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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

BRENDALI DIAS

O DISCURSO DO ANALISTA PODE IMPLICAR ALGUMA FORMA DE


RESISTÊNCIA AO DISCURSO CAPITALISTA? SOBRE A DIMENSÃO
POLÍTICA DA PSICANÁLISE FREUDO- LACANIANA

TESE DE DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO
2016
ONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

BRENDALI DIAS

O DISCURSO DO ANALISTA PODE IMPLICAR ALGUMA FORMA DE


RESISTÊNCIA AO DISCURSO CAPITALISTA? SOBRE A DIMENSÃO POLÍTICA
DA PSICANÁLISE FREUDO- LACANIANA

Tese de doutorado apresentada ao


Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Psicologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Raul Albino
Pacheco Filho.

SÃO PAULO
2016
BANCA EXAMINADORA

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___________________________________________

___________________________________________
Dedico este trabalho...

Ao José pelo companheirismo, ao Felipe


e à Nicole, por darem sentido à minha
vida...
AGRADECIMENTOS

Começo agradecendo ao José, pelo amor, apoio, por cuidar de mim e por dizer
“vai” quando eu tenho dúvidas se devo ir... E também aos meus filhos, principais razões
da minha vida, Nicole que com seu jeito simples e desembaraçado me trazia pra vida
quando estava mergulhada na escrita e Felipe pelas discussões sobre o tema da tese,
pela leitura do texto e pela ajuda nos mesmos, enfim aos três pelo amor e paciência que
têm tido comigo, por me compreenderem, apoiarem e me darem o espaço necessário
para realizar meus sonhos acadêmicos em um momento em que tenho sido tão ausente
como mulher e mãe. Agradeço ainda Maik Batista por trazer alegria a nossa casa.
Este trabalho pôde acontecer porque o Raul Pacheco, meu orientador, além de
me dar a oportunidade de estar no Núcleo de Psicanálise e Sociedade como doutoranda,
ainda teve paciência para lidar com minhas dificuldades, confiando e contribuindo com
orientação cuidadosa para o desenvolvimento de minha escrita. Agradeço pelo rigor
teórico de seus ensinamentos em sala de aula e pela amizade fora dela.
Agradeço imensamente ao amigo e parceiro de ofício, Aluísio Ferreira de Lima,
com quem contei para desenvolver este trabalho, à sua esposa Meire e filha Stephanie,
por me receberem em seu lar e me acolherem com tanto carinho num momento difícil
deste trabalho, assim como o fizeram no mestrado.
Aos arguidores de minha banca: Nadir Lara Junior, pela leitura do texto, e por
me cobrar o lado político da tese; Sandra Dias, por me atentar sobre a função do
analista; Marcelo Checchia, por me ajudar com a estrutura do trabalho e pela leveza que
me passou na leitura posterior à qualificação; Salvador Sandoval, pelos apontamentos
tão pertinentes sobre Marx, me dando uma nova direção de como usá-lo na tese. Saibam
que todos contribuíram imensamente para a configuração e conclusão deste trabalho e
espero ter correspondido um pouco às expectativas.
Dizem que o ofício de analista é solitário assim como a escrita de uma tese é
solitária. Comigo não funciona assim, meu consultório sempre foi repleto de colegas
com quem divido o espaço e aos quais agradeço pelo convívio, e minha tese repleta de
considerações deles, com quem divido o desenvolvimento da escrita desta tese,
principalmente Leo Peretti, Mariana Ferretti e Renata Rampim, por lerem e comentarem
meus textos, à Simone Sousa pelas discussões pertinentes, ao, Marcelo Santos pela
longa amizade, enfim, a todos pelo carinho, amizade e momentos de descontração.
Agradeço a todos os colegas que participaram do Núcleo Psicanálise e
Sociedade esses anos, por contribuírem para um ambiente rico de desenvolvimento
teórico e também pela amizade especialmente Conrado Ramos e Guilherme Mola,
Jamile e Ricardo. Agradeço ainda Lilian Clementoni pelo companheirismo em Paris e
Anderson Schirmer com quem dividi minhas angústias desde o mestrado.
Agradeço aos colegas do Movimento Psicanalítico do ABC, Conceição Sperini,
Daniel Vitorello, Flavia Reigado, João Felipe Domiciano, Karla Rampim, Leo Peretti,
Patrícia Spessi, Raquel Schimdt, Renata Rampim, por toparem sustentar a psicanálise
em nossa região de maneira oposta ao mau uso do Um, saibam que toda experiência
vivida esses anos teve efeitos na escrita desta tese.
Agradeço aos colegas do Fórum do Campos Lacaniano São Paulo por trazerem
as contribuições que sustentam o Seminário da EPFCL-Brasil e FCL-SP no ABC,
principalmente Gláucia Nagem, Sandra Mara, Delma Gonçalves e Ana Paula Gianesi.
Helena Bicalho, pelo que me faz avançar em minha empreitada do desejo.
Ao amigo Umbelino, que topou fazer a revisão de texto de minha tese e o fez
com extrema competência, para além de correções ortográficas.
Pensar na construção da minha vida me motiva a agradecer alguns familiares
que participaram da mina vida e meus sofrimentos, sempre cobrando minha presença,
que ficou difícil nestes tempos. Agradeço aos meus pais, por me mostrarem as
dificuldades da vida. À minha irmã Jaqueline, pelo apoio e pelas correções ortográficas
do projeto e da qualificação deste trabalho. Às minhas sobrinhas Sthefanie, Vanessa,
Vitória e Valentina, pelo amor e ao Vanderlei por ser o melhor cunhado que alguém
pode ter! Agradeço ao meu irmão Edilberto, pela amizade e pelo amor compartilhado
enquanto esteve conosco, a dor de perdê-lo nunca poderá ser simbolizada, nunca será
superada, saudades sempre...
Aos primos Fabrício e Melissa, pelo carinho e amizade. Ao tio João, sindicalista
dos movimentos grevistas dos anos 80, pelas conversas sobre o movimento, questão
muito pertinente a esta tese e que pretendo desenvolver num próximo trabalho, e à tia
Ana que junto com ele me apoiaram em momentos difíceis da vida. À tia Tininha e ao
tio Carlos por serem uma inspiração aos estudos.
Não poderia deixar de agradecer também à Marlene Camargo, secretária do
Programa de Psicologia Social da PUCSP, por sua dedicação em me ajudar a organizar
o lado burocrático na academia e pela amizade.
Finalmente agradeço ao CNPq pelo financiamento de minha pesquisa.
Resumo

DIAS, Brendali. O discurso do analista pode implicar alguma forma de resistência


ao discurso capitalista? Sobre a dimensão política da psicanálise freudo-lacaniana.
2016. Tese de Doutorado – Programa de Psicologia Social. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

O objetivo deste trabalho foi pensar a dimensão política da psicanálise freudo-lacaniana,


verificando a possibilidade de que o discurso do analista implicar alguma forma de
resistência ao discurso capitalista. A pesquisa se deu a partir de um estudo da teoria
freudo-lacaniana. Freud, em “O mal-estar na cultura”, afirmou que o laço social era a
principal fonte de sofrimento dos homens e que o conflito no laço era impossível de ser
eliminado. Concordando com Freud, Lacan escreve o seminário XVII, “O avesso da
psicanálise”, formalizando 4 discursos como formas de laço social, a saber: discurso do
mestre, discurso da histérica, discurso do analista e discurso universitário, como
dispositivos que apresentam os modos de gozo do sujeito no laço, sempre
acompanhados de um impossível de não poderem se realizar plenamente e de uma
impotência de relação com a verdade proposta pelos discursos. Posteriormente Lacan
(1972, inédito) profere +1 discurso, o discurso capitalista, proposto como aquele que
rompe com os laços sociais e coloca o sujeito em um curto-circuito de gozo pelo
consumo de objetos. Lacan utilizou ainda a teoria da economia política de Marx para
refletir sobre o capitalismo na sociedade contemporânea. Para defender que o discurso
do analista possa implicar alguma forma de resistência ao discurso capitalista,
apontamos o discurso da histérica, que ao questionar o sistema por meio de seu sintoma,
e ao encontrar um analista que lhe responda do lugar de objeto a, é possível promover
uma margem de liberdade em relação à sua alienação estrutural, o que tem sua
dimensão política no consultório, dado que o sujeito da psicanálise é político. Para
pensar tal possibilidade fora do consultório, apontamos a teoria da lógica coletiva
indicada por Lacan em seu texto sobre o tempo lógico, como possibilidade de promover
uma margem de liberdade para o sujeito no laço social, portanto um contraponto em
relação à busca de eliminação dos conflitos da sociedade buscada pelo discurso
capitalista. Após este trabalho, nossa questão persiste, porém reformulada: o discurso do
analista poderia possibilitaria uma lógica coletiva que implicasse alguma forma de
resistência ao discurso capitalista?
Palavras chaves: Psicanálise, discurso do analista, discurso capitalista, sintoma,
resistência e lógica coletiva.
Abstract

DIAS, Brendali. The discourse of the analyst imply some form of resistance to the
discourse of the capitalist? About the political dimension of the freud-lacanian
psychoanalysis. 2016. Doctoral Thesis – Social Psychology Program. Pontifical
Catholic University of São Paulo, São Paulo, 2016.

The objective of this project was to think the political dimension of the freud-lacanian
psychoanalysis, checking the possibility of the discourse of the analyst implying some
form ofresistance to the discourse of the capitalist. The research was done through a
study of the Freud-lacanian theory. Freud, in “Civilization and its Discontents”, claimed
that the social bond was the main source of men’s suffering and that the conflict in the
bond was impossible to be eliminated. In agreement with Freud, Lacan writes the XVII
Seminar, “The other side of psychoanalysis”, formalizing 4 discourses as forms of
social bond, namely: discourse of the master, discourse of the hysteric, discourse of the
analyst and discourse of the university, as devices which present the forms of the
subject’s enjoyment on the bond, always followed by an impossible of not being able to
be completely fulfilled and of an impotence of relationship with the truth proposed by
the discourses. Posteriorly, Lacan (1972, unpublished) delivers +1 discourse, discourse
of the capitalist, proposed as the one which breaks the social bonds and puts the subject
in a short circuit of enjoyment for the consumption of objects. Lacan used yet Marx
political economy theory to think the capitalism in the contemporary society. To defend
that the discourse of the analyst may imply some form of resistance to the discourse of
the capitalist, we indicated the discourse of the hysteric, that by questioning the system
through its symptom, and by meeting an analyst who replies from the place of object a,
it is possible to promote a margin of freedom in relation to its structural alienation,
which has its political dimension in the clinic, given that the subject of psychoanalysis
is political. To think such possibility out of the clinic, we indicated the collective logic
theory suggested by Lacan in his text about the logical time, as a possibility to promote
a margin of freedom for the subject in the social bond, therefore a counterpoint in
relation to the elimination of conflicts in the society pursued by the discourse of the
capitalist. Our issue keeps changed: would the discourse of the analyst make a collective
logic possible, which would imply some form of resistance to the discourse of the
capitalist?
Key words: Psychoanalysis, discourse of the analyst, discourse of the capitalist,
symptom, resistance and collective logic.
Résumé

DIAS, Brendali. Le discours de l'analyste peut-il impliquer une certaine forme de


résistance au discours capitaliste? Sur la dimension politique de la psychanalyse
freudo-lacanienne. Thèse de doctorat. Programme de psychologie sociale. Université
Catholique Pontificale de São Paulo, São Paulo, 2016.
Ce travail a pour objectif de penser la dimension politique de la psychanalyse freudo-
lacanienne, vérifiant la possibilité que le discours de l'analyste implique une certaine
forme de résistance au discours capitaliste. La recherche a été réalisée à partir d'une
étude de la théorie freudo-lacanienne. Freud dans « la malaise dans la culture » affirme
que le lien social est la principale source de souffrance des hommes et que le conflit
généré par ce lien est impossible à éliminer. En accord avec Freud, Lacan a écrit au
séminaire XVII, « l'envers de la psychanalyse », formalisant 4 discours comme forme
de liens sociaux, à savoir : le discours du maître, le discours de l'hystérie, le discours de
l'analyste et le discours universitaire; dispositifs qui présentent un mode de jouissance
du sujet dans son lien, toujours accompagné d'une impossibilité à pouvoir se réaliser et
d´une incapacité de relation envers la vérité proposée par le discours. Postérieurement,
Lacan (1972 inédit) a formalisé un discours supplémentaire, le discours capitaliste,
proposé comme rompant avec les liens sociaux et plaçant le sujet en court-circuit de
jouissance de consommation des objets. Lacan a utilisé également la théorie de
l'économie politique de Marx pour réfléchir sur le capitalisme dans la société
contemporaine. Pour défendre que le discours de l'analyste puisse impliquer une forme
de résistance au discours capitaliste. En pointant le discours de l'hystérie, qui en
questionnant le système au moyen de son symptome et en rencontrant un analyste qui
lui réponde sur la place de l'objet a, il est possible de promouvoir une marge de liberté
en relation avec son aliénation structurelle, ceci ayant sa dimension politique au cabinet
de consultation. Pointons la théorie de la logique collective indiquée par Lacan dans son
texte sur le temps logique, comme possibilité de promouvoir une marge de liberté pour
le sujet envers son lien social, donc un contrepoint de la relation de recherche
d'élimination des conflits de société recherchée par le discours capitaliste. Cependant le
question subsiste d'une autre manière : serait-ce la forme du discours de l'analyste
permet une logique collective d'impliquer une certaine forme de résistance au discours
capitaliste dans le lien social ?

