, bem como em formas de seu enfretamento ainda precisa
avançar no Brasil. Apesar de a Diversidade estar em voga entre as
organizações atualmente, o que ela promove de forma imediata nada
mais é do que a representatividade (Jesus, 2013) das diferenças
percebidas na sociedade, na organização. Ocorre que diversos estudos
questionam as “boas intenções” responsáveis pela adoção dessa em
organizações (Alves & Galeão-Silva, 2004; Eccel & Flores-Pereira, 2008),
bem como de seus efeitos rasos e esvaziados de sentido, já que em
muitas pessoas negras continuam sendo submetidas à assimilação para
serem aceitas, ou ainda da prática do tokenismo.
A instrumentalização de críticas sociais no contexto
organizacional evidenciada por Saraiva e Irigaray (2009) é um processo
no qual não se promove a devida problematização das questões sociais.
300 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

A simples implementação de processos gerenciais não garante que as


pessoas repensem práticas discriminatórias e preconceituosas, uma vez
que tais condutas se encontram enraizadas no cotidiano, perpetuando-
se por meio de sua reprodução.
Com isso, é preciso estar atento ao fato de que apenas a ascensão
econômica não é capaz de proporcionar reflexões e mudanças
significativas na sociedade, o que nos leva a considerar que a via
econômica não suporta emancipação social, inferência também
admissível no que se refere ao Afroempreendedorismo.
A política é o campo social que permite refletir sobre a ocorrência
dos processos opressões, bem como em possibilidades para amenizar e
reverter esse quadro, gerando emancipação social (Böhm, 2006).
Existem alguns grupos sociais criados em torno de um ideal político,
tais como Movimentos Sociais e o Ativismo. Cada um desses grupos
possui modos e enfoques distintos dos demais para lidar com problemas
sociais específicos.
Os Movimentos Sociais são caracterizados pela ênfase nos
processos, propõem mudanças na via transgressiva e visam propiciar
alterações concretas aos sujeitos (Mcadam & Scott, 2005). Já o Ativismo
(Davis & Zald, 2005) é marcado por fatores distintos, sendo que neste
campo os sujeitos não necessariamente estarão organizados em grupos
que compartilham ideias, sendo essas próprias a manifestação do
ativismo. Justamente por isso, os conceitos criados pelo ativismo
possuem elevada potência e rápida repercussão, não obstante
transformam-se em modismos, perdendo seu caráter crítico no campo
político na mesma velocidade com que se difundem.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 301

A proximidade dos conceitos usados por esses grupos com o


cotidiano, promove identificação e mobilização rapidamente. Os
conceitos por eles usados surgem por meio de reflexões do cotidiano,
em problemas, o que indica que são orientados pela conexão com o
contexto local. No que se refere à luta antirracista, percebe-se que as
denúncias sobre discriminação racial impulsionaram uma grande
quantidade de pessoas a se manifestarem, mas também proporcionou a
muitas outras, conhecimento necessário à reflexão de sua realidade.
Esse processo resultou em uma formação politizadora, antirracista,
baseada em ideias derivadas do cotidiano, linguagem familiar e alta
capilaridade.
Não é nossa intenção oferecer uma solução, até mesmo porque,
está evidente que os mecanismos que provocam a exclusão social e o
acesso precário as oportunidades é fenômeno complexo e ligado a
outros diversos, dinâmicos no tempo e no espaço. Mas nos é possível
apresentar alternativas capazes de promover mudanças positivas e
efetivas na sociedade com base em estudos já realizados. Um deles
remete ao trabalho de Weber ao observar judeus e rede de cooperação
criada por eles, estudo que posteriormente embasou a teoria middleman
minority 8(Bonacich, 1973). A autora percebeu que os imigrantes estavam
sujeitos a situações precárias de trabalho, além de sofrerem xenofobia
e não contarem com nenhum auxílio governamental. O contexto hostil
levou alguns grupos a desenvolverem uma rede de cooperação, tal como

