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Banca:
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Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval - Orientador
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado - Membro Titular da Banca
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Prof. Dr. Odair Sass - Membro Titular da Banca
_____________________________________________________________
Profª. Drª. Márcia Regina de Oliveira Andrade - Membro Suplente da Banca
DM Silva, Alessandro Soares da.
302 Acampados no "Carlos Mariguhella": a formação da
S586a Consciência política entre famílias do Movimento dos
Trabalhadores Rurais
Sem Terra no Pontal do Paranapanema - SP / Alessandro
Soares da Silva. -- São Paulo: s. n., 2002.
xxxvi, 222 f.
... a todos quantos foram aqueles que por um motivo ou outro me ajudaram a chegar
até aqui. De modo especial, quero agradecer a Deus que me ampara e fortalece e a meus pais,
Valdeni Terezinha e Antonio Zacarias, que mesmo de longe acompanham e apoiam meus
passos como pesquisador. Aos meus irmãos Rossano e Rossieli. Ao amigo Pedro Paulo dos
Santos e a família Magnificat que, durante um período tão conturbado de minha vida,
ajudaram-me a abrir os olhos para o mundo da vida e a crescer, que me fizeram ver com
carinho as questões que hoje persigo em meus estudos. A amiga, e primeira incentivadora,
Jaqueline Oliveira, que me mostrou que já era hora de partir para estudos mais complexos,
hora de trilhar um novo caminho, sem medo. A minha família adotiva paulista, os
MOCHIATTI (Zenaide, Luis Moisés, Rose, Valdo, Renato, Marli, Jéssica, Fernanda, Bruno,
Rodrigo e Vânia) que me acolheram ricamente como um dos seus quando voltei à São Paulo
para esta empreitada. A Salvador Sandoval que se revelou mais que um orientador, revelou-se
um amigo de todas as horas e um permanente incentivador. De maneira muito especial a
Ângelo Colucci que me acolheu em Presidente Prudente e ao Dombeck e a Iracema que me
acolheram em suas casas durante as vezes em que estive em Teodoro Sampaio. Aos amigos da
Coordenação Regional do MST. Ao meu povo que luta no Pontal do Paranapanema,
especialmente aos acampados do Pontal. De modo muito particular, àqueles com os quais eu
convivi nos acampamentos Dorcelina I e II e Carlos Mariguela. Ao amigo Marco Aurélio
pelo carinho e amizade; por ter se disposto a ler, criticar e corrigir este trabalho infindáveis
vezes durante estes dois anos de mestrado,. Aos meus formadores, de modo especial aos
amigos e professores Odair Sass e Raul Albino Pacheco Filho que contribuíram em muito para
a minha formação como pesquisador. A Márcia Andrade que trouxe preciosas contribuições a
esse trabalho durante a qualificação. Aos companheiros de núcleo de pesquisa em Psicologia
Política e Movimentos Sociais (Márcia, Pedro, Enock, Fernanda, Maria Célia, Luiz Humberto,
Rosa, J'mas, Zartú e Majú) que discutiram diversas vezes este trabalho. A Eliana Kawata que,
além de companheira de turma, foi um ouvido carinhoso em meus dias de crise. Agradeço
também a nossa incansável Terê; mais que a secretária do programa foi para mim uma
superamiga dando-me todo o apoio que lhe era possível. Aos amigos inesquecíveis da
Secretaria de Alunos ((Cida, Vera, Elvis, Marta, Lene, Marilene, Mônica, Bete, Márcia) e do
CPD (Raquel, Marizete, Alessandra e Betinha) que em tantos momentos me foram solidários.
A Soraia Ansara e a Maria Virginia Siede, amigas que leram cuidadosamente e comentaram a
versão final deste trabalho. Agradeço ainda a Ivan Ducatti e a Maria Virginia que fizeram as
versões de meu resumo para o inglês e o espanhol. E, por fim, aos amigos César Vilaça,
Ernesto Richter e Renato Barboza que abriram suas casas para que eu refizesse parte de meu
trabalho. Obrigado ao CNPq que contribuiu com a bolsa de pesquisa que possibilitou uma
pequena parte dessa pesquisa, já que as bolsas não são reajustadas no Brasil faz sete anos.
Certamente alguns foram esquecidos aqui, mas não no meu coração. Obrigado. Este
trabalho também é de vocês.
RESUMO
Para que um movimento social possa ser um agente de mudança, transformação social,
é necessária a adesão de seus integrantes as suas propostas e as suas bandeiras. Assim, importa
que se indague sobre as razões que motivam sujeitos a adotarem ações coletivas como
alternativa para a transformação social da realidade em que vivem. No presente estudo
buscamos responder a essa pergunta através da análise do processo de formação da
consciência política entre famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST
- acampadas no Pontal do Paranapanema - SP.
No intuito de alcançarmos nossa meta, realizamos entrevistas semi-estruturadas com 6
famílias do acampamento Carlos Mariguela, as quais foram analisadas à luz da Teoria Social
do Self e do Modelo analítico para o estudos da consciência política. Tal modelo tem por
objetivo entender exatamente a indagação anterior, ou seja, o que faz com que alguém
participe ou não de ações coletivas. Como o modelo é composto por sete dimensões distintas,
as quais se articulam de modo dinâmico, dando origem à configurações diversas dessa
consciência, nós adotamos aqui essas dimensões como categorias de análise para podermos
entender o processo de formação dessa consciência.
Por fim, mediante a análise das entrevistas dos acampados, pudemos discutir algumas
das contradições internas do MST (como, por exemplo, a relação individual X coletivo)
buscando propor algumas alternativas para o enfrentamento delas.
Importa ainda registrar que na presente pesquisa utilizou-se o referencial psicossocial
para tentar entender nosso objeto e responder às questões que surgiram no decorrer dos
trabalhos.
RESUMEN
Para que un movimiento social pueda ser un agente de cambio, transformación social,
es necesario que sus integrantes adhieran a sus propuestas y banderas. De esta manera, es
pertinente indagar sobre las razones que motivan a los sujetos a la adopción de acciones
colectivas como alternativa para la transformación social de la realidad en que viven. En este
estudio, buscamos responder a esa pregunta a través del análisis del proceso de formación de
la conciencia política entre familias del Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra -
MST – acampadas en el Pontal de Paranapanema –SP.
Para alcanzar nuestra meta, realizamos entrevistas semi estructuradas con seis familias
del campamento Carlos Mariguela que fueron analizadas a la luz de la Teoría Social del Self y
del Modelo analítico para el estudio de la conciencia política. Dicho modelo tiene como
objetivo entender exactamente la pregunta anterior, o sea, qué hace que alguien participe o no
de acciones colectivas. Como el modelo es compuesto por siete dimensiones diferentes,
articuladas de un modo dinámico y dando origen a configuraciones diversas de esa conciencia,
nosotros adoptamos esas dimensiones como categorías de análisis para poder entender mejor
el proceso de formación de esa conciencia.
Finalmente, mediante el análisis de las entrevistas realizadas con los acampados,
podemos discutir algunas de las contradicciones internas del MST (como, por ejemplo, la
relación individual X colectivo) buscando proponer algunas alternativas para su
enfrentamiento.
Es necesario destacar que en esta investigación utilizamos el referencial psico-social
para intentar entender nuestro objeto y responder a las cuestiones que nos surgieron en el
devenir de nuestro trabajo.
ABSTRACT
INTRODUÇÃO i
CAPÍTULO I
A GÊNESE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS NO BRASIL 1
1 - TRABALHADORES RURAIS: UMA HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA 1
1.1 - Anos 60: O caminho da desmobilização 2
1.2 - Igreja Católica: De aliada do regime à defensora do trabalhador 4
1.3 - O Estatuto da Terra: Democraticamente consolidando a opressão 6
1.4 - É Preciso Resistir 9
2 - O MST NO BRASIL 10
2.1 - Conflitos Agrários: Uma luta entre o poder e a sobrevivência 12
2.2 - Igreja e Sindicalismo como Atores na Retomada dos Movimentos Sociais Rurais 18
2.3 - MST: Uma história de lutas 20
2.4 - Desvelando os Princípios e a Proposta do MST 23
3 - O MST EM SAO PAULO 25
4 - O MST NO PONTAL DO PARANAPANEMA 28
4. 1 - A Ocupação do Pontal do Paranapanema: Uma história de grilos e violência 29
4.2 - O Poder da Mídia 34
4.3 - O Nascimento do MST 38
4.4 - Igreja Católica no Pontal: Uma Igreja particular com uma atuação particular 40
4.5 - O Retrato do Pontal do Paranapanema nos Últimos Anos do Seculo XX e 43
Princípio da Primeira Década do Século XXI
CAPÍTULO II
OS ESTUDOS PSICOSSOCIAIS SOBRE O MST: UMA REVISÃO 47
BLIBLIOGÁFICA
CAPÍTULO III
DISCUTINDO AS BASES TEÓRICAS DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA 85
1. A Psicologia Social de George Herbert Mead 86
2. A Teoria da Identidade Social 94
3. A Teoria da Identidade Coletiva 101
4. Consciência e Identidade: Uma outra Perspectiva 105
CAPÍTULO IV
CAMINHANDO RUMO AO ACAMPAMENTO CARLOS MARIGUELA 117
1. O Retrato do Carlos Mariguela 117
2. Chegando ao Pontal: A realidade a estrutura dos acampamentos 118
3. O Exercício da Escolha 120
4. Desmontando o Barraco e subindo no Caminhão 122
5. Entrando na Terra Prometida 124
6. Restringimdo o Campo de Pesquisa 125
7. Acampados com os Companheiros e Companheiras do Carlos Mariguela 127
8. As Famílias no Contexto da Pesquisa 143
9. Espaços de Socializaão Política: O Possível e o Concretizado 145
10. Os Espaços de Socialização Política Mistos 146
11. Outros Espaços de Socializaão a Espera de uma Oportunidade de se Materializar 150
12. Entrevistando a Familia Mariguela 155
12.1 Roteiro de Entrevista Familiar 156
12.2 Roteiro de Entrevista Individual 157
CAPÍTULO V
O DISCURSO DOS ACAMPADOS E AS DIMENSÕES DA CONSCIÊNCIA 159
1. Crenças e Valores Societais 160
2. Identidade Coletiva 166
3. Identificação de Adversarios e Sentimentos Antagônicos 170
4. Sentimento de Eficácia Política 175
5. Sentimentos de Justiça e lnjustiça 182
6. Metas de Ação Coletiva 187
7. Vontade de Agir Coletivamente 190
7.1 Diálogo: Um aliado da formação da consciência, um Sinal de Democracia 195
Algumas Considerações Acerca das Consciências de nossos Sujeitos 199
CONSIDERAÇÕES FINAIS 201
BIBLIOGRAFIA 211
ANEXOS 222
i
INTRODUÇÃO
Os negros nas suas lutas contra as injustiças organizaram suas vidas em comunidades
rurais onde conservavam seus costumes culturais. Eram locais onde se entendiam enquanto
iguais sendo o quilombo dos Palmares-Alagoas o principal foco de resistência quilombola sob
a liderança de Zumbi dos Palmares.
Segundo Oliveira (1988) pode-se classificar os conflitos sociais no campo em: lutas na
escravidão; lutas de Canudos e Contestado; lutas de camponeses contra latifundiários; lutas de
colonos nas fazendas de café; lutas de Trombas e Formoso; lutas pela terra no Paraná e a
Formação das Ligas camponesas. Essas últimas surgiram na década de 50 e constituíam uma
tentativa de articular as várias lutas presentes no campo. Podemos destacar três ligas que
i
ii
tiveram papéis relevantes na luta pela reforma agrária no Brasil, a saber: As Ligas
camponesas, consolidadas em Pernambuco; as ULTAB’s (União dos Trabalhadores Agrícolas
do Brasil) criadas em 54 e o MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra). E é a partir
das Conferências Nacionais dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas e dos Encontros
Estaduais de Trabalhadores que a luta dos trabalhadores rurais ganha força.
Contudo, a luta pela terra se intensifica na década de 80, surgindo novos personagens
– os expulsos da terra pela construção de barragens, e a conseqüente inundação das terras em
que trabalhavam, e os excluídos do campo em virtude da mecanização do campo -, os
chamados Sem Terra. Desse contexto surge o atual Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra - MST, tema de nossa pesquisa.
Queremos contribuir com nossa dissertação para a compreensão de uma problemática
vivida no interior dos movimentos sociais agrários como o MST, a saber: porque as linhas de
ação adotadas pelas lideranças tem dificuldade de serem interiorizadas pela base. No caso
específico desse trabalho, queremos colaborar para a compreensão dessa problemática
estudando qual o papel da família dos acampados ligados ao MST na construção daquilo que
chamamos consciência política.
Muitas são as investigações que se ocupam com temáticas como a mulher e o MST, o
levantamento histórico do Movimento, as questões envolvendo a formação política e as
relações de líderes e com líderes. Mas tratar da família enquanto um importante locus das
ações constitutivas inerentes ao movimento, das dinâmicas vividas por ele, parece-nos
inovador, relevante e instigante. É preciso que se investigue com a devida atenção o papel das
famílias sem terra na conscientização de seus membros, como também nas dinâmicas vividas
pelo movimento, visto que a associação a este não se dá de modo individual como nos
sindicatos, mas sim de maneira coletiva: associam-se a ele o grupamento familiar e não o
sujeito em particular.
Agora parece-nos necessário investigar como esses processos de mobilização do MST
impactam nos membros do grupo familiar. Não encontramos na literatura pesquisada
investigações aprofundadas que focalizem a família no MST. No caso da tese de Márcia
Regina de Oliveira Andrade (1998), o papel da família na formação da consciência política
dos jovens assentados é focalizado apenas de modo tangencial. No caso da dissertação de
Maria Antonieta de Souza (1994), a autora não aprofunda como os líderes do MST atuam no
universo familiar e de que modo suas ações intervém na construção da identidade coletiva
das famílias assentadas.
A partir desses estudos propomos nosso trabalho de pesquisa, trazendo uma nova
ii
iii
1
Neoliberalismo: O termo designa uma doutrina que aspira a renovar certas posturas do velho liberalismo, mas
permanecendo fiel às raízes do mesmo. O Neoliberalismo a partir do séc. XVIII se torna um sistema filosófico,
político e econômico. Os critérios inspiradores eram a liberdade de pensamento e a competição política entre os
indivíduos mediante a representatividade e o livre comércio. No séc. XX procurou-se retirar-lhe a excessiva
carga de abstração e de individualismo difuso, depurando-o mediante a incorporação da experiência social.
Atualmente busca adequar sua defesa da liberdade de mercado às exigências da sociedade de consumo. O
neoliberalismo reconhece que somente o Estado pode preservar o princípio fundamental da concorrência
ameaçada pelo monopólio. O neoliberalismo constitui um sistema influenciado por diversas correntes. Carece
de rigidez, mas afirma as essências liberais, sobretudo diante dos atuais tecnocratas (cf. Dicionário de Ciências
Sociais, FGV, 1986 p. 814-815). Contudo, segundo o Prof. Pièrre Bourdieu assinala em seu artigo La Esencia
del Neoliberalismo (Revista Le Monde Diplomatique), "(...) essa teoria tutelar é uma pura ficção matemática
baseada em uma formidável abstração, que, de uma concepção estranha da racionalidade, identificada com a
racionalidade individual, consiste em pôr entre parênteses as condições econômicas e sociais que são a
condição de seu exercício. Para perceber a dimensão destes aspectos omitidos, basta pensar no sistema de
ensino que nunca se levou em conta enquanto tal no momento em que desempenha um papel determinante na
produção de bens e serviços, assim como na produção dos produtores." (tradução nossa)
iii
iv
2
Identidade é um conceito oriundo da Psicologia do Desenvolvimento e refere-se ao sujeito singular. Entretanto,
tal conceito se trata de um campo complexo que tem sido objeto de estudo de disciplinas como a filosofia,
psicanálise, ciências sociais, história, antropologia, semiótica... Refere-se a um campo multidisciplinar. (cf.
Penha, 1990; Ciampa, 1985). Alguns autores, (Mezan, 1988), colocam o conceito de identidade como algo
construído no confronto com os outros, no ponto de intersubjetividades, para falar de algo que é próprio do
sujeito, do que ele é de diferente dos outros. Ele permite nos situarmos na tensão do processo de diferenciação
entre o “eu e os outros”. Ao falar de identidade, Andrade baseia-se nas teorias propostas por Tajfel e Sandoval.
iv
v
construção da identidade coletiva desse grupo de acampados, não pretendemos dizer que os
demais aspectos sociais não estariam desempenhando seus papéis grupais. Em outras
palavras, parece-nos que em um primeiro momento a posse da terra destaca-se
consideravelmente sobre os desejos de cada sujeito histórico. Num segundo momento
emergiriam os desejos até então relegados a um segundo plano.
Mas este predomínio do primeiro momento sobre segundo parece-nos não ser
absoluto. Em um certo momento os aspectos subjetivos devem vir à tona. Os estudos revistos
por nós e os nossos dados apontam para que essa alteração seja desencadeada no ato da posse
da terra. Desse modo, a posse da terra pode modificar a identidade coletiva do grupo. O
assentamento modifica as representações sociais sobre a terra e a identidade coletiva do
grupo. Nesse instante é que emergem os desejos de cada sujeito até então relegados ao
segundo plano, latentes em cada um, inconscientes e a procura de um momento para voltarem
à cena cotidiana. De um grupamento homogêneo, passaríamos a conviver com um
agrupamento heterogêneo, com conflitos de interesses e contradições oriundas das
diversidades históricas e culturais destes sujeitos. Parece-nos haver aí a metamorfose de uma
identidade social presente até o instante do assentamento legal.
No entanto essa consideração não está desenvolvida nesse trabalho por não ser objeto
de nosso estudo mais uma constatação decorrente dele que mereceria ser melhor averiguada.
Em nosso estudo queremos entender como se dá a formação da consciência política dos
acampados para, quem sabe, colaborar para que com a futura experiência do assentamento
não sejam tão abruptas as transformações que inviabilizam os sonhos coletivos. Ao
estudarmos a consciência política estamos buscando compreender as questões subjetivas dos
fenômenos políticos que levam os sujeito à participarem de ações coletivas.
Para realizarmos a presente pesquisa escolhemos como campo um acampamento de 10
meses na região do Pontal do Paranapanema, estado de São Paulo3. Esse acampamento era
conhecido como Carlos Mariguela e estava4 localizado no trevo do município de Euclides da
Cunha Paulista. Nele viviam cerca de 280 famílias provenientes da região nordeste do Estado
do Paraná e do Paraguai. As famílias que vieram do Paraguai eram de brasileiros que há muito
tempo haviam migrado para aquele país em busca de uma vida melhor. Em não conseguindo
alcançar essa vida melhor em terras paraguaias e ao ouvir falar do sucesso do MST no Brasil,
3
O Pontal do Paranapanema constitui-se de uma área de 1,2 milhão de hectares, localizados no extremo oeste do
estado, fronteira com o Paraná e o Mato Grosso do Sul. Os dados acerca do pontal e dos assentamentos nele
efetivados são oriundos do Instituto de Terras de São Paulo – ITESP .
v
vi
elas resolvem regressar ao Brasil para tentarem a sorte junto com as outras famílias do MST.
Segue o mapa da divisão Política da região do Pontal5:
Escolhemos o acampamento mais novo porque é nele que mais claramente poderemos
observar o processo de construção e metamorfose da consciência Política entre as famílias
acampadas e o reflexo disso na identidade coletiva do Movimento. Já a região foi fruta de sua
importância política no plano regional e nacional da luta pela terra. A região do Pontal do
Paranapanema se diferenciou rapidamente de outras regiões do Brasil onde o MST atua, seja
pela ausência do apoio eclesial, seja em função de ser uma região onde as terras ainda hoje
não estão totalmente descriminadas. Além disso, contribuiu para nossa escolha o fato de que
no Estado de São Paulo, 33 % das famílias acampadas estão localizadas nessa região.
Segundo os dados fornecidos pelo ITESP -Instituto de Terras de São Paulo - as famílias
acampadas no Estado de São Paulo estão distribuídas da seguinte forma:
Fonte: ITESP
4
O referido acampamento foi transferido, juntamente com outros, para o município paulista Teodoro Sampaio,
formando um novo acampamento. A esse respeito trataremos com mais detalhes no capítulo IV dessa
dissertação.
vi
vii
Como podemos verificar no gráfico acima, entre as dez regiões paulistas, a que
concentra o maior número de acampados é a região do Pontal seguido de Promissão com 18%
e Andradina com 11% e Araraquara e Ribeirão Preto também com 11%.
Ao que se refere à estrutura de nosso trabalho, nós o organizamos em cinco capítulos.
O primeiro capítulo tem por objetivo localizar o leitor quanto a origem e desenvolvimento dos
movimentos sociais agrários no Brasil. Contudo, nosso levantamento histórico e o próprio
objeto dessa pesquisa nos conduziu em dado momento a priorizar, entre os movimentos
sociais agrários que se organizaram no final da década de 70 e início da de 80 do século XX,
o MST. Ao fazê-lo, discutimos o caminho percorrido pelo movimento dos trabalhadores
rurais sem terra no Brasil, em São Paulo e, de modo especial, no Pontal do Paranapanema,
região onde nos debruçamos durante o processo de construção dessa pesquisa. Importa
fazermos notar ao nosso leitor que os dados trabalhados nesse capítulo são especialmente
relacionados ao acampados e acampamentos vinculados ao MST.
No capítulo dois vimos por bem realizarmos uma revisão dos estudos feitos na
psicologia social que tiveram como objeto o MST. Surpreendentemente descobrimos serem
eles quase inexistentes. Prova disso, é o fato de que os estudos por nós revisitados, apesar de
partirem do viés psicossocial, em sua maioria não foram desenvolvidos em programas de pós-
graduação em psicologia ou, mais especificamente, de psicologia social, mas em outros como
o programa de pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas -
UNICAMP. Entendemos que já esteja passando da hora de a psicologia social brasileira
debruçar-se sobre questões tão relevantes à compreensão da realidade nacional como é o caso
do MST e dos movimentos sociais de modo geral. Nesse capítulo, trabalhamos as com
pesquisas de Luís Carlos Tarelho (1988); Márcia Regina de Oliveira Andrade (1998); Maria
Antonieta Souza (1994), Sandra Maria de Freitas (1994) e Wilka Coronado Antunes Dias
(1999). Ao discutirmos cada uma delas procuramos demonstrar a relevância de cada uma
delas no cenário da psicologia social bem como a relevância da presente pesquisa visto que
cada uma delas respondem a outras questões que não aquelas por nós levantadas.
O referencial teórico por nós trabalhado nessa pesquisa é apresentado e discutido em
nosso terceiro capítulo. Mead (1932); Tajfel (1981); Melucci (1996) e Sandoval (2001) são os
pilares teóricos de nosso trabalho. De modo especial discutimos nesse capítulo o modelo de
5
Em algumas letras são encontrados mais de um município.
vii
viii
estudo da consciência política desenvolvido por Sandoval e com o qual as demais teorias
encontram-se articuladas.
Tratamos a questão metodológica no quarto capítulo. Baseando-nos nos pressupostos
da etno-metodologia apresentamos os sujeitos da pesquisa, o acampamento pesquisado, a
região onde ele encontra-se inserido. Nele descrevemos e analisamos nossas experiências
entre as famílias acampadas no Pontal do Paranapanema e, sobretudo, àquelas com as quais
convivemos mais intensamente no acampamento Carlos Mariguela localizado no município
paulista de Euclides da Cunha Paulista. Vale observarmos aqui que a escolha de nossos
sujeitos se deu via família uma vez que a unidade de mobilização do MST é a família. E ela é
utilizada tanto nos acampamentos como nos assentamentos.
No capítulo cinco analisaremos as entrevistas realizadas com 6 famílias6 a partir das
sete dimensões da consciência política presentes no modelo de Sandoval. Centramos nossa
análise na busca da compreensão das semelhanças e diferenças de posturas, de diferenças e
semelhanças presentes nas configurações da consciência política desses sujeitos. Ainda que
tivéssemos tido a intenção, não pudemos realizar a análise da dinâmica da família no
desenvolvimento da consciência política.
Em nossas considerações finais estaremos pontuando os principais resultados
alcançados nesse trabalho. De modo especial, estaremos ponderando acerca das configurações
da consciência política resultantes das dinâmicas estabelecidas entre as dimensões da
consciência bem como acerca da relação que existente entre esses sujeitos e o MST.
Por fim, queremos registrar o quanto ficamos impressionados com a força e a
capacidade de resistir daquele povo. Como pesquisador, procuramos observar os
acontecimentos, ler aquelas histórias que cada depoente partilhou conosco de forma a
compreender os processos psicossociais implicados na formação da consciência política.
Entretanto, não poucas vezes durante a escrita desse trabalho nos pegamos como que nos
apossando dos sujeitos, das histórias, da cultura etc., como se fossem nossos ou como se
fossemos um desses lutadores, um membro de cada uma dessas famílias. Garantir a distância
necessária - o que não significa de maneira alguma o mesmo que neutralidade - para
analisarmos sobriamente os dados da pesquisa, constituiu-se um desafio permanente durante
todo processo de gestação dessa dissertação.
Durante o tempo em que estivemos entre o povo acampado do Pontal, pudemos
aprender muito. Lá, entre o nosso povo sofrido, debaixo do barraco de lona, sob o sol
6
Foram entrevistados 11 sujeitos.
viii
ix
causticante do verão do ano 2001, recebemos algumas das mais belas lições; lá tivemos
professores que nos deram lições de vida. Gostaríamos de poder transcrever as emoções que
vivemos naquela região, naqueles dias, de forma a propiciar aos leitores vivê-las também.
Porém, bem sabemos que não somos capazes de fazê-lo e achamos que o papel não seria
capaz de comportá-las devido a sua intensidade.
Assim, antes de iniciarmos as páginas que seguem, trazemos uma das mais belas
canções que falam desse povo humilde; trazemos a canção ''Levantados do chão?" da autoria
de Chico Buarque de Holanda e de Milton Nascimento, dois expoentes da música popular
brasileira. Nela, através das interrogações reiteradas que dão voz àqueles que vivem privados
dela, observamos a profunda indignação e recusa desses viventes em aceitar a exclusão como
um dado de fato. Como registrara Adélia Bezerra de Meneses em texto publicado no jornal
Folha de São Paulo, essa canção "(...) coloca, em sua radicalidade, a questão do
desarraigamento, do desenraizamento, do ''desassentamento'' e do seu absurdo". É ao abusar
da ironia7 que Chico e Milton denunciam os absurdos da condição humana a que esses heróis
estão relegados. Repetimos: heróis, pois não nos vemos capazes de encontrar outro adjetivo
para essas pessoas que resistem anos a fio debaixo de lonas que chegam a registrar
temperaturas em torno de 50º C, que sobrevivem partilhando "o pão nosso de cada dia". Em
meio as negativas é que os sem terra são definidos, nomeados mediante a terra de que
carecem e pela qual lutam.
Nessa canção, a terra sonhada por homens e mulheres; crianças, jovens ou velhos, se
faz presente mediante a sua ausência. Lembrando os elementais aos quais os filósofos
atribuíam o princípio ordenador do cosmo, vemos o elemento terra tomar o lugar na vida
dessa gente. E ela o faz cada vez que a água que brota de suas mãos e forma a lama com o pó
da estrada ou a cada vez que o boi alado foge de seus sonhos e paira no ar distante. Já o fogo é
o elemento que se faz presente da maneira mais dolorosa e odiosa em suas vidas. Ele surge
sorrateiro e fatal. Ele brota das armas de jagunços e policiais que ceifam as vidas daqueles
que só queriam ceifar o trigo. Na vida dos sem terra, diferentemente da filosofia pré-socrática,
o fogo é o principio da morte e não da vida. É na crueldade dos conflitos de terra dos quais o
massacre de Eldorado de Carajás tornou-se um ícone, que encontramos a gelidez ontológica
do fogo presente na vida desses heróis forjados a ferro e fogo, em suor e lágrimas.
7
Ironia: palavra que provém do grego eironein que significa ação de interrogar, fingindo ignorância, ou que diz
menos do que aquilo que se pensa. Forma privilegiada do exercício da crítica social, no avesso da duplicação das
ideologias dominantes, a ironia é arma de combate. A ironia também foi um dos componentes do método
socrático.
ix
x
Dessa realidade extraímos nossos aprendizados, nossa dissertação. Dessa dura e triste
realidade Chico e Milton extraíram essa sublime canção.
Levantados do chão
Milton Nascimento - Chico Buarque/1997
Para o livro Terra de Sebastião Salgado
x
xi
xi
1
CAPÍTULO I
A conjuntura política pela qual passava o país quando do surgimento das ligas e
sindicatos foi crucial para a construção do estilo e da estrutura do sindicalismo rural1 adotado
no Brasil. A pressão exercida tanto pelo poder público (o ministério do trabalho impunha
restrições às possibilidades de organização sindical) quanto pelos latifundiários (eles
reprimiam aos trabalhadores rurais e as suas tentativas de organizar-se) resultou em
dificuldades internas e externas pois governo e latifundiários constituíam uma barreira a ser
transposta para que a justiça social viesse a ser algo viável.
A estratégia adotada para a superação dessa barreira foi a criação das ligas
camponesas que agruparam arrendatários, posseiros, parceiros e pequenos produtores rurais.
As ligas começaram a crescer rapidamente. Paralelamente a elas cresciam também os
sindicatos rurais compostos em sua maioria por trabalhadores rurais assalariados. Ao mesmo
tempo, a Igreja Católica começa a fundar sindicatos cristãos por temer a ação das ligas e de
comunistas junto as organizações rurais.
Durante o período que precedeu ao Golpe Militar, entre 1961 e 1964, houve a
intensificação da ação dos movimentos rurais mas também a intensificação das disputas entre
as diversas correntes que compunham o movimento das ligas camponesas, fator que ajudou a
enfraquecê-lo. Com o golpe militar em 64 (que resultou nas duas décadas de ditadura militar),
houve o quase aniquilamento do movimento agrário. No entanto, conseguiu-se garantir a
1
No Brasil a estrutura sindical comporta sindicatos de trabalhadores e sindicatos de patrões. Quando
observamos a cunjugação dessa estrutura, observa-se certas curiosidades como, por exemplo, o uso do sindicato
patronal pelo trabalhador rural paa ter acesso à tratamento médico e odontológico qualificado, enquanto
procuram o sindicato dos trabalhadores rurais para busca auxilio do tipo jurídico para enfrentar o mesmo patrão
que, através do sindicato rural, lhe propicia acesso ao tratamento médico odontológico. Não queremos nos ater a
essas questões porque não é o objeto dessa pesquisa. Para um estudo mais aprofundado das questões referentes
aos sindicatos rurais ver...
3
Brasil e, ao mesmo tempo, combater as Ligas Camponesas que nesse momento assumiam
uma posição mais radical - a revolução camponesa.
Para garantir o sucesso dessa estratégia, Goulart buscava o apoio da burguesia - que
não poucas vezes era a mesma proprietária das terras - quando defendia o aumento do seu
lucro através da ampliação do mercado interno. Contudo a burguesia aliou-se não a Frente
mas aos latifundiários e ao exercito opondo-se aos planos da Frente Única. Tarelho aponta
que haviam três caminhos possíveis para a resolução da questão agrária brasileira nesse
momento: o projeto de mudança radical defendido pelas Ligas Camponesas poderia ter sido
um caso a esquerda o tivesse apoiado; a nacionalização da economia e a reforma agrária
progressiva defendida pela Frente Única poderia ter sido outro caso a burguesia tivesse se
incorporado á Frente. "Mas ambas as formas foram liquidadas de uma só vez pelo golpe e o
caminho seguido foi o da internacionalização da economia, da concentração da terra, da
militarização da questão agrária e da modernização abrupta do campo." (Tarelho, 1988:18)
As tentativas de Goulart para conseguir o apoio da Igreja também não foram bem
sucedidas. Alguns setores da Igreja apoiaram o golpe militar acreditando que as questões
fundiárias brasileiras seriam atacadas através do Estatuto da Terra; que a implementação
desse traria benefícios sócio econômicos reais aos trabalhadores rurais. No entanto suas
expectativas foram logo frustradas e ela passa a compactuar com os trabalhadores.
Exemplo dessa virada de posição da Igreja Católica pode ser vista em uma das figuras
mais carismáticas da Igreja Católica brasileira e que na ocasião do golpe estava alinhado as
forças mais conservadoras da sociedade de então: dom Paulo Evaristo Arns. Recentemente o
próprio prelado católico escreveu sobre essa questão em sua autobiografia2. O cardeal Arns
conta, entre outras coisas, como essa virada se deu. Durante o lançamento de seu livro, em
entrevista à Folha de São Paulo do dia 14/09/2001, ele afirmou que
“No começo, eu também, estava a favor. Mas logo começaram as injustiças. Vimos que
era uma grande farsa e nos separamos.(...) Quando alguém era preso eu sabia que ele ia
ser torturado. Nascia alguma coisa dentro de mim que me dizia: você é obrigado a ir e
você tem de falar a verdade. Então no caminho sempre pensava: não sou eu que estou
em jogo, mas a vida de outras pessoas que não tinham defesa, enquanto eu tinha
defesa.” (Cardeal Arns em entrevista a Folha de São Paulo: 14/09/01 p. A6)
2
ARNS, Paulo Evaristo. (2001) Da Esperança à Utopia – O testemunho de uma vida” São Paulo: Sextante.
5
Dom Paulo ingressa na luta contra o regime militar em 1969 quando começa
acompanhar o caso de seminaristas dominicanos que haviam sido presos por ajudarem a
universitários que eram oposição a ditadura. Em 1971, na qualidade de presidente da regional
sul – 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – e de arcebispo da maior
diocese católica do mundo – São Paulo -, d. Paulo Evaristo Arns encontra-se com o presidente
Emílio Garrastazu Médice para denunciar as práticas de tortura feitas pelo regime. No ano
seguinte, ele capitaneou os trabalhos da Igreja Católica que resultaram em um importante
documento sobre direitos humanos, o qual teve grande repercussão, intitulado Testemunho de
Paz.
Para d. Paulo os anos da ditadura quase lhe tiraram a esperança, tamanhos eram os
horrores. Segundo o cardeal,
“Houve momentos em que pensava: estamos num túnel e não vemos nenhuma luz,
nenhuma possibilidade de saída. No tempo de Médici, 1970, 1972, eu pensava que era
um tempo de condenação do Brasil a uma escravidão nova, um tempo em que não havia
comunicação permitida e não havia meios de defender a justiça. Mas também vi como
acordavam os espíritos.” (Cardeal Arns em entrevista a Folha de São Paulo: 14/09/01 p.
A6)
Certamente a ação do Cardeal de São Paulo foi fundamental para a reorganização das
forças sociais contrárias à ditadura.
Assim, tornava-se cada vez mais patente o fato de que os modelos de desenvolvimento
e de propriedade defendidos pela Igreja não eram os mesmos defendido pelo Estado militar. A
Igreja buscava atacar o problema através de critérios distributivos enquanto o Estado tratava o
problema através da ótica da acumulação de capital. Assim se dá a aproximação da Igreja aos
sindicatos e partidos oposicionistas: ambos observam, enfocam, os problemas nacionais a
partir da idéia de pobre, da idéia de pobreza e não da idéia da acumulação e especulação do
capital. (cf. Martins, 1986:68)
Em 1980, durante a 18º Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) foi ratificado o compromisso formal da hierarquia católica e de todos os seus
fiéis de apoiar o trabalhador rural em sua luta pela conquista de uma reforma agrária
autêntica, condenado o uso da terra como exploração. Para a CNBB a terra deveria ter uma
clara função social. A Igreja que já vinha tomando essa postura através da ação de certos
bispos, padres e leigos engajados na questão, amplia de forma decisiva sua participação na
luta por justiça social no campo.
6
Com a implementação dessa política agrária o regime militar agravou ainda mais a
triste história nacional da distribuição da terra: a concentração de terras nas mãos de poucos
que remonta à instituição das capitanias hereditárias pela coroa portuguesa agravou-se ainda
mais durante a ditadura militar. Ajunte-se a isso que a repressão das lutas por terra foi brutal.
9
3
Região industrial no estado de São Paulo composta pelas cidades de Santo André, São Bernardo, São Caetano
e Diadema.
10
2 - O MST NO BRASIL
Não podemos entender a questão agrária no país e nem a própria atividade do MST
sem que observemos duas importantes dimensões dos conflitos no campo. A primeira
dimensão é a agrícola. Nela localizam-se os conflitos originados pela disputa do crédito
agrícola, pela comercialização da produção agrícola, pela garantia de infra-estrutura
(saneamento, educação, saúde etc.) no campo. A segunda dimensão dos conflitos no campo
4
Programa federal de subsídio para desenvolvimento e ampliação do uso do álcool-combustível brasileiro pela
indústria automobilística nacional. Como o álcool deriva da cana-de-açúcar, esse programa alterou em muito as
11
diz respeito a luta pela terra propriamente dita. A essa dimensão estão ligadas questões como
a luta contra a concentração de terras nas mãos de poucos e que nem sempre fazem a terra
produtiva, a luta contra a espoliação e expropriação da terra sofrida pelos pequenos
agricultores.
Essa divisão é apenas didática, pois que essas dimensões só podem ser compreendidas
quando articuladas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra atua em ambas as
dimensões do conflito agrário. De nada adianta conquistar a terra se não houver os meios para
torná-la produtiva. A conquista da terra se encontra ancorada no sucesso da produção.
Algo de que não podemos nos esquecer é o fato de que ao utilização da terra
agricultável no Brasil é expressivamente pequeno. Petras e Weltmeyer afirmam no livro
Brasil de Cardoso: A desapropriação do país que “(...) calcula-se que menos de 20% da
terra cultivável é plantada, deixando 80% para funções não produtivas” (Petras e
Weltmeyer, 2001:124). Esses autores defendem a posição de que as razões que levam ao uso
inadequado e ineficiente da terra no Brasil centra-se sobretudo “(...) no padrão de posse da
terra” (p. 124) Segundo eles os números que corroboram revelam que “(...) 9% dos
proprietários de terra possuem cerca de 78% da terra enquanto, no outro extremo, 53% da
população rural tem pouca ou nenhuma terra (menos de 3%)” (p. 124).
Como veremos nas páginas que seguem, o modelo agroexportador adotado durante os
governos militares e civis nos últimos 37 anos é um dos grandes vilões do empobrecimento do
campo e do elevado números de agricultores vivendo nos cinturões das regiões urbanas.
Petras e Weltmeyer afirmam que esta política agrária resulta em “(...) enclaves de
crescimento dinâmico de exportações e um mar de pequenos e médios fazendeiros decadentes
e trabalhadores rurais sem terra desenraizados num mercado externo estagnado” (Petras e
Weltmeyer, 2001:126).
Assim, podemos dizer que essa sucessão de governos militares e civis, que culmina
em nossos dias no Governo de Fernando Henrique Cardoso, empobreceu a zona rural5
brasileira e “(...) descapitalizou a economia agrícola, particularmente o setor ligado aos
pequenos produtores que produziam para o mercado local” (Petras e Weltmeyer,
2001:122).
relações sociais nas regiões produtoras de álcool, pois fortaleceu os donos de grandes capitais e fragilizou, e
porque não dizer, inviabilizou a economia familiar existente nessas áreas.
5
Segundo Petras e Weltmeyer (2001) “Nos primeiros dois anos do governo de Fernando Henrique, entre 1995 e
1997, a população economicamente ativa do setor agrícola diminuiu em 500.000 proprietários rurais e
trabalhadores agrícolas além dos 1,1 milhão de trabalhadores rurais que fugiram do campo entre 1990 e 1994.
Estimativas recentes afirmam que entre os pequenos agricultores, 400.000 famílias foram obrigadas a
abandonara zona rural durante os primeiros cinco anos do governo Cardoso”. (p. 122-23)
12
6
Segundo Fernandes “durante o regime militar foram assassinados 1.106 trabalhadores rurais, numa luta
sangrenta contra a expropriação, a grilagem de terras, contra os despejos violentos, o trabalho escravo, a
queimada das casas e das lavouras, a super-exploração dos trabalhadores assalariados e sem direitos, etc.
Estes são fatos reais dessa política de desenvolvimento que quis levar o progresso ao campo (numa concepção
13
UF 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 2000 TOTAL
AC 02 01 01 01 01 02 06 07 02 01 03 28
AL 02 03 01 08 07 06 01 02 01 02 01 34
AM 01 03 01 01 01 01 04 12
AP 05 01 06
BA 06 11 09 21 18 11 18 26 18 09 11 08 01 01 02 04 03 02 03 1 183
CE 01 02 01 02 04 05 10 06 02 01 01 1 36
ES 01 02 02 02 04 01 01 01 14
GO 05 07 03 07 10 10 11 15 02 02 01 01 01 02 77
MA 09 02 12 09 18 24 09 22 07 07 09 06 07 05 04 03 03 01 04 1 162
MG 02 01 00 02 11 27 21 07 05 02 03 02 04 05 02 94
MS 00 01 00 05 01 03 05 02 02 01 01 2 23
MT 02 04 02 05 06 09 20 18 04 11 10 01 01 04 04 04 03 02 01 1 112
PA 16 14 19 18 28 57 31 45 23 12 20 16 13 14 04 14 33 09 10 8 2 406
PB 00 02 00 02 03 00 01 03 04 02 01 01 04 00 00 01 01 01 25
PE 01 05 03 04 08 06 07 12 03 01 02 01 04 06 01 04 03 2 2 75
PI 01 03 00 01 01 01 02 01 10
PR 01 01 01 01 01 02 01 05 07 02 04 03 04 01 03 06 2 2 47
RJ 04 07 02 01 01 01 04 01 06 00 01 03 01 5 2 39
RN 01 01 01 05 01 02 01 13
RO 01 02 01 02 03 07 19 01 02 02 01 01 01 1 44
RS 01 01 01 01 02 07 01 01 15
SC 01 03 01 01 01 01 01 03 01 01 14
SE 01 01 01 02 05
SP 06 01 02 02 06 02 01 2 02 1 24
TO 01 01 05 02 02 19
Brasil 53 69 57 81 124 171 150 216 89 70 78 51 50 45 29 34 49 26 38 26 14 1520
Fonte: CPT e MST - Dados atualizados até 29/11/2000 – http://www.mst.org.br/biblioteca/assassinato/ass89-99.html
burguesa do termo), que, ao fortalecer uma única forma de relação social, pela violência da cassação dos
direitos, promoveu a miséria resultante da expropriação e exploração.” (Fernandes, 1996:54)
7
Para a melhor compreensão do papel da UDR na estrutura fundiária brasileira, sugerimos a leitura do livro A
Questão Agrária Hoje, organizado por João Pedro Stédile (1994).
14
O apoio popular registrado por Petras e Weltemeyer ajudou na expansão das ações
coletivas organizadas pelo MST. Nesse sentido as informações obtidas junto ao Banco de
Dados da Luta pela terra - DATA LUTA - mostram que o número de ocupações organizadas e
famílias engajadas no MST vem crescendo. Esse crescimento pode ser observado nos dois
gráficos que seguem. No primeiro, temos o cômputo das famílias que participaram de
ocupações de 1990 até 1995. O segundo no dá uma visão mais detalhada da situação das
famílias do MST no quadro geral do país entre os anos de 1996 a 1999. Vejamos:
Período Nº famílias
1990 11.484
1991 9.862
1992 18.885
1993 17.587
1994 16.860
1995 31.531
Fonte: MST - Atualizado: maio/99
Observe-se que os anos de 1995 e 1996 são os anos em que se há o maior número de
famílias ligadas ao MST, respectivamente 31.531 e 45.218 famílias. Esses anos são os anos da
eclosão do movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra no Pontal do Paranapanema,
Estado de São Paulo. 1995 e 1996 são anos importantes porque marcados por uma mudança
na política de ocupação de terras do MST que passa a ser massiva. Já entre os anos de 1996 a
1999 observamos que 57% das famílias mobilizadas estavam vinculadas ao MST.
