Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
BRENDALI DIAS
SÃO PAULO
2016
ONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
BRENDALI DIAS
SÃO PAULO
2016
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
Dedico este trabalho...
Começo agradecendo ao José, pelo amor, apoio, por cuidar de mim e por dizer
“vai” quando eu tenho dúvidas se devo ir... E também aos meus filhos, principais razões
da minha vida, Nicole que com seu jeito simples e desembaraçado me trazia pra vida
quando estava mergulhada na escrita e Felipe pelas discussões sobre o tema da tese,
pela leitura do texto e pela ajuda nos mesmos, enfim aos três pelo amor e paciência que
têm tido comigo, por me compreenderem, apoiarem e me darem o espaço necessário
para realizar meus sonhos acadêmicos em um momento em que tenho sido tão ausente
como mulher e mãe. Agradeço ainda Maik Batista por trazer alegria a nossa casa.
Este trabalho pôde acontecer porque o Raul Pacheco, meu orientador, além de
me dar a oportunidade de estar no Núcleo de Psicanálise e Sociedade como doutoranda,
ainda teve paciência para lidar com minhas dificuldades, confiando e contribuindo com
orientação cuidadosa para o desenvolvimento de minha escrita. Agradeço pelo rigor
teórico de seus ensinamentos em sala de aula e pela amizade fora dela.
Agradeço imensamente ao amigo e parceiro de ofício, Aluísio Ferreira de Lima,
com quem contei para desenvolver este trabalho, à sua esposa Meire e filha Stephanie,
por me receberem em seu lar e me acolherem com tanto carinho num momento difícil
deste trabalho, assim como o fizeram no mestrado.
Aos arguidores de minha banca: Nadir Lara Junior, pela leitura do texto, e por
me cobrar o lado político da tese; Sandra Dias, por me atentar sobre a função do
analista; Marcelo Checchia, por me ajudar com a estrutura do trabalho e pela leveza que
me passou na leitura posterior à qualificação; Salvador Sandoval, pelos apontamentos
tão pertinentes sobre Marx, me dando uma nova direção de como usá-lo na tese. Saibam
que todos contribuíram imensamente para a configuração e conclusão deste trabalho e
espero ter correspondido um pouco às expectativas.
Dizem que o ofício de analista é solitário assim como a escrita de uma tese é
solitária. Comigo não funciona assim, meu consultório sempre foi repleto de colegas
com quem divido o espaço e aos quais agradeço pelo convívio, e minha tese repleta de
considerações deles, com quem divido o desenvolvimento da escrita desta tese,
principalmente Leo Peretti, Mariana Ferretti e Renata Rampim, por lerem e comentarem
meus textos, à Simone Sousa pelas discussões pertinentes, ao, Marcelo Santos pela
longa amizade, enfim, a todos pelo carinho, amizade e momentos de descontração.
Agradeço a todos os colegas que participaram do Núcleo Psicanálise e
Sociedade esses anos, por contribuírem para um ambiente rico de desenvolvimento
teórico e também pela amizade especialmente Conrado Ramos e Guilherme Mola,
Jamile e Ricardo. Agradeço ainda Lilian Clementoni pelo companheirismo em Paris e
Anderson Schirmer com quem dividi minhas angústias desde o mestrado.
Agradeço aos colegas do Movimento Psicanalítico do ABC, Conceição Sperini,
Daniel Vitorello, Flavia Reigado, João Felipe Domiciano, Karla Rampim, Leo Peretti,
Patrícia Spessi, Raquel Schimdt, Renata Rampim, por toparem sustentar a psicanálise
em nossa região de maneira oposta ao mau uso do Um, saibam que toda experiência
vivida esses anos teve efeitos na escrita desta tese.
Agradeço aos colegas do Fórum do Campos Lacaniano São Paulo por trazerem
as contribuições que sustentam o Seminário da EPFCL-Brasil e FCL-SP no ABC,
principalmente Gláucia Nagem, Sandra Mara, Delma Gonçalves e Ana Paula Gianesi.
Helena Bicalho, pelo que me faz avançar em minha empreitada do desejo.
Ao amigo Umbelino, que topou fazer a revisão de texto de minha tese e o fez
com extrema competência, para além de correções ortográficas.
Pensar na construção da minha vida me motiva a agradecer alguns familiares
que participaram da mina vida e meus sofrimentos, sempre cobrando minha presença,
que ficou difícil nestes tempos. Agradeço aos meus pais, por me mostrarem as
dificuldades da vida. À minha irmã Jaqueline, pelo apoio e pelas correções ortográficas
do projeto e da qualificação deste trabalho. Às minhas sobrinhas Sthefanie, Vanessa,
Vitória e Valentina, pelo amor e ao Vanderlei por ser o melhor cunhado que alguém
pode ter! Agradeço ao meu irmão Edilberto, pela amizade e pelo amor compartilhado
enquanto esteve conosco, a dor de perdê-lo nunca poderá ser simbolizada, nunca será
superada, saudades sempre...
Aos primos Fabrício e Melissa, pelo carinho e amizade. Ao tio João, sindicalista
dos movimentos grevistas dos anos 80, pelas conversas sobre o movimento, questão
muito pertinente a esta tese e que pretendo desenvolver num próximo trabalho, e à tia
Ana que junto com ele me apoiaram em momentos difíceis da vida. À tia Tininha e ao
tio Carlos por serem uma inspiração aos estudos.
Não poderia deixar de agradecer também à Marlene Camargo, secretária do
Programa de Psicologia Social da PUCSP, por sua dedicação em me ajudar a organizar
o lado burocrático na academia e pela amizade.
Finalmente agradeço ao CNPq pelo financiamento de minha pesquisa.
Resumo
DIAS, Brendali. The discourse of the analyst imply some form of resistance to the
discourse of the capitalist? About the political dimension of the freud-lacanian
psychoanalysis. 2016. Doctoral Thesis – Social Psychology Program. Pontifical
Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2016.
The objective of this project was to think the political dimension of the freud-lacanian
psychoanalysis, checking the possibility of the discourse of the analyst implying some
form ofresistance to the discourse of the capitalist. The research was done through a
study of the Freud-lacanian theory. Freud, in “Civilization and its Discontents”, claimed
that the social bond was the main source of men’s suffering and that the conflict in the
bond was impossible to be eliminated. In agreement with Freud, Lacan writes the XVII
Seminar, “The other side of psychoanalysis”, formalizing 4 discourses as forms of
social bond, namely: discourse of the master, discourse of the hysteric, discourse of the
analyst and discourse of the university, as devices which present the forms of the
subject’s enjoyment on the bond, always followed by an impossible of not being able to
be completely fulfilled and of an impotence of relationship with the truth proposed by
the discourses. Posteriorly, Lacan (1972, unpublished) delivers +1 discourse, discourse
of the capitalist, proposed as the one which breaks the social bonds and puts the subject
in a short circuit of enjoyment for the consumption of objects. Lacan used yet Marx
political economy theory to think the capitalism in the contemporary society. To defend
that the discourse of the analyst may imply some form of resistance to the discourse of
the capitalist, we indicated the discourse of the hysteric, that by questioning the system
through its symptom, and by meeting an analyst who replies from the place of object a,
it is possible to promote a margin of freedom in relation to its structural alienation,
which has its political dimension in the clinic, given that the subject of psychoanalysis
is political. To think such possibility out of the clinic, we indicated the collective logic
theory suggested by Lacan in his text about the logical time, as a possibility to promote
a margin of freedom for the subject in the social bond, therefore a counterpoint in
relation to the elimination of conflicts in the society pursued by the discourse of the
capitalist. Our issue keeps changed: would the discourse of the analyst make a collective
logic possible, which would imply some form of resistance to the discourse of the
capitalist?
Key words: Psychoanalysis, discourse of the analyst, discourse of the capitalist,
symptom, resistance and collective logic.
Résumé
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 11
1- O NASCIMENTO DA PSICANÁLISE E CONCEITOS CENTRAIS PARA
DISCUTIR SUA DIMENSÃO POLÍTICA......................................................... 26
1.1 O nascimento da Psicanálise e o sintoma........................................... 26
1.2 O gozo e o desejo do analista............................................................... 32
1.3 A ética da Psicanálise e o objeto a...................................................... 39
1.4 O tempo do sujeito do inconsciente e o ato psicanalítico.................. 43
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 130
11
INTRODUÇÃO
Žižek (2005) explica que a ameaça ao espaço político está no fato de que o
processo global admite a politização das lutas particulares porque elas mantêm intacto o
processo capitalista. Segundo ele, os militantes de determinadas lutas particulares têm a
sensação de estarem obtendo a mudança requerida, sem perceber que estão admitindo,
no interior de sua luta, as regras do capitalismo, pois as pequenas concessões admitidas
aos requerentes e tidas por eles como legítimas, são na verdade uma armadilha que cria
uma falsa aparência de resistência. Além disso, o autor afirma que o problema não está
somente no fato de que essas soluções são falsas, mas também no fato de que não
existem soluções verdadeiras. Ele aponta que o importante é que a estrutura do sujeito o
permite questionar a política em vigência (capitalismo hoje) e buscar transformação
social, mas que ao resistir é preciso contar, em contrapartida, com a também resistência
do capitalismo contra uma transformação social fora das coordenadas por ele exigidas.
Ele nos alerta para o fato de que as lutas multiculturais se adéquam às regras do
capitalismo e não o contrário. Nas palavras de Žižek (2005), “a politização da série de
lutas particulares, que deixa intacto o processo global do capital, é insuficiente” (p.39).
Aliás, o fato de tais lutas particulares não afetarem o processo global do capitalismo
levam Žižek (2005) a levantar uma questão: “como reinventar o espaço político nas
atuais condições de globalização?” (p. 39).
Žižek aponta para os perigos da ambiguidade da linguagem e seu poder de
convencer quando não nos pomos a pensar, pois se pensarmos é possível obter através
do discurso capitalista dois pesos e duas medidas, já que, por um lado, ele promete
completude no consumo e, por outro e ao mesmo tempo, convoca o sujeito a encarar o
consumo como um objetivo de vida, apontando a completude no próximo consumo, e
no próximo e no próximo... ou seja, consumismo infindável sem completude, promessa
que não se cumpre, e o que não se cumpre fica escondido atrás da promessa, não
aparece.
Ele aponta que é preciso estar disposto a correr riscos, já que as mudanças
verdadeiras geralmente são dolorosas, acreditando que mesmo que não haja soluções
verdadeiras possa haver mudanças verdadeiras. Ou seja, o desejo singular de cada
sujeito não permite que haja uma sociedade harmônica, mas isso não impede de buscar
mudanças verdadeiras na sociedade para um mundo melhor, sabendo que “mundo
melhor” não significa “mundo perfeito”.
As particularidades da teoria psicanalítica discutidas no decorrer da dissertação
nos levaram a finalizá-la propondo a Psicanálise freudo-lacaniana como um importante
13
o discurso da universidade, na medida em que ele evolui cada vez mais para
um discurso de experts e de tecnocratas, seria, em sua finalidade, um discurso
fundamentalmente de-segregador – e, portanto, concentracionário. Para
compreender bem essa tese extremamente subversiva, é preciso ler o que
Lacan declara no prefácio, datado no Natal de 1969, que ele escreveu para o
livro de Anika Ri`et-Lemaire, jovem pesquisadora da Universidade de
Louvain, intitulado Jacques Lacan. Lá, lê-se, em nota, que “A recusa da
segregação está naturalmente no princípio do campo de concentração”
(p.192, grifos do autor).
1
A partir de agora, toda vez que usarmos a palavra concentrar e seus derivados em negrito no nosso
texto, tratar-se-á da tentativa do discurso universitário e do discurso capitalista de aniquilar as diferenças
existentes entre os sujeitos, ou seja, da uniformização dos sujeitos e consequentemente da eliminação do
sintoma singular de cada um. Nas citações dos autores elas aparecerão sem negrito.
14
O modo mais destacado dessa “mentira sob o disfarce da verdade”, nos dias
atuais, é o cinismo: com desconcertante franqueza, “admite-se tudo”, mas
esse pleno reconhecimento de nossos interesses não nos impede, de maneira
alguma, de prossegui-los; a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado
marxista do "eles não sabem, mas é o que estão fazendo”; agora, é “eles
sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo”(p.14, aspas
do autor).
2
Não nos aprofundaremos no conceito de ideologia, mas dedicaremos essa nota de rodapé para situar o
leitor sobre algumas características importantes em relação a ela, sobre as quais este trabalho a entende.
Começaremos com a definição de Compte-Sponville (2003), segundo a qual “A palavra [ideologia], faz
décadas, é utilizada apenas em seu sentido marxista. A ideologia é um conjunto de ideias ou de
representações (...) que não se explicam por um processo de conhecimento – a ideologia não é uma
ciência – mas pelas condições históricas de sua produção numa sociedade dada, especialmente pelo jogo
conflitual dos interesses, das alianças e das relações de força. É como um pensamento social, que não
seria pensado por ninguém mas (...) dentro do qual todos pensariam. A ideologia é inconsciente: ela é o
lugar social e historicamente determinado, de toda consciência possível.” (p. 292). Althusser (1970/1996)
também aponta características bastante importantes da ideologia com as quais concordamos. Ele se vale
da concepção freudiana de sonho para propor, como afirma “que a ideologia não tem história, o que não
significa, decididamente, que nela não haja historia (...), mas que ela não tem uma história própria. (...) a
ideologia não tem historia pode e deve (...) ser diretamente relacionada com a proposição freudiana de
que o inconsciente é eterno, isto é, não tem história. Se eterno não significa transcendente a toda a história
(temporal), mas onipresente, trans-histórico, e portanto imutável em sua forma em toda a extensão da
história, adotarei a expressão de Freud palavra por palavra e escreverei: a ideologia é eterna, exatamente
como o inconsciente. E acrescento que julgo essa comparação teoricamente justificada pelo fato de que a
eternidade do inconsciente guarda alguma relação com a eternidade da ideologia em geral! É por isso que
creio ser lícito, ao menos por conjectura, propor uma teoria da ideologia em geral, no sentido como Freud
expos uma teoria do inconsciente em geral”. (ALTHUSSER, 1970/1996, p. 125). O que queremos
destacar com o autor é que a estrutura da ideologia tem uma estrutura trans-histórica, mas ela constrói sua
história de acordo com a relação de forças nela implícitas em uma época e/ou cultura, assim como a
estrutura do inconsciente do sujeito.
15
aquecem ainda mais ao propagar análises que protegem seu modo de funcionamento,
intensificando seu poder. Como aponta Ramos (2007):
3
Mais-valia é o conceito marxista que denuncia o excedente que o empresário, detentor dos meios de
produção, recebe a mais em relação ao valor do custo da mercadoria, tendo em vista que este excedente se
dá a partir da exploração de trabalho não pago ao trabalhador, o que torna a mais-valia o coração do
capitalismo.
4
Alienação: Segundo Marx (1844/2009), para a livre circulação das mercadorias torna-se necessária uma
alienação do sujeito frente a elas. Para ele, a alienação se mostra na divisão do trabalho capitalista e é
caracterizada pela especialização e fragmentação do trabalho promovido pelos meios de produção detidos
pelos empresários, ou seja, os trabalhadores passam a realizar o trabalho em troca de sua subsistência, por
isso o trabalho é alienado. Como efeito, os trabalhadores que antes trabalhavam para si, passam a
trabalhar para as empresas pelo fato de não conseguir concorrer com os preços das mercadorias oferecidas
pela produção das empresas. A consequência desta concorrência desleal é a ruína dos pequenos artesãos e
comerciantes, o que origina a força de trabalho disponível de que o capitalismo necessita, pois eles se
submetem às condições de trabalho exploratórias para garantir seu sustento. Com isso, cria-se o círculo
vicioso que aliena o sujeito ao sistema capitalista.
5
O conceito de fetiche da mercadoria é cunhado por Marx (1867/2010) como algo que a mercadoria
esconde por traz de sua forma. Na relação de troca das mercadorias, as pessoas não se atentam a como
elas foram feitas ou como chegaram até ali, ou seja, ao assumir uma relação entre coisas, seu valor de uso
não é misterioso. O mistério da mercadoria está no fato de ela encobrir as características do trabalho
humano e principalmente a criatividade humana que é eliminada no trabalho repetitivo imposto pelos
16
meios de produção, assim o fetiche da mercadoria encobre o fato de que a mercadoria é fruto das relações
humanas.
6
É importante marcar que o capitalismo de consumo é algo que se sobrepõe ao capitalismo de produção,
mas obviamente não o elimina. A força de trabalho vendida como mercadoria e a extração da mais-valia
continuam mantendo o capitalismo. Porém, a partir principalmente da década de 70, com o avanço da
tecnologia, a fabricação das mercadorias supera muito a quantidade de consumidores. Isso faz com que o
capitalismo aglutine mais um aspecto ao seu funcionamento: é preciso vender a mercadoria fabricada em
excesso. Assim a ação da mídia, incorporada ao capitalismo, além de não eliminar a extração da mais-
valia extraída do trabalho proletário, promovem o consumo acelerado, aglutinando mais um aspecto que
dá ao capitalismo um progresso que parece ilimitado. Daí dizer que o capitalismo de consumo é uma
evolução do capitalismo de produção.