8
Minorias intermediárias, tradução nossa.
302 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

observado nas irmandades no Brasil colonial ou com os judeus pela


Europa, igbos na Nigéria, indianos na África Oriental e outros.
Essa cooperação foi marcada pelo giro dos recursos financeiros
entre as pessoas do grupo, como fruto de uma decisão política. Tanto o
consumo como a contratação de pessoas, privilegiavam os membros do
grupo, fazendo com que a renda permanecesse entre o grupo e
garantindo condições ao enfrentamento do contexto de
superexploração do trabalho.
Tal como as irmandades no Brasil colonial, as minorias
intermediárias não visavam com sua organização superar o sistema
social vigente. Contudo, as informações e conhecimentos
compartilhados proporcionaram aos sujeitos consciência política de sua
situação e com isso, o desenvolvimento de agenciamentos possíveis. Ao
pensarmos a dinâmica das minorias intermediárias, podemos perceber
que o Black Money e o Afroempreendedorismo podem conter potência
para fomentar o desenvolvimento de redes de cooperação entre pessoas
negras. Para tanto, essa cooperação deve estar profundamente ligada ao
processo de formação política antirracista.
O estudo sobre minorias intermediárias indica que não é possível
criar uma solução para a exclusão social somente pela via econômica.
Mesmo após anos, é possível percebermos que ainda não dispomos de
uma alternativa definitiva, mas tudo indica que caminhos sólidos
podem ser construídos pela via política.
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 303

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos apresentar, por meio desta obra, uma visão geral a


respeito do Black Money e Afroempreendedorismo tendo em perspectiva
ao contexto histórico brasileiro. O intuito foi interrogar a dimensão
econômica como via de inclusão para a crescente exclusão social
percebida no Brasil e que acomete de forma preponderante pessoas
negras. O esforço aqui foi o de evidenciar, ainda que de forma parcial, a
complexidade que permeiam a exclusão social e o racismo, já que se
tratam de processos históricos e que configuraram a vida das pessoas
de tal forma que os mecanismos de opressão encontram-se em grande
medida naturalizado no cotidiano das pessoas, algo que mina a
capacidade de resistência à tendência precária imposta aos grupos.
O clima de euforia criado em torno do cenário considerado
favorável ao empreendedorismo negro e ao incremento de renda
durante as duas primeiras décadas do Século XXI, foram interpretados
por diversos autores como sendo uma forma de promoção de inclusão
social. O Afroempreendedorismo é um termo criado a partir do conceito
de empreendedorismo, e dessa forma, herda a crítica a ele direcionada
acrescido da dimensão social desproblematizada no âmbito econômico,
seja no que se refere a gênero, classe ou raça como aqui abordamos. A
exclusão no Brasil leva a pobreza e a vida precária e em muito está
relacionada ao racismo.
De fato, vivemos em uma era em que importantes avanços podem
ser destacados no que se refere a luta antirracista e a condição de
pessoas negras no país. Esses avanços demonstram o passado de
304 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

denúncias e debate em torno dos problemas sociais que acometem


determinados grupos. Ocorre que por muito tempo, a discussão sobre as
diferenças sociais não foi devidamente problematizada. A narrativa
oficial criada em torno do ideal de democracia racial pregou a harmonia
racial no país, quando na verdade um sistema excludente se instalou,
em que o acesso às oportunidades em muito foi pautado em torno das
nuances de cor que conferiram algum nível de trânsito social, mas
nunca de igualdade de condições com a branquitude.
O quadro que temos possibilita perceber avanços em diversas
esferas, mas também de desafios, já que o Brasil segue sendo um dos
países mais desiguais do mundo, sendo que dentre os mais pobres,
pessoas negras são a maioria. Em contexto permeado pelo racismo, as
conquistas sociais obtidas ao longo dos anos podem ser mostrar frágeis,
dada a tensão de grupos com interesses distintos.
É possível perceber que movimentos como o Black Money e
Afroempreendedorismo são decorrentes de conquistas sociais em torno
da ampliação do acesso à educação, das lutas e reivindicações dos
movimentos negros, do processo de formação politizada e do
incremento financeiro nas duas décadas passadas. O reconhecimento do
potencial de consumo de grupos sociais aliado ao surgimento de
organizações especializadas em produtos e serviços sensíveis às
necessidades específicas, pode ser encarado cenário resultante de um
processo de cooperação social, formando uma esfera na qual circulam
saberes, oportunidades, informações, afetos e também de renda.
Porém, as recentes mudanças ocorridas no país relacionadas às
políticas de estado e a Pandemia pela Covid-19, estão associadas com o
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos • 305