Mots-clés : Psychanalyse, discours de l'analyste, discours capitaliste, symptome,


résistance et logique collective.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................... 11
1- O NASCIMENTO DA PSICANÁLISE E CONCEITOS CENTRAIS PARA
DISCUTIR SUA DIMENSÃO POLÍTICA......................................................... 26
1.1 O nascimento da Psicanálise e o sintoma........................................... 26
1.2 O gozo e o desejo do analista............................................................... 32
1.3 A ética da Psicanálise e o objeto a...................................................... 39
1.4 O tempo do sujeito do inconsciente e o ato psicanalítico.................. 43

2- TEORIA DOS DISCURSOS DE LACAN...................................................... 51


2.1 Introdução à formalização dos 4 discursos........................................ 54
2.1.1 A Impossibilidade, impotência e potência dos discursos...... 56
2.2 Discurso do mestre............................................................................... 62
2.3 O discurso da histérica....................................................................... 67
2.4 O discurso do analista.......................................................................... 76
2.4.1 A subversão do sujeito............................................................ 80
2.5 O discurso universitário...................................................................... 84
2.6 O discurso capitalista (?)..................................................................... 92
2.6.1 Efeitos do discurso capitalista................................................ 98

3- O DISCURSO DO ANALISTA IMPLICA ALGUMA FORMA DE


RESISTÊNCIA AO DISCURSO CAPITALISTA?........................................... 107
3.1 A dimensão política da psicanálise no laço social..............................107
3.2 A teoria da identificação com Freud e a Lógica coletiva de Lacan. 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 126

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 130
11

INTRODUÇÃO

Na dissertação de mestrado defendida em 2010, apresentamos uma crítica ao


funcionamento do sujeito no capitalismo na sociedade contemporânea assinalando como
a manutenção do capitalismo tem se legitimado a partir da promessa de uma falsa
completude e, concomitantemente, por sustentar um discurso em que o sujeito é tratado
como objeto e levado a acreditar que é impossível escapar de tal lógica.
A análise desenvolvida na dissertação foi embasada na teoria psicanalítica
freudo-lacaniana articulada ao materialismo histórico-dialético, sobretudo, à leitura que
vem sendo desenvolvida por Slavoj Žižek. Esse autor mostrou-se muito profícuo por
possibilitar a problematização da estrutura e dos efeitos do capitalismo na sociedade
contemporânea e por questionar sobre as razões pelas quais o sujeito se posiciona de
maneira tão complacente diante dessa lógica.
No referido trabalho nossa preocupação foi pensar o sujeito inserido no
capitalismo, discutindo como essa lógica tem se apresentado como instrumento de
manutenção da sociedade de consumo e que sua finalidade é fazer o sujeito pensar que
alguma forma de felicidade ou completude é possível ao sujeito através do consumo de
mercadorias.
Com Žižek (2005) apontamos que essa busca do sujeito pela completude se
repete nos movimentos multiculturalistas e podem conter pelo menos dois problemas:
primeiro que, ao aderirem aos movimentos multiculturalistas, os sujeitos se adaptam à
sociedade capitalista concebendo algum tipo de consumo próprio associado à logica do
capital; segundo, que esses movimentos fazem seus adeptos pensarem que estão
exercendo sua cidadania, quando de fato as pequenas lutas só fazem seus militantes
fecharem os olhos para uma dimensão mais profunda do problema.
No mesmo texto o autor aborda problemas inclusive nas formas de crítica ao
elitismo multicultural, por elas correrem o risco de abonar o populismo neoconservador
através de suas noções de comunidade e cidadania como forma de resistência ao
capitalismo, sem perceber que estão sendo cooptados por ele. Nas palavras de Žižek
(2005):

O que esses defensores de esquerda do populismo não percebem é que o


populismo de hoje, longe de representar uma ameaça ao capitalismo global,
continua sendo seu produto inerente. (...) O problema é que essa própria
forma de espaço político está cada vez mais ameaçada pela investida da
globalização. (p. 38)
12

Žižek (2005) explica que a ameaça ao espaço político está no fato de que o
processo global admite a politização das lutas particulares porque elas mantêm intacto o
processo capitalista. Segundo ele, os militantes de determinadas lutas particulares têm a
sensação de estarem obtendo a mudança requerida, sem perceber que estão admitindo,
no interior de sua luta, as regras do capitalismo, pois as pequenas concessões admitidas
aos requerentes e tidas por eles como legítimas, são na verdade uma armadilha que cria
uma falsa aparência de resistência. Além disso, o autor afirma que o problema não está
somente no fato de que essas soluções são falsas, mas também no fato de que não
existem soluções verdadeiras. Ele aponta que o importante é que a estrutura do sujeito o
permite questionar a política em vigência (capitalismo hoje) e buscar transformação
social, mas que ao resistir é preciso contar, em contrapartida, com a também resistência
do capitalismo contra uma transformação social fora das coordenadas por ele exigidas.
Ele nos alerta para o fato de que as lutas multiculturais se adéquam às regras do
capitalismo e não o contrário. Nas palavras de Žižek (2005), “a politização da série de
lutas particulares, que deixa intacto o processo global do capital, é insuficiente” (p.39).
Aliás, o fato de tais lutas particulares não afetarem o processo global do capitalismo
levam Žižek (2005) a levantar uma questão: “como reinventar o espaço político nas
atuais condições de globalização?” (p. 39).
Žižek aponta para os perigos da ambiguidade da linguagem e seu poder de
convencer quando não nos pomos a pensar, pois se pensarmos é possível obter através
do discurso capitalista dois pesos e duas medidas, já que, por um lado, ele promete
completude no consumo e, por outro e ao mesmo tempo, convoca o sujeito a encarar o
consumo como um objetivo de vida, apontando a completude no próximo consumo, e
no próximo e no próximo... ou seja, consumismo infindável sem completude, promessa
que não se cumpre, e o que não se cumpre fica escondido atrás da promessa, não
aparece.
Ele aponta que é preciso estar disposto a correr riscos, já que as mudanças
verdadeiras geralmente são dolorosas, acreditando que mesmo que não haja soluções
verdadeiras possa haver mudanças verdadeiras. Ou seja, o desejo singular de cada
sujeito não permite que haja uma sociedade harmônica, mas isso não impede de buscar
mudanças verdadeiras na sociedade para um mundo melhor, sabendo que “mundo
melhor” não significa “mundo perfeito”.
As particularidades da teoria psicanalítica discutidas no decorrer da dissertação
nos levaram a finalizá-la propondo a Psicanálise freudo-lacaniana como um importante
13

suporte para a crítica ao funcionamento do sujeito diante do capitalismo, ao estabelecer


um diálogo com as teorias da sociedade na busca de alternativas para os impasses do
sujeito contemporâneo.
Ao final deste trabalho começamos a pensar na teoria psicanalítica para além de
um suporte para a crítica do funcionamento do sujeito diante do discurso capitalista,
qual seja, a possibilidade de o discurso psicanalítico implicar alguma forma de
resistência ao discurso capitalista e concomitantemente às formatações da subjetividade
constituída no capitalismo.
O discurso capitalista apresenta as coisas de maneira a fazer crer que é
impossível dele escapar, mas a ambiguidade do seu discurso, já mencionada, nos faz
questionar: se há completude, por que o consumo é infindável? É dado que há
ambiguidade na linguagem, a própria teoria psicanalítica coloca a comunicação como
algo essencialmente falho. Mas o fato de o capitalismo, através da mídia, apresentar um
discurso que mostra somente o lado da moeda que interessa para sua sustentação,
escondendo o outro lado da mesma moeda, inibe o sujeito a construir críticas, portanto é
um discurso que segrega, ou melhor, é um discurso que de-segrega para concentrar1,
em função da tentativa de aniquilação das diferenças pela uniformização do sujeito,
conforme aponta Bousseyroux (2012):

o discurso da universidade, na medida em que ele evolui cada vez mais para
um discurso de experts e de tecnocratas, seria, em sua finalidade, um discurso
fundamentalmente de-segregador – e, portanto, concentracionário. Para
compreender bem essa tese extremamente subversiva, é preciso ler o que
Lacan declara no prefácio, datado no Natal de 1969, que ele escreveu para o
livro de Anika Ri`et-Lemaire, jovem pesquisadora da Universidade de
Louvain, intitulado Jacques Lacan. Lá, lê-se, em nota, que “A recusa da
segregação está naturalmente no princípio do campo de concentração”
(p.192, grifos do autor).

Embora o autor se dirija ao discurso universitário para falar da concentração, o


mesmo serve para o discurso capitalista, já que o primeiro discurso culmina no segundo,
assunto que será aprofundado no capítulo dois deste trabalho. Tocamos agora na
questão apenas para dizer que a maneira como o discurso capitalista trata a ambiguidade
da linguagem, ao não admitir espaço para uma crítica do sujeito, promove tal

1
A partir de agora, toda vez que usarmos a palavra concentrar e seus derivados em negrito no nosso
texto, tratar-se-á da tentativa do discurso universitário e do discurso capitalista de aniquilar as diferenças
existentes entre os sujeitos, ou seja, da uniformização dos sujeitos e consequentemente da eliminação do
sintoma singular de cada um. Nas citações dos autores elas aparecerão sem negrito.
14

concentração por buscar a eliminação das diferenças. Aniquilar as diferenças é


interesse da classe dominante para que possam prevalecer.
Žižek (1996) chama essa forma de uso da linguagem de “‘legitimação
ideológica’ na medida em que deixa de mencionar os verdadeiros motivos da
intervenção, (interesses econômicos etc.)” (p.14, grifos do autor), ou seja, sustenta-se a
partir da ideologia2, e complementa:

O modo mais destacado dessa “mentira sob o disfarce da verdade”, nos dias
atuais, é o cinismo: com desconcertante franqueza, “admite-se tudo”, mas
esse pleno reconhecimento de nossos interesses não nos impede, de maneira
alguma, de prossegui-los; a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado
marxista do "eles não sabem, mas é o que estão fazendo”; agora, é “eles
sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo”(p.14, aspas
do autor).

Para o autor, o cinismo é a resposta da cultura dominante, pois reconhece a


mentira, mas leva em conta seu interesse particular por trás da universalidade
ideológica, o que nos leva a questionar por que tais mentiras sob o disfarce da verdade
não são questionadas pelo sujeito que não pertence à classe dominante.
A união entre o capitalismo, a tecnologia e a mídia pode nos fornecer alguma
explicação para essa pergunta. O modo de funcionamento do capitalismo aliado ao
desenvolvimento da tecnologia e da mídia – esta sendo uma empresa privada, portanto
com os mesmos objetivos lucrativos como qualquer outra empresa capitalista –, o

2
Não nos aprofundaremos no conceito de ideologia, mas dedicaremos essa nota de rodapé para situar o
leitor sobre algumas características importantes em relação a ela, sobre as quais este trabalho a entende.
Começaremos com a definição de Compte-Sponville (2003), segundo a qual “A palavra [ideologia], faz
décadas, é utilizada apenas em seu sentido marxista. A ideologia é um conjunto de ideias ou de
representações (...) que não se explicam por um processo de conhecimento – a ideologia não é uma
ciência – mas pelas condições históricas de sua produção numa sociedade dada, especialmente pelo jogo
conflitual dos interesses, das alianças e das relações de força. É como um pensamento social, que não
seria pensado por ninguém mas (...) dentro do qual todos pensariam. A ideologia é inconsciente: ela é o
lugar social e historicamente determinado, de toda consciência possível.” (p. 292). Althusser (1970/1996)
também aponta características bastante importantes da ideologia com as quais concordamos. Ele se vale
da concepção freudiana de sonho para propor, como afirma “que a ideologia não tem história, o que não
significa, decididamente, que nela não haja historia (...), mas que ela não tem uma história própria. (...) a
ideologia não tem historia pode e deve (...) ser diretamente relacionada com a proposição freudiana de
que o inconsciente é eterno, isto é, não tem história. Se eterno não significa transcendente a toda a história
(temporal), mas onipresente, trans-histórico, e portanto imutável em sua forma em toda a extensão da
história, adotarei a expressão de Freud palavra por palavra e escreverei: a ideologia é eterna, exatamente
como o inconsciente. E acrescento que julgo essa comparação teoricamente justificada pelo fato de que a
eternidade do inconsciente guarda alguma relação com a eternidade da ideologia em geral! É por isso que
creio ser lícito, ao menos por conjectura, propor uma teoria da ideologia em geral, no sentido como Freud
expos uma teoria do inconsciente em geral”. (ALTHUSSER, 1970/1996, p. 125). O que queremos
destacar com o autor é que a estrutura da ideologia tem uma estrutura trans-histórica, mas ela constrói sua
história de acordo com a relação de forças nela implícitas em uma época e/ou cultura, assim como a
estrutura do inconsciente do sujeito.
15

aquecem ainda mais ao propagar análises que protegem seu modo de funcionamento,
intensificando seu poder. Como aponta Ramos (2007):

A propaganda, a nosso ver, “implanta” no outro uma convicção de tal forma


sobre o saber de seu gozo que o leva à ação imediata e irrefletida, isto é, ao
consumo. Como laço social, a propaganda encontra sua eficiência como
fiadora do saber do gozo do outro: ela garante esse saber que aliena o outro
no fazer e que se repete no ato de consumo. Tudo o que é oferecido pela
propaganda aparece envolto pela aura do “é isto o que você sempre quis”.
Um produto novo exige, assim, um novo saber gozar, ficando aquele que
resiste ao consumo taxado com “você não sabe o que é bom”. (p.103)

Desta maneira, o sujeito é capturado pela propaganda e funciona de maneira


convicta na busca de se adaptar a uma maneira universal de gozar, encontrando sempre
uma falsa informação sobre a verdade de seu gozo no consumo, e consumindo de
maneira irrefletida, repetidamente, como uma maneira de “mostrar que sabe o que é
bom”, alimentando o capitalismo de maneira que o faz parecer inatingível. Eis uma das
razões pelas quais o sujeito não questiona as mentiras sob o disfarce da verdade
propagada pelo discurso capitalista. A busca de gozo propagada inibe o sujeito na
construção de críticas.
Este fenômeno (o não questionamento por parte do sujeito) nos leva a pensar na
crítica da economia política de Marx. Marx (1867/2010), no livro O Capital, faz sua
crítica da economia política desvendando o funcionamento do capitalismo a partir dos
conceitos de mais-valia3, alienação4 e fetiche da mercadoria5, conceitos centrais para
construir tal crítica.

3
Mais-valia é o conceito marxista que denuncia o excedente que o empresário, detentor dos meios de
produção, recebe a mais em relação ao valor do custo da mercadoria, tendo em vista que este excedente se
dá a partir da exploração de trabalho não pago ao trabalhador, o que torna a mais-valia o coração do
capitalismo.
4
Alienação: Segundo Marx (1844/2009), para a livre circulação das mercadorias torna-se necessária uma
alienação do sujeito frente a elas. Para ele, a alienação se mostra na divisão do trabalho capitalista e é
caracterizada pela especialização e fragmentação do trabalho promovido pelos meios de produção detidos
pelos empresários, ou seja, os trabalhadores passam a realizar o trabalho em troca de sua subsistência, por
isso o trabalho é alienado. Como efeito, os trabalhadores que antes trabalhavam para si, passam a
trabalhar para as empresas pelo fato de não conseguir concorrer com os preços das mercadorias oferecidas
pela produção das empresas. A consequência desta concorrência desleal é a ruína dos pequenos artesãos e
comerciantes, o que origina a força de trabalho disponível de que o capitalismo necessita, pois eles se
submetem às condições de trabalho exploratórias para garantir seu sustento. Com isso, cria-se o círculo
vicioso que aliena o sujeito ao sistema capitalista.
5
O conceito de fetiche da mercadoria é cunhado por Marx (1867/2010) como algo que a mercadoria
esconde por traz de sua forma. Na relação de troca das mercadorias, as pessoas não se atentam a como
elas foram feitas ou como chegaram até ali, ou seja, ao assumir uma relação entre coisas, seu valor de uso
não é misterioso. O mistério da mercadoria está no fato de ela encobrir as características do trabalho
humano e principalmente a criatividade humana que é eliminada no trabalho repetitivo imposto pelos
16

Ao desvelar a mais-valia como extorsão da força de trabalho como o coração do


capitalismo por culminar no acumulo de capital, objetivo central dessa forma de
economia, Marx (1867/2010) mostra que no capitalismo o trabalhador estará sempre a
mercê dos donos dos meios de produção.
Podemos considerar que o desvelamento da mais-valia, realizado por Marx
(1867/2010), não só faz uma crítica, mas também uma denúncia do sistema capitalista,
denúncia que diz respeito ao fato de que, com a extorsão da mais-valia, não é possível
que haja chances iguais para todos, mostrando que este é um sistema que vive da
desigualdade social, verdadeiros abismos de desigualdades para falar com mais
exatidão. Sendo assim, não existem chances para todos como prega o capitalismo. Ao
desvendar a mais-valia, Marx quer desalienar o sujeito da ideologia capitalista.
Marx (1867/2010) construiu sua crítica da economia política do capitalismo em
sua época, mas o que acontece hoje é, digamos, uma evolução daquilo que Marx
desenvolveu em sua teoria.
Podemos dizer que o capitalismo de produção da época de Marx marchou
desenfreadamente, nos últimos 40 ou 50 anos, para o capitalismo de consumo6 como
vemos hoje. E como aponta Fingerman (2005), “Marx provavelmente não mediu até
que ponto a dominação do homem pelo homem se produziria – de forma tal que se trata
hoje, da dominação do homem por si mesmo – nem que o proletário seria também um
sujeito do capitalismo, agente de sua própria dominação, pela sua participação como
agente no discurso que o aliena”. (pp.81-82).
A crítica de Marx – como vemos na atualidade – não foi suficiente para
desalienar o sujeito do capitalismo. O que vemos desde Marx é que, ao contrário, cada
vez mais o sujeito se aliena, ou seja, cada vez mais o sujeito se esquece de que o
trabalho que produz objetos é fruto das relações humanas, encarando-o, em sua grande
maioria, como meio de subsistência, o que leva à acumulação da mais-valia, sem
oponentes, pelos empresários.