17
Deverá ser insatisfatório para manter aceso o desejo que não só assegura o
consumo, mas também o trabalho e a produção. Quem continuaria
produzindo e consumindo uma vez que estivesse satisfeito com seu
consumo? É a insatisfação permanente dos consumidores que faz com que
sejam tão bons consumidores e tão bons trabalhadores e produtores. (p. 59)
7
Há uma homologia entre mais-valia e mais-de-gozar que será tratada no capítulo 2 deste trabalho.
18
Se, como indica Freud, o sofrimento que provém de nossos relacionamentos com
outros homens é o mais penoso – os mesmos sofrimentos que apontam o mal-estar na
cultura como estrutural –, não seria através do consumo que o mal-estar desapareceria.
Isso não funciona porque o mal estar está nos laços sociais e embora o discurso
capitalista busque desfazer os laços, isso não é possível. Posteriormente Lacan (1960-
61/1992) além de concordar com Freud, postula que esse mal-estar é estrutural em
função da entrada do sujeito na linguagem.
O capitalismo, ao buscar deslegitimar a inerência estrutural do mal-estar na
cultura, prometendo um gozo imposto de forma universal pelo consumo, ele na verdade
provoca mais mal-estar, pois a aceleração do consumo faz com que o sujeito, ao tentar
seguir a cartilha do capitalismo para evitar o mal-estar, confronte-se com a falta do
objeto complementar a cada tentativa de sutura. E isso se dá mais vezes do que ocorreria
sem essa aceleração promovida pelo capitalismo de consumo, ou seja, junto com a
aceleração do consumo há a aceleração do gozo e consequentemente do mal-estar.
Mesmo assim o sujeito continua sua busca de completude no consumo. A cada
promessa uma tentativa, a cada tentativa o mal-estar se presentifica, o que faz com que
o capitalismo prospere em todos os segmentos possíveis. Dias (2006b) nos lembra que:
8
O conceito de sintoma do ponto de vista da psicanálise será tratado no capítulo 1 deste trabalho.
19
discurso do analista como efeito sintomático dessa invasão. Segundo Lacan (1968-
69/2008):
9
O discurso universitário será trabalhado no capítulo 2.5 deste trabalho.
20
10
O conceito de separação em psicanálise ser tratado no capitulo 2.2 deste trabalho.
22
Que antes renuncie a isso [ser psicanalista], portanto, quem não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia
fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o
compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça
bem a espiral a que o arrasta sua época na obra continua de Babel, e que
conheça sua função de interprete na discórdia das línguas. (p. 322, colchetes
nossos)
11
O cartel é um órgão de base da escola. Formado por 4 ou 5 participantes que se aproximam por querer
estudar um tema em comum, ele vai mais além de um grupo de estudos. Sua formação se dá pelo
encontro de 3 ou 4 pessoas que de comum acordo convidarão alguém para ocupar o lugar do +1
designado como mestre por eles. A tarefa do +1, no entanto, é a de não ocupar este lugar de mestre, ele
não vai decidir o que os colegas devem fazer, ele vai implicá-los a decidir.
12
O passe, também um órgão de base da Escola, é uma experiência que ocorre após certo tempo de
análise e que significa que o sujeito que por ela passa, atravessa sua fantasia, e ao conhecer o núcleo de
seu sintoma se dá por satisfeito com relação a ela, ou seja, ele percebe que não há mais o que ser dito ao
seu analista e que deste momento em diante poderá se virar sozinho com a falta decorrente de sua
23
castração. O passe é consequência de uma série de atos analíticos que ocorrem durante os anos de
tratamento de um sujeito em análise. A função do passe é verificar se ali há um analista e segundo Bruno
(2011), o passe se dá quando “Em efeito, o gozo que imponho ao Outro não é um produto de meu
pensamento, por isso, o gozo que eu experimento não pode ser mais o que afeta meu corpo. Não posso
mais gozar o gozo do Outro” (p.84).
24
13
O ato psicanalítico será tratado no primeiro capítulo, adiante.
25
Em Ciência e Verdade, Lacan (1966a/1998) nos diz que Freud só pôde descobrir
o sujeito do inconsciente, o sujeito dividido, a partir do sujeito da ciência de Descartes,
do seu cogito, “penso, logo existo”. Descartes teve a dúvida como premissa para
apresentar a conclusão do cogito, e aponta-o como uma verdade indubitável, já que para
duvidar ele teria que estar pensando. Sendo assim, a garantia da existência do Eu seria o
pensamento.
René Descartes, autor do século XVII, a partir do cogito, apresenta uma relação
de totalidade entre o saber e a verdade, apontando que a verdade está toda no campo do
saber. Aponta ainda que o conhecimento verdadeiro pode ser alcançado através de uma
abordagem puramente intelectual a partir de técnicas que ele mesmo estabelece. O
desenvolvimento teórico de Descartes abre espaço para a instalação da modernidade e
tal verdade alicerçará muitos conhecimentos futuros.
Freud, assim como outros teóricos da modernidade, busca alicerçar uma verdade
científica no campo do saber psíquico que dê conta do sofrimento humano, mas
descobre que algo sempre escapa deste campo quando se trata do sujeito (conceito
cunhado por Lacan). É quando ele descobre o inconsciente e funda a Psicanálise, teoria
que, apesar de contestar esta verdade absoluta proposta pela ciência, não poderia vir à
luz sem ela, como aponta Lacan (1966a/1998):
com o cientificismo de sua época, foi este mesmo cientificismo que conduziu
Freud, como nos demonstram seus escritos, a abrir a via que para sempre
levará seu nome [a do inconsciente]. (p. 871, colchetes nossos).
14
Existe uma versão da ciência, surgida como ciência do discurso universitário, que foi se tornando uma
ciência capitalista, a qual chamaremos, neste trabalho, de ciência do capitalismo, pois ela está a serviço
do capitalismo como apoio ao consumo. Entendemos como ciência aquilo que permite dentro dela o giro
dos discursos. Por exemplo, a ciência alinhada ao discurso da histérica trabalha em busca da verdade
sempre substituível, ela trabalha em função do que escapa à verdade. A ciência do discurso universitário
busca uma verdade última, o que torna seu trabalho infinito pelo fato de ser impossível encontrar tal
verdade, embora ela creia que vá encontrá-lo. Assim, chamaremos de ciência aquela que busca uma
verdade última, apesar de impossível, e de ciência do capitalismo aquela que está a serviço dos interesses
da perpetuação do sistema capitalista sustentada pelo consumo. Lembrando que a psicanálise, por apontar
a impossibilidade do encontro com a verdade última, “faz sua exclusão interna ao objeto do campo da
ciência” (LACAN, 1966a/1998, p. 875). Portanto, opõe-se tanto à ciência estabelecida pelo discurso
universitário quanto à proposta de ciência do discurso capitalista, pois ambas respondem a uma política
da concentração, sendo que a política da psicanálise é a da separação.
28
Ele argumenta que a ciência busca a verdade como causa formal, como se
houvesse um ideal de comunicação. Na magia, a verdade como causa estaria recalcada,
dissimulada, velada, pois o que na magia importa é sua causa eficiente. Sobre a religião,
levando em conta o cristianismo católico, Lacan coloca que ela se caracteriza pela
instalação de uma verdade como causa final, ou seja, o céu depois da morte. Quando o
sujeito não dá conta de responder a essa demanda, a essa verdade divina, a consequência
é a instalação da culpa.
Ao opor a psicanálise às três (ciência, religião e magia), Lacan afirma que a
busca da verdade em psicanálise é interrogada como causa material, em função da
materialidade do significante, ou do desejo inconsciente se preferirmos. Segundo Dias
(2010):
Sendo assim, o autor mostra que o mesmo inconsciente que divide o sujeito e o
submete à castração, é o mesmo que vai abrir a via da separação, por instituir uma
margem de liberdade em relação à sua alienação estrutural e permitir que ele gire nos
discursos constituindo laço social. O sujeito, ao responder de diferentes maneiras,
transforma sua realidade no laço social, ou seja, essa resposta material dá ao sujeito a
possibilidade de que algo se transforme no laço.
Partindo do pensamento inconsciente, Freud desenvolve a teoria psicanalítica
criando a regra fundamental da psicanálise, a associação livre. Isso servirá para lidar
com a inerente presença do mal-estar do sujeito, ou seja, com aquilo que escapa ao
campo da ciência (e também da magia e da religião). Assim a associação livre se mostra
como materialidade, uma vez que o sintoma do sujeito, materializado na fala, se torna
resistência a um saber totalizante.
A teoria psicanalítica mostra que, para além da dificuldade de o sujeito escapar
do capitalismo (ou de qualquer outra forma de sociedade), há também o mal-estar
sintomático dele que impede uma sujeição total, mesmo que à sua revelia. Ou seja,
mesmo querendo adequar-se conscientemente, sua divisão inconsciente não permite.
É importante destacar que o conceito de sintoma em psicanálise é entendido de
forma diferente do da medicina. Como exemplo do tratamento do sintoma em medicina
no capitalismo, pensemos na indústria farmacêutica. Vemos com frequência a maneira
ecessiva com que a medicação é indicada para dar conta dos sintomas do sujeito, ou
seja, tratam o sintoma do sujeito como uma doença que deve ser eliminada a partir do
uso das drogas farmacêuticas. A esse respeito Pacheco Filho (2008) no diz que:
Vemos assim que a indústria farmacêutica, uma ciência capitalista, deste ponto
de vista, propõe o consumo de drogas como saída para todos os males na busca da
eliminação do sintoma do sujeito. O mais complicado nesta situação é que o sujeito, ao
30
Nesta fala Quinet aponta a indústria farmacêutica como uma ciência que
responde à a política do capitalismo. O DSM-V atual, corroborando com o capitalismo,
cria diagnósticos para todo tipo de mal-estar, ou melhor, transforma o mal-estar em
doença para criar-lhe um medicamento. Como exemplo, a criança “arteira” passa a ser
nomeada de criança portadora de síndrome de déficit de atenção; com isso, “o tapa na
bunda” foi é substituído por medicamentos prescritos pelos médicos, trocou-se uma
coisa ruim por outra pior, pois se antes a criança era repreendida fisicamente, hoje ela é
tratada como doente.
Outro exemplo é a tristeza de um sujeito pela morte de alguém que amava, após
quinze dias essa tristeza, segundo o DSM-V, torna-se depressão e é comum que o
sujeito seja medicado, com isso, a sociedade passa a não achar normal sofrer o luto pela
perda de alguém que ama, e por aí vai...
Para a psicanálise, o conceito de sintoma diz respeito a algo ineliminável no
sujeito, algo que ao receber uma escuta, pode dispensar o tratamento com medicamentos
por dar espaço para que o sujeito expresse seu desejo.
Bruno (2011), ao tratar “O sentido do sintoma”, com Freud (1916-17a/1976),
aponta que, através da rememoração um sujeito pode tratar um sintoma, mas que ele não
desaparece, que o sujeito pode separar-se do gozo do Outro mas não de seu desejo. E
estas considerações atendem também à questão da luta de classes, já que ela também
depende de uma economia de gozo, assim como acontece com o sujeito. O autor diz
ainda que a experiência descoberta por Freud no trabalho com seus pacientes,
possibilitou Lacan a apresentar uma teoria do sintoma e que tal teoria pode ajudar a
explorar o ponto cego da teoria de Marx, através da rememoração da história do
capitalismo, pois ao gozo do capitalismo a sociedade se entrega, mas não sem sintoma.
Nas palavras do autor:
31
Isso nos conduz a considerar que a resolução do sintoma não equivale a sua
desaparição pura e simplesmente, consiste em que o complemento do anseio
que foi o motivo do sintoma está daqui em diante autorizado e que este
complemento tenha lugar simultaneamente a uma separação do sujeito e do
Outro (BRUNO, 2011, p.325, tradução nossa).
função de analisar, função que abre espaço para que o gozo possa aparecer nas
repetições e que o analista, ao manejá-lo na transferência, possa tratá-lo e fazer com que
o desejo do analisante emerja. Vejamos como Lacan chega ao conceito de gozo com
Freud.
No começo de sua obra, Freud, engajado na ciência, busca um saber que dê
conta do sujeito, mas descobre o inconsciente e funda a psicanálise. Em sua trajetória,
Freud (1920/1976) desenvolve, entre outros, o conceito pulsão, apontando-o como a
compulsão do sujeito à repetição, aludindo que ela procedia de uma natureza instintiva e
que por isso dominava o princípio do prazer.
Além disso, Freud (1920/1976) pensava em várias formas de manifestação das
pulsões nas repetições e as separava entre pulsão de vida, que buscaria prazer, e pulsão
de morte, que acabaria em desprazer. Ele entendia que a pulsão de vida levaria à
homeostase e que a pulsão de morte, por trazer desprazer, representava prejuízos à
homeostase. Por isso Freud apostava que o melhor para o sujeito seria canalizá-lo para a
pulsão de vida, o que traria equilíbrio ao sujeito. Vejamos isso com Lacan (1964/1998):
“Em suas primeiras construções, suas primeiras redes de cruzamentos significantes que
as estabilizaram, Freud visa algo que, no sujeito, é destinado a manter ao máximo o que
chamei homeostase” (p.174).
Lacan reconhece a compulsão à repetição, mas em sua releitura de Freud sobre a
pulsão, retoma o conceito revisando a posição freudiana em pelo menos três aspectos
importantes. Um aspecto é seu afastamento da noção de pulsão pela natureza instintiva
como tomava Freud. Lacan passa a pensá-la como um discurso sem palavras, fora do
simbólico, fora da cadeia significante, como algo que desorganiza o sujeito, situando-a
como algo que funciona em função de uma hiância central relacionada ao inconsciente.
Em suas palavras:
Pude articular para vocês o inconsciente como se situando nas hiâncias que a
distribuição dos investimentos significantes instaura no sujeito, e que se
figuram no algoritmo em um losango [◊] que ponho no coração de qualquer
relação do inconsciente entre a realidade e o sujeito. Muito bem! É no que
algo do aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira, é em razão da
unidade topológica das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel no
funcionamento sujeito. (LACAN, 1964/1998, pp. 171-172).
sujeito, como pretendia Freud, porque não há objeto que a satisfaça, pois o encontro
com tal satisfação está sempre para além, já que a pulsão apenas contorna o objeto sem
nunca atingi-lo. No seminário XI, Lacan (1964/1998) articula essa impossibilidade de
satisfação com o objeto a partir do próprio Freud, mas apontando-o como objeto a15.
Diz ele:
Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma
totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é
que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno
em circuito (...) este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de
um vazio ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja
instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo. O objeto a
minúsculo não é origem da pulsão oral. Ele não é introduzido a título de
alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum alimento satisfará
a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltoso. (LACAN,
1964/1998, p. 170).
Assim, Lacan coloca como caráter paradoxal da pulsão o fato de que o que causa
a compulsão à repetição é a própria satisfação buscada e não encontrada pelo sujeito no
gozo, pois a impossibilidade da satisfação, do encontro com o objeto, faz da pulsão a
repetição do mesmo. Assim sendo, toda pulsão busca repetição por não encontrar
satisfação. Daí conclui que toda pulsão é parcial, passando a pensá-la a partir da noção
de gozo.
O terceiro aspecto importante revisto por Lacan é uma consequência dos dois já
indicados. Se a questão para Freud era o que fazer com este resto que se repetia, tido por
ele como um obstáculo, Lacan (1964/1998), ao retomar a questão do ponto de vista de
sua parcialidade, interroga se a repetição de fato é um obstáculo à análise.
Ele observa que “A repetição demanda o novo. Ela se volta para o lúdico que faz
desse novo, sua dimensão” (LACAN, 1964/1998, p.62). Ao observar que a repetição
demanda o novo, o autor passa a pensar a pulsão como uma força de criação em função
da hiância relacionada ao inconsciente – a partir da noção de gozo, como já foi dito –,
mas não como algo que atrapalha a análise, como pensava Freud.
Ao trazer a noção de gozo, Lacan (1964/1998) amplia o conceito de pulsão
explicando-o através das funções de tiquê e autômaton, – emprestados de Aristóteles –
colocando que o autômaton é a insistência que comanda o sujeito em função do
princípio do prazer, busca de sentido; e a tiquê, como o encontro essencialmente faltoso,
encontro com o real a cada repetição, para além do autômaton. Nas palavras do autor,
15
O objeto a será tratado no próximo item desse trabalho.
35
“O encontro é sempre faltoso – é isto que constitui, do ponto de vista da tiquê, a vaidade
da repetição, sua ocultação constitutiva” (LACAN, 1964/1998, p.123).
Ele destaca que embora o autômaton seja essencial para a produção do encontro
com o real, a tiquê, esse encontro essencialmente faltoso, é o que faz a repetição
promover algo novo, essa ampliação do conceito. Esse encontro faltoso será manejado
pelo analista na transferência. Daí a importância da repetição como algo que leva o
sujeito ao encontro faltoso, essencial na análise, e não mais como um obstáculo a ela se
trabalhado no analisante a partir da transferência pelo analista em sua função, a partir do
desejo do analista. Conforme diz Lacan (1964/1998), “Este desenho que lhes dei hoje da
função da tiquê, vocês verão que ele nos será essencial para retificar o que é o dever do
analista na interpretação da transferência.” (p. 64).