Entendemos que esses dados demonstram a força do movimento e a grau de aceitação de suas
proposições e estratégias por parte daqueles que estão vivendo à margem da economia
agrária, excluídos de uma vida digna no campo. Note-se também que em 1999 das famílias
mobilizadas pelos diversos movimentos sociais agrários 83% estão vinculadas ao MST.
Assim, no final da era FHC, o MST consolida-se como uma frente respeitável de oposição à
política neoliberal promovida nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Quando analisamos o panorama nacional das ocupações promovidas pelo MST em
1999 os Estados com o maior número de ocupações são os Estados de Pernambuco com 40
ocupações , do Paraná com 35 ocupações, de Alagoas com 17 ocupações e da Paraíba com 11
ocupações. Já os recordistas em número de famílias mobilizadas são os Estados de
Pernambuco com 5. 023 famílias, de Alagoas com 3.254 famílias, do Mato Grosso do Sul
com 3.205 famílias (O Estado do Mato Grosso do Sul distribuiu as suas 3.205 famílias em
apenas 5 ocupações) e do Paraná com 2.472 famílias. Importa notar que não foram
encontrados dados referentes aos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Distrito Federal,
Roraima e Rio Grande do Sul para o ano de 1999. Vejamos os números da tabela oferecida
pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST:
16
Mas são os dados referentes aos acampamentos que dizem da capacidade mobilizadora
do MST. O número de famílias acampadas entre 1990 e 2001 aumenta a cada ano e retrata a
enorme dimensão da força mobilizadora do MST. O movimento em doze anos reuniu em
acampamentos 517.121 famílias, isto é, reuniu mais que o número das famílias que foram
forçadas a abandonar o campo durante a era FHC. Só durante os três primeiros anos do
segundo mandato do presidente Cardoso, foram mais de 220.377 famílias distribuídas em
mais de 1.329 acampamentos no Brasil, visto que os dados de 1999 e 2001 são parciais. No
primeiro mandato de FFHH foram 189.431 famílias distribuídas em 1.020 acampamentos
existentes no Brasil.
Durante o governo Collor (1990-92) o MST mobilizou em todo o país 22.008 famílias
distribuídas em 197 acampamentos e no governo Itamar Franco (1992-93) 60.705 famílias
espalhadas em 363 acampamentos. Enquanto que no período referente aos governos
Collor/Itamar o MST organizou 560 acampamentos o que perfazia um total de 82.713
famílias mobilizadas, na era FFHH (1994-2001) já foram 409.768 as famílias que se
organizaram em 2349 acampamentos pelo Brasil a fora. Em porcentagem, o crescimento das
17
ações patrocinadas pelo MST entre 1990 e 2001, do governos Collor/Itamar para o governo
FHC, foi de 419 % para o número de acampamento e de 495 % para o número de famílias
acampadas. Vejamos a tabela que contém esses dados:
Podemos observar melhor o retrato do movimento dos sem terra no Brasil através dos
números de cada uma das unidades da federação. Nesse quadro, os Estados com maior
número de mobilizações são em 2000 os Estados de Pernambuco com 203 acampamentos e
28.024 famílias acampadas, Bahia com 59 acampamentos e 6.886 famílias acampadas,
Alagoas com 52 acampamentos e 8.687 famílias acampadas, Paraná com 42 acampamentos e
5.578 famílias acampadas e Sergipe com 42 acampamentos e 3.790 famílias acampadas. O
Estado de São Paulo vem logo atrás com 14 acampamentos e 3.225 famílias acampadas. Já
2001, durante os seus oito primeiros meses, os números mostram os estados de Pernambuco
com 202 acampamentos e 27.050 famílias acampadas, da Bahia com 71 acampamentos e
7.100 famílias acampadas, Paraná com 51 acampamentos e 5.134 famílias acampadas,
Alagoas com 48 acampamentos e 9.049 famílias acampadas, Sergipe com 48 acampamentos e
4..660 famílias acampadas. Novamente São Paulo aparece com 23 acampamentos e 2.461
famílias acampadas. Em ambos os anos o estado de São Paulo aparece na Sexta colocação no
rankimg dos estados com maior número de acampamentos. Somente no primeiro semestre de
2001 o Estado já havia apresentado um crescimento de 61% no que se refere ao número de
acampamentos. Ele passara de 14 (2000) para 23 (2001/1) dos quais até o mês de abril 10
estavam localizados na região do Pontal do Paranapanema. Para melhor observarmos esse
quadro, trazemos os dados referentes aos anos de 2000 e 2001:
18
2.2 - Igreja e Sindicalismo como Atores na Retomada dos Movimentos Sociais Rurais
Outro fator que se mostrou importante na retomada das ações coletivas no meio rural
foi o apoio da chamada Igreja Progressista através das Comunidades Eclesiais de Base –
19
8
As CEB's surgiram no começo da década de 60 na Arquidiocese de Natal – RN – e na diocese Volta Redonda
–- RJ. Elas constituíram-se no período ditatorial em verdadeiros espaços de reflexão e conscientização política.
Nelas se erigiu estratégias de ação tanto para os trabalhadores rurais quanto para os urbanos. Podemos dizer que
é nas CEB's que se constituirá o espaço social e político de enfrentamento das políticas agrária e
desenvolvimentista do governo militar. Das Comunidades Eclesiais de Base sairão inúmeras das lideranças que
comporão mais tarde o MST; o que faz das CEB’s verdadeiras escolas de política agindo na ilegalidade nesse
período. Essa atividade das lideranças católicas renderam-lhes investidas ferozes por parte do Estado autoritário.
9
A CPT foi criada pela CNBB em 1975. Ela trabalhava juntamente com as paróquias da periferia urbana e da
zona rural com o intuito inicial de refletir a realidade do campo brasileiro. Ela contribuiu para a organização e na
luta dos trabalhadores rurais sem-terra. É importante registrar que os primeiros encontros de trabalhadores rurais
sem-terra como os de Medianeira - PR (jul/1982) e Goiânia (set/ 1982) foram patrocinados pela CPT. Também o
I Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra realizado em janeiro de 1984 teve a importante contribuição da
Comissão Pastoral da Terra.
20
lideranças do MST bem como na maneira de o movimento construir suas linhas de ação. Em
certos casos, porém se dá também a vinculação do MST a certos sindicatos ditos combativos.
Mas, segundo Freitas, “(...) o surgimento do MST é apontado como o reflexo da oposição e
antagonismo ao movimento sindical e ao papel ambíguo da CONTAG10”. (Freitas, 1994:11)
Vários são os movimentos sociais que vão sendo concebidos nos anos setenta e que
tomam corpo no final dessa década. Nesse contexto os anos de 1978 e 1979 tem uma
importância particular porque trazem novidades aos cenário político de então. Em 1978 a
novidade
Sader aponta para o desenvolvimento de uma nova consciência política por parte
daqueles que se comprometeram com o movimento popular no fim dos anos 70. Isso
possibilitou que o MST se constituísse num desses movimentos emergentes no cenário
nacional da década de 70; que ele também fosse um daqueles que no ano de 78 reivindicavam
o direito de reivindicar. E foi a partir das ações de resistência e das ocupações de terra
iniciadas no sul do país decorrentes da política de modernização do campo, da exclusão
gerada por esta e, sobretudo, graças ao desenvolvimento de uma consciência política cada vez
mais complexa que o MST foi gestado. Nas palavras de Souza
“O Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra surge em fins da década de 70,
tendo sua organização sido concretizada na região sul do país, onde o fator
modernidade agrícola estava expropriando muitos trabalhadores rurais. É a partir de
meados da década de 80 e início de 90 que o MST começa se espacializar em nível de
Brasil, organizando ocupações de terra em 19 estados. (...) A origem do MST está ligada
ao modelo de modernização da agricultura e concentração fundiária, principalmente.
Atrelado a isso, vem a resistência dos trabalhadores rurais que são excluídos do
processo produtivo, por conta dessas transformações no campo”. (Souza, 1994:81)
10
CONTAG: Confederação dos Trabalhadores na Agricultura.
21
11
O apoio da Igreja Católica se deu através do clero e dos leigos engajados nas CEB's e demais pastorais da
diocese de Passo Fundo -RS - do qual os municípios supracitados fazem parte.
22
da luta pela terra, por uma reforma agrária real, pela democracia e pelo resgate da cidadania
entre os agricultores. O MST traz em sua base trabalhadores rurais, filhos de colonos,
parceiros e arrendatários, agregados e assalariados temporários, os que foram expulsos de
suas terras para a construção de barragens etc. É na dolorosa expressão das privações comuns
por eles vividas e que os identifica e une, que encontramos o significado político. Expressam
suas dores a uma sociedade que fecha os olhos a sua existência; expressam e exigem uma
resposta de um Estado as suas necessidades, ao seu desejo de integração a sociedade que finge
que não os vê, a sua luta por um pedaço de terra e por um lugar ao sol. Como escreveu
Gryzbowski a esse respeito,
“O sentido político da luta dos sem terra não decorre das relações mais imediatas que
eles mantém, mas está no fato de porem a nú a sua comum situação de excluídos, devido
a estrutura agrária vigente, e de exigirem do Estado medidas que lhes garantam o acesso
a propriedade da terra e a sua integração econômica e social como pequenos
proprietários” (Gryzbowski, 1987)
O movimento dos chamados "sem terra" traz consigo novas formas de luta, como as
ocupações de terra e a reunião e organização de famílias de trabalhadores rurais em
acampamentos, em propriedades rurais, à beira de estradas ou em praças públicas e na
ocupação de edifícios públicos. Essas novas formas de luta funcionam como instrumentos de
pressão e enfrentamento dos problemas concernentes ao campo, para conquistar a terra de que
são e estão privados. Tais reivindicações também estão expressas nas inúmeras bandeiras
forjadas nesse processo de luta.
Mais recentemente o MST tem usado como bandeira as palavras “Ocupar, Resistir e
Produzir” ao invés das tradicionais palavras “Terra não se ganha, terra se conquista” que
marcaram o início do movimento. Segundo João Pedro Stedile, líder nacional do MST, “(...)
as ocupações devem servir para corrigir a injustiça presente e para mudar a legislação
vigente (...) ocupar é um direito de legítima defesa de quem já foi ultrajado e expropriado de
seus direitos fundamentais. Pois a terra e os bens da terra destinam-se a todos os homens, e
não a apenas a alguns privilegiados”. (Gorgen e Stedile, 1991:47)
A exploração do capital se dá socialmente e é nessa relação social que se constrói as
relações de exploração, expropriação e de exclusão/inclusão social. Face a essa injusta
realidade é que os trabalhadores rurais têm-se organizado e buscado formas de resistência via
o engendramento de ações coletivas frente ao Estado, aos latifundiários e empresas rurais que
formam a face do capitalismo no campo. Essa luta é a própria história do homem do campo. E
ela não é apenas uma luta por um quinhão de terra. É a luta contra o privilégio que um único
23
12
A esse respeito consultar as obras de Fernandes, M. E. - A Reforma Agrária no Discurso dos Lavradores
da Fazenda "Primavera". Tese de doutorado em Comunicação na USP (1985:27-62).
27
começaram a sofrer os mais diversos tipos de violência a saber: tiveram suas plantações
invadidas e destruídas pelo gado, suas casas queimadas, suas vidas controladas e ameaçadas
por jagunços contratados pelo grileiro. Dessa últimas tática resultou a morte de um
trabalhador.
Cansados dessa situação de quase escravidão os posseiros da Primavera ajuntaram na
justiça um processo contra a manutenção das mais de 5.000 cabeças de gado que destruía suas
lavouras. Com o apoio da Igreja de Andradina através da Comissão de Justiça e Paz e da
posterior criação da Comissão Pastoral da Terra a nível local, e da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (FETAESP), os posseiros da Primavera
começaram a se organizar até que progressivamente todos estavam na luta pela terra. A vitória
desses trabalhadores rurais se deu a 8 de julho de 1980, quando o então Presidente João
Baptista Figueiredo assinou o decreto de desapropriação declarando os 9.385 hectares da
fazenda desapropriados para fins de reforma agrária. Em 1981 foram emitidos os primeiros
títulos de propriedade e entregues às 264 famílias de posseiros da Primavera.
Requerendo os 1.200 hectares de terra que sobraram depois de feito o loteamento da
Primavera porque não foram usados no assentamento das famílias de posseiros, aparece um
grupo de 13 famílias de trabalhadores bóia-frias que se denominavam Trabalhadores Sem-
Terra. Apoiados pela CPT eles acabaram sendo integrados ao assentamento em 1982. Assim,
as lutas dos posseiros da Primavera e dos trabalhadores bóia-frias abrem caminho para que
comece a se formar em Andradina e região o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra do
Oeste do Estado de São Paulo. A ampliação desse movimento proporcionou a geração de
espaços de formação política para os trabalhadores rurais. Um bom exemplo da relevância e
da abrangência de tais espaços de socialização política proporcionados pelo Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra do Oeste do Estado de São Paulo em parceria com a CPT foi o
encontro realizado em 1980 no salão paroquial de Andradina e que reuniu mais de 1200
trabalhadores rurais de 34 municípios.
Com o campo passando por mudanças coordenadas pelo regime militar e guiado pela
lógica capitalista, observaram-se momentos e movimentos de resistência no campo paulista.
Estão registrados, no período que vai de 1964 até 1981, 128 conflitos pela terra no Estado de
São Paulo. (cf. Fernandes, 1996:87)
As lutas dos trabalhadores rurais paulistas estão concentradas nas lutas empreendidas
pelos posseiros contra a grilagem13, a luta por reassentamento feita pelos atingidos por
13
É interessante registrarmos aqui o exemplo que Monbeig nos dá sobre como se processa o ato da grilagem:
"Os falsários deram provas de imaginação e habilidades diabólicas:: buscaram folhas de papel timbrado com
28
as armas imperiais, imitaram escritas fora de uso, descolaram velhos selos, amarelaram propositadamente os
seus documentos, arrancaram páginas dos registros dos tabeliães. Implantavam-se à pressa cafeeiros de vinte
ou trinta anos nas clareiras das florestas. Transportaram-se partes destacadas de casa velhas, que eram
guarnecidas com móveis antigos, para criar um ambiente adequado e simular uma antiga ocupação do solo.
Era preciso também presumir-se contra os adversários, por vezes dois ou três indivíduos moviam demandas em
relação ao mesmo território, com algumas variações na delimitação. Nesse caso, era cair nas boas graças do
juiz de direito e dos agrimensores. E, por fim, era o assassinato uma solução levada em conta" (Monbeig,
1984:144-45).
29
14
A respeito dessas lutas consultar as obras de Andrade (1998), Fernandes (1985), Fernandes (1996), Leite
(1981), Souza (1994), Tarelho (1988), Thomaz Jr. (1988) etc. Não nos aprofundaremos na análise das lutas
que compuseram o MST no Estado de São Paulo por não ser objeto dessa dissertação.
15
José de Souza Martins analisou essa questão em um texto intitulado Frente Pioneira: Contribuição para uma
caracterização sociológica. In. Cadernos do CERU, nº 5, 1972.
16
Segundo Borges (1996), o engenheiro Theodoro Fernandes Sampaio, coordenador da Comissão Geográfica e
Geológica da Província de São Paulo que realizou em 1886 uma incursão de reconhecimento geológico no Vale
do Paranapanema, “(...) referindo-se ao indígena assinalou que não o via diretamente mas a sua presença era
sentida pelas canoas encontradas às margens dos rios, amarradas a varas fincadas. Outra evidência da
presença do indígena estava nas veredas estreitas que o levava para dentro da mata e, também nos movimentos
à distância d um remador ao se esconder ou ao fugir apressadamente. O confronto entre as populações
indígenas do Vale do Paranapanema e os homens brancos foram uma constante no histórico da ocupação da
grande região do Paranapanema”. (pp. 55-6) Segundo Leite (1981), a populações indígenas ficaram
comprimidas entre as frentes pioneiras vindas do leste e oeste do Paraná. Ao verem suas terras invadidas e ao
serem atacados pelos pioneiros que lhes comprimiam, eles reagiram. Leite escreve que não havia outra opção a
não ser “(...) atacar, vez por outra, ao pôr-do-sol, ou ao amanhecer, as palhoças instaladas fortuitamente no
seio da floresta. Matavam os homens, as mulheres, as crianças, as mulas, os bois e outra criação que houvesse.
Depois roubavam ferramentas, destruíam plantações e, finalmente, ateavam fogo às casas”. (p. 44) Todavia,
para COBRA, A. N. (1923) Em um recanto do sertão paulista,, a reação do colonizador branco ao ataque das
populações indígenas era extremamente violenta e brutal. Cobra relata que os brancos “(...) encontrando-se com
as índias, a umas aprisionam, a outras matam, bem como aos indiozinhos, aos quaes conta-se que chegavam a
levantar do chão ou da cama, atirá-los para o ar e espetá-los em pontas de faca; outras vezes, tomá-los pelos
pés e dar com as cabecinhas nos paus, partindo-as. As índias grávidas, rasgavam-lhes o ventre e depois de
finda a carnificina , amontoavam os cadáveres sobre os quaes lançavam fogo bem como aos ranchos”(p. 91) .O
autor ainda destaca que “(...) a lucta é desegual. O branco usa armas de fogo inimigo não possue. O combate
não dura mais de meia hora; as balas dizimam os que vêm de arco e flecha para a lucta. Cada índio que cahe é
socorrido por outro que o toma para o retirar, vivo ou morto, da refrega e assim são dois que deixam a linha de
combate”. (p.141)
30
“Nas apropriações indevidas, os grileiros para legitimarem as suas posses tiveram que
derrubar a mata e cultivar as terras, tornando-as produtivas, e o fizeram trazendo
pessoas, no primeiro momento da ocupação, tais como: familiares, amigos e
interessados. Num segundo momento, já com muitos casos de grilagem, trouxeram
migrantes, geralmente do nordeste brasileiro, contratados como arrendatários”.
(Antonio, 1990:12)
Desse modo, parece-me que falar de terras na região do Pontal do Paranapanema e não
falar de grilagem17 constituiria uma grande lacuna da parte de qualquer pesquisador que
viesse a estudar a questão fundiária nessa região. Fernandes (1996) escreve, com propriedade,
que: “A grilagem das terras no Pontal é de conhecimento geral e faz parte da história e do
imaginário social de toda a população da região” (p. 183).
Desde que se tem registro já são quase 150 anos de grilagem no Pontal. A Lei de
Terras de 1850 - Lei n.º 601 de 1850 - ao possibilitar que a legitimação das terras ocupadas
antes de 1850 fosse efetuada até o ano de 1856; ao proibir que a partir do ano da publicação
da Lei não se poderia mais ocupar as terras devolutas e, por fim, ao determinar que as terras
não tivessem sido registradas e legitimadas seriam consideradas devolutas, pertencentes ao
patrimônio público, ela acaba por incentivar a grilagem de vastas extensões de terra por
aqueles que fossem dados à maracutaias.
Dois casos típicos de grilagem que remontam ao período da Lei de Terras e que se
estenderam até nossos dias são os casos das fazendas Pirapó - Santo Anastácio e Rio do Peixe
(ou Boa Esperança do Aguapeí). No ano de 1856, mês de maio, Antônio José Gouveia
registra na paróquia de São João Batista do Rio Verde (Hoje município de Itaporanga - SP)a
gleba de Pirapó-Santo Anastácio, na qual afirma residir desde 1848. A gleba registrada conta
com 583.100 ha. Concomitante a isso se dá o registro da gleba do Rio do Peixe (ou Boa
Esperança do Aguapeí) na paróquia da vila de Botucatu (atual município de Botucatu -SP). O
registro é feito por José Teodoro de Sousa que alega habitar aquelas terras desde 1847. A
Gleba do Rio do peixe é registrada com uma área de 872.200 ha. Contudo os referidos
grileiros efetuaram apenas o registro e nunca providenciaram o título de legitimação como
17
Ainda que estejamos falando neste momento acerca da grilagem de terras no Pontal, recomendamos, para uma
visão mais detalhada desse assunto, a leitura da tese de livre-docência de J. F. Leite intitulada A Ocupação do
Pontal do Paranapanema. Presidente Prudente: UNESP, 1981.
31
Conforme Leite, a situação que imperava naquele canto sem dono do país, ou de onde os
legítimos donos já haviam sido expulsos ou trucidados, era de constantes disputas entre os
grileiros e entre estes e os pequenos posseiros. Se antes as vítimas eram os indígenas, agora
era a vez dos pequenos posseiros. Leite escreve que “Houve conflitos entre os próprios
grileiros, em contenda pelas mesmas terras, e não eram raros os grandes posseiros terem a
seu soldo grupos de jagunços armados visando a expulsão de pequenos ocupantes. Houve
época que ‘cada sitiante tornar-se-ia, com carabina em punho, o defensor externo da (sua)
cobiçada gleba’” (Leite, 1981:46).
18
Tentou-se efetuar a legitimação da fazenda Pirapó-Santo Anastácio em 1886(indeferida em 1890) e da
fazenda Rio do Peixe em 1902 (Deferida parcialmente). Sobre a fazenda Rio do Peixe ainda consta uma outra
tentativa de legitimação feita por Manoel Pereira Goulart em 1886. Ele também alegava que obtivera sua posse
em 1850. Sua tentativa também foi indeferida. Manoel Pereira Goulart tentou em 1890, sem sucesso, garantir a
posse das terra através de permuta com o grileiro que detinha a posse da fazenda Pirapó-Santo Anastácio. Ainda
em 1891ele envia uma carta ao ministro da Agricultura solicitando colonos estrangeiros para trabalharem a sua
terra. Como o despacho favorável do ministro contivesse a expressão "sua fazenda" o grileiro utilizou o
documento para comercializar as terras. Foram negociadas cerca de 12.000 áreas. Para mais detalhes a esse
respeito veja-se Fernandes (1996:104-113), Leite (1981:35-60).
19
Mas os latifundiários opuseram-se ao decreto do governador e aos laudos da Procuradoria do Patrimônio
imobiliário de São Paulo que criavam as reserva e que declaravam ...) nula e falsa a documentação do imóvel
conhecido por Fazenda Pirapó-Santo Anastácio, constituindo um grande ‘grilo’ da Alta Sorocabana, irmão
xenófago do ‘grilo’ Boa Esperança do Aguapeí, existente na Alta Paulista” (Laudo da PPISP apud Borges,
1996:60) Como observa Borges (1996) os latigrileiros fizeram-se ‘donos da lei’, tomaram mão do machado e e
do fogo e colocaram abaixo cerca de 8 alqueires por dia. Entre os idos de 1950 e 1978 as reservas florestais do
Pontal do Paranapanema já haviam sido devastadas em grande quantidade, restando apenas uma pequena área da
reserva Morro do Diabo. Para garantir a segurança de seus latigrilos importava apenas derrubar as árvores pois
elas poderiam posteriormente ser comercializadas sem preocupação graças as inexistência de restrições legais a
esse respeito.
32
E num trecho seguinte continua dizendo que “(...) não eram raros os cadáveres vistos
boiando em águas de riachos e rios do sertão sorocabano, vítimas de tocaias em picadões
recém abertos” (Leite, 1981:56).
Na década de 50 do século XX Hernani Donato escreveu um romance intitulado Chão
Bruto. A conquista do Estremo Sudoeste Paulista, no qual narra o processo de ocupação do
Pontal do Paranapanema, a corrida pela posse dessas terras. O autor ainda observa as
estratégias adotadas pelos fazendeiros para lograr a expulsão de índios e posseiros, dos
antigos moradores da região. Vejamos:
“A gente subia procurando boi e a que descia em arribada às boiadas começou a falar
daquelas terras. E havia também a geografia, os mapas mostrando ao gôverno e aos
olhos dos homens de negócios, aos ambiciosos e aos preocupados, que a terra não havia
sido partilhada no papel. Essa gente alicerçou a sua cobiça com os papéis da lei, tapou
os rasgões da consciência com os carimbos e os selos da lei, encheu as carteiras com as
notas, as cartucheiras com balas. E correu para o Pontal. Isso foi fins de 1906 e
princípios de 1907”20. (Donato, p. 11)
20
A obra em questão não costava a data de sua publicação.
33
Entre ele houve quem não apenas estivesse insatisfeitos com aquela vida, mas que estive
indignado a ponto de reagir, de dizer um basta e de iniciar o processo de mobilização e
resistência. Ainda que os pequenos posseiros fossem expulsos pelos latigrileiros, eles
regressavam para continuar a luta, num primeiro movimento como trabalhadores da fazenda e
num segundo como posseiros outra vez. Para a pesquisadora Maria Célia Borges (1996) a
situação “(...) inverteu-se, tornaram-se novamente posseiros, constituindo as glebas e dando
um novo teor ao processo de lutas. Resistiram e se acomodaram – velhos sujeitos sob uma
nova condição.” (p. 66) Um exemplo desse ‘novo teor’, da ‘resistência e acomodação’
desses ‘velhos sujeitos sob uma nova condição’ são a luta iniciada em fins da década de 60 na
gleba Santa Rita e os movimentos que se seguiram-se ao movimento da gleba Santa Rita e
que se estendem durante as duas décadas seguintes. São eles os movimentos das glebas,
Ribeirão Bonito, XV de Novembro e São Bento, entre outros21.
Ao realizarmos nossas pesquisas bibliográfica e de campo percebemos claramente que
o quadro de concentração fundiária e as gritantes desigualdades sociais, decorrentes do
próprio processo de ocupação do Pontal do Paranapanema, são as principais causas para a
manutenção dos conflitos existentes na região. Como pode-se notar, a história do Pontal
confunde-se com a história da opressão e exploração do trabalhador22.
Durante as décadas de 70 e 80 tem-se um progressivo movimento reivindicatório por
terra no Pontal. Posseiros e sem-terras são os atores sociais dessa cena. Borges (1996) assinala
a esse respeito que: “As grandes propriedades foram sendo ocupadas evidenciando um
processo histórico que não se deu linearmente, pelo contrário, apresentou conflitos
constantes que tiveram a sua fundamentação no próprio processo desencadeado pela
ocupação das terras na região”. (p. 66)
21
Para maiores detalhes destes movimentos ver Barbosa (1990); Borges (1996); Fernandes (1996); Leite
(1981); Souza (1994) e Vasquez (1973) .
22
Ao discutir a questão da exploração do trabalhador, Borges também faz uma breve discussão a respeito do
direito a propriedade. Por ser esse um tema importante e que tem espaço permanente na pauta do MST,
passamos a transcrever aqui o fato que gerou dessa discussão seguido do posicionamento da autora que ora
compartilhamos: “Em relação às três famílias que sofreram o despejo, assinalava-se: “Na foto, as crianças,
sacos com produtos de suas roças, especialmente o algodão e o barraco de lona e plástico de uma das famílias
despejadas, que se encontram hoje em apuros em beira de cidade”. Numa crítica a esse despejo o artigo ainda
acentuou: “Pela foto do rancho pode-se imaginar os apuros desses pais de família que querem dar a seus filhos
o pão ganho com o suor de seu rosto e um futuro decente. Mas como é que pode conseguir ser honesto, num país
onde um pedaço de papel vale mais do que uma enxada? Num país onde que o direito de propriedade vale mais
que o trabalho?” (Realidade Rural, mar/83) As indagações levantadas por esse artigo sugerem uma reflexão do
que significa o direito de propriedade e o de trabalho para os diferentes sujeitos. Na acepção desse artigo, o
direito de propriedade é mantido pelos grandes fazendeiros contrapunha-se ao trabalho, reivindicação dos
posseiros, porque ele era resultado não do trabalho, mas de sua negação na medida em que impedia as
condições para que este se efetivasse.” (Borges, 1996:73-4).
34
A pesquisa de Borges mostra-se muito rica e valiosa para ampliar a compreensão dos
processos de ocupação do Pontal do Paranapanema, de resistência do Trabalhador rural que
em muitos casos lutou por mais de 20 anos23 contra os donos do capital e pretensos donos da
lei e de manipulação da informação a respeito da luta do trabalhador e da trabalhadora rural e
das investidas dos grandes empresários rurais contra estes. Em seu trabalho, Maria Celma
Borges faz uma ampla análise de como a mídia regional e nacional manipulam as informações
em prol dos latifundiários. Entre os inúmeros exemplos que a autora nos trás acerca da
atuação sistemática da mídia, há um trecho em que ela analisa o periódico O Estado de São
Paulo que nos chamou muito a atenção24. Passamos a apresentá-lo:
“No artigo Posseiros ou Invasores, publicado no ano de 1981, percebemos uma reação
do Jornal O Estado de São Paulo, contrária às articulações dos movimentos sociais de
luta pela terra do país. Nesse artigo discute-se o proselitismo ideológico que: “consiste
em dar nomes novos a coisas velhas, conotar positivamente um conceito antes
considerado de forma pejorativa ou pelo senso comum (ou fazer o inverso, ou definir
pessoas, coisas e situações) a partir de uma linguagem que, por si, já desvela o juízo de
valor (ideológico) que se pretende transmitir.” (O Estado de São Paulo, 20/09/1981) Este
artigo aos criticar a inversão de determinadas terminologias, no caso a dos posseiros
que, antes, segundo ele, eram considerados meros invasores, e hoje tornaram-se os
posseiros reais do direito à terra fundamentava a sua crítica à forma como os
movimentos de luta pela terra começaram a ser impedidos a partir de fins da década de
70. Ao conquistar um determinado espaço na mídia estes movimentos começaram a
demonstrar um outro lado das lutas no campo, isto é, a existência de posseiros e de sem-
terra, dentre outras categorias, que reivindicavam além da propriedade da terra, o
reconhecimento de sua cidadania. Isto começou a assustar os defensores da concepção
de invasor, comumente dada aos trabalhadores rurais que ocupam determinadas áresas”
(Borges, 1996:71-2)
23
Observe-se que a luta dos posseiros das glebas Ribeirão bonito e Santa Rita, por exemplo remontam ao início
dos anos 70 do século XX.
24
Ver também Capelato, M. H. R., (1980) O Bravo Matutino: imprensa e ideologia no Jornal “o Estado de
São Paulo.
35
Parece haver uma espécie de conluio entre a oligarquia e a imprensa para garantir o
fracasso das ações coletivas empreendidas pelos trabalhadores rurais que até então viviam sob
a tutela dos grileiros e dos esforços do Estado para diminuir a tensão existentes na região ao
promover algumas desapropriações de terras.
36
25
Trecho do panfleto A aventura do Pontal, s/d, s/f, encontra-se anexado à tese de doutorado de Antônio, 1990.
26
Ibidem.
37
“Vários fatores contribuíram bastante para dar forma à nova direção da política do
MST. Em primeiro lugar, a natureza politizada do sistema judicial evidenciada na
violação crassa do processo judicial normal pelos juízes no julgamento dos oficiais
militares acusados de assassinarem 19 trabalhadores sem terra no Pará. Sem levar em
conta as claras evidências apresentadas e a posição inicial do juri de considerar
culpados, a intervenção do juiz alegando que era suficiente a evidência apresentada e
rejeitando testemunhas oculares, ficou claro que, sem influência política direta, era
impossível garantir justiça nos tribunais contra os latifundiários politicamente
influentes e organizados” (Petras e Weltmeyer, 2001:151).
27
Ibidem.
28
E ao nosso ver continua auxiliando. Temos essa impressão corroborada pelo modo com que o Juiz de Teodoro
Sampaio atua em relação aos conflitos de terra na região. Acompanhamos os julgamentos de algumas lideranças
na região e o que percebemos é que o juiz atuava não como tal mas como um outro advogado de acusação. Um
caso que merece nota é o da ordem dada pelo juiz ao capitão comandante da PM de Botucatu de despejar
imediatamente e a qualquer custo as famílias acampadas em áreas na região. O caso é suigeneris porque, além da
intransigência do Juiz, o Capitão negou-se a cumprir a ordem sem antes efetuar todas as negociações possíveis.
O então governador Covas apoiou formalmente a decisão do Capitão. Todavia o juiz abriu uma ação contra o
capitão que, contra as expectativas existentes em relação a atuação da corporação militar, queria contribuir para a
diminuição da violência no campo. Até esse episódio o histórico da ação da PM na região revela disposição à
truculência. Essa afirmação se ampara no uso ostensivo do aparato militar a sua disposição. Habitualmente o
38
contingente utilizado é desproporcional e demonstra a intenção de coersão por parte da PM. Para mais detalhes a
respeito da ação da polícia, ver Borgs, 1996, Fernandes 1996.
29
Ao se identificarem como iguais, como vítimas de um mesmo contexto expropriatório, esses agricultores
passam a reelaborar suas experiências vividas; eles apropriam-se, internalizam, o outro generalizado que exerce
a mediação interna e externa da relação sujeito-sociedade. A posterior objetivação, exteriorização da
ressignificação desse outro generalizado e das experiências vividas por cada sujeito (e num segundo pelo
grupo), resultam na autoconsciência, a qual possibilita o desenvolvimento da consciência Política de cada sujeito
(e do grupo): consciência de quem são e de que são capazes de juntos promoverem mudanças sociais.
30
Os trabalhadores envolvidos na ocupação eram 46,5% de desempregados das obras hidrelétricas, 37,5 eram
bóia-frias demitidos da destilaria de álcool Alcídia e 16% eram posseiros, ilhéus e ribeirinhos atingidos pelas
barragens. (cf. Fernandes, 1996:109)
39
populistas31 que apoiaram a luta. A ruptura era necessária para que assim eles pudessem
conquistar o seu espaço político, fruto dessa consciência política integral. Pensamos que a
própria consciência de si desses sujeitos não fosse uma das mais completas.
Outro fator que contribuiu para a não elaboração de uma consciência política integral
foi a ausência de espaços de socialização política efetivos (Como aqueles fornecidos pela
Igreja através da CEB's e da CPT aos colonos de Ronda Alta - RS - ou aos posseiros da
fazenda Primavera em Andradina - SP.) A atuação de instituições que habitualmente vinham
apoiando as lutas do movimento sem-terra país a fora foi ou inexpressiva - como a Igreja de
Presidente Prudente que tem uma diretriz tradicionalista -, ou ambígua - com no caso da
atividade do PMDB -, ou de omissão - como no caso do sindicato dos trabalhadores rurais da
região que negou a ajuda jurídica solicitada pelos assentados para que pudessem contestar as
decisões da justiça a eles desfavoráveis porque os ocupantes das fazendas Tucano e Rosanela
não eram em sua maioria sindicalizados.
Com o despejo essas 350 famílias acamparam na beira da Rodovia SP-613. Como
houvesse boatos de que o governo do estado fosse assentá-las, o acampamento cresceu. Em
1984 o governador Franco Montoro assinou os primeiros decretos de desapropriação de uma
área de 15.110 hectares para assentar as cerca de 466 famílias acampadas as margens da SP-
613. As lutas empreendidas no Pontal e em outras regiões do país e as desapropriações
ocorridas provocaram a reação dos latifundiários que fundaram a União Democrática
Ruralista - UDR - com vista a defender seus interesses e a estarem melhor instrumentalizados
para fazer pressão ao Estado em suas diversas esferas e a resistir as mudanças que eram
iniciadas na estrutura fundiária local e nacional.
Claus Germer entende que a UDR, fundada, segundo Veiga (1990), pelos “(...) grilo-
terroristas do Pontal” (p. 43), não apenas era a organização representativa dos proprietários
rurais, atingidos ou não pelas desapropriações realizadas tanto pelo governo federal quanto
pelo governo estadual. Para ele a UDR “Unificou e deu legitimidade ao velho discurso
conservador e reacionário do grande proprietário brasileiro, ‘modernizando-o’ com o
auxilio da ideologia neoliberal ressuscitada em todo o mundo” (Germer 1994:274). Com
este discurso plasticamente renovado foi possível à União Democrática Ruralista reestruturar
e fortalecer a oligarquia rural conservadora. Segundo Germer “(...) a UDR deu expressão
verbal renovada a uma visão e a um discurso reacionários envelhecidos, dando-lhes uma
31
Refiro-me, por exemplo, aos correligionários do PMDB que encontravam-se divididos: parte comprometida
com seus próprios interesses e com os interesses dos latigrileiros e outra com os trabalhadores (cf. Veiga,
1990:45)
40
4.4 - Igreja Católica no Pontal: Uma Igreja particular com uma atuação particular
32
Ver: Borges, 1996:118-28. A pesquisadora traz os relatos dos dois padres que durante a década de 80 do
século XX estiveram a frente da paróquia de Teodoro Sampaio.
42
sendo um dos principais agitadores da região. Muitas vezes o clérigo fora pressionado pela
mídia, fazendeiros e Igreja que, cada qual por seus motivos, não o apoiara na empreitada de
assessorar os movimentos sociais e discordava das posturas adotadas nacionalmente pela
CPT. Em 1984 padre José Antônio deixou Teodoro Sampaio pois o pároco anterior regressara
as suas funções porque terminara seu tratamento de saúde. Como o retorno de Padre Jesuos a
Igreja Católica deixou de participar mais efetivamente da realidade de luta dos trabalhadores
rurais sem terra. Mais do que isso: a Igreja Católica por um tempo limitou-se ao serviço
espiritual, a ministrar o sacramentos e com o tempo nem esses serviços eram oferecidos mais
àquela parcela do povo de Deus. Aquele católico que quisesse continuar na vida da
comunidade deveria deslocar-se à paróquia.
Provavelmente as pressões da Igreja de Prudente e dos próprios fazendeiros são
algumas das motivações que nos permitem entender outro fato: o afastamento dos poucos
clérigos que mantinham algum vinculo com o MST como padre José Antônio. Também ele
que bravamente se fizera uma voz para aquele que não tinham voz se afastara dos
movimentos sociais no campo.
Com a saída da Igreja de entre os sem terra, as Igrejas Evangélicas foram ocupando o
espaço e se acomodando entre aquele povo. Contudo é preciso fazer notar que o serviço dos
evangélicos também limitava-se as questões espirituais. Como a Igreja Católica também os
evangélicos anunciaram um Deus desencarnado, longe da realidade daquele povo que luta a
cada segundo para obter o direito de obter uma vida digna.
Parece-nos que a Igreja Católica no Pontal sob a condução pastoral de d. Agostinho,
não foi capaz de escutar os gritos de tanto excluído oprimidos por quem dizia que a terra era
sua sem ser capaz de provar; não foi capaz de perceber que “(...) um clamor surdo brota de
milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma
parte”. (Libânio, 1986:87)
No Pontal do Paranapanema a atuação da Igreja não favoreceu, de modo geral, à
socialização política dos trabalhadores rurais. Muito antes o contrário, corroborou o discurso
de defesa à propriedade da forma como era desejada pelos fazendeiros. Ao por-se a margem
dessas discussões ela acabou por consolidar-se como uma importante aliada regional dos
grileiros de plantão.
Atualmente os padres de Teodoro Sampaio e Euclides Cunha Paulista mantém-se a
distância do movimento e por vezes mostram-se opositores do MST. A pastoral exercida por
eles restringe-se às cercanias da casa paroquial, está cada vez mais distante das beira de
43
Fonte: ITESP
33
A expressão pode ser encontrada no Livro do Profeta Sofonias 2,3. O autor sagrado escreve: "Procurai a
Iahweh, vós todos pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a pobreza: talvez
sejas protegidos no dia da ira de Iahweh" (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985:1796) . A nota de rodapé acerca
deste trecho, assinala que o termo hebraico anawin pose significar "pobres" ou "humildes". Assim, diz a nota,
"os pobres ocupam um lugar especial na Bíblia.(...) Os profetas sabem que os pobres são antes de tudo
oprimidos, aniyym, e reclamam justiça para os frracos e os pequenos, dallim, e para os indigentes, ebyônim.
44
Fonte: ITESP
Outro dado importante para que se possa entender melhor a questao fundiária na
região do Pontal pode ser observado na origem das terras utilizadas para os assentamentos.
lnicialmente as terras que foram utilizadas para a implantação de assentamentos, durante o
período mais crítico dos conflitos de terras no Pontal do Paranapanema, eram terras
devolutas e terras não discriminadas e que em grande parte haviam sido griladas a muito
tempo e não as terras de propriedade do Estado ou as terras de particulares.
No gráfico abaixo podemos constatar essa realiddade. Com o avanço dos processos
de discriminação das terras, as terras que passam a ser mais utilizadas são as terras de
particulares que não cumprem a sua função social e acabam sendo alvo do Movimento e dos
orgãos oficiais que estão implicados no processo. Vejamos o grático:
Fonte: ITESP
45
agrária realmente fizesse parte da pauta organizativa do Estado, abriu espaço para que os
trabalhadores se organizassem e se tornassem um uma força política importante no cenário
nacional. A falta de um programa de reforma agrária e de uma poltica clara para a imensa
extensão de terras devolutas e não discriminadas no Estado de Sao Paulo foi um dos grandes
motivadores da manutenção dos conflitos fundiários no Pontal. Essa situação fez das
ocupações um instrumento legítimo, ainda que ilegal, dos trabalhadores rurais sem-terra para
que pudessem fazer valer os direitos que lhes são garantidos na constituição e negados no
dia a dia. Ocupar, Resistir e Produzir é a estrategia daqueles que querem apenas ter acesso
ao direito à terra, ao direito ao trabalho e ao direito à cidadania. "Diante da inoperância do
Estado, que por mais de um século, não conseguiu dar solução a situação fundiária da
região, o MST aparecer como uma , força política capaz de fazer avançar os processos de
regularização fundiária" (Fernandes, 1996:189) .
47
CAPÍTULO II
1
1) Da consciência dos Direitos à identidade social: Os sem-terra de Sumaré. Dissertação de mestrado realizada
por Luis Carlos Tarelho, orientada pelo Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval e defendida em 1988 na
UNICAMP. 2) Análise psicossocial da capacidade de mobilização e das contradições internas do MST em
termos de representações e identidades sociais. Dissertação de mestrado realizada por Sandra Maria de Freitas,
orientada pelo Dr. Leoncio Camino R. Larrain e defendida em 1994 na UFPB. 3) A formação da identidade
coletiva: um estudo das lideranças de assentamentos rurais no Pontal do Paranapanema. Dissertação de
mestrado realizada por Maria Antonia de Souza, orientada pela Drª. Maria da Glória Gohn e defendida em 1994
na UNICAMP 4) A formação da consciência política dos jovens no contexto dos assentamentos do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Tese de doutorado realizada por Márcia Regina de Oliveira Andrade,
orientada pelo Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval e defendida em 1998 na UNICAMP. 5) Vidas
Construídas na Terra: o Ir e Vir dos Trabalhadores Rurais. Tese de Doutorado desenvolvida por Wilka
Coronado Antunes Dias e orientada pela Drª Silvia Leser de Mello em 1999 na USP.
48
atenção em trabalhos referentes ao MST no Estado de São Paulo2. Iniciamos nosso trabalho
com a pesquisa de Luis Carlos Tarelho.