meios de produção, assim o fetiche da mercadoria encobre o fato de que a mercadoria é fruto das relações
humanas.
6
É importante marcar que o capitalismo de consumo é algo que se sobrepõe ao capitalismo de produção,
mas obviamente não o elimina. A força de trabalho vendida como mercadoria e a extração da mais-valia
continuam mantendo o capitalismo. Porém, a partir principalmente da década de 70, com o avanço da
tecnologia, a fabricação das mercadorias supera muito a quantidade de consumidores. Isso faz com que o
capitalismo aglutine mais um aspecto ao seu funcionamento: é preciso vender a mercadoria fabricada em
excesso. Assim a ação da mídia, incorporada ao capitalismo, além de não eliminar a extração da mais-
valia extraída do trabalho proletário, promovem o consumo acelerado, aglutinando mais um aspecto que
dá ao capitalismo um progresso que parece ilimitado. Daí dizer que o capitalismo de consumo é uma
evolução do capitalismo de produção.
17

O sujeito, além de não se opor, se entrega a essa forma de sociedade na busca de


gozo. Desta maneira o capitalismo de produção evolui para o capitalismo de consumo e,
como aponta Pavon-Cuellar (2010), o consumo:

Deverá ser insatisfatório para manter aceso o desejo que não só assegura o
consumo, mas também o trabalho e a produção. Quem continuaria
produzindo e consumindo uma vez que estivesse satisfeito com seu
consumo? É a insatisfação permanente dos consumidores que faz com que
sejam tão bons consumidores e tão bons trabalhadores e produtores. (p. 59)

E nada melhor que a propaganda através da mídia – ao apresentar uma maneira


universal de fazer o sujeito gozar, sustentando a tríade trabalho, produção, insatisfação,
vitais para existência do capitalismo de consumo – para manter o capitalismo galopante.
Nota-se que a mídia é um fator poderoso que sustenta tal sistema, pois esconde o
outro lado da moeda, fazendo com que o capitalismo tenha aparência de indestrutível.
Isso nos faz refletir sobre a importância de que o sujeito se coloque a pensar sobre este
outro lado da moeda não revelado pelo discurso capitalista.
Um fator importante que nos leva a pensar as formas de resistência ao
capitalismo se dá pelo fato de que, apesar de ele parecer indestrutível e dele o
funcionamento do sujeito parecer inescapável, Safatle (2008) nos diz que “Lacan
sempre insistiu que a lei do supereu era uma ‘lei insensata’ que funciona como um
significante desprovido de significado. Tal caráter insensato indica, entre outras coisas,
que o supereu não tem nenhum conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar ou
qual é o objeto adequado ao gozo” (p. 131, grifos do autor). Não haver objeto adequado
ao gozo é uma das razões que permitem resistência ao capitalismo.
Desta forma, as ofertas das mercadorias não passam de estratégias de
manutenção do capitalismo, pois o sujeito jamais alcança seu objeto de completude
prometido, dado que tal objeto não existe. O discurso capitalista, ao esconder o outro
lado da moeda, facilita o assujeitamento do sujeito ao sistema que o aliena ainda mais,
pois ao buscar a completude prometida ele trabalha para o sistema.
Assim como Marx denuncia a mais-valia como extorsão de força de trabalho não
paga ao trabalhador, a psicanálise denuncia o mais-de-gozar7 como impossibilidade de
completude, o que obviamente inclui a impossibilidade por meio do consumo em
função da falta inerente ao ser falante. Esta falta já foi apontada por Freud (1930/1974)
ao dizer do mal-estar na cultura, nas palavras do autor:

7
Há uma homologia entre mais-valia e mais-de-gozar que será tratada no capítulo 2 deste trabalho.
18

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo,


condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o
sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que
pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e
impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens.
O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do
que qualquer outro. (FREUD, 1930/1974, p.95).

Se, como indica Freud, o sofrimento que provém de nossos relacionamentos com
outros homens é o mais penoso – os mesmos sofrimentos que apontam o mal-estar na
cultura como estrutural –, não seria através do consumo que o mal-estar desapareceria.
Isso não funciona porque o mal estar está nos laços sociais e embora o discurso
capitalista busque desfazer os laços, isso não é possível. Posteriormente Lacan (1960-
61/1992) além de concordar com Freud, postula que esse mal-estar é estrutural em
função da entrada do sujeito na linguagem.
O capitalismo, ao buscar deslegitimar a inerência estrutural do mal-estar na
cultura, prometendo um gozo imposto de forma universal pelo consumo, ele na verdade
provoca mais mal-estar, pois a aceleração do consumo faz com que o sujeito, ao tentar
seguir a cartilha do capitalismo para evitar o mal-estar, confronte-se com a falta do
objeto complementar a cada tentativa de sutura. E isso se dá mais vezes do que ocorreria
sem essa aceleração promovida pelo capitalismo de consumo, ou seja, junto com a
aceleração do consumo há a aceleração do gozo e consequentemente do mal-estar.
Mesmo assim o sujeito continua sua busca de completude no consumo. A cada
promessa uma tentativa, a cada tentativa o mal-estar se presentifica, o que faz com que
o capitalismo prospere em todos os segmentos possíveis. Dias (2006b) nos lembra que:

No texto ‘Televisão’ de 1974, Lacan situou o discurso capitalista como o


agente do mal-estar na modernidade. Como laço social dominante, esse
discurso que pressupõe a hegemonia do capital sobre todas as outras formas
simbólicas e sócio-culturais, invadiu tudo, configurando uma nova sociedade
(p. 10).

Bem, se o discurso capitalista invadiu tudo, certamente não invadiu o


inconsciente, já que o sintoma8 e as outras formações inconscientes estão presentes onde
haja seres falantes, mostrando que o sujeito não é objeto e que seu desejo não pode ser
suturado por esses objetos, mesmo que ele se esforce para isso, pois o sintoma aparece à
sua revelia, revelando a impossibilidade de eliminar o mal-estar na cultura e também o

8
O conceito de sintoma do ponto de vista da psicanálise será tratado no capítulo 1 deste trabalho.
19

discurso do analista como efeito sintomático dessa invasão. Segundo Lacan (1968-
69/2008):

Não haveria discurso analítico nem revelação da função do objeto a, se o


próprio analista não fosse o efeito, ou, eu diria mais, o sintoma que resulta de
uma certa incidência na história, que implica a transformação da relação do
saber, como determinante para a posição do sujeito, com o fundo enigmático
do gozo. (p. 45).

Nessa citação, Lacan coloca o analista como efeito sintomático da transformação


da relação do saber com o gozo na história do capitalismo. Em decorrência do fato de
que o saber do escravo passa para o mestre, a relação do saber com o gozo muda no
decorrer da história a partir do capitalismo. Antes do capitalismo, o escravo tinha o
saber-fazer; mas com a entrada do capitalismo na história, o empresário, ao deter os
meios de produção, se apropria não só da mais-valia, mas também do saber-fazer.
Assim, o saber-fazer que era característica do escravo (hoje o trabalhador), passa a ser
característica do mestre (hoje o empresário), pelo fato de ele deter os meios de
produção.
Este pagamento, por ser parcial, gera trabalho que se transforma em mais-valia.
A falha no saber do sistema capitalista está no fato de o sistema não querer saber que a
parte que não é paga ao trabalhador transforma a relação do sujeito com o gozo, que
gera nele o sintoma.
É o que Lacan (1969/70-1992) demonstra na passagem do discurso do mestre
para o discurso universitário9. Por isso Lacan diz que foi Marx quem inventou o
sintoma. Embora o sintoma à maneira da psicanálise só tenha sido conceituado por
Lacan, é o próprio Lacan que remete a invenção do sintoma à Marx, no entanto é uma
invenção que não significa nascimento, pois o sintoma é estrutural e trans-histórico,
portanto, desde sempre, desde que há seres falantes.
Segundo Lacan (1966c/1998), o sintoma é “o retorno da verdade como tal na
falha de um saber”(p.234). No capitalismo essa falha no saber que culmina no sintoma é
resultado da força de trabalho despendida e não paga ao trabalhador (mais-valia), que
tem como consequência a forma como o sistema de produção torna desnecessária a
criatividade do homem trazendo-lhe prejuízos psíquicos, tanto por serem donos dos
meios de produção como por oferecerem trabalhos repetitivos.

9
O discurso universitário será trabalhado no capítulo 2.5 deste trabalho.
20

Deste modo, no capitalismo o saber do escravo passou para o mestre, e embora o


sintoma seja estrutural e trans-histórico, é no capitalismo que o psicanalista aparece
como efeito sintomático dessa transformação do lugar do saber, pois o psicanalista vem
reivindicar o lugar de saber do sujeito (trabalhador).
Isso para introduzir a reflexão de que foi no capitalismo que o inconsciente foi
descoberto à maneira da psicanálise e que toda a teoria que vem sendo construída desde
então – pelo menos do ponto de vista da psicanálise freudo-lacaniana a que nos temos
dedicado e que apresentamos aqui – poderia gerar uma descrença na psicanálise.
Afirmamos porém, que é esse mesmo fator que a torna uma possibilidade de resistência,
pois ela já nasce como um sintoma do capitalismo e se manifesta de dentro dele.
Pensar uma maneira de fazer resistência ao capitalismo se justifica desde Marx
por sua denúncia da mais-valia como coração do capitalismo, não só pela averiguação
do fato de que é um sistema que se sustenta, em sua essência, da desigualdade social,
mas também por ser um sistema que coisifica o homem e o aliena ao embotar sua
criatividade como ocorre nas linhas de produção e principalmente pela busca incessante
de desfazer os laços sociais.
Estas são circunstâncias impostas ao sujeito pelo sistema capitalista, sustentadas
pela classe dominante, que através da mídia consegue fazer com que o sujeito não
queira pensar no fato de que o capitalismo apresenta apenas uma face da moeda, e as
consequências nocivas deste embrolho para o sujeito são inumeráveis. Entendemos que
tais fatores representam uma necessidade de que haja resistência ao discurso capitalista,
isso com Marx.
Mas não é só isso, a política da psicanálise não é a política que tem como causa
acabar com a desigualdade social. Quinet (2009b) aponta que a política da psicanálise
tem afinidade com a política marxista, mas o objeto da causa é diferente, diz o autor:

A política da causa analítica é a da separação e não a da segregação. Esta é


uma modalidade de separação que parte de um todo, de um conjunto
totalizador que exclui, que segrega. A segregação é a ação pela qual se coloca
à parte, separa-se de um todo, de uma massa, de um grupo. (...) A política da
psicanálise não implica defender a causa do segregado. Trata-se antes da
política da separação, que é a da causa analítica. Enquanto ser segregado
parte do Outro, separar-se parte do sujeito, enquanto subvertido pelo objeto
de seu desejo” (pp.38-39).

Sendo a política da psicanálise uma política da separação, faz-se legítimo que a


dimensão de sua política implique resistência às políticas segregadoras do discurso do
21

mestre e da política concentradora do discurso capitalista – dado que ambas são


alienantes – para que o sujeito subverta sua posição alienada em nome do objeto a causa
de desejo.
Até esse momento do trabalho encontramos pelo menos duas indicações teóricas
que representam uma chance de que o discurso do analista possa implicar alguma
resistência ao discurso capitalista. A primeira é que não existe objeto adequado ao gozo
como quer fazer crer o capitalismo; a segunda é que a psicanálise é um sintoma que
nasce como resistência ao capitalismo, atrapalhando a bela ordem do discurso do mestre
(capitalista), que permite ao sujeito a separação Outro10.
Tal separação, teorizada pela psicanálise, nos dá uma pista de que é possível que
o sujeito possa buscar opções para os impasses da sociedade contemporânea, dado que
esta pode ser questionada por ele, mesmo que a completude não exista.
Assim, sem intenções messiânicas, recolocamos a questão: o discurso do
analista, considerado como uma dimensão política da psicanálise, implica alguma forma
de resistência ao discurso capitalista?
É possível desenvolver este trabalho a partir da teoria psicanalítica freudo-
lacaniana, porque Freud e Lacan, apesar de nunca terem se ocupado diretamente da
política, não puderam deixá-la de fora de seus trabalhos em função da necessidade que
sua prática clínica, principal interesse de ambos, lhes exigia. Ambos entenderam que,
apesar de o sujeito ter a possibilidade de separar-se, essa mesma separação implicava as
particularidades da cultura, dado que a separação não significa desalienação total da
cultura. Portanto, a dimensão política mostra-se presente na obra de ambos,
evidenciando que psicanálise e política não se opõem.
Textos de Freud como “Totem e Tabu” (1912-1913/2013), “Psicologia das
Massas e Análise do Eu” (1921/1976), “O futuro de uma ilusão” (1927/1974), “Mal
Estar na Civilização” (1930/96), “Moisés e o monoteísmo” (1939/1975), citando apenas
os mais célebres, apontam o desenvolvimento do sujeito em relação à sociedade,
mostrando a indissocialidade entre o sujeito e o social, aludindo à importância da
política na vida mental do sujeito.
Em Lacan, a palavra “política” aparece em toda sua obra como apontam
Checchia, Constancio e Parola (2011). Lacan, em sua teoria clínica, partindo dos
ensinamentos de Freud, cria novos conceitos para a direção do tratamento psicanalítico

10
O conceito de separação em psicanálise ser tratado no capitulo 2.2 deste trabalho.
22

em consultório, mas também escreve sobre as influências da sociedade no tratamento do


sujeito, destacando o fato de a neurose se manter nas relações sociais. Por isso a
importância de os psicanalistas entenderem a subjetividade de seu tempo para dirigir o
tratamento de seus pacientes em seus consultórios. Quanto a isso Lacan (1953/1998) já
nos alertou sobre a importância de o psicanalista alcançar a subjetividade de sua época
em seu fazer, diz ele:

Que antes renuncie a isso [ser psicanalista], portanto, quem não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia
fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o
compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça
bem a espiral a que o arrasta sua época na obra continua de Babel, e que
conheça sua função de interprete na discórdia das línguas. (p. 322, colchetes
nossos)

Nestas palavras Lacan (1953/1998) aponta para a importância do conhecimento


da subjetividade de seu tempo para o psicanalista ao tratar seus pacientes no consultório,
e não é só isso.
Além disso, regido pelo rigor do desejo e autenticidade da psicanálise, Lacan
(1967a/2003) aponta ainda para a importância da presença da psicanálise no mundo.
Para isso Lacan assinala que a noção de aplicação da psicanálise em intenção
(consultório) é tida por ele como guia para a aplicação da psicanálise em extensão,
respondendo pela ética do desejo, que é a ética da psicanálise como forma de
contraponto aos imperativos do discurso capitalista que levam à concentração dos
desejos e consequentemente da singularidade dos sujeitos.
É no sentido da importância da presença da psicanálise no mundo (psicanálise
em extensão) que Lacan propõe a formação da Escola de Psicanálise. A Escola leva
seriamente em conta o tripé – análise pessoal, supervisão e estudos com os pares –,
enunciado por Freud. Mas ao órgão da Escola de Psicanálise Lacan acrescenta o Cartel11
e o passe12 como órgãos de base da Escola, proposta enquanto psicanálise em extensão,
ou seja, uma dimensão política da psicanálise.