Lacan (1964/1998) aponta que onde há transferência há Outro, mas este Outro,
na função do analista, não pode representar o saber absoluto, ao contrário, abster-se de
um saber sobre o analisante é a base sobre a qual se dá a formação do analista. Base esta
que – ao admitir que o analista interprete na transferência, porém fora do nível da
identificação e de sua intuição, pois a interpretação não está aberta a todos os sentidos –
permite ao analista interpretar quando o analisante tropeça no sem sentido de seu
sintoma, privilegiando a falta inerente ao analisante, a qual a repetição pela busca de
gozo só pode contornar o objeto, sem nunca encontrá-lo. É esse o trabalho que introduz
o processo da separação ao analisante, que poderá chegar no significante irredutível ao
qual ele está alienado a partir da repetição na transferência. Sobre a transferência e o
desejo do analista, Lacan (1964/1998) dirá:
O analista, em sua função, atém-se às associações que o sujeito faz após uma
intervenção, inclusive sendo estas associações as interpretações mais significativas do
sujeito em análise, pois a ele cabe interpretar as palavras do analista. E a fala daquele
deve ser entendida pelo analista como uma interpretação da verdade do analisante, e
este interpreta com o saber que lhe é possível.
Assim, o analista, como aponta Checchia (2012), “é livre em suas táticas de
intervenção desde que estas não impliquem o aparecimento dos seus sentimentos na
condução do caso (...) e não firam o princípio fundamental, isto é, desde que não atuem
com seu ser.” (p. 165). O analista em sua função não atua com seu ser. Ele utiliza a
estratégia da transferência conduzindo-a de maneira que o analisante não se identifique
a ele (analista), pois, na experiência analítica, o sujeito extrai força do particular, e não
do analista.
O analista dirige a análise, manejando a transferência através do ato analítico,
mas o faz de maneira a não dirigir a vida do sujeito. Ou seja, existe um lugar que não
pode ser ocupado pelo que o analista entende como o melhor para o analisante, nem
pelo discurso da ciência ou qualquer outro discurso que se coloque no sentido de uma
verdade para ele. Em sua função, o analista se coloca como objeto a, permitindo que o
desejo do analisante possa emergir.
Cabe dizer ainda que o desejo do analista é, na direção do tratamento, o que vai
levar o analisante a contrapor-se ao gozo do Outro para ser causado por seu próprio
desejo. É nesse sentido que o desejo do analista trata do que escapa aos discursos
universalizantes.
Articulada ao funcionamento da sociedade contemporânea, já vimos como a
ideologia capitalista – aliada à ciência tecnológica, que cria novas mercadorias a todo
instante, e à mídia que propaga tais mercadorias, ligando o consumo à felicidade ou
aceitação, generalizadamente, generalizavelmente – apresenta uma espécie de manual
de comportamento de consumo a ser apreendido pela consciência, feito de acordo com
os interesses das alianças e as relações de força nele engendrados.
A Psicanálise, porém, não induz o analisante a reproduzir o status quo da cultura
emergente que leva à aniquilação de suas diferenças. O fazer psicanalítico oferece
espaço para uma margem de liberdade em que o sujeito possa se implicar-se com seu
lugar de ser desejante no laço social.
Diferente das ideologias concentradoras ou segregadoras, a teoria psicanalítica
propõe pensar a ideologia no sentido de manter dela uma distância razoável, que
38
permita a separação do sujeito de seu gozo – uma singularidade que o diferencia do todo
– e o leva a questionar sua posição no laço, proporcionando uma contingência para que
o sujeito se separe do Outro ideológico. Tratando da preservação das diferenças no
campo da ideologia, Žižek (1996) aponta que:
A ideologia não é tudo, é possível assumir um lugar que nos permita manter
distância em relação a ela, mas este lugar de onde se pode denunciar tem que
permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade
positivamente determinada; no momento em que cedemos a essa tentação
voltamos à ideologia. (ŽIŽEK, 1996, pp. 22-23)
desejo: para colocar em seu vértice o desejo do analista.” (p. 621). Ou seja, considerar a
ética da psicanálise, que é a ética do desejo proposta por Lacan (1959-60/1991), como
sustentação do objeto a no tratamento analítico, nosso próximo assunto.
16
Tal obra trabalha com os ditames morais traçando paralelos entre o desejo singular de um sujeito, no
caso o de Antígona, e a lei de uma sociedade, no caso a cidade de Tebas que tem como governante
Creonte, apontando a tensão entre o desejo de um sujeito conflitando com a lei de uma sociedade. Na
tragédia Antígona, continuação da tragédia de Édipo Rei em que Antígona é filha de Édipo e tem mais
uma irmã e dois irmãos. Na cidade de Tebas acontece uma guerra em que seus irmãos lutam um contra o
outro. Uma guerra em que um deles, Etéocles, luta a favor dos ditames de Creonte e o outro, Polinice, luta
contra tais ditames. Nesta guerra, os dois irmãos de Antígona morrem e Creonte estabelece uma lei que
não permite que se preste as honras fúnebres ao irmão Polinice, que lutou contra seus ditames, alegando
que ele faria uma transição inadequada no mundo dos mortos, mas permite enterrar honrosamente
somente Etéocles que lutou a seu favor. Inconformada, Antígona desobedece tal lei e presta as honras
fúnebres a seu irmão Polinice. Creonte não aceita a desobediência de Antígona e condena-a à morrer
enclausurada, e antes mesmo de morrer de inanição ela se suicida.
40
mesmo tempo, se retrai chegando a dar esse efeito tão singular, o mais
profundo, que é o efeito do belo no desejo. (pp. 301-302).
Para Lacan (1959/1991), o belo do desejo está no fato de que Antígona não cede
de seu desejo, e em função disso ela não consegue evitar a pena de morte. Esse tipo de
conflito habita no laço social em toda e qualquer sociedade. O mito de Antígona mostra
que o sintoma é sempre resistência, uma forma de mostrar que o desejo não é
domesticável.
É ao fato de Antígona não ceder de seu desejo que Lacan articula a ética da
psicanálise como a ética do desejo. Tal ética é exercida pelo analista em sua função,
atravessado pelo desejo de analista que se estabelece a partir de sua própria análise
como já foi dito. Lacan (1959/1960-1991) orienta que:
17
“Outro” em francês se escreve “autre”, daí objeto a como “objeto outro”, pois o objeto é sempre outro
diferente do que se encontra.
42
nenhum objeto nomeável do mundo satisfaz o sujeito, ele passa a vida nomeando
objetos que satisfariam seu desejo. É por isso que a ética da Psicanálise é a ética do
desejo, pois o objeto a enquanto causa de desejo movimenta a cadeia de significantes
levando o sujeito a produzir algo novo no deslizamento da cadeia. Assim, fica claro o
que já foi dito, que a ética da psicanálise é a sustentação pelo analista, em sua função,
do objeto a causa de desejo, pois é tal sustentação que cria uma contingência para que o
desejo do sujeito possa advir.
Por isso o ato analítico (nosso próximo tema) só pode se sustentar amparado pela
presença do objeto a, pelo fato de o analista não colocar um objeto seu no lugar do
desejo do analisante, respeitando o tempo do sujeito para propor seu próprio objeto
faltoso. Assim, podemos considerar o objeto a como a política do analista ao sustentar
sua ética.
Lacan aponta que a psicanálise em extensão, já abordada na introdução deste
trabalho, depende fundamentalmente do que ocorre na psicanálise em intensão, para
uma “ética do bem-dizer o sintoma” que possibilite resistência e permita a manutenção
das diferenças. Essa é uma questão fundamental para que a política do discurso do
analista possa implicar alguma forma de resistência à política do discurso capitalista,
pois o capitalismo, como já vimos, busca o totalitarismo concentrador,
desconsiderando o desejo do sujeito. A psicanálise se diferencia ao possibilitar a
singularidade do desejo, aponta para a diversidade e para a separação do sujeito Outro
concentrador.
Sendo assim, se a ética da psicanálise é a ética do desejo e se o desejo depende
de o analista sustentar-se como objeto a causa de desejo para o analisante na clínica, a
psicanálise em extensão também depende da sustentação desta mesma ética. Mas de que
forma se sustenta o objeto a social?
O ato analítico é outro conceito importante ao qual Lacan dedica um seminário
inteiro para tratar e que talvez possa dar um rumo à questão que acabamos de colocar,
pois autores contemporâneos já falam do ato político como tendo a mesma estrutura do
ato psicanalítico. O ato psicanalítico é um artifício que se sustenta a partir da ética da
psicanálise, que é a ética do desejo, e como aponta Quinet (2006): “É o objeto a que se
encontra no fundamento do ato analítico e, por conseguinte, no desejo do analista”
(p.26).
Desta maneira torna-se importante fazermos alguns recortes do seminário XV,
sobre o ato psicanalítico, fundamentado pelo objeto a e o desejo do analista em sua
43
função sustentada pela ética do desejo. Os efeitos do ato se dão no tempo do sujeito do
inconsciente, na singularidade de cada um, por isso o tempo e o ato analítico serão
abordados no mesmo item, o próximo.
18
No texto "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada", Lacan (1945/1998) apresenta o sofisma
dos três prisioneiros. O sofisma é o seguinte: O diretor de um presídio remete a três prisioneiros uma
medida liberatória em que o primeiro que resolver um problema lógico, será libertado. O problema lógico
trata-se do seguinte: O diretor do presídio revela que possui três discos brancos e dois discos pretos.
Destes cinco discos, três serão escolhidos e fixados nas costas de cada um dos três prisioneiros. O diretor
escolhe os três discos brancos e fixa nas costas de cada sujeito. Não é permitido que os prisioneiros vejam
a cor do disco que portam. Cada um terá que inferir a cor do seu disco a partir da lógica, e não apenas de
probabilidade, para ser libertado. Entretanto, somente o primeiro detento que o fizer será libertado. Lacan
coloca a solução perfeita: “Depois de se haverem considerado entre si por um certo tempo, os três sujeitos
dão juntos alguns passos, que os levam simultaneamente a cruzar a porta. Em separado, cada um fornece
então uma resposta semelhante, que se exprime assim: ‘Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus
companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte:
'Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na
mesma hora, logo, não sou preto.' E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não
estavam fazendo nada, e que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha
conclusão.” (LACAN, 1945/1998, p.198).
45
A prática das sessões curtas implica, portanto, dois aspectos: a análise não se
reduz em absoluto, ao tempo das sessões, mas é um processo contínuo, em
que a sessão é descontinuidade, pontuação, ruptura no discurso; inscrevendo-
se a sessão no processo analítico como um corte, o analista é o depositário
das elaborações e associações que o paciente faz fora da sessão. Assim, a
elaboração se situa fora das sessões e é uma tarefa do analisante. (p. 66)
46
Se a elaboração se dá fora das sessões, isso mostra que não é o tempo – seja 20
minutos, 50 minutos ou qualquer outro tempo que não deve passar muito de uma hora –
estipulado como regra da sessão que precipita o sujeito ao momento de concluir. Mas é
o corte no momento fértil, inserindo a descontinuidade do inconsciente do sujeito, um
tempo determinado no manejo do analista na direção do tratamento, a ser elaborado pelo
analisante a posteriori.
O corte da sessão em tempo lógico é uma tentativa de ato, pois o analista pode
calcular, mas isso não garante que o efeito de ato será concluído. Entendemos que é
uma tentativa sem garantias porque o ato pode ou não ter efeitos, como tal, no
analisante. Para entender por que o ato trata-se de uma tentativa do analista,
marcaremos resumidamente algumas de suas dimensões em que se pode verificar nelas
a falta de garantias inerentes à função do analista.
No seminário XV, “O ato psicanalítico”, Lacan (1967-68) introduz a função do
Ato no nível da psicanálise enquanto este fazer implica o inconsciente, sujeito colocado
em ato. Também afirma que a transferência é a colocação do inconsciente em ato na
associação livre, ou seja, as formações inconscientes, como sintomas, sonhos e atos
falhos apresentados nas sessões analíticas, são atos do analisante na transferência.
O analista em sua função busca fazer ato quando localiza o momento fértil de
atualização do reprimido na sessão, procurando produzir uma descontinuidade
inconsciente no analisante, mas se teve sucesso, ou seja, se houve ato, isso quem
confirma é o analisante, conferindo seus efeitos a posteriori.
Lacan (1967/1968, inédito) afirma que uma das dimensões do ato é fundar uma
experiência sobre pressupostos que o próprio ser falante ignora profundamente, isto é, o
sujeito não sabia, não esperava, muito menos o analista. Este não saber traz a dimensão
da ignorância que causa desordem por trazer o inesperado, por ocorrer à revelia do
analisante e do analista. Embora o analista em sua função busque calcular esses
momentos férteis, isso não significa que terá sucesso a partir de seus cálculos, dado que
o sucesso se dá pelos efeitos no analisante.
Lacan (1967-68) nos alerta ainda sobre o fato de que o ato psicanalítico não
pode ser aprendido didaticamente, pois o ensino psicanalítico se dá a partir do que se
recolhe pelo processo desencadeado do ato que puder ser registrável de saber. Dito em
outras palavras, isso significa que, a rigor, o que se aprende da psicanálise é algo sobre
o que já aconteceu e que não é generalizável para outros casos, nem para casos futuros,
47
nem mesmo para o caso do próprio analisante, pois ele mesmo sempre pode trazer algo
novo.
Por isso, o ato em sua origem não pode ser calculado, ele acontece a partir da
função do analista investido de objeto a na transferência. Assim, o ato analítico é
sempre uma tentativa. Em função desta falta de garantias, o analista faz o cálculo, mas
isso não garante que houve ato, nem que não houve, assim como pode haver ato sem
cálculo do analista, pelo menos não por um cálculo consciente, pois como já foi dito,
seus efeitos são a posteriori.
O efeito a posteriori é uma das dimensões do ato psicanalítico. Ele articula-se ao
efeito das moções suspensas, indicadas por Lacan (1945/1998), pois “Elas só
desempenham seu papel, com efeito, após a conclusão do processo lógico, uma vez que
o ato que suspendem manifesta essa conclusão” (p. 201). É assim que se dá o ofício do
analista em sua função, fora do tempo cronológico e sem garantias.
Porém, sob o rótulo da psicanálise, vemos a busca de garantias, propagada em
situações que verificamos teoricamente que – do ponto de vista da teoria freudo-
lacaniana como foi apresentada até agora – não se trata de psicanálise. Um exemplo
clínico é a técnica, abordada por Freud e reforçada por Lacan, sobre o tempo lógico que
acabamos de apresentar, teoria da qual Lacan lança mão de praticar sessões curtas.
Comentando o sofisma dos três prisioneiros de Lacan e o tempo lógico, Quinet (2009a)
dirá que:
que é fácil cair nas armadilhas do discurso capitalista e aderir a uma formação em
psicanálise sem qualquer rigor teórico19.
Voltando ao sofisma dos prisioneiros, Lacan aponta que sua solução é a fórmula
de uma lógica coletiva numa relação de reciprocidade da falta de saber para chegar à
própria asserção subjetiva do momento de concluir. É uma falta de saber baseada nos
outros dois prisioneiros, dado que seu objeto de raciocínio está neles, tanto pelas cores
que ele vê nos discos como pelo comportamento deles. A falta de saber quer dizer que
todos sabem que nenhum deles sabe a cor do próprio disco, ou seja, não há Outro do
saber, isso impõe que cada busque no próprio saber uma solução. E isso vale para os
três prisioneiros – já que os três prisioneiros se precipitam à conclusão no mesmo
momento. Diz Lacan (1945/1998):
Basta fazer aparecer no termo lógico dos outros a menor disparidade para que
se evidencie o quanto a verdade depende, para todos, do rigor de cada um, e
até mesmo que a verdade, sendo atingida apenas por uns, pode gerar, senão
confirmar, o erro nos outros. E também que se, nessa corrida para a verdade,
é apenas sozinho, não sendo todos, que se atinge o verdadeiro, ninguém o
atinge, no entanto, a não ser através dos outros. Essas formas decerto
encontram facilmente sua aplicação na prática, numa mesa de bridge ou
numa conferência diplomática, ou até no manejo do "complexo" na prática
psicanalítica. Mas gostaríamos de indicar sua contribuição para a noção
lógica de coletividade. (pp. 211-212)
Essa noção de lógica coletiva colocada por Lacan, como algo que só pode ser
atingido sozinho, mas não sem ser através dos outros, pode ser uma maneira de ação
política. Mas como fazer isso funcionar quando se trata bilhões de pessoas? Seria
possível se pensar nisso como um efeito lógico? Isto é, tal como acontece numa mesa de
bridge, numa conferência diplomática, no manejo do complexo na prática analítica, num
cartel ou assim como aconteceu com os três prisioneiros do sofisma? Seria essa uma
maneira de se pensar a dimensão política da psicanálise apontando o discurso do
analista implicando alguma forma de resistência ao discurso capitalista? E o que da
teoria da lógica coletiva pode ser articulado ao social? Poderíamos pensar em um ato
político nessa dimensão?
Žižek (2003) articula o ato psicanalítico da clínica ao ato político do campo
social, aponta que o último:
19
Há outros inventos da psicanálise que, sem levar em conta o rigor teórico, podem culminar no que
poderíamos chamar de um uso que não corresponde à proposta da teoria. Temos a psicologia psicanalítica
do ego, norte–americana, que representa isso muito bem.