Em sua pesquisa entitulada Da consciência dos Direitos à identidade social: Os sem-
terra de Sumaré Tarelho se propôs a responder as questões relativas a decisão política de lutar
pela posse da terra, ao motivos subjetivos que conduzem essa atitude do sujeito. Ingressar
nessa luta indicaria um ato de consciência. Partindo dessa hipótese o autor investigou quais
seriam e como se desenvolvem as estruturas de consciência que possibilitam as ações políticas
orientadas para a posse da terra. (cf. Tarelho, 1988:8-9)
Para construir as respostas as suas questões, Tarelho articula as teorias habermasiana
da Ação Comunicativa e a teoria Psicanalítica de Freud. Essa articulação está mediada pelos
escritos de Paulo Sérgio Rouanet3 que estabelece um diálogo entre Habermas e Freud. De
Habermas, Tarelho busca a idéia de que a evolução social não pode ser explicada com base
apenas no desenvolvimento das estruturas produtivas, sem se considerar os processos de
aprendizagem que ocorrem no nível do desenvolvimento das estruturas normativas, os quais
ao apontarem novos parâmetros para a solução dos conflitos, tornam possíveis novas relações
de produção (cf. Habermas, 1985:14) e de Freud ele toma a categoria das defesas psíquicas.
Partindo da premissa habermasiana o autor entende o MST como sendo a "(...) síntese
produzida pela combinação desses elementos [questões econômicas e políticas agrárias] com
os elementos "Subjetivos", relacionados â vontade, ao saber prático-político, às imagens de
Mundo, etc." (Tarelho, 1988: 3) Outra postura habermasiana adotada foi a idéia da
falsificação da consciência. A falsa consciência é a face interna de práticas autoritárias. Ela é
gerada pela exclusão ou deformação do processo de diálogo, isto é,
2
Somente a pesquisa de Sandra Freitas realiza estudos com os sem terra da paraíba. Porém, seu trabalho é
particularmente importante por tratar das contradições internas do MST.
3
Paulo Sério Ruanet é autor dos livros A razão Cativa - as ilusões da consciência de Platão à Freud (1985) ed.
Bresiliense e Teoria Crítica e Psicanálise (1986) ed. Tempo Brasileiro. Para mais detalhes consultar Tarelho
(1988).
49
dominante. Para Tarelho, essa articulação "permite construir uma teoria materialista da falsa
consciência sem dissolver a Psicologia na Sociologia". (Tarelho, 1988:82) Enquanto
Habermas propõe um teoria da comunicação pura, Freud estaria propondo uma teoria da
comunicação deformada.
Portanto, a falsificação da consciência se dá no nível da linguagem e é provocado por
práticas autoritárias. Tais prática acabam por obrigar o sujeito a viver à custas de renúncias,
visto que houveram supressões das interpretações nocivas ao sistema dominante e o inculcar
de outras práticas de caráter despolitizador. Nesse contexto é imposto à estrutura pulsional
limites a sua satisfação, o que gera, mediante as defesas, interferências no trabalho da
percepção, do pensamento e do imaginário, impedindo que os sujeitos identifiquem as razões
de suas privações. E não só, impede que eles encontrem coragem para admitir e assumir seus
desejos e tomem consciência de seus direitos e adquiram a capacidade de defendê-los.
Para que se possa superar essa condição vivida pelo sujeito que possui uma falsa
consciência, Tarelho propõe que apenas pelo exercício da liberdade, pela reinserção no espaço
comunicativo, pelas práticas da confrontação política seja possível fazê-lo. Nas palavras do
autor:
"Para Ângelo, essa consciência começa a ganhar consistência desde as primeiras reuniões
na medida em que os sujeitos vão se conhecendo e se percebendo como iguais. "As
primeiras reuniões - diz ele - são organizadas com esse objetivo: para o pessoal se conhecer
e constatar que possuem as mesmas necessidades. Ao se conhecerem, eles percebem que os
seus problemas são semelhantes e, o que é mais importante, eles percebem que possuem a
50
mesma origem camponesa e que os problemas comuns que eles enfrentam hoje estão
diretamente ligados ao fato deles não terem acesso à terra." Isto é, essa consciência se
desenvolve no jogo interativo que ocorre no interior do movimento, especialmente durante
as reuniões." (Tarelho, 1988:104)
Além desse primeiro momento da socialização política existiriam outros dois que
estariam na seqüência. Após a formação do grupo e conscientização das privações comuns
vivenciadas por eles e da conseqüente recriação da identidade camponesa possibilitada pela
rememoração do passado de cada um durante a formação do grupo, viria a fase da
conscientização política dos membros do grupo nascente, o que implicaria em fazê-los
compreender a estrutura classista da sociedade e o caráter político das leis e instituições
vigentes. Por fim, viria a fase de preparação para a luta, a fase das ações coletivas
desenvolvidas por estes trabalhadores agora conscientizados de sua condição de excluídos e
expropriados, conscientizados das estruturas sociais que propiciaram a situação de
marginalidade vivida por eles. Esta fase está alicerçada na crença na mudança social e não na
crença na mobilidade social.
O autor ainda analisa o papel que a Igreja, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o
Estado teriam tido na construção da consciência Política desse trabalhadores Rurais ligados ao
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Sumaré. A Igreja ao apresentar espaços
de socialização política e reflexão, ao propor um ambiente em que as decisões são tomadas na
e pela base, ao utilizar os textos bíblicos relacionados a vida destes trabalhadores acaba por
estabelecer um molde de ação do movimento, acaba por propor um tipo de liderança e de
compreensão político-religiosa da realidade. O Partido dos Trabalhadores tem uma influência
velada no movimento. Isso se dá pelo fato de o movimento querer enfatizar seu caráter
apartidário. Mas com o passar do tempo, com a defesa aberta que o partido fazia da reforma
agrária e com a candidatura de lideranças do MST nas eleições de 1982, a sua participação na
construção do movimento ficou mais clara. Quanto ao Estado, sua participação mais efetiva se
dá no momento em que o trabalhador vê cair por terra suas ilusões a respeito do real interesse
de o Estado realizar a reforma agrária. Quando o trabalhador descobre a dificuldade de se
contactar o Estado, percebe que o Estado usa seu aparato de forma opressora, reprimindo
veementemente as ações empreendidas por eles, eles dão passos largos à tomada real de
consciência a respeito das relações sociais e das atividades do Estado frente a essas relações.
Quanto a Igreja e ao Estado, pensamos ser relevante comentarmos a sua ação após a
conquista das terras pelos grupos de Sumaré. A Igreja que até aquele instante havia sido um
dos pilares da formação da consciência política daqueles trabalhadores, defensora da atuação
51
democrática entre eles, agora vê-se numa conduta autoritária para "garantir" a democracia.
Tarelho vai nos mostrar que ao tentar implementar um projeto comunitarista cristão em que a
coletividade se inspirava nos testemunhos que ela guarda acerca da vida dos primeiros
cristãos que "repartiam tudo segundo a necessidade de cada um", que "tinham tudo em
comum" e que "não consideravam como propriedade sua algum bem seu" (cf. At 2,44-
45;4,32), acaba tomando uma postura autoritária levada pelo zelo de implementar o projeto
cristão. Junto com a preocupação de reconstruir o programa cristão de vida, a Igreja trazia a
preocupação de manter os trabalhadores mobilizados para a nova fase da luta que iniciava.
(cf. Tarelho, 1988:204-210)
O problema da proposta da Igreja estava no fato de para implementá-la ela acaba que
desapercebidamente rompendo com a ação democrática que concedia às bases o poder
decisório. Para alcançar seu intento ela verticaliza a decisão: impõe seu programa de cima
para baixo, autoritariamente. Isso promove entre os assentados uma divisão, traz as claras os
desejos pessoais de realização até este momento postos de lado em função de um bem maior:
a posse da terra. A tentativa da Igreja acaba por ser reveladora. Forma-se dois grupos: os
crentes na mobilidade social e que querem implementar seu projeto camponês/familiar de um
lado e os crentes na mudança social e que querem ver implementado o projeto
comunitário/coletivo apregoado pela Igreja. Individual e coletivo determinam a divisão do
grupo e criam um mal estar generalizado. Todavia para a Igreja e para as lideranças dos
trabalhadores não era suficiente reunir os adeptos de sua proposta. Fazê-lo era considerado
"uma ameaça não só a capacidade de resistência do grupo, mas também aos ideais pregados
pela Igreja". (Tarelho, 1988:206)
Ao invés de abrir espaços comunicativos para promover o amadurecimento político e
para o entendimento dos trabalhadores, a Igreja acabou bloqueando a comunicação e
contribuindo para que o projeto individual de cada trabalhador fosse sufocado. Nesse sentido
pensamos que o trabalho de Tarelho aponta para o diálogo como uma das condições básicas
para a manutenção da Vontade de Agir coletivamente. A vontade de agir coletivamente é
entendida por nós como uma das dimensões da Consciência Política nos moldes propostos por
Sandoval (2001) e já discutidas por nós em outras ocasiões4.
A ação do Estado não foi muito diferente. A diferença está na ênfase dada por cada
um. Enquanto a Igreja enfatiza a proposta de Cristo, a solidariedade cristã; o Estado quer que
haja solidariedade entre os trabalhadores para garantir a implementação entre eles de um
4
Para mais detalhes dessa discusão, ver Silva, A. S. (2001 a, b, c).
52
instrução, nascidos e criados na terra. A terra para eles é bem mais do que um instrumental de
trabalho , de sobrevivência. A terra é dadiva preciosa recebida por eles das mãos de Deus.
Encontramos arraigadas neles a idéia de que a terra deva ser trabalhada com a família,
artesanalmente e, portanto, de forma individual e não coletiva. Freitas ressalta que a única
possibilidade de se abrir mão dessa idéia se dá quando isso significa uma estratégia de ação
para conquistar um pedaço de terra e/ou dos meios de produção. O momento da ocupação ou
o da compra de sementes e equipamentos ou o instante da comercialização da produção são
exemplares típicos dessa postura. Note-se que nesses momentos o diálogo é necessário para a
manutenção da vontade de agir coletivamente e para a superação de interesses antagônicos e
de adversários. Neles notamos que há uma significativa superação do hiato existente entre
base e liderança ou como chama Freitas, entre participantes simples e participantes formais.
Em relação aos interesses antagônicos e aos adversários a serem enfrentados e
superados pelo sujeito coletivo, importa dizer que eles constituem uma das dimensões da
consciência política presente no modelo analítico proposto por Sandoval.(1994; 2001; Silva,
2001 a, b, c). Em nosso entender, o surgimento de potenciais dificuldades são ocasiões
preciosas de resignificação das pautas internalizadas pelo grupo e de superação de disputas
que nem sempre estão presentes de modo claro no cotidiano das pessoas. As dificuldades
enfrentadas por eles acabam por romper a rotina cotidiana e trazer luz sobre as contradições
vividas pelo grupo e que poderiam estar até então ocultas.
O grupo dos ativistas formais é caracterizado por Freitas como sendo um grupo
possuidor de "(...) uma forma peculiar de vinculação com a terra que se dá, seja através da
experiência familiar, seja através da própria luta" (Freitas, 1994:54). Os ativistas formais
são os organizadores da ação, possuem certo nível de instrução e, sobretudo, são jovens. Para
eles a terra não se restringe a um instrumento de sobrevivência imediata, é vista como um
instrumento de transformação social, um instrumento a ser usado para que se possa alcançar
uma reforma social abrangente. Essa perspectiva dos ativistas formais se concretiza na
organização dos trabalhadores, na pressão do inimigo e na cooperação entre os iguais. Eles
trazem consigo um projeto coletivo em oposição aos anseios dos participantes simples.
Ao grupo ativistas informais a autora atribui um caráter de transitoriedade entre os
dois grupos. Tal caráter tem sua origem na experiência de vida desses sujeitos que se encontra
diluída entre o campo e a cidade. São jovens e já participaram de algum tipo de organização.
Tendo essa realidade presente, normalmente os líderes acabam por "recrutá-los", atribuindo-
lhes funções específicas na estrutura do Movimento (acampamento, assentamento, etc.). E em
razão de suas experiências pessoais desse recrutamento feito pelas lideranças, os ativistas
55
informais acabam por, de maneira crescente, aproximar-se dos ativistas formais até o ponto de
compartilharem completamente de suas representações. (cf. Freitas, 1994:53-54)
Apesar de ser patente a existência de uma hierarquia, os dados de nossa pesquisa nos
levaram a notar um fato contraditório no discurso dos acampados no Pontal. Segundo os
entrevistados líder é uma posição que não existe no movimento. Para eles, dentro do MST
todos são iguais e possuem a mesma capacidade decisória e interventiva. A existência de
figuras como o Zé Rainha5 é explicada a partir da questão da escolaridade. Ter estudo é
condição necessária para que os anseios da base sejam traduzidos e transmitidos a todos os
membros do grupo e para aqueles que se relacionam com o grupo, sejam eles aliados ou
adversários. Parece-nos, então, que a suposta escolaridade de figuras com o Zé Rainha é uma
das formas com que se deforma a realidade, não observando-se fato de que há na realidade
uma organização hierarquizada no movimento da qual ele faz parte. Assim, é claro para nós a
presença de uma visão de mundo um tanto quanto utópica, uma falsificação da realidade e até
mesmo da consciência política como propõe Tarelho.
Em dado momento da pesquisa de Freitas, verificas-se que a identidade existente entre
os três grupos se dá devido a fatores eminentemente sociais. Ao adquirirem a consciência de
que é apenas mediante a ação coletiva proposta pelo movimento - a ocupação da terra - é que
se conseguirá transformar a injusta condição de privação, de sem terra, vivida por eles. A
situação social vigente só pode ser mudada se eles estiverem unidos. Constitui-se uma
identidade social baseada na crença da mudança social. Admite-se a impossibilidade de se
tornar membro do grupo dos outros. Este outros são os latifundiários, é a UDR, são os aliados
da concentração de terras que os afasta da terra perseguida. Individualmente essa situação não
pode ser superada. Freitas conclui que "(...) os fatores sociais moldam as ações coletivas e
portanto o contexto social em que elas ocorrem é fundamental, pois é nesse contexto que as
representações sociais são geradas e modificadas". (Freitas, 1994:56)
Essa afirmação nos leva a observar que toda a vez que o contexto for desfavorável a
realização dos anseios do sujeito ele aderirá a mudança social. Do contrário ele tentará
construir de maneira individual a realidade; ele se filiará a mobilidade social. Esse é o caso do
grupo dos participantes simples. Em relação aos ativistas informais e formais observa-se um
peso ideológico relevante em suas postura e a conseqüente adesão a tese da mudança social,
do coletivo.
5
Zé Rainha é uma importante liderança regional e nacional do MST. Sob a orientação de figuras como Zé
Rainha, Bil, Cledison e Diolinda é que o MST do Pontal do Paranapanema - SP - atingiu importância
reconhecida no cenário nacional da luta pela reforma agrária e o fim do latifúndio.
56
6
Nas palavras de Souza "(...) o assentamento é um dos resultados concretos da organização e resistência dos
trabalhadores na luta pela terra". (Souza, 1994:20).
58
Voltamos a enfatizar que o contexto em que essa hipótese lançada por Sousa é mais
evidente e passível de materialização, é, no nosso ver, o espaço do acampamento e não os
assentamentos como entendem alguns. Ainda que o acampamento tenha a dificuldade da
transitoriedade, vemos nele o espaço em que se lança os fundamentos futuro, vemos o
acampamento como uma sementeira, um canteiro de mudas que alimentarão as futuras
plantações e por isso necessitam de um cuidado todo especial para que as mudas nasçam
fortes e vinguem ao serem transplantadas.
Quanto as categorias adotadas por Souza, pontuamos que a autora se utiliza das
categorias de Movimento Social e Liderança porque quer compreender a formação de líderes
em assentamentos rurais resultantes de movimentos sociais populares. Já a categoria liderança
é importante porque a figura do líder é central dentro de um movimento social. É o líder que
cuida da organização do movimento, das tratativas políticas e da formação de novos quadros
para o movimento.
A categoria Identidade é construída partindo das teses habermasianas (1985) e tendo
como trabalho base a dissertação de Tarelho (1988). Tendo essas questões presentes podemos
entender melhor o que seja Identidade para a autora. Souza considera a Identidade como
sendo a "(...) identificação da própria pessoa no grupo, bem como a identificação feita pelo
outro no mesmo grupo. Alter e ego se reconhecem". (Souza, 1994:34). Assim, Identidade
Coletiva para a autora são as normas do grupo. Para embasar esse entendimento, Souza se
utiliza da afirmação habermasiana de que a "(...) identidade coletiva regula a participação do
indivíduo na sociedade, ou a sua exclusão da mesma" (Habermas, 1985:26) Nessa
perspectiva, a identidade é constituída em dois momentos: a formação da identidade do Eu no
grupo familiar e a posterior formação da identidade num grupo de iguais. Essa posição resulta
em admitir diversas identidades forjadas no decorrer do processo histórico.
Para que se possa pensar a concretização da identidade coletiva, Souza propõe a
categoria Participação Política como "elemento auxiliador", visto que o termo não deve
designar apenas a militância mas em seu sentido mais amplo, no sentido daquilo que seja a
participação em si produz no sujeito coletivo como tal. Segundo a autora a "(...) simples
7
Quanto ao conceito de espaço comunicativo não iremos explicitá-lo nesse momento pelo simples fato de o já
termos feito quando da apresentação da obra de Tarelho (1988)
59
"A Participação política não surge do nada, e é nesse sentido que enfatizamos os espaços
grupais de discussão, pois acreditamos que grande parte dos participantes políticos/sociais
passaram por espaços comunicativos, seja na Igreja, no partido político, no sindicato, nas
fábricas, nos bares, etc. (...) Os espaços comunicativos (...) são decisivos no sentido de levar
o indivíduo à participação efetiva nos movimentos sociais, e no sentido de contribuir para a
formação da identidade coletiva, a partir do momento que, nesses espaços, há possibilidade
de reconhecimento recíproco". (Souza,1994:46)
8
Vale destacar que a questão da identidade coletiva é um importante vínculo que une os trabalhos nosso trabalho
com aqueles desenvolvidos por Tarelho, Freitas, Sousa e Andrade (que discutiremos a seguir). Mas, como
veremos mais adiante, a identidade coletiva também é o marco que separa esses trabalhos daquele proposto por
Dias.
60
"(...) atores chaves em práticas cognitivas são aqueles que nós identificamos como
intelectuais do movimento. Intelectuais do movimento são atores que articulam a identidade
coletiva que é fundamental para a criação do movimento social. (...) Assim, nós usamos o
termo intelectuais do movimento para referir àqueles indivíduos que durante suas
atividades o conhecimento científico e identidade cognitiva do movimento social. Eles são
intelectuais do movimento porque criaram seus caminhos individuais ao mesmo tempo que
criaram o movimento, como novas identidades individuais e novas identidades coletivas
formando um mesmo processo interativo." (Eyerman & Jamison, 1991, apud, Souza,
1994: 51-52)
Para Souza tais intelectuais são as lideranças dos movimentos sociais que, "com o
objetivo de impulsionar o processo de organização do movimento, normalmente
comprometem-se com a luta e com as pessoas que participam da mesma. As lideranças são,
portanto, as pessoas que possuem maior clareza dos acontecimentos políticos e do processo
histórico das lutas no campo." (Souza, 1994:54) Em outras palavras, para a autora liderança é
o indivíduo ou o conjunto de indivíduos comprometidos com um luta, e que se dedicam a
organizar e desenvolver um movimento social. Líderes são pessoas que possuem uma
consciência política desenvolvida, complexa, que os torna aptos a formular e analisar
estratégias e conseqüências da luta.
Para analisar o conceito de Movimento social, Souza faz menção as posições de
Scherer-Warren (1993), Touraine (1989), Camacho (1987), Karner (1987), Ammann (1991) e
Gohn (1993). A partir da análise dessas diferentes construções teóricas acerca do que seja
Movimento Social, a autora propõe a sua concepção. Para ela Movimento Social é
“(...) sinônimo de Ação Coletiva, essas ações podem ou não, terem uma organização
formal; ou a organização construirá apenas uma mediação do movimento social. (...)
Portanto Movimento Social é uma ação coletiva de determinado segmento social
pertencente a uma classe, que possui continuidade, devido o caráter educativo do mesmo”.
(Souza, 19894:58-59)
Para nós, as ações coletivas são a resultante da atividade do movimento social, sendo ele
organizado ou não. Assim, as ações coletivas são a materialização das ações dos sujeitos
coletivos reunidos em torno de suas demandas.
Maria Antonia de Souza analisa, ao longo de sua obra, o processo histórico de
formação dos assentamentos Gleba XV de novembro, Santa Clara e União da Vitória. Esses
assentamentos surgem na região do Pontal do Paranapanema e refletem o processo de
distribuição de terra naquela região do Estado de São Paulo. As análises construídas por
Souza são resultantes da metodologia por ela adotada: a História de Vida. É a partir daí que a
autora buscou “(re)construir as categorias teóricas” por ela adotadas. (cf. Souza, 1994:230)
Como resultado de seu trabalho de pesquisa a autora considera que na formação da
identidade coletiva das lideranças, alguns aspectos são pontuais tanto para a formação destas
com para que se possa determinar o tipo de liderança desenvolvida. Um primeiro aspecto são
as condições nas quais o assentamento se originou. As lideranças dos assentamentos União da
Vitória e Santa Clara são muito parecidas. Um aspecto que as aproxima é o fato de terem sido
formadas num mesmo espaço político, elas surgem, assim como os acampamentos, mediante
as discussões promovidas pelo MST. Esses assentamentos surgem da pressão que o MST
fazia ao Estado no sentido de desapropriar áreas com posse ilegal ou improdutivas.
O caso da Gleba XV de novembro é diferente. Ela surge da necessidade de se
apaziguar a região, surge com a clara intenção do governo de diminuir a tensão na região.
Muitas das liderança da Gleba participam da organização do MST. Contudo as que não
participam tem uma postura distinta daquelas que estão engajadas. Sua postura têm um caráter
tradicional. Entendem as ocupações (visão do MST) como invasões; de conquista (visão do
MST) com ganho da terra e ao invés de enfatizar a coletividade como faz o MST, elas dão
ênfase a posições individuais. Como nos demais trabalhos até aqui relatados, o de Souza
também acaba por demonstrar que a relação Coletividade X Individualidade; Objetividade X
Subjetividade constituem contradições do Movimento e, portanto, os desafios a serem
enfrentados por este.
As lideranças do MST que vivem na Gleba XV de Novembro têm dificuldade de
articular questões coletivas em função de originalmente esse assentamento ter nascido da
necessidade de se resolver questões como o desemprego, o problema dos desabrigados por
enchentes e inundações, etc. As lideranças que efetivamente construíram as matrizes político-
ideológicas da Gleba foram políticos do PMDB e não membros do MST. Isso explica porque
muitas lideranças e a base desse assentamento vêem com gratidão a figura de políticos da
região e do então governador do Estado de São Paulo Franco Montoro. Para esses o
62
assentamento é resultante da ação desses políticos e não das ações coletivas do movimento.
Enquanto os dois primeiros assentamentos exercem atividades com o fim de alcançar
conquistas para a coletividade, os assentados da Gleba XV de novembro estão habituados a
geralmente receber as coisas prontas.
Para a autora o processo formativo da identidade coletiva das lideranças do MST
começa das mobilizações deflagradas pelo Movimento. É mediante o reconhecimento
recíproco que se estabelece a identidade do grupo. Reconhecer-se reciprocamente é
reconhecer-se como iguais, como detentores das mesmas carências. É entorno dessas
carências que se reúne o grupo, que se mobiliza para a luta e para a permanência na mesma.
Além disso ela aponta para o fato de que junto com as carências objetivas – não ter terra, por
exemplo – há o papel da imaginação: imagina-se soluções para a superação das carências. A
atividade imaginativa pode apresentar as características de um projeto político. Assim, as
carências agregam os indivíduos que se reconhecem uns aos outros como iguais e ainda
impelem ao indivíduo a buscar, imaginar, soluções para a superação das condições objetivas
a que ele está submetido. “Nesse sentido, a autonomia dos indivíduos deve ser preservada
num Movimento Social, caso contrário teremos objetivos racionais fixados, em detrimento do
emocional, das opiniões individuais dos participantes. Garante-se as condições objetivas e as
subjetivas são massacradas”. (Souza, 1994:242)
O trabalho de Souza deixa claro que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra se articula em torno de uma carência Coletiva. O fato de os indivíduos sofrerem as
mesmas carências é que os faz iguais. Contudo “(...) é face a um ideal, a uma utopia, que no
caso do MST retoma os pressupostos da utopia revolucionária socialmente, em sua vertente
radical, pouco aberta à liberdade individual, e muito centrado na ordem do coletivo, definido
de cima para baixo”. (Souza, 1994:235)
Por fim, a autora aponta para algumas alterações que as lideranças sofreram em
decorrência do processo de luta pela terra. Algumas dessas alterações apontadas por ela são a
percepção da complexidade da luta pela terra; a necessidade de agir em defesa de uma
coletividade e em grupo; a incorporação de discursos políticos e do próprio Movimento; a
militância ativa no movimento. Um dos problemas que a internalização do discurso, a
militância abnegada ao movimento pode causar é o fato de assimilarem certas posturas ideais
a ponto de “(...) não perceber problemas cotidianos, práticos que deveriam ser discutidos nos
assentamentos. (...) Inclusive alguns trabalhadores não-líderanças comentam que “as
lideranças têm muito discurso, mas na prática tudo vira em nada””. (Souza, 1994:239)
Lideranças que se dedicam com afinco tendem a sacrificar sua individualidade em nome do
63
"(...) são caracterizados pela transitoriedade na passagem de uma condição infantil para a
vida adulta, passagem marcada pela aquisição da habilidade plena para o desempenho do
trabalho, pela busca de autonomia e de responsabilidade" (Andrade,1998:4).
A autora contextualiza o assentamento onde vivem seus sujeitos como sendo "(...)
espaços privilegiados para a ocorrência de práticas coletivas, nas quais os indivíduos,
através da relações interpessoais, compartilham conhecimento e experiências" (Andrade,
1998:42). Essa colocação da autora é importante porque mostra o assentamento como sendo
propício à aquisição de práticas políticas. Para ela, os assentados possuem uma especificidade
que os diferenciam dos demais trabalhadores no campo visto possuírem "(...) um saber social
elaborado a partir das práticas políticas vividas no movimento de luta pela terra"
(Andrade,1998:2). É nesse espaço que os jovens estudados pela autora vem "formando suas
consciências políticas" (Andrade,1998:42). Note-se que o assentamento estuda por Andrade
é o mesmo que fora objeto de pesquisa de L. C. Tarelho dez anos antes.
Levando em consideração o contexto em que esses jovens são socializados, a autora
considera ser pertinente supor que os jovens portariam uma consciência política relativamente
homogênea sem, com isso, cair no equivoco de supor que a consciência política tem um
desenvolvimento linear e ou que seja a somatória das consciências individuais. Tendo esses
pontos claros, a autora lança mão de procedimentos metodológicos que dêem conta de "(...)
revelar, através da imagem fotográfica, as representações individuais e coletivas dos jovens
sobre sua história de luta pela terra" (Andrade,1998:42).
Num primeiro momento, a utilização do recurso fotográfico como mediador do
processo de obtenção de seus dados possibilitou-lhe analisar as diversas versões da história da
população assentada de Sumaré I. Andrade dividiu seus sujeitos de pesquisa em duplas e deu
a eles uma máquina fotográfica com a qual foram capazes de construir histórias contadas em
dupla. A essas histórias contadas em dupla através dos referentes fotográficos, Márcia
chamou de "pequenas visões coletivas". E foi a partir dessas pequenas visões coletivas
baseadas nos referentes fotográficos escolhidos pela dupla, que a autora pôde analisar o
processo de formação do consenso egendrado pelo trabalho grupal, o qual culminou na
elaboração de um caderno de fotografias apresentado por ela em anexo ao trabalho. Márcia
pontua que "As fotografias, cuja característica é a estaticidade espacial e temporal, são aqui
tomadas em interação com a linguagem textual, no sentido da complementaridade entre as
linguagens que narram a história" (Andrade, 1998:73).
O caderno de fotografias foi analisado pela autora sob duas perspectivas. Na primeira
delas, Márcia analisa o material como "(...) produto de uma ação grupal que deu visibilidade
66
Márcia observa que tais representações trazidas por esses jovens parece legitimar a
idéia de que a luta pela terra traz em seu fundamento a crença de que as ações coletivas são
formas eficazes de se promover a reestruturação fundiária no Brasil. Assim, a questão da
prática social e política da luta aparece concretamente na participação organizada de suas
famílias nas atividade de luta, nas ações coletivas propostas pelo movimento dos sem terra.
Segundo a análise de Andrade, o tomar a estrada deixando a miséria da periferia para lutar por
um pedaço de terra de forma organizada, ilustra a ruptura da vida cotidiana e dá concretude às
palavras "ocupar, resistir e produzir".
Nesse contexto, os jovens identificam as grandes extensões de terra que não cumprem
a sua função social e os seu proprietários como os grandes opositores, que impedem a justiça
social e exploram o trabalhador rural. Tendo isso presente, os jovens trazem a sua
identificação com o universo ideológico, com as crenças e valores societais dos sem terra e
entendem que a ocupação das terras que não cumprem sua função social "(...) coloca-se como
uma ação "inevitável, necessária" para se contrapor à estrutura fundiária, concentradora da
propriedade e da riqueza" (Andrade, 1998:75).
Andrade vai realizando suas análises da consciência de forma a, na nossa opinião
informalmente, observar as sete dimensões da consciência que Sandoval viria propor em
artigo publicado em 2001. Durante a análise tanto dos referentes fotográficos quanto das
transformações ocorridas, durante os três anos de observação desses jovens, em suas
consciências políticas, Márcia observa tantos a mudança dos conteúdos de cada dimensão
quanto as possibilidades com que elas podem se articular durante as diversas configurações da
consciência política costadas por ela. Em seu trabalho pode-se observar o dinamismo com que
as diversas dimensões da consciência política se interrelacionam conduzindo o sujeito a
participar de ações coletivas.
Todavia, a dimensão que é mais evidente é a dimensão da Identidade Coletiva. Mas
mesmo sem serem nominadas explicitamente (ou melhor: sem que elas sejam identificadas
enquanto dimensões constituintes da consciência política), as outras seis dimensões estão
presentes. Quando Márcia discute ideologia no discurso dos jovens, é visível a dimensão das
68
Crenças e Valores Societais ou quando se fala dos opositores dos sem terra na luta pela terra
é clara a dimensão Adversários e Sentimentos Antagônicos por exemplo.
Na pesquisa de Andrade é possível ainda encontrar alguns indicativos, ainda que
parcos, a respeito da vida dos acampados e de suas famílias. Esses dados são obtidos a partir
das reuniões que os jovens acampados fazem com a pesquisadora; durante os processos de
confecção do caderno de fotografias e de confecção dos textos que dão suporte à história
contadas mediante os referentes fotográficos. Os dados resultantes desse processo são
analisados pela autora e refletem a memória coletiva9 desses sujeitos. Os jovens organizam
seus referentes fotográficos nos quais aparece claramente a história das
"(...) terras que devem ser ocupadas: terras improdutivas delimitadas por cercas e terras
abandonadas (...) Os referentes fotográficos são do acampamento, mostrando um barraco
amplo da cozinha comunitária construída pelos homens, e de pessoas num primeiro plano e
ônibus ao fundo ilustrando a articulação das famílias com os grupos de apoio. Esses laços
de solidariedade conquistados e acalentados pelas famílias, revelam para os jovens, além do
apoio, a necessária articulação campo-cidade, através de vários setores da sociedade, para a
realização da reforma agrária" (Andrade, 1998:77) (Grifos nossos)
A observação de Márcia aponta para uma espécie de parceria que passa pela partilha
no processo de formação da consciência. Essa partilha não se restringe apenas à partilha que
os indivíduos estabelecem entre si, mas também àquela que os sujeitos coletivos estabelecem,
a saber: família e família; família e MST; família e sociedade civil e MST e Sociedade civil. É
mediante a essa partilha que os laços identitários são construídos e fortalecidos. É também
mediante a essa partilha, que implica na ressignificação da história para qual cada sujeito tem
uma versão, que se constrói a memória coletiva.
Em nosso entender, Andrade ao utilizar-se das reuniões grupais e da construção dos
textos e do caderno de fotografia feitos coletivamente, acaba por desencadear, durante o
resgate da história feito pelos sujeitos da pesquisa, uma reelaboração coletiva da história dos
sem terra de Sumaré. Em outras palavras, ela propicia aos jovens um contato com a memória
coletiva da história da luta da população de Sumaré I. Sendo assim, podemos inferir que ela
acaba encontrando um importante subsídio para o estudo da consciência política dos jovens
9
Para Ansara (2001) Memória coletiva "(...) não é a somatória das memórias individuais. Um mesmo evento ou
um fato comum a um determinado grupo permite diferentes reconstituições, diferentes lembranças, pois a
memória é reconstituição psíquica que leva a uma representação seletiva do passado, que não é só do indivíduo,
mas de um indivíduo inserido num grupo e num contexto social e político. (...) Do ponto de vista psicossocial, a
memória coletiva aparece como um 'mosaico', onde o significado que cada um atribui ao mesmo evento tem
uma relação íntima com a identificação social". A esse respeito ver os trabalhos de Soraia Ansara, Repressão e
Lutas Operárias na Memória Coletiva da Classe Trabalhadora em São Paulo 2000 - Dissertação de Mestrado;
Memória Coletiva: Um Estudo Psicopolítico de uma Luta Operária em São Paulo, Revista Psicologia Política
vol. 1, Nº 2, 2001.
69
assentados em Sumaré I na memória coletiva que emerge da leitura das fotografias e textos
que produzem a ressignificação dessa história.
É a partir da leitura dessa memória coletiva materializada nos textos e caderno de
fotografia que Andrade compreende parte do processo que é objeto de seu estudo. Nesse
sentido entendemos que, ainda que Andrade não faça esse tipo de leitura, ela abre espaço para
uma releitura desse tipo. Um exemplo dessa possibilidade pode ser percebido quando a
autora diz que:
"A história coletiva vai emergindo sob dois aspectos. De um lado, a história vivida norteia a
escolha das fotografias como roteiro. Por outro lado, as imagens provocam, a partir da sua
leitura, novas representações: "Olha, esse trabalho é que devia mostrar o trabalho braçal..."
Na trama de significações, diferentes níveis de compreensão e de sentido vão se explicitando
através da linguagem, nas interpretações dos jovens. Em vista disso, a própria situação
coletiva impõe ao grupo a necessidade de reconhecimento comum da história vivida. (...)
Retomam os fatos vividos na luta pela terra, organizam as seqüências fotográficas,
verbalizam as suas opiniões, discutem sobre seus significados" (Andrade, 1998:80)
Quando Márcia passa a avaliar a produção coletiva que resultou na ressignificação das
pequenas visões coletivas, ela nos dá indicativos de que o processo de luta no qual as famílias
se engajam é determinante na formação de sujeitos coletivos e no desenvolvimento de práticas
sócio-políticas. As experiências vividas em cada família e as formas com que cada jovem se
apropria delas, com que cada um desses jovens "(...) viveram, guardando as especificidades
das experiências" (Andrade, 1998:108) confere a subjetividade o papel diferenciador das
configurações da consciência de cada um deles. Nas palavras da pesquisadora "O que temos
em questão são as subjetividades nas representações de cada jovem que os diferenciam,
conferindo-lhes diferentes níveis de consciência" (Andrade, 1998:108).
A autora conclui que a construção coletiva da história dos sem terra de Sumaré I além
de propiciar aos jovens uma melhor compreensão do que significa lutar pela terra e da
importância de sua inserção nessa luta contínua, gerando neles um comprometimento maior
com as questões coletivas do assentamento, possibilitou a ocorrência de um processo de
conscientização mediado pela apreensão das subjetividades através do processo grupal e da
reflexão da realidade social deles. Assim, o processo de conscientização é entendido pela
autora como sendo um "(...) processo em que os sujeitos se transformam, apropriando-se da
nova história. (...) As representações sociais se modificam através das interações sociais,
quando se tem a possibilidade de compartilhar conhecimentos, saberes, valores, atitudes e,
na dialética da relação indivíduo-grupo e grupo-indivíduo, a consciência configura-se em um
processo contínuo de transformação." (Andrade, 1998:108-09).
70
rotina diária é entendida. Dessa visão marcada pelo determinismo emerge a naturalização das
desigualdades e da dominação nas relações de poder da sociedade, configurando, assim, uma
consciência fragmentada.
A consciência Possível diferencia-se da consciência fragmentada por ter seu espectro
de relações ampliado. Nesta configuração da consciência o sujeito busca referências em um
outro que encontra-se para além das fronteiras familiares. Além disso, há por parte dos
sujeitos um certo nível de atividade crítica, de questionamento. Os caminhos a serem
seguidos por eles não encontram-se traçados a priori. Esse tracejar pode ser fruto de suas
escolhas. Aqui os sujeitos percebem que as demandas a serem supridas tanto no seu cotidiano
quanto no cotidiano da coletividade em que encontram-se inseridos podem ser questionadas e
modificadas por suas intervenções.
No caso dos jovens estudados por Andrade, escola é o espaço de socialização que
permite transcender a fragmetação e adquirir a capacidade crítica. Questões como "(...) a
adequação curricular nos cursos fundamental e médio, para os jovens do campo; a
defasagem entre as aspirações dos jovens (o curso escolhido ou a ocupação profissional
desejada) e sua real possibilidade de concretização" (Andrade, 1998:140) permeiam as
interrogações desses jovens.
Na configuração da consciência possível os sonhos estão presentes. Os jovens que
possuem esse tipo de configuração da consciência política proposta por Andrade traçam, sem
pressa, seus planos para o futuro. A universidade é o objetivo maior a ser alcançado. Suas
escolhas encontram-se marcadas por uma visão pragmática, de utilidade na sua vida cotidiana,
sem, no entanto, deixar de ter presente as dificuldades implicadas na luta por esses sonhos.
Segundo Andrade, "Os jovens julgam que o acesso à universidade pública é praticamente
impossível, pela exclusão do processo educacional a que são submetidos na questão da
aquisição do saber e da profissionalização. O ensino público não oferece condições de
prepará-los para a universidade pública. Ainda assim, arriscam sonhar com os curso de
Engenharia Agrícola, Direito, Administração e Engenharia Civil" (Andrade, 1998:142-43).
Andrade adota os conceitos de espaço comunicativo e espaço interativo da teoria de
Habermas (1985) para entender melhor os processos de conscientização social e política da
Segunda geração dos sem terra de Sumaré I. Tais conceituações também foram trabalhados
por Tarelho (1988) e Fernandes (1996) em suas pesquisa. Para a análise da consciência
possível eles se revelam fundamentais, pois a aquisição de posturas críticas e o aumento da
participação política desses jovens foi potencializada mediante a criação de espaços de
interação e comunicação. Nesses espaços os jovens tinham claro a questão do custo -
72
benefício para eles mesmos durante a mobilização dos recursos disponíveis entre eles. Assim,
os encontros semanais dos jovens e atividades como a elaboração do caderno de fotografias se
mostraram importantes para abrir espaços de reflexão a respeito de suas próprias privações.
A pesquisadora observa que nessa configuração da consciência existem noções de
estratificação social sem que, no entanto, esses sujeitos consigam conceituar a dinâmica e a
estrutural societal. Adversário ou não são reconhecido ou, quando o são, o são sem que a
relação existente entre o seu grupo e os adversários seja compreendida em sua real dimensão.
Apesar disso, seus sujeitos buscam romper com as visões naturalizadas em função de um
certo desconforto com esse tipo de visão de mundo. Assim, Andrade aponta para o fato de que
as consciências de seus sujeitos "(...) cada uma em seu nível, expressam a incorporação de
conteúdos críticos, com indícios político ideológicos, revelando um processo de
transformação no sentido da superação" (Andrade, 1998:172).
Porém, mesmo que a tendência seja de ampliação da consciência política a partir da
superação de certas visões de mundo naturalizada, ainda há a possibilidade de haver uma
reposição desse tipo de visão o que significaria uma não-politização. Nesse sentido a autora
aponta para o fato de que a intervenção de um mediador poderia auxiliar nesse processo de
ampliação da consciência política de sujeitos que tenham esse tipo de configuração. Segundo
Andrade, "A percepção da realidade imediata talvez precisasse ser interpretada por algum
mediador, que desse um sentido corrente às suas ações ainda sem direção" (Andrade,
1998:174).
A consciência transformadora proposta por Andrade está marcada, no nosso
entender, por uma delimitação clara dos conteúdos que compõe cada uma das dimensões da
consciência política segundo o modelo de Sandoval (2001). Na consciência transformadora
está presente a construção, por parte desses jovens, de projetos de vida permeados de uma
visão de mundo desnaturalizada e com senso crítico. Tais projetos surgem sem que projetos
pessoais se diluam nos projetos da coletividade. Antes o contrário: "É na confluência do
projeto pessoal com o projeto coletivo do assentamento que estes jovens traçam seus projetos
de vida" (Andrade, 1998: 197).
Os jovens que apresentam a configuração da consciência (política) transformadora são
capazes de compreender a dimensão histórica de suas vidas, da luta e do mundo no qual estão
inseridos. Eles trazem consigo a crença de que "a luta nunca pára", eles sabem que o caráter
histórico da luta pela terra "(...) ultrapassa o seu tempo histórico determinado" (Andrade,
1998: 198).
Andrade aponta para a transformação da realidade dos jovens que possuem essa
73
10
ITERRA é o nome do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária sediado no Estado do
Rio Grande do Sul, no município de Veranópolis. O ITERRA foi criado em 1995 pela Associação Nacional de
Cooperação Agrícola - ANCA e pela Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil -
CONCRAB com o objetivo de desenvolver atividades de formação e pesquisa relacionadas à reforma agrária. O
ITERRA realiza essas atividades através de cursos de formação e de escolarização baseados na pedagogia da
alternância, o que resulta em uma proposta alternativa de escolarização disponível à juventude rural. Andrade
avalia que "(...) a escola do sul rompe com o aspecto manipulativo em que se reproduz o pragmatismo rotineiro.
Contribui, dessa forma, para uma formação onilateral do ser humano, como uma proposta que se baseia na
profissionalização (formação técnica) vinculada a um contexto histórico, social, comprometido com um
"horizonte político", pautado em novos valores com a cultura da cooperação solidariedade, dignidade,
cidadania e o "cultivo da capacidade de sonhar", ter esperanças" (Andrade, 1998: 231).
74
adversários ou ainda daqueles que apresentam uma consciência possível e sonham de acordo
com aquilo que lhes parece razoável possível e identificam de maneira confusa seus
adversários; apresentam clareza em relação a questões político-ideológicas, a classe social e
em relação aos adversários a serem enfrentados por eles durante a luta.
Portanto, falar históricamente da luta pela terra travada pela classe trabalhadora do
campo significa para esses jovens "(...) dizer das injustiças, da violência, da impunidade e da
conivência do governo" (Andrade, 1998: 201). Isso se faz mais claro quando eles explicitam
suas posições em relação aos seus adversários. Para esses sujeitos existe uma nefasta aliança
do governo com os latifundiários. E através dessa aliança , " (...) nessa luta ideológica, farão
o possível para manipular as opiniões e crenças da sociedade civil, visando manter a atual
estrutura agrária" (Andrade, 1998: 203). Para contrapor-se a essas artimanhas dos
latigrileiros amigos do Estado, esses jovens vem na mídia o meio de dar visibilidade à
realidade bem sucedida que é o assentamento de Sumaré I e demais assentamentos frutos da
luta pela terra travada pelos companheiros do MST entre os quais eles se inscrevem. Questões
como a reforma agrária é vista por eles de modo crítico. Não a reduzem ao acesso a terra mas
sabem que para que ela seja implementada com sucesso é necessário que o Estado
disponibilize recursos para a produção dos assentados.
Quando do seu ingresso no ITERRA o dado motivador passava pela idéia de aventura.