aprofundamento das desigualdades, inclusive a racial, causando um


rápido retrocesso a patamares anteriores a importantes conquistas na
esfera social. A observação desse movimento é importante por sinalizar
que racismo, ainda persistente em nossa sociedade, representa uma
tensão contínua às conquistas sociais.
Por consequente, o Black Money e o Afroempreendedorismo
sinalizam o nível de qualidade de vida do povo negro, mas eles são mais
reflexo do que meio para emancipação. Nesse sentido, processos de
ampla mudança social consistentes são baseados no enfrentamento dos
dilemas históricos e cooperação entre as pessoas negras, amparadas por
acesso à educação, cultura e formação política.
A complexidade dos temas que envolvem a inclusão econômica e
social, nos inspira cautela na consideração daquilo que se apresenta
como possibilidade de emancipação social. O fato das pessoas negras
mudarem sua capacidade de consumo, não as torna imediatamente
aceitas na sociedade. O racismo representa um cenário de violência e
opressão às pessoas negras, independente de sua classe social. As
questões que pontuamos neste trabalho estão refletidas em diversas
outras esferas e questões sociais tais como o Pink Money, Produtos
Orgânicos, Indústria Criativa e Gestão da Diversidade.
De forma geral, podemos salientar o fato de que as críticas feitas
no contexto capitalista, são esvaziadas de seu sentido político,
apropriadas na esfera econômica e transformadas em nicho de
mercado, processo que inviabiliza qualquer possibilidade efetiva de
mudança ou emancipação social. Isso significa que os dilemas
decorrentes do racismo não podem ser reduzidos a uma questão de
306 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

mercado, já que ele está impregnado nas relações sociais de uma forma
muito mais abrangente.
Não temos a pretensão de oferecer uma alternativa às questões
aqui expostas. Ao contrário, estudos já realizados como o das minorias
intermediárias indicam que alternativas são possíveis, mas estão
acessíveis pela dimensão política em uma construção contextualizada e
conectada com as especificidades dos grupos sociais, imersos em um
processo dinâmico e fluído. Em nossa compreensão, o Black Money e o
Afroempreededorismo sinalizam que a análise de processos sociais
relacionados a grupos minorizados, bem como das alternativas de
agenciamento é complexa por envolver esferas distintas, como a social,
a econômica e a cultural. É justamente por esse motivo que tais
processos não podem ser lidos e tratados como ‘solução’ de forma
isolada, já que sua existência está condicionada ao que se apresenta
como vida possível ao negro no país.

REFERÊNCIAS

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SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Alexandre de Pádua Carrieri


Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
Associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Fundador e Subcoordenador do
Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS). Bolsista Produtividade (Nível
1A) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contato:
alexandre@face.ufmg.br.

Alexsandra Nascimento da Silva


Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Administradora
na Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: alexsandra.n.silva@gmail.com.

Ana Flávia Rezende


Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta
da Universidade Federal de Ouro Preto. Contato: anaflaviarezendee@gmail.com.

Bruno Eduardo Freitas Honorato


Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto
da Universidade de Brasília. E-mail: brunoefh@gmail.com.

Danielly Mendes dos Santos


Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Produtora
Cultural. Contato: dannymendescanal@gmail.com.

Denis Alves Perdigão


Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto
da Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: denis.perdigao@ufjf.br.
314 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Elisângela de Jesus Furtado da Silva


Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da
Fundação Dom Cabral. E-mail: elisangela.jfs@yahoo.com.