50
Lugares fixos:
Segue abaixo os 4 lugares fixos dos matemas e o que eles representam no
discurso e em seguida sua posição nos matemas:
AGENTE, é o lugar que domina o discurso, ele é o agente da castração. Essa
dominante20 funciona de maneira diferente em cada discurso;
OUTRO, é o lugar de dominado no discurso;
VERDADE, é o lugar que sustenta o agente do discurso, verdade sempre parcial;
PRODUÇÃO, é o resultado, é o que o discurso produz.
Posição dos lugares fixos no matema:
Agente Outro
Verdade Produção
Elementos de giro:
Quanto aos elementos de giro, eles são letras que giram em torno dos 4 lugares
fixos. Segue abaixo as letras e o que elas representam nos discursos:
S1 – Significante mestre representante da lei que marca a incompletude e que dá origem
à rede de significantes.
S2 – Saber
20
Segundo Lacan, “A palavra dominante não implica a dominância no sentido de que essa dominância
especificaria (...) o discurso do mestre. Digamos que se pode dar, por exemplo, segundo os discursos,
diferentes substâncias a essa dominante” (LACAN, 1969-70/1992, pp.41), ou seja, a dominante tem uma
função diferente em cada discurso.
55
Assim, nos diz Lacan (1969/70-1992): “Se parece legítimo que a cadeia, a
sucessão de letras dessa álgebra, não pode ser desarrumada, ao nos dedicarmos à
operação de quarto de giros, iremos obter quatro estruturas, não mais, das quais a
primeira mostra de algum modo o ponto de partida.” (p. 12). Lacan começa pelo
discurso do mestre e ao realizar os giros, os outros 3 discursos se configuram nos
matemas. Há ainda a questão de um impossível e uma impotência em cada discurso,
pela qual começaremos.
Observemos que nenhum vetor chega na verdade. Isso acontece porque o Outro também
é barrado e não tem uma resposta que promova o encontro da produção como a verdade.
Como aponta Lacan (1960a/1998):
O agente, S1, dominante no discurso do mestre, tem função de lei. Neste discurso
há uma impossibilidade entre o S1 e o S2. Trata-se, segundo Lacan (1969-70/1992), da
impossibilidade do significante mestre – S1 enquanto agente – dominar completamente
o S2 – enquanto saber no lugar do outro, – pois não é possível que o outro, S2, conclua
totalmente a produção demandada pelo agente, S1. Com isso há sempre uma perda, que
no matema é representada pelo a mais-de-gozar. Isso significa que se governa, mas a
produção não é idêntica à demanda do agente. Esta seria a referida impossibilidade de
governar freudiana.
A impotência no discurso do mestre está no fato de que o objeto de sua produção
não dá conta da verdade do sujeito, revelando uma perda de gozo, a mais-de-gozar,
apontando a impotência de relação entre a produção do discurso com a verdade do real
do sujeito. A potência do discurso do mestre está no simples fato de ele se identificar
como sujeito do poder e ser reconhecido pelo escravo como tal, ou seja, em fazer o
escravo crer que é assim, simplesmente porque é assim.
Sobre a potência do discurso do analista, Silveira (2013) nos dirá que “Todos os
discursos se relacionam com o real, com o impossível, mas é somente a partir da
emergência do discurso do analista que esta questão fica colocada; eles só ficaram
explícitos após o advento da psicanálise” (s/n). Ou seja, a potência do discurso do
analista está em implicar o sujeito com sua castração e como consequência aponta a
castração também nos outros discursos, já que não há Outro do Outro.
Portanto, como nos diz Silveira (2013), “Os agentes dos discursos são agentes de
alguma coisa que é impossível” (s/n), ou seja, ainda que se governe, que se analise, que
se eduque e que se faça desejar, não se faz possível a plenitude destas façanhas em
nenhum dos discursos. Mesmo assim não paramos de repetir as tentativas de fazer os
discursos funcionarem, sem sucesso, mas uma necessidade para a manutenção dos
laços.
Assim, é o advento da psicanálise que possibilita construir a emergência dos
discursos a partir da história e com isso observar a impossibilidade de ultrapassar a
rocha da castração e a impotência que nos detém diante desse impossível da completude
em qualquer um dos 4 discursos, pois trata-se do real em jogo, real este que é
estruturalmente impossível.
Apesar desta impossibilidade, Lacan (1969-70/1992) aponta que “O sujeito
participa do real, justamente, por ser aparentemente impossível” (p. 97). Participar,
porém, não significa realizar-se nele, ou seja, o acesso ao gozo é limitado, mas goza-se,
e a impotência é o que nos mostra que a repetição, por mais que se repita a busca pela
verdade do objeto, é impossível encontrá-lo. Nas palavras do próprio autor:
Trata-se de articular uma lógica que, por mais frágil que pareça – minhas
quatro letrinhas que não parecem nada, salvo que temos que saber as regras
segundo as quais elas funcionam –, é ainda bastante forte para comportar
aquilo que é o signo dessa força lógica, a saber, a incompletude. Isto os faz
rir. Mas tem uma consequência muito importante, especialmente para os
revolucionários – é que nada é tudo. Por onde quer que encarem as coisas, de
qualquer modo que as revirem, a propriedade de cada um desses esqueminhas
de quatro patas é a de deixar sua hiância. (LACAN, 1969-70/1992, p. 193).
Podemos ver que essa hiância, esse buraco que impede o sujeito de alcançar a
completude, é a marca condicional dos discursos de Lacan (1969-70/1992) e que todos
os 4 discursos são formas de ordenação de gozo e que “toda a repetição se funda num
retorno ao gozo” (p. 44).
Há ainda o fato de que, como aponta Quinet (2012): “Nossa sociedade se
estrutura com os laços sociais de dominação e seus avessos” (p. 58). O discurso do
mestre é o avesso do discurso psicanalítico, pois onde o primeiro oferece uma lei
universal, o segundo oferece a possibilidade de uma lei do desejo. O discurso
62
ou seja, sem passar pelo discurso do mestre não haveriam seres da linguagem
caracterizados como humanos.
Para tratar do discurso do mestre, comecemos pelo Seminário XI onde Lacan
(1964/1996) fala sobre a entrada do sujeito na linguagem e sua estrutura alienada, o que
culminará na formalização do discurso do Mestre.
Neste seminário XI, Lacan (1964/1998) formalizará os conceitos de alienação e
separação21, apresentando a alienação do sujeito como algo que o determina à sua
revelia (em concordância com Freud), em função de sua alienação como efeito da
linguagem, pois a entrada na linguagem veda o acesso ao real, estruturando o sujeito em
uma constituição alienante. A alienação em psicanálise lacaniana é tida como forma
única de inserção do sujeito na cultura em função de sua entrada na linguagem, pois é
pela via da alienação à linguagem que o sujeito dividido existe, considerando-se que não
se pode falar de sujeito dividido fora dela.
O processo de alienação é apresentado por Lacan como correspondente ao
encontro do sujeito com a linguagem que se estabelece na relação do sujeito com o
Outro. Outro este representado pelos pais ou pelos primeiros cuidadores da criança que
fornecerão para ela os primeiros significantes, necessários para que ela possa servir-se
da linguagem. A este Outro é dirigido um apelo do sujeito sobre o que este Outro quer
dela (a criança), e a partir de uma resposta que o próprio sujeito cria, em função do
próprio desejo, que ele se constitui como ser desejante. Porém, para não lidar com a
responsabilidade de seus próprios desejos, o sujeito o atribui como um desejo do Outro.
Sobre esta forma de funcionar, Lacan (1957a/1998) nos diz: “O inconsciente é
esse desejo do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à
promessa, sua própria mensagem esquecida” (p. 440). É nesta perspectiva que Lacan
(1962/2005) afirma que o inconsciente é discurso do Outro e que, portanto, “o desejo do
homem é o desejo do Outro” (p. 31). Este posicionamento de Lacan (1953-1954/1986,p.
172) já aparece desde o Seminário I, em que o autor utiliza o conceito de « outro » com
21
Lembremos que a separação pode ou não ocorrer no sujeito da linguagem. Se ela não ocorre, é porque o
sujeito se recusa à castração simbólica. É o caso da psicose em que por algum motivo a criança não lê nos
significantes apresentados pelo Outro (mãe) a possibilidade de produzir uma cadeia de significantes com
bordas como acontece na neurose, ou seja, produz uma cadeia que transborda, pois ela não se sente
causada pelo desejo da mãe. De alguma maneira o desejo da mãe fica revelado para a criança como
desejo de gozar dela (a criança) como um objeto. Daí essa criança não consegue estabelece a operação da
separação, tornando-se um sujeito fora do discurso. Mesmo dentro da castração simbólica em que o
sujeito aceita a separação, uma terceira estrutura pode se dar se o sujeito criar um fetiche para lidar com o
horror da castração colocando-o como alternativa a ela. Assim, através do fetiche, ele desafia a lei e a
transgride, traços fundamentais da estrutura perversa.
64
(...) é fato, determinado por razões históricas, que essa primeira forma, a que
se enuncia a partir desse significante que representa um sujeito ante outro
significante, tem uma importância toda particular na medida em que, entre os
quatro discursos, ela se fixará no que iremos enunciar este ano como a
articulação do discurso do mestre. (p.18).
65
A evidência histórica da impotência do saber médico (...) nos foi dada pelos
procedimentos dotados no tratamento da histeria: eletrochoques e
neurocirurgias (nos casos graves), medicação psicotrópica (nos casos agudos)
68
Nesta citação podemos ver que era um momento em que Freud passava seus
ensinamentos enquanto um mestre, discurso do mestre de Lacan, mas o autor aponta
também que “Coube ao pioneiro (...) a preocupação de transmitir suas descobertas
recorrendo, para tal, a uma dose considerável de didatismo” (CASTRO, 2006, p. 12).
Apontamos também que não só essa dose de didatismo foi necessária como
também foram importantes os estudos pré-psicanalíticos de Freud para o que ele veio a
desenvolver posteriormente. A consequência dessa busca tem sido desde então o
desenvolvimento da psicanálise, tanto freudiana quanto lacaniana, portanto, esforços de
fundamental importância para o desenvolvimento da Psicanálise como um todo.
Os “Estudos sobre a histeria” de Freud (1893/1995) são fundamentais para o fim
do período pré-psicanalítico. Nele, ao prosseguir com seus estudos sobre a histeria,
começando com o caso de Anna O., Freud entende que as histéricas não mentem, elas
falam com algo de seu inconsciente. Assim ele começa a dar um status central à
associação livre da fala nos tratamentos psicanalíticos. Segundo Castro (2006):
Além do caso de Anna O. (de 1880), houve o caso da Sra. Emny Von (de 1889).
Esta foi quem disse, nas palavras de Freud (1893/1995), “num claro tom de queixa, que
eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a
deixasse contar-me o que tinha a dizer” (p. 95). Segundo Roudinesco e Plon (1998):
Assim, sem nos determos mais nas inúmeras minúcias da clínica da histeria de
Freud, que o levaram a intensificar a importância da regra fundamental da associação
livre no tratamento psicanalítico, apontamos para o fato de que foi a partir destes
estudos sobre a histeria que tal regra se consolidou como fundamental para a condução
de uma análise, tornando-se um conceito central e irrevogável ao tratamento no método
psicanalítico até hoje.
Uma consequência importante, advinda da consolidação da regra fundamental da
associação livre na psicanálise, é que Freud, no decorrer dos anos de sua experiência,
conclui que o psicanalista não deve intervir de maneira a conduzir o paciente – como
era feito no caso da hipnose com a sugestão. Usando conceitos cunhados por Lacan
Segundo Castro (2006) para Freud:
Assim, a partir dos estudos sobre a histeria, cada vez mais Freud (1893-
1895/1995) começa a reduzir a sugestão até sua completa eliminação. A partir do
manejo da transferência na direção do tratamento, a eliminação da sugestão se torna um
procedimento ético da clínica freudiana. Este procedimento indicava que seria
necessário que o analista afastasse qualquer preconceito, questão moral ou opiniões
pessoais em suas intervenções com o paciente, permitindo assim que o sujeito se
implicasse com seu sintoma e produzisse, ele mesmo, as respostas que lhes fossem
possíveis.
A teoria psicanalítica propõe que as intervenções do analista devem interpelar as
formações inconscientes na associação livre do paciente, permitindo a verdade do
desejo que se repete nas demandas decorrentes de tal regra fundamental (associação
livre). A esse respeito, segundo Castro (2006):
70
Bem, é a partir dos estudos sobre a histeria que Freud descobre a importância da
associação livre, mas é ao sonho da bela açougueira22 que Lacan (1969-70/1992) recorre
para formalizar o discurso da histérica em função da necessidade do desejo insatisfeito
da bela.
Num primeiro momento, para analisar o sonho, Freud solicita que a paciente lhe
diga de que material decorreu o sonho. Ela responde que deseja comer sanduíche de
caviar todas as manhãs, mas mesmo o marido permitindo, ela implorava que ele não lhe
desse nenhum caviar. A partir disso, Freud (1900/1987) propõe a seguinte análise:
“Naturalmente, o marido a deixaria obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido.
Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer
com ele por causa disso.” (p. 162, grifos do autor). Ou seja, ela frequentemente
mostrava ao marido seu desejo e ao recusar que ele o realizasse, mantinha seu desejo
insatisfeito para que ele continuasse a querer realizar sempre sem sucesso, insucesso
que a interessava.
Freud continuou com a análise deste sonho, mas o que foi trazido aqui basta para
mostrar o que nos aponta Lacan (1957-58/1999). No seminário 5, Lacan repassa toda a
análise de Freud e aponta o seguinte:
22
O sonho da Bela Açougueira é o sonho de uma paciente que Freud atendeu. Segue o relato: “Eu queria
oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e
comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam
fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito.
Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.” (FREUD, 1900/1987, p.161).
71
O que a histérica quer (...) é um mestre. Isto é completamente claro. A tal ponto,
inclusive, que é preciso indagar se a invenção do mestre não partiu daí. Isto
arremataria elegantemente o que estamos traçando. Ela quer um mestre. É o que
está no cantinho acima e à direita, para não nomeá-lo de outro modo. Ela quer
que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas, mesmo assim,
que não saiba demais, para que não acredite que e1a é o prêmio máximo de todo
o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual e1a reine. Ela
reina, e ele não governa. (p.122)
Discurso da Histérica - DH
agente outro
$-Sujeito barrado S1 - Lei
a- mais-de-gozar // S2 - Saber
verdade produção
Vemos aí, então, dois momentos do sintoma, sintoma como signo e sintoma
como enigma, este segundo apontando para a indagação do sujeito sobre seu sintoma e
consequentemente sobre sua divisão. Assim, a histerização do discurso é fundamental
não apenas à histérica, mas a todos aqueles que se submetem a uma análise, pois
transforma o sintoma do sujeito (signo) em sintoma analítico (enigma), o que faz o
processo clínico de análise andar.
Quando Lacan (1969/70-1992) aponta que a histérica “Ela faz, a sua maneira,
uma espécie de greve” (p.88), ele quer dizer que ela atrapalha. Daí a função do analista
em conduzir que a histérica transforme o sintoma queixa em sintoma enigma,
propriamente analítico, para dar ao discurso da histérica uma importância que permita
que o sintoma de fato atrapalhe a bela ordem do discurso do mestre e não fique apenas
sendo um discurso de gritos sem efeitos. Se a histérica constrói um saber sobre seu
sintoma, ela pode fazer alguma coisa com isso, coisa que cause efeitos sobre seu gozo.
Importante indagar que há uma articulação entre o discurso da ciência e o
discurso da histérica, que se dá pelo fato de que a ciência tem sua histeria ao questionar
os conhecimentos postos e se por a demandar novos conhecimentos, nunca se dando por
satisfeita. Como ela nunca encontra a verdade, esse movimento é contínuo – já que não
é possível tamponar tal insatisfação – e coloca a ciência neste movimento histérico.
Como aponta Lacan (1969-70/1992):
Lacan expõe aqui os dois lados do discurso da histérica, pois, além de contribuir
com a produção da ciência pela fecundidade em função da sua demanda, essa produção
não consegue responder a ela (histérica), pois o quer é manter seu desejo insatisfeito. A
74
Achamos importante abordar esta questão para apontar que é a partir do gozo
feminino – da histérica curada, deste gozo não-todo que a faz recusar o saber do mestre
como complemento – que Lacan (1969-70/1992) vai desenhar o discurso do analista,
“ainda mais se levarmos em conta que a lógica do não-todo da posição feminina é
similar à lógica da posição do psicanalista, na medida em que (...) sua posição não é a
do Um, mas do a” (CHECCHIA, 2012, p. 300).
Por um lado o discurso da histérica, apesar de atrapalhar a bela ordem do mestre,
também contribui com a ciência do discurso capitalista. As indagações da histérica
colocam a ciência do capitalismo a trabalhar incessantemente para criar objetos de
consumo para suas demandas, incitando o consumo, interesse do capitalismo. Assim ela
se mantém consumindo, pois o objeto nunca é adequado. Nesse sentido que o discurso
da histérica não é revolucionário, pois não há objeto adequado a seu gozo. E a ciência
sempre terá que produzir outro objeto como nova tentativa, o qual será consumido e
novamente inadequado, colocando a ciência a trabalhar e a histérica a consumir,
respondendo assim ao discurso capitalista.