11
O cartel é um órgão de base da escola. Formado por 4 ou 5 participantes que se aproximam por querer
estudar um tema em comum, ele vai mais além de um grupo de estudos. Sua formação se dá pelo
encontro de 3 ou 4 pessoas que de comum acordo convidarão alguém para ocupar o lugar do +1
designado como mestre por eles. A tarefa do +1, no entanto, é a de não ocupar este lugar de mestre, ele
não vai decidir o que os colegas devem fazer, ele vai implicá-los a decidir.
12
O passe, também um órgão de base da Escola, é uma experiência que ocorre após certo tempo de
análise e que significa que o sujeito que por ela passa, atravessa sua fantasia, e ao conhecer o núcleo de
seu sintoma se dá por satisfeito com relação a ela, ou seja, ele percebe que não há mais o que ser dito ao
seu analista e que deste momento em diante poderá se virar sozinho com a falta decorrente de sua
23

Sabemos que a existência da Escola não garante que os analistas que a


frequentam estejam implicados com a psicanálise (em intensão ou extensão), mas os
órgãos propostos por Lacan para a associação da Escola a tornam um importante
recurso ao criar uma contingência para que o sujeito nela inserido possa se implicar com
sua política, tanto em intensão como em extensão, ao proporcionar um espaço de
formação. Sabemos que a formação do analista se dá no divã, mas como afirma Lacan
(1964/1998): “isso não exclui que a Escola garanta que um analista depende de sua
formação” (p. 218).
Temos claro ainda a importância de não tomarmos a Escola de Psicanálise como
combatente de uma falsa psicanálise de um ponto de vista ideológico. Sua função é
contribuir com a formação do analista abrindo um espaço que, ao oferecer formação,
propicie implicação que advenha a partir do desejo do próprio sujeito nela inserido, sem
tomá-la como um preceito viabilizador da solução de todos os problemas. Como nos
alerta Quinet (2009), “Há racismo do discurso como laço social na medida em que não é
aceita a diferença de gozos (...). Aceitar a diversidade do gozo, suas múltiplas
modalidades, é uma indicação ética que deve orientar nossa política. De outro modo
cairíamos no racismo dos discursos da dominação” (pp.48-49).
Não é ideia deste trabalho nos adentrarmos na questão da Escola, mas apontar
que no seu funcionamento há sucessos e fracassos e dizer que ela está inserida no
mundo como um órgão psicanalítico que tem uma dimensão política, sendo uma
contribuição para a psicanálise em extensão.
Lacan, com a criação da Escola de psicanálise, promove o laço entre os
analistas, um laço cheio de furos em função da alienação estrutural do sujeito à
linguagem. Segundo Gallano (2014b):

A alienação é estrutural, pois o sujeito nasce falado pelo Outro no banho


discursivo que o precede e o rodeia desde o berço. A subjetividade criadora
nasce da experiência do sujeito surgida do mal-entendido ao desprender-se do
Outro para se emergir em palavras que se dirigem a ele, isso requer, por sua
vez, o retorno de um ser reconhecido como falante. (pp. 15-16, tradução
nossa).

castração. O passe é consequência de uma série de atos analíticos que ocorrem durante os anos de
tratamento de um sujeito em análise. A função do passe é verificar se ali há um analista e segundo Bruno
(2011), o passe se dá quando “Em efeito, o gozo que imponho ao Outro não é um produto de meu
pensamento, por isso, o gozo que eu experimento não pode ser mais o que afeta meu corpo. Não posso
mais gozar o gozo do Outro” (p.84).
24

Sendo assim, na escola o sujeito também é alienado, dado que a alienação é


estrutural, mas a escola propõe a política da separação.
Ainda tratando da questão da política da psicanálise, Checchia (2012), quando
fala do ato psicanalítico13, aponta que:

(...) pode-se contestar que a experiência psicanalítica diz respeito somente ao


sujeito individual e que, por isso, é somente indiretamente política. Em
primeiro lugar, porque o sujeito ao qual se refere o ato psicanalítico não se
reduz a sua dimensão individual. O sujeito, tal como a psicanálise o revela,
está sempre em relação ao Outro e ao outro. O efeito do ato incide justamente
nessas relações, tendo também, portanto, algum efeito no âmbito da
coletividade ou da sociedade civil. (p. 261).

Se o efeito do ato analítico incide nas relações, há aí algo de político.


Reunimos até agora alguns aparatos para expor a indissocialidade entre
psicanálise e política, aparatos que apontam que a sociedade é atravessada pela cultura e
dela o sujeito extrai as influências para a construção de sua subjetividade, e a
psicanálise também podendo operar seus efeitos nela (subjetividade).
Desta feita, tendo o social como espaço político e o sujeito dele dependente,
pode ser possível que o discurso do analista, enquanto dimensão política da psicanálise,
implique alguma forma de resistência ao discurso capitalista?
Para desenvolver o tema, o abordaremos a partir da formalização teórica dos 4
discursos de Lacan, pelo fato de que os discursos são dispositivos que apresentam os
modos de gozo do sujeito, modos de gozo que estabelecem a maneira de o sujeito se
colocar no mundo.
Lacan (1969-70/1992) dedica um seminário inteiro para a formalização dos 4
discursos, e já no título, “O avesso da psicanálise”, ele propõe que este avesso é o
discurso do mestre. Segundo Lara Junior (2010), “Todos os discursos possuem e
colocam em jogo um gozo, pois em todos eles se espera o trabalho da verdade. Por isso
podemos supor a inclusão da psicanálise na política.” (p.127).
Mais adiante, após formalizar os 4 discursos, Lacan (1972, inédito), propõe +
um discurso, o discurso capitalista, este como uma variação do discurso do mestre, “um
discurso destinado ao furo”, diz o autor.
Assim, a partir dos discursos de Lacan propomos ampliar as reflexões existentes
sobre a dimensão política da psicanálise para além do setting analítico, qual seja, o
campo social, da seguinte maneira:

13
O ato psicanalítico será tratado no primeiro capítulo, adiante.
25

No capítulo 1 deste trabalho, apresentaremos nuances importantes sobre o


nascimento da psicanálise e de alguns conceitos centrais para tratar a dimensão política
da psicanálise, são eles: gozo, desejo do analista, a ética da psicanálise, o objeto a, o
tempo lógico e o ato analítico.
No segundo capítulo, discorreremos sobre a teoria dos discursos de Lacan
(discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do analista, discurso universitário),
apontando, em cada um deles, sua impossibilidade e impotência, suas características,
suas especificidades, sua política, seus modos de gozo e seus efeitos para o laço social.
Continuando, ainda nessa segunda parte, discorreremos sobre + um discurso, o discurso
apresentado por Lacan (1972, inédito) em uma conferência realizada em Milão: o
discurso capitalista, sobre o qual buscamos demonstrar se o discurso do analista implica
alguma forma de resistência a ele.
No capítulo 3, trataremos exclusivamente de apontar de que maneira o discurso
do analista pode implicar alguma forma de resistência ao discurso capitalista. Para
defender tal possibilidade apontamos o discurso da histérica como sintoma do sistema e
embora não faça revolução sozinho, ao contar com um analista que lhe responda do
lugar de objeto a, isso pode promover uma margem de liberdade em relação à sua
alienação estrutural no consultório. Para pensar tal possibilidade fora do consultório,
trabalhamos a teoria da lógica coletiva indicada por Lacan (1945/1998) em seu texto
sobre o tempo lógico, como possibilidade de promover uma margem de liberdade para o
sujeito no laço social, contando com a manutenção dos conflitos na sociedade, conflitos
que dizem da margem de liberdade do sujeito.
26

CAPÍTULO 1- O NASCIMENTO DA PSICANÁLISE E CONCEITOS


CENTRAIS PARA DISCUTIR SUA DIMENSÃO POLÍTICA

Essa parte do trabalho se dedica a desenvolver pontos importantes sobre o


nascimento da psicanálise e os conceitos que foram sendo criados para que a partir deles
se possa afirmar uma práxis que possibilite a política da separação em relação à
alienação estrutural do sujeito por sua entrada na linguagem. Tais conceitos, apesar de
terem sido construídos para direcionar o fazer do analista na clínica, tornam-se centrais
também para discutir a dimensão política da psicanálise. Vamos a isso.

1.1 O nascimento da Psicanálise e o sintoma

Em Ciência e Verdade, Lacan (1966a/1998) nos diz que Freud só pôde descobrir
o sujeito do inconsciente, o sujeito dividido, a partir do sujeito da ciência de Descartes,
do seu cogito, “penso, logo existo”. Descartes teve a dúvida como premissa para
apresentar a conclusão do cogito, e aponta-o como uma verdade indubitável, já que para
duvidar ele teria que estar pensando. Sendo assim, a garantia da existência do Eu seria o
pensamento.
René Descartes, autor do século XVII, a partir do cogito, apresenta uma relação
de totalidade entre o saber e a verdade, apontando que a verdade está toda no campo do
saber. Aponta ainda que o conhecimento verdadeiro pode ser alcançado através de uma
abordagem puramente intelectual a partir de técnicas que ele mesmo estabelece. O
desenvolvimento teórico de Descartes abre espaço para a instalação da modernidade e
tal verdade alicerçará muitos conhecimentos futuros.
Freud, assim como outros teóricos da modernidade, busca alicerçar uma verdade
científica no campo do saber psíquico que dê conta do sofrimento humano, mas
descobre que algo sempre escapa deste campo quando se trata do sujeito (conceito
cunhado por Lacan). É quando ele descobre o inconsciente e funda a Psicanálise, teoria
que, apesar de contestar esta verdade absoluta proposta pela ciência, não poderia vir à
luz sem ela, como aponta Lacan (1966a/1998):

(...) é impensável, por exemplo, que a psicanálise como prática, que o


inconsciente, o de Freud, como descoberta, houvesse tido lugar antes do
nascimento da ciência, no século que se chamou século do talento, o XVII
(...) ao contrário do que se inventa sobre um pretenso rompimento de Freud
27

com o cientificismo de sua época, foi este mesmo cientificismo que conduziu
Freud, como nos demonstram seus escritos, a abrir a via que para sempre
levará seu nome [a do inconsciente]. (p. 871, colchetes nossos).

Freud descobre o inconsciente e funda a psicanálise justamente a partir do


desenvolvimento da ciência que busca uma verdade absoluta para dar conta da falta do
sujeito. A teoria psicanalítica fundada por Freud adveio de seu trabalho como analista
de sujeitos. Ou seja, por um trabalho incansável de escuta ele descobre algo no sujeito
que não pode ser tamponado, deparando-se com uma falha no saber científico,
contrariando a afirmação de Descartes sobre a possibilidade de um conhecimento
verdadeiro estar todo no campo do saber. Daí a afirmação de que a psicanálise nasce
como um sintoma do saber cientifico, pois ela desmente a possibilidade de que a ciência
dê conta da falta inerente ao ser falante.
Apesar de ter feito sua descoberta a partir do trabalho clínico, Freud (1930/1974)
aponta o inconsciente como o que sustenta o mal-estar na cultura em função da
impossibilidade de o sujeito encontrar tal conhecimento verdadeiro.
A ciência do discurso universitário aponta o sujeito como capaz de dar conta de
si mesmo culminando num apaziguamento ou num destino adequado aos seus
sofrimentos, encontrando estabilidade emocional. Por sua vez, a ciência do
capitalismo14 faz com que o sujeito busque completude no consumo. E sendo assim,
ambos os discursos são impossíveis do ponto de vista da psicanálise. Lacan
(1966a/1998) concorda com Freud sobre tal impossibilidade de apaziguar os conflitos
do sujeito e assinala que o impossível marcado pela divisão do sujeito se dá em função
do desejo inconsciente.
Para investigar a questão do desejo inconsciente, Lacan (1966a/1998) abordou
não só a ciência, mas também a magia e a religião; e ao distingui-las umas das outras,
opôs a psicanálise às três, afirmando que elas não tratam da singularidade do sujeito.

14
Existe uma versão da ciência, surgida como ciência do discurso universitário, que foi se tornando uma
ciência capitalista, a qual chamaremos, neste trabalho, de ciência do capitalismo, pois ela está a serviço
do capitalismo como apoio ao consumo. Entendemos como ciência aquilo que permite dentro dela o giro
dos discursos. Por exemplo, a ciência alinhada ao discurso da histérica trabalha em busca da verdade
sempre substituível, ela trabalha em função do que escapa à verdade. A ciência do discurso universitário
busca uma verdade última, o que torna seu trabalho infinito pelo fato de ser impossível encontrar tal
verdade, embora ela creia que vá encontrá-lo. Assim, chamaremos de ciência aquela que busca uma
verdade última, apesar de impossível, e de ciência do capitalismo aquela que está a serviço dos interesses
da perpetuação do sistema capitalista sustentada pelo consumo. Lembrando que a psicanálise, por apontar
a impossibilidade do encontro com a verdade última, “faz sua exclusão interna ao objeto do campo da
ciência” (LACAN, 1966a/1998, p. 875). Portanto, opõe-se tanto à ciência estabelecida pelo discurso
universitário quanto à proposta de ciência do discurso capitalista, pois ambas respondem a uma política
da concentração, sendo que a política da psicanálise é a da separação.
28

Ele argumenta que a ciência busca a verdade como causa formal, como se
houvesse um ideal de comunicação. Na magia, a verdade como causa estaria recalcada,
dissimulada, velada, pois o que na magia importa é sua causa eficiente. Sobre a religião,
levando em conta o cristianismo católico, Lacan coloca que ela se caracteriza pela
instalação de uma verdade como causa final, ou seja, o céu depois da morte. Quando o
sujeito não dá conta de responder a essa demanda, a essa verdade divina, a consequência
é a instalação da culpa.
Ao opor a psicanálise às três (ciência, religião e magia), Lacan afirma que a
busca da verdade em psicanálise é interrogada como causa material, em função da
materialidade do significante, ou do desejo inconsciente se preferirmos. Segundo Dias
(2010):

Essa materialidade se explica por todas as mudanças causadas no sujeito em


relação à perda de sua natureza animal com sua entrada na linguagem. Como
o exemplo (...) a greve de fome, em que o sujeito abre mão de sua
necessidade de comer, mostra que a materialidade do significante está acima
de suas necessidades biológicas, é essa a materialidade do significante que
divide o sujeito. É por causa da materialidade do significante que o sujeito do
inconsciente da psicanálise está para além do sujeito ciência, da magia e da
religião e dos tratamentos terapêuticos, por manifestar-se dividido. (p. 39,
grifos do autor)

A materialidade do significante aparece na formalização dos 4 discursos de


Lacan (1969/70-1992), apontando e interrogando a verdade sempre como impotente
(questão que será aprofundada no segundo capítulo deste trabalho). É como indica
Pavon-Cuellar (2010), “o trabalho do inconsciente não somente cumpre com o trabalho
do sistema simbólico da cultura, como também implica uma renúncia ao gozo real da
vida: uma dolorosa renúncia na qual radica o mal-estar na cultura” (p. 48). Ou seja, a
linguagem no laço social tem a materialidade de fazer com que o sujeito trabalhe e
renuncie a grande parte de seu gozo, daí a razão do mal-estar.
Este mal-estar na cultura indica a impotência de qualquer verdade, já que o mal-
estar é incessante na cultura, mostrando que o inconsciente que divide o sujeito faz
resistência aos saberes da ciência, da magia e da religião, uma divisão que estabelece
uma inadequação a qualquer verdade totalizante, uma resistência do sujeito do
inconsciente ao saber absoluto. Lara Junior (2010) aponta que:

A psicanálise nesse ambiente possibilita outro olhar para outras


configurações discursivas que estão atreladas e constituídas a partir do
inconsciente do sujeito que o convoca constantemente a uma relação com o
29

Outro. Diante disso, esse sujeito responde se posicionando de diferentes


maneiras, girando, para Lacan, em torno de quatro discursos, que
possibilitam a esse sujeito constituir laço social. (p. 13).