Fabiana Florio Domingues


Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da
Faculdade de Ciências Contábeis e Administração de Cachoeiro de Itapemirim. Contato:
fabianafd@gmail.com.

Gabriel Farias Alves Correia


Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
Substituto na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Contato:
correiagfa@gmail.com.

Jéssica Eluar Gomes


Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Funcionária do
Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais. Contato: jessica.eluargomes@gmail.com.

Luiz Alex Silva Saraiva


Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado
da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Núcleo de Estudos
Organizacionais e Sociedade (NEOS). Bolsista Produtividade (Nível 2) do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contato: saraiva@face.ufmg.br.

Paula Gontijo Martins


Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora
Substituta da Universidade Federal de Alfenas. Contato: pgontijomartins@gmail.com.
ÍNDICE REMISSIVO

Administração, 9, 10, 11, 17, 27, 29, 30, Brasil, 11, 12, 13, 14, 30, 31, 33, 34, 37,
31, 33, 54, 73, 74, 75, 76, 78, 79, 80, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 47, 48, 49, 51,
86, 87, 95, 96, 101, 107, 108, 109, 110, 54, 59, 71, 72, 73, 74, 109, 110, 111,
112, 113, 114, 146, 149, 155, 161, 165, 112, 136, 137, 145, 146, 149, 171, 172,
166, 171, 172, 173, 174, 175, 198, 209, 173, 174, 175, 177, 179, 180, 194, 195,
210, 211, 212, 213, 221, 254, 255, 256, 198, 199, 204, 207, 209, 210, 211, 241,
258, 264, 287, 291, 307, 308, 309, 311, 245, 246, 255, 256,257, 259, 260, 261,
313, 314 262, 264, 265, 266, 267, 273, 276,
278, 280, 281, 282, 284, 285, 286,
afroempreendedorismo, 13, 261, 265
287, 289, 290, 293, 299, 302, 303,
artesanal, 249, 250 304, 306, 307, 308, 309, 310, 311, 312,
321
Baudrillard, 121, 122, 142, 144
capital, 9, 17, 24, 33, 40, 50, 51, 58, 63,
Belo Horizonte, 11, 12, 13, 31, 72, 73, 74,
64, 67, 68, 88, 117, 118, 129, 133, 134,
104, 108, 110, 112, 114, 116, 127, 131,
136, 138, 139, 142, 165, 171, 181, 247,
146, 156, 170, 171, 172, 173, 174, 177,
268, 279, 288, 294, 307
178, 187, 193, 207, 209, 210, 211, 213,
216, 217, 222, 231, 245, 246, 247, 250, capital cultural, 58, 63, 64
254, 255, 289, 306
capital social, 63, 64, 118
Benjamin, 77, 84, 85, 90, 91, 107, 108,
capitalismo, 12, 115, 116, 118, 119, 126,
109
128, 135, 139, 140, 141, 142, 143, 144,
bissexualidades, 235 158, 172, 308
Black Money, 258, 259, 263, 267, 268, Certeau, 76, 92, 93, 97, 98, 110, 111, 113,
269, 270, 278, 286, 287, 288, 290, 184, 185, 186, 187, 198, 209, 211, 251,
297, 302, 303, 304, 305, 306, 310 255
Bourdieu, 33, 34, 37, 57, 58, 59, 60, 61, cidade, 12, 24, 25, 31, 32, 103, 104, 111,
62, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 73, 114, 115, 120, 121, 122, 130, 131, 132,
288, 307 138, 143, 144, 145, 154, 155, 156, 157,
165, 170, 172, 173, 174, 177, 178, 179,
branco, 55, 99, 121, 266, 276, 281, 307,
180, 181, 182, 183, 184, 187, 192, 193,
308
197, 199, 200, 204, 205, 209, 212, 216,
branquitude, 281, 304 222, 223, 236, 245,248, 250, 253, 257,
263, 308
316 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