O discurso do analista, porém, – ao se opor a responder às demandas da histérica
fazendo com que, na histerização de seu discurso, ela entre em análise e busque a
castração em sua posição desejante, em contraponto à busca do saber do mestre como
complemento – dá voz ao seu desejo de desejo insatisfeito, fazendo com que o discurso
da histérica possa ser revolucionário. Sendo assim o discurso da histérica, na medida em
que sustenta o sintoma, tem um papel importante para que o discurso do analista
implique alguma forma de resistência ao discurso capitalista.
Lacan desenha o discurso do analista inspirado no desejo de desejo insatisfeito
da histérica. É no discurso do analista que a histérica pode encontrar um ponto de basta
para suas demandas impossíveis e se dar com a castração – gozo não-todo com qual o
analista já teve que se deparar para exercer sua função –, daí porque o desenho do
discurso do analista se dá a partir do discurso da histérica. Passemos então ao discurso
do analista.
76
O discurso do analista é também o único que possibilita fazer ato analítico, pois
tendo o objeto a tomado a posição de dominante, torna-se uma dominante que impede
que o sujeito encontre a verdade sobre sua castração.
Mesmo o discurso da histérica, que é um discurso questionador, pode ficar
girando em falso no sentido de busca da verdade, pois, como diz Lacan (1969-70/1992),
a histérica fabrica “um homem que seria movido pelo desejo de saber” (p. 31). Fabrica
porque neste discurso o mestre se põe a trabalhar para dar conta das demandas dela e
mesmo que ela vá dizendo “não” ao saber do mestre, ela se faz de amiga e espera sua
nova produção para negá-la novamente. Coloca então o mestre a trabalhar de novo e de
novo... mesmo assim, histerizar o discurso é uma regra para a análise, para que no
discurso do analista ela encontre seu limite. Segundo Lacan (1969-70/1992):
Eis o que quer dizer o discurso da histérica, industriosa como ela é. Ao dizer
industriosa, assim no feminino, fazemos da histérica uma mulher, mas isto
não é privilégio seu. Muitos homens se analisam e, só por este fato, são
forçados a também passar pelo discurso histérico, pois essa é a lei, a regra do
jogo. (p. 31, grifos do autor)
E foi por não se enganar de que sabia, que pôde devolver a seu paciente a
possibilidade de saber, que era deste e não de Freud! Eis porque a psicanálise
é portadora de uma desalienação possível e eis porque jamais um psicanalista
pode saber mais sobre seu paciente do que ele próprio, sujeito. Ao partir daí,
Freud instaura um discurso, o discurso do psicanalista, aquele em que o
agente, o analista, se dirige ao sujeito para este produzir o que sabe. (p.120).
analista em sua função pode ser tomado como mestre, ou, como disse Lacan (1969-
70/1992) “talvez seja do discurso do analista (...) que possa surgir um outro estilo de
significante-mestre” (p. 168).
No campo político, através da história, podemos dizer que as transformações que
foram acontecendo na sociedade só foram possíveis porque o discurso da histérica
estava presente e porque de alguma maneira o discurso do analista se fez presente
mesmo antes da psicanálise ser teorizada.
Sendo assim, as transformações sociais ocorrem a partir da histerização do
discurso e de alguma forma do não saber do analista como resposta a ela, por essa união
proporcionar a subversão do sujeito, nosso próximo assunto.
Uma verdade sempre pode ser substituída por outra, é por isso que a verdade
última não existe. A ciência mostra isso todos os dias com suas novas descobertas em
detrimento das antigas. Sempre se pode descobrir algo novo que substitua a descoberta
anterior, o mesmo acontece com o sujeito: não há verdade última que dê conta de seu
gozo, aliás, é o próprio sujeito da ciência que revigora a existência do sujeito dividido
ao presentificar a limitação da verdade diariamente.
As 3 feridas narcísicas (1- a terra não é o centro do universo, 2- O homem é um
animal fruto de uma evolução natural, 3- é o inconsciente que controla o ser humano)
apresentadas como verdades, são descobertas da ciência e são uma prova da inexistência
da verdade última.
Com a primeira verdade nos parece que todo mundo já concorda, principalmente
na atualidade que nem pega bem negá-la, pois, se é preciso ver para crer, temos, por
exemplo, um telescópio chamado Hubble que mostra essa verdade com perfeição,
mesmo assim pode ser que exista alguém que conteste. Ninguém é obrigado a acreditar
nas duas últimas verdades propostas, isso por si só já diz do fato da inexistência da
verdade. Ela pode servir para alguns e não para outros, mas sobre a terceira, mesmo
antes da psicanálise, já era possível questionamentos sobre o por quê de se querer fazer
uma determinada coisa e não se conseguir mesmo com a vontade própria e o apoio e
incentivo dos outros, ou mesmo o por quê de o apoio e incentivo, às vezes, inclusive
atrapalharem, à revelia do sujeito, uma questão de estrutura.
81
(...) no homem, a ideia de um mundo unido a ele por uma relação harmoniosa
deixa adivinhar sua base no antropomorfismo do mito da natureza; à medida
que se realiza o esforço que impulsiona essa ideia, a realidade dessa base
revela-se na subversão cada vez mais vasta da natureza, que é a hominização
do planeta: a "natureza" do homem é sua relação com o homem. (pp. 91,
grifos do autor).
82
Nessa citação, Lacan aponta uma primeira ideia de subversão, quando o animal é
humanizado e transforma-se no homem sociável da cultura. Ou seja, a partir da entrada
na linguagem o corpo passa a ser comandado pela lei do significante, que é a lei do
desejo do sujeito, como diz autor: “O símbolo manifesta-se em primeiro lugar como
assassinato da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo”,
(LACAN, 1953/1998, p. 320), daí sua afirmação de que “a palavra mata a coisa”.
No texto “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”,
Lacan (1960a/1998) complementa a ideia de “morte da coisa” a partir dos termos
“necessidade, demanda e desejo” para dizer dessa morte do corpo biológico, morte do
corpo enquanto coisa em função da entrada do sujeito na linguagem. Em suas palavras:
sempre possa se realizar. Esse é um processo de recusa ao gozo e por isso leva as
políticas orientadas por valores morais e processos identificatórios ao fracasso.
A questão da busca de uma lei universal totalizante se agrava ainda mais no
discurso universitário. Vejamos porque, passando agora ao discurso universitário, que se
faz na sequência de giro no sentido horário do discurso do analista, mas sendo ele um
discurso de dominação.
Não é a toa que o próprio trabalho humano se torna mercadoria. Abaixo segue o
matema do discurso universitário.
O agente deste discurso é o Saber (S2), que camufla o S1, significante mestre,
explorando a falta de saber do sujeito. Nesta posição o saber como agente desse
discurso fabrica saber a ser imposto ao sujeito que nada sabe, buscando assujeitá-lo a
um saber científico universalizante. Camuflagem porque não se trata de apontar o poder
do mestre, mas o poder do saber construído cientificamente. Segundo Quinet (2006):
Pacheco Filho (2010) nos indica aonde os caminhos trilhados pelo discurso
universitário podem levar o sujeito. Em nome da verdade científica, tudo pode virar
mercadoria, inclusive o próprio corpo. O autor começa relatando fatos sobre pessoas
que vendem seu corpo para tatuagem na pele com logos de divulgação de empresas,
sites ou comércios. Fala também das campanhas de legalização do comercio de órgãos
que pregam as vantagens de “preço” dos órgãos com a legalização. Pacheco Filho
(2008) mostra ainda outro tipo de falta de limite para o aumento de ofertas que aceleram
o desejo de consumir mercadorias, qual seja, a própria imortalidade tornando-se
mercadoria. Ele comenta sobre as empresas de congelamento de corpos que atendem
clientes que querem congelar seu corpo, crendo que a evolução da medicina possa trazê-
los de volta à vida um dia, com sua sanidade inalterada.
Vemos como consequência destas situações (venda da pele para tatuagem,
legalização da venda de órgãos) que o próprio corpo do ser humano torna-se um objeto
mercadoria. Ele aponta que o congelamento do corpo supondo imortalidade é algo mais
sem limite ainda, pois:
Isso faz com que a padronização do desejo passe a ser encarada como forma de o
sujeito adequar-se à sociedade contemporânea e aos interesses da classe dominante.
Isso obviamente não é novo. Marx já denunciava esse tipo de fenômeno quando se
remeteu à compra da força de trabalho do trabalhador pelo empresário, sendo a força de
trabalho, e consequentemente o trabalhador, uma mera mercadoria de subsistência do
capitalismo. Esses exemplos são uma evolução do que Marx já denunciava, são novas
maneiras de o sujeito vender-se como objeto, incluindo sua pele, e a própria
88
imortalidade é colocada à venda como uma mercadoria. Que isso seja uma evolução do
que Marx já apontava, não quer dizer que ele pudesse imaginar que as coisas chegariam
a tal ponto.
Há autores que defendem que esse tipo de fenômeno é efeito de uma nova
economia do corpo que se instaura e por isso propõem a concepção de uma nova era
nomeada como pós-modernidade. Autores como Bauman (1998 e 2005) e Doufour
(2005), defendem essa posição. Sobre Doufour (2005), Dias (2006) aponta que:
Não será possível aqui aprofundar essa questão, mas queremos discordar da
ideia de que se trata de uma nova modalidade de gozo como propõe o autor, ou de uma
nova economia simbólica. Embora concordemos com os autores sobre os novos
fenômenos engendrados pelo discurso capitalista na sociedade contemporânea e à
respeito da nocividade de tais fenômenos, insistimos, no entanto no fato de não se trata
de uma nova economia de gozo.
Nesse ponto corroboramos com Pacheco filho (2010) quando diz que esse tipo
de fenômeno “é consequência da articulação entre a infraestrutura econômica e a
economia simbólica do capitalismo, levada ao limite paroxístico de sua aceleração”
(p.38), pois a mercadoria, ao encantar com seu fetiche na economia simbólica, faz com
que o sujeito a tome como lúdica na repetição.
Com isso o sujeito inserido na lógica do consumo, não percebe que esses
objetos, dados como do desejo, por virem de fora, não produzem nada novo. E como
são extremamente abundantes, aceleram intensamente a busca do sujeito por eles,
inibindo a percepção de seu desejo singular em função das produções aceleradas dos
objetos criados pela tecnologia e propagados pela mídia, culminando nos fenômenos
descritos. No caso do consumo, não há tempo de criar o novo nessa repetição, pois o
sujeito mal acaba de consumir um objeto e já aparece outra oferta externa de consumo,
não há tempo de consultar seu próprio desejo.
89
Sendo assim, não se trata de uma nova economia do corpo, mas de uma
economia que vem de fora do corpo, um imperativo de gozo acelerador de consumo, em
que tudo pode virar mercadoria. Ainda segundo Pacheco Filho (2008), em decorrência
das exigências imperativas dos interesses do capital:
Toda pesquisa que não atenda aos interesses de geração de lucros das
empresas capitalistas tende a ser considerada inútil, com a justificativa de que
“não atende aos interesses da sociedade”. Do mesmo modo, as
universidades e centros de formação de pesquisadores e profissionais, que
não produzam os trabalhadores-mercadorias requeridos pelas empresas
capitalistas, passam a ser considerados “fora da realidade do mercado de
trabalho. (p.34, grifos do autor)
O fato, porém, não é que não atendem aos interesses da sociedade, a verdadeira
justificativa é que não atendem aos interesse do capital.
Os efeitos deste discurso para o laço social é que nele o sujeito se sente frustrado
por não conseguir corresponder a ele, como sua lei camuflada o impele, ou seja, por não
conseguir se adequar ao saber científico universalizante ao qual é submetido. Nessa
condição, Lacan (1969-70/1992) aponta que “como sujeito, em sua produção, de
maneira alguma poderia se perceber por um só instante como senhor do saber” (p. 166);
e disso nasce tanto a vontade do sujeito em adequar-se aos imperativos propostos pelo
discurso, quanto uma revolta por ser tratado como objeto vazio de qualquer saber,
mesmo que essa revolta venha à revelia do sujeito nos sintomas.
Mesmo assim, o sujeito busca dar conta deste impossível universalizante, que
provoca “uma aceleração da tendência totalitária à alienação, em escala sem precedentes
nas demais formas históricas de sociedade” (p.155) como aponta Pacheco Filho (2009).
Desta feita, tais aspectos inseridos na sociedade influenciam severamente a maneira
como constituímos nossa subjetividade.
O discurso universitário, concentrador, na tentativa de universalização do
sujeito, busca que nele advenha o apagamento de sua cultura, de sua história e das
diferenças singulares entre eles, buscando engendrar uma única forma de subjetividade.
Askofaré (2009) faz uma distinção entre os termos “sujeito” e “subjetividade”,
apontando que a estrutura do sujeito do inconsciente se define por operações trans-
históricas – recalque, foraclusão, recusa, alienação, separação. O autor reanima o
conceito de subjetividade histórica “sustentada sobre as categorias de discurso e de
saber, que indica em que a articulação do sujeito e do laço social requer a colocação em
90
Bem, na teoria dos 4 discursos, no seminário XVII, como já foi dito, Lacan
afirma que os elementos de giro só podem se movimentar no sentido horário ou anti-
horário, e assim, por mais que girem, não produzirão mais do que 4 discursos. No
entanto, posteriormente Lacan (1972/inédito), em sua conferência “Do discurso
psicanalítico” em Milão, profere + um discurso, o discurso capitalista, e neste discurso é
quebrada a regra de que os elementos de giro só podem girar no sentido horário ou anti-
horário.
Além disso, nos 4 discursos o impossível se trata daquilo que o agente demanda
do outro e a que o outro não corresponde de maneira plenamente satisfatória em função
do fato de que o Outro também é barrado. Por isso, como já foi dito, governa-se, faz-se
desejar, analisa-se e educa-se, mas nenhuma destas realizações é plena. Essa
impossibilidade tem como consequência a impotência em cada um dos 4 discursos,
impotência que impede que a produção do discurso se relacione com a verdade nele
proposta.
As coisas são bem diferentes no discurso capitalista. Vejamos abaixo a estrutura
do matema do discurso capitalista, apresentando também a estrutura dos 4 discursos
para efeito de comparação.
Discurso Capitalista
agente outro
$- Sujeito barrado S2 - Saber
_____________ ________________
S1 – Lei a- mais-de-gozar
verdade produção
pois ele entra no curto-circuito do discurso. A inversão do vetor leva o sujeito a uma
relação direta com a verdade – coisa que não existe na estrutura dos 4 discursos –
embrenhando-se num giro infinito na busca de um objeto de gozo no consumo para
preenchê-lo.
Vejamos que com a inversão do vetor e das letras, além de o sujeito entrar no
curto-circuito do discurso pelo consumo, há duas consequências. A primeira é que ao ter
acesso direto à verdade, a verdade existe para o sujeito. A segunda é que o agente ($)
perde sua relação com o outro ao entrar no curto-circuito do discurso capitalista – pois
nesse curto-circuito o objeto a mais-de-gozar fica entre o agente ($) e o outro (S2),
Afinal, foi o que se fez de mais astucioso como discurso. Esse último não é
menos destinado ao furo. É porque é insustentável… num truque que poderia
lhes explicar… porque o discurso capitalista está ali, vocês veem… uma
pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $… que é o sujeito… basta
para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas,
justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se
consuma. (1972, inédito).
Nesta citação entendemos que Lacan trata o discurso capitalista como uma
variação do discurso do mestre pelo fato de ser destinado ao furo. Nessa troca de lugares
– o sujeito, $, no lugar de agente, e o S1, no lugar da verdade, marca que o $, sustentado
95
pelo significante, S1 – passa a ser dono de sua vontade de gozo no consumo, numa
São questões complicadas, pois o próprio Lacan demonstra essa ruptura dos
laços ao inverter o vetor e as letras do lado esquerdo do matema do discurso capitalista,
dando ao sujeito acesso à verdade e colocando o a mais-de-gozar entre o agente ($) e o
S2 (outro) no curto-circuito do discurso. Porém, há o fato de que nenhum sujeito fica
retido neste discurso o tempo todo, assim como em nenhum dos 4 discursos, mas
passeia-se por todos eles.
Pensamos que, pelo simples fato de o sujeito passear pelo discurso capitalista,
mas não se fixar nele infinitamente, por si só já o desqualifica como um discurso
efetivamente. Há ainda o fato de ele não cumpre o que promete, nem potência de
relação com a verdade do gozo do sujeito, pois ninguém chega à completude, e ainda
esse discurso não tira a possibilidade de o sujeito circular pelos outros discursos, o que
seria lógico dado que se o sujeito encontrasse a completude do gozo nesse curto
circuito, não haveria espaço ou motivo para ele circular pelos outros discursos.
Considerando a tentativa do discurso capitalista de remover o impossível e a
barra da impotência de chegar na verdade, culminando no rompimento do laço social,
Pacheco Filho (2015) aponta que “Lacan nos remete ao que tantas vezes tem sido
denominado imperativo de gozo na sociedade de consumo: um imperativo de gozo por
meio dos objetos-mercadoria que a tecnologia gerada pela ciência moderna permite
fabricar” (p.28). Essa é característica central que ocorre pelas inversões realizadas na
passagem do discurso do mestre para o discurso capitalista.