Ao retornarem ao seu assentamento três anos depois, esses jovens inscrevem-se nessa
realidade como membros comprometidos com o coletivo assentamento. De aventureiros à
lideranças que querem implementar democraticamente uma cooperativa para dar novo
impulso ao assentamento. Ainda que muitas vezes o movimento viva a dicotomia posta
mediante atitudes ora democráticas ora autoritárias e tuteladoras que acabam por garantir a
negação do sujeito em prol do coletivo e, por isso, atue de forma opressiva sobre esses jovens,
eles lutam para garantir a concretização de seus sonhos pessoais e atender as necessidades da
coletividade.
A experiência da cooperativa pareceu-nos o lugar onde a experiência militante desses
jovens luta pela emancipação das tutelas por vezes opressivas do MST e baseia-se
concretizar-se mediante a construção democrática Apreendida do movimento. Essa realidade
marcada por antagonismos vivida no interior do MST é muito semelhante àquela vivida por
esses assentados no início de sua história quando a Igreja atuou num primeiro momento como
insentivadora de atitudes democráticas e num segundo momento como tutora autoritária do
futuro os neoo-assentados de então. Conforme Tarelho (1988) essa tentativa de tutelar as
decisões desses assentados fez com que a desmobilização desses sujeitos ocorresse. A
75
cooperativa vem, treze anos depois, acabou por constituir-se em uma espécie de promotora
de novos espaços interativos visto que os anteriores haviam se perdido ao longo desses anos
de assentamento. Assim, o momento de concretização dessa cooperativa suscitou uma "(...)
renovação, onde as pessoas foram convidadas , convocadas a agirem por meio de ações
voltadas para o coletivo, reavivando os laços de solidariedade e união que, ao que parece, o
tempo havia apagado" (Andrade, 1998: 218).
Dessa forma, pode-se dizer que a interiorização por parte desses jovens de novos
valores e atitudes decorrentes da matriz ideológica do movimento possibilitou a identificação
dos jovens com o coletivo MST "(...) engendrando consciências em processo de
transformação, mais críticas, mais politizadas ideologicamente" (Andrade, 1998: 232).
Durante o processo de construção dessa consciência esses jovens necessitaram romper com
crenças e valores societais cristalizados, naturalizados; foi necessário que romper com um
cotidiano que não lhes oferecia qualquer perspectiva positiva de melhoria de vida. Esse
romper com a alienação cotidiana possibilitou-lhes constituírem-se militantes do MST. Ao
romperem com esse cotidiano esses jovens passam a compartir com seus pais os ideais da
luta, complementando e dando asas a novos sonhos. Como observou muito bem Andrade,
essa complementaridade se dá na medida em que enquanto seus pais lutaram pela terra, os
jovens "(...) lutam pela continuidade e permanência na terra. Seus pais tornaram-se
agricultores assentados. Os jovens querem sua concretização enquanto empreendedores
rurais. Na esfera da militância, ao se tornarem sujeitos de suas próprias histórias, as duas
gerações se cruzam na luta pela terra, pela reforma agrária e por mudanças sociais"
(Andrade, 1998: 236)
Assim, quando lançamos um olhar na totalidade dos trabalhos até aqui analisados e o
nosso, vemos que caminham por trilhas semelhantes. Todos eles apontam para antagonismos
vividos no interior do MST; apontam para a existência de dois grupos distintos que estão
intermediados por um grupo de transição e apontam para a necessidade de se tratar das
questões referentes ao coletivo sem que a dimensão individual acabe por ser negligenciada.
Caminho teórico e constatações distintas dos trabalhos anteriores é encontrada na
pesquisa que segue. Wilka Coronado Antunes Dias (1999) em sua tese de doutoramento em
Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e intitulada "Vidas construídas na terra: O
ir e vir dos trabalhadores rurais" realiza, como já apontamos, o primeiro estudo que temos
conhecimento acerca dos trabalhadores rurais acampados e integrantes do MST e é o segundo
dos trabalhos anteriormente citados por nós. Os sujeitos de sua pesquisa não são devidamente
apresentados. Deles nada sabemos além de que eram trabalhadores volantes acampados da
76
objetivo maior do MST, pode não estar no âmago do que os trabalhadores individualmente
sentem, percebem e estabelecem como seus próprios objetivos" (Dias, 1999:7).
Como em seu trabalho há uma releitura da obra de D'Incao, Dias busca encontrar entre
as famílias reunidas em acampamentos do MST trabalhadores rurais volantes que vivenciaram
os processos de transformação no meio rural, promovidos pelo avanço do capitalismo no
campo. Para a autora, esses sujeitos poderiam ser os participantes de hoje do MST. D'Incao e
Dias realizaram seus trabalhos com a mesma classe de sujeitos e na mesma região.
Na busca de produzir uma análise dos aspectos psicossociais referentes ao trabalhador
rural volante, Wilka recorre as seguintes categorias: Sofrimento Psiquico no trabalho;
Identidade; Precariedade no Mundo da Vida e Desenraizamento.
A categoria Sofrimento Psíquico no trabalho proposta por Dias tem como base teórica
o trabalho de Dejours acerca do sofrimento psíquico em trabalhadores da indústria. Para ela,
ainda que não hajam estudos acerca do sofrimento psíquico no campo ele existe e se revela a
partir da impossibilidade de alcançar uma vida mais estável. Na realidade dos trabalhadores
volante essa dificuldade é mais constante, constata a autora. Wilka defende que “(...) o
trabalho rural (...) também se revela como uma atividade onde a relação homem-trabalho é
atingida, é afrontada pelo sofrimento psíquico; que é percebido na necessidade de deixar o
passado para retomar um outro trabalho ou enfrentar a falta dele e dar início a uma longa e
enigmática trajetória para o futuro” (Dias, 1999:79).
Em nosso entender a questão do sofrimento psíquico é tratada por Dias como algo que
rouba a capacidade de reorganização do sujeito. É como se ele não fosse capaz de superar
suas privações por não ter mais um sonho para viver. Daí a perspectiva sombria retratada pela
autora. Todavia não nos pareceram suficientes os relatos por ela apresentados para justificar
tal posicionamento. Além do mais, os estudos aqui apresentados e discutidos e os dados que
nós coletamos de acampados que são oriundos da mesma região e que também passaram pelo
acampamento Santa Rita, mostram que o sofrimento psíquico no trabalho11 não os impediu de
sonhar, antes o contrário, eles trabalham duro na expectativa de verem alguns de seus sonhos
e dos sonhos dos filhos concretizados. A filiação ao movimento social possibilita aos
trabalhadores rurais um resgate de uma identidade de trabalhador permeada por um
sentimento de dignidade.
Dias afirma que “Compreender os processos psíquicos, especialmente os relativos ao
11
Ainda que essa não seja uma das categorias por nós analisadas, entendemos que os relatos presentes nesse
trabalho podem subsidiar essa nossa impressão. Os sujeitos e os dados desta pesquisa aos quais nos referimos
neste capítulo serão apresentados nos capítulos IV e V.
78
sofrimento no trabalho, que para Dejours é ‘inevitável e ubíquo’, é preciso considerar que
este sofrimento tem raízes na história singular de todo o sujeito sem exceção” (Dias,
1999:90).
A compreensão da autora do que seja identidade está muito próxima de uma idéia de
personalidade. Identidade e subjetividade parecem, em diversas ocasiões, ser sinônimas. Dias
propõe que “(...) a identidade é a própria criação que a pessoa faz de si” (Dias, 1999:96). O
indivíduo é entendido pela autora “ (...) como um conjunto de relações dentro de um contexto
histórico. Na construção de sua identidade, o passado é referência de sua história” (Dias,
1999:96). Ao identificar na fala de um sujeito de pesquisa de D’Incao que a “(...) tentativa de
manter sua identidade contrapõe-se à necessidade de sobrevivência” (Dias, 1999:99) revela
que o entendimento da autora está distante de observar o sujeito coletivo e a identidade
coletiva dos trabalhadores volantes.
Desse modo, nossa compreensão do que seja identidade social é significativamente
diversa daquela apresentada por Dias. Vale lembrar que as inferências feitas pela autora
acerca do seja a categoria identidade, estão ancoradas no trabalho de Antonio da costa Ciampa
(1987), encontrando-se pouco desenvolvidas no corpo do trabalho e por isso é, para nós,
bastante frágil.
Precariedade no mundo da vida é a categoria utilizada pela autora para localizar o
sujeito sofredor no cotidiano. Ainda que o termo recorde a teoria habermasiana, a autora não o
cita em momento algum. A base teórica dessa categoria está no pensamento de Pièrre
Bourdieu. Dias relaciona a precariedade da vida “(...) a um conjunto de representações e
práticas geradas historicamente, como a divisão social do trabalho na categoria sócio-
profissional focalizada: a do trabalhador rural” (Dias, 1999:107).
Ao discutir essa questão, Wilka C. A. Dias, aproveita para analisar a precariedade da
vida do acampado. Seus dados indicam para um sujeito sem expectativa de vida. As
expectativas de vida desses sujeitos teriam ficado para trás e estariam sublimadas no
sofrimento psíquico positivado através da entrega ao trabalho para tentar melhorar o futuro
da prole. Contudo, para a autora tal tentativa provavelmente não vai resultar em melhoria real
e os filho desses sujeitos irão repetir as histórias de pais e avós. A precariedade vivida por
esses sujeitos já é parte de seu cotidiano e por isso romper com ela e buscar ascender é pura
ilusão.
Dias identifica na impossibilidade de manter a regularidade da vida escolar um dos
principais retratos da precariedade de vida experimentada pelos bóias-frias. É no modo
precário de vida e na permanente transição entre o campo e a cidade que se dá a
79
impossibilidade de estudar. Outro motivo atribuído pelos sujeitos pesqisados para que isso
ocorra, é a necessidade de auxiliar a família no trabalho volante. Vilka observa que “os
discursos se repetem – a vida no trabalho sendo priorizada em relação à na escola. Primeiro
é preciso trabalhar, produzir, sustentar a si e ajudar a sustentar a família, e depois pensar no
seu preparo profissional ou no investimento na instrução escolarizada” (Dias, 1999:112).
Na tentativa de mostrar o continuum existente entre a realidade agrícola vividas pelos
trabalhadores rurais volantes, Dias recorre a uma pesquisa desenvolvida por Martins (1991)
com crianças filhas de trabalhadores rurais que migraram em busca de uma vida melhor.
Segundo a autora, as constatações obtidas por ela e Martins já encontravam-se de algum modo
na obra de D'Incao (1975).
A leitura feita pela autora dos trabalhos de D’Incao (1975), Martins (1991) e dos
dados por ela mesma recolhidos no campo, tende a compreender os determinantes sociais
como imutáveis, intransponíveis. Para essa pesquisadora,
“Não é preciso muito para perceber que suas determinações estão presentes de forma
restrita aos padrões de escassez, de precariedade a que já se acostumaram, se adaptaram.
No cotidiano, condições precárias de vida fazem parte de seu espaço psicológico, com
origens na sua história pessoal e familiar e acabam determinando as expectativas para o
futuro que não se distanciam daquela já vividas por seus pais, por eles próprios e
provavelmente por seus filhos” (Dias, 1999:114)
Outra vez estamos em desacordo com Dias. Entendemos que a crença na mudança
social observada entre os sem terra esteja sustentada também na expectativa de transformar a
realidade social radicalmente. Em outras palavras a perspectiva de um futuro melhor é um dos
componentes que os mantém firmes na luta a despeito de toda a precariedade vivida por seus
pais, por eles ou por seus filhos. A luta pela terra prometida é a tentativa de dar concretude ao
sonho de uma vida melhor, é a possibilidade de romper esse ciclo, que no trabalho de Dias
significa, ao nosso ver, compulsão à repetição e renegação. Em nosso entender as vidas
construídas na terra são vidas construías na luta e cheias de esperança e de perspectivas
melhores do que aquelas vividas no passado.
Não negamos que a vida de privações deixe marcas profundas que muitas vezes são
repetidas em suas vidas. Porém, elas não são impeditivo à mudança. Terem ingressado nessa
luta é um sinal significativo dessa acertiva. Nesse aspecto Dias caminha em sentido oposto ao
demais trabalho aqui apresentados e ao nosso. Como Sousa, nós entendemos que a "(...)
simples participação em manifestações pode levar o indivíduo a repensar sua situação
concreta - realidade - na sociedade em que vive, assim como a sua prática social". Portanto,
80
caso as expectativas para o futuro desses sujeitos “(...) não se distanciam daquela já vividas
por seus pais, por eles próprios e provavelmente por seus filhos” (Dias, 1999:114), seu
ingresso na luta e a sua possível participação de empreitadas coletivas não teria sentido.
Baseando-se em Simone Weil (1996), Wlka busca na categoria desenraizamento,
discutir a vida dos acampados bóias-frias a partir da idéia de que seu trabalho volante impede
o enraizamento e mantém o desenraizamento iniciado com a migração desses sujeitos de suas
terras natal. Dois são os aspectos apontados por Weil e que Dias entende serem relativo ao
caso dos trabalhadores rurais. Dias refere-se ao desemprego e a instrução.
Para a autora, a expulsão do campo
Buscando apoio em Weil e D'Incao, Dias relaciona a ida do trabalhador rural para a
cidade em busca da estabilidade do emprego fixo ao afastamento das possibilidades de
enraizamento e, por conseguinte, considera a questão como desenraizamento. Assim, bóias-
frias e acampados que não conseguem adaptar-se a 'urbe', encontrar o emprego fixo que lhe
permita tornar-se 'cidadão urbano' e por isso encontram-se distanciados de suas raízes, "(...)
buscam apoio nos movimentos sociais organizados, numa tentativa se sentirem escorados,
sustentados emocionalmente pelo grupo" (Dias, 1999: 119).
Mas Dias, apesar de entender que os movimentos sociais atuam como uma escora
psíquica, não faculta a possibilidade desses movimentos sociais organizados atuarem na
reorganização das complexidades das configurações das consciências políticas. Entendemos
que o trabalho de Wilka, graças a defesa que a pesquisadora faz da impossibilidade do
trabalhador transformar os determinantes sociais, comete o equívoco de congelar a dinâmica
do processo social, tornando esses sujeitos imutáveis. Essa incapacidade de transformar a
própria história aparece, por exemplo, no trabalho de Dias quando ela lê no discurso desses
sujeitos a crença de que o fato de serem pobres é um impeditivo sine qua non no processo de
superação da condição humana a que esses indivíduos encontram-se presos.
Desse modo, ela propõe em nota de rodapé que quando o sujeito de pesquisa diz que
"trabalhador é gente fraco", essa referência "(...) significa gente pobre, sem nenhum recurso
financeiro ou preparação para avançar de um estágio de determinismo social claramente
81
definido para outro" (Dias,1999: 120). Seguindo esse mesmo raciocínio, ela articula as falas
dos sujeitos propondo que elas mostram "(...) uma expectativa em relação ao futuro que
continua presa ao seu universo, porque apesar de buscar essas raízes, não possui recursos
suficientes para trilhar um caminho mais promissor. Assim, como não há outro meio, outra
forma de trabalhar, sua história determina essa trajetória" (Dias, 1999:120). Para nós, esse
tipo de inferência implica na compreensão cíclica da existência humana, onde tudo acaba no
mesmo ponto em que começou. Nisto está nossa oposição: pobreza não é condição suficiente
para justificar o imobilismo social presente no texto.
Dias encerra a discussão dessa categoria de análise questionando, sem dar respostas, se
realmente ouve desenraizamento em algum momento. Para ela certo é apenas o fato de que
esses sujeitos estão em busca de raízes pessoais, familiares, geográficas e psicológicas
mediante as quais "possam ser percebidos mais concretamente" (Dias, 1999:123).
Segundo a autora, aparece nas entrevistas realizadas no acampamento Santa Rita "A
preocupação em manter a família no mesmo espaço (...), de manter o espaço familiar e de
trabalho; ter um pedaço de terra que lhe pertença e que lhe dê certa autonomia" (Dias,
1999:53). A visão da autora acerca da realidade dos acampados que tem na origem a
experiência no trabalho volante se revela um tanto quanto pessimista. Ela vê em seus dados a
presença de um "sentimento de impotência de não conseguir agir e de não saber para onde
ir" (Dias, 1999:54). Para a autora pais lutam em função do futuro dos filhos, vivem para lutar
por um futuro melhor para eles. Assim, a realização de sonhos pessoais são sublimados na
expectativa de realização através das conquistas da prole.
Não estamos de acordo com essa visão, pois, ao contrário do que verificou Dias,
encontramos entre os acampados do Carlos Mariguela que têm a mesma origem daqueles que
colaboraram com Dias, um enorme desejo de acabar com o sofrimento de toda uma vida e de,
mediante seu trabalho, ascender socialmente. A autora que vê esse sentimento de impotência
nesses sujeitos, vê na projeção do desejo a resposta para o aparecimento da vontade de lutar,
para a metamorfose que há aí: da impotência à vontade de lutar. Outra constatação feita pela
pesquisadora, diz respeito a "(...) necessidade de resgatar uma identidade de homem da terra"
(Dias, 1999:56)
Wilka pouco desenvolve suas constatações e traz poucas provas das evidências
verificadas por ela.
Ainda que Dias não tenha apresentado nem dito quantos foram os sujeitos, ela conclui
que o vínculo emocional deste trabalhadores com a terra mantém-se fortalecido "Mesmo
depois de décadas vivendo na cidade ou fora do meio rural" (Dias, 1999: 126).
82
"A vitória que emerge nas imagens também possibilita o registro de que não há sucesso
sem resistência, sem conflito. Assim, a seqüência evidencia uma trajetória de resistência
diante da inúmeras dificuldades que vão se impondo ao longo do tempo. Viabilizar
economicamente significa a permanência na terra. E permanecer na terra signuifica
dialogar com as exigências do mercado, requer políticas governamentais que amparem o
pequeno produtor. (...) As fotografias registram um tempo de avanços e conquistas,
complementado pelo texto escrito, tradutor de um tempo histórico que ultrapassa as
imagens e revela a continuidade da luta pela terra, através da emancipação econômica das
famílias. Assim, é história que continua. A fotografia da agrovila é a constatação da
melhoria de vida das famílias. A história que se iniciou com a imagem de casebres de
madeira, termina com as casas de alvenaria. É o resultado da reconstrução de vida dos sem
terra (...) Do lugar da miséria, da precariedade e da desesperanças, ao "lugar gostoso de
viver, cheio de vida ". (Andrade, 1998:79) (Grifos nossos)
12
O cursos e o Núcleo de Pesquisa em Psicologia Política e Movimentos Sociais foram ministrados e
coordenados pelo Prof. Dr. Salvador Sandoval durante o ano 2000.
84
CAPÍTULO III
Quando fala-se da qualidade de alguma obra, uma das primeiras, se não a primeira,
coisa a que se faz referência é ao fundamento. Se construímos um edifício, pouco importará
seu design caso não possua um alicerce capaz de suportar o peso da beleza. Não é diferente no
caso da construção deste trabalho: perguntamo-nos primeiramente a respeito da solidez das
bases teórica e conceitual escolhidas por nós para sustentar nossa pesquisa.
Pensamos que na construção de nosso alicerce, quatro pontos são fundantes, a saber:
a) as questões do Eu, b) da Identidade Coletiva, c) da consciência Política, d) da
Contextualização do Processo Político Grupal. E para que logremos construir bases sólidas,
propomo-nos assumir como referenciais teóricos para a reflexão de cada um dos pontos acima
propostos, as reflexões teóricas de Mead (1936); de Tajfel (1981), Melucci (1995) e Sandoval
(2001).
Escolhemos estes quatro pontos como elementos base porque pensamos que os
processos grupais, e de modo especial o que passo a denominar processos político-
identitários, estejam fundados na relação dialética entre Eu e Sociedade. É dentro de certos
contextos sociais que são engendrados os processos político-identitários nos quais e pelos
quais o sujeito é produzido e este, por sua vez, produz tais contextos sociais e, em última
análise, a sociedade. Ambos, eu e sociedade, interferem permanentemente naquilo que são,
promovendo, assim, mudanças continuas.
Ainda vale assinalar nesse momento que apesar de querermos conduzir este trabalho
lançando mão tanto da metodologia quantitativa quanto da qualitativa por compreendermos
que cada um desses procedimentos atingem flancos distintos em uma pesquisa, sabemos da
impossibilidade de fazê-lo durante o período do mestrado em função do tempo exíguo que nos
é dado para implementarmos nossos trabalhos. Assim, optamos pela metodologia qualitativa
por entendermos que ela seja mais apropriada para a melhor apreensão de nosso objeto de
pesquisa.
Entendemos por metodologia qualitativo o processo de produção de conhecimento que
se propõe investigar o objeto ‘subjetividade’. Importa esclarecer que a subjetividade para nós
é a própria realidade que se mostra simbolicamente mediante processos significativos e
sentidos subjetivos sejam eles vividos pelo sujeito ou pela coletividade. Desse modo
86
A teoria meadiana está inscrita entre o final do século XIX e o princípio do século XX.
Mead é influenciado pelo processo de mudanças pelas quais passava a sociedade norte-
americana, a saber: de uma sociedade eminentemente agrária, rural e religiosa a uma
sociedade urbana, industrial e laica. Esta passagem da antiga mentalidade agrícola a uma
nova, moderna, mentalidade industrial se deu via guerra civil americana.
Para nós o que importa analisar em Mead são as suas conceituações acerca da
Consciência, Self, Ato Social e Outro Generalizado. Na perspectiva da teoria meadiana o
objeto de estudos da Psicologia não é a consciência compreendida nos moldes da filosofia.
Para ele, o campo de estudo da Psicologia é mais extenso e a categoria `consciência' assume,
nesse contexto mais amplo, um caráter psicológico, sendo ele essencialmente social. Para
Mead é a experiência humana o objeto privilegiado da ciência psicológica, levando em
consideração o fato de que a experiência humana possui duas dimensões distintas, a pública e
a privada, sendo uma passível de observação por parte de um outro (Externa) e a outra oculta
a outros que não o próprio sujeito dessas experiências (Interna); é necessário se encontrar um
ponto de intersecção entre essa realidade exterior ao sujeito e a internalização dessa realidade
exterior pelo sujeito para que se possa falar de consciência em Mead2.
1
Com isso não pretendemos dizer que isso seja inacessível aos métodos quantitativos.
2
Ver Sass, 1992:124.
87
"(...) a classe de atos que implicam a cooperação de mais de um individuo, e cujo objeto,
tal como é definido pelo ato, é, no sentido de Bergson, um objeto social. Por objeto social
entendo aquele que responde a todas as partes de ato complexo, ainda que tais partes se
encontrem no comportamento de distintos indivíduos. O objetivo dos atos se encontra,
pois, no processo vital do grupo, e não somente no processo vital dos distintos
indivíduos". (Mead, 1972: 7, nota 7)
Assim podemos notar que a ação exterior do sujeito é precedida de uma ação
interior, mesmo que esta tenha sido formada por determinação exterior, durante a história
do sujeito. Há intencionalidade presente no comportamento humano no instante em que o
sujeito atribui valor a um objeto. Atribuir valor a objetos, é estabelecer finalidade para este,
e singrar as águas dos pressupostos de caráter teleológico. Então, ao atribuirmos valores a
um objeto, estamos determinando a ação do sujeito em relação a esse mesmo objeto.
Nesse sentido podemos dizer que um ato social é uma conversação envolvendo
gestos. Desse modo, a linguagem, funciona como meio de comunicação entre individuos da
mesma espécie; constitui a base socialmente genética da organização dos atos sociais e atua
como mecanismo de controle que o sujeito tem disponível para controlar sua ação em
relação ao mundo, constituindo-se em componente fundamental da individuação (cf.
Sass,1992: 138). Tais gestos para Mead podem ser significantes (conscientes) ou não
significantes (inconscientes). A esse respeito Mead escreveu que
3
Behaviorismo: O behaviorismo a que Mead se refere aqui não se trata daquele proposto por Watson. Mead
define o behaviorismo como Behaviorismo Social. Nas palavras de Mead: "a Psicologia Social é behaviorista,
na medida em que parte de uma atividade observável - o processo social dinâmico em devir ã os atos sociais,
que são seus elementos integrantes -, que há de ser estudada e analisada cientificamente. Mas não é a conduta,
no sentido de passar por alto a experiência interna do individuo, a fase anterior desse processo ou atividade."
(Mead 1934, apud Shellenberg, 1985). A expressão foi empregada no prefácio de Mind, Self and Society
escrito por Charles Morris, ex-aluno de Mead.0
88
interiorizado.
Tendo em conta as ideias até aqui expostas, podemos concluir que "(...) o self é a
internalização das experiêcias sociais que são incorporadas ao comportamento da forma-
individuo e adstrito à consciência, o seu caráter é essencialmente cognitivo” (Sass,
1992:224)5.
5
Ainda a respeito do que seja internalizar e interiorizar é esclarecedor distingui-los como sendo o primeiro termo
o que trata do processo estruturante da experiêrncia individual e o seguedo o que traz consigo o sentido de
conduzir ao interior do sujeito as estruturas extemas já ordenadas (cf. Habermas, 1987: 34).
6
Afirmar o contrario (que o eu é objeto do mim) implicaria em fazer com que a ação característica do eu fosse
deslocada para o mim, tornando o eu prisioneiro da memória, do conjunto organizado das atitudes dos outros
que o indivíduo adota para si mesmo e da ação isolada do mim. Fazer do eu objeto do mim significa, ao nosso
ver, fazer com que a capacidade de reação que o indivíduo tem frente às atitudes do outro internalizadas pelo
mim findem, pois não seria possível fazer com que as atitudes dos outros reelaboracem nossas própria atitudes.
Tal proposição acarretaria o fim do diaáogo interior estabelecido pelo eu e o mim e conseqüentemente a
impossibilidade da consciência de si proposta por Mead.
91
Enquanto podemos dizer que o mim está voltado ao passado visto que ele organiza
as experiências objetivas percebidas pelo sujeito e que mais tarde são assumidas pelo eu, o
eu está voltado para o presente e para as expectativas de futuro vividas pelo sujeito. Esta
relação se dá numa perspectiva dialética a qual coloca a ação do sujeito num devir continuo.
O self completo é formado unitariamente mediante uma relação de reciprocidade existente
entre o eu e o mim, a qual possibilita ao sujeito tornar a si um objeto para si mesmo.
Importa a essa altura dizer que para Mead a reflexão a resultante da intemalização
pelo sujeito de um reflexo generalizado da atitude do outro. A realidade é refletida
generalizadamente pelo individuo. Em termos filosoficos, o particular (o sujeito) eduz sua
capacidade reflexiva do reconhecimento do universal (o ato social). Fica estabelecido então
que há uma relação entre sujeito e sociedade que, por sua vez, é mediatizada por algo. Esse
algo é o Outro Generalizado7.
Segundo Sass, Mead entende que "(...) a cada experiência nos defrontamos com um
outroi sempre particular mas sempre generalizadamente. (..) Apenas como reflexo
generalizado da relação particular é que podemos compreender, da perspectiva social, a
relação das formas pai e filho". (Sass, 1992: 244-45) E então podemos compreender o outro
como "(...) uma atitude organizada e generalizada do real, ou como um outro generalizado
e é o outro generalizado que proporciona a unidade do self, ou a luta racional entre o eu e
o mim". (Sass, 1992: 245)
Na perspectiva de Mead "(...) a comunidade organizada ou o grupo social que
proporciona ao indivíduo sua unidade de self podem ser chamados de outro generalizado.
A atitude do outro generalizado é a atitude de toda a comunidade ". (Mead, 1972: 154)
Disso podemos concluir que o outro generalizado não pertence imediatamente ao sujeito
a mas à comunidade; o outro generalizado é a interiorização da atitude de toda a
comunidade.
No que refere-se às relações entre o sujeito e a sociedade podemos observar que elas
se estabelecem mediante à formação e evolução da autoconsciência ou consciência de si
adquirida pela formação do self. Em outras palavras, quanto mais o eu e o mim estiverem
integrados mais complexa poderá ser a consciência do sujeito.
Em nosso entender esta consciência é eminentemente política, é consciência política
e se constrói em relação a si próprio, ao outro generalizado e a sociedade. Quanto mais
7
Um exemplo apropriado para entendermos essa questão é a relaqao pai-filho. A esse respeito ver Sass,
1992:243-44.
92
articulados estiverem o eu e o mim, formando um self completo, mais política poderá ser
esta consciência desenvolvida pelo sujeito. Dizemos isso porque um individuo que nao
possua um self completo, nunca virá a ter uma consciência política com uma configuração
complexa. Contudo ter um self completo não significa o mesmo que ter consciência política
complexa.
Ter um self completo é a base para se obter uma consciência política complexa.
Quanto mais articulado estiverem eu e mim na formação do self, quanto mais desenvolvida
estiver a consciência de si no sujeito, mais condições o sujeito terá para elaborar sua
consciência política de maneira com que se torne mais complexa. Portanto, podemos pensar
em graus, configurações de consciencia que se formam de modo dialético ou segundo o
processo dialético vivido pelo eu-mim na construção do self. Podemos dizer que
paralelamente a estruturação do self completo podemos encontrar a formaqao da
consciencia politica visto que a estrutura do self está na base dessa última.
Em nenhum momento o autor nos permite pensar um sujeito dissociado da
sociedade. É na indissociabilidade (e por conseguinte na ausência de qualquer dualismo a
esse respeito) de sujeito-sociedade que podemos pensar essa dialética. O autor afirma que
"(...) qualquer tratamento psicológico ou filosófico da natureza humana implica a suposição
de que o indivíduo humano pertence a uma comunidade social organizada e obtem sua
natureza de suas interações e de relações sociais com essa comunidade como um todo e com
os membros individuais dela”. (Mead, 1972: 251)
Registramos ainda que, segundo a concepção meadiana, a sociedade é anterior ao
indivíduo e por isso a individuação é resultante dos processos socializantes e depende da
evolução histórica de nossa sociedade. Nas palavras de Mead verifica-se que "(...) se o
indivíduo obtém seu self apenas através da comunicação com os outros, somente graças à
elaboração dos processos sociais mediante à comunicação significante, então o self não
poderia preceder o organismo social. Este deve existir previamente”. (Mead, 1972: 233)
Vale frisar que essa existência prévia da sociedade em relação ao sujeito não consiste na
completa determinação deste pela sua relação com esta. Com essa postura, Mead caminha
com K. Marx que estabelece uma relaqao reciproca entre sociedade a individuo ao afirmar
que "(...) assim como a sociedade produz ela mesma ao homem enquanto homem, é
produzida por ele" ( Marx, 1977: 380).
Essa relação pode ser observada no fenômeno das instituições. Elas são o reflexo da
própria complexidade do ser humano. Elas não são necessariamente formas determinantes,
93
castradoras do sujeito. Elas existem na sociedade porque antes de tudo são e estão
internalizadas pelo sujeito. As instituições podem ser (e muitas vezes o são), além de formas
organizadoras dos comportamentos inter-sujeitos e dos sujeitos que as compõe, promotoras
da individuação do sujeito. A esse respeito lemos em Sass:
"É claro que a vida social organizada, entre outras formas, em normas (direitos e deveres) e
valores (morais e éticos), é internalizada pelo indivíduo em distintos graus. Da mesma
maneira, em cada momento históricoum indivíduo ou um grupo de indivíduos podem
traduzir melhor que outros indivíduos tanto a atitude do conjunto de pessoas que compõe a
sociedade, reforçando as posiqoes institucionais que sustentam, ou mesmo antecipando
profundas modificações nas instituições vigentes. Esse entendimento vincula diretamente o
papel da psicologia social à ação política dos indivíduos. " (Sass, 1992: 78)
Nesse trecho Mead quer mostrar que, normalmente, não se pode pensar que
liderança seja sinônimo de isolamento, de dominação e controle. Isso equivaleria a dizer que
uma liderança ou qualquer sujeito que assim estivesse estruturado estaria possivelmente
desprovido de um mim e, por isso, incapaz de internalizar a experiência vivida. Estariamos
falando de alguém com um self fragmentado, não completo, possuidor apenas de um eu e,
assim, de uma consciência política fragmentária, se não patológica. Mead enfatiza no texto
que o eu deve reagir partindo das atitudes organizadas dos outros pelo mim. E isso inclui o
outro na ação política de qualquer sujeito. Subtrair por quaisquer motivos que sejam o outro
da analise do comportamento político, social, é inconcebivel.
Assim, ainda que o político não articule as expectativas dos outros durante a
atividade, a construção de seu projeto (que em nossos tempos é orientada por estratégias
de marketing politico), não nos autoriza a pensarmos que ele as desconheça. Certamente
ele as conhece, pois só assim ele pode capitalizá-la a seu favor, convertê-las em
94
expectativas de outra ordem e que estejam de acordo com seu projeto. Dessa forma,
mesmo que ele não esteja articulando a demanda popular a seu projeto, o político está
inserindo o outro em sue atividade política.
Todavia é necessário que se diga que a análise meadiana é por demais idealista e
funcional. Isso fica claro quando observe-se que o autor supõe de maneira implícita que a
conduta do sujeito é eivada por uma conduta moral. A respeito dessa conduta moral
suposta por Mead na vida do sujeito, Sass afirma que "(...) na medida em que
implicitamente supõe uma moral na conduta das pessoas que está longe de ser um
produto natural das relações sociais; em conseqüência, supõe que o projeto político é a
expressão da expectativa dos outros "(Sass, 1992:232).
É ingenua a compreensão de Mead de que projeto político de um estadista seja o
reflexo, a expressão dos anseios da sociedade que se encontra sob a batuta do capitalismo.
Estamos de acordo com a proposição de Sass que entende que a visão meadiana acerca da
questão só faz sentido se pensarmos que "(...) um projeto politico que vincula organicamente
os seus membros e seus sintetizadores e executores com as atitudes e expectativas dos
membros da sociedade (...) faz sentido com os princípios que organizam as sociedades
socialistas e não com aqueles que organizam a sociedade capitalista" (Sass, 1992:233)
8
Ainda que não possamos tratar aqui de todos os autores que contribuem para a compreensão da chamada
questão identidade, podemos dizer que entre aqueles que seguem o caminho de G. H. Mead (1972) e I. Goffman
(1973; 1988) está Antônio da Costa Ciampa (1998 {1987}). O autor desenvolve detalhadamente suas posições
em “A estória de Severino e História do Severina”. Analisando a estória de Severino, personagem central da
obra “Morte e Vida Severina” do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, e a história de vida de um sujeito
cognominado ‘Severina’ o autor desenvolve a noção de identidade enquanto uma categoria psicológica. Segundo
o autor, identidade é um processo de metamorfose, é “(...) o processo permanente de formação e transformação
do sujeito humano, que se dá dentro de condições materiais e históricas dadas” (Ciampa, 1998: 1). Para
Ciampa a identidade como um processo (metamorfose) se dá em contraposição a uma estrutura estática do
indivíduo e subordinado ao interesse da razão. O autor se utiliza da literatura como chave de leitura (universal)
para lograr a compreensão da vida pessoal do seu sujeito (particular). Desse modo ele busca os fundamentos para
sua afirmação de que o universal se materializa no particular. Ciampa propõe-nos uma teoria de identidade tendo
como referenciais a dialética materialista, o interacionismo simbólico e a teoria dos papéis. Entendendo que o
indivíduo subjetiva as relações sociais, podemos concluir que o processo de formação e transformação do
sujeito é o processo de construção de identidade pessoal, o qual implica na sua articulação com a cultura e a
sociedade, dadas como a priori em relação ao sujeito, o que resulta numa síntese final que podemos chamar de
identidade social. Ainda segundo Sass a equivalência entre self e identidade feita por autores como Ciampa não é
satisfatória (Cf. Sass, 1992: 197-99). Ao entender a identidade como metamorfose, Ciampa assume o percurso
sugerido por Habermas (cf. Habermas, 1983; especificamente cap. II). Para Sass “(...) a noção de metamorfose
é a retrospectiva da individualidade, do que foi posto, enquanto que o self meadiano está voltado, pela ação do
95
origem nos estudos realizados acerca de categorização social e relações intergrupais. Entre os
estudos deste tipo, destacamos os realizados por Henri Tajfel. A discussão que faremos a
respeito da obra de Tajfel será com base em seu livro Grupos Humanos e Categorias Sociais:
Um estudo psicossocial (1982 e 1983). Para Tajfel a diferenciação entre grupos sociais não
podem ser entendidos apenas em termos econômicos, são necessárias outras formas de análise
para que se alcance um entendimento adequado dessa problemática. Para o autor articular a
estrutura das relações objetivas entre grupos com alguns processos psicossociais específicos
constitui um caminho para que se logre sucesso nessa empreitada.
Nessa linha, Tajfel propõe que as condições sócio-econômicas que levam grupos a se
rivalizarem para conquistar os mais diversos benefícios objetivos podem estar vinculados a
certas idéias depreciativas difundidas a respeito do grupo rival e internalizadas pelo grupo que
se rivaliza. Assim, podemos lançar mão da noção de estereótipos sociais proposta pelo autor.
A existência desses estereótipos sociais são a prova concreta de que os processos
psicossociológicos contribuem para a construção e entendimento de situações intergrupos
objetivas.
Convém agora distinguirmos as situações individuais da situações intergrupais. Em
determinados contextos sociais observamos que o sujeito não exerce sua ação de modo
individual mas sim baseado em seu grupo de pertença, que ele não se relaciona com o outro
como sujeito que é mas como agregado a dada categoria social, a qual se encontra deslindada
e definida. Tal diferenciação é fundamental para que tenhamos claro com que tipo de
identidade estamos trabalhando.
Mas como surgem os comportamentos intergrupos? Para Tajfel uma das condições
objetivas se caracteriza pelo fato de o sujeito crer que as fronteiras entre o seu grupo e o
grupo do outro são intransponíveis e até mesmo imutáveis. Uma segunda condição seria o fato
de o sujeito não admitir em hipótese alguma a possibilidade de deslocamento de um grupo
para outro.
Caso o sujeito admitisse a possibilidade de realização das premissas anteriores, já não
mais estaríamos frente a um comportamento intergrupo e sim frente a um comportamento
interpessoal. Esse tipo de postura indica a crença na mobilidade social, na compreensão de
eu, prospectivamente; ou, para usar uma imagem sartreana, a ação que ainda mão foi consumada e que está
voltada a morder o futuro” (Sass, 1992: 199). A contribuição fundamental de Ciampa está no fato de demostrar
empiricamente a importância que o conceito de metamorfose tem na compreensão do que seja identidade. Assim,
a identidade é um processo inacabado que tem seu início no nascimento do sujeito e só finda em sua morte.
Analisar a identidade como algo dado, que possa ser determinado por alguns fatores, momentos da história de
vida do sujeito, é fazer da identidade um processo desprovido do movimento, estático e, portanto, a partir dessa
perspectiva defendida pelo autor constitui um grave equívoco conceptual e metodológico.
96
que é de modo individual que se estabelece as transformações sociais. Quem assim age, age
de forma isolada, leva em consideração apenas as suas características pessoais.
Em oposição a crença da mobilidade social, encontramos a crença na mudança social.
O sujeito que admite as premissas anteriores, ou seja, a impossibilidade de se superar as
fronteiras entre o seu grupo de pertença e o grupo do outro e, portanto, a impossibilidade de se
migrar para o grupo do outro, vê como única forma possível para se superar o insuperável, o
movimento grupal, a ação coletiva. Toda e qualquer ação isolada do sujeito é rejeitada por
compreendê-la como ineficaz e infrutífera.
Tajfel conceitua identidade social como sendo uma “(...) parcela do auto-conceito
dum indivíduo que deriva do seu reconhecimento da sua pertença a um grupo (ou grupos)
social, juntamente com o significado emocional e de valor associado àquela pertença”.
(Tajfel, 1983: 290) Em outras palavras, essa definição demonstra a força que as categorias
sociais ou os grupos a que os sujeitos encontram-se vinculados são/estão capazes de exercer
sobre esses sujeito, refletindo, assim, na sua própria consciência de si (em termos meadianos)
ou na identidade pessoal (como propõe Ciampa)construída continuamente por esse sujeito.
Essa força e forma da influência exercida por categorias sociais ou grupos de pertença está
necessariamente vinculada ao contexto ou situação social vivido pelo sujeito.
Essa vinculação nos explica porque certos grupos de pertença ou certas categorias
sociais destacam-se mais do que outras na construção dessa identidade social. Acresça-se a
isso o fato de que a participação do sujeito em diversos grupos ou categorias sociais contribui
de modo positivo ou negativo à percepção que o sujeito vem a fazer a respeito de si mesmo.
Assim, encontramos na base da identidade social a noção de comparação social (cf.
Festinger, 1954).
Em função da participação do sujeito no tecido social não se dar de maneira exclusiva
– num único grupamento ou categoria social – mas sim de modo eclético – de muitos grupos
ou categorias sociais que nem sempre são convergentes -, podemos dizer que cada
grupamento ou categoria social a que o sujeito encontra-se ligado, funciona como uma
espécie de lente social que permite ao sujeito compreender si próprio e a realidade social, e
então inserir-se nela. A combinação desse conjunto de lentes sociais é que determinarão com
qual matiz cada sujeito enxerga o contexto social em que vive.
Para compreendermos com qual matiz cada sujeito (e grupo) percebe a si e ao
contexto social em que se encontra inserido, é preciso que analisemos a combinação das
lentes sociais utilizadas por eles (sujeito e grupo). E isso só é possível se admitirmos que cada
sujeito se identifica mais ou menos com certos grupos ou categorias sociais. De acordo com o
97
nível de identificação e, por conseguinte, de comprometimento que esse sujeito tem com dado
grupo ou categoria social é que se determinará o peso de um grupo a ou de uma categoria na
construção de sua visão social, da identidade social assumida por ele. Isso significa dizer que
esse sujeito atribui aos grupos ou categorias a que pertence significado emocional e de valor.
Essa atribuição de significado emocional e valorativo aos grupos ou categorias sociais de
pertença do sujeito tem suas raízes nos processos socializantes e no contexto social vividos
pelo sujeito.
Outrossim, o sentimento de pertença a um grupo ou categoria social dependem de um
conjunto de condições que facilitam a percepção de aspectos comuns, que diferenciam um
grupo ou categoria de outro grupo ou categoria. Por sentimento de pertença compreendemos o
resultado da relação existente entre o nível de identificação que o sujeito tem com certo grupo
ou categoria e o nível de comprometimento com tal grupo ou categoria produzida por esta
identificação do sujeito com este grupo ou categoria. Para Tajfel tanto o sentimento de
pertença vividos pelo sujeito quanto a atribuição de significado emocional e de valor feitas
pelo sujeito aos seus grupos ou categorias de pertença contribuem efetivamente para a
elaboração da visão que o sujeito tem de si e do mundo em que vive.
Contudo não se pode deixar passar desapercebido o fato de que certos grupos ou
categorias sociais são previamente atribuídos ao sujeito fazendo com que ele se encontre neles
inserido de antemão. Por isso grupos ou categorias sociais como religião, raça, família...
poderão variar positiva ou negativamente na atribuição de significado emocional e de valor
feitas a eles pelo sujeito. Tais variações são decisivas para a compreensão dos movimentos de
filiação e deserção do sujeito a certos grupos ou categoria sociais a que pertence.