Ciência, 113, 145, 150, 170, 173, 257, 309, Didi-Huberman, 76, 85, 87, 105, 106,
311 108, 110, 140, 143

colonial, 87, 88, 89, 90, 108, 268, 302 Diferenças, 12, 147, 149, 151, 173, 298

conhecimento, 9, 12, 20, 23, 27, 33, 60, direito, 13, 31, 36, 44, 45, 46, 47, 124,
65, 75, 78, 81, 84, 86, 87, 88, 89, 90, 157, 197, 208, 211, 243, 244, 250
93, 95, 106, 107, 109, 113, 155, 158,
discurso, 18, 46, 56, 71, 111, 114, 121,
161, 163, 164, 168, 169, 171, 176, 179,
124, 126, 131, 144, 160, 170, 172, 174,
200, 246, 289, 301
179, 197, 218, 219, 220, 221, 241, 254,
contemporaneidade, 40, 85, 107 255, 256, 257, 278, 282, 292, 293, 295,
299, 308, 311
corpo, 20, 29, 32, 35, 58, 74, 86, 89, 110,
116, 117, 145, 222, 237, 244, 250 Durkheim, 162, 171

cotidiano, 10, 11, 15, 18, 19, 20, 21, 22, educação, 11, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38,
23, 25, 27, 28, 30, 31, 32, 54, 56, 62, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 48, 50,
75, 76, 77, 78, 85, 87, 92, 93, 94, 95, 51, 52, 53, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65,
97, 98, 101, 103, 104, 105, 106, 108, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 145,
109, 110, 111, 113, 128, 129, 138, 150, 149, 170, 211, 227, 242, 246, 260, 263,
170, 185, 186, 206, 209, 211, 215, 217, 270, 274, 282, 288, 289, 291, 296,
218, 223, 228, 236, 239,240, 249, 251, 304, 305, 307
255, 300, 301, 303
Educação Superior, 42, 47
crítica, 17, 21, 29, 32, 68, 70, 71, 96, 110,
embranquecimento, 261, 279, 281
121, 133, 134, 145, 155, 211, 214, 256,
277, 292, 293, 295, 303, 307 ensino superior, 34, 38, 41, 42, 43, 44,
46, 47, 48, 50, 51, 69, 71, 263, 282,
cultura, 23, 32, 54, 55, 58, 60, 62, 71, 77,
288, 321
90, 109, 113, 126, 131, 132, 133, 145,
171, 188, 189, 211, 213, 214, 215, 226, erudito, 77, 86
227, 228, 229, 234, 235, 237, 241, 242,
espaço, 19, 21, 23, 24, 25, 27, 29, 40, 65,
250, 253, 255, 257, 273, 274, 288, 289,
76, 79, 85, 87, 93, 97, 98, 99, 100,
305
105, 106, 107, 112, 114, 115, 117, 121,
Deleuze, 76, 110, 143, 161, 171 122, 123, 126, 127, 130, 131, 134, 136,
141, 155, 157, 170, 179, 182, 183, 184,
democracia racial, 261, 273, 278, 280,
186, 187, 201, 205, 211, 212, 215, 218,
304, 307
220, 222, 223, 224, 225, 234, 247, 253,
desconstrução, 19 269, 301

desigualdade, 13, 48, 56, 73, 126, 180, estudos organizacionais, 9, 11, 12, 109,
258, 262, 263, 288, 289, 290, 294, 111, 113, 146, 151, 152, 155, 157, 161,
298, 308, 309, 311, 312
Índice remissivo • 317

170, 171, 172, 173, 177, 179, 182, 210, 113, 146, 150, 169, 174, 186, 202, 205,
254, 255 206, 207, 211, 242, 244, 256, 276