O que de fato acontece, como diz Lacan (1972, inédito), é que este é um
discurso astucioso, por sustentar-se a partir da fantasia de completude do sujeito, mas
96
também destinado ao furo, porque não consegue excluir o sintoma. Ao contrário, como
mostra a racionalidade psiquiátrica, centenas de sintomas são diagnosticados e
medicados aquecendo o mercado farmacêutico; ou seja, ao mesmo tempo que promete
completude, denuncia seu furo para inserir mais consumo, de medicamentos neste caso.
Sendo assim, julgamos que para considerar o discurso capitalista como um
quinto discurso, ele teria que ser o primeiro e o único, pois não havendo nele impotência
de relação com a verdade, não haveria necessidade de o sujeito sair dele, nem
possibilidade de escapar dele. Assim estaríamos retidos nele o tempo todo, o que não
acontece, pois mesmo sendo frouxa, a impossibilidade existe, já que o sujeito não se
deixa universalizar.
Quanto ao imperativo de consumo, no entanto, o sujeito corresponde muito bem,
já que nunca se consumiu tanto, e isso pode fazer pensar que se trata de um quinto
discurso. Assim, o discurso capitalista impera na sociedade contemporânea a partir de
seu paradoxo cínico, ao mesmo tempo em que insere o imperativo de gozo pelo
consumo como promessa de completude e consequentemente de eliminação da falta. É
essa mesma falta que o sustenta e faz girar o consumo a partir da vontade de gozo.
Bem, sabemos que se o discurso capitalista é ou não um quinto discurso, é uma
discussão ainda em pauta e com muitas controvérsias entre os autores, questão que não
aprofundaremos. Por isso não pretendemos reduzir a discussão às questões aqui
apresentadas, ao contrário queremos apenas lançar mais essa questão sobre o tema e
dizer que nesta pesquisa, quando falarmos do discurso capitalista, estaremos
apresentando-o como uma variação do discurso do mestre ou como um estilo do
discurso do mestre moderno, conservando a tirania do discurso universitário, como
aponta Lacan (1969-70/1992).
O fato é que o discurso capitalista governa, e governa, digamos, mantendo sua
mestria astuciosa. Lacan (1969-70/1992), mesmo antes de formalizar a conceituação
sobre o discurso capitalista diz que:
que não há contra o que se rebelar em relação à classe dominante e pelo fato de ela ser
dona dos meios de produção. Isso se torna argumento suficiente para convencer o
sujeito a assujeitar-se aos mandos do mestre capitalista, suprimindo suas críticas sobre o
fato de que o que interessa nesse discurso é o acúmulo do capital conseguido através da
mais-valia e do consumo.
Pacheco Filho (2009), fazendo contraponto a autores que defendem o declínio
social da função paterna como responsável pelas mudanças na sociedade – por falta de
repressão social, por ser uma sociedade com um discurso que convoca o gozo como
obrigação, o que reduziria a população à estrutura psicótica ou perversa –, argumenta
que não há declínio do pai, e sim a elevação do pai capitalismo, muito mais exigente e
muito mais imperativo, pois sua ordem é “goze”, como sempre foi a lei do supereu. E o
agravante é que o gozo requerido é sobretudo um gozo dentro dos limites do
capitalismo de forma que ele continue acumulando capital.
Sendo assim, a função paterna está ainda mais forte, só que em nome do
capitalismo o imperativo de gozo é direcionado para o consumo até o máximo de seus
limites, fortificando o fetiche da mercadoria e a alienação do sujeito no laço com o
objeto, portanto fazendo função paterna, mas substituindo a imago paterna.
Como já apontado anteriormente neste trabalho, Pacheco Filho (2009) indica que
isso possibilita “um aspecto específico (particular) do laço social implicado pelo
capitalismo: uma aceleração da tendência totalitária” (pp.154-155). Essa aceleração à
tendência totalitária do capitalismo é nada mais que o resultado da entrada do sujeito no
curto-circuito do discurso capitalista como efeito dos imperativos de gozo propostos.
Vejamos como o capitalismo foi imperando na sociedade em escala mundial e
seus efeitos para o laço social.
Por meio dessa construção fantasmática, que ilude o sujeito de que ele estará
recuperando algo do gozo perdido ao consumir os objetos forjados pela
tecnociência, o discurso capitalista consegue manter um circuito fechado
entre sujeito e objeto, fazendo com que o sujeito seja governado pelo objeto.
Com isso, o gozo passa a ser regulado pela lógica do consumo. (p.293)
Penso que isso não quer dizer que a fantasia só funciona na lógica do discurso
capitalista, mas quer dizer que nele a fantasia parece mais possível de concretizar-se,
por manter o objeto a mais-de-gozar entre o sujeito e o outro. Além do mais, ao apontar
que esse objeto é oferecido pelo saber do mercado, ele acelera a perda de gozo e
intensifica a busca do gozo de completude via consumo, mostrando sua potência ao
afrouxar o laço social. É isso que torna o discurso capitalista um discurso
concentrador, por tentar eliminar as diferenças do sujeito pelo consumo, coisa que
Marx (1967/2010) já denunciava com relação ao trabalho:
101
Safatle (2008) aponta que o sujeito, por não querer se dar conta das contradições
do discurso capitalista, perde o desejo de julgamento, saindo em busca de objetos e
buscando neles a completude. Ou seja, essa conexão direta com o objeto faz com que o
desejo do sujeito esteja relacionado diretamente com ele (objeto). No caso, as
mercadorias consumíveis no mercado ficam nesse lugar, o outro deixa de ser alvo de
laço e passa a ser plateia. Assim, nesse discurso o sujeito goza de como o outro o vê em
função dos objetos que possui, destituindo a importância dos laços que havia no
feudalismo quando o mestre gozava do saber-fazer do escravo numa relação direta, num
laço com o escravo.
Embora o gozo do poder sempre tenha existido, o discurso capitalista o
intensifica por sua função de incitar o individualismo, mais uma forma de concentração
do discurso capitalista ao qual o sujeito se submete.
Para facilitar que o sujeito se instale na lógica do discurso capitalista, este cria os
créditos concedidos a longo prazo, tornando possível que o sujeito adquira mercadorias
sem dinheiro, tornando-o escravo das dívidas. Nessa lógica para tornar o sujeito mais e
mais escravo, cria-se mais e mais mercadorias... e o que resulta é uma busca frenética
em massa de gozo pelo consumo, substituindo a busca de gozo pela privação que antes
acontecia no capitalismo de produção como aponta Weber (2001) em “A ética
protestante e o espírito do capitalismo”.
Objetos de marca passam a ter um valor extremo, multiplicados muitas vezes
pelo custo de sua produção para definir seu preço final. Na atualidade, além de contar
com a supervalorização da marca, a lógica do capital conta também com a
obsolescência do produto, que, aliando-se às tecnociências, criam novos produtos que
substituem o anterior para que o sujeito adquira o novo produto inutilizando o antigo
mesmo em bom estado.
A maneira como funciona o discurso capitalista em tempos de consumo implica
na eliminação da castração, o que agrava ainda mais a situação do sujeito nesta lógica,
pois faz com que ele busque superar os limites de suas buscas e aspirações de consumo
como fantasia de completude, levando-o a adentrar-se em dívidas impagáveis. Este tipo
de movimento da tecnologia é impulsionado pela mídia, que passa a ideia de que a
102
completude está sempre na aquisição de um produto ainda por vir. Ou seja, após a
obtenção de uma mercadoria, certamente o sujeito terá que consumir novamente.
Mesmo antes de consumir a próxima mercadoria o sujeito já sabe que depois
dela virá outra que tornará a última obsoleta. É possível observar inclusive a ansiedade
do sujeito que, ao adquirir um produto, imediatamente começa a esperar que um novo
produto venha para substituir o recente.
Como já apontamos antes, não existe objeto que satisfaça o sujeito, pois não há
objeto adequado ao gozo, mesmo assim o sujeito fica prezo no circuito do consumo,
sem jamais alcançará o gozo em razão de sua impossibilidade, já que o próprio
capitalismo apresenta essa impossibilidade quando coloca a necessidade de constância
do consumo – seu próprio seu paradoxo - mas tal paradoxo não impede que o sujeito
continue imerso nesta lógica, imersão esta que torna possível a organização do
capitalismo de consumo tão extrema na maneira como se apresenta hoje.
Marx (1844/2009) aponta que ao trabalhador pertence a parte mínima e
indispensável do produto acabado, o necessário para ele existir, não como humano, mas
como trabalhador. Aponta que o capitalismo é procriador de escravos trabalhadores,
pois o salário nestas condições fica equiparado à, por exemplo, lubrificação de
máquinas para seu funcionamento normal.
De acordo com estas observações, Marx contextualiza a alienação no
capitalismo pelo modo como o trabalhador se ajusta a este sistema. Tal sistema, além de
transformar o homem em escravo, nega-lhe sua capacidade criadora, pois, para Marx, o
trabalhador, ao se alienar à maneira capitalista de acordo com suas necessidades, não
consegue se dar conta de sua capacidade criadora, ou seja, de que o produto que ele
produz seja de fato uma produção sua. Segundo Marx (1844/2009):
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma
mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização
do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não
produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como
uma mercadoria, e isso na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral. (p. 80).
Marx aponta ainda que isso acontece porque os meios de produção são
propriedade privada nas mãos do capitalista e não do trabalhador. Assim o meio de vida
do trabalhador fica na dependência do capitalista, e que “este fato nada mais exprime
103
senão: objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como
um ser estranho, como um poder independente do produtor”. (MARX, 2009, p. 80).
Sendo assim, os avanços tecnológicos conquistados são usados para impulsionar
o funcionamento do capitalismo, alienando o trabalhador a seu modo de funcionamento;
e ao invés de servir ao homem, coisifica-o.
É neste sentido que a alienação ao capitalismo se mostra na divisão do trabalho a
partir da fragmentação do mesmo, pois na alienação do trabalho, o trabalhador, ao
realizar apenas uma pequena parte do trabalho de produção de uma determinada
mercadoria, jamais saberá como produzir uma mercadoria inteira, não se dando conta da
importância de seu trabalho na produção total das mercadorias, tornando-se alienado ao
trabalho e às mercadorias que produz, pois ele não se apropria da função essencial de
seu trabalho na concretização do produto final. Acredita que não produz de fato uma
mercadoria e que apenas vende sua força de trabalho e, a partir deste pensamento, se
submete às condições da empresa para garantir seu sustento.
Esse tipo de relação do produtor com o trabalhador implica a desvalorização do
trabalho a partir da apropriação dos meios de produção pelo capitalista, pois assim é
possível produzir muitas mercadorias em pouco tempo, diferente de um trabalhador
artesanal. Isso explica o enfraquecimento dos pequenos produtores com a entrada do
capitalismo de produção, algo extremamente reduzido hoje em dia, pois com o
capitalismo de consumo eles são em número cada vez menores e mesmo assim, eles têm
muito menos força, e são bem mais vulneráveis aos cartéis e aos monopólios dos
grandes produtores, sendo facilmente levados à falência.
Essa vulnerabilidade imposta aos pequenos produtores é um elemento chave
para o crescimento e manutenção do capitalismo, pois essa imposição pelo sistema torna
a força de trabalho humana uma mercadoria vendável.
Marx (1867/2010) já denunciava que do ponto de vista do capitalismo o
trabalhador não deve se colocar contra o interesse dessa forma de sociedade, mas que é
fundamental que a sociedade capitalista se coloque contra os interesses do trabalhador
para sua sobrevivência. Denunciava também que a economia conhece o trabalhador
apenas como animal de trabalho, uma besta reduzida às necessidades corporais.
Entendemos que o discurso capitalista, além do aspecto concentrador como no
discurso universitário, se torna ainda mais nocivo ao apresentar imperativos de consumo
de mercadorias através de propagandas mentirosas.
104
23
Conf. em: http://g1.globo.com/carros/noticia/2015/09/volkswagen-admite-que-11-milhoes-de-carros-
tem-software-que-frauda-testes.html Acesso em 11 jan. 2016.
105
Era um tempo em que o capitalista tinha somente o trabalhador para abusar, pois
a camada de ozônio ainda não estava em perigo. Hoje temos a camada de ozônio da
qual eles também abusam, uma evolução da nocividade do capitalismo para a vida em
geral, humana e animal, não somente a do trabalhador.
E Marx (1967/2010) complementa: “de modo geral isso não depende, entretanto,
da boa ou má vontade do capitalista. A livre competição torna as leis imanentes da
produção capitalista leis externas, compulsórias para cada capitalista individualmente
considerado” (p.312). Ou seja, cada empresário faz a lei para sua sobrevivência, burlar a
lei se torna uma espada na luta de morte (Hegel) para o acumulo de capital e
sobrevivência do capitalismo.
Ainda podemos tirar do caso da Volkswagen mais uma questão: por que a
ilegalidade foi descoberta? Nossa hipótese é de que houve interesse por parte de outra
empresa que vende carros velozes dentro da lei e que foram investigar os carros dos
concorrentes por perderem mercado, portanto um interesse do capital. Será que alguma
empresa se interessaria pelas investigações se não estivesse sendo prejudicada no seu
capital? Pois nos parece que as investigações governamentais não são suficientes. Se
nossa hipótese trata-se de uma espada invisível, pois somente quando há interesse de
outro empresário, que se vê prejudicado por tais condutas do competidor, é que é
possível que essa espada covarde apareça, aliás, isso mais parece um tiro pelas costas.
Esse exemplo nos faz pensar em quanto mais as empresas, em nome do sucesso
de mercado, pode manipular dados para vender seu produto, escamoteando da sociedade
qualquer prejuízo à humanidade, e que pouco se investiga se não houver interesse.
Perguntamo-nos inclusive sobre fatos assim na indústria farmacêutica, pois não temos
que nos preocupar apenas com o fato de que a verdade última não existe a partir da
ciência positivista e concentradora, mas também com a manipulação de dados que
fazem parte da pseudociência do capitalismo, que ocorre em função da proteção dos
interesses do capital.
Seja pela apresentação das evoluções da ciência como verdade (discurso
universitário), seja pela manipulação de dados para chegar num resultado que interesse
ao mercado (discurso capitalista), nos dois casos prevalecem discursos de dominação e
concentração.
Hoje estamos vivendo um momento de “crise” em nosso país, crise essa que não
chega nem perto de outras crises já vividas por nós brasileiros em outros tempos. De
106
qualquer forma o que vemos como solução é que se gere emprego e que se fabrique
mais mercadorias.
As montadoras de automóveis são o principal alvo das queixas de desemprego
na sociedade brasileira, mas em nenhum momento se pensa que as ruas não serão mais
suficientes para transitar com eles, consequentemente não se pensa em alternativas.
Investir em transporte público ou em trens para transportar mercadorias não é
bom para o capitalismo, são investimentos que podem colocar em cheque seu equilíbrio,
ideia descartada no Brasil. Uma simples ciclovia vira polêmica nacional. Talvez
precisemos querer saber um pouco mais... Como já apontamos com Žižek, não existem
soluções verdadeiras, mas mudanças verdadeiras são possíveis, daí a importância de
querer saber, pois se todo saber não é possível, algum saber o é.
Com a evolução do capitalismo nessa direção, as pessoas vão parando de cogitar
outras formas de sociedade não capitalistas (comunismo, socialismo, anarquismo etc.).
Segundo Žižek (1996):
É fato que o discurso capitalista quer que o sujeito acredite em sua promessa de que há
objeto adequado ao gozo, mas é uma promessa que o sistema capitalista não pretende
cumprir, pois, além de não ser possível, por não haver objeto adequado ao gozo, caso
essa promessa se cumprisse, o consumo daria conta do gozo do sujeito e o capitalismo
não se sustentaria. Portanto, o que interessa para a sustentação do sistema é a crença do
sujeito numa promessa que jamais será cumprida.
Vimos que no sistema de produção capitalista o empresário extrai mais-valia do
trabalhador, uma vez que é o detentor dos meios de produção. E o trabalhador se
submete à exploração de sua força de trabalho, pois é o único meio que lhe resta para
sobreviver, já que não possui os meios de produção .
Como decorrência da concentração dos meios de produção nas mãos do
empresário, ocorre a alienação do trabalhador. A alienação acontece porque no processo
de produção, em função de o trabalhador realizar apenas uma pequena parte no processo
de execução de uma mercadoria, ele perde a dimensão de como realizar uma mercadoria
inteira e consequentemente perde o saber-fazer. Nesse movimento, inclusive, a maioria
das pessoas deixa de buscar ou preservar um saber-fazer, pois esse saber-fazer passa a
ser descartado como meio de subsistência, já que é quase impossível competir nos
preços com a produção realizada pelas fábricas.
Ao perder o saber-fazer, o trabalhador perde a dimensão criadora dos objetos
que fabrica e passa a vender sua mão de obra como mercadoria-trabalho. Nesse
movimento, o capitalista se apropria não apenas do saber-fazer, mas também da mais-
valia, um tempo de trabalho do qual o trabalhador abre mão em favor do empresário.
A exploração da mais-valia torna o trabalhador ainda mais escravo do
empresário, tanto porque não há possibilidade deste obter os meios de produção, quanto
porque ele perde a possibilidade de subsistência se não trabalhar na fábrica. Assim, para
manter sua subsistência, ele se torna alienado e, como indica Peixoto (2010),
“Alienação, então, nada mais é do que a negação da produtividade, ou seja, da
capacidade criadora do homem” (p. 34).