Sendo assim, o autor mostra que o mesmo inconsciente que divide o sujeito e o
submete à castração, é o mesmo que vai abrir a via da separação, por instituir uma
margem de liberdade em relação à sua alienação estrutural e permitir que ele gire nos
discursos constituindo laço social. O sujeito, ao responder de diferentes maneiras,
transforma sua realidade no laço social, ou seja, essa resposta material dá ao sujeito a
possibilidade de que algo se transforme no laço.
Partindo do pensamento inconsciente, Freud desenvolve a teoria psicanalítica
criando a regra fundamental da psicanálise, a associação livre. Isso servirá para lidar
com a inerente presença do mal-estar do sujeito, ou seja, com aquilo que escapa ao
campo da ciência (e também da magia e da religião). Assim a associação livre se mostra
como materialidade, uma vez que o sintoma do sujeito, materializado na fala, se torna
resistência a um saber totalizante.
A teoria psicanalítica mostra que, para além da dificuldade de o sujeito escapar
do capitalismo (ou de qualquer outra forma de sociedade), há também o mal-estar
sintomático dele que impede uma sujeição total, mesmo que à sua revelia. Ou seja,
mesmo querendo adequar-se conscientemente, sua divisão inconsciente não permite.
É importante destacar que o conceito de sintoma em psicanálise é entendido de
forma diferente do da medicina. Como exemplo do tratamento do sintoma em medicina
no capitalismo, pensemos na indústria farmacêutica. Vemos com frequência a maneira
ecessiva com que a medicação é indicada para dar conta dos sintomas do sujeito, ou
seja, tratam o sintoma do sujeito como uma doença que deve ser eliminada a partir do
uso das drogas farmacêuticas. A esse respeito Pacheco Filho (2008) no diz que:

A importância dos conflitos existenciais do sujeito (...) e dos conflitos entre


sujeito e sociedade é substituído por uma profusão infindável de pseudo-
entidades mórbidas recém-criadas. São os TOCs, DOCs, oniomanias,
síndromes e transtornos dos mais variados tipos e graus de nocividade, que,
como ocorre com tudo que recebe uma nomeação, ‘criam’ a ‘realidade’ do
que recebeu seu batismo. (p. 33)

Vemos assim que a indústria farmacêutica, uma ciência capitalista, deste ponto
de vista, propõe o consumo de drogas como saída para todos os males na busca da
eliminação do sintoma do sujeito. O mais complicado nesta situação é que o sujeito, ao
30

fazer uso do medicamento, se desimplica de sua responsabilidade sobre seu sintoma e


consequentemente de seu desejo. Sobre isso Quinet (2006) lança a seguinte questão:

(...) até que ponto o desenvolvimento das neurociências e da


psicofarmacologia se presta ao discurso do capitalismo? O dinheiro investido
em pesquisas não poderia estar invertendo a ordem das coisas? (...) Temos
aqui duas hipóteses: A evolução da ciência psiquiátrica produz novos
remédios para novos males; ou ela produz novos males, para que sejam
tratados pelos medicamentos que ela fabrica? Neste caso vemos as
neurociências a serviço do capitalista, produzindo não só novas drogas
(novos gadgets), mas também (...) novas categorias diagnósticas para
justificar assim “medica-mente” a utilização dos psicofármacos. (p. 22)

Nesta fala Quinet aponta a indústria farmacêutica como uma ciência que
responde à a política do capitalismo. O DSM-V atual, corroborando com o capitalismo,
cria diagnósticos para todo tipo de mal-estar, ou melhor, transforma o mal-estar em
doença para criar-lhe um medicamento. Como exemplo, a criança “arteira” passa a ser
nomeada de criança portadora de síndrome de déficit de atenção; com isso, “o tapa na
bunda” foi é substituído por medicamentos prescritos pelos médicos, trocou-se uma
coisa ruim por outra pior, pois se antes a criança era repreendida fisicamente, hoje ela é
tratada como doente.
Outro exemplo é a tristeza de um sujeito pela morte de alguém que amava, após
quinze dias essa tristeza, segundo o DSM-V, torna-se depressão e é comum que o
sujeito seja medicado, com isso, a sociedade passa a não achar normal sofrer o luto pela
perda de alguém que ama, e por aí vai...
Para a psicanálise, o conceito de sintoma diz respeito a algo ineliminável no
sujeito, algo que ao receber uma escuta, pode dispensar o tratamento com medicamentos
por dar espaço para que o sujeito expresse seu desejo.
Bruno (2011), ao tratar “O sentido do sintoma”, com Freud (1916-17a/1976),
aponta que, através da rememoração um sujeito pode tratar um sintoma, mas que ele não
desaparece, que o sujeito pode separar-se do gozo do Outro mas não de seu desejo. E
estas considerações atendem também à questão da luta de classes, já que ela também
depende de uma economia de gozo, assim como acontece com o sujeito. O autor diz
ainda que a experiência descoberta por Freud no trabalho com seus pacientes,
possibilitou Lacan a apresentar uma teoria do sintoma e que tal teoria pode ajudar a
explorar o ponto cego da teoria de Marx, através da rememoração da história do
capitalismo, pois ao gozo do capitalismo a sociedade se entrega, mas não sem sintoma.
Nas palavras do autor:
31

Isso nos conduz a considerar que a resolução do sintoma não equivale a sua
desaparição pura e simplesmente, consiste em que o complemento do anseio
que foi o motivo do sintoma está daqui em diante autorizado e que este
complemento tenha lugar simultaneamente a uma separação do sujeito e do
Outro (BRUNO, 2011, p.325, tradução nossa).

O autor aponta ainda que “a única maneira de desmascarar o sintoma é que o


sujeito em análise possa assumi-lo como sua própria criação” (BRUNO, 2011, p.18,
tradução nossa). Tal afirmação não significa que a psicanálise busca substituir a
categoria médica, mas ela mostra que há algo no sintoma do sujeito, justamente por
tratar-se de conflitos psíquicos, que dizem respeito à sua singularidade e deve ser
tratado singularmente pela fala e não com medidas medicamentosas que busquem
eliminar o sintoma e padronizar o sujeito a uma forma universal de sociedade. Isso diz
respeito ao que já trabalhamos na introdução deste trabalho, com Bousseyroux (2012),
sobre o capitalismo ser um discurso de concentração, pois a ciência do capitalismo
busca a eliminação das diferenças entre os sujeitos, isto é, a eliminação do sintoma, pois
é o sintoma que apresenta a diferença entre eles.
A psicanálise, ao escutar o sintoma do sujeito através de sua fala em associação
livre, cria uma contingência para que seu desejo possa advir. Ao propor a política do
sintoma – cujo tratamento é pela escuta do sofrimento conflituoso do sujeito, e não pela
sua eliminação –, a psicanálise propõe o tratamento do sintoma que conduz o sujeito ao
encontro com seu desejo, o que vai na contramão da política universalizante, portanto
concentradora, do capitalismo que conduz o sujeito a submeter-se ao gozo do Outro.
No decorrer de sua obra, Lacan trata o sintoma em psicanálise de três maneiras:
primeiro diz do sintoma como metáfora, depois do sintoma como o que atrapalha a bela
ordem e em terceiro do sintoma como real. No presente trabalho iremos tratar o sintoma
pela via do que atrapalha a bela ordem as introduziremos o sintoma como o que vem do
real, pois o sintoma diz respeito ao modo de gozo do sujeito, algo necessário por fazer
parte de sua constituição de sujeito dividido decorrente de sua entrada na linguagem.
Esta entrada na linguagem funda o objeto a, que Lacan (1969-70/1992) trata na
formalização dos discursos como perda de gozo do sujeito. Por isso, o sintoma, trata-se
também daquilo que vem do real, o que será abordado no capítulo 3 desta tese quando
traremos a política do real para falar da implicação do discurso do analista como
resistência ao discurso capitalista.
32

Em Ciência e Verdade, buscando demarcar a descoberta de Freud, Lacan


(1966a/1998) assinala que – em função do sintoma como uma verdade inconsciente que
promove a veiculação do desejo do sujeito e por isso a impossibilidade de tamponar a
falta como quer a ciência – “a psicanálise faz sua exclusão interna ao objeto do campo
da ciência” (p.875), apontando o sintoma como algo para além do indivíduo da ciência e
que é localizado por um desejo inconsciente. É neste sentido que podemos falar em uma
política do sintoma não universalizante, que também vai na contramão da política
totalitária do capitalismo. A política da psicanálise prioriza a escuta ao sintoma de cada
sujeito na clínica – isso tem como consequência que ela acaba se opondo ao atual
discurso médico quando esse se coloca a serviço da ciência do capitalismo – colocando
em jogo princípios acima de um conjunto de regras e deveres expressado pelo discurso
capitalista.
Isso não quer dizer que a psicanálise joga fora o saber científico, mas aponta que
há um resto, algo fora do campo da ciência que é impossível de ser tamponado no
sujeito como ela promete. Esse resto é o ponto de partida para a análise, pois subverte a
conclusão cartesiana do “Eu penso, logo eu sou”, para “penso onde não sou”. Como
aponta Lara Junior (2010), “a psicanálise questiona a ciência quando essa se coloca
como verdade absoluta sobre a realidade” (p. 11), o que se dá em função da subversão
do cogito cartesiano. Desta maneira a psicanálise trabalha com aquilo que a ciência nada
quer saber.
A partir do inconsciente, a psicanálise coloca em cheque a lógica da alienação
total, instituindo uma margem de liberdade ao sujeito em relação a ela (alienação) no
que se referente às regras da sociedade, em função de sua falta inexorável. Lacan
(1969/70-1992), ao formalizar os 4 discursos, utiliza alguns conceitos psicanalíticos que
são centrais para discutir a dimensão política dos discursos e consequentemente a
dimensão política da psicanálise. Por isso trataremos agora de aspectos importantes
sobre tais conceitos. São eles: o gozo, o desejo do analista, a ética da psicanálise, o
objeto a, o tempo lógico do sujeito do inconsciente e o ato psicanalítico. Começaremos
pelo gozo e o desejo do analista. Vamos a isso.

1.2 O gozo e o desejo do analista

O conceito de desejo do analista aparece em vários momentos da obra de Lacan.


Sua proposta é de que o desejo do analista é o que estabelece a competência para a
33

função de analisar, função que abre espaço para que o gozo possa aparecer nas
repetições e que o analista, ao manejá-lo na transferência, possa tratá-lo e fazer com que
o desejo do analisante emerja. Vejamos como Lacan chega ao conceito de gozo com
Freud.
No começo de sua obra, Freud, engajado na ciência, busca um saber que dê
conta do sujeito, mas descobre o inconsciente e funda a psicanálise. Em sua trajetória,
Freud (1920/1976) desenvolve, entre outros, o conceito pulsão, apontando-o como a
compulsão do sujeito à repetição, aludindo que ela procedia de uma natureza instintiva e
que por isso dominava o princípio do prazer.
Além disso, Freud (1920/1976) pensava em várias formas de manifestação das
pulsões nas repetições e as separava entre pulsão de vida, que buscaria prazer, e pulsão
de morte, que acabaria em desprazer. Ele entendia que a pulsão de vida levaria à
homeostase e que a pulsão de morte, por trazer desprazer, representava prejuízos à
homeostase. Por isso Freud apostava que o melhor para o sujeito seria canalizá-lo para a
pulsão de vida, o que traria equilíbrio ao sujeito. Vejamos isso com Lacan (1964/1998):
“Em suas primeiras construções, suas primeiras redes de cruzamentos significantes que
as estabilizaram, Freud visa algo que, no sujeito, é destinado a manter ao máximo o que
chamei homeostase” (p.174).
Lacan reconhece a compulsão à repetição, mas em sua releitura de Freud sobre a
pulsão, retoma o conceito revisando a posição freudiana em pelo menos três aspectos
importantes. Um aspecto é seu afastamento da noção de pulsão pela natureza instintiva
como tomava Freud. Lacan passa a pensá-la como um discurso sem palavras, fora do
simbólico, fora da cadeia significante, como algo que desorganiza o sujeito, situando-a
como algo que funciona em função de uma hiância central relacionada ao inconsciente.
Em suas palavras:

Pude articular para vocês o inconsciente como se situando nas hiâncias que a
distribuição dos investimentos significantes instaura no sujeito, e que se
figuram no algoritmo em um losango [◊] que ponho no coração de qualquer
relação do inconsciente entre a realidade e o sujeito. Muito bem! É no que
algo do aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira, é em razão da
unidade topológica das hiâncias em jogo, que a pulsão tem seu papel no
funcionamento sujeito. (LACAN, 1964/1998, pp. 171-172).

Outro aspecto revisto por Lacan é sobre a parcialidade da satisfação da pulsão,


que exclui a possibilidade de haver pulsão de vida e de morte. Em função da
parcialidade da pulsão, ele aponta que não há uma pulsão de vida que possa satisfazer o
34

sujeito, como pretendia Freud, porque não há objeto que a satisfaça, pois o encontro
com tal satisfação está sempre para além, já que a pulsão apenas contorna o objeto sem
nunca atingi-lo. No seminário XI, Lacan (1964/1998) articula essa impossibilidade de
satisfação com o objeto a partir do próprio Freud, mas apontando-o como objeto a15.
Diz ele:

Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma
totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é
que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno
em circuito (...) este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de
um vazio ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja
instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo. O objeto a
minúsculo não é origem da pulsão oral. Ele não é introduzido a título de
alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum alimento satisfará
a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltoso. (LACAN,
1964/1998, p. 170).