ética, 46, 234, 311 homossexualidade, 234

etnia, 271, 272, 278, 282, 285 Honneth, 190, 191, 210

exclusão social, 13, 29, 38, 258, 261, ideologia, 52, 59, 69, 184, 248
262, 265, 268, 286, 291, 298, 301,
indígena, 12, 28, 113, 135, 138
302, 303
interdisciplinar, 79, 155, 180
experiência, 54, 61, 91, 137, 149, 165,
166, 167, 189, 204, 221, 237, 238, 240, Lazzarato, 117, 118, 133, 134, 139, 144,
257, 292, 294 145

Fairclough, 196, 210 Lefebvre, 19, 21, 22, 23, 25, 27, 31, 183,
186, 211
Foucault, 35, 72, 87, 99, 100, 111, 185,
245, 248, 249, 255 luta antirracista, 260, 261, 268, 275,
278, 283, 285, 288, 290, 301, 303
Fraser, 191, 210
mainstream, 10, 17, 75, 77, 78, 86, 93, 97,
gênero, 29, 88, 112, 116, 123, 124, 125,
101
126, 127, 145, 146, 168, 169, 172, 228,
230, 231, 234, 285, 297, 298, 303 malucos de estrada, 12, 171, 216, 217,
219, 223, 224, 228, 234, 235, 239, 245,
Gestão, 17, 31, 73, 75, 109, 110, 111, 112,
246, 247, 250, 252, 253, 255
170, 171, 173, 210, 255, 291, 305
memória, 28, 31, 32, 77, 78, 79, 81, 82,
gestão ordinária, 11, 13, 26, 75, 76, 78,
83, 84, 86, 90, 91, 101, 102, 105, 106,
92, 94, 95, 96, 97, 101, 104, 105, 107,
107, 108, 109, 112, 113, 150, 151, 174,
109, 254
246
grafite, 11, 115, 116, 119, 120, 121, 122,
Mignolo, 88, 89, 108, 112
127, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135,
136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, miséria, 192, 207, 211
144
modernidade, 11, 22, 23, 34, 35, 41, 57,
Guattari, 110, 117, 118, 119, 139, 140, 70, 88, 90
143, 145
mulher, 12, 116, 122, 123, 124, 125, 126,
hippies, 157, 216, 217, 228, 229, 241, 242, 127, 137, 141, 144, 146, 229, 230, 232,
247, 250 235, 236, 237, 241, 246, 276, 277, 281

história, 19, 23, 24, 27, 28, 30, 32, 77, 78, multidisciplinar, 19
79, 80, 82, 84, 85, 87, 91, 93, 94, 95,
negritude, 166, 274, 275, 277, 281
101, 105, 107, 108, 109, 110, 111, 112,
318 • Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1

negro, 12, 138, 144, 213, 258, 259, 260, Raça, 150, 265, 266, 270, 271, 272, 280,
261, 262, 267, 270, 272, 275, 280, 283, 310, 311
284, 285, 287, 289, 293, 303, 305,
racial, 166, 167, 260, 261, 262, 263, 266,
306, 307, 309
267, 271, 272, 277, 278, 280, 281, 288,
origem social, 61 290, 301, 304, 305, 307, 308, 309,
310, 311
pandemia, 43, 263, 307
racismo, 13, 87, 259, 261, 262, 263, 268,
periferia, 131, 132, 133, 211
271, 273, 274, 275, 277, 278, 280, 282,
Pesquisa, 14, 31, 102, 103, 110, 113, 144, 283, 284, 285, 286, 289, 291, 292,
145, 146, 198, 211, 213, 255, 309 294, 296, 297, 298, 299, 303, 304, 305

Pink Money, 293, 305 reforma, 35, 39

pobre, 33, 40, 50, 131, 312 relações sociais, 12, 18, 19, 21, 22, 24,
27, 125, 160, 180, 225, 235, 246, 257,
pobreza, 31, 38, 109, 268, 281, 298, 299,
272, 281, 298, 306
303, 311
resistência, 11, 76, 85, 96, 97, 98, 112,
poder, 21, 29, 35, 44, 53, 55, 58, 70, 71,
114, 116, 118, 120, 122, 127, 129, 130,
74, 76, 84, 88, 89, 92, 93, 96, 98, 104,
131, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139,
107, 108, 113, 120, 130, 139, 154, 164,
140, 141, 142, 143, 144, 146, 157, 164,
165, 184, 185, 186, 187, 193, 207, 215,
172, 220, 221, 243, 244, 245, 247, 249,
219, 220, 230, 235, 245, 246, 248,
250, 253, 254, 256, 274, 303, 307, 312
250, 253, 255, 268, 269, 289, 290,
291, 298 Revolução, 70