Sobre o gozo, vimos com Lacan (1964/1998) a essencialidade do autômaton –
por comandar o sujeito na busca de prazer – e da tiqué – que promove o encontro com o
real nas repetições, encontro essencialmente faltoso, que faz o sujeito produzir algo
novo. Em se tratando da clínica, o gozo é essencial, mas deve ser manejado pelo analista
na transferência para que o analisante, a partir da demanda, se depare com o encontro
faltoso – pois o analista sabe do fracasso da busca do objeto demandado – e possa criar
109
algo novo. Entendemos que é esse mesmo encontro faltoso nos laços sociais que cria a
oportunidade da subversão do sujeito e da invenção de alguma forma de resistência ao
discurso capitalista.
Vimos que a psicanálise nasce como sintoma do capitalismo, por dar voz ao
sintoma histérico, portanto, como resistência ao capitalismo. Como vimos no capítulo
2.3 deste trabalho, sobre discurso da histérica, o sintoma é o que atrapalha a bela ordem
do discurso do mestre, pois o discurso capitalista na tentativa de governar o sujeito
impõe-lhe uma verdade acabada. A histérica, porém, mostra seu sintoma como o
“retorno da verdade como tal na falha de um saber” (LACAN, 1966c/1998, p. 234).
Assim o discurso da histérica, ao sustentar o sintoma, se torna um forte aliado do
discurso do analista para fazer resistência ao discurso capitalista.
O fato de que, como já vimos, não é possível que o discurso capitalista invada o
inconsciente, isso nos faz crer que sempre poderemos contar com os sintomas e as
outras formações inconscientes enquanto seres falantes, para fazer resistência aos
discursos de dominação.
Ao resistir com seu sintoma, o sujeito mostra que não é objeto, pois o sintoma,
ao aparecer à sua revelia, revela a impossibilidade de eliminar o mal-estar na cultura e
consequentemente denuncia a falsa promessa do discurso capitalista de suturar o
sintoma. Temos assim a dimensão do sintoma que, através do discurso da histérica,
pode ou não fazer resistência ao discurso capitalista, para fazer resistência ele depende
do suporte do discurso do analista.
Lacan (1960a/1998) indica ainda que “o gozo é aquilo cuja falta tornaria vão o
universo” (p. 834), isso diz respeito ao universo do ser falante. Portanto é preciso um
pouco de gozo e temos aí a dimensão do gozo como podendo ou não fazer resistência ao
discurso capitalista, já é preciso ter tempo para que o sujeito sinta o encontro faltoso e
possa criar algo novo para funcionar como resistência. Se ele compulsivamente tenta
colocar outro objeto no seu lugar, é disso que o discurso capitalista se sustenta. Por
outro lado, temos o analista que sabe do fracasso do objeto por ter se submetido a uma
análise e tratado sua demanda e seu gozo, apontando como isso é essencial para que ele
possa exercer sua função e conduzir as análises de seus analisantes até o seu final. Seria
preciso que algo dessa natureza ocorresse no social para que o discurso do analista
implicasse resistência ao discurso capitalista.
A ética da psicanálise, que é a ética do desejo a partir da sustentação do objeto a,
se encontra no fundamento do ato analítico. Este, para acontecer, leva em conta o tempo
110
objeto que satisfaria seu desejo impossível de ser satisfeito, por ser desejo de desejo
insatisfeito. Daí a importância da histerização do discurso para que uma análise possa
caminhar, pois para que uma análise caminhe, é preciso insatisfação.
Enfim, apontamos o discurso do mestre como um discurso segregador, pois sua
maneira de submeter o sujeito está em colocar sua condição desfavorável como um
destino. Apontamos o discurso universitário e o discurso capitalista como discursos
concentradores, em função da tentativa de aniquilação das diferenças dos sujeitos,
tentativa que é recusada pelo sintoma histérico.
Podemos concluir que a chance de resistência ao discurso do capitalista está no
discurso analista, mas ele não pode trabalhar sem o discurso histérico.
Vimos ainda que quando Lacan (1972, inédito), propõe + um discurso, o
discurso capitalista, ele o aponta como uma variação do discurso do mestre e como um
discurso astucioso e destinado ao furo, logo, isso abre a possibilidade de que algo lhe
faça resistência.
O maior problema é que o mesmo elemento que lhe faz resistência é o que o
sustenta, isso em função de tratar-se de um discurso astucioso que promete algo
impossível, o acesso à sua verdade.
Se por um lado o inconsciente divide o sujeito e o submete à castração, é esse
mesmo inconsciente que determina ao neurótico uma margem de liberdade estrutural
pela via da separação – que é a política da psicanálise –, permitindo que o sujeito gire
nos discursos ao responder de diferentes maneiras, o que implica a possibilidade de
transformar sua realidade no laço social a partir da materialidade do significante, pois
mesmo que o sujeito se entregue ao gozo do capitalismo, não o faz sem sintoma.
Daí, o discurso do analista ao dar voz às queixas da histérica – sobre sua
insatisfação e ao suportar não responder-lhe sobre a verdade de seu sintoma, como faz o
discurso capitalista – à incita a voltar-se para a busca da verdade de seu desejo.
Assim, há uma dimensão política da psicanálise que possibilita o ato analítico e
promove a subversão do sujeito para que advenha uma transformação de sua
subjetividade a partir do sintoma no consultório. Essa mesma dimensão possibilitaria
um ato politico que promoveria a subversão do sujeito para que adviesse uma
transformação da sociedade a partir do sintoma social?
Já vimoso que o sintoma é sempre resistência, mas é preciso que o sujeito venha
a bem dizer seu sintoma para que haja transformação. Quinet (2003) aponta que:
112
No início de uma análise, o sintoma é um dizer que ainda não encontrou seu
dito. A passagem do dizer do sintoma a seu dito é o que constitui propriamente
falando o processo analítico, que se alinha na ética do bem dizer o sintoma. Para
que o sintoma do sujeito se transforme, no início do processo analítico, num
sintoma analítico é preciso que seja considerado pelo sujeito como um parceiro
de verdade. (p. 140)
Esse fato faz toda diferença, pois mostra que o sintoma pode vir a ser
revolucionário. Entendemos que o capitalismo, como as formas anteriores de sociedade,
não é imutável. Quinet (2003) nos dirá ainda que é preciso adotar o sintoma, vejamos:
França, quando estes lhe exigiam um posicionamento quanto à revolução, Lacan (1969-
70/1992) responde aos estudantes:
Obviamente Lacan não estava ingênuo à situação, ele tinha escrito o texto do
tempo lógico já havia 24 anos e percebeu naquela aspiração revolucionária que a
relação não se tratava de uma lógica coletiva e sim da relação de identificação da lógica
da psicologia das massas de Freud (1921/1976).
Nesta passagem Lacan aponta aos estudantes que eles estão buscando um
mestre, um estudante responde, “já o temos, temos Pompidou” (p.192), ninguém
contesta, está feito. Mesmo assim as relações sociais foram sendo profundamente
modificadas num sentido libertador desde maio de 68 pelas manifestações.
O que isso quer dizer? Quer dizer que mesmo quando se trata de um mestre no
comando, podem ocorrer consequências libertadoras? Ou teríamos que pensar essas
consequências libertadoras como um benefício para o sistema capitalista? Ou isso é um
processo de retroação significante como resultado de um ato político e estes foram os
efeitos a posteriori, de algo anterior em que as pessoas precisaram de um tempo lógico
para dar uma resposta coletiva? É difícil avaliar, mas não se pode negar que houve
consequências libertadoras.
Voltemos à conversa de Lacan com os estudantes: digamos que com sua
resposta Lacan tenha se revestido de objeto a, outro estilo de significante-mestre, que se
abstém do lugar de saber sobre o que fazer que lhe foi solicitado diante das
manifestações, pois ao mesmo tempo em que denuncia essa repetição da busca de um
novo mestre com respostas prontas, parece querer sustentar um ato que o incite os
estudantes a criar alternativas coletivas para a transformação social requerida ao invés
de buscar a resposta em um único mestre.
De qualquer forma, sua posição não foi bem recebida pelos estudantes e não se
caracterizou como um ato político, pois o ato é um acontecimento a posteriori, por
retroação significante, o que nesse caso não aconteceu. Os estudantes não estavam em
momento de concluir a intervenção de Lacan como um ato político. Como vimos,
115
tratava-se mesmo da busca de um mestre com seu poder de saber uma resposta que
trouxesse harmonia social.
Há de se considerar que Lacan não é o único que tentou isso, mas outros que
tentaram também não encontraram terreno fértil para propor um ato político como
resposta ao sintoma social que promovesse uma subversão no laço social no sentido de
o discurso do analista implicar resistência ao discurso capitalista.
Já dissemos com Checchia (2012) que a teoria do poder apontada por Freud
sobre a técnica psicanalítica tem seu caráter subversivo pelo manejo que engendra um
efeito libertador. Esta é a única forma de o analista em sua função ser tomado como
mestre a partir do discurso do analista. O discurso do analista, como vimos, é uma
forma de assumir o significante-mestre a partir de um novo uso, isto é, o da política do
objeto a. Desse modo, visa a propiciar uma contingência para que o sujeito se implique
com o saber que ele mesmo tem e acesse sua margem de liberdade.
Entendemos que a posição de Lacan (1969-70/1992) busca deixar essa pista para
os estudantes sobre a busca de uma construção social de uma lógica coletiva. Talvez
essa passagem da história, sobre tal posicionamento de Lacan e outros posicionamentos
neste mesmo nível, ainda possam ter repercussões futuras, quem sabe?!
Bem, tendo apontado uma articulação da atuação da política da clínica e as
possibilidades de que ela seja transposta para o social, trataremos agora da teoria da
lógica coletiva proposta por Lacan (1945/1998) como contraponto à teoria da
identificação apontada por Freud (1921/1976). Esperamos assim demonstrar
teoricamente mais uma possibilidade de implicação do discurso do analista como
resistência ao discurso capitalista no campo político da sociedade.
No nosso país podemos observar notícias bem atuais sobre como a maioria das
pessoas são influenciáveis e sem faculdade crítica. Isso fica bem claro quando
observamos as notícias infundadas amplamente difundidas nas redes sociais sem
nenhuma dúvida sobre sua veracidade, onde também se nota que qualquer tentativa que
gerar algum traço de antipatia se transforma em ódio furioso. Freud (1921/1976) aponta
ainda que:
Enfim, este é um aspecto apontado por Freud em 1921 e notamos sua atualidade
diariamente na sociedade contemporânea. Estímulos excessivos são repetidamente
inseridos nas propagandas através dos meios de comunicação de massa para estimular o
consumo, além de propagar falsas informações que buscam convencer a sociedade da
certeza da ideologia da classe dominante.
São imperativos impostos por um pai muito mais exigente em sua função do que
qualquer outro que já existiu, pois conta com a ajuda da tecnologia e da mídia através
dos meios de comunicação de massa para promover a aniquilação das diferenças e
acelerando a tendência totalitária que assistimos na sociedade contemporânea.
Freud (1921/1976) inclusive fornece uma fórmula para a constituição de grupos
hoje formados pelo discurso capitalista, diz ele: “Um grupo primário desse tipo é um
certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal
do ego e, consequentemente, se identificam uns com os outros em seu ego” (p.147). O
objeto que hoje traduz esse lugar do ideal apontado por Freud é o objeto de consumo
proposto pelo discurso capitalista.
Sobre essa forma de laço, Gallano (2014b) diz que “Sabemos o quanto
tristemente a opinião comum pode acomodar-se na banalidade do mal em voluntárias
servidões, e a negação do real levar às cegueiras subjetivas” (p.23). São situações
apontadas nos exemplos atuais que expusemos acima, que se dão através de imperativos
enunciados pelo mestre que é o sistema capitalista através de seu discurso.
Para fazer contraponto à teoria da identificação apresentada por Freud,
abordaremos a teoria da lógica coletiva proposta por Lacan (1945/1998) que, em seu
texto sobre o tempo lógico, nos trouxe o sofisma dos três prisioneiros.
Este sofisma contém uma solução perfeita para uma lógica coletiva, conceito já
introduzido no capítulo 1.4 deste trabalho. Sabendo disso, iremos nos repetir no que já
foi tratado lá, apenas nos aspectos que se fizerem necessários.
Neste texto, logo após apresentar a solução perfeita para o sofisma, Lacan
(1945/1998) se pergunta se essa solução perfeita pode ser atingida na experiência, pois
na teoria isso é possível. Outra questão colocada por Lacan (1945/1998) no final do
118
texto é que embora a lógica do sofisma possa ser aplicada a um número ilimitado de
pessoas24, as coisas se complicam quando esse número cresce. Nas palavras do autor:
24
Em nota de rodapé da página 212 dos Escritos, Lacan (1945/1998) explica a possibilidade da solução
perfeita do sofisma com 4 sujeitos, quatro discos brancos e três pretos, afirmando que a solução pode ser
aplicado a um número ilimitado de sujeitos contando com três escansões, as mesmas escansões
necessárias para a solução do sofisma dos três prisioneiros. Se compreendermos sua explicação,
entenderemos de lógica coletiva a um número ilimitado de pessoas.
119
a todos os seres falantes, teríamos que contar com algum enunciado informativo como
já foi dito.
A teoria da lógica coletiva tem uma dimensão diferente da teoria da
identificação, pois os prisioneiros não colocam um único objeto no lugar do ideal para
identificar-se com os outros em seu ego, como acontece na teoria da identificação
apresentada por Freud. Ao contrário, eles não podiam dizer uns aos outros a cor do
discos dos oponentes, pois perderiam a chance de ter a liberdade. O mesmo ocorre com
os bilhões de falantes.
Todas essas variantes nos fazem tomar o sofisma como uma simbolização da
lógica coletiva, entendendo que ela não poderia ser aplicada aos falante de um planeta
inteiro. Há que se perguntar inclusive, quem seria o diretor, teria que ser alguém que
fizesse um ato político. Enfim, entendemos que a conjuntura global e a situação
histórica-econômica-política do nosso mundo atual não comporta tal aplicação.
Essa conclusão, porém, não invalida a possibilidade que de alguma maneira a
lógica coletiva possa funcionar. Por exemplo, examinemos a questão de Gallano
(2014a): “Acaso poderíamos – ainda sem saber como – extrair de nossos singulares
aconteceres, experiências a compartilhar em que, embora separadas em suas plurais
diversidades, possam pensar políticas alternativas para tratar as vias de uma existência
comum? (p. 11, tradução nossa) Entendemos que essa questão está no coração de uma
possível aplicação da lógica coletiva.
A partir da questão de Gallano podemos formular mais outra pergunta: tal
solução interessa à classe dominante? Do ponto de vista da psicanálise, sabemos que a
classe dominante também não é livre, pois a ela é dada a mais-valia, porém, ao mais-de-
gozar, nenhum ser falante tem acesso. Inclusive porque o sistema capitalista não permite
que o empresário goze plenamente do capital, pois esse deve ser investido para que mais
capital se acumule. Assim, todo ser falante trabalha para o capitalismo como aponta
Vanier (2002):
Obviamente que essa promessa não pode ser cumprida, pois a parte que deveria
ser repartida deve ser canalizada para mais acúmulo de capital. Se ela fosse repartida, o
sistema capitalista não sobreviveria.
Entretanto, a classe dominante tem o poder nas mãos (meios de produção, mídia,
tecnologia, armas...) e quer preservá-lo, o que faz com que ela não se interesse em
precipitar o momento de concluir, fazendo permanecer a dúvida aos bilhões de sujeitos
proletários que pudessem estar interessados na liberdade.
O proletário, cada um deles pensando individualmente, apesar de não ter acesso
ao poder, trabalha para o capitalismo na esperança de um dia estar no poder. Assim, no
capitalismo, em ambos os casos (tanto para o capitalista quanto para o proletário), o
senhor é o sistema capitalista.
Se estamos todos com os discos brancos nas costas, a classe dominante tem
dificultado a solução perfeita utilizando-se de seus poderes para ofuscá-la, assim como
todos aqueles que não se interessariam pela solução perfeita, a ofuscariam por não
apresentarem as pistas necessárias para a solução coletiva. O proletário faz o mesmo
para não perder a esperança de um dia alcançar o gozo que ele pensa que o capitalista
tem acesso, esse é o sacrifício de sua castração ao Outro. Assim deixamos o Outro
capitalista servir-se de nossa castração para não perder a fé de que podemos ter poder.
Se, como disse Lacan (1945/1998), a solução perfeita é a fórmula de uma lógica
coletiva numa relação de reciprocidade da falta de saber, é o discurso capitalista que
torna essa relação nebulosa, pois ao apresentar uma verdade sobre o gozo do sujeito,
dificulta o pensamento lógico dos envolvidos, que são todos os seres falantes.
Nesse pensamento poderíamos propor o cúmulo da utopia: A classe dominante
vislumbrar-se também como perdedora de gozo e tão presa ao sistema capitalista como
qualquer trabalhador ou os que estão à margem em relação ao acesso ao capital (os
aniquilados do sistema).