Assim, Lacan coloca como caráter paradoxal da pulsão o fato de que o que causa
a compulsão à repetição é a própria satisfação buscada e não encontrada pelo sujeito no
gozo, pois a impossibilidade da satisfação, do encontro com o objeto, faz da pulsão a
repetição do mesmo. Assim sendo, toda pulsão busca repetição por não encontrar
satisfação. Daí conclui que toda pulsão é parcial, passando a pensá-la a partir da noção
de gozo.
O terceiro aspecto importante revisto por Lacan é uma consequência dos dois já
indicados. Se a questão para Freud era o que fazer com este resto que se repetia, tido por
ele como um obstáculo, Lacan (1964/1998), ao retomar a questão do ponto de vista de
sua parcialidade, interroga se a repetição de fato é um obstáculo à análise.
Ele observa que “A repetição demanda o novo. Ela se volta para o lúdico que faz
desse novo, sua dimensão” (LACAN, 1964/1998, p.62). Ao observar que a repetição
demanda o novo, o autor passa a pensar a pulsão como uma força de criação em função
da hiância relacionada ao inconsciente – a partir da noção de gozo, como já foi dito –,
mas não como algo que atrapalha a análise, como pensava Freud.
Ao trazer a noção de gozo, Lacan (1964/1998) amplia o conceito de pulsão
explicando-o através das funções de tiquê e autômaton, – emprestados de Aristóteles –
colocando que o autômaton é a insistência que comanda o sujeito em função do
princípio do prazer, busca de sentido; e a tiquê, como o encontro essencialmente faltoso,
encontro com o real a cada repetição, para além do autômaton. Nas palavras do autor,

15
O objeto a será tratado no próximo item desse trabalho.
35

“O encontro é sempre faltoso – é isto que constitui, do ponto de vista da tiquê, a vaidade
da repetição, sua ocultação constitutiva” (LACAN, 1964/1998, p.123).
Ele destaca que embora o autômaton seja essencial para a produção do encontro
com o real, a tiquê, esse encontro essencialmente faltoso, é o que faz a repetição
promover algo novo, essa ampliação do conceito. Esse encontro faltoso será manejado
pelo analista na transferência. Daí a importância da repetição como algo que leva o
sujeito ao encontro faltoso, essencial na análise, e não mais como um obstáculo a ela se
trabalhado no analisante a partir da transferência pelo analista em sua função, a partir do
desejo do analista. Conforme diz Lacan (1964/1998), “Este desenho que lhes dei hoje da
função da tiquê, vocês verão que ele nos será essencial para retificar o que é o dever do
analista na interpretação da transferência.” (p. 64).
Lacan (1964/1998) aponta que onde há transferência há Outro, mas este Outro,
na função do analista, não pode representar o saber absoluto, ao contrário, abster-se de
um saber sobre o analisante é a base sobre a qual se dá a formação do analista. Base esta
que – ao admitir que o analista interprete na transferência, porém fora do nível da
identificação e de sua intuição, pois a interpretação não está aberta a todos os sentidos –
permite ao analista interpretar quando o analisante tropeça no sem sentido de seu
sintoma, privilegiando a falta inerente ao analisante, a qual a repetição pela busca de
gozo só pode contornar o objeto, sem nunca encontrá-lo. É esse o trabalho que introduz
o processo da separação ao analisante, que poderá chegar no significante irredutível ao
qual ele está alienado a partir da repetição na transferência. Sobre a transferência e o
desejo do analista, Lacan (1964/1998) dirá:

Para lhes dar fórmulas-referência, direi - se a transferência é o que, da pulsão,


desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. E por
esta via ele isola o a, o põe à maior distância do I que ele, o analista, é
chamado pelo sujeito a encarnar. É dessa idealização que o analista tem que
tombar para ser o suporte do a separador, na medida em que seu desejo lhe
permite, numa hipótese às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado. (...) É na
medida em que o desejo do analista, que resta um x, tende para um sentido
exatamente contrário à identificação, que a travessia do plano da
identificação é possível, pelo intermédio da separação do sujeito na
experiência. A experiência do sujeito é assim reconduzida ao plano onde se
pode presentificar, da realidade do inconsciente, a pulsão. (pp. 258-259).

Essa retomada é importante para situar o desejo do analista, porque o analista,


enquanto semblante de Outro na transferência, permite ao analisante a repetição que se
manifesta na associação livre em análise. Porém em sua função, o analista sabe do
fracasso da busca do objeto que o satisfaria, por isso não o promete. Escutar a repetição
36

do sujeito em associação livre na transferência é o que traz de volta a demanda ao não


respondê-la, o que leva o sujeito a lidar com sua falta-a-ser, viabilizando a emersão do
desejo.
Embora essa busca do desejo seja sem garantias – pois o desejo não é
manipulável pelos imperativos requeridos pelo social e pelas ordens estabelecidas por
ele, nem pelo analista e nem por qualquer outro saber – é essa mesma falta de garantias
que pode garantir o lugar do desejo e propiciar que o sujeito crie algo novo a partir dele.
Quando o sujeito tenta obedecer às leis que lhe são apresentadas, seu
inconsciente se manifesta à sua revelia em doenças, revolta e todo tipo de mal-estar de
que somos vítimas e espectadores no laço social, mostrando a impossibilidade de
eliminar o sintoma e consequentemente seu desejo singular.
A partir dos ensinamentos de Freud sobre a histeria e sua interpretação dos
sonhos, Lacan (1958a/1998), em “A direção do tratamento e os princípios de seu
poder”, formula a política da psicanálise que é o exercício do analista em sua função.
Vejamos como essa formulação acontece.
Neste texto Lacan começa afirmando que a Psicanálise não é reeducação
emocional. Aponta que o psicanalista dirige o tratamento a partir da regra fundamental
da associação livre, mas não dirige o paciente no sentido da consciência. Diz que o
analista, ao economizar-se de preconceitos culturais e de conceitos que unificam o
sujeito no tratamento, o reduz à sua verdade, mesmo sendo ela parcial.
Neste caso, o analista, em uma imparcialidade em relação ao analisante, não
carregaria nenhum fardo por ele, mas faria com que o sujeito se responsabilizasse por
suas questões. Diz que o analista seria livre quanto ao momento, número e escolha das
intervenções desde que leve em conta que não é de ego autônomo ou de caminho da
felicidade que se trata uma análise, e que para isso é fundamental tratar a transferência
como uma forma particular de resistência ao tratamento.
Sobre a interpretação, diz Lacan (1958a/1998) que o analista não deve fazer dela
o ideal de sua ação e que o mais importante é perceber, na associação livre, o que se
repete no discurso do sujeito em diferentes situações, pois é aí que se situa o elemento
faltante do sujeito a ser interpretado. Importante apontar que a palavra “interpretação”,
quando ela se dá do lado do analista, deve ser pensada como intervenção. Se a
intervenção do analista é tida como interpretativa, que essa interpretação seja realizada
pelo analisante e que ele produza mais em sua fala na transferência a partir disso.
37

O analista, em sua função, atém-se às associações que o sujeito faz após uma
intervenção, inclusive sendo estas associações as interpretações mais significativas do
sujeito em análise, pois a ele cabe interpretar as palavras do analista. E a fala daquele
deve ser entendida pelo analista como uma interpretação da verdade do analisante, e
este interpreta com o saber que lhe é possível.
Assim, o analista, como aponta Checchia (2012), “é livre em suas táticas de
intervenção desde que estas não impliquem o aparecimento dos seus sentimentos na
condução do caso (...) e não firam o princípio fundamental, isto é, desde que não atuem
com seu ser.” (p. 165). O analista em sua função não atua com seu ser. Ele utiliza a
estratégia da transferência conduzindo-a de maneira que o analisante não se identifique
a ele (analista), pois, na experiência analítica, o sujeito extrai força do particular, e não
do analista.
O analista dirige a análise, manejando a transferência através do ato analítico,
mas o faz de maneira a não dirigir a vida do sujeito. Ou seja, existe um lugar que não
pode ser ocupado pelo que o analista entende como o melhor para o analisante, nem
pelo discurso da ciência ou qualquer outro discurso que se coloque no sentido de uma
verdade para ele. Em sua função, o analista se coloca como objeto a, permitindo que o
desejo do analisante possa emergir.
Cabe dizer ainda que o desejo do analista é, na direção do tratamento, o que vai
levar o analisante a contrapor-se ao gozo do Outro para ser causado por seu próprio
desejo. É nesse sentido que o desejo do analista trata do que escapa aos discursos
universalizantes.
Articulada ao funcionamento da sociedade contemporânea, já vimos como a
ideologia capitalista – aliada à ciência tecnológica, que cria novas mercadorias a todo
instante, e à mídia que propaga tais mercadorias, ligando o consumo à felicidade ou
aceitação, generalizadamente, generalizavelmente – apresenta uma espécie de manual
de comportamento de consumo a ser apreendido pela consciência, feito de acordo com
os interesses das alianças e as relações de força nele engendrados.
A Psicanálise, porém, não induz o analisante a reproduzir o status quo da cultura
emergente que leva à aniquilação de suas diferenças. O fazer psicanalítico oferece
espaço para uma margem de liberdade em que o sujeito possa se implicar-se com seu
lugar de ser desejante no laço social.
Diferente das ideologias concentradoras ou segregadoras, a teoria psicanalítica
propõe pensar a ideologia no sentido de manter dela uma distância razoável, que
38

permita a separação do sujeito de seu gozo – uma singularidade que o diferencia do todo
– e o leva a questionar sua posição no laço, proporcionando uma contingência para que
o sujeito se separe do Outro ideológico. Tratando da preservação das diferenças no
campo da ideologia, Žižek (1996) aponta que:

A ideologia não é tudo, é possível assumir um lugar que nos permita manter
distância em relação a ela, mas este lugar de onde se pode denunciar tem que
permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade
positivamente determinada; no momento em que cedemos a essa tentação
voltamos à ideologia. (ŽIŽEK, 1996, pp. 22-23)

A psicanálise, nesse sentido, tem muito a contribuir para o social, ao visar a


separação do sujeito do Outro ideológico. Nessa direção podemos concordar com Žižek
(2006) quando diz: “A psicanálise é a mais vigorosa afirmação de autonomia” (p. 167).
Essa autonomia é sustentada pelo real inscrito em cada sujeito e pode ser tratado pelo
analisante se ele encontrar um analista marcado por seu desejo (na clínica). Daí
perguntamos: esse novo, criado a partir da repetição e acolhido pelo discurso do
analista, pode ter alcance fora do consultório? Fiquemos com a questão.
Nossa articulação entre o gozo e o desejo do analista se dá pelo fato de que a
demanda e o gozo de um analista em sua função, foram tratados em sua análise para que
ele possa estabelecer seu desejo de analista e tratar o gozo do analisante. Como aponta
Fingerman (2008), “A análise do analista precisa qualificá-lo para suportar a
experiência da análise vetorizada pela transferência e seu manejo. O desejo de analista é
a função lógica e ética que capacita um analista. Esse desejo ao avesso da demanda e do
gozo é produzido na análise do analista” (p. 131). E a autora continua: “A análise do
analista precisa produzir um ponto a mais: além da queda da transferência e da
suposição de saber do Outro, a prova do desejo de analista é a prova de ‘uma outra
satisfação’, uma prova de separação” (p.137).
Vale acrescentar, satisfação outra que é necessária para tratar o gozo do
analisante e conduzi-lo também a essa outra satisfação, ao atravessamento da fantasia,
que é o que se espera de um final de análise, e assim surja dela o desejo de analista ou
não. Ou seja, a rigor, é somente a partir da submissão a uma análise até o seu final que o
analista pode se dar com o desejo de analista propriamente dito.
Nossa articulação entre o gozo e o desejo do analista nos leva a considerar
implicações éticas, às quais Lacan (1958a/1998) já propunha desde a direção do
tratamento: “cabe formular uma ética que interage as conquistas freudianas sobre o
39

desejo: para colocar em seu vértice o desejo do analista.” (p. 621). Ou seja, considerar a
ética da psicanálise, que é a ética do desejo proposta por Lacan (1959-60/1991), como
sustentação do objeto a no tratamento analítico, nosso próximo assunto.

1. 3 A ética da Psicanálise e o objeto a

No Seminário VII, sobre a ética, Lacan (1959-1960/1991) aponta a ética do


desejo como a ética da psicanálise. Ele traz a tragédia de Antígona16, escrita pelo
dramaturgo grego Sófocles (421 a.C./2002), para situar a tensão entre o desejo singular
de um sujeito (Antígona) e as particulares de uma cultura resguardada pela função do
governante (Creonte).
O que se destaca na tragédia é que há algo impossível de ser conciliado. Trata-
se de um conflito que envolve a lei particular de uma sociedade (A cidade de Tebas),
que visa o bem para todos, e o desejo singular de um sujeito (Antígona), que não se
satisfaz com tal lei. Lacan (1959-1960/1991) aponta que “Creonte vem ilustrar aí uma
função – quanto à estrutura da ética trágica que é a da psicanálise – ele quer o bem. O
que afinal é seu papel. O chefe é aquele que conduz a comunidade, ele está aí para o
bem de todos” (pp. 312-213).
Se Creonte, para o bem de todos, estabelece uma lei que não permite que se
preste as honras fúnebres ao irmão Polinice, por ele ter lutado contra seus ditames,
Antígona vai contra tal lei e enterra o irmão, motivo pelo qual Creonte lhe infringe pena
de morte. Sobre isso Lacan (1959-1960/1991) dirá: “Antígona nos faz, com efeito, ver o
ponto de vista que define o desejo.” (p. 300), e mais adiante:

Essa dimensão não é uma particularidade de Antígona, posso propor-lhes


olhar aqui e acolá, vocês encontrarão outras correspondentes sem terem de ir
buscar muito longe. A zona assim definida tem uma função singular no efeito
da tragédia. É na travessia dessa zona que o raio do desejo se reflete e, ao

16
Tal obra trabalha com os ditames morais traçando paralelos entre o desejo singular de um sujeito, no
caso o de Antígona, e a lei de uma sociedade, no caso a cidade de Tebas que tem como governante
Creonte, apontando a tensão entre o desejo de um sujeito conflitando com a lei de uma sociedade. Na
tragédia Antígona, continuação da tragédia de Édipo Rei em que Antígona é filha de Édipo e tem mais
uma irmã e dois irmãos. Na cidade de Tebas acontece uma guerra em que seus irmãos lutam um contra o
outro. Uma guerra em que um deles, Etéocles, luta a favor dos ditames de Creonte e o outro, Polinice, luta
contra tais ditames. Nesta guerra, os dois irmãos de Antígona morrem e Creonte estabelece uma lei que
não permite que se preste as honras fúnebres ao irmão Polinice, que lutou contra seus ditames, alegando
que ele faria uma transição inadequada no mundo dos mortos, mas permite enterrar honrosamente
somente Etéocles que lutou a seu favor. Inconformada, Antígona desobedece tal lei e presta as honras
fúnebres a seu irmão Polinice. Creonte não aceita a desobediência de Antígona e condena-a à morrer
enclausurada, e antes mesmo de morrer de inanição ela se suicida.
40

mesmo tempo, se retrai chegando a dar esse efeito tão singular, o mais
profundo, que é o efeito do belo no desejo. (pp. 301-302).