Ao que se refere à deserção de um grupo ou categoria social, podemos dizer que ela se
dá a partir do estabelecimento da comparação entre os grupos ou categorias sociais de
pertença do sujeito e outros grupos ou categorias sociais. Aqueles grupos ou categorias sociais
que não obtiverem um significado emocional e de valor positivo ou que não forem capazes de
mante-lo positivos sofrerão um processo de esvaziamento ou psicológico ou objetivo ou ainda
a ambos os processos. Para que um sujeito filie-se ou se mantenha filiado é mister que o
grupo ou categoria social seja capaz de preservar adequadamente a sua identidade social,
motivo da filiação do sujeito a ele. Conclui-se, assim, que filiação e deserção estão
diretamente relacionados à direção que tomará o significado emocional e de valor atribuídos
pelo sujeito ao grupo e categoria em questão durante o processo de comparação.
Para que os membros de um grupo ou categoria social tenham sua identidade social
preservada em dadas situações sociais, é fundamental que o grupo ou categoria social
98
mantenha-se distinto dos outros grupos ou categorias sociais. Essa distinguibilidade necessita
ser positiva para que não ocorra a deserção. Do contrário, será necessário que o grupo ou
categoria recorra a atividades sociais (ações coletivas) relevantes.
Tajfel constata que as características do grupo social de pertença do sujeito são os
fundamentos da categorização social. Características como cor da pele, cultura, nível
econômico, poder, status, etc. são significadas emocionalmente e valoradas ou não frente a
comparação dos grupos de pertença do sujeito com os grupos dos outros.
Essa análise nos leva a compreender a construção da identidade social como um
processo cognitivo. A esse respeito Freitas (1994) afirma que “(...) é esse processo cognitivo
que instiga a integração e a ação coletivas e, nesse sentido, determina a emergência de
processos sociais”.(Freitas, 1994:36) Assim podemos dizer que quando há o
compartilhamento de uma mesma identidade social por diversos sujeitos que pautam suas
ações por meio dela, temos então a formação de um grupo psicológico concreto.
Quando um grupo percebe que tem características comuns, que possui um fim comum
e que tais características e tal fim é que o faz ser um grupo enquanto tal e em contraposição
aos demais grupos existentes, e que temos um grupo objetivo. Segundo Tajfel
“(...) a identidade social dum indivíduo concebida como conhecimento que ele tem de que
pertence a determinados grupos sociais, juntamente com o significado emocional e de valor
que ele atribui a essa pertença só podem ser definidos através dos efeitos das categorizações
sociais que dividem o meio social do indivíduo no seu próprio grupo e em outros” (Tajfel,
1983: 294)
“(...) a percepção pelo ator da discrepância entre as suas expectativas de valor e as suas
capacidades de valor. Expectativas de valor são os bens e as condições de vida a que as
pessoas se consideram legitimamente habilitadas. Capacidades de valor são os bens e as
condições de vida que elas pensam poder obter e manter... A ênfase ... está na percepção da
privação, as pessoas podem ser subjetivamente privadas ao nível das sua expectativas,
mesmo que um observador não as considere em estado de necessidade. De igual modo, a
expectativa do que o observador considera uma pobreza absoluta, ou "privação absoluta"
não é necessariamente considerado incorreto nem irremediável por aqueles que a vivem”.
(Gurr, 1954: 24 apud Tajfel, 1983:298)
99
Tajfel afirma que do ponto de vista psicológico a privação relativa é o mesmo que uma
“expectativa falhada” e opera como uma variável dependente do comportamento social. Sua
ação pode ser identificada em dois níveis do comportamento social. O primeiro nível é o
pessoal e o segundo o interpessoal. A respeito do nível interpessoal, se faz relevante dizer que
ele é a dimensão que “(...) diz respeito às comparações com os outros; e é evidente também
que também ela pode abarcar uma dimensão temporal; de fato é muito provável que o faça
quase sem exceção”. (Tajfel, 1983: 297) Sua relevância está no fato de ela estar mais
diretamente relacionada com os processos de comportamento intergrupo.
Para que existam realmente para o sujeito, para o grupo ou categoria social privações
relativas, é necessário que essas sejam percepcionadas por esse sujeito, por esse gruo ou
categoria social via comparação interpessoal ou intergrupal. Como já parece estar claro, é o
processo comparativo o instrumento denunciatório da existência de privações relativas. As
privações relativas vividas por um grupo ou categoria social podem chegar a originar ações e
movimentos por mudanças sociais que lhes respondam às necessidades.
Contudo, caso as privações expostas pelo processo de comparação forem consideradas
ilegítimas pelo grupo ou categoria social, estabelecer-se-á no interior do sujeito, do grupo ou
categoria social um conflito ocasionado pela tomada de consciência gerada pelo atrito entre
ideal e real produzindo uma sensação de ‘empobrecimento’ do sujeito, grupo ou categoria
social. Tal situação traz a tona a dialética da contradição vividas pelo ser humano e seus
grupamentos e categorias sociais. A contradição gerada pelo processo comparativo só poderá
ser superado caso sujeito, grupo ou categoria social tiverem e puderem manter uma imagem
positiva de si mesmos.
Por essa razão (de não poder manter a imagem positiva a seu próprio respeito) é que
muitos daqueles que pensamos serem mais frágeis, estarem nessa ‘condição de empobrecidos’
não reagem às contradições internar e externa vividas por eles, buscando na mobilização
coletiva, nas ações coletivas ou nos movimentos sociais uma forma de superarem suas
privações. Com isso podemos dizer que há um hiato entre a teoria e a realidade: nem sempre
aquele sujeito, grupo ou categoria social que teoricamente está mais propício à ações coletivas
ou movimentos sociais9 acaba por vincular-se a eles.
9
Entendemos que nesse momento seja importante comentar que, segundo as conclusões a que Reicher (1984)
chegou em sua pesquisa a respeito de “A Rebelião de St. Paul" utilizando o conceito de identidade social de
Tajfel, nas ações coletivas o sujeito age como um sujeito histórico e não a partir de concepções pessoais. Com
isso podemos concluir que há uma internalização pelo sujeito das concepções ideológicas acerca do mundo
social. As ações coletivas são a expressão de uma compreensão ideológica do mundo em que esse sujeito se
encontra inserido. Tanto o comportamento coletivo pode moldar a identidade social quanto esta pode moldar o
100
Então é nesse contexto que a identidade social proposta por Tajfel pode ser
compreendida como sendo “(...) um mecanismo causal interveniente em situações de
mudança social "objetiva" observada, antecipada, temida, desejada ou preparada pelos
indivíduos envolvidos”. (Tajfel, 1983: 314) Tajfel vê três tipos situacionais distintos e
relevantes e relativas às mudanças sociais, a saber:
1) A situação marginal. O grupo tem dificuldades em definir o seu lugar social em função das
contradições vividas pelos sujeitos em questão.
2) Os grupos socialmente e consensualmente aceitos como superiores a determinados níveis
sentem sua posição privilegiada ameaçada.
3) Os grupos socialmente e consensualmente aceitos como inferiores a determinados níveis
vivem situações ou em que os membros do grupo se apercebem da ilegitimidade da condição
inferior a que são e estão relegados; ou dão-se conta de que é possível reverter a condição
inferior a que são e estão relegados caso implementem ações que lhes propiciem alternativas a
seu atual lugar social. Mas o mais comum é que porque os membros do grupo se apercebem
da ilegitimidade da condição inferior a que são e estão relegados e dão-se conta de que é
possível reverter a condição inferior a que são e estão relegados caso implementem ações que
lhes propiciem alternativas a seu atual lugar social e vice-versa.
Observa-se assim, que a construção de estratégias de luta, de ações coletivas e de
movimentos sociais são precedidas de processos psicossociais que como que determinam a
viabilidade, a qualidade e força das ações coletivas e movimentos sociais adotados por um
sujeito, grupo ou categoria social. A construção da identidade grupal se dá a partir de
elementos identificatórios reconhecidos pelos sujeitos que comporão o grupamento. Tais
elemento terão sua maior ou menor relevância no cenário grupal dependendo de qual seja a
sua capacidade aglutinatória. É a percepção desses elementos que possibilitam a construção
da identidade grupal.
O mecanismo que possibilita a efetivação desses momentos que assinalamos
anteriormente, é o da categorização social. Através da categorização social efetua-se a
checagem de características compartilhadas pelos membros de um grupo. Esse compartilhar
de características acontece num movimento de mão dupla. Em uma das mãos está o modo
como o sujeito percepciona e categoriza aos outros. Temos aqui um movimento que se dá de
fora para dentro. O movimento que ocorre na outra mão é o movimento da auto-atribuição.
Quando o grupo estiver construído, deverá manter positivamente sua distinguibilidade
comportamento coletivo. Por isso o comportamento coletivo tem um lugar importante durante o processo de
elaboração e ideologias sociais.
101
segundo a valoração que recebe de seus membros e contrapondo-se a valoração atribuída pelo
grupo dos outros.
Nesse contexto podemos concluir que é a partir da significação e percepção da
imagem de si que um sujeito, um grupo ou uma categoria social possui e da forma como essa
imagem se relaciona com a imagem do outro, do grupo dos outros ou da de outras categorias,
que veremos o desenrolar e a posterior conclusão do jogo que acontece entre os movimentos
de deserção e adesão e protesto.
10
Apesar de não estarmos trabalhando com esse enfoque, parece-nos importante fazermos aqui um registro
cuidadoso sobre a recuperação do conceito Durkheimiano de Representação Coletiva proposta por Moscovici
(1988). Moscovici parte do conceito Durkheimiano de Representação Coletiva para construir o seu conceito de
Representação Social, começamos por verificar o que seja Representação Coletiva para Durkheim. Quando
Durkheim (1898) estuda a origem das religiões em sociedades primitivas australianas ele acaba por desvelar
quão importantes e especificas podem ser estas Representações Coletivas. Para o autor, representações coletivas
são manifestações psicológicas e sociais globais. Nesse contexto, enquadram-se as opiniões, saberes partilhados,
os sistemas de pensamento que caracterizam um modus operandi através do qual dada sociedade pensa e se
perpetua. Mediante as representações coletivas Durkheim busca demonstrar que o pensamento social se impõe
ao pensamento individual e conseqüentemente a condição transcendente da sociedade frente ao indivíduo
particular: a sociedade é instituída a partir do ideal da coletividade e, portanto, o pensamento organizado só é
viável se admitirmos como fundamento para este a vida social. Sendo assim, as representações coletivas se
impõem aos indivíduos e são estáveis e objetivas na medida em que são assimiladas as evidências sociais. Elas,
ainda, detém um caráter autônomo por não serem passíveis de homogeneização e nem de redução ao real pelo
fato de serem compartidas socialmente. Segundo Moscovici, Durkheim contrapõe individual e coletivo, sujeito e
sociedade criando uma estrutura dicotômica para seu conceito de representação coletiva. Nesse modelo no plano
particular Durkheim pensa uma Psicologia e no plano universal uma Sociologia, impossibilitando a existência de
uma Psicologia Social que volte seu olhar e fazer para a relação entre sujeito e sociedade e seus respectivos
lugares comuns. Com isso a representação coletiva assume um caráter de unicidade, relacionando-se a um grupo
no qual nenhuma outra representação pode prevalecer. É essa condição que garante a estabilidade das
representações coletivas, sendo possíveis mudanças de caráter excepcional e em condições extraordinárias.
Moscovici reformula a representação coletiva Durkhemiana estável e imóvel e propõe o conceito de
representação social. Esta é transformada no contexto social em que se origina num processo continuo. Para
Moscovici a representação social acontece dentro do grupo e traz em si um caráter de diversidade e pluralidade.
Ao elaborar o conceito de representações sociais, o autor tinha em mente: "(...) representações que estavam
sempre se fabricando no contexto da interrrelações e ações que, por sua vez, estavam se processando. Esse era
um pré-requisito para vinculá-las a importantes fenômenos do mundo moderno. (...) Não é bem a contribuição
individual ou do grupo para estas representações que permite-nos chamá-las de representações sociaios; é o
fato de que elas foram moldadas por um processo de troca e interação" (Moscovici, 1988:219). A teoria das
representações sociais é uma teoria que trata da produção de saberes sociais, especialmente os saberes cotidianos
e pertencentes ao mundo vivido; que se propõe analisar a construção e transformação do conhecimento social.
Segundo a compreensão de Sandra Jovchelovitch, ao adaptar o conceito de representações coletivas Moscovici
102
Tajfel (1981) quando ele discute as identificações grupais, , as discussões propostas por Prado
(2000; 2001) acerca das teorias de ação coletiva e, finalmente, o trabalho de Melucci que
propõe uma teoria propriamente dita sobre o que seja a Identidade Coletiva (1995).
Ainda que já tenhamos pontuado anteriormente o pensamento de Tajfel, entendemos
que seja importante recapitulá-lo, porém, dando ênfase à questão coletiva presente em sua
teoria de identidade social. Em Tajfel encontramos as relações sociais constituídas a partir do
reconhecimento das privações de cada sujeito e posterior reconhecimento destas no outro, o
que resulta no estabelecimento de uma identidade social calcada em um sentimento de
reciprocidade. Privação, reconhecimento do outro e reciprocidade são como que condições
determinantes para a mobilização e manutenção de grupos sociais. Contudo, isso não nos
permite entender satisfatoriamente a construção de ações coletivas de caráter político.
A teoria da identidade social não traz, ao nosso ver, um componente político ou
politizador que nos permita compreender estudar os processos políticos existentes nos grupos
sociais e nas relações intergrupos sem estarmos dependentes do sentimento de privação.
Assim diferentemente de outros atores, pensamos a obra de Tajfel como sendo pautada muito
mais em pressuposto psicológicos do que psicossociológicos.
Diferentemente de Tajfel, Melucci (1995), ao dedicar-se ao estudos das ações coletivas
e da identidade coletiva, introduz o dado político que carecia a teoria de Tajfel. Prado (2001),
a partir da leitura da obra de Alberto Melucci, afirma que
“(...) existem nas sociedades da informação, lugares de poder difusos que podem se
entendidos como a ‘capacidade de dar formas’ aos códigos comunicativos no sistema social.
O real é tido, portanto, como um jogo complexo e intenso de disputas por formas de
significação. Isto se torna relevante pois nos permite pensar que as ações coletivas não
emergem somente pela exclusão do mundo político institucional ou mesmo do mercado, mas
também por intencionar a criação de uma realidade múltipla, ou a constituição de novos
elementos culturais, que podem exigir novos movimentos de institucionalização. Nesse
sentido, duas questões se fazem fundamentais: a identidade coletiva como um processo de
criação de significados coletivos, de ‘dar forma’ à ação social (Melucci, 1996), e de
referências e pertencimentos que favorecem a participação dos sujeitos em ações coletivas; e
entendeu que,"(...) em sociedade sociedades como as nossas, perdem o poder aglutinador que detinham quando
Durkheim as identificou. As representações coletivas de Durkheim têm estatuto de "fato social" no sentido hard
da palavra; ainda que produzidas por sujeitos sociais, adquirem um caráter exterior à ação humana e
condicionam todos os indivíduos das sociedades em que estão presentes a pensar a partir de suas categorias. Ao
contrário de sociedades tradicionais, que mantém seus saberes firmemente enclausurados nas mãos de sujeitos,
rituais e objetos sagrados, as sociedades modernas se caracterizam pela reflexividade dos saberes. Nada mais é
"naturalmente" aceito, tudo está em questão, ou como Marx diria, tudo que é sólido se desmancha no ar. Assim,
Moscovici põe o conceito em movimento e o muda para representações sociais, já que sua preocupação
principal era justamente dar conta de como uma mentalidade coletiva se modifica na fluidez e maleabilidade
das formas sociais contemporâneas" (Jovchelovitch, 1998:56). Para elaborar seu conceito, o autor procurou
fundamentos outros que não estavam presentes no pensamento de Durkheim. Autores como Lévy-Bhrud
(antropólogo e psicólogo), Freud, Piaget e Vigotsky são alguns dos quais Moscovici lançou mão para pensar sua
teoria da Representação Social.
103
o político como um espaço não institucional definido a partir das disputas por significar o
real bem como as identidades, elas mesmas.” (p.167)
Ainda que, como apontou acima Prado, Melucci fale sobre a identidade como sendo
uma ‘capacidade de dar forma’11 aos significados, de significar a realidade e Moscovici veja
na sua Teoria das Representações Sociais função semelhante, é apenas até aí que as
semelhanças chegam: na simbolização que os sujeitos são capazes de fazer da realidade. De
resto qualquer semelhança é mera coincidência.
Para Melucci o que existe é um processo de identização na construção desse Nós,
dessa identidade coletiva, a um permanente processo de regulação e emancipação. Em outras
palavras, o que queremos dizer é que a identidade coletiva é um processo permanente que
regula as relações entre os sujeitos (o que nos leva a pensar na regulação das redes sociais, na
solidariedade construída entre os sujeitos); entre eles e a realidade social na qual encontram-se
inseridos. A capacidade emancipadora desse processo identidade coletiva advém dos
conflitos, os quais são vistos de modo positivo, como sendo um importante componente no
processo de construção identitária e para o equilíbrio social.
Na medida em que os sujeitos constituintes desse discurso 'Nós' reconhecem o ‘Eles’
(que também possuem o seu próprio discurso Nós) e são capazes de negociar as diferenças
percebidas no instante do mútuo reconhecimento, o conflito se torna positivo e emancipador.
Como o reconhecimento do outro, do ‘Eles’ é constante, a emancipação também se torna
permanente nesse processo identidade coletiva. É importante saliente que a emancipação não
é um fim no processo identidade coletiva mas um dos componentes que o tornam dinâmico.
Assim, entendemos que a identidade coletiva é, para Melucci, um processo de construção de
significados, de constituição do discurso Nós. Tal processo se estabelece mediante as relações
que os sujeitos detentores desse discurso Nós estabelecem com a realidade externa a eles
próprios e pela qual são capazes de se diferenciar. A essa realidade externa Tajfel chama
‘grupo–do-outro’. No contexto melucciano podemos denominá-la ‘Eles’.
Portanto, compreendemos que o ponto que estabelece a real diferença entre as Teorias
de Tajfel e Melucci é a característica mais psicológica de Tajfel e mais sociológica de
Melucci, o que confere um distinto lugar à arena política em cada uma das teorias: em Tajfel
as questões políticas são circunstancias enquanto para Melucci o processo identidade coletiva
não se poderia consumar satisfatoriamente.
11
Para contextualizar as questões levantadas por Prado acerca da visão de Melucci sobre a sociedade como
sociedade da informação, sugerimos a leitura do artigo Individualização e Globalização: Novas Fronteiras para
a Ação Coletiva e Idntidade Pessoal. Publicado no Hitotsubshi Journal of Social Studies 27 special Issue.
104
“(...) a percepção que o indivíduo tem de sua capacidade de intervenção para alcançar seus
interesses, um fator estreitamente associado ao conceito de consciência no sentido
voluntarista, e certamente implícito nas explicações causais da ação coletiva. (...) Essa
dimensão (...) representa o componente de conduta da consciêcia, no sentido de focalizar o
rapport dos indivíduos com formas de ação sancionadas pelo mesmo na defesa de seus
interesses.” (Sandoval, 1994:67-68)
12
norte-americano radicado no Brasil desde 1976 e que atualmente é Professor na Universidade Estadual de
Campinas e na Pontifícia Universidade católica de São Paulo.
13
Para maiores etalhes do esquema tourainiano, consultar La conscience Ouvrière. Paris: Seuil, 1966.
106
Nós observamos na obra do autor uma aproximação significativa com a obra de Mead
no que se refere a consciência de si, já que toda a consciência de si é social e por ser social
pode vir-a-ser política. Assim, em tese toda a consciência de si é política. A aproximação que
fazemos dessas duas concepções teóricas se justifica pelo fato de partirem de algumas
premissas comuns: a reciprocidade existente entre sujeito e sociedade, a mediação desse
processo pela identificação e apropriação da atitude do grupo de pertença e a possibilidade de
se aprofundar progressivamente esta consciência política.
Quando dizemos que toda a consciência de si é política estamos nos referindo ao fato
de no processo de interiorização das estruturas sociais, das instituições, durante a apropriação
do outro generalizado, é mister que o eu faça a sua leitura das estruturas, instituições e do
outro generalizado com o qual o mim teve contato e 'propõe' ao eu interiorizar. Essa leitura e
conseqüente releitura feita pelo eu (a qual implica na relação de mão dupla entre o sujeito e a
sociedade), estaria impregnada de posturas políticas advindas do processo de estruturação do
self (ou autoconsciência ou ainda consciência de si).
Mas enquanto Mead não destaca a especificidade da ação e consciência política14, o
aspecto político, na estrutura geral da consciência de si fazendo com que esse caráter político
do self seja como que uma condicionante implícita à existência do próprio self; Sandoval
procura discriminar, enfatizar, na consciência seu caráter político. Ainda que o processo de
estruturação da consciência traga em si um caráter político, isso não implica na necessidade
de que o sujeito seja um sujeito politizado. Assim, a consciência política refere-se a
politização do sujeito, às ações politizadas do sujeito e, em ultima análise, ao
desenvolvimento consciente do seu caráter político. Segundo o autor consciência Política é:
14
Importa fazer notar que no instante em que Mead faz da democracia uma condição necessária para o
desenvolvimento do self, ele está abrindo espaço para que pensemos o próprio self não apenas socialmente mas
também políticamente. Contudo o possível aspecto político do self não chega a ser mencionado pelo autor no
decorrer de sua obra.
108
com sendo 7 dimensões psicossociológicas que se articulam. São elas a Identidade Coletiva;
as Expectativas e Convicções Societais; os Sentimentos de interesses Coletivos e a
Identificação de Adversários; a Eficácia Política; os Sentimentos de Justiça e Injustiça; a
Vontade de Agir Coletivamente e, por fim, as Metas e Propostas de Ação Coletiva.
Nas palavras de Sandoval (2001)o modelo descreve as várias dimensões psicossociais
que constituem a consciência política de um indivíduo:
“This model of political consciousness depicts the various social psychological dimensions
that constitute na individual’s political awarenessof society and himself/herself as a member
of that society and consequntly represents him/her dispositions to action in acordance with
that awareness.” (p. 185)
MODELO DE SANDOVAL
PARA O ESTUDO DA
Sentimento CONSCIÊNCIA POLÍTICA
de Justiça
Identificação de e Injustiça
Identidade Adversários e
Coletiva de Interesses
Crenças e
Valores
Antagônicos
Eficácia
Metas de
Ação Coletiva
} Formas de Ação
Individual
e Coletiva
Fonte:: Sandoval, S. (?001) in. Revista Psicologia Politica llno 1; N° I (1), p. (tradução nossa)
sujeitos estão inseridos. A partir do processo de internalização das instituições, das crenças,
da cultura e dos valores construídos socialmente; mediante o diálogo interior vivido por cada
sujeito e que é pautado pelo que é internalizado, é que se dá a individuação do sujeito.
Baseado nesse diálogo que o sujeito faz consigo mesmo é que ele responde à dinâmica social
da qual faz parte e constrói conhecimentos, simboliza o conhecido e experienciado. Assim,
podemos afirmar que o universo simbólico construído socialmente pelo sujeito “(...) tem suas
raízes em suas experiências históricas de vida e da sociedade a que pertence (...)”
(Sandoval, 1994:61).
Agnes Heller (1972) discute em sua obra Cotidiano e História questões ligadas à
rotina da vida. Ao nascermos imediatamente somos inscritos no “mundo da vida” (Habermas,
), nas atividades quotidianas. Como diz Heller (1972) e Sandoval retoma (1994), “(...) os
grandes eventos não-quotidianos da história emergem da vida quotidiana e eventualmente
retornam para transformá-la. A vida rotineira é a vida do indivíduo integral, o que equivale a
dizer que dela participa com todas as facetas de sua individualidade. Nela são empregados
todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades para
manipular o mundo objetivo, sentimentos, paixões, idéias e crenças” (Heller, 1972: 71)
A vida cotidiana é segmentada e heterogênea. A segmentação do cotidiano manifesta-
se na conduta e nos níveis de consciência desenvolvidos por cada sujeito. O mundo da vida
cotidiana aparece naturalizado, como um mundo do imediato que é orientado pelo senso
comum. O cotidiano é o lugar da continuidade ininterrupta, da estabilidade, onde a reflexão
não se faz necessária, no qual a redefinição do simbólico não pode acontecer pelo fato de
significar o rompimento desse contínuo. E é exatamente porque o cotidiano assim se
configura que ele acaba por se tornar um espaço onde crenças e valores societais tendem à
cristalização e a única possibilidade de consciência possível é a consciência do Senso Comum
(cf. Sandoval, 1994:70). Em relação a isso Sandoval observa que: “A característica
dominante da vida quotidiana é a sua espontaneidade. Isso equivale a dizer que a
assimilação de padrões de comportamento, crenças sociais, pontos de vista políticos,
modismos etc. é feita geralmente de maneira não-racional (não refletida)” (Sandoval,
1994:65).
Espontaneidade é, no pensamento de Agnes Heller (1972,) uma tendência em todas as
formas de atividade quotidianas. De fato a manutenção da vida diária se tornaria insustentável
caso todas as ações do sujeito exigissem algum tipo de reflexão. Contudo, ações refletida
colocam e xeque a rotina da vida diária. Podemos dizer então que o quotidiano impões ao
110
sujeito formas de pensar imediatista, utilitarista e, porque não dizer, pragmaticista15, o que
“(...) favorece o desenvolvimento do pensamento superficial” (Sandoval, 1994:64).
O fato de o cotidiano estar marcado pelo pragmaticismo, pelo utilitarismo, pela visão
de mundo naturalizada e pelo pensamento superficial, nos remete a pensá-lo como um espaço
alienante. Nele o sujeito tende a viver conformado e alienado visto que o exercício da
reflexão, o questionamento da rotina não faz parte deste modo de vida pelo simples motivo de
que ao questionarmos o continuum da vida estamos causando nele uma ruptura, uma
perturbação à ordem vigente. A esse respeito Sandoval afirma que
“(...) a rotina quotidiana é aquele aspecto da realidade social que que mais se presta à
alienação, a qual se manifesta na co-existência silenciosa entre as tarefas envolventes do
viver diário e da ordem social maior que o determina. Alienação é tipicamente expressada
em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o ‘natural’ das
desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se encontram
estruturadas. A acitação espontânea de normas sociais e em última instância da
estruturação de classes, desigualdades sociais, e submissão política disfarçada de ‘requisito’
do viver rotineiro, podem Ter o efeito de tornar o indivíduo um conformista na medida em
que carece da instrumentação intelectual para um raciocínio sistemático e crítico, e das
práticas diárias do exercício democrático de direitos e obrigações de cidadania. Essa
alienação, evidenciada no fragmento da consciência das pessoas, é melhor ilustrado na
dificuldade que tem de conceitualizar a estrutura social, a estratificação social e o regime
democrático.” (Sandoval, 1994:64-5)
15
Sandoval escreve que “o imediatismo do pensar e do comportamento quatidiano obscurece a diferença entre
o ‘possível’ e o ‘correto’, tanto quanto no comportamento diário tende a reduzir o correto ao possível e, em
decorrência, a encobrir as questões de direito de cidadania e moralidade política. Assim, a atitude quotidiana é
tipicamente pragmática. Essa falha na racionalidade e a ênfase no pragmaticismo se refletem no caráter
fragmentário do pensamento das pessoas combinando a mescla não-sistemática de material cognitivo e juízos
superficiais de valores, convertendo a pressa bo ‘desejável’ a eficiência no ‘natural’, na medida em que as
opções de comportamento delas lhe permite continuar no ritmo do dia-a-a-dia com um mínimo de
perturbação.”(1994:64) Ao utilizar o termo pragmaticista queremos guardar que aqui ela está utilizada segundo
o senso comum e não na acepção da filosofia pragmática norte-americana da qual George Herbert Mead foi um
dos sistemaizadores. Para clarificar melhor o que dizemos recomendamos a leitura do capitulo I da tese de
doutorado de Odair Sass. (1992) intitulada Crítica da Razão Solitária: a psicologia social de George Herbert
Mead no qual o autor trata sobre Pragmatismo e Pragmatismos.
111
convicção em situações de angústia social são resultantes das ações de certos grupos ou
indivíduos. tal convicção permite aos sujeitos acreditar na potencialidade das ações
individuais ou coletivas contra os autores da situação de angústia social como instrumentos
eficazes na promoção da mudança social e conseqüente superação da angústia social. Nesta
terceira possibilidade de atribuição da origem social encontramos os motivos que permitem ao
sujeito tornar-se ator social mudando sua própria vida e a vida dos outros.
Sentimentos de justiça e injustiça constituem a dimensão da consciência política na
qual estão compreendidas as formas como o sujeito percebe os arranjos sociais em termos de
sentimentos de reciprocidade social entre os atores considerados pelo sujeito. Baseando-se no
conceito de justiça social de Moore (1978), Sandoval afirma que ela é “a expressão de
sentimentos de reciprocidade entre obrigações e recompensas. (...) Sempre que os indivíduos
acreditarem que foram contrariados no equilíbrio das relações de reciprocidade, ele
entenderão esta ruptura da reciprocidade em termos de injustiça.” (Sandoval, 2001:189)
O que constitui uma relação equilibrada de reciprocidade e o modo como o sujeito
percebe a violação dessa relação são processos sócio-históricos complexos. Certamente uma
grande parte dos critérios para medir noções de reciprocidade são histórica e contextualmente
determinados.
Não obstante a isso, quando estes sentimentos de reciprocidade deixam de existir por
alguma razão ou foram violados, constituindo, assim, uma situação injusta, provocam o
descontentamento coletivo e o subseqüente protesto. É comum notar que toda a reivindicação
dos movimentos sociais se dá contra uma situação de injustiça. Por conseguinte, observamos
que quando as pessoas sempre se referem a sua participação em movimentos sociais
encontram-se embutidas nestas alguma referência à noções de injustiça que são utilizadas
para legitimar suas reivindicações e responsabilizar os adversários.
A vontade agir coletivamente, é uma dimensão mais instrumental correspondendo à
predisposição de um indivíduo de empreender o jogo das ações coletivas como um modo de
buscar corrigir injustiças. Essa dimensão encontra como base teórica os estudos de Bert
Klandermans (1992). O autor propõe três aspectos que condicionam a participação coletiva.
O primeiro aspecto enfoca a relação custo/benefício da manutenção ou não da
lealdade. Essa escolha tem caráter determinante na tomada de decisão por parte do sujeito
quanto a participar ou não de movimentos sociais, de ações coletivas. Lemos em artigo
publicado em 1989 por Sandoval: “(...) Considerar aspectos lógicos do não participar, é
dizer pensando racionalmente em termos de custos e benefícios relacionados ao ato de
114
participar politicamente, podese dizer que as pessoas seriam mais predispostas a não
participar do que o contrário” (p. 62)
Para exemplificar os fatores psicossociológicos que levam o sujeito a participar em
mobilizações coletivas a despeite de existirem pressões contrárias, o autor recorre a
raciocínios desenvolvidos pela Teoria dos Jogos, sendo o chamado ‘Dilema do Prisioneiro’16
um exemplo dessa primeira situação. Segundo Sandoval, ele exemplifica didaticamente um
dos aspectos que desaconselha a participação em esforços coletivos: quais são os custos e os
benefícios dessa participação.
O segundo aspecto se refere especificamente aos gastos percebidos ou à perda de
benefícios materiais que resultam no envolvimento do sujeito em movimentos sociais.
Partindo da mesma lógica do ‘Dilema do Prisioneiro’ encontramos o chamado ‘Dilema da
Participação Coletiva’17. Esse outro dilema ilustra “(...) a problemática da participação dos
indivíduos nos movimentos sociais da ótica de custos e benefícios que uma pessoa de camada
popular possa ter como resultado de participar ou não participar de um movimento social”.
(Sandoval, 1989:64)
O terceiro aspecto diz respeito aos riscos físicos percebidos ao ocupar-se de
movimentos sociais e ações coletivas dadas as condições em que se dá tal ocupação. Essa
avaliação do sujeito servira para que ele possa pesar as possibilidades que o movimento
social, no qual está engajado, tem de implementar as ações coletivas a que se propõe.
Tanto esta como a próxima dimensão da consciência política encontram subsídios em
trabalhos de teóricos racionais (Olson, 1965) que estudam os determinantes da participação
coletiva. Sandoval ressalta que, em ambas as dimensões, as decisões que sujeitos tomam, seja
individualmente como coletivamente, relativas a sua participação em um movimento social,
são fruto de escolhas informadas e significadas que influenciam na participação e no
compromisso dos sujeitos com o movimento social.
Segundo o autor, estas escolhas são informadas e significadas pelo sujeito a partir de
suas identidades coletivas; de suas convicções, valores societais e expectativas em relação à
16
Recomendamos com vista a uma compreensão mais aprofundada da Teoria dos Jogos e dilemas a que o autor
refere-se, as seguintes leituras: Shubik, Martin. Game Theory, behevior and the paradox of the prisoner’s
dilema, in Jounal of Conflict Resolution, 14, 1970; Sandoval, Salvador A. M. Considerações sobre aspectos
micro-sociais na análise dos movimentos sociais. in Revista Psicologia e Sociedade nº 7, Set./1989.
Minimamente podemos dizer que esses dilemas são jgos em que os sujeitos neles envolvidos tem a opção de
cooperar ou não com os demais ujeitos envolvidos em algum tipo de ação coletiva. Essa decisão estará vinculaa
a avaliação que o sujeito fará do custo e do benefício dessa participação. Recomendamos também a leitura de
Przeworski, Adam. Marxismo e Escolha Racional. in Revista Brasileira de Ciências Sociais, 6, fev./1988.
Esse último texto analisa os pontos teoricamente críticos no Dilema do Prisioneiro.
17
Hardin, Roussell. (s/d) Collective action pp. 25-30.
115
1
A mobilidade é uma importante característica dos acampamentos de sem terras. O tempo que as famílias
ficam acampadas em um mesmo lugar depende de inúmeros fatores. No caso do acampamento Carlos
Marighella, muitas das famílias que lá estavam, já haviam acampado no Santa Rita (trevo de Teodoro
Sampaio - SP), por exemplo. Em 2000 o MST regional desfez o acampamento Santa Rita e organizou
acampamentos menores entre os quais estavam o Dorcelina I e o Carlos Marighella. A criação desses novos
acampamentos fora motivada em função de áreas escolhidas pelo movimento para ocupação e que poderiam
ou não estar em negociação com o governo estadual. As famílias foram reunidas nos acampamentos segundo
a região em que prefeririam viver quando assentadas. A medida em que a negociação das áreas eram
confirmadas, saíam grupos de famílias desses acampamentos, originando outros acampamentos, para ocupá-
las, pressionar o governo e evitar que outros movimentos saíssem à frente ou que o governo assentassem
outras famílias que não estivessem participando da luta. Como já mostramos no capítulo I, através do gráfico
organizado pelo ITESP, são muitos os movimentos sociais agrários presentes em São Paulo.Enquanto
estivemos no Pontal, pudemos acompanhar o nascimento de dois novos acampámentos, sendo um oriundo do
Dorcelina e outro do Carlos Marighella. Referimo-nos aos acampamentos Dorcelina II que saiu do
Dorcelina e ocupou a fazenda Santa Maria no município de Marabá Paulista e Porto X oriundo do Carlos
Marighella e que ocupou a fazenda Porto X, da qual tirou o nome, localizada no município de Euclides da
Cunha Paulista. Em abril de 2001, os acampamentos que estavam localizados fora de alguma fazenda em
litígio foram reunidos no trevo do município de Teodoro Sampaio, frmando um grande acampamento com
crca de 1200 famílias, segundo dados fornecidos pela coordenação regional do MST no Pontal. Os
Acampamentos Dorcelina I e Carlos Marighella surgiram em maio de 2000 e dissolvidos em abril de 2001
para dar origem ao grande acampamento de Teodoro sampaio.
Muitas delas não tiveram a sorte de obter o sucesso esperado naquelas bandas.
Acabaram trabalhando de bóia-fria ou meiando algum pedaço de terra. A terra de sua
propriedade muitas vezes não chegou ou quando chegou ou era muito pouca ou longe de
escolas, hospitais e de difícil escoamento da produção. Sob essas condições algumas delas
acabaram regressando ao Brasil depois de terem ouvido falar do sucesso alcançado por
famílias de sem terra que participavam do MST. Amigos, parentes e conhecidos já haviam
sido assentados e isso era um indicativo positivo para que eles resolvessem voltar e
enfrentar a dureza da vida de acampado na esperança de, desta vez, também ser agraciado
com um pedaço de terra e as condições mínimas para produzir nela.
O acampamento Carlos Marighella surgiu depois que o acampamento Santa Rita,
localizava-se no trevo de Teodoro Sampaio, foi desfeito em virtude de muitas famílias já
terem sido assentadas ou porque muitas delas já haviam ocupado novas áreas no intuito de
pressionarem os governos estadual e federal no sentido de agilizarem os processos de
desapropriação de terras dando uma solução para seu problema. As famílias que não
tiveram essa sorte foram transferidas ou para uma área de reserva florestal cedida pelos
assentados do Água Sumida, município de Teodoro Sampaio, ou para o trevo de Euclides
da Cunha Paulista. As famílias escolheram seu novo destino levando em conta as áreas em
que gostariam de ser assentadas.
Aquelas famílias que ficaram em Teodoro Sampaio batizaram seu acampamento de
Dorcelina, homenagem feita à Prefeita sul-matogrossense assassinada e que apoiava
abertamente o MST em sua região. As famílias do Dorcelina eram quase todas oriundas de
São Paulo. Apenas 15 de 272 famílias eram paranaenses. Já no acampamento de Porto
Euclides2 a grande maioria, cerca de 200 famílias eram do Paraná, sendo que um
considerável número já havia tido a experiência de brasiguaio. Não poucas vezes tivemos a
oportunidade de ver alguns dos acampados falando es guarani ou em espanhol.
2
Nome pelo qual a população da região chama o município de Euclides da cunha Paulista.
apanhado geral acerca da situação dos acampados e posteriormente nos acompanhou ao
acampamento Dorcelina4. Juntamente com ele e Cledison5 pudemos acompanhar no
Dorcelina o processo de escolha das famílias daquele acampamento que iriam ocupar
novas áreas já em negociação com o ITESP. As lideranças remetem às famílias agrupadas
a responsabilidade da decisão dos critérios e daqueles que irão e que ficarão no
acampamento.
O procedimento de escolha6 das famílias é relativamente simples do ponto de vista
operacional. Todavia importa que façamos uma breve descrição da estrutura
organizacional da regional do MST localizada no Pontal do Paranapanema. O MST no
Pontal do Paranapanema possui uma Coordenação Regional que, por sua vez, está
dividida em 4 micro-regiões. Cada micro-região está sob o comando de lideranças que
compõem a coordenação regional. Algumas delas ainda não foram assentadas mas em sua
grande maioria já passaram pelo processo de acampados e já receberam o seu lote. Aqueles
que ainda não receberam o seu lote não encontram-se acampados e sim a disposição do
MST.
Cada micro-região determina algum militante para a coordenação geral do
acampamento. A coordenação geral do Dorcelina estava a cargo de Sérgio Pantaleão – que
ainda não havia sido assentado – e do Carlos Marighellapelo Militante conhecido pelo
apelido de Musgão. Este último já havia sido assentado recentemente no município de
Euclides da Cunha Paulista. Internamente o acampamento é dividido em grupos de cerca
de 35 famílias7 cada um. Cada grupo elege um coordenador e um vice-coordenador que
depois tem seu nome habitualmente corroborado pela Coordenação geral do acampamento
e pela coordenação regional do MST.
A função desse coordenadores é acompanhar a assiduidade dos acampados sob sua
orientação durante as atividades desenvolvidas pelo movimento como, por exemplo, as
3
A COOCAMP é a cooperativa organizada pelas famílias do MST já assentadas.
4
Na ocasião em que estive lá pela primeira vez em fevereiro de 2001, existiam na região do Pontal do
Paranapanema 8 acampamento a saber: Fusquinha (5 anos); Pe. Josimo ( mais de 2 anos); Dorcelina (10
meses); Carlos Marighella(10 meses); Che Guevara (6 meses). Desmembraram-se do Dorcelina os seguintes
acampamentos: Dorcelina II e Pe. Josimo II. Do acampamento Carlos Marighellasurgiu o Porto X . Esses
novos acampamentos estão localizados em áreas que estão em negociação com o ITESP.
5
Membro da Coordenação Regional e uma das principais lideranças da região do Pontal junto com Zé
Rainha e Bil. Ainda que os trabalhos desenvolvidos pelo movimento sejam feitos de forma colegiada, a mídia
costuma apontar Cledison como sendo o “segundo em comando” no Pontal. Cledison já foi assentado no
Assentamento São Bento.
6
O processo de seleção de famílias que nós acompanhamos no acampamento Dorcelina também ocorreu no
Carlos Marighella. Nós acompanhamos esse momento apenas no Dorcelina mas nossas informações indicam
que o procedimento costuma ser mais ou menos homogêneo.
7
Esse número é a média de famílias por grupo. Contudo encontramos grupos com 15 famílias e outros com
bem mais de quarenta.
marchas ou as ocupações de Órgãos públicos. Tal participação nestes eventos se dá de
maneira voluntária. Todavia participar nas atividades desenvolvidas pelo movimento é um
dos critérios que o movimento utiliza e que é naturalmente apontado pelas famílias quando
são consultadas a respeito de quais serão os critérios norteados da definição de quais
famílias irão para as novas áreas de ocupação e quais ficarão no acampamento.
Outra atividade do coordenador é a ‘chamada diária’. Essa se dá entre outras
razões em função de existirem no acampamento os chamados “andorinhas”. Andorinhas
podem ser aqueles acampados que: 1) ficam durante o dia no acampamento e dormem na
cidade; 2) passam apenas os finais de semana passando o restante do tempo na cidade; 3)
comparecem ao acampamento apenas nos dias de reunião de grupo ou de assembléia geral
do acampamento.
Estar acampado e permanecer no acampamento é um critério antigo do movimento
e que as famílias prezam pelo fato de ajudar a estabelecer uma certa igualdade entre os
acampados. Os andorinhas normalmente mantém algum tipo de vinculo maior com a
cidade. Habitualmente trabalham e dormem fora do acampamento. Costumam muitas
vezes pagar para outro acampado que não esteja com o nome cadastrado para dormir em
seu barraco, responder a chamada e participar das atividades quando necessário. Os
andorinhas são um ponto de discórdia entre as famílias na hora da seleção porque apesar de
terem contratado outrem para cumprir suas obrigações, as famílias acampadas sentem-se
de algum modo lesadas porque elas estiveram sob as agruras da lona enquanto os
andorinhas estavam no conforto da cidade.
Cabe também aos coordenadores relatar informações ao coordenador geral sobre a
vida do grupo e do acampamento e transmitir as notícias e decisões da coordenação geral.
Pesamos que esse detalhe seja importante porque o coordenador visita sistematicamente o
acampamento mas não vive entre os acampados. Daí a necessidade de ser informado
acerca da vida do acampamento pelos coordenadores de grupo.
Por fim, ao coordenador cabe a difícil e espinhosa tarefa de administrar as tensões do
grupo. Mas vale. Nesse sentido, salientar especialmente uma: a seleção das famílias.
3. O EXERCÍCIO DA ESCOLHA
Decidida as áreas de ocupação e calculado o número de famílias que cada uma delas
comporta, a coordenação regional através das micros e a coordenação do acampamento
passam grupo a grupo no acampamento explanando a situação das áreas, quantas famílias
cabem em cada uma; expondo as dificuldades de se mudar de acampamento e a
possibilidade de haver resistência por parte do latifundiário; de haver ações de reintegração
de posse e, sobretudo, a possibilidade de nem todos serem assentados naquela área devido
aos critérios do Estado e a presença de outros movimentos sociais8 que costumam
acompanhar o MST e acampar próximos ao movimento para, depois, reivindicarem parte
da área para suas famílias. Vale salientar aqui que nesse momento a atitude dos
coordenadores regionais é a de ir a base para construir as estratégias de ação antes de
iniciar o processo de ocupação de terras já negociadas.