Pollak, 81, 84, 112, 242, 257 saberes populares, 11, 29, 75, 77, 78, 84,
86, 88, 90, 100, 101, 104, 105, 106,
popular, 11, 29, 34, 40, 50, 53, 54, 56, 57,
107, 168, 169, 173, 230, 231, 235, 281
74, 76, 77, 86, 87, 90, 91, 94, 97, 98,
101, 104, 107, 134 Sartre, 244, 257

práticas, 9, 10, 11, 19, 26, 27, 28, 29, 31, sexismo, 235
67, 71, 75, 77, 78, 80, 81, 83, 84, 85,
situação de rua, 12, 157, 171, 172, 175,
86, 91, 92, 93, 95, 96, 99, 104, 105,
176, 177, 178, 179, 183, 184, 185, 186,
107, 108, 109, 110, 111, 120, 154, 157,
188, 189, 191, 192, 193, 195, 196, 197,
162, 164, 166, 168, 169, 173, 174, 179,
199, 200, 202, 203, 204, 205, 206,
184, 185, 188, 189, 193, 194, 198, 211,
207, 208, 209, 210, 211
217, 218, 219, 223, 229, 240, 247, 248,
256, 264, 269, 296, 300 sobrevivência, 13, 20, 25, 26, 85, 101,
104, 105, 171, 190
produção de conhecimento, 18
sociedade, 9, 10, 11, 18, 21, 23, 24, 25,
Quijano, 88, 113
26, 27, 28, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38,
Índice remissivo • 319

39, 40, 46, 53, 55, 56, 57, 59, 70, 74, 174, 177, 179, 187, 191, 197, 198, 199,
79, 83, 91, 99, 107, 109, 116, 122, 126, 201, 202, 206, 207, 208, 211, 216, 224,
127, 133, 145, 160, 161, 162, 164, 167, 227, 233, 238, 247, 248, 249, 250, 254,
168, 169, 180, 186, 187, 188, 190, 193, 256, 257, 263, 267, 273, 274, 276, 279,
197, 198, 203, 205, 223, 226, 228, 242, 280, 282, 286, 288, 291, 294, 295,
243, 244, 248, 250, 252, 253, 258, 261, 296, 297, 301, 302, 305, 307
270, 271, 277, 279, 280, 283, 288, 293,
tradição, 10, 90, 162
294, 296, 297, 299, 300, 301, 305, 312
tradições, 10, 13, 36, 285
tecnologias, 12, 54, 150, 154, 158, 160,
162, 164, 252 universidade, 12, 50, 151, 153, 154, 155,
163, 164, 166, 168, 169, 170
teoria, 9, 31, 32, 59, 63, 71, 123, 163, 164,
167, 187, 191, 223, 301 urbano, 24, 114, 115, 117, 122, 130, 145,
156, 158, 165, 174, 180, 182, 190, 210,
Território, 166
212, 216, 217, 236
trabalho, 21, 27, 28, 30, 32, 35, 36, 37,
Van Dijk, 220, 257
47, 52, 53, 55, 56, 60, 61, 66, 67, 69,
75, 76, 79, 81, 82, 84, 87, 88, 94, 95, vida social organizada, 12, 26, 150, 154,
98, 100, 104, 115, 117, 119, 120, 123, 158, 162, 164, 171, 172, 183
124, 125, 126, 127, 128, 130, 134, 135,
vivência, 188, 236, 239, 250, 293
137, 138, 139, 140, 141, 144, 145, 146,
151, 153, 154, 155, 157, 166, 167, 171,
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