Para Lacan (1959/1991), o belo do desejo está no fato de que Antígona não cede
de seu desejo, e em função disso ela não consegue evitar a pena de morte. Esse tipo de
conflito habita no laço social em toda e qualquer sociedade. O mito de Antígona mostra
que o sintoma é sempre resistência, uma forma de mostrar que o desejo não é
domesticável.
É ao fato de Antígona não ceder de seu desejo que Lacan articula a ética da
psicanálise como a ética do desejo. Tal ética é exercida pelo analista em sua função,
atravessado pelo desejo de analista que se estabelece a partir de sua própria análise
como já foi dito. Lacan (1959/1960-1991) orienta que:

A ética da psicanálise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a


arrumação do que chamam serviço dos bens. Ela implica, propriamente
falando, a dimensão do que se chama de experiência trágica da vida. É na
dimensão trágica que as ações se inscrevem, e que somos solicitados a nos
orientar em relação aos valores. (p. 376)

Embora no seminário VII Lacan (1959-1960/1991) não tenha ainda formulado o


objeto a, pois nesse momento ele tratava o objeto a partir da noção de das ding de
Freud, esse trabalho serve de alicerce para que Lacan (1962-1963/2005) invente o
objeto a. E qual é a implicação do objeto a com a ética da psicanálise?
Acreditamos que este seja um momento oportuno deste trabalho para tratá-lo,
pois, como disse Lacan, a ética da psicanálise é não permitir que qualquer objeto entre
no lugar dele (objeto a). Ora, Lacan defende que a psicanálise não está aí a serviço dos
bens ou dos valores estabelecidos pela sociedade, sendo que é a partir do objeto a, como
política do analista em sua função a partir de seu desejo, que ele sustenta sua ética, a do
seu desejo.
Desde o seminário 4, “A relação de objeto”, Lacan (1956-1957/1995) já se
referia ao objeto como faltoso: “Jamais, em nossa experiência concreta da teoria
analítica, podemos prescindir de uma noção da falta do objeto como central. Não é um
negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo.” (p.35). Mola do
desejo, ou seja, sendo a falta a mola da relação do sujeito com o mundo, aboli-la seria o
fim do laço social. Sendo assim, não há possibilidade de suturar esse desejo causado
pela falta inexorável.
41

No Seminário VII, “A ética da psicanálise”, Lacan (1959-1960/1991) discute o


objeto estruturado a partir da imagem do outro. Diz o autor que a coisa: “Trata-se do
fato de o homem modelar esse significante e introduzi-lo no mundo.” (p. 157). A Coisa
freudiana será posteriormente conceituada como objeto a, conceito que diz da falta de
objeto do sujeito como a mola do laço social, ou seja, aquilo que cada um pode criar na
sua cadeia de significantes.
No seminário X, Lacan (1962-1963/2005) retoma o conceito de angústia de
Freud (1926/1976), atendo-se principalmente ao aspecto da angústia como um sinal,
sinal este que vai fundamentar para Lacan a lógica da angústia pensada como angústia
da castração, que tem como correspondente o objeto a. Sobre este, o próprio Lacan
designou como a sua única invenção, afirmando que é o objeto a o que separa o desejo
do gozo. Assim o autor designa o objeto a como representante de uma operação
constante de falta que causa desejo, ou seja, não há como desejar se não houver falta,
pois não haveria o que desejar se nada faltasse.
Lacan (1962-1963/2005) aponta ainda que é o objeto a que designa a divisão do
sujeito pelo fato de ele se constituir por uma operação de três tempos—momento do
sujeito do gozo não dividido, mítico; momento do aparecimento da angústia como o que
não engana; momento do aparecimento do desejo causado pela angústia, que é o próprio
objeto a enquanto falta, em que ele se constitui no Outro como sujeito barrado—, em
que o objeto a aparece como resto dessa operação. A partir de então o desejo se
apresenta na busca de um objeto da realidade, mas quando se encontra este objeto da
realidade, já não é mais ele, presentificando-se a falta.
O sujeito, ao se tornar linguageiro, renuncia ao gozo pleno estabelecendo o
objeto a causa desejo, e é ele que movimenta a cadeia significante.
Bem, se a ética da psicanálise é a ética do desejo e se o desejo é resultado de
uma operação de falta de objeto, presentificar o objeto a é uma questão de ética para o
analista em sua função. O analista, ao ocupar o lugar de objeto a causa de desejo,
presentifica a angústia no analisante e consequentemente causa o desejo.
Lacan nomeia o objeto como a para sinalizar que o objeto17 é sempre outro,
objeto não nomeável. Isto é, a partir do momento que o sujeito alcança um objeto de
desejo nomeável e almejado no mundo, já não é mais ele que satisfaz, e novamente a
falta se instaura, fazendo com que o sujeito busque outro objeto nomeável. Como

17
“Outro” em francês se escreve “autre”, daí objeto a como “objeto outro”, pois o objeto é sempre outro
diferente do que se encontra.
42

nenhum objeto nomeável do mundo satisfaz o sujeito, ele passa a vida nomeando
objetos que satisfariam seu desejo. É por isso que a ética da Psicanálise é a ética do
desejo, pois o objeto a enquanto causa de desejo movimenta a cadeia de significantes
levando o sujeito a produzir algo novo no deslizamento da cadeia. Assim, fica claro o
que já foi dito, que a ética da psicanálise é a sustentação pelo analista, em sua função,
do objeto a causa de desejo, pois é tal sustentação que cria uma contingência para que o
desejo do sujeito possa advir.
Por isso o ato analítico (nosso próximo tema) só pode se sustentar amparado pela
presença do objeto a, pelo fato de o analista não colocar um objeto seu no lugar do
desejo do analisante, respeitando o tempo do sujeito para propor seu próprio objeto
faltoso. Assim, podemos considerar o objeto a como a política do analista ao sustentar
sua ética.
Lacan aponta que a psicanálise em extensão, já abordada na introdução deste
trabalho, depende fundamentalmente do que ocorre na psicanálise em intensão, para
uma “ética do bem-dizer o sintoma” que possibilite resistência e permita a manutenção
das diferenças. Essa é uma questão fundamental para que a política do discurso do
analista possa implicar alguma forma de resistência à política do discurso capitalista,
pois o capitalismo, como já vimos, busca o totalitarismo concentrador,
desconsiderando o desejo do sujeito. A psicanálise se diferencia ao possibilitar a
singularidade do desejo, aponta para a diversidade e para a separação do sujeito Outro
concentrador.
Sendo assim, se a ética da psicanálise é a ética do desejo e se o desejo depende
de o analista sustentar-se como objeto a causa de desejo para o analisante na clínica, a
psicanálise em extensão também depende da sustentação desta mesma ética. Mas de que
forma se sustenta o objeto a social?
O ato analítico é outro conceito importante ao qual Lacan dedica um seminário
inteiro para tratar e que talvez possa dar um rumo à questão que acabamos de colocar,
pois autores contemporâneos já falam do ato político como tendo a mesma estrutura do
ato psicanalítico. O ato psicanalítico é um artifício que se sustenta a partir da ética da
psicanálise, que é a ética do desejo, e como aponta Quinet (2006): “É o objeto a que se
encontra no fundamento do ato analítico e, por conseguinte, no desejo do analista”
(p.26).
Desta maneira torna-se importante fazermos alguns recortes do seminário XV,
sobre o ato psicanalítico, fundamentado pelo objeto a e o desejo do analista em sua
43

função sustentada pela ética do desejo. Os efeitos do ato se dão no tempo do sujeito do
inconsciente, na singularidade de cada um, por isso o tempo e o ato analítico serão
abordados no mesmo item, o próximo.

1.4 O tempo do sujeito do inconsciente e o ato psicanalítico

O ato psicanalítico é uma consequência do desejo do analista em seu trabalho de


analisar, ao sustentar a ética da Psicanálise e a política do objeto a causa de desejo.
Lacan (1967-68), no seminário XV, trata deste conceito muito detidamente. Não
trataremos aqui de todos os detalhes do conceito, mas do que nos interessa para
sustentar a dimensão política da psicanálise. Comecemos com a questão do tempo em
psicanálise.
Em vários momentos de sua obra, Freud trata a questão do tempo do
inconsciente. No texto “Sobre o início do tratamento”, Freud (1913/1969) trata a
questão de um paciente que lhe pergunta sobre o tempo de duração de sua análise. Neste
texto, Freud assinala que essa é uma resposta difícil de precisar, pois “a pergunta
relativa à duração provável de um tratamento é quase irrespondível” (p.169).
No texto “O inconsciente”, quando Freud (1915/1974) trata das “características
especiais do sistema inconsciente”, ele afirma que “Os processos do sistema Ics. são
intemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem
do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo.” (p. 214, grifos do
autor). E assim ele aponta que a passagem do tempo não altera o reprimido.
Em “Análise terminável e interminável”, Freud (1937/1975) afirma que a
experiência lhe ensinou que “a terapia psicanalítica é um assunto que demanda tempo”
(p. 247). Afirma ainda que as tentativas de encurtar o tempo de uma análise foram
frustradas, mas observa que tal tentativa – quando estabeleceu uma data para o término
de uma análise (caso do homem dos lobos) – fez com que diminuíssem as resistências
do paciente e este passou a produzir lembranças importantes que levaram Freud a achar
que o caso estava concluído. Essa foi uma tentativa frustrada porque, posteriormente,
Freud percebe que o caso não estava concluído e neste texto questiona se há um fim
para a análise.
No entanto, se a tentativa de Freud de forçar o sujeito a chegar no fim de sua
análise não deu certo, o estabelecimento de uma data para o fim da análise, em função
de ter introduzido a pressa, foi um manejo que levou o paciente a desarmar-se de suas
44

resistências e reproduzir lembranças, fazendo conexões importantes para o tratamento.


É nesta direção que Lacan (1945/1998) ampliará o tema do tempo trazendo a questão do
tempo lógico do inconsciente, abordando a duração do tempo das sessões no tratamento
analítico.
Lacan (1945/1998), em seu texto “O tempo lógico e a asserção da certeza
antecipada”, apresenta o sofisma dos três prisioneiros18 para avançar na questão da
atemporalidade do inconsciente apontada por Freud. Se Freud descobriu a
atemporalidade do inconsciente, Lacan (1945/1998), respaldado na descoberta de Freud,
avança trazendo o tempo lógico para pensar a retroação na cadeia significante como
efeito de seu deslizamento.
Roudinesco e Plon (1998) apontam que “Segundo Lacan, o analista ocupa na
análise o lugar desse diretor: é aquele que promete a liberdade (ou a cura) a seu
paciente, convidando-o a resolver, tal como a Esfinge com Édipo, o enigma da condição
humana” (p. 715). O diretor é também quem insere, assim como Freud ao homem dos
lobos, uma pressa para a resolução do problema lógico, já que o primeiro que resolvesse
seria quem conquistaria a liberdade.
Mas, cabe perguntar, como Lacan faz uso da descoberta freudiana da
atemporalidade do sujeito do inconsciente na direção da cura ajustando-o ao sofisma
dos três prisioneiros? Segundo Fingerman (2009):

Ele utilizou a “inalterabilidade do reprimido” como manifestação da estrutura


do sujeito que lhe ofereceu “um acesso às mais profundas descobertas”, com
consequências clínicas radicais para a lógica da cura, tanto nos meios quanto
nos fins da experiência psicanalítica. (...) É no ponto mesmo da
“inalterabilidade do reprimido” que ele insere o “tempo lógico” produtor do
momento de concluir, como interrupção da diacronia infinitiva. O ato do

18
No texto "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada", Lacan (1945/1998) apresenta o sofisma
dos três prisioneiros. O sofisma é o seguinte: O diretor de um presídio remete a três prisioneiros uma
medida liberatória em que o primeiro que resolver um problema lógico, será libertado. O problema lógico
trata-se do seguinte: O diretor do presídio revela que possui três discos brancos e dois discos pretos.
Destes cinco discos, três serão escolhidos e fixados nas costas de cada um dos três prisioneiros. O diretor
escolhe os três discos brancos e fixa nas costas de cada sujeito. Não é permitido que os prisioneiros vejam
a cor do disco que portam. Cada um terá que inferir a cor do seu disco a partir da lógica, e não apenas de
probabilidade, para ser libertado. Entretanto, somente o primeiro detento que o fizer será libertado. Lacan
coloca a solução perfeita: “Depois de se haverem considerado entre si por um certo tempo, os três sujeitos
dão juntos alguns passos, que os levam simultaneamente a cruzar a porta. Em separado, cada um fornece
então uma resposta semelhante, que se exprime assim: ‘Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus
companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte:
'Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na
mesma hora, logo, não sou preto.' E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não
estavam fazendo nada, e que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha
conclusão.” (LACAN, 1945/1998, p.198).
45

analista introduz aí uma descontinuidade, expondo, flagrando, esvaindo a


suposição síncrona que espera uma solução de continuidade. (p. 62).

Ao descobrir a inalterabilidade do reprimido, Lacan entende que o tempo do


inconsciente não obedece ao tempo cronológico, e sim o tempo lógico, pois o reprimido
não deixa de sê-lo com o passar do tempo cronológico. O ato analítico, porém, pode
alterar o reprimido.
Ao fazer uso do sofisma dos três prisioneiros para avançar no tema da
atemporalidade do inconsciente, inserindo o tempo lógico, Lacan (1945/1998) escande
três momentos de evidência para explicar a modulação do tempo em três dimensões no
movimento do sofisma: o instante do olhar (sincrônico), o tempo para compreender
(diacrônico) e o momento de concluir (tempo lógico como pressa), momentos que
ocorrem por retroação significante provocando uma reelaboração da solução da questão
em cada um dos prisioneiros.
Lacan articula essa escanção dos três momentos na solução do sofisma com os
três momentos da análise: O instante de ver, produzido pelas entrevistas preliminares; o
tempo para compreender, em que na associação livre o paciente constrói sua cena
fantasmática na transferência, enquanto o analista maneja, na transferência, com suas
intervenções e cortes, dirigindo a análise para o momento de concluir. O momento de
concluir se dá quando o sujeito deduz a impossibilidade de uma resposta do Outro. Essa
impossibilidade diz do fato de que todo o reprimido não pode ser desvelado.
O corte da sessão no tempo lógico, inaugurado por Lacan, institui um tempo
abstrato da sessão que privilegia o tempo do inconsciente, um corte que atualiza o
reprimido, mostrando que o reprimido é atual. O analista em sua função faz o corte e
institui a pressa no analisante. É isso que justifica o encurtamento das sessões instituído
por Lacan. Segundo Quinet (2009), “O encurtamento da sessão, tal como Lacan teoriza,
não visa outra coisa senão precipitar no sujeito o momento de concluir, para que o
sujeito se declare. De fato, a análise nos ensina que a pressa é amiga da conclusão.” (p.
64, grifos do autor). Este autor diz ainda que:

A prática das sessões curtas implica, portanto, dois aspectos: a análise não se
reduz em absoluto, ao tempo das sessões, mas é um processo contínuo, em
que a sessão é descontinuidade, pontuação, ruptura no discurso; inscrevendo-
se a sessão no processo analítico como um corte, o analista é o depositário
das elaborações e associações que o paciente faz fora da sessão. Assim, a
elaboração se situa fora das sessões e é uma tarefa do analisante. (p. 66)
46