Após esses esclarecimentos a liderança solicita ao grupo que se defina por uma das
áreas disponíveis e que indiquem os critérios para nortear a escolha de famílias do grupo
caso não seja possível a manutenção do grupo como um todo nessa empreitada. Esses
critérios são anotados pelo coordenador do acampamento e depois discutidos com a
coordenação geral do MST regional.
Definidos os critérios entra o coordenador de grupo que irá administrar, muitas vezes
sem preparo, tensões emocionais de toda ordem9. De modo geral caber-lhe-á administrar
problemas tais como os “andorinhas” que ainda que não estivessem todo o tempo, pagaram
alguém para cumprir suas obrigações. Como por vezes esse alguém é membro de alguma
família acampada, isso deixa o ambiente mais tenso. A participação de atividades nem
sempre é feita por todos. Como muitas vezes o governo não envia qualquer espécie de
mantimentos e falta trabalho no campo, é permitido sair para trabalhar na cidade. Por se
estar na cidade não se pode participar de certas atividades. Isso descompensa a balança
reguladora que como que ‘ranqueia’ os membros do grupo. Algumas vezes essas tensões
podem gerar até mesmo agressões físicas.
A seleção é feita nesse clima de angustia. Deixar o acampamento rumo a ocupação
significa estar mais próximo de sonhos de toda uma vida. Entrar na terra ocupada é o
8
Tais movimentos muitas vezes agem como hospedeiros junto ao MST. Esse parece-nos o caso, por
exemplo, do MASTER - Movimento dos Agricultores Sem Terra. No acampamento Carlos
Marighellativemos a oportunidade de conhecer um de seus líderes estaduais que é assentado na área que
ficava em frente ao acampamento e que é conhecido como Tico. Diariamente Tico visitava ao acampamento
passando por todos os barracos. Contudo as vezes que o vimos conversando com os acampados do Carlos
Marighella nos levou a pensarmos que tais incursões não passavam de estratégia de arrecadação de famílias
já vinculadas ao MST. Ainda vale dizer que a água consumida pelos acampados do Carlos Marighellatinha
três procedências: 1) Os caminhões-pipa da prefeitura de Porto Euclides; 2) as minas d’água que os
acampados descobriram nas redondezas e 3) a água que era vendida pelo Tico e que os acampados retiravam
de seu poço.
9
Importa lembrar que é o coordenador de grupo que primeiro tenta administrar os problemas cotidianos que
vão desde comer a galinha do vizinho até cantar o marido ou a esposa do outro(a). Para tanto, o coordenador
de grupo tem para seu auxílio o regimento do acampamento e a intervenção do coordenador geral.
mesmo que entrar na terra prometida. Entra-se nela como que entra na sua terra. Por isso ir
é fundamental. É um novo alento para essas vidas tão sofridas. É como uma injeção de
ânimo.
Mas o fato de parte de um grupo ir e de outra ficar não é entendido por nós com sendo
um alento para quem vai e um dado desanimador para quem fica. Quem fica certamente
sente-se abatido por não ter ido mas também apega-se a certeza de que será o próximo a ir.
Os critério utilizados no acampamento Dorcelina foram os seguintes: 1) tempo de
acampado; 2) participação nas tarefas que são solicitadas ao grupo pela coordenação geral;
3) permanência no acampamento10 e 4) disponibilidade para o serviço no acampamento.
Na maioria da vezes esses são os critérios válidos em grande número de acampamentos.
Outro dado interessante e importante é que as lideranças costumam preservar unidos
os grupos que já vem de outras empreitadas e que, por isso, já caminham juntos a um
tempo considerável11 ou então grupos que sejam muito pequenos.
10
O que implica não ser uma “andorinha”.
11
O grupo que é chamado “Fusquinha” – apelido de um militante assinado durante a luta por um Brasil sem
latifúndios – é um caso típico. Ele estiveram acampados, foram assentados, os lotes estavam para ser cotados
quando foram despejados da terra devido a uma decisão judicial favorável ao latifundiário. O grupo do
“Fusquinha” já persevera nessa luta a cerca de 5 anos. Em fevereiro de 2001 morreu um desses
companheiros acampado na terra que poderia ter sido a sua terra definitiva.
de esperança. Contudo nem todos terão lona para cobrir os novos barracos, nem todos terão
dinheiro para comprar outra. Para aqueles que não tem como comprar o movimento tenta
angariar alguma doação. Todavia, o que se arrecada não é o suficiente. Eles torcem pára
que não chova. Parece que apesar desses problemas o que importa-lhes é o fato de estarem
de muda para aquele que poderá ser o seu chão.
Das 272 famílias cadastradas no acampamento Dorcelina 105 estavam de partida
rumo ao município de Marabá paulista12. A fazenda em questão é a fazenda Santa Maria.
Enquanto os caminhões se aprontam uma comissão vai a frente para ‘avisar’ ao
latifundiário que os caminhões já estão a caminho e que vão entrar na área. O intuito da
comissão é garantir um espaço próximo a água para que as famílias acampem. A comissão
leva o compromisso de não atrapalhar as atividades da fazenda que produz gado de corte.
Esse compromisso se deve ao fato de a área já estar negociada com o ITESP.
Enquanto isso acontece na sede da fazenda, nós subimos com todos os pertences nos
caminhões. Adultos, Crianças, jovens e animais rumo a ‘nova terra prometida’; a fazenda
Santa Maria. No caminhão o pai de um dos acampados, que ora chamamos de seu João13 e
que já está assentado no Água Sumida, nos mostra, segurando o seu chapéu de palha e
abrindo um sorriso sem dentes, a área onde se encontra o seu lote e diz; “Só por Deus,
professô, só por Deus e Nossa Senhora!!! Tá vendo lá?! Aquele é o meu lote, professô, lá
onde se pode vê aquelas arvre, lá! (...) Agora chego a veiz do meu minino se ajudado por
Deus que nem que eu fui. (...) Deus Ajuda àqueles que são fiel a ele pra deixa de sofrê.”. A
fala de seu João é representativa dessa expectativa mística, messiânica, em que Deus é o
autor da libertação desses oprimidos.
Durante a viaje de translado desse grupo Vera grita do caminhão para um grupo de
pessoas do distrito de Planalto - Teodoro Sampaio, que olham a movimentação rumo à
Santa Maria: “Ô sem terra, vamos lá que a terra é nossa, é de todos nós!!! Tem terra pra
todos nesse Brasilzão!!! Vamos lá!”. A sensação de liberdade experienciada por Vera faz
com que ela busque conscientizar aos outros trabalhadores rurais de que eles também são
explorados, que eles, como ela, também devem lutar por uma vida mais digna, pelo seu
pedaço de chão, de liberdade. Para Vera alcançar essa terra é mais do que realizar um
sonho: é “(...) alcançar minha liberdade”.
12
Frisamos que esse momento é tão intenso e envolvente que nos sentíamos como se nós mesmos
fizéssemos parte daquele grupo de famílias. Acompanharmos aquele momento e experienciá-lo junto com
cada uma daquelas 105 famílias foi-nos muito marcante.
13
Não temos registrado o nome do autor do comentário feito em cima do caminhão rumo a ocupação e em
meio a incessantes manifestações de alegria.
5. ENTRANDO NA TERRA PROMETIDA
Passada essa experiência que nos possibilitou verificar como se dava a organização
dos acampamentos, o processo de escolha das famílias que sairiam para as ocupações e a
própria ocupação, tivemos a grata oportunidade de conhecer outros acampamentos
firmados no Pontal, a saber: Fusquinha e Che Guevara e Carlos Marighella. No
Fusquinha fomos acompanhando alguns companheiros que trabalhavam na preparação da
marcha das mulheres que deveria acontecer em março de 2001 não fosse o falecimento do
então governador de São Paulo, o engenheiro Mário Covas (PSDB/SP). Já nos
acampamentos Che Guevara e Carlos Marighella o nosso contato primeiro se deu por
ocasião da entrega de cestas básicas que o governo federal, através do Ministério da
Reforma Agrária e do Desenvolvimento Fundiário, forneceu aos acampados do pontal
depois de cerca de 8 meses de ausência e omissão.
As cestas básicas foram buscadas no município paulista de Bauru e posteriormente
distribuídas pela COOCAMP, cooperativa agro-industrial que agrega as famílias do MST
já assentadas na região do Pontal do Paranapanema. Acompanhar essas entregas foi muito
importante para nós, pois ela abriu-nos as portas para convivermos e recolhermos nosso
material de pesquisa. A distribuição das cestas básicas era coordenada pelo militante
designado pelo acampamento. Esse por sua vez, ou centralizava a distribuição ou distribuía
o trabalho entre os coordenadores de grupo que posteriormente prestava contas das cestas
distribuídas.
Inicialmente quando chegamos ao Pontal buscávamos um acampamento novo, com
‘acampados de primeira viagem’. Todavia depois e termos feito esse giro pelos
acampamentos do MST da regional do Pontal, descobrimos que esse acampamento não
existia. O que encontramos foi acampamentos relativamente jovens mas acampados que
em sua maioria já estavam nessa vida a um tempo considerável.
Assim, acabamos descartando o acampamentos Dorcelina I e II por que passariam
por reestruturações a curto prazo em função de ter havido a divisão dos grupos do
Dorcelina I que deu origem ao Dorcelina II. Tal reestruturação implicaria em um novo
processo de organização e ressocialização dos grupos visto que uma nova estruturação da
forças se daria dentro dos dois grupos de acampados. O Fusquinha foi descartado por ser
um grupo já antigo e que já havia passado por um processo de assentamento que fracassou.
Esse grupo pareceu-nos estar com muitos de seus conteúdos da consciência já cristalizados
depois de 5 anos de luta conjunta. Outro motivo é o fato de não haver mais ingressos de
novas famílias no grupo em função do seu tempo de luta. O acampamento Che Guevara foi
descartado pelo fato de estar muito desarticulado e estar passando por problemas com
drogadictos e pelo alto número de andorinhas.
Importa dizer que o critério principal para a escolha do acampamento foi o número
de famílias presentes no acampamento. Por família estamos nos referindo de modo geral ao
casal14. Nesse sentido o acampamento que mais se enquadrava era o Carlos Marighella.
Ele apresentava o maior número de famílias participando da vida do acampamento e menor
número de andorinhas. Esse dado nos conduziu a escolhê-lo como campo de pesquisa e a
passarmos acampados nele 20 dias. No total, passamos 35 dias no Pontal conhecendo mais
14
A composição social da família não foi adotada como critério para a escolha das famílias por pensarmos
que a capacidade de crianças influenciarem na decisão dos pais seja muito pouca. O mesmo valeria para os
adolescentes. Além disso já existem estudos que poderão nos apontar caminhos no que se refere a
consciência política de adolescentes (ver Andrade, 1994). Outro fator que nos motiva a não considerá-los é o
fato de que por mais que eles se rebelem contra os pais, os lotes serão dados a estes últimos, serão dados à
família e não a indivíduos. Uma exceção possível aceita será em caso de a família ter em sua composição
atidamente à região.
Outro fator que precisamos indicar é que para a escolha das famílias a serem
entrevistadas estabelecemos como critérios a procedência e o grau de militância.
Procuramos selecionar famílias acampadas que tivessem sua origem entre 1)
Trabalhadores Rurais Assalariados (TRA); 2) Trabalhadores Rurais que tenham migrado
para a cidade (TRU) e 3) que foram Pequenos Proprietários e perderam suas terras (TRPP).
No que se refere ao critério militância, procuramos selecionar famílias que estivessem 1)
na Base do Movimento (B); 2) na Militância do Movimento (M) e 3) na Liderança do
Movimento (L). Esse dois critérios se complementam da segundo o quadro abaixo:
filhos adultos. Caso isso ocorra, estes também serão parte da amostra.
(Verônica com 3 anos, Mônica, com 5 anos e Angélica com 7 anos) e um menino (Carlos
com 8 anos). Eles foram a primeira família por nós entrevistada. Paraguai estudou até a 4º
série do primeiro grau (atual ensino fundamental) e Rosane não chegou a freqüentar a
escola. Os pais de Rosane estão assentados no Paraná. A família de Paraguai e Rosane é
católica e costuma ter uma vida religiosa ativa.
O casal sempre trabalhou na roça como bóia-fria, ou em empregos temporários em
alguns meses. Paraguai provinha o sustento da família e Rosane do cuidado das crianças.
Segundo Rosane ela chegou a “(...) trabalhar por dia, né. Que a gente com essas quatro
crianças é muito difícil pra... pra trabalhar direto, né. Fica mais é pra atendê as criança.
Assim, quando podia eu trabaiava por dia, assim... na roça”. A família de Rosane e
Paraguai já milita em movimentos agrários a 12 anos. Sua militância teve início no
Paraguai no Movimiento Campesino Paraguayo – MCP. O MCP é como que a versão
paraguaia do MST brasileiro. Sobre isso Paraguai disse o seguinte:
“Oia , a la no Paraguai donde eu tava a la no Movimento fiquei doze año como eu falei
pra você, a la no tem, nada de diferencia de Movimento de MST, só nome é diferente. O
resto é mima coisa. No tem diferencia ninhuma. Alguma veiz ocupa, alguma vai, né,
pacífica, quando o governo no liga manda muito pistolero, tem pistolero também; qundo
o governo no liga muito manda muita polícia, o turma recua um poco. Quando abaxa o
pó ali o turma entra de novo, ocupa. Então no tem deferencia desse aí aqui. De Brasil,
do Movimento MST de aqui do Brasil e do MCP do Paraguai no tem diferencia.”
“teve muita exploração, né. Até mesmo pela situação financeira, onde fez a gene saí
buscar uma vida melhor, né. (...) A exploração mesmo e a necessidade, né?! Um pedaço
de terra pra sobreviver, pra ter uma vida mais digna; onde a gente construir uma vida
melhor, né. Foi esse que fez a gente se integrar ao MST. Hoje, hoje em todos os lugar,
apesar de a gente estar em outros país, em todos os países a exploração continua igual.
Não tem dúvida nenhuma!”
“(...) não conheciam realidade, né Alexandre, não sabia como era a realidade. E você
sabe que cada um em um objetivo, cada um tem... tem um direito, né. Então a gente
começou a observar isso aí, sabe que a terra é para todos, o mundo inteiro sabe que terra
é para todos. Então a gente achou que essa opção, participa do movimento para ter uma
vida mais digna, ara ter uma sociedade mais justa, né; então foi isso que veio trazer nós
até o MST. No começo a gente era contra porque a gente não conhecia a realidade. Eu
15
Os pais de Juciane estão assentados faz 2 anos.
16
Contudo, Toninho participou de alguns dos trabalhos de base realizados pelo MST em terras paraguaias.
achava que podia ser um grupo de baderneiro memo, como hoje os próprios governo diz,
que é um grupo de badernero. Mas não é isso não. É que a maioria dos governo hoje são
latifundiários, são fazenderos. Então eles acham impossível fazer, é... dá um
prosseguimento para a reforma agrária reforma agrária por causa deles mesmos que
são latifundiários.”
Nessa fala Toninho deixa clara sua identificação com o discurso do MST e com o
grupo a que pertence. Toninho é um dos muitos que freqüentam diariamente a casa de
Paraguai para discutir a situação dos acampados e do país. Entretanto a relação entre ele e
Juciane não é baseada no diálogo como é a de Rosane e Paraguai. Quando perguntamos a
ela sobre quais os assuntos que eles conversam mais em casa, se em algum assunto
importante ou não, a sua resposta é “Eu não converso não sobre isso (MST) não.” A essa
resposta perguntamos se não conversam sobre nada e ela nos diz que “É muito difícil”
conversarem.
A esse respeito, as falas de Toninho são idênticas as de Juciane. Com a seguinte
frase Toninho corrobora a fala de Juciane: “Bom, enfim, a gente já não... não tem muito a
relação de conversar entre nós dois em casa.” E continua a fala explicando o porque da
ausência de diálogo entre eles: “Sempre quando a gente tá... tá no barraco geralmente,
quando a gente não tá, tá trabaiando, la no barraco e a gente fora, trabaiando; e quando
tá (no barraco) sempre tem gente e a gente nunca consegue tá junto conversando”.
Quando pergunto a ele se o diálogo faz falta ele responde que “(..) até o momento não (...)
mas mais tarde, no futuro, faz falta.”
Nossa terceira entrevista é com Marcos. Nascido em 14 de novembro de 1970 na
cidade de Luanda – PR, estudou até a 7º série do ensino fundamental. Marcos é um dos
militantes que acompanhava mais de perto o acampamento Carlos Marighella. Ele é
solteiro17 e integra o MST desde outubro de 1999. Seu ingresso no MST do Paraná onde
militou por 5 meses, sofreu dois despejos e, depois desse período, transferiu-se para o MST
do Pontal do Paranapanema no qual já milita a pelo menos 11 meses.
Antes de se filiar ao MST, Marcos trabalhava como “(...) vendedor autônomo,
marreteiro em Curitiba.” Desde os 18 anos ele vive na cidade com esporádicos retornos ao
campo como bóia-fria, trabalhando durante o período do corte da cana-de-açúcar. Sua
família era meeira no norte do Paraná. Produziam café. O abando do campo e a
conseqüente migração para a cidade se deu em função da crise do café vivida no final da
década de 80 do século XX. A esse respeito Marcos relata o seguinte:
17
Apesar de Marcos não preencher os critérios estabelecidos para esta pesquisa, decidimos entrevistá-lo e
inclui-lo em nossa mostra pelo fato dele ser uma liderança expressiva e de notório reconhecimento entre os
acampados do Carlos Marighella.
“Nóis paramo de trabalar, porque meu pai era meiero, né, nóis tocava o café de a meia
Qui no norte do Paraná. Nóis paramo de toca café porque naquela época caiu um poco
o preço do café, né, e não compensava pros donos dde... de terra dá mais o café pá... pá
toca. Não compensava pa gente toca mais já também, né. Em 1988... Daí nós paramos,
como nós paramos de toca, eu comecei a trabalha cortando cana, trabalhar de bóia-fria,
depois comecei a cortar cana pá usina... E meus irmãos foram embora, né, já tinham, já
eram de maior, eles foram embora pá cidade a procura de emprego.”
Seu primeiro contato com o MST se deu pela televisão. Na época, a prisão de
Diolinda, companheira de Zé Rainha, fora muito veiculada pela mídia e o fato chamou-lhe
a atenção, visto que o comentário entre o povo era de que ela não era culpada. Na época ele
já começava a pensar em ingressar no MST e o motivo maior era a falta de perspectivas de
trabalho na região. Eis o seu relato:
“O MST, eu sempre ouvia falar em televisão, né. Há um tempo, acho que na época do...
na época que a Diolinda foi presa aqui no Pontal, acho que foi o primeiro assim, a
primera coisa que eu ouvi mais que daí foi presa a mulher do Zé Rainha, né, e eles
falaram que ela não tinha muita coisa a vê. E daí eu tava até pensando, na veiz que eu vi
ela presa, né... E depois desse contato, aí só na televisão fui vê as ações do movimento.
Quando eu vim para a casa da minha mãe em (...) 99 tinha uns acampamento ali no
município em que a minha mãe morava e eu como não tinha perspectiva nenhuma de
conseguir emprego ou outra coisa... trabalha por diária pra mim não era interessante,
fui a procura de pega um pedaço de chão e volta às minhas origens, né, pra vê se
conseguia tê alguma coisa pra mim.”
“(...) acampamento (...) significa a esperança das pessoas... das pessoas terem uma nova
vida, né. Porque todas essas pessoas que vem... vem se acampa vem na esperança de não
depende dos otros, não vive trabalhando igual a gente trabalhava... trabalhava por
diária aí ou trabalhava pá usina que você trabalhava e a perspctiva não é boa. Você
sempre trabalha, sempre trabalha... Chega no final você adquire nada, nunca tem nada
prá você mesmo. A impressão que a gente têm é que as pessoas que vêm para o
acampamento que sempre elas tão, e na verdade é, né, irricando os otros e vai ficando
prá trás e Chega uma época que você não vai ter nada. Você olha prá trás na sua vida e
você não tem nada”
“A gente tava na cidade e voce sabe, né, na cidade é muito difícil, né. E sempre a gente
vê meu pai, tá bem, tem o lote dele, tá bem. E aí a gente conversando, eu e ele (Barroso),
eu dalei : “Aqui não dá! A gente tem que ir pra lá.” Aí a gente pensou de... porque eu
tenho o cadastro pelo ITESP, no caso eu poderia comprar, né, que eles falam comprar,
né. Aí eu achei que poderia comprar. ABí eu liguei pro meu pai e o meu pai falou assim:
“Não minha filha tem um pessoal que tão aqui acampando aqui na beira do asfalto; tem
bastante barraco aqui e se você quiser vem pra cá. Aí eu falei com ele e falei “vamo,
vamo pra lá!””
Assim, o movimento vai se tornando como que ‘uma esperança de liberação’: “(...)
ele representa tudo por causa que a gente vai pode amanhã estar na nossa terra. É uma
esperança, é uma esperança... Que a gente só espera a melhora, se Deus quiser. Todo o
sonho da gente é só ter uma terrinha” (Márcia)
Barroso afirma que eles “(...) foram vendo que realmente o MST foi uma única
coisa pá dá uma mão po povo, foi o MST”.
Márcia e Barroso demonstram consciência da necessidade da luta, vivem num
ambiente de diálogo e de cumplicidade e ao ingressarem no MST, encontram-se dispostos
a enfrentar as dificuldades da luta e as angústias da espera. Márcia demonstra isso de
modo claro na seguinte fala:
A família de Tereza e Osmar é católica não praticante e tem como origem a cidade.
Como já apontamos, esta é a quinta família entrevistada18. No dia da entrevista Marcos
nos acompanhou novamente até o barraco de Tereza e Osmar e, passado um tempo,
deixou-nos a sós. Tereza logo se pôs a reunir a todos para nossa conversa. Começamos do
lado de fora mas como o tempo desse sinais de chuva, logo voltamos para dentro do
barraco. Estava quente, muito quente e abafado. Começamos a entrevista e logo o tempo
melhorou e então fomos para fora onde estava mais agradável. Durante todo o tempo em
que estivemos com eles as maritacas circulavam entre nos.
Tereza, nascida em 1966 no município de Tambuara no estado do Paraná, estudou
até a 5º série do ensino fundamental e é casada com Osmar há 19 anos. Osmar nasceu no
dia 15 de agosto de 1961 em Paranavaí – PR, e, como a esposa, também estudou até a 5º
série do ensino fundamental. Flávio, o filho mais velho, nasceu em Paranavaí, Paraná, no
dia 23 de julho de 1983 e estudou até a oitava série do ensino fundamental. Fagner nasceu
em 23 agosto de 1984 na cidade de Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Ele também concluiu
o ensino fundamental e está cursando o 1º ano do ensino médio na cidade de Porto
Euclides. Cleverton nasceu em Dourados no Mato Groso do Sul no ano de 1987 e está
estudando na 5º série do ensino fundamental. Por fim, o caçula Osmarzinho. Ele nasceu no
dia 01 de junho de 1989 e está estudando a quarta série do ensino fundamental.
18
Aqui também precisamos flexibilizar nossos critérios de seleção das famílias. No presente caso, o motivo
foi o fato de que quem primeiro veio para o acampamento foi o filho mais velho do casal, Flávio.
Antes de ingressarem no MST, Osmar trabalhou de caminhoneiro por 14 anos e
Tereza dedicou-se ao lar e a criação dos 4 filhos. A experiência que tiveram com a terra foi
como bóias-frias e remonta aos períodos da infância e da adolescência do casal. Os filhos
têm sua primeira experiência com a terra agora como acampados.
Da mesma maneira que Marcos não encontrava na vida de bóia-fria perspectiva de
futuro, Osmar e Tereza também não. Ele relata a dureza de sua juventude no campo e do
seu desejo de uma vida melhor, menos sofrida. A vida na cidade, o profissionalizar-se foi
que o orientou para deixar o campo. O trecho que segue é um bom exemplo dessa angustia
social vivida por Osmar e Tereza:
“Eu trabalhava assim pros outros aí com meu pai e minha mãe arrancando mandioca,
sacar café, bóia fria também Aí eu nunca mais quis... eu vi que não dava, não tinha
futuro, sei lá. Eu peguei e segui a carreira de caminhão. Aí eu achei que mudar de idéia
era melhor. (...) Não é que eu saí da terra. A gente é jovem, tem outra cabeça né? Eu
achava que eu queria uma posição. E achava que naquela época, ser da roça não seria
uma profissão. Então eu me apeguei a uma profissão, aí eu disse: "Bem, agora eu sou
caminhoneiro. Que eu posso...". Porque se fosse para mim garantir na época tratar da
mulher e do filho, eu achava difícil né .Quando chovia não tinha emprego, que é que
você ia fazer. ”
A vida na cidade para Tereza era uma necessidade de sobrevivência já que a vida
no campo tinha se mostrado mais difícil até então. Contudo ela continuava a cultivar a
esperança de regresso ao campo, esperando uma oportunidade. Tereza tinha claro que “(...)
trabalhar assim pros outros não dá futuro né, de bóia fria.” Ela casou-se com Osmar aos
15 anos e foram viver na cidade logo que “(...) ele arrumou emprego e nós foi levando a
vida, empurrando, empurrando...” Osmar traduz esse ‘empurrar’ de Tereza da seguinte
forma:
O MST foi essa oportunidade esperada. Com disse Tereza, eles foram
“empurrando” a vida na cidade “(...) até que surgiu a oportunidade. A gente conheceu
umas pessoas que conversou com a gente sobre os sem terra e agora na hora que os filhos
Entrevistamos a todos os filhos do casal, inclusive as crianças. Naquele momento era visível a expectativa
dos mais novos de também serem entrevistados da mesma maneira que foram seus pais e irmãos mais velhos.
estão tudo grande a gente achou que seria bom vir para cá.”
Osmar complementou essa fala de Tereza dizendo o seguinte:
“Eu mexia com negócio de compra e venda de carro, rolo, porque aí as vezes o
caminhão não dava eu tinha que fazer um bico. Aí um colega meu falou assim "Vamos
nos sem terra? A gente vai visitar lá, tem uns cara que é meio parente meu". Aí eu
cheguei e perguntei para ele como é que a gente fazia para conseguir aquilo que ele
tinha, aquele lote dele.Aí ele falou: "É muito fácil. Você tem que ficar embaixo da lona
aí e encarar. Tu tem que ficar e encarar mesmo; que se tu não ficar não consegue. Aí eu
perguntei: "Mas é só isso?" e ele me respondeu "Só". (...) Aí ele falou quanto tempo
demorou para pegar, acho que foi nove ou dez meses, parece. Aí eu falei: "Então
quando abrir o cadastro aí você chama eu?". Aí abriu, ele avisou e a gente tá dentro do
barraco.”
Mas a decisão não foi tomada tão facilmente como pode parecer. Segundo Osmar
“foi difícil!”. O casal não estava numa boa fase. A relação conjugal estava desgastada.
Para que se tomasse a decisão foi preciso a mediação do filho mais velho, Flávio. O relato
de Osmar nos ajuda a entender as razões pelas quais dissera que ‘empurravam’ a vida na
cidade. Osmar conta que
”(...) na época, eu e minha mulher não tava tão legal. Dentro da cidade a dificuldade é
imensa. Todo dinheiro que você pega ainda é pouco. Então, as vezes, através daquilo ali
vem briga, discussão. Aí eu vim eu conversei com meu filho mais velho.” Aí ele falou:
"Pai, vamos.". Era "vamos encarar" porque eu tinha que trabalhar para poder manter
o resto da família né. Aí eu falei: "Então você vai, Flavio, e fica respondendo que eu
tenho que tá trabalhando para poder tratar porque senão num vai ter jeito. Aí ele veio.
Aí depois eu vim, trabalhar de caminhoneiro na barragem aqui para poder manter a
família.”
“Aí passou mês e meio e ela apareceu lá. Ela, meu pai, ainda tava meio brigado. Aí
minha mãe viu que não era nada daquilo tal, achou até legal. Aí gostou. Aí quando
vinha, vinha direto.(...) - É. Aí ela foi lá também várias vezes, gostou também.
Conversamos com o Zé Rainha, se tinha problema a gente vir para esse acampamento
aqui, que era mais perto do Paraná e viemos para cá até hoje. Só que a gente veio de lá
para cá e ela não tinha vindo de mudança. Tem sete meses que nós viemos. ” (Flávio)
“Aí eu comecei a trazer ela quando eu vinha visitar o Flavio nos finais de semana, trazia
as coisas para ele né. Aí ela começou a vim né. E começou a gostar. A gente ficava do
sábado até o domingo, que aí domingo eu tinha que ir embora para trabalhar. Aí ela
falava "Ah, mas já vamos embora?" "Vamos.".(Osmar)
Como até esse momento apenas Flávio estivesse acampado e os demais ainda
permanecessem em Paranavai, a mudança do restante da família aconteceu em um
contexto em que Tereza é a maior insentivadora. Enquanto Osmar relutasse a deixar tudo e
assumir a vida de acampado, alegando que poderia não dar certo, Tereza pensava que a
hora de fazê-lo já havia chegado fazia tempo. A experiência de Tereza entre os acampados
do Pontal ajudou-lhe a ressignificar sua opinião sobre o MST e a decidir-se por ele. Osmar
conta que Tereza “não via a hora de chegar sexta-feira pra gente vir de novo. Aí foi até
que a gente acertou de vim de vez. Já tô indo embora, ela colocou tudo dentro do ônibus,
um monte de caixa.” A explicação de Tereza é cheia de ímpeto e é decisiva. Seu relato
mostra a sua firmeza de propósito. Lutar até o fim, até alcançar a terra prometida:
“É que eu queria vir para cá mais antes. Ele é que não deixava. Ele falava "Não, agora
não. Agora não é hora e tal". Até um dia que eu resolvi, vendi todos meus móveis,
peguei o restinho que sobrou e vim para cá. Agora tô morando aqui de vez. Agora é a
minha casa até sair o lote. Eu tinha aquela imagem que eu via na televisão. Mas é
completamente diferente. Aqui é um paraíso, um sossego, tranquilo. Aqui não tem nada
disso que a gente via na televisão, de violência. Aqui a gente fica um ano, dois anos, até
sair a terra.”
Edir e Liciel são a Sexta e última família por nós entrevistada. Contudo a primeira
família do acampamento Carlos Marighellacom quem tivemos contato foi a deles. Esse
contato se deu durante a entrega das cestas básica no início de fevereiro. O caminhão da
COCAMP que auxiliava o MST na entrega das cestas encostou no em frente ao barrado de
Edir e Liciel para recrutar alguns voluntários para ajudar a descarregar a cestas na sub-sede
da COCAMP em Porto Euclides, de onde se faria distribuição para as famílias do Carlos
Marighella, e no acampamento Che Guevara localizado no município de Primavera.
Naquela ocasião tivemos a oportunidade de cevarmos um chimarrão juntos e conhecer um
pouco da família que já estava acampada no Carlos Marighellaa um mês. Como as
famílias de Paraguai e Rosane e de Juciane e Toninho, Liciel e Edir também são
brasiguaios e estiveram acampados no Paraná antes de migrarem para o Pontal do
Paranapanema.
Liciel nasceu em 10 de abril de 1962 e está vivendo com Edir, sua Segunda
mulher, a onze anos. Liciel tem duas filhas do primeiro casamento (Adriana,14 e Juliana,
13). Elas vivem com a avó no Paraguai. Com Edir teve outros quatro filhos (Claudemir,
10; Claudinéia, 9; Claudirene, 8 e Claudecir, 4). Liciel não freqüentou a escola e aprendeu
na vida o pouco que sabe ler e escrever.
Edir nasceu no dia 26 de outubro de 1970. Como Liciel, Edir também teve outro
casamento e teve outros dois filhos. Apenas um continua vivo (Claudinei, 13) e mora com
a avó. Ela estudou até a segunda série primária.
Edir antes de se agregar ao MST não tinha uma boa impressão do movimento. Da
mesma forma que os demais entrevistados a imagem de bagunça, miséria e desordem
compunham seu imginário. É a experiência concreta que lhe possibilita a re-significação da
imagem do MST.
”Eu comecei a conhecer agora que nós viemos pra cá porque antes, quando eu morava
no Paraguai, eu falava "Ui, aquele pessoal do MST lá vai pra lá pra passar fome", vai
outros ia e voltava porque dizia que não dava pra ficar no acampamento que era muita
bagunça, muita baderna, essas coisa, que passava fome e voltava. Daí, foi um homem
daqui pra lá que era assentado lá em Santo Angelo no Paraná, que falou "Ih, nossa!
Vocês podem ir pra lá que eu garanto que daqui há três mês vocês vão tá com suas
terras, sem conflito, sem ocupação. Cês vão lá pra cima do assentamento que onde nós
tá, de lá o Incra pega vocês de lá e leva pra cima das terras. Tem mercado por aqui que
fornece um ano o pessoa, tem muito serviço". O que arranca de mandioca lá pra nós é
um absurdo porque nós não conhecia mandioca. Lá nós trabalha com café. Só café e
boi.”
Segundo Liciel o que o que o fez acampar na região do estado do Paraná foi o fato
de que, estando na região do Paraguai colhendo café, falaram-lhe “(...) que no
acampamento era muito bom, principalmente no estado do Paraná.” As atrativas
informações sobre os acampamentos e a promessa de receber rapidamente a terra
mostraram-se convincentes. Observemos esse trecho em que ele conta a vinda e a
expectativa de receber a terra em breve: “E daí a gente veio né. Até vir eu não conhecia
nada. Eu porque eu nunca tive nessa vida, nunca conheci nada. Aí diz que no estado do
Paraná a gente acampava, com três mês tinha terra.(...) Quem falou isso aí foi um rapaz
que já era acampado. Inclusive diz que quando ele tava com dois mês pra três mês ele já
teve terra.”
Muitos foram os que desincentivaram-nos a não ingressar no MST mas a
necessidade material e a expectativa de um futuro melhor levaram-nos a diante. A luta se
faz necessária e o casal sabe disso; identifica adversários e interesses antagônicos.
Observemos o trecho que segue em que Liciel nos mostra um pouco dessa realidade:
“Daí a gente veio. Inclusive quando eu falei pra minha mulher vai lá na casa da velha
sogra, que meu sogro é morto, vai lá e fala pra minha sogra que nós vamos acampar.
Nós vamos ver se consegue um pedaço de terra pra nós trabalhar, criar os filhos, e
vamos lutar na vida. Aí a minha sogra, até meu cunhado falou,” vai lá e pergunta pro
compadre se ele já perdeu a coragem de trabalhar.” Aí a minha sogra me mandou
perguntar. Aí a mulher falou pra ele como se ele perdeu a coragem de trabalhar? "Não,
é que aqui no Paraná, quem vai mexer com essa luta de terra, com certeza já perdeu a
coragem de trabalhar porque diz que o governo trata." Aí eu falei pra mulher que o
governo não trata. Pelo que eu tenho de vista, o governo não trata. A gente tem que
lutar, aguardar, e trabalhar. Porque se não trabalhar, não vive. Aí nós viemos. Mas
chegamo aqui e ele diz que em três mês nós tinha terra nós já sofremo foi dois anos. Até
inclusive fui despejado. Sofremo dois despejo. Ocupemo duas áreas. Daí depois nós
viemos pra cá, pro estado de São Paulo, porque já faz parte do estado né.”
Edir deixa clara a sua preocupação com a segurança da família e desilusão que a
acometera no Paraná. O Paraná é a imagem da violência e das promessas não
cumpridas. Mas como deixara tudo para trás, o jeito era continuar a luta e reencontrar
forças para fazê-lo. O Pontal surge como uma nova chance de alcançar o sonho da terra
prometida.
“Aqui tava o tal de Jacinto que ele era de lá, da Cobrinco. Tem o Marcão, tem o
Valdemir, e tem esse o marido da Luzia, que eles fala Paraguai pra ela. Também era da
lá da Cobrinco. E eles saíram de lá e vieram pra cá. E ele veio pra cá, ele saiu de lá da
Cobrinco e veio pra cá. (...) Daí ele foi lá, nós tivemos conversando com ele e ele disse
que aqui era melhor que pra cá não tem conflito e as crianças tem muito medo. O
primeiro despejo deu muito tiro, saiu muita gente ferida. Nesse de agora não deu não
mas no primeiro foi bem sacrificado. Daí o Liciel veio aqui ver, né, gostou do lugar,
achou melhor. Porque não tem conflito. Daí nós viemos pra cá.” .”
Como os dois trechos acima nos mostram, muitas das primeiras expectativas de
Liciel e Edir foram frustradas. Ao invés de Terra em três meses, eles passaram por diversos
despejos e inúmeras ocupações e reocupações numa luta sem fim. Aparentemente a
liderança local (no Paraná) buscava manter o grupo mobilizado utilizando-se de
expedientes que não eram capazes de cumprir. Essa tática atuou diretamente na
desmobilização do movimento no Paraná e na migração de parte das famílias para o
Pontal. Motivos semelhantes podemos encontrar nos discursos das outras duas famílias de
brasiguaios por nós entrevistadas (Juciane e Toninho, Paraguai e Rosane) e nas falas de
Marcos, que antes de vir para o Pontal também militou por lá, chegando a ser coordenador
de grupo, e de Osmar e Tereza que não ingressaram no MST – Paraná mas tinham uma
visão que os afastava e propiciava resistência à idéia de filiar-se ao movimento. As
disputas entre o MST e o governo Lerner eram marcadas pela violência e por promessas,
de ambos os lados, que sempre eram quebradas. O MST no Pontal diferenciava-se do
paranaense por não ter que enfrentar a truculência da polícia e por haver um jogo franco
entre lideranças e famílias. As lideranças do MST no Pontal sempre deixaram claras as
dificuldades a serem enfrentadas pelo movimento. Não se criava expectativas para que,
mais tarde, não viessem a ser frustradas e acabassem por desmobilizar o movimento local.
Liciel conta como se deu sua expedição ao Pontal:
“Nós viemos através de um amigo da gente, que teve junto com a gente acampado. Até
inclusive ele tava acampado. Ele já tá colocado, tá tranquilo. Quando saiu a turma ele
vai nos primeiros que vai. Ele falou o seguinte: "Malinha, é o seguinte. Eu não vou
dizer pra você que vai ou que não vai. Ou que lá é bom ou é ruim. Nem que você vai
trabalhar ou nem que não vai. Mas só que lá você trabalha também. Falei não,
trabalhar por trabalhar é o seguinte. Eu sou do trabalho. Tanto faz serviço pesado,
serviço lidiano, roçada, carpida, qualquer serviço pra mim vai embora. Motorista, ou
tratorista, qualquer tipo de trabalho pra mi vale porque eu sei trabalhar e desenvolvo
qualquer tipo de serviço. Aí ele falou, então vai pra lá. Só que não leva a família porque
você vai primeiro pra vê. Vai ver primiero. Você veja o serviço, veja o lugar, goste
primeiro pra despois você levar a família. Porque depois que você vim que você gostou,
você pega um carro e vai. (...)Isso. Porque se você vai de uma vez agora, com família e
tudo, você chega lá e não gosta do lugar vai dizer é, eu vim enganado. Chega lá é, lugar
onde fica idoso, lugar feio, lugar que tem muita dificuldade. Então eu acho que se você
vai ver e se você gosta, eu tenho certeza que sua família vai gostar também. Já sinto ali.
E aí vai ser melhor pra você. Mas aí eu quero saber o dia que você vai porque eu não
tenho dinheiro mas pra eu arrumar o dinheiro aí. Aí o Seu Pedro que também é
acampado e tem uma parati falou pra mim assim, olha você não ter dinheiro é um
problema porque você não tem dinheiro pra pagar o ônibus. Eu falei olha eu não tenho
dinheiro nem pra comprar um cigarro sequer. Ele falou "mas não tem problema. Eu
vou pra lá com Jacinto, eu tenho carro, eu te levo. Eu te dou uma carona. Agora pra ir
nós damo um jeito e pra vir você faz igual". Eu tudo bem. No dia seguinte, nós viemos
pra cá, eu olhei o lugar, gostei do lugar, do acampamento, comecei a conversar com um,
com outro, e tal companheiro né. Achei que daria pra gente vir pra cá. Procurei saber
como é que tava de serviço aqui, porque sem serviço ninguém vive. Porque se tem
serviço, tem comida. Se não tem serviço, ninguém pode viver porque tem que sobreviver
como pode. Aí eu arrumei tudo e voltei pra lá no dia seguinte. Cheguei lá e falei pra uns
povinho lá em cima. seu Dino, dona Maria, falei olha, o negócio é o seguinte. É assim
assim e tal. Cês acha que dá pra nós de ir. Nós vai, porque eu vou. (...) Cês acha que dá
pra ir, nós vai, eu vou. Se você gostou do lugar, eu vou também. Nós vamos também. Aí
pegamos e viemos tudo pra cá. Paguemo o caminhão e viemo. Tamo aí. Eu tô contente,
completamente contente.”
Como Tereza e Juciane, Edir também não queria vir para o MST. Os motivos delas
se assemelham pela expectativa de sofrimento. Edir não queria passar por sofrimentos
maiores que aqueles que já tivera que passar na vida como bóia-fria no Paraguai.
Entretanto ela acompanhou o marido e com ele lutou durante os dois anos de desassossego
por eles vividos no Paraná. O relato que segue mostra as dificuldades por eles vividas no
período em que militaram no Paraná:
“Não, eu não. Eu, pra começar, não queria vim pros sem terra (...) Não. Não vou mentir.
Porque uns falava que era sofrido né. Como de fato, nós passemo e é mesmo. Nós
passemo quatro mês só comendo mandioca. Quatro mês, dentro desses sete mês depois
da reocupação, nós ficou sete mês aí né. Quatro mês nós só comia mandioca com carne,
porque ainda o fazendeiro tinha uns boi que tava na fazenda né. E a mandioca que a
gente comia não era essas boa de comer não, era essa mandioca braba aí ó. E nós
comia. Porque o fazendeiro arrendou um pedaço né por causa de Joãozinho lá do
Paraná, e ele plantou essa mandioca aí pra venda. Daí como não tinha ele o movimento
lá durante aqueles quatro mês medo de despejo de novo eles não liberava o pessoal pra
ir trabalhar. Então eles mandava comer mandioca com carne. E eles falava né assim
que pra poder a pessoa ser organizada aqui no MST, aqui não, lá né, ser organizada no
MST, pra nós de ser... sei lá como é que eles fala.... não é organizado...” .(...) Pra nós o
primeiro quando sai a terra e a pessoa já pegar e ir, ser obediente com o movimento.
Então, o que eles mandar fazer tinha que fazer. Então a gente não queria desobedecer o
movimento né. Eles falava assim "não pode ir lá em tal lugar" a gente não ia né. Não ia
pra poder manter a lei do acampamento. Assim a gente ficou lá quatro mês sem sair um
dia pra trabalhar lá pra fora. Daí vinha de vez em quando um pouquinho de mercadoria,
um pouquinho de arroz, um pouquinho de açúcar. Mas isso era uma vez por mês e
quando vinha também era um trequinho assim ó. (O Néia! Leva essa menino no mato
pra cagar aí no mato) Daí durante quatro meses comendo mandioca, de dia, de noite,
fazia mandioca cozida, frita, fazia bolinho, fazia de tudo, inventava. Mas em tudo tinha
que ter a mandioca. É, e foi mesmo. Sei lá, aí eu já tava aqui mesmo e não podia mais
voltar, me acostumei. Gostei do movimento.”