Pelo lado dos trabalhadores que não têm acesso ao capital, esses vislumbrariam a
impossibilidade de gozo da classe dominante (pois não há Outro do Outro) e assim
parariam de buscar tal gozo por sabê-lo impossível. Nessa perspectiva, ambos se
permitiriam perder gozo para ganhar desejo, pois, embora o capitalista se aproprie da
mais-valia, ao mais-de-gozar é garantido pela linguagem que ele não terá acesso.
Fingerman (2005) aponta que “há um sujeito, $, que é tanto o capitalista quanto
o proletário. É o sujeito do capitalismo radicalmente à mercê do sistema que ele produz
e que o produz” (p.79). Sendo assim, tal utopia poderia ser realizável se coletivamente
121
os seres falantes pudessem se dar com a castração, não só sua castração singular, mas
também com a castração que se impõe como impedimento a uma sociedade harmoniosa.
Mas essa utopia é o cúmulo, pois o difícil – para cada um, assim como para a sociedade
como um todo, enquanto seres falantes – é querer saber disso, dessa perda de gozo.
Considerando tais variantes, incluídas em um número incomensurável de
participantes e tendo concluído a impossibilidade da aplicação do sofisma sem invalidar
a lógica coletiva, perguntamos: seria necessário que todos os seres falantes chegassem
juntos à solução perfeita da lógica coletiva para que uma mudança social verdadeira
pudesse acontecer? Entendemos que tais variantes não necessariamente impedem uma
mudança verdadeira, como aponta Lacan (1969-70/1992) “nada é tudo” (p.193), e é isso
que nos atesta toda a teoria da incompletude proferida pela psicanálise.
Trata-se de uma teoria do conflito, portanto pode haver aqueles que preferem o
capitalismo, o que é admissível pela psicanálise. Aqui trata-se muito mais de pensar
sobre o deslocamento da impotência na busca da verdade, já que sempre há falantes que
buscam tal verdade mesmo à sua revelia em função do sintoma que lhes é inerente, isso
levando em conta que nem todos conseguem escapar de uma busca pelo saber.
Sendo assim, é importante ainda não perder de vista o que nos aponta Ema
(2014) sobre a importância da busca do deslocamento da impotência, mas não de sua
eliminação. Diz ele: “a impotência é deslocada por um saber-fazer na prática do
impossível, sem cancelá-lo, sem tamponá-lo, pois nenhuma solução é definitiva
mediante uma pílula mágica que restituiria definitivamente o equilíbrio perdido” (p.90).
Isso quer dizer que há uma impotência de se chegar na verdade, e é por isso que
a verdade é sempre parcial e se sustenta somente enquanto um nova verdade se constrói
a partir do sintoma do sujeito. Assim a impotência significa que não há verdade total,
mas não significa que devemos deixar de buscar tal deslocamento da impotência, essa
busca é recomendável e esperada segundo a teoria psicanalítica.
É um paradoxo, pois como aponta Ema (2014), por um lado “o desejo não é
independente da lei, há satisfação também na sujeição, nos mandos normativos, na
culpa, etc.” (p. 87), ou seja, alguma relação com o Outro é necessária para estabelecer
laço social, trata-se da alienação estrutural imposta pela entrada na linguagem
representada pelo discurso do mestre. Mas por outro lado é preciso que o sujeito busque
uma margem de liberdade em relação a ela para construir o próprio saber. Inclusive,
como já foi dito insistentemente, é por meio do sintoma à sua revelia, que o sujeito pode
122
estabelecer uma margem de liberdade nos laços sociais em relação à cultura em que ele
se constitui.
Sendo assim, por mais que o discurso do analista leve o sujeito para um sentido
contrário à identificação, visando a separação do sujeito da alienação ao Outro, ele (DA)
não levará à sua completa desaparição, dado que não é possível se desfazer da sua
alienação estrutural (como já apontada no capítulo 2.2 deste trabalho). E é o ato
analítico (ou político) que pode fazer com que o sujeito questione o que se apresenta
como sintoma de uma verdade para ele, uma chance de produzir o novo. Sobre a
verdade, Lacan (1969-70/1992) aponta que:
Uma citação um tanto longa, mas muito elucidativa que articula vários
conceitos. Aponta que o saber não se preocupa com a verdade, ele surpreende o
sujeito expondo uma verdade que se sobrepõe à verdade anterior. Assim apresenta a
incidência da política na categoria do sintoma. Este se produz por sua relação com o
real como efeito de verdade pela queda do saber, importando o que tal verdade produz
a partir do ato de questionamento da lei.
Daí o real se agita até a próxima crise desta nova verdade que se instala para ser
novamente destituída. Nova verdade que desarmoniza o sujeito por ter que ser
substituída, reconstruída, trabalhosamente... Isso denota que o Outro, enquanto verdade,
é estabelecido para ser derrubado, pois sua verdade, por ser parcial, está condenada ao
fracasso. Mas o mais intrigante é que não há como planejá-lo, assim como numa análise
o ato analítico não pode ser calculado pois o trabalho da verdade leva um tempo longo
123
do sujeito em análise, na sociedade o ato político leva não pode ser calculado e o
trabalho da verdade leva um tempo também incalculável no laço social.
Para pensar a possibilidade de uma lógica coletiva numa perspectiva similar ao
que acontece em análise no consultório, portanto não identitária nem idealista, Ema
(2014) propõe que:
Aqui, “a parte sem parte” funciona como um lugar vazio que permite
encarnar uma batalha política singular, uma transformação política geral do
cenário comum. Essa parte que não conta para a ordem dominante como
legítima, pode aparecer como uma disfunção particular, um mal
funcionamento, quando na verdade denuncia o funcionamento injusto do
sistema em seu conjunto. (p. 99, aspas do autor, tradução nossa).
Ou seja, as manifestações que não têm parte na sociedade, são elas que
denunciam as injustiças do sistema e as que merecem toda a atenção da sociedade. No
Brasil, podemos pensar no MST (Movimento dos Sem Terra), que não tem parte no
sentido de uma luta legítima, mas denuncia o acúmulo de terra para poucos e a falta de
terra para muitos.
A ocupação das escolas25 pelos estudantes do Ensino Médio no Estado de São
Paulo no ano de 2015 é outro caso, que não tem parte como luta legítima, pois mereceu
intervenções policiais e espancamento das crianças (os ocupantes), mas denuncia a
precariedade da educação no nosso país.
A violência, atestada diariamente pelos programas sensacionalistas de televisão,
exercida pelos “bandidos”, que não tem parte como ação legítima, pois eles são
apresentados apenas como lixo humano pela mídia, mas denuncia a desigualdade social
no nosso país (desigualdade que é responde à pergunta: mas porque tanta violência?).
25
Consultar noticia em: http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/ocupacao-de-escolas-coloca-
reorganizacao-em-xeque/
124
Enfim, todos estes exemplos refletem uma batalha política tida como a parte que
atrapalha o bom funcionamento da sociedade. E isso pode ser verdade, mas atrapalham
o bom funcionamento do quê? Da bela ordem dos discursos segregadores e
concentradores, ou seja, refletem o sintoma social denunciando as injustiças propostas
pela classe dominante. E a lista é imensa...
Ema (2014) aponta ainda que “a política constituída como projeção de uma
posição particular muito concreta e nada universal (masculina, branca, ocidental,
heterossexual...) utilizada como ideal, é veículo de domínio e exclusão” (p.102,
tradução nossa). Assim, os excluídos existem apenas como exemplo de uma classe a
qual não se deve pertencer e que lá ela deve permanecer para não tirar o que é meu
(individualismo). Dessa maneira, a partir do discurso capitalista, luta-se
individualmente para escapar da exclusão. É impensável uma política de acolhimento
aos excluídos da sociedade, essa é a concentração do discurso capitalista a qual
estamos tratando desde o começo deste trabalho. Essa é a dificuldade, mas toda essa
lista que compõe a parte sem parte pode em algum momento do futuro funcionar como
ato político?
Cevasco (2014) aponta que para Alain Badiou o acontecimento político é a arte
de tornar o impossível possível, trata-se de um ato que se dá quando se admite correr
riscos sem garantias de sucesso de harmonia social, pois não há possibilidade de
conceber uma sociedade sem antagonismos. Assim, contar com as diferenças para lidar
com as consequências e com o saber-fazer de cada sujeito para reinventar a sociedade a
partir dos rompimentos proporcionados pelo ato é indispensável. Além disso, como
aponta Cevasco (2014):
A hiância entre o ato e o saber faz do ato algo incalculável e determinado por
uma decisão subjetiva que está submetida a uma lógica temporal que sempre
se produz como uma certeza antecipada e não como uma conclusão lógica de
um prévio raciocínio. (...) O ato é sempre antecipado, ele chega muito cedo,
como expressa Lacan, precisamente para que não seja muito tarde. Enquanto
se confrontar com um real, não é calculável a partir de um saber
estabelecido, embora seja precedido por alguns argumentos é a posteriori que
se pode localizar as condições da situação que dão lugar à emergência e
podem refletir sobre as estratégias de organização para manter abertas as
condições de sua reprodução. (p.122).
Assim, a lógica coletiva necessita da uma política do ato (o ato de fazer o corte e
inserir a pressa) que incide sobre o pedaço de real que é o sintoma e as outras formações
125
inconscientes. Trata-se portanto, de uma política do real, pois ela aborda o tratamento
do sintoma como o que vem do real.
Lacan (1975-1976/2007) assinala que o sintoma não deve ser confundido com o
real, ele é o que do real pode ser simbolizado, ele vem do real, ele é a forma de o real
fazer sua política, e como tal deve ser tratado pelo discurso do analista26. Utopia ou não,
somente arriscando é possível conhecer a dimensão política de tal utopia, se ela é
realizável ou não.
Tudo que foi trabalhado sobre o sintoma neste trabalho, nos apoia a afirmar que
o discurso do analista pode implicar alguma forma de resistência ao discurso capitalista,
pois o sintoma como o que vem do real é suficiente para atrapalhar a bela ordem dos
discursos de dominação se for adotado como uma instancia inerente ao laço social.
Infelizmente, até agora, não houve nada que atestasse na realidade que o discurso do
analista tenha implicado alguma forma de resistência ao discurso capitalista, mas é fato
que o que se trata de futuro não pode previsto, a teoria está posta para ser pensada,
articulada e praticada.
26
Recorremos neste momento do seminário XXIII apenas para apontar o momento em que Lacan trata o
sintoma como o que vem do real para apontar que a política do real é a política do sintoma da lógica
coletiva, mas não adentraremos no sinthoma (com th).
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, acreditamos que cabe ainda mais alguns apontamentos sobre a
responsabilidade do sujeito no sistema capitalista alienante. Sobre a responsabilidade
em tal sistema, seja ele segregador ou concentrador, Pacheco Filho (2009) aponta que:
Essas duas descobertas – a de que a vida dos nossos instintos sexuais não
pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si,
inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de
percepções incompletas e de pouca confiança –, essas duas descobertas
equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria
casa. (p. 178, grifos do autor).
sintoma até o final. Isso é necessário para que o sujeito encontre uma saída em relação
ao gozo do Outro para gozar do seu próprio sintoma.
Quanto à teoria psicanalítica da lógica coletiva apresentada por Lacan
(1945/1998), esta propõe possibilidades de seu funcionamento para a transformação do
laço social. Embora a eficácia dessa proposta não tenha sido verificada no sentido de
expandir a política da psicanálise, a da separação, que levasse o discurso do analista a
ponto de promover uma transformação no laço social de maneira a fazer resistência ao
discurso capitalista, isso não significa que ela não terá a possibilidade de funcionar em
algum momento.
Segundo Cevasco (2014) com Lacan (1973/2003) “O discurso do analista pode
ser uma saída do discurso capitalista, porém ele requer que a saída não seja apenas para
alguns” (p.136). Ainda não é possível atestar na história, que o sujeito descoberto por
Freud e nomeado por Lacan, o sujeito barrado, dividido pelo inconsciente, foi capaz de
tal façanha, afinal o discurso capitalista está aí a todo vapor. Entretanto ninguém pode
garantir que ele não possa vir a realizar tal saída através do discurso do analista
justamente por se tratar do futuro. É o sujeito dividido que pode vir a dar provas de uma
práxis efetiva no âmbito da política coletiva no laço social.
Enfim, queremos deixar a seguinte reflexão: primeiramente, se consideramos
que há uma dimensão política da psicanálise clínica que permite a subversão do sujeito
por uma transformação em sua subjetividade ao possibilitar um querer saber sobre seu
sintoma singular a partir do ato do analista, vale pensar se essa mesma dimensão
política da psicanalise pode também permitir uma transformação na sociedade ao
possibilitar um querer saber sobre o sintoma social pela sociedade a partir do ato
político, considerando uma lógica coletiva. Colocado de outra maneira: o discurso do
analista possibilitaria uma lógica coletiva que implicasse alguma forma de resistência ao
discurso capitalista?
Ficaremos com essa questão, a qual pretendemos desenvolver mais detidamente
em um próximo trabalho, no qual insistiremos principalmente na responsabilidade do
sujeito nos acontecimentos que o alienam e em sua implicação com os mesmos para que
haja mudanças verdadeiramente separadoras na sociedade.
130
REFERÊNCIAS
CHECCHIA, M. A., MARTINS, R. C., PAROLA, m. b., (Orgs.). A palavra Política nos
Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan. Stylus: revista de
psicanálise, n. 22, p.125-159, 2011.
EMA, J. E. (2014). ¿Una política de lo real? In: Gallano,C. (org.). Política de lo real:
Nuevos movimentos sociales y subjetividade. Barcelona. S&P ediciones, 2014.
pp. 85-113.
FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI: O dicionário da Língua portuguesa.
3. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999.
FINGERMAN, D.; DIAS, M. M. Por causa do pior. São Paulo: Iluminuras, 2005.
FINGERMAN, D. A análise dos analistas. Jornal de Psicanálise. São Paulo, vol. 41, n.
74, p.131-139, jun., 2008. Disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v41n74/v41n74a08.pdf. Acesso em: 10 maio
2015.
132
FREUD, S. Relatórios sobre meus estudos em Paris e Berlim. In: Freud, S.______.
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, vol. I, 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1886/1990. pp. 35-49.
FREUD, S. Histeria. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, vol. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1888/1990.
pp.77-94.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IV e V. 2. ed. Rio de
Janeiro: Imago, 1900/1987.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ______. Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 2. Ed. vol.
VII. Rio de Janeiro: Imago, 1905/1989. pp. 118-229.
FREUD, S. Psicanálise "silvestre". In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol XI. Rio de Janeiro: Imago,
1910b/1996. Pp.205-213.
FREUD, S. Artigos sobre a técnica. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro:
Imago, 1911-1915/1969.pp.111-115.
FREUD, S. Totem e Tabu. In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIII. São Paulo: Companhia
das Letras. 1912-13/2013. p. 13-244.
FREUD, S. Sobre o início do tratamento. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro:
Imago, 1913/1969. pp. 166-187.
133
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro:
Imago, 1914/1969. pp.191-203.
FREUD, S. O sentido dos sintomas. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVI. Rio de Janeiro:
Imago, 1916-17a/1976. p. 305-322.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1920/1976. p. 13-85.
FREUD, S. Inibição, sintoma e ansiedade. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de Janeiro:
Imago, 1926/1976. p. 95-201.
FREUD, S. O futuro de uma ilusão. In: ______. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro:
Imago, 1927/1974. p.13-71.
134
FREUD, S. Esboço de psicanálise. In: ______. Edição standard brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago,
1940/1975. p. 165-237.
LACAN, J. Para além do princípio de realidade. In: Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1936/1998a. pp. 77-95.
LACAN, J. O estádio do espelho. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1936/1998b. pp. 96-103.
LACAN, J. A coisa freudiana. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1955a/1998. pp.402-437.
LACAN, J. A psicanálise e seu ensino. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1957a/1998. pp. 438-460.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1962-
1963/2005.
LACAN, J. Kant com Sade. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1962/1998. pp.776-803.
LACAN, J. Ato de fundação. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1965/2003. pp.235-247.
LACAN, J. A ciência e a verdade. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1966a/1998. pp. 869-893.
136
LACAN, J. De nossos Antecedentes. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1966b/1998. pp.69-76.
LACAN, J. Do sujeito enfim em questão. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1966c/1998. pp. 229-237.
LACAN, J. Discurso na Escola Freudiana de Paris. In: ______. Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1967b/2003. pp. 265-287.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1972-73/1985.
LACAN, J. Televisão. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1974/2003. pp. 508-543.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975-
1976/2007.
OLIVA, M. L.(2014). Unos, com otros. In: Gallano,C. (org.). Política de lo real:
Nuevos movimentos sociales y subjetividade. Barcelona. S&P ediciones. (P.73-
84).
137
PACHECO FILHO, R. A. Compra um Mercedes Benz pra mim? Psic. Rev., São Paulo,
vol. 24, n.1, p.15-44, 2015. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/24227/17437 . Acesso
em 19 ago. 2015.
QUINET, A. As 4+1 condições de análise. 12. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009a.
SÓFOCLES. Antígona - Trilogia Tebana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 421 a.C./2002.
VANIER, A. O sintoma social. Ágora, vol. Vol. 2, pp. 205-217, jul/dez., 2002.
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/agora/v5n2/v5n2a01.pdf. Acesso em 20
set. 2015.
ŽIŽEK, S. Bem vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
ŽIŽEK, S.; DALY, G. Arriscar o impossível. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2006.