Se a elaboração se dá fora das sessões, isso mostra que não é o tempo – seja 20
minutos, 50 minutos ou qualquer outro tempo que não deve passar muito de uma hora –
estipulado como regra da sessão que precipita o sujeito ao momento de concluir. Mas é
o corte no momento fértil, inserindo a descontinuidade do inconsciente do sujeito, um
tempo determinado no manejo do analista na direção do tratamento, a ser elaborado pelo
analisante a posteriori.
O corte da sessão em tempo lógico é uma tentativa de ato, pois o analista pode
calcular, mas isso não garante que o efeito de ato será concluído. Entendemos que é
uma tentativa sem garantias porque o ato pode ou não ter efeitos, como tal, no
analisante. Para entender por que o ato trata-se de uma tentativa do analista,
marcaremos resumidamente algumas de suas dimensões em que se pode verificar nelas
a falta de garantias inerentes à função do analista.
No seminário XV, “O ato psicanalítico”, Lacan (1967-68) introduz a função do
Ato no nível da psicanálise enquanto este fazer implica o inconsciente, sujeito colocado
em ato. Também afirma que a transferência é a colocação do inconsciente em ato na
associação livre, ou seja, as formações inconscientes, como sintomas, sonhos e atos
falhos apresentados nas sessões analíticas, são atos do analisante na transferência.
O analista em sua função busca fazer ato quando localiza o momento fértil de
atualização do reprimido na sessão, procurando produzir uma descontinuidade
inconsciente no analisante, mas se teve sucesso, ou seja, se houve ato, isso quem
confirma é o analisante, conferindo seus efeitos a posteriori.
Lacan (1967/1968, inédito) afirma que uma das dimensões do ato é fundar uma
experiência sobre pressupostos que o próprio ser falante ignora profundamente, isto é, o
sujeito não sabia, não esperava, muito menos o analista. Este não saber traz a dimensão
da ignorância que causa desordem por trazer o inesperado, por ocorrer à revelia do
analisante e do analista. Embora o analista em sua função busque calcular esses
momentos férteis, isso não significa que terá sucesso a partir de seus cálculos, dado que
o sucesso se dá pelos efeitos no analisante.
Lacan (1967-68) nos alerta ainda sobre o fato de que o ato psicanalítico não
pode ser aprendido didaticamente, pois o ensino psicanalítico se dá a partir do que se
recolhe pelo processo desencadeado do ato que puder ser registrável de saber. Dito em
outras palavras, isso significa que, a rigor, o que se aprende da psicanálise é algo sobre
o que já aconteceu e que não é generalizável para outros casos, nem para casos futuros,
47

nem mesmo para o caso do próprio analisante, pois ele mesmo sempre pode trazer algo
novo.
Por isso, o ato em sua origem não pode ser calculado, ele acontece a partir da
função do analista investido de objeto a na transferência. Assim, o ato analítico é
sempre uma tentativa. Em função desta falta de garantias, o analista faz o cálculo, mas
isso não garante que houve ato, nem que não houve, assim como pode haver ato sem
cálculo do analista, pelo menos não por um cálculo consciente, pois como já foi dito,
seus efeitos são a posteriori.
O efeito a posteriori é uma das dimensões do ato psicanalítico. Ele articula-se ao
efeito das moções suspensas, indicadas por Lacan (1945/1998), pois “Elas só
desempenham seu papel, com efeito, após a conclusão do processo lógico, uma vez que
o ato que suspendem manifesta essa conclusão” (p. 201). É assim que se dá o ofício do
analista em sua função, fora do tempo cronológico e sem garantias.
Porém, sob o rótulo da psicanálise, vemos a busca de garantias, propagada em
situações que verificamos teoricamente que – do ponto de vista da teoria freudo-
lacaniana como foi apresentada até agora – não se trata de psicanálise. Um exemplo
clínico é a técnica, abordada por Freud e reforçada por Lacan, sobre o tempo lógico que
acabamos de apresentar, teoria da qual Lacan lança mão de praticar sessões curtas.
Comentando o sofisma dos três prisioneiros de Lacan e o tempo lógico, Quinet (2009a)
dirá que:

O sujeito apreendeu o momento de concluir (que ele é branco) diante da


evidência subjetiva de um tempo de atraso que o apressa a sair. Se ele, como
diz Lacan, não apreender esse momento, ficará diante da evidência objetiva
da saída dos outros, com a conclusão errada de que é preto. O encurtamento
da sessão, tal como Lacan teoriza, não visa outra coisa senão precipitar no
sujeito o momento de concluir, para que o sujeito se declare. (p. 64).

Ou seja, o desenvolvimento da teoria lacaniana sobre o tempo lógico tem a ver


com o corte das sessões, enquanto ato psicanalítico que implica o tempo do inconsciente
e leva em conta seus momentos fecundos e não simplesmente o encurtamento do tempo
cronológico delas.
Infelizmente sabemos que é possível que, sob o rótulo de psicanalista, pode-se
valer desta técnica para atender mais pacientes e ganhar mais dinheiro, e ainda dizer-se
e sentir-se amparado pela técnica, mas sem levar em conta o que é importante nela,
colaborando assim com a ciência do capitalismo e escamoteando a dimensão da
48

subversão do sujeito que é o coração da política da psicanálise, como aponta Fingerman


(2009a):
Quando, no mundo globalizado, o tempo transforma-se em mercadoria –
“time is money” –, quando a ciência, a tecnologia e o mercado juntam-se
para nos fazer ganhar tempo a qualquer preço, a psicanálise continua
insistindo com um método que proporciona uma experiência do tempo na
contramão da experiência subjetiva do “tempo que passa”, inflacionada pelos
tempos que correm. (p. 60)

Pensando o exemplo apresentado, vemos que a utilização do tempo lógico pode


tanto ser fértil para a análise como pode representar a ciência do capitalismo exercida
sob o rótulo da psicanálise. No texto “Televisão”, Lacan (1974/2003) declara algo disso
sobre a disposição da IPA em entrar no discurso capitalista, diz ele: “A sociedade dita
internacional (...) eu ainda a conheci nas mãos da descendência direta e adotiva de
Freud: se eu me atrevesse (...) diria que atualmente, ela é uma sociedade de assistência
mútua contra o discurso analítico” (pp. 517-518).
Essa queixa de Lacan já era antiga, inclusive foi em função deste assunto que ele
foi excomungado da IPA em 1963. Tal queixa se tratava principalmente do fato de a
IPA se colocar contra o encurtamento das sessões pelo uso do tempo lógico. Isso em
função do endeusamento que a IPA transparecia sobre os psicanalistas didatas e de
outras questões que inferiam uma padronização do atendimento clínico em psicanálise.
Isso piorou bastante desde essa época. Hoje temos, todos os dias, centenas de
ofertas de cursos de psicanálise a longa distância que prometem formar um psicanalista
em curto prazo. Porém a formação em psicanálise, a rigor, acontece no divã, após
muitos anos de análise pessoal. Sabemos também que a formação teórica é importante e
interminável, pois se o sujeito se propõe a ser um analista, deverá estar em constante
formação em função da singularidade de cada sujeito e das surpresas que cada
singularidade apresenta.
Mesmo assim, esse tipo de oferta predominante no capitalismo – lógica do fast-
food, como grande parte dos processos no capitalismo – é amplamente aceita, neste caso
por prometerem uma formação rápida, às vezes à distância, às vezes até por um preço
acessível, propostas próprias da política do capitalismo de consumo, aqueles que
aderem tem vantagem tanto de tempo de formação quanto de economia de dinheiro.
Não queremos entrar aqui na questão de combate a uma falsa psicanálise, mas apontar
49

que é fácil cair nas armadilhas do discurso capitalista e aderir a uma formação em
psicanálise sem qualquer rigor teórico19.
Voltando ao sofisma dos prisioneiros, Lacan aponta que sua solução é a fórmula
de uma lógica coletiva numa relação de reciprocidade da falta de saber para chegar à
própria asserção subjetiva do momento de concluir. É uma falta de saber baseada nos
outros dois prisioneiros, dado que seu objeto de raciocínio está neles, tanto pelas cores
que ele vê nos discos como pelo comportamento deles. A falta de saber quer dizer que
todos sabem que nenhum deles sabe a cor do próprio disco, ou seja, não há Outro do
saber, isso impõe que cada busque no próprio saber uma solução. E isso vale para os
três prisioneiros – já que os três prisioneiros se precipitam à conclusão no mesmo
momento. Diz Lacan (1945/1998):

Basta fazer aparecer no termo lógico dos outros a menor disparidade para que
se evidencie o quanto a verdade depende, para todos, do rigor de cada um, e
até mesmo que a verdade, sendo atingida apenas por uns, pode gerar, senão
confirmar, o erro nos outros. E também que se, nessa corrida para a verdade,
é apenas sozinho, não sendo todos, que se atinge o verdadeiro, ninguém o
atinge, no entanto, a não ser através dos outros. Essas formas decerto
encontram facilmente sua aplicação na prática, numa mesa de bridge ou
numa conferência diplomática, ou até no manejo do "complexo" na prática
psicanalítica. Mas gostaríamos de indicar sua contribuição para a noção
lógica de coletividade. (pp. 211-212)

Essa noção de lógica coletiva colocada por Lacan, como algo que só pode ser
atingido sozinho, mas não sem ser através dos outros, pode ser uma maneira de ação
política. Mas como fazer isso funcionar quando se trata bilhões de pessoas? Seria
possível se pensar nisso como um efeito lógico? Isto é, tal como acontece numa mesa de
bridge, numa conferência diplomática, no manejo do complexo na prática analítica, num
cartel ou assim como aconteceu com os três prisioneiros do sofisma? Seria essa uma
maneira de se pensar a dimensão política da psicanálise apontando o discurso do
analista implicando alguma forma de resistência ao discurso capitalista? E o que da
teoria da lógica coletiva pode ser articulado ao social? Poderíamos pensar em um ato
político nessa dimensão?
Žižek (2003) articula o ato psicanalítico da clínica ao ato político do campo
social, aponta que o último:

19
Há outros inventos da psicanálise que, sem levar em conta o rigor teórico, podem culminar no que
poderíamos chamar de um uso que não corresponde à proposta da teoria. Temos a psicologia psicanalítica
do ego, norte–americana, que representa isso muito bem.
50

(...) é um passo no desconhecido, sem garantias quanto ao resultado final –


por quê? Porque um Ato altera retroativamente as próprias coordenadas em
que interfere. Essa falta de garantias é o que os críticos não podem suportar:
querem um Ato sem risco. (...) Resumindo, parafraseando Robespierre, os
que se opõem ao “ato absoluto” se opõem também ao ato como tal, querem
um ato sem ato. (...) O Ato acontece numa emergência em que alguém tem
que assumir o risco e agir sem legitimação engajado numa espécie de aposta
pascalina de que o Ato em si há de criar as condições para sua própria
legitimação “democrática retroativa.” (pp. 175-176).

Assim, o ato político se aproxima do ato psicanalítico em função de não serem


programáveis, nem calculáveis, e em ambos os casos não há garantias e requerem que se
corra riscos.
Freud e Lacan elaboraram uma teoria para dar direção ao tratamento.
Clinicamente sabemos que, embora a psicanálise tenha nascido no contexto do
capitalismo, é possível, a partir da escuta analítica, presentificar o objeto a no sujeito e
provocar os efeitos do ato nele. Mas quando pensamos a dimensão política da
psicanálise, como ela poderia funcionar de maneira a fazer resistência ao discurso
capitalista?
Os conceitos trabalhados até agora são centrais para trabalhar no consultório,
com isso que escapa ao campo da ciência – para trabalhar com algo do sujeito com o
qual a ciência não se implica –, mas também são centrais para trabalhar a dimensão
política da psicanálise no social, dimensão que igualmente não oferece garantias. Essa
talvez seja a questão mais difícil para o sujeito no laço social. Ele não questiona o
discurso capitalista que o concentra, por este último oferecer as garantias que o sujeito
busca, mesmo elas sendo falsas.
Até agora trabalhamos conceitos clínicos, ou seja, conceitos que dizem da
função do analista na clínica, apontando algumas implicações políticas. No próximo
capítulo, trabalharemos a teoria dos discursos de Lacan para aprofundar sua dimensão
política.
51

CAPÍTULO 2- TEORIA DOS DISCURSOS DE LACAN

Mediante o instrumento da linguagem


instaura-se um certo número de relações
estáveis, no interior das quais certamente
pode inscrever-se algo bem mais amplo,
que vai bem mais longe do que as
enunciações efetivas. (LACAN, 1969-
70/1992, p. 11).

O Seminário XVII foi desenvolvido por Lacan (1969-70/1992) num momento de


manifestações estudantis na França sob a bandeira de esquerda proletária. A França dos
anos de 1960, sob o comando do general Charles De Gaulle, era uma sociedade
culturalmente conservadora e fechada, vivendo ainda o reflexo das perdas sofridas
durante a Segunda Guerra Mundial (entre 1939 e 1945). Nas escolas francesas, as
crianças eram disciplinadas com rigidez. As mulheres francesas tinham o costume de
pedir autorização aos maridos para expressarem uma opinião, e a homossexualidade era
diagnosticada pelos médicos como uma doença. Mas o Maio de 68 deu início a
profundas mudanças nas relações sociais.
O Seminário XVII foi realizado no contexto do movimento estudantil, mas a
visada de Lacan em falar do avesso da psicanálise é anterior a este movimento e a este
momento. Num texto datado de 1966, intitulado “De nossos antecedentes”, Lacan
(1966b/1998) já expressa sua crítica a psicanalistas da sua época que se remetem aos
primeiros escritos de Freud para apresentar por essa via uma ideologia mecanicista a
respeito da vida mental. Sustentando as críticas que vinha fazendo sobre a análise
didática desde sua excomunhão da IPA e já propondo a psicanálise pelo avesso, diz
Lacan:

Em que se transforma, nessas condições, o entrecruzamento pelo qual a


identidade dos pensamentos que provem do inconsciente oferece sua trama
ao processo secundário, permitindo à realidade estabelecer-se para a
satisfação do principio do prazer? Eis aí a pergunta em que se poderia
anunciar a retomada pelo avesso do projeto freudiano em que recentemente
caracterizamos o nosso. (LACAN, 1966b,1998, pp. 72-73, grifos do autor)
52

Neste momento Lacan já colocava a psicanálise como avessa a essa insistência


mecanicista, ou seja, a essa posição de mestre no discurso. E antes mesmo de escrever
esse texto, Lacan já havia sido excomungado da IPA pela mesma razão, mas é no
Seminário XVII que ele formalizará a ideia.
Lacan, de saída, no seminário XVII, aponta que no momento em que se está
dentro de uma relação com outra pessoa, está-se inserido num discurso em que os atos
são mais importantes que as palavras, e que o discurso “pode muito bem subsistir sem
palavras” (1969-70/1992, p. 11).
Lacan aponta que as relações estáveis não poderiam subsistir sem a linguagem,
mas que nelas se trata da percepção de um discurso para além das palavras, “(...) que vai
bem mais longe que as enunciações efetivas. Não há necessidade destas para que nossa
conduta, nossos atos, eventualmente se inscrevam no âmbito de certos enunciados
primordiais” (1969-70/1992, p. 11). Nossas condutas e atos aparecem nas formações
inconscientes se estampando nos sintomas, nos atos falhos, nos sonhos e nos chistes.
Podemos observar a presença do discurso sem palavras desde Freud (1912-
13/2013). Por exemplo, ao escrever o capítulo “o tabu e a ambivalência dos
sentimentos” no texto “Totem e tabu”, tratando dos traços da neurose obsessiva,
podemos observar nele o discurso sem palavras. Ele escreve sobre as cerimônias que
elevam um homem da tribo à dignidade de rei, sendo que os integrantes da tribo
guardam o direito de espancá-lo na véspera, encontrando assim uma satisfação comum
na cerimônia, em que às vezes o rei morria poucos dias depois de assumir o cargo em
função de tal violência.
Era possível observar que quando os chefes tinham rancor de um homem,
elegiam-no rei. Segundo Freud (