Como Liciel estivesse decidido a vir mesmo sem Edir e ela determinada a ficar no
Paraguai, o dado desestabilizador da balança foi a pressão dos filhos. As crianças não
queriam ficar longe do pai. Dada a insistência de Liciel, dos filhos e o apoio de outros
vizinhos que também estavam deixando o ‘sonho paraguaio’ para trás para juntar-se ao
MST, Edir cedeu e veio com Liciel. Eis o seu relato que começa com a negativa de tivesse
sido forçada por Liciel a acompanhá-lo. Vejamos o que nos diz Edir:
“Não, ele falou assim ó "Eu vou". Eu falava "Eu não vou". Ele falava "Você não vai,
você fica. Eu vou". Daí por conta das crianças "ah, mãe...vamo vamo vamo". (...) É,
porque eles não queriam que o pai deles viesse sozinho. Queria que eu viesse junto pra
eles vir também. O Brasil pra eles era um fim de mundo né, porque eles só nasceram no
Paraguai vieram pra Brasil agora. O Brasil era um lugar muito bonito, distante sei lá.
Daí eles queriam vim. Aí eu falava "Se o Liciel quisesse vim, ele ia vim sozinho". Daí eu
resolvi de vim. Daí as outras vizinhas que vinha também falava "Vamo pra lá oxa. Já
que vem um que vem todo". Peguemo e se mandemo.”
Durante os dois anos em que estiveram no Paraná, Liciel foi segurança, vice-
coordenador e coordenador de grupo no acampamento. Edir era coordenadora do setor de
saúde no seu grupo. No Pontal eles chegaram no dia 24 de dezembro de 2000 e não
desempenham nenhuma função. Para eles alguns dos motivos era o fato de estarem
acampados em Porto Euclides a apenas dois meses e de não terem conseguido estabelecer
uma nova rede de amizades no acampamento.
A certa altura da entrevista Liciel e Edir fazem uma comparação entre o MST no
Paraná e no Pontal. Para quem ouve, a impressão primeira é de que estejam falando de dois
movimentos sociais distintos. Mas entendemos essa falas como sendo termômetros das
contradições internas do movimento. Para Liciel
“Aqui foi muito mais melhor do que lá. Por uma parte, primeira parte que o movimento
pra lá convive muito com a mentira e eu acho que aqui convive com a realidade. Porque
o Roberto Baja que lá faz parte do movimento, você mesmo conhece o movimento, você
mesmo sabe né. Roberto Baja lá ele convive muito com mentira. E aqui não. Zé Rainha
não tem esse negócio de mentira não. Negócio dele é realidade. E ele mesmo chega e
conversa com o pessoal. Vamos fazer uma assembléia hoje? O Roberto Baja não tá lá no
meio, tá. Então vamos fazer aqui uma assembléia? Vamo. Mas vamos lá. O Rainha tá
ali. Só não vai ver o Rainha quem não enxerga. Mas quem enxerga tá ali, todo mundo
vai conhecer. Roberto Baja não é conhecido como o Rainha é aqui. Lá assembléia é
feito com os coordenador. (...) Lá eu participava porque eu era coordenador. Mas aqui,
se eu fosse nesse ponto aqui, então quer dizer que eu conhecia... Se o Rainha fosse igual
o Baja, eu podia conhecer o Rainha e minha família, o povo, o povão nosso mesmo
ninguém conhecia. Porque lá ninguém conhecia o Roberto Baja. Eu conheci. É, porque
ele era de Curitiba. Lá em Curitiba que ele ficava. Eu conheci ele principalmente lá em
Curitiba porque eu fui pra lá. Os dois despejos que nós sofremos eu fui pra lá em
Curitiba.”
Liciel e Edir são católicos não praticantes mas guardam uma religiosidade popular
a qual é invocada em momentos de dificuldade.
Os motivos que nos levaram a identificar Paraguai e Rosane como sendo uma
família de origem assalariada que no universo do acampamento é líder foram os seguintes:
1) Seu barraco é um permanente espaço de formação e socialização política;
2) Rosane e Paraguai exercem esse papel formativo;
3) Paraguai tem penetração em todos os grupo e é admirado por todas as
famílias. Volta e meia ele é citado como referência de responsabilidade e
compromisso no acampamento.
4) Participa permanentemente de atividades de militância (marchas, ocupações,
protestos), cursos e formações do movimento. A sintonia do casal com o
pensamento geral do MST explicitado nos documentos e publicações do MST
e pronunciamentos de seus lideres é indubitável.
Liciel e Edir são identificados como militantes porque:
1) Já exerceram atividades de coordenação no MST;
2) Assimilaram grande parte do discurso da liderança do MST mas mantém
posições que são comumente identificadas em membros da base;
3) Participam expontaneamente de atividades militantes e exercem influência
em seu grupo e entre outras famílias do acampamento;
4) Seu barraco também é um ponto de formação e socialização política contudo
não possui a mesma força da família de Paraguai e Rosane.
Já Toninho e Juciane foram identificados como base porque:
1) Toninho tem um forte comportamento militante, porém Juciane é mais que
dependente das posições do marido;
2) Toninho costuma beber da formação dada por Paraguai e Marcos. Costuma ter
uma demanda constante de formação e não se propõe a farmar.
3) A participação do casal em atividades militantes costuma a se restringir a
atuação do marido.
4) O casal encontra-se em níveis distintos no que se refere a participação e
formação. Poderíamos dizer que essa não é uma família base tradicional mas
não chega a ser uma família de militantes.
No caso da famílias urbanas é bom apontar para o fato de que, no acampamento
Carlos Marighellae no movimento Sem Terra, as famílias de origem urbana costumam ser
cerca de 20%. Por terem uma menor presença, foi necessário um busca maior destas
famílias no interior do acampamento. Por esse motivo, apesar de ser solteiro, Marcos
acabou sendo um de nossos entrevistados, uma de nossas famílias. Assim sendo, Marcos
foi identificado como uma família de origem urbana que exerce papel de liderança no
interior do acampamento Carlos Marighellaporque:
1) É referência entre os acampados e coordenadores;
2) Atua como uma espécie de formador itinerante;
3) Participa ativamente das atividades militantes;
4) Participa da frente de massa;
5) Auxilia na coordenação geral do acampámento.
Márcia e Barbosa foram identificados como uma família militante porque:
1) Márcia é coordenadora de grupo e coordenadora geral da saúde no
acampamento;
2) Barroso e Márcia abrem seu barraco para um espaço de formação socialização
mas seu compromisso é limitado ao grupo e, sobretudo, limitado por um
direcionamento religioso, visto que Márcia é integrante da Igreja Congregação
Cristã do Brasil;
3) Assimilaram boa parte do discurso da liderança do MST mas mantém posições
que são comumente identificadas em membros da base. Os conteúdos que são
ou não assimilados são, de alguma forma, sansionados pelas crenças religiosas.
Consideramos que a família de Tereza e Omar é uma tipica família da base porque:
1) Não tem clareza de seu lugar no movimento;
2) Assimilaram pouco do discurso do movimento;
3) Não atuam como agentes formadores e ainda mantém-se numa perspectiva de
cumprir a regra para garantir um lugar ao sol na luta por um pedaço de chão
“Sim, muda sim. Se o grupo eu lido, se cada um vai cuidar do seu serviço sem ninguém
tá perturbando, vai. Porque, uma comparação né, eu sou da saúde, você é coordenador
ou seje da higiene. Da higiene porque vai ter que ver onde vai ser o banheiro. Você vai
indo, ó. Outro chega "Esse banheiro aqui não tá funcionando. Vamo ter que fazer
outro. Aí ele junta dois, três do grupo e faz outro banheiro. Que nem que sou da saúde.
Que vem o povo doente, eu vou na farmácia pegar o remédio pra ele, ver se tem remédio
pra aquele doente. Você vê que o remédio da farmácia não vai adiantar pra o que aquela
pessoa tá sentindo, eu vou atrás de um carro. Vou pegar aquele paciente, vou levar num
médico, vou ver o remédio, se tem o remédio eu levo, se não tem junta o grupo, faz uma
reuniãozinha no grupo, faz uma coleta e vai e compra o remédio pra aquele paciente.”
19
O leite é oferecido diariamente pelos laticínios Qatar aos acampados do Carlos Marighella.
sentiam ‘ungidos’ da autoridade necessária para fazê-lo. Havia também entre ele o medo
de não estarem cumprindo a ‘cartilha’ do MST e estarem fugindo das normas.
A norma é um dado ambíguo no movimento. Ao mesmo tempo que ela agrega e
organiza as famílias, ela as coíbe, impede que tomem iniciativas em relação a vida
cotidiana da família, do grupo e do próprio acampamento em que estão inseridas.
A organização das Atividades Militantes como as marchas, as ocupações de
espaços públicos, o mutirão na construção da Escola Nacional do MST e os cursos de
formação poderiam servir como subsídio e ocasião para a socialização política. Mas isso
passa desapercebido na realidade do acampamento. As pessoas que vão voluntariamente
para trabalhar na construção da Escola Nacional do MST vivenciam por lá experiências
das mais diversas: têm momentos de formação, de práticas da mística do movimento, de
discussão da conjuntura nacional etc. Quando regressam ao acampamento e ao seu grupo
continuam a vida como se não tivessem de lá saído. Nem eles nem os coordenadores
captalizam as experiências dessas pessoas para o bem da coletividade.
E o mesmo vale para quando os grupos enviam delegados para congressos, cursos e
marchas promovidos pelo movimento. Não se aproveita para, na ocasião do regresso
desses companheiros, organizar momentos de formação, de partilha para aqueles que
ficaram. O conhecimento adquirido, a experiência vivida fica restrita àquele que a viveu.
“No Paraná tem assembléia todos os sábados, tem reunião de grupo todas terça-feira e
tem a coordenação, que é todos os coordenador na segunda. É, terça... é, terça reunião,
segunda-feira reunião de grupo e terça-feira assembléia. Daí o que passou dentro do
grupo o coordenador passa para a coordenação. E o jeito do ritmo do povo trabalhar
dentro do acampamento.(...) O coordenador reúne todo o pessoal do grupo dele. Daí fala
o que tem o que falar, se não tem o que falar conversa com o pessoal ali, se entende,
pelo menos uns 10, 15 minutos ali o pessoal tinha que sentar e conversar. (...) Aqui das
vezes é que nem a D. Maria disse hoje, que tem grupo que não se conhece as pessoas do
grupo mesmo. Porque eu mesmo não conheço as pessoas do meu grupo. Eu só sei de eu,
a Ruth ali em cima, e agora foi domingo eu passei a conhecer o vice-coordenador, que é
o Néio que já tá com dois mês. Mais, nós viemos em dezembro, janeiro, fevereiro, março,
já é pra três mês. Reunião teve uma até agora.”
1. Nome:
2. Gênero:
3. Data de Nascimento:
4. Naturalidade:
5. Escolaridade:
6. Estado civil:
7. Nome do(a) Cônjuge:
8. Número de filhos:
Nesse 2º bloco temos cinco perguntas que tem por função esclarecer o processo de
associação da família ao movimento levando em conta a sua história de vida. Também
queremos observar com estas perguntas o grau de participação efetivo da família como um
todo no processo decisório. Oito questões.
9. Gostaria de saber como o(a) senhor(a) ganhava a vida antes de chegar a este
acampamento?
10. O(a) senhor(a) já teve alguma experiência com a terra?
11. O que o(a) fez sair da terra ?
12. Como o(a) senhor(a) conheceu o MST?
13. Qual o(a) motivo que o (a) fez de participar desta ocupação ?
14. Como foi tomada a decisão de participar da ocupação?
15. Quais as maiores dificuldades enfrentadas por vocês na ocupação?
16. O que significa a terra na vida de vocês?
Nesse 1º bloco de questões queremos recolher dados que nos indiquem o grau de
comprometimento que cada membro da família e que a família como um todo têm com o
movimento. Para esse fim temos cinco perguntas.
1. Qual foi o seu papel (função) durante a ocupação ?
2. E o papel (a função) da família, qual foi ?
3. É possível pensar o MST sem a organização familiar?
4. Como o(a) senhor(a) vê a sua própria participação no movimento?
5. Como o(a) senhor(a) vê a atuação das lideranças no acampamento?
O 2º bloco busca recolher dados acerca da representação social da terra para um
acampado que nunca teve vínculos diretos com ela e para os que tiveram contato com ela.
Duas questões.
6. O que significa a terra para o senhor(a)?
7. Qual a importância da terra para sua família?
8. Na sua opinião, qual a melhor forma de se trabalhar a terra? Por quê?
O presente capítulo tem por objetivo aprofundar a análise dos dados obtidos nas
entrevistas e na pesquisa de campo durante o período em que estivemos entre as famílias
sem terra do Pontal do Paranapanema. Muitas são as categorias possíveis de serem
encontradas a partir desse material. Contudo utilizaremos como categorias principais as
dimensões da consciência proposta por Sandoval (2001) em seu modelo analítico de
estudos sobre a Consciência Política por nós apresentado e discutido no capítulo III do
presente trabalho.
Assim, as categorias adotadas serão Crenças e Valores Societais; Identidade
Coletiva; Identificação de Adversários e Sentimentos Antagônicos; Sentimentos de
Eficácia Política; Sentimentos de Justiça e Injustiça; Metas de Ação Coletiva e, por fim,
Vontade de Agir Coletivamente. Como já apontamos, essas categorias são informadas por
conteúdos diversos que estão inscritos sócio-históricamente na vida de cada sujeito e
grupo. Portanto, estaremos, ao analisarmos cada categoria a partir do discurso de nossos
depoentes, buscando identificar tais conteúdos.
Vale ainda salientar que as dimensões da consciência adotadas aqui como
categorias analíticas não são estanques e articulam-se entre si, muitas vezes se
interpenetrando. Dessa forma, explica-se o motivo pelo qual, em certos momentos, as
análises feitas em certas categorias indicarem dados que a priori estariam em outra
categoria. Assim, pensamos que as dimensões da consciência propostas por Sandoval
devam ser interpretadas à luz de um procedimento dialético.
Ao desenvolvermos este capítulo, seguimos o caminho traçado por Andrade (1998)
para o estudo da formação da consciência política. Inspirados nele, buscamos averiguar
como era o cotidiano dos acampados e as possíveis alterações e/ou contradições presentes
em seu cotidiano relativas as suas experiências grupais. Por isso, fazemos das palavras de
Márcia Andrade as nossas palavras: "Estudos como este, que buscam captar o fenômeno
em movimento (processo), exigem uma apreensão da consciência enquanto um momento
de síntese, na interface das determinações macro-estruturais e dos significados pessoais.
Buscamos não apenas descrever, mas também analisar esses momentos, através dos
arranjos de conteúdo que configuram diferentes combinações" (Andrade, 1998:218), que
produzem distintas complexidades da consciência política.
“O movimento eu acho que o jeito, ele, ele muda o jeito do cara né porque por exemplo
quando eu era assi soltero assi anda assi de aqui pra lá eu chamava até de vagabundo o
movimento, sabe. É o turma que tava assi acampada assi qué entra na terra dos outro.
Eu chamava até de vagabundo; eu chamava até de vagabundo. Daí eu vi, eu vi, como
que era a situação. Daí um dia eu cheguei ali no acampamento, sabe, no acampamento
cheguei, e vi criança, não tinha nada prá comê, chego, veio uma chuva. De aí fiquei,
encostei nele, encostei o caminhão, eu trabalhava com caminhão daquele veis, encostei o
caminhão ali e oiei e daí o meu coração parece que funcionou de outro tipo, sabe?! Daí
eu cheguei, falei pra muié, olha alí chegou um monte de pessoal ali assim assi. Eu tinha
uma roça de mandioca, uma roça de batata, siempre tinha, né. E aí eu disse pra muié: vô
chamá um doi pessoa prá vim arrancá essa batata ali , prá ajuda. Encostei fui a lá e
chameio ali... Daí chamei o pessoal ali, veio ali, veio ali arranco batata, mandiooca pra
ajudá. Foi lá no Paraguai esse aí, né. E ajudei muita gente. E de aí entrei no movimento
e foi memo, e até agora eu to.”
“Eu nunca li né, mas eu tenho uma colega minha ela é muito crente assim sabe, ela lê ali
e eu sou mais assim né. E ela falou para mim que tem , até falou onde é que é, e eu
nunca li. E tem na Bíblia, fala sobre as terras devolutas. "Ah, Márcia, tem que
acontecer, tá na Bíblia". Agora eu não sei se é assim, com brigas né, com essas coisas
todas. (...) Agora é que as coisa estão andando mais. Não tá precisando mais de briga e
essas coisas. Nós estamos até aqui, mais lá. É eles lá, como direção tão trabalhando
muito em cima disso aí.”
“A: Me conta uma coisa, quando há violência quem será que é o autor da violência?
M: Quando há violência?
A: É, quando acontece em assentamento ou em ocupação, quem que comete essa
violência?
M: A maioria é os fazendeiros. Eu nunca vi, mas o que a gente ouve falar que é os
fazendeiros, aí o pessoal vai aí um pouco também né, pede para sair da área e o pessoal
fica ali, resiste. Aí é onde acontece alguma coisa.
A: É errado resistir na ocupação?
M: Eu acho que sim, né. Porque é a lei e a gente tem que cumprir. Se eles chega e fala
que a gente tem que sair, não adianta querer enfrentar que só prejudica a gente
mesmo.
A: E no lugar de resistir, a gente deveria fazer o que?
M: Ah, eu acho que chegou e pediu para desocupar a gente sair tem que sair. Igual
acontece aqui no rumo do Paraná que eles fala que resiste. Mas pra cá eu nunca vi
acontecer nada. Quando o policiamento chega o pessoal tudo sai.
A: Eu lembrei do lema do MST. O MST teve um lema que era "terra na lei ou na
marra" e o lema de hoje é "ocupar, resistir e produzir".
M: O lema de hoje?
A: É. O que você acha desse lema?
M: Se não acontece isso... é "Ocupar, resistir e produzir"?
A: É. Ocupar terra, resistir nessa terra e fazer com que essa terra que você tá
ocupando ser produtiva, dá frutos. O que você acha desse lema?
M: Legal. É isso mesmo. Se não for assim, a gente nunca vai conseguir alguma coisa.”
É interessante notar que nesse conjunto de crenças e valores defendidos por Márcia
e que se põe antagonicamente aos valores do MST há a busca da paz interior por ela, do
equilíbrio. Ela não gosta “de coisa errada (...) Gosto das coisas tudo certinho”. Ela gosta
da harmonia e das coisas naturalizadas na sociedade e sofre com a condição de
antagonismo vigente na sociedade. Assim, a percepção de adversário e de interesses
antagônicos existentes entre os diversos grupos sociais implicados na questão, é
obscurecida pela tensão estabelecida entre suas crenças religiosas e sua vivência na luta, no
MST.
Posição diferenciada a de Márcia pode ser observada na seguinte fala de Rosane na
qual ela narra como eles enfrentaram a lei, na figura dos policiais, no ímpeto de alcançar a
justiça social representada na posse da terra. Para Rosane resistir é fundamental. Para ela
'certinho' é a distribuiçao da terra, o fim do latifúndio, a aquisição de uma vida digna para
ela e sua família. Podemos notar que a politização de Rosane atua como que um antídoto a
posturas naturalizadas no espaço político-ideológico. Vejamos:
"Cheguemo só com a ropa lá do corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele
tempo, né. Daí nois cheguemo e fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E
as polícia tudo veio pra cima de nois né. E daí nois falemo ‘Não, aqui nois vamo ficá.
Voceis pode saí.’ Falemo pras polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele.. fiquemo treze
dia sem nada, né, passanndo frio, (Sabino junta e diz “comida”), ichi, passando
fome, né, cas criança.”
“Hoje tem pessoas aqui no acampamento que se souber que tá faltando a comida no
prato do outro, as vezes não dá para ele. E eu não tô dizendo isso para dizer que eu sou
melhor do que todo mundo. Tem uma parte na Bíblia que Deus fala "Dê a esmola com a
sua mão direita sem que a sua mão esquerda possa vê". Mas eu já fiz isso muito aqui. Já
fiz não. Eu não fiz nada. Deus que me deu e eu comparti com quem precisava. Mas já
cheguei aqui, saber de pessoas que estão necessitadas e eu pegar meu carro, às vezes eu
não ter dinheiro para fazer as compras para a pessoa mas eu comprar uma parte e sair
pedindo para os meus amigos o resto das coisas para poder completar uma cesta para dar
para as pessoas aqui em baixo. Tô dizendo pra dizer que eu não sou melhor do que
ninguém. Porque hoje ou amanhã pode faltar na minha também e alguém fazer isso por
mim também. E se fosse assim era mais legal.”
A solidariedade proposta por ele é oriunda de um processo de conversão (metanóia)
e visa lograr a vida eterna e a justiça divina, sendo ela de natureza teleológica. A
solidariedade proposta pelo MST é de outra ordem. Ela é resultante do processo de
conscientização de cada sujeito que os conduz às praticas e ações coletivas.
A família de Osmar e Tereza nutrem acerca da vida no campo, do acampamento, da
luta uma visão paradisíaca. De modo mais claro podemos dizer que cada sujeito identifica-
se com sua posição de classe sem deixar de ser solidário com outros grupos com os quais
tenham um convívio mais intenso ou com quem comunguem interesses contextuais.
Salvador Sandoval nos aponta para o fato de que a configuração da consciência que
encontra-se ainda vinculada ao senso comum, como é o caso de Tereza e Osmar, “induz a
uma percepção da ação como contingência dos fatores situacionais e geralmente
predisposta a evitar conflitos” (Sandoval, 1994:70). Ainda se faz mister enfatizar que a
vida cotidiana, a percepção paradisíaca de seu aqui e agora tem sua sustentação nos
benefícios que esperam lograr nessa empreitada. Tais benefícios são identificados por nós
como sendo da ordem econômica (terra, insumos, assistência técnica) e política (programas
públicos que garantam os benefícios econômicos, um grupo capaz de mobilizar-se
independentemente de sua participação).
Como já pontuamos a pouco, uma importante questão que perpassa o conjunto de
crenças e valores societais de grande parte dos acampados é a questão da resolução
pacífica e negociada dos conflitos. Atribui-se às lideranças o poder e o dever de resolver
harmonicamente as questões de disputas existentes entre eles e os grupos oponentes.
Enquanto isso, os demais membros do movimento que compõe as ‘esferas inferiores’
assumem a postura de espera, ficam aguardando a tomada e a comunicação vertical de
decisões tomadas por aqueles que detém o poder para fazê-lo. Essa expectativa se
concretiza no imaginário dos acampados quando eles entendem que a inexistência de
conflitos significa a superação das contradições e conflitos que perpassam as lutas travadas
no campo brasileiro. A entrevista feita com Barroso contém alguns indícios importantes a
esse respeito. O trecho seguinte é um exemplo adequado desse quadro:
“Já faz. Cada vez que passa, melhor fica. De um modo geral, a gente acha que o MST
melhorou. Por exemplo, antigamente, acampava na beira da estrada pensava que
quebrava e tomava. Agora não, já ta melhorando, é mais pacífico, já aguardamos
decisões. Creio que assim, vai melhorando, cada vez melhora mais. (...) Para mim,
melhorou bastante. Eu tô achando que ta bom. Mudou, para melhor. Pelo menos a gente
tem sossego. O que nós todos precisa mais é isso aí.”
Visivelmente a situação vivida hoje nas fileiras do MST parece estar num momento
muito diferente daquele vivido pelas famílias de Andradina, Sumaré, Gleba Macali que
deram os primeiros passos para a constituição do movimento. Enquanto aquelas famílias
estavam presente em todo o processo decisório como demonstram os trabalhos aqui
abordados, as famílias do MST acampadas no Pontal do Paranapanema - SP, pelo que
pudemos perceber através de nossas observações feitas nos acampamentos Dorcelina I e II,
Fusquinha, Che Guevara e Carlos Mariguela, colocam-se passivamente atribuindo e ou
delegando essa atividade às lideranças. Elas, de modo geral, acomodam-se e alienam-se
dos processos políticos por terem presente a crença na capacidade de negociação das
lideranças a ponto de acomodarem-se e não participarem tão ativamente do processo de
luta no campo. Poucas são as famílias, como a de Paraguai, que assumem ou desejariam
poder assumir um papel mais efetivo nas decisões tomadas na luta. Enquanto resistir era
um dado fundante para os pioneiros do movimento, percebemos que uma parcela
considerável dos acampados do Carlos Mariguela comungam da posição de Barroso que
entende que apenas “(...) as vezes tem que reagir”; normalmente melhor é aguardar as
decisões das lideranças.
2. IDENTIDADE COLETIVA
“É, no começo antes de entra achei meio difícil, mas daí despois já fui acostumando,
né, com tudo... (...) O Sabino chegou com a idéia, né: “Vamo pra lá!” E daí eu falei
“vamo”, daí topei, né. Falei vamo e daí fomo, né. E daí cheguemo, já armemo os
barraco e fiquemo. Lá no Paraná. Daí despoi fumo, fiquemo dois meis. Daí despois
fumo pra Querência (fazenda) a ocupemo a fazenda lá, né. Sei que foi muito dificil.
Daí nossas coisa fico tudo pra tras, co caminhão. Daí quando o caminhão foi, as
polícia prendeu o caminhão, né. Com as nossa coisa, as roupa, as coisinha, o
poquinho que a gente tem, né, ficou tudo prá trás. Cheguemo só com a ropa lá do
corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele tempo, né. Daí nois cheguemo e
fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E as polícia tudo veio pra cima de
nois né. E daí nois falemo ‘Não, aqui nois vamo ficá. Voceis pode saí.’ Falemo pras
polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele.. fiquemo treze dia sem nada, né, passanndo
frio, (Sabino junta e diz “comida”), ichi, passando fome, né, cas criança.”
“É, porque sem movimento você também não faz nada, né. Perque eu soizinho ali não
faço nada. Enton pra mim acho que significa muita coisa o movimento, né. Ocupa mui..
Um famiia, pra falá, o movimento é uma famiia. Porque eu só, com quatro criança e
minha muié, eu não posso fazê nada. Não faço pressão nenhuma. Então o movimento é
uma famiia da gente, sabe.”
“Não sei se é porque a gente né, igual, eu sempre tô lá. tô junto com todo mundo, todos
os dias tô lá, vou duas três vezes, o Ismael também quando era ele, o Seu Luiz, não sei,
acho que né quando eu não vou o pessoal cobra, não sei se é isso. Mas a gente tem que
participar, tá ali, conversar com um com outro, não sei.”
“Porque se eu quero pra mim, eu quero pra minha família, eu quero pra você e quero
pros meu vizinhos. Eu acho que eu tenho que querer pra todos. Porque se eu vou querer
uma área só pra mim, eu tenho capacidade pra isso? Se eu tivesse capacidade pra uma
área sozinha eu não ia tá aqui. (...) Mas não acho que a capacidade da gente não alcança
isso.“
Identificar adversários nem sempre é algo fácil ou até mesmo possível. Alguns
sujeitos se mostravam capazes de perceber os seus reais adversários e outros o faziam
apenas ao reproduzir um discurso, mas em verdade não os tinham tão distintos assim. Os
grandes inimigos identificados pelo sem terra acampados no Carlos Mariguela foram os
latifundiários e a polícia. A posição deles acerca do governo, do Estado, é ambígua. Ora o
governo é aquele ente poderoso capaz de livrá-los da situação de marginalidade a que estão
submetidos socialmente e da qual querem ver-se livres, ora é um dos reais responsáveis por
estarem nesse lugar de marginalidade e, portanto, adversário.
Márcia é uma das que vê no governo aquele que pode agir como um salvador, como
aquele que pode fazer justiça, basta ele querer voltar seu olhar misericordioso para libertá-
la. Essa situação pode ser observada quando ela diz que “(...) isso também vai muito do
governo. Ele tinha que ver essas terras, os que não são donos, esses documentos. Eu acho
que existe mesmo no caso dessas terras devolutas. Na Bíblia tem né, as terras devolutas.”
Contudo o governo parece não querer ser um sinal de justiça porque a “política do
governo” não promove a justiça, porque o governo “não cumpre com o que eles promete”.
Para ela a resolução das desigualdades sociais é dever do Estado, “Isso aí já é a parte
deles”. Parece-nos que a contradição presente na fala de Márcia fica clara. O governo que
pode ser redentor de sua miséria, não volve seu olhar misericordioso para “a classe mais
pobre”. Assim, “a maior parte da culpa” das injustiças e conflitos agrário é do mesmo
governo que pode salvá-los e não o faz. Segundo Márcia “(...) a maioria (da culpa) é o
governo porque as coisas que andam acontecendo tudo é por causa deles, que não liga
para assentar a classe mais pobre”.
Importante notar que Márcia não dá conta de notar claramente os conflitos de
classes, os interesses antagônicos existentes entre as demandas dos sem terra e as ações do
governo.
No trecho anterior da fala de Márcia os latifundiários são reconhecidos como
usurpadores, falsários que forjam injustamente seus títulos de propriedade. São donos de
algo que não lhes pertence. E ela completa e corrobora a sua crítica e a identificação dos
latigrileiros como adversários que tem interesses antagônicos aos seus, ainda que de modo
obscurecido por suas crenças e valores societais, quando ela diz que
“Essas terras que não são dos fazendeiros. Elas foram griladas bem antes. Aí eles ficam com
um monte de terras para trabalhar sozinhos. Que nem fazendeiro com cinco mil, e fica tudo
sozinho trabalhando ali, é tudo dele. A pessoa sozinha não faz nada, não tem serviço para
ninguém enquanto tem um monte de pessoas que precisam de trabalho, precisam de... tá tudo
sem serviço. Precisa de alguma coisa, de um roça , de um motorzinho, né.”
1
Andrade quando discute a construção do caderno de fotografias, registra o seguinte a esse respeito: "Assim,
uma das imagens de maior impacto, selecionadas também do acervo, foi a da representação do desejo:
pertences dos trabalhadores jogados ao chão de terra, dando idéia de violência e destruição provocadas
pela polícia militar. A violência também expressa nas palavras "sede de justiça", assume aqui o sentido da
dominação através do poder das armas à serviço da lei. Os trabalhadores respondem, com orações e uma
postura pacífica, à ação violenta da polícia militar. A destruição dos bens materiais, como os barracos do
acampamento, não é suficiente para destruir a identidade coletiva, nem a união ou o sentimento de
pertencimento ao grupo. (...) A "união para a luta" significa, para o grupo, a ideologia que permeia a
consciência dos trabalhadores e os impele a dar outros passos, resistindo às pressões e ações intimistas por
parte da ação policial" (Andrade, 1998:75-6).
2
A expressão transformação social encontra-se em itálico neste trecho porque entendemos que o Estado
brasileiro, hoje comandado por FHC, propõe realizar uma reforma social - nos moldes do neoliberalismo - e
não uma transformação social, uma transformação nas injustas relações sociais vigentes. Assim, as vezes que
o presidente Cardoso fala em transformação, entendemos que esteja falando em reforma e utilizando
incorretamente o termo, visto que ele tem significado diferente daquele com o qual é aplicado. Também
entendemos que essa observação seja importante para que o projeto de transformação social do MST seja
“Daí despoi fumo, fiquemo dois meis. Daí despois fumo pra Querência (fazenda) a
ocupemo a fazenda lá, né. Sei que foi muito dificil. Daí nossas coisa fico tudo pra tras, co
caminhão. Daí quando o caminhão foi, as políciia prendeu o caminhão, né. Com as
nossa coisa, as roupa, as coisinh, o poquinho que a gente tem, né, ficou tudo pra tras.
Cheguemo só com a ropa lá do corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele tempo,
né. Daí nois cheguemo e fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E as polícia
tudo veio pra cima de nois né. E daí nois falemo “ Não, aqui nois vamo ficá. Voceis pode
saí.” Falemo pras polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele.. fiquemo treze dia sem nada,
né, passando frio, (Sabino junta e diz “comida”), ichi, passando fome, né, cas criança.
Essa aqui nem dormia de noite de frio que passo, porque não tinha nada e daí eu tirei
um brusa que eu tinha e ponhei pra ela dormi, né. Dormiu no meu braço. Porque não
tinha como né, no piso assim...( Se refere a Verônica, a mesma doentinha de antes e a
quarta filha do casal). (...) É. E sei que a Mônica falava assim: “ Mãe, vamo embora
mãe, chama o pai e vamo embora que a polícia vai matá nois mãe! Vamo.” (Sabino:
Hum!) A policia vinha pra cima co o carro, com o camburão pra cima de nois na
chegada da fazenda; gritava “ mãe vamo pra casa. Vamo embora que a polícia vai matá
noi” Daí desespero naquela hora que ela viu que...”
Nem mesmo ao ouvir a filha implorar para que fossem embora eles pensaram em
desistir, conta Rosane. Para ela a ação policial não poderia ser séria, “era uma
brincadeira”: “Pra mim naquela hora aquilo era uma brincadera, né. Sei lá. Naquela
hora aquilo era uma brincadera! (...) Pra que era uma brincadeira da polícia. (...) Nem
assim não desisti. Ainda fiquemo lá quatro meses acampado. Depois que fumo retirado”.
Parece-nos que as intervenções da polícia são constantemente eivadas de 'brincadeiras', de
extremo mau gosto', das quais nem crianças indefesas encontram-se a salvo. Os traumas
psicológicos resultantes das 'brincadeiras' da polícia que marcaram as crianças de Rosane
e Paraguai também são compartilhados pelas crianças de Liciel e Edir que estiveram juntas
em algumas ocupações onde a polícia 'atuou como comediante' e lacraia das oligarquias
rurais.
Ao observarmos as entrevistas feitas com os membros da família de Tereza e
Osmar constatamos que a consciência política desenvolvida por eles já avançou para além
do senso comum. Contudo está muito aquém do que podemos chamar de consciência
revolucionária (Sandoval, 1994). Eles ainda estão vinculados de modo significativo ao
cotidiano e por isso têm dificuldade em reconhecer os seus reais adversários. Os
adversários que reconhecem são aqueles que emergem da rotina do dia a dia. Exemplo
disso é a fala de Osmar que, como já registramos, demonstra a dificuldade para identificar
seus adversários. Para ele o ‘adversário’ está distante da vida da família, pois “(...) o único
risco que corre é algum carro cai lá de cima em cima da gente” (referindo-se à estrada
pois seu barraco ficava abaixo do nível da estrada).
resguardado e não confundido com as propostas do Estado neoliberal brasileiro. Ainda que possa ser óbvio,
ressaltamos o antagonismo que marca e separa as duas propostas.
Não encontramos nas falas dessa família quaisquer indícios de que compreendam o
que seja a luta de classe ou mesmo indício de que se compreendam enquanto membro de
uma classe que possui adversários que distanciam-se deles, tanto pelo poder quanto pelos
ideais político-ideológicos que subsidiam suas práticas. O que encontramos são sinais de
reconhecimento de suas privações e de outros que passam por situações semelhantes.
Tanto suas privações quanto a dos outros membros do grupo acabam sendo compreendidas
a luz da lógica de causas e efeitos de cunho transcendental. O que parece-nos evidente é a
existência de um fechamento dessa família em torno de si mesma na tentativa de
reconstruir-se, de deixar para trás as dificuldades da cidade construir um novo mundo para
eles. Para Osmar tudo o que ele precisa está dentro de casa. Adversários, interesses
antagônicos, coletivo, parecem permanecer a margem de seu universo, pois para ele a força
familiar é suficiente para reerguer-se, vencer adversários. Coletivo, em primeiro plano, é o
sinônimo de família. Segundo ele, "Na minha família, nós somos em seis. Eu acho que
tenho a força para... porque sozinho eu não ia conseguir nada. Agora eu não preciso mais
da força de ninguém. Só de Deus e deles".
Apesar da força das crenças religiosas na vida de Barroso, bem como de sua esposa,
e que muitas vezes obscurece sua visão crítica, ele assinala que muitos dos interesses que
estão em jogo e em lados opostos do campo de luta, são de caráter econômico. Os
latifundiários buscam de todas as formas garantir vantagens durante o processo de
negociação das terras a serem arrecadas e desapropriadas pelos diversos níveis do Estado.
Em seu depoimento Barroso diz que “existe muita coisa errada” no processo de
negociação. Para ele o governo não cumpre adequadamente seu papel e tende a atuar em
benefício dos latigrileiros:
“Por exemplo, penso eu assim, às vezes tem fazendeiro que tem uma terra negociada, as
vezes ele não quer colocar, não tem lugar para o gado que ele tem, aí eu penso comigo
que dentro das autoridades ali ele deve as vezes chega na pessoa, fala por exemplo, eu te
dou tanto se você deixar minha fazenda pelo menos mais uns dois anos. Eu acho que as
coisas giram em torno disso aí. (...) Precisava de ter mais autoridade, que é o que eu já
falei para você. Para diminuir esses conflitos, uma parte das autoridades e outra parte do
pessoal mais maior. (...) As autoridades, governo, jurídico, essas coisas.”
"E de aí eu decidi, um dia aqui eu falei pra mulié “ você topa desiti do negócio e vorta
nargum canto algum achá servicio, arguna coisa”, né. Daí ela falô pra mim “depoi dsse
tanto año ali...”, até minha mulié me ajudo, né, "depois de tanta luita a gente vai dexá
atrai, não dá não". Daí eu falei “Então você fica aqui na casa do teu pai e eu vou a lá, vê
a lá no Estado de São Paulo. Se a lá é melhor a gente vai pra lá. Você topa?” “Eu topo.”
(resposta de Rosane narrada por ele) Tá. Aí eu veio, né. Tinha deiz real no meu bolso,
veio aqui, paguei, gastei cinco real e comprei um cigarro alí e sobro quatro real pra mim
(eu e Rosane rimos) E de aí cheguei aqui e Qua.. achei muito conhocido aqui, muito
acampado... muito conhocido, né, muita amizade, né. E daí eu falei “ vamo pra lá muié?
É bom lá. Vamo mora na beira da estada, é dificultoso, não tem água; o negocio é assim,
alguna veiz tem servicio, alguna veiz não tem, mai noi ta com esse aí mismo, noi aguenta.
Vamo? Daí ela topo “Vamo”.
“Nois vimo la de Paraná aqui, né, no Paraná tava muito ruim demais, né, despejo...
Passiemo siete despejo. Torturado fui na cadeia, tudo, tudo, tudo, esse aí, né, até minha
famiia falá pra mim “vamo embora pai porque a polícia vai matá nois” desse jeito, né. E
então a gente fico preocupado, né. Só que... só que a gente também não têm mai nada,
não tem mai saída, né. Da onde vai í? Não têm mai nada! Né?! Só tem minha criança e
minha muié. Sorte que ainda não perdi ao meno minha famiia. Mai pasei risco de perdê,
viu?! Passemo risco de perde até criança.”
“E como falô, né, eu memo, eu memo conhoci essa luita, conhoci já lá no Paraguai. La
no Paraguai nois tinha também um movimento, né, o movimento MS... MCP,
Movimiento Campesino Paraguay; eu ajudava lá muito tempo. E de aí trabalhava assim
na roça, ajudava o movimento e indo assim preparando pessoa, né. (...) Tán envolvido
ali; até, até o pedaço que eu ganhei ali, contrui uma casinha em cima, até fico pra outro
ainda. Eu deixei pra outro, di pa outro e dexei. Por isso que eu te falei: Eu tenho
consciência muito limpa ali. Que podê ajuda pessoas, eu não estrago ninguém; que pode
ajuda, ajudo e se não pode ajuda, dexa do lado não estrovo ninguém também.”
“Daí outro dia eu já preparei o siete famiia que ia vir junto. Até queria vir mais, mai só
que eu não queria estragá o movimieto de a lá também né. De ai eu peguei aqueles siete
familia.; cheguei aqui, né, os grupos já tá todo cheio, não sei o que, não sei o que. Fiquei
sem grupo um mês. Aí depois de um meis eu falei com Ismael, Musgão, né, eu to sem
grupo. Eu to meio, meio até vergonhoso ali. O cara, né, isolado é ruim. Eu nunca fiquei
isolado no acampamento. Fica até ruim pra mim, né. Até vergonha eu to passando. Daí
ele falô ” no, no esquenta a cabeça. Não fica assim. Aí eu fiquei, né. Fiquei assim e
depois de um mês eu preparei um grupo, o grupo oito. Daí preparei o grupo oito, né,
entremo siete familia e daí aumento, ai indo vai indo agora tá com ternta e seis famiia.
Enton, é, é assim a luita. A luita é muito bonita se o cara participá, sabê da luita ali é
muito, muito bonito.”
“E a gente depois de fica assim, doze, doze año no Paraguai lá na luita, sin, sin, sin
futuro nenhum; aqui no Brasil já to com tre año e poco no movimento, sim futuro
ninhum, agora vo í despeja sin ninhum cobertor en cima de meu parente eu, pra mim
vergonha né?! Então eu vou aguentar até o fim. Esse aí que eu falo sempre pra
companhera, né.”
“Agüentar até o fim” é dizer de seu orgulho pessoal, de sua luta para não fracassar,
mas também é dizer do seu reconhecimento e identificação com as estratégias de ação
coletiva adotadas pelo MST. Só é possível agüentar até o fim no movimento exatamente
porque há uma identificação com esse coletivo e suas estratégias para superar as privações
vividas por seus membros. No entanto, fica claro que cotidianamente é preciso superar um
universo de dificuldades que naturalmente podem desmobilizar, provocar um sentimento
de ineficácia política. Em um dado momento da entrevista Paraguai e Rosane enumeram
algumas delas, aquelas que, para eles, consistem nas maiores dificuldades enfrentadas por
eles no dia a dia:
“Antes era melhor assim. Porque não é facil, né a gente fica debaxo das lona. Só que a
gente tá percurando prá consegui um pedaço de chão né. Pra acabá de criar os filho da
gente, né porque na cidade tá difícil pra vive, né também... Com quatro filho não dá prá
vivê na cidade. Então é por isso que a gente tá nessa luita no movimento.” (Rosane)
"Porque tem muitas coisas erradas aqui. E a gente é obrigado a concluir com aquilo. A
gente vê que tá errado e é obrigado a ficar quieto. (...) Não é questão de medo. É questão
que pra mexer você sabe que é uma andorinha no meio de... uma andorinha só não faz
verão. As pessoas precisava se reunir, mas as pessoas são quase toda maioria desunido
né. Pra um só pegar e... as vezes você vai correr atrás de um negócio sozinho, você tá no
certo mas acaba vazando pro errado. É como se um acampamento. Se vim só e coloca um
barraquinho só nessa beira de estrada aqui não vai resolver problema nenhum. Tem que
ser maioria. (...) De forma geral, o coordenador do grupo fica puxando mais pessoas. É
aí que se divide. Não é assim como você diz. Porque a gente tá aqui, todos estão por uma
finalidade só. Se todo mundo fosse unido, seria mais bonito. E a gente conquistaria mais
fácil ainda o objetivo. Do que haver essas divisão. Tem oito grupos. Então um
coordenador puxa pro dele, outro pro dele, individual. Acho que se fosse todos unidos
seria mais...".
“Essas terras que não são dos fazendeiros. Elas foram griladas bem antes. Aí eles ficam
com um monte de terras para trabalhar sozinhos. Que nem fazendeiro com cinco mil, e
fica tudo sozinho trabalhando ali, é tudo dele. A pessoa sozinha não faz nada, não tem
serviço para ninguém enquanto tem um monte de pessoas que precisam de trabalho,
precisam de... tá tudo sem serviço. Precisa de alguma coisa, de um roça , de um
motorzinho, né.”
“E sei que a Mônica falava assim: “ Mãe, vamo embora mãe, chama o pai e vamo
embora que a polícia vai matá nois mãe! Vamo.” (Sabino: Hum!) A policia vinha pra
cima co o carro, com o camburão pra cima de nois na chegada da fazenda; gritava “ mãe
vamo pra casa. Vamo embora que a polícia vai matá noi” Daí desespero naquela hora
que ela viu que... (...) Nem assim não desisti. Ainda fiquemo lá quatro meses acampado.
Depois que fumo retirado.”.
No caso dessa família injustiça e morte andaram muito próximas inúmera vezes.
Mas a falta de perspectiva de um outro lugar onde obter um futuro melhor, uma vida mais
digna mostrou-se decisivo para que enfrentassem tanto a morte quanto as demais situações
de injustiça que nas suas vidas viriam surgir.
Quando o sentimento de injustiça é vivido dentro do grupo, ele pode ter, como já
dissemos, nuanças diferenciadas. As falas de Liciel e Barroso podem ser significativas para
ilustrarmos melhor a questão. No diálogo travado por nós e Liciel, discutimos aspectos
relacionados à liderança. Para ele todos são iguais dentro do MST, todos são tão líderes e
parte dos processos decisórios quanto Cledison ou Zé Rainha, por exemplo. Nesse clima,
tivemos a oportunidade de resgatar uma de suas falas acerca da expulsão do acampamento
de uma mulher que abusava de sua autoridade como coordenadora de saúde e usava dessa
posição para lograr benefícios pessoais. Essa situação causou, além de um mal estar em
todo o acampamento, um generalizado sentimento de injustiça.
Para Liciel a realidade da injustiça é vista pelo conjunto dos acampados e é por esse
mesmo coletivo que tal situação deve ser enfrentada. Durante o diálogo, nos ficou que essa
visão ardorosamente defendida por Liciel e Edir, sua companheira, só tem sentido quando
a identidade coletiva do grupo é consistente e que situações como essa que nos fora
relatada por Liciel e Edir, tendem a propiciar o fortalecimento dos vínculos coletivos ao
invés de desmobilizar o grupo como um todo. Observemos um pequeno trecho desse
diálogo:
L - Porque todos nós? Porque é todo nós que tamo lutando pela terra. "Ah, não tem
líder, não tem chefe? Não rapaz, quem tem chefe é índio. Nós não somos índio. Nós
tamo lutando pela nossa terra."
A - E como é que faz sem líder pra decidir. Por exemplo no caso dessa menina que foi
embora, quem determina, quem decide isso?
L - Não, isso daí quem decide principalmente é o povão né. Que vê a realidade.
A reação de Liciel frente a essa situação pode ser entendida como um sentimento de
quebra da reciprocidade social entre membros de estratos hierárquicos, sociais ou políticos
diferenciados gerando, dessa forma, sentimentos de legitimidade moral para o
enfrentamento da questão. Assim, a identificação do adversário promove a passagem da
responsabilização do adversário à culpabilização do mesmo pela injustiça sentida e sofrida
pelo sujeito.
Marcos partilha conosco sua angústia a respeito da ausência de retorno do trabalho.
Trabalha-se de maneira incessante e mesmo assim não se consegue melhorar de vida. O
que se consegue é ver o patrão mais rico e perceber-se cada vez mais miserável. É o
sentimento de injustiça provocado por essa relação perversa presente tanto no trabalho
volante quanto no trabalho assalariado, que faz com que as pessoas busquem os
acampamentos do MST como opção. Esse foi o seu caso. Assim, Marcos assinala que o
“(...) acampamento (...) significa a esperança das pessoas... das pessoas terem uma nova
vida, né. Porque todas essas pessoas que vem... vem se acampa vem na esperança de não
depende dos otros, não vive trabalhando igual a gente trabalhava... trabalhava por
diária aí ou trabalhava pá usina que você trabalhava e a perspctiva não é boa. Você
sempre trabalha, sempre trabalha... Chega no final você adquire nada, nunca tem nada
prá você mesmo. A impressão que a gente têm é que as pessoas que vêm para o
acampamento que sempre elas tão, e na verdade é, né, irricando os otros e vai ficando
prá trás e Chega uma época que você não vai ter nada. Você olha prá trás na sua vida e
você não tem nada”
Para ele é o sentimento de impotência provado pelo indivíduo frente aos poderosos
que desperta neles esses sentimento de injustiça e o desejo de mudar o jogo: "É preciso
mudar o jogo, lutá pra não ser mais injustiçado e isso só será possível se a gente se uni
contra os grandões". As injustiças vividas por ele no meio, urbano, a compreensão de que
na balança social eles estão do lado mais frágil, a situação de precariedade com que ele e
os demais companheiros de luta levam a vida produzem nesse sujeito um sentimento de
revolta que faz com que ele se jogue de cabeça na militância, assumindo o discurso do
movimento em sua plenitude. No entanto esse assumir as proposituras do MST causa
tensão em seu interior na medida que seus interesses pessoais muitas vezes são
desconsiderados pelos dirigentes. Quando nos atemos ao subtexto presente em suas falas,
observamos que Marcos também sente-se injustiçado pelos líderes maiores do movimento
na medida em que não é compreendido.
Frases como "Muitas vezes a gente tem que abrir mão de certas idéias que a gente
tem para que a luta saia vencedora", "Os dirigente acha que eu devo ir trabalhar na frente
de massa no norte do Paraná, pros lados de Terra Nova. Eu acho que não vai dá muito
fruto mas como ele tem mais experiência a gente obedece Eles sabem o que faz." ou ainda
"Hoje eu to me dedicando ao trabalho como militante, mas eu também quero ter o meu
lote e se um dia assentado pra pode casá. (...) As veiz a gente cansa dessa vida...(uma
pausa longa) mas não pode desanima, não podemo deixa de militá. " nos indicam o grau
de dificuldade que é para Marcos conciliar projetos pessoais e a vida militante. Não ser
compreendido em suas opiniões, demandas e sonhos por vezes o desmobiliza, o faz sentir-
se injustiçado; dá-nos a impressão de que o ser militante torna-se, em certas ocasiões, um
peso em sua vida, um fardo a ser carregado. Como ele mesmo disse," As veiz a gente cansa
dessa vida...".
Assim, sentimentos de injustiça atuam na vida do Marcos de maneira ambivalente.
Ao mesmo tempo que ele é mobilizado por eles, pois quer, mediante sua militância, ajudar
a fazer um mundo socialmente mais justo, os sentimentos de injustiça vividos por ele no
interior do MST o desmobilizam da militancia e o direcionam para a acomodação do
assentamento e do casamento. Acomodação porque eles aparecem em oposição à vida
militante.
3
Ministério da Reforma Agrária e INCRA na esfera federal e Secretaria da Justiça e Cidadania e ITESP na
melhor é o trabalho coletivo, está disposta a tentar, mas "(...) é preciso ser bem organizado
porque a gente não conhece o coração das pessoa". Para Rosane e Praguai a conquista da
terra é uma meta que se mantém na companhia do trabalho coletivo quando estiverem
assentados.
Barroso, motivado pelas dificuldades do início da vida de assentado vê no trabalho
coletivo uma saída viável e que não deve ser descartada. Entretanto, isso não chega a
figurar em seu repertório como uma meta propriamente dita, mas como uma reflexão que
está em fase de maturação: “Eu penso comigo, todo mundo quando vai pega uma situação
difícil né. Se trabalhasse em conjunto todo mundo seria mais fácil. (...) Pelo menos nos
primeiros anos que é mais difícil”. Marcos trás em todo o seu depoimento discurso
militante: "Aqui nós já temos a COOCAMP e assim que a gente terminá de construir a
cooperativa, será mais fácil organizar os assentados coletivamente. Quando eu tiver a
minha terra eu quer estar organizado num coletivo pra produzi e poder enfrentar o
mercado dominado pelo capital. As cooperativas e trabalho cooperativista é a melhor
saída pros pequeno produtor".
A fala de Marcos, como a de Paraguai, revela que, para ele, a aquisição da terra e o
trabalho coletivo são as duas faces da mesma moeda. Assim, a meta de ação coletiva
assume em sua vida o formato de um projeto político, o projeto do MST, que ocupa lugar
em sua vida e a tensiona quando entra em choque com alguns de seus projetos pessoais.
Parece-nos que essa tensão está presente porque em alguns momentos há divergência entre
a sua herança histórica e cultural e o projeto político-ideológico do movimento no qual
milita. Notemos que essa tensão não faz parte do cenário vivido por Rosane e Paraguai. A
questão do trabalho coletivo não é na vida do casal um projeto político do qual eles se
apropriam simplesmente. O trabalho coletivo é uma saída política, social e cultural que
eles encontraram para garantir a superação definitiva da precariedade presente vivida por
eles. Dessa forma há confluência entre o projeto do MST e a herança histórica e cultural de
Paraguai e Rosane.
Em oposição a esse grupo de sujeitos estão os demais depoentes deste trabalho e a
maioria esmagadora do acampamento Carlos Mariguela. Liciel considera o trabalho
coletivo no lote "(...) coisa de gente covarde" e Edir pensa que trabalhar em coletiva "(...)
é só pra caçá confusão e desgraça. Melhor é cada um no seu lote com seus filho". Márcia,
esposa de Barroso, diz que "Sempre achei que a gente tem que conseguir as coisas
sozinho. Eu sempre achei, desde que casei, que devo conseguir as coisas sozinha”.
4
Paraguai e Rosane militaram no MCP por 12 anos e agora faz três anos que estão militando no MST.
que Paraguai e sua companheira têm se dedicado à luta por justiça e igualdade no campo.
A vontade de agir coletivamente está expressa no desejo de agir em família assim, o MST
é a grande família com a qual Paraguai e Rosane contam para realizar todas as suas ações.
Vejamos esse trecho outra vez, pois para nós ele é bastante significativo:
“É, porque sem movimento você também não faz nada, né. Perque eu soizinho ali
não faço nada. Enton pra mim acho que significa muita coisa o movimento, né.
Ocupa mui.. Um famiia, pra falá, o movimento é uma famiia. Porque eu só, com
quatro criança e minha muié, eu não posso fazê nada. Não faço pressão nenhuma.
Então o movimento é uma famiia da gente, sabe. Ele muda, ele muda de todo jeito
até a família muda.” (Paraguai)
“Olha, eu acho que quando eu tiver a minha terra ela vai representar tudo aquilo que eu
nunca tive. É meu sonho é a terra. Ela vai representar realizar o meu sonho. Até hoje eu
nunca tive nada. A única esperança que eu tenho aqui nesse mundo que eu vivo, é a
terra. Eu tenho que sobreviver dela. Trabalhar, sobreviver dela. Eu acho que ela
representa, praticamente, ... ela vai ser tudo para mim. Sem ela, se eu não consigo o meu
lote, eu tiver que voltar para cidade eu vou morrer amanhã, daqui a vinte, trinta anos,
sem realizar o meu sonho. Tanto é que eu vim na hora exata. Esse meu filho aqui vai
fazer 18, o outro vai fazer 11. A gente tem tudo agora. Na minha família, nós somos em
seis. Eu acho que tenho a força para... porque sozinho eu não ia conseguir nada. Agora
eu não preciso mais da força de ninguém. Só de Deus e deles. Eu posso dar estudo,
roupa, sapato, tudo. Na cidade, eu ia abrir o bico.”
“Porque se eu quero pra mim, eu quero pra minha família, eu quero pra você e quero
pros meu vizinhos. Eu acho que eu tenho que querer pra todos. Porque se eu vou querer
uma área só pra mim, eu tenho capacidade pra isso? Se eu tivesse capacidade pra uma
área sozinha eu não ia tá aqui. Eu não ia tá aí isolado dentro do movimento. Eu ia
chegar e comprar uma terra só pra mim. Eu ia comprar uma chácara de uns 40, 50
alqueires só pra mim. Não é? Mas não acho que a capacidade da gente não alcança
isso.“
“A: Na sua opinião qual é o projeto do MST para as pessoas? Tem um projeto? Ou ele
arrecada famílias que se luta aqui e depois solta? É uma coisa mais solta?
B: Eu creio que é assim mais solto.
A: Não tem uma programação?
B: Se tem não tá chegando no teu ouvido.
A: O que o MST pensa sobre essa idéia do coletivo? Você já ouviu alguma idéia que o
MST tem sobre isso?
B: Não tenho ouvido comentário não.”
5
As pesquisas de Tarelho (1988); Fernandes (1996) e Andrade (1998) apontam para essa transformação e
dão subisídios a nossas análises.
o próprio processo de conscientização ficasse tutelado pela atuação dos diversos
mediadores que podem surgir durante a luta. Assim, a vontade de agir coletivamente
também estará na dependência da atividade mais ou menos ruidosa de tais mediadores.
Além disso, a estratégia de massa produz uma heterogenização interna do movimento,
pois com o aumento dos participantes também há o aumento da diversidade de
configurações de consciência dificultando o processo de identificação e reconhecimento
entre os membros do movimento.
“A: Você acha que nas reuniões o pessoal fala o que pensa.
B: Acho que tem até gente que às vezes tem vontade de trocar mas aí é aquele negócio.
Não quer mexer. Porque tem muitas coisas erradas aqui. E a gente é obrigado a concluir
com aquilo. A gente vê que tá errado e é obrigado a ficar quieto.
A: Por quê ficar quieto? Medo de quê?
B: Não é questão de medo. É questão que pra mexer você sabe que é uma andorinha no
meio de... uma andorinha só não faz verão. As pessoas precisava se reunir, mas as
pessoas são quase toda maioria desunido né. Pra um só pegar e... as vezes você vai correr
atrás de um negócio sozinho, você tá no certo mas acaba vazando pro errado. É como se
um acampamento. Se vim só e coloca um barraquinho só nessa beira de estrada aqui não
vai resolver problema nenhum. Tem que ser maioria.
A: Então parece que tem pouco espaço para diálogo, para ouvir, no acampamento as
pessoas são pouco ouvidas?
B: É. Precisava ouvir mais.
A: Quem precisava ouvir?
B: Para esse acampamento, para melhorar a situação, precisava de, primeiramente, os
coordenador de militantes mais adequados chegar e procurar por alguém.
A: Qual a maior falha do MST na relação de cuidar dos acampamentos?
B: Fica um pouco meio por conta.
A: O acampamento anda meio aos trancos e barrancos?
B: É.
A: Você acha que a família é um lugar que é trabalhado ou o MST usa como um jeito
de contar com o número de pessoas?
B: Para mim tem.
A: Mas o MST trabalha o valor e a importância da família?
B: É pouco mexido, mas existe sim.
A: Se trabalhasse mais, você acha que ajudaria?
B: Com certeza.
A: A ausência de diálogo é só entre os militantes de forma geral ou dentro do
acampamento também falta?
B: Ah, dentro também.
A: Existe diálogo entre os grupos?
B: Acho que não.
A: Por quê?
B: De forma geral, o coordenador do grupo fica puxando mais pessoas. É aí que se
divide. Não é assim como você diz. Porque a gente tá aqui, todos estão por uma
finalidade só. Se todo mundo fosse unido, seria mais bonito. E a gente conquistaria mais
fácil ainda o objetivo. Do que haver essas divisão. Tem oito grupos. Então um
coordenador puxa pro dele, outro pro dele, individual. Acho que se fosse todos unidos
seria mais...
A: Você acha que as reuniões são "faz de conta"?
B: É. Tudo "faz de conta". Todo fala que tá junto, mas chegou naquela parte ali cada
um tá puxando farinha pro seu saquinho. É desorganizado. Eu lembro que antigamente,
você vinha nesses acampamentos todo mundo comia junto. Hoje tem pessoas aqui no
acampamento que se souber que tá faltando a comida no prato do outro, as vezes não dá
para ele. E eu não tô dizendo isso para dizer que eu sou melhor do que todo mundo. Tem
uma parte na Bíblia que Deus fala "Dê a esmola com a sua mão direita sem que a sua
mão esquerda possa vê". Mas eu já fiz isso muito aqui. Já fiz não. Eu não fiz nada. Deus
que me deu e eu comparti com quem precisava. Mas já cheguei aqui, saber de pessoas
que estão necessitadas e eu pegar meu carro, às vezes eu não ter dinheiro para fazer as
compras para a pessoa mas eu comprar uma parte e sair pedindo para os meus amigos o
resto das coisas para poder completar uma cesta para dar para as pessoas aqui em baixo.
Tô dizendo pra dizer que eu não sou melhor do que ninguém. Porque hoje ou amanhã
pode faltar na minha também e alguém fzer isso por mim também. E se fosse assim era
mais legal. (...)
A: Quem deveria facilitar o diálogo?
B: Eu acho que os militantes.”
L - Olha, dos líderes da região eu vou te falar bem a verdade. Eu ali acho que líder... não
tem líder. Eu acho que todos nós é líder.
A - Todos nós quem?
L - Todos nós que lutamos pela terra são líder. Porque nós não tem líder nem chefe.
Quem tem chefe é índio, que já acha que todos são iguais. (...) Porque todos nós? Porque
é todo nós que tamo lutando pela terra. "Ah, não tem líder, não tem chefe? Não rapaz,
quem tem chefe é índio. Nós não somos índio. Nós tamo lutando pela nossa terra."
A - E como é que faz sem líder pra decidir. Por exemplo no caso dessa menina que foi
embora, quem determina, quem decide isso?
L - Não, isso daí quem decide principalmente é o povão né. Que vê a realidade.
Como pode-se notar, Liciel atribui ao povo a capacidade decisória. Tal capacidade
decisória, visão da verdade, é construída mediante as assembléias nas quais todos se
tornam iguais através do exercício cidadão do voto. A figura da liderança é rechaçada por
Liciel pelo fato de significar a supressão da liberdade de decidir a própria história. O líder
assume o lugar da autoridade inquestionável, da lei que não pode ser desrespeitada. A
imagem do chefe indígena que decide o destino da tribo figura no imaginário de Liciel
através desse dito popular 'quem tem chefe é índio'. Para Liciel as decisões tomadas em
coletivo dispensam figuras como os líderes. Decidir em coletivo, usar da palavra e debater
as questões que dizem respeito a ele, a sua família e ao seu grupo de pertença significa
assumir pessoalmente a responsabilidade de seu destino e do destino da coletividade.
Portanto, podemos perceber que com relação a dimensão da vontade de agir
coletivamente, estão presentes dois importantes aspectos: 1) O comprometimento dos
sujeitos com as ações coletivas propostas e 2) a avaliação por parte desses sujeitos dos
fatores situacionais da ação coletiva. No primeiro aspecto percebemos que os sujeitos
procuram estar familiarizados com a ação proposta de ação coletiva e procura também
verificar com que esta nova proposição se relaciona com as suas outras experiências em
ações coletivas. Isso significa que o sujeito necessita, antes de aderir à proposta, avaliar a
operação e os instrumentos dessa ação coletiva do ponto de vista da eficácia da ação, bem
como a necessidade dele participar para que a meta seja alcançada satisfatoriamente. Por
fim, consultar outros membros do grupo para certificar-se de que sua decisão de aderir à
ação não é equivocada, também pode ser uma das estratégias presentes e determinantes da
consolidação da volição do sujeito.
Em relação ao segundo aspecto desta dimensão vale observar que os tipos de
interesses e o grau de antagonismo presente entre o grupo de pertença e o grupo dos outros
é avaliado pelo sujeito na hora de garantir sua adesão à ação coletiva proposta. Nesse
sentido, pesar as relações de poder entre o seu grupo de pertença e o grupo de seus
adversários, bem como o grau de legitimidade atribuída a essas relações, ocupa um lugar
importante na definição por parte do sujeito de sua vontade de agir com o coletivo, visto
que pesar essas relações implica em avaliar os custos e os benefícios intra e intergrupais
decorrente dessa participação.
(Sem Deus com a Família (1965) Letra e música de César Roldão e Interpretação de Elis Regina)
1
A esse tipo de apropriação da Psicologia Social podemos chamar de Psicologia Política. No Brasil existe
um grupo de psicólogos que dedicam-se a estudo desse tipo e que estão reunidos na Sociedade Brasileira de
sociais. Em outras palavras, nosso esforço contribui para que a Psicologia Social retome
mais fortemente os movimentos sociais como área temática a que se debruça a estudar a
para a qual tem muito a colaborar. Historicamente é possível observar que nas raízes da
Psicologia Social encontra-se a busca da compreensão acerca de questões ligadas à
movimentos de massa. Assim, encontramos diversos trabalhos que marcaram a Psicologia
Social como sendo um campo da ciência comprometido com o estudo dos movimentos
sociais. Um exemplo importante do uso da Psicologia Social nesse tipo de estudos pode ser
encontrado na obra de Hadley Cantril que em 1948 escreveu o clássico The Psychology of
Social Moviments. No Brasil encontramos alguns estudiosos realizando esforços
importantes para a ampliação dos estudos sobre movimentos sociais realizados pela
Psicologia Social. Entre eles podemos nomear os professores Leoncio Camino, Salvador
Sandoval, Louise Llullier, Talma Souza, Marco Aurélio Prado, Pedrinho Guareschi, Maria
Palmira da Silva, Ana Raquel Rosas Torres e Soraia Ansara. Importa dizer que ainda, que
os trabalhos voltados às questões ligadas aos movimentos sociais sejam parcos, eles são
densos e revelam o potencial da Psicologia Social para esse tipo de estudos.
Do ponto de vista teórico, consideramos importante a retomada de George Herbert
Mead como sendo um autor importante e que pode oferecer alguns importantes
instrumentos de reflexão na compreensão de fenômenos psicossociais. De alguma forma
estamos contribuindo para que ele volte à cena da Psicologia Social. Como já pontuamos
no decorrer dessa dissertação, a retomada de Mead pela Psicologia Social é algo muito
recente, visto que anteriormente ele fora utilizado quase que somente por lingüistas,
sociólogos e filósofos.
Mas de maneira especial, entendemos com significativos nossos esforços para
contribuir para uma melhor sistematização do modelo analítico de estudos da consciência
política proposto por Salvador Sandoval. Lembramos que este é o primeiro trabalho
pautado por tal modelo. Alias, o fato de ser o primeiro constituiu-se um grande desafio,
pois não tínhamos no que pautarmo-nos no decorrer do trabalho. Assim, o trabalho de
Andrade (1998), ainda que não tomasse especificamente este modelo, foi como que o
nosso trabalho-guia. Em nosso capítulo teórico empreendemos incontáveis esforços para, a
partir de uma série de artigos publicados por Sandoval entre os anos de 1989 e 2001, dar
uma maior organicidade ao modelo que, apesar de ser trabalhado pelo autor e o grupo de
pesquisadores por ele orientados, não havia até o momento recebido um tratamento mais
Psicologia Política - SBPP. O estudo de Movimentos sociais é um dos temas clássicos a que os psicólogos
políticos dedicam-se.
pontual. Nesse sentido, entendemos como importe a retomada de Mead para clarear nossa
compreensão do modelo.
Outro ponto que para nós é relevante nesse trabalho, é o fato dele ser o primeiro
trabalho dentro da Psicologia Social que lança esforços para entender questões ligadas ao
MST partindo da unidade familiar2. Isso revelou-se de fundamental importância no estudo
do MST porque é com base no grupamento família e não no indivíduo que o movimento
está organizado. Assim, todas as decisões tomadas pelo movimento trazem em si o caráter
coletivo. O voto nas assembléias e nas reuniões de grupo, por exemplo, pertencem à
família do acampado tal e não à fulano de tal, o que obriga à família fazer, mesmo que
mínimas, discussões sobre os temas a serem votados. O valor da coletividade é um traço
marcante na história dos trabalhadores rurais sem terra organizados no MST e é mais
visível nos acampamentos do que nos assentamentos da reforma agrária. É na realidade do
acampamento que os sentimentos de solidariedade estão mais aflorados; é nele que as
metas de ação coletiva proporcionam o fortalecimento dos vínculos da identidade coletiva;
é no acampamento que a tomada de consciência das privações vividas por cada sujeito
permite a ressignificação de crenças e valores desse sujeito e o mútuo reconhecimento, o
reconhecimento do outro com um igual e dos adversários que eles tem em comum. Essa
nossa posição encontra respaldo tanto em nossa pesquisa de campo com acampados pois
muitos deles são filhos de assentados, quanto em pesquisa como a de Andrade que
dedicou-se a estudar assentados e constatou que "(...) a noção de solidariedade, de coletivo
(...) já esteve presente na vida dessas famílias, nos momentos de luta pela terra e pela
sobrevivência nos acampamentos, e que hoje parece estar esquecido" (Andrade,
1998:198)
Como a posse da terra é a meta a ser alcançada por todos, notamos durante as
análises das entrevistas que os interesses individuais encontram-se relegados a um segundo
plano da consciência, a espera de um momento para que possam vir a tona. O discursos de
2
Parece-nos importante fazermos aqui, ainda que no final desse trabalho, algumas considerações históricas
acerca da família como unidade produtiva. Segundo Stolcke mesmo durante o período da escravidão no
Brasil, os proprietários rurais que mexiam com café tinham preferência pela contratação de famílias para
cuidar da produção. Essa preferência se dava pelo fato de que mulheres e crianças auxiliavam durante a
colheita. Esses contratos davam-se nos moldes da parceria. Após a abolição da escravatura, a preferência era
por contratar homens livres que tivessem família, pois essa funcionava como reserva de mão-de-obra a
preços menores que os praticados no mercado à época da colheita. Assim, com a mudança nas relações de
produção, o trabalhador livre deixou o sistema de parceria e passou a ser remunerado. Esse fato ocasionou
algumas alterações na divisão do trabalho familiar. Enquanto o homem continuava sendo líder da família,
estabelecendo os contratos com os fazendeiros, mantendo o vínculo empregatício, recebendo e controlando
todos os salários,; a mulher que antes era a dona de casa e a guardiã dos filhos, passa a realizar trabalhos
sazonais. Lembramos que ainda hoje o trabalho da mulher é visto como sendo subsidiado ao do homem, que
os salários pagos a ela no campo é muitas vezes menor que os pagos ao homem. Mas fato é que ainda que
hajam inúmeras transformações no campo, a família ainda é a unidade produtiva que organiza essas relações.
todas as famílias, mesmo daquelas mais militantes, apontam para o instante do
assentamento, do corte das terras. É nesse momento que se processa uma baixa dos
sentimentos de solidariedade, de coletividade e um voltar-se para o seio familiar. Ë nesse
momento que a desconfiança e o medo de ser explorado pelo companheiro vem à tona.
Expressões como "Pra mim, melhor é o coletivo mas a gente não sabe o que tem nos
coração das pessoa..." (Rosane); "Trabalho seguro 'e com os meus filhos e a minha
esposa."(Osmar); "Coletivo (na plantação) é coisa de gente fraca, preguiçosa" (Liciel);
"Eu sempre trabalhei sozinha." (Márcia), mostram claramente que para a grande maioria
dos acampados as ações coletivas são uma espécie de trampolim, de mediação durante a
luta por um pedaço seu de terra. Verdadeiramente há o reconhecimento de que para vencer
os adversários que lhes impõe o lugar da marginalidade é preciso trabalhar juntos "(...) que
nem a gente está trabalhando aqui" (Márcia).
Mas essa premissa não se estende na maior parte dos casos para além dos
momentos de sobrevivência no acampamento e de conquista da terra. Se durante o
processo da luta impera a crença na mudança social, durante a fase posterior, de
assentados, impera a crença na mobilidade social, na força familiar. Isso pode ser notado
quando observamos as dificuldades que o movimento tem para organizar e manter as
iniciativas coletivas em assentamentos da reforma agrária. Muitas das iniciativas que
começam logo no início do assentamento acabam sendo frustradas no decorrer do tempo. É
por isso que nós entendemos o período de acampamento como sendo um instante
privilegiado para se gestar os sonhos coletivos, para que se possa organizar melhor o grupo
para que possam obter sucesso em suas iniciativas coletivas quando forem assentados.
Assim, o que percebemos é o acampamento como uma grande escola subutilizada pelo
movimento. Identificamos o caráter pedagógico do MST, já que ele pode atuar como um
agente político-pedagógico que, na interação com seu filiados, tem possibilidade de
constituir espaços de discussão, de leitura crítica acerca da realidade desses sujeitos
trazendo presente a sua matriz político-ideológica.
Nesse sentido temos encontrado tanto nas entrevistas como em conversas informais
durante nossa estada entre os acampados, falas que olham para o acampamento e para o
MST como sendo uma grande escola em que velhos, adultos, jovens e crianças são alunos.
A esse respeito Osmar colocou que "(...) o MST representa pra gente isso aí. A pessoa
tando aqui, aqui você fica tranqüilo, sossegado, porque é uma educação. Eu acho que é
uma escola porque você tem muito o que aprender. Por mais que você tá aqui, você tem
muito o que aprender. Porque eles ensinam mesmo. Sempre cursos e mais cursos. Até
cursos eles deram aí esses dias aí. O que é certo, o que é errado, eles fala mesmo. Não tem
esse negócio não".
Escola, educação estão ligadas a disciplina e a transmissão de conhecimento. O
papel formativo que deveria estar sob a tutela familiar é transferido em grande parte ao
MST, a "grande família". Assim, entendemos que a família passa por um certo
esvaziamento de suas funções. Na construção da consciência ela divide o papel formador
com o MST. E é interessante notar que em muitos momentos há uma certa dubiedade na
fala dos entrevistados. Quando eles se referem à luta eles se reconhecem como parte
integrante do MST, como um 'Nós'. Contudo quando se referem a formação e a disciplina é
como se não estivessem incorporados ao movimento, fazendo com que o MST passe a ser
um 'Eles' que tem influência em suas vidas. Osmar ilustra essa questão que está presente
em todas as falas, mesmo que daquelas famílias em que o ato militante é mais presente. Ao
dizer "Porque eles ensinam mesmo", Osmar está delimitando uma fronteira entre a vida de
acampado e a vida familiar, pois para ele a participação política no movimento é um ato
transitório na vida familiar. E essa transitoriedade pode ser vista na maioria de nossos
entrevistados ora de modo mais forte ora de modo mais brando.
Assim, esse 'Eles' assume, muitas vezes, a face do poder que pode agir de forma
coercitiva na vida desses sujeitos. Portanto, entendemos que a forma com que as questões
ligadas à coletividade são tratadas de modo a cair equivocadamente na negação da
individualidade. Para nós, é a negação da individualidade uma das grandes motivações do
fracasso de estratégias coletivas desenvolvidas pelo MST. Por isso fazemos coro com
aqueles que, como Souza, entendem que “(...) a autonomia dos indivíduos deve ser
preservada num Movimento Social, caso contrário teremos objetivos racionais fixados, em
detrimento do emocional, das opiniões individuais dos participantes. Garante-se as
condições objetivas e as subjetivas são massacradas”. (Souza, 1994:242)
É preciso que o movimento trabalhe com mais cuidado da relação existente entre
coletivo e individual, pois, como já observou Bert Klandermans (1997), encontramos nos
movimentos sociais "(...) ações coletivas de pessoas com objetivos e solidariedade. (...)
Portanto são indivíduos concretos que pensam, sentem, desejam, sonham". Como já
apontamos no capítulo quatro desse trabalho, as frentes de massa e os acampamentos são
espaços privilegiados para essa empreitada e que encontram-se, ao nosso ver,
subutilizados.
Quando analisamos a realidade do acampamento a partir das duas categorias de
trabalhadores rurais a que tivemos acesso no acampamento Carlos Mariguela, observamos
que os trabalhadores que tiveram uma experiência urbana tendem a significar a vida no
acampamento, no MST como sendo o retorno às origens campesinas, a um passado em que
as boas recordações estão presentes em oposição às dificuldades vividas na urbe do
desemprego e da violência. Essa significação pode ser encontrada tanto nos discursos
trazidos por Marcos que tem uma atuação mais próxima àquelas dos líderes do MST,
quanto pela família de Márcia e Barbosa, que tem uma atuação intermediária entre a
militância e base, estando mais próximos da base do que dos valores defendidos por
militantes como Marcos, ou pela família de Tereza e Osmar que ainda está vinculada a
proposições idealistas e bucólicas, do que seja viver no campo e do reencontro de uma
certa harmonia familiar desde que deixaram a cidade.
Contudo, nota-se que em cada configuração da consciência em que encontra-se
cada um desses sujeitos, há elementos que apontam para o campo como sendo a
possibilidade da melhoria de vida e para a superação da exploração capitalista presente na
sociedade de consumo urbana. Osmar e Tereza já nos apontaram para essa questão quando
relatavam a dificuldade de atender as demandas por produtos (por vezes de marca) que
eram necessário mas que também eram a marca da inclusão de seus filhos em seus grupos
de pertença. Segundo eles, ao regressarem para o campo esta pressão continua do consumo
exercida sobre a família na realidade urbana não estaria presente na roça. Essa ausência
abriria espaço para a construção de algo mais perene em oposição a transitoriedade que
marca a sociedade de consumo.
No caso de Marcos, vemos a preocupação por retomar sonhos que o universo das
drogas e da violência, presente na periferia curitibana, como que lhe afugentou, tirou. A
tranqüilidade presente em suas poucas experiências no meio rural e o seu imaginário do
que seja a vida no campo, levam-no a associar-se à luta do MST. Assim, para ele esta é a
grande oportunidade de resgatar a perspectiva de um futuro melhor e longe da
marginalidade com que tivera contato na cidade. Márcia e Barroso não são muito
diferentes dos demais. Depois de viverem na cidade de São Paulo por dois anos e de
perceberem que por mais que trabalhassem não conseguiam garantir uma melhoria
consistente em seu padrão de vida, resolvem retornar ao campo para lutar por uma chance
de crescer economicamente.
Todos eles tem em comum uma visão crítica e um tanto pessimista da vida urbana.
Todos eles reconhecem que as possibilidades de ascender socialmente na cidade pode ser
uma ilusão. Em outras palavras, a realidade do cotidiano - dura e penosa - quebrou-lhes
algumas crenças e valores societais a respeito da urbanidade. Pode-se dizer que nesses
casos retornar ao campo é, além de desejo de ascensão social, resgate da dignidade que
lhes foi usurpada no meio citadino, buscar um sentido para a vida, para a existência pessoal
e de seu grupamento familiar. Vale notar que no caso deles retornar ao campo não significa
abrir mão do conforto da vida urbana mas sim um meio pelo qual alcançá-lo seria menos
desgastante. Essas são questões presentes nas falas dos trabalhadores de origem urbana.
Já as nossas observações acerca das famílias de origem rural apontam para outra
direção. As famílias de Paraguai e Rosane - que estão mais sintonizadas com o discurso do
MST, de Liciel e Edir - que também tem uma boa sintonia, à exceção do que se refere ao
trabalho coletivo no assentamento, e de Toninho e Juciane - que também está no mesmo
espaço da experiência de Liciel e Edir, são por demais marcadas pela dor da expropriação.
A experiência do conforto urbano passa longe de suas intervenções. Assim a luta contra o
latifundiário e a luta contra a vida marginal a que foram submetidos assume um caráter
mobilizador em suas experiências no MST. Aqui a noção de classe poderia ser identificada
a partir do momento em que eles se reconhecem como um sujeito coletivo que tem
interesses e adversários comuns e necessitam mobilizar recursos presentes em suas vidas e
que são comuns a todos. A visão bucólica do campo dá lugar a concretude de um futuro
com menos sofrimento para eles e seus filhos. Conforto é ter comida, saúde e trabalho.
Mais do que isso já é um luxo que, sanadas as outras necessidades até pode vir.
Através das entrevistas pudemos notar que, se para as famílias urbanas a luta é
necessária para a superação das desigualdades, entre as famílias de origem rural
observamos que mais do que necessária, ela é uma luta permanente, uma luta sem fim. Há
entre os trabalhadores de origem rural uma postura mais crítica e a formação de vínculos
de solidariedade baseadas no mútuo reconhecimento. Parece-nos que essa apreensão mais
ampla, abrangente e crítica só é possível mediante a contraposição do sujeito ao outro;
mediante a percepção pelo indivíduo de sua determinação social e de sua diferenciação do
outro e das ações que ele mesmo é capaz de realizar. Assim, as ações transformadoras que
ele pode realizar estão baseadas nesse conjunto de dimensões que organizam a consciência
política e porque não dizer, social.
Para nós, as preocupações expressas inúmeras vezes por Paraguai com a situação
social não apenas de sua família, mas de todos aqueles que são seus companheiros de luta
contra a existência do latifúndio no país, é um indicador de uma configuração da
consciência política mais complexa. Isso se justifica a partir da concretude de suas falas e
análises que superam a condição naturalizada no universo das crendices, da ideologia da
cartilha. Para nós, os depoimentos de Paraguai são o reflexo da maturidade política que é
capaz de apreender as nuanças das relações e jogos próprios da arena política.
Inicialmente pretendíamos também ter alcançado o grupo dos pequenos
proprietários de terra e que são insuficientes para a subsistência familiar. Encontramos
duas famílias no acampamento Carlos Mariguela mas que se negaram a colaborar conosco
concedendo-nos entrevista apesar de termos com ela um convívio diário e próximo. Mas
vale dizermos aqui que essas duas famílias encontravam-se bastante desmotivadas pois
tinham a expectativa de lograrem seu quinhão bastante rapidamente. Havia entre os
membros dessas famílias uma descrença na possibilidade de que as mudanças almejadas
pelo movimento fossem possíveis. Mesmo assim, estavam lá acampadas como que
orientadas por um sentimento bem pragmático: tentar um quinhão maior de terra do que
aqueles que eles já têm e no qual plantam ordinariamente.
Tivemos a clara impressão de que a experiência da propriedade da terra os
diferenciaria bastante dos dois outros grupos que entraram firmemente na luta. Ainda que
não tenhamos dados mais consistentes para fazer a adequada análise, arriscamos dizer que
esse grupo traria alguns valores capitalistas bem mais arraigados que os outros em função
de terem sido os únicos a terem experimentado o que significa ser proprietário. Esse grupo
pareceu-nos estar bastante afinado com a mentalidade pequeno-burguesa própria da classe
média brasileira. Todavia, queremos ressaltar o fato de que essas considerações estão no
campo da hipótese e necessitariam ser investigadas em outra oportunidade e com mais
cuidado para que equívocos e injustiças não fossem cometidos.
Não poderíamos deixar de registrar aqui, que um dado que perpassa a todos os
grupos refere-se à necessidade de se preservar um modelo de vida: o da família que
trabalha unida produzindo na terra que é sua para sobreviver. Isso aponta para uma questão
não estudada neste trabalho e que poderia ser melhor estudada em outra ocasião. Referimo-
nos a fragmentação da família em função do êxodo rural. É importante notar que a
manutenção da família no meio rural desejada por eles passa por transformações visto que
a estrutura familiar encontra-se fragilizada no mundo contemporâneo. Isso vale também no
meio rural. Não é a toa que a responsabilidade da disciplina, por exemplo, é compartilhada
com o MST. Parece-nos que a posse da terra é, além de um projeto econômico que lhes
possibilita ascender3 economicamente na sociedade rural, um espaço que consolida na
terra.
3
Quando falando em ascensão, não estamos querendo dizer enriquecimento mas nos referendo a uma
significativa melhoria de vida, a um resgate da dignidade humana que lhes fora roubada no processo de
exclusão social.
Ainda vale destacar aqui a condição da mulher nos acampamentos. Ainda que não
seja nossa intenção ingressar no campo das discussões de gênero, as contradições
encontradas em nossas experiências relacionadas a isso são marcantes e merecem serem
pontuadas aqui por nós por entendermos que elas representam o princípio de uma quebra
política no universo patriarcal. Em todas as entrevistas homens e mulheres dizem de
maneira categórica não haver diferenciação nos papéis do homem e da mulher na realidade
do acampamento, contudo quando observamos a estrutura hierárquica do acampamento
Carlos Mariguela, notamos que dos 10 coordenadores de grupo, apenas duas são mulheres
e dos dez vice-coordenadores apenas uma era mulher.
Nossa inquietude surgiu quando ouvimos falas masculinas como as de Osmar que
dizia no decorrer da entrevista familiar que na ausência de consenso em casa seguia-se a
sua opinião pois ele era "(...) o cabeça da casa, o chefe da família". Porém, durante sua
entrevista individual, Osmar disse-nos que "(...) na hora de negociar, de decidir as
mulheres são melhores que os homens porque elas tem a cabeça fria". Ainda que a melhor
decisão, segundo Osmar, venha da mulher graças a sua "cabeça fria", o monopólio da
decisão final lhe pertence. Postura semelhante pode ser encontrada na fala de Liciel. Ele
diz que "(...) as mulher e as criança são importantes pra afastar as polícia que não bate
nelas. Mas não é só isso elas tem capacidade, observa as coisa com mais calma que os
home nas hora de tensão". Mas ainda assim Liciel acha que "(...) a Edir deve cuidar dos
filho e da casa e não se mete nas coordenação da saúde como já fez".
A ambigüidade presente nas falas dos homens acampados é notória. Ainda que
reconheçam o potencial de suas companheiras, eles continuam numa posição comodista,
machista e cômoda que é ratificada muitas vezes pela submissão silenciosa das mulheres
que assumem o lugar das cuidadoras do lar e das guardiãs dos rebentos. Mesmo assim,
entendemos ser o reconhecimento da capacidade da mulher no campo decisório um avanço
importante nas relações de gênero dadas no meio rural: um meio eminentemente machista
e conservador. Para nós, as falas masculinas que reconhecem o potencial feminino como
sendo algo que extrapola o limite geográfico do tanque e do fogão, são fruto das
experiências vividas no interior do acampamento. Ë dentro da vida diária do acampamento
que trabalhos organizados pelo grupo de mulheres que atua com Márcia na distribuição do
leite ou no cuidado da saúde no acampamento ou ainda nos trabalhos de coordenação de
grupo como fazem Marilú e Márcia que são transformados sócio-histórica e politicamente
os conteúdos das crenças e sentimentos de eficácia política em relação ao trabalho
feminino.
Quando observamos a totalidade das entrevistas, notamos que é patente o fato de
que os sujeitos, guardadas as diferenciações das configurações de suas consciências
políticas, tem claro para si questões como sua condição social de pobreza; das dificuldades
advindas de sua resistência no meio rural; a sua condição de igual ao outro e da
necessidade de unirem forças para a realização de seus sonhos, seu objetivo maior que é a
conquista da terra. Eles demonstram, assim, uma forte consciência das precariedades
enfrentadas por eles e de como elas lhes foram impostas através das políticas estatais que
beneficiam apenas aos poderosos e um alto sentimento de solidariedade e de mútuo
reconhecimento. Contudo, nem todos eles demonstram ter uma consciência de classe que
se evidencia na crença de que sua ascensão social dentro do universo agrário; a superação
da intolerável precariedade de suas condições de vida só é possível mediante a luta coletiva
e que se expressa nas ações particulares e organizadas na coletividade. Os depoimentos de
modo geral são contraditório. Eles são marcados por um hiato entre o discurso e a ação.
Em outras palavras, os sujeitos por nós entrevistados sabem de alguma forma, com maior
ou menor clareza, que para transformar sua realidade muitas são as variáveis a serem
mexidas. E entre essas variáveis a que está mais próxima e depende exclusivamente deles é
a decisão pessoal de cada um em aderir a essa luta que não é de um ou outro militante do
movimento, mas de todos aqueles que tiveram sua dignidade negada e que são capazes de
se reconhecer como iguais e fazerem de suas lutas pessoais uma luta de todos.
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ANEXOS
Apresentamos aqui dois gráficos fornecidos pelo ITESP nos quais pode-se observar
dados referentes 1) às áreas de conflitos fundiários no Estado de São Paulo existentes até
outubro de 2000 e 2) ao número de famílias e assentamentos instalados em São Paulo
distribuídos por coordenação regional do ITESP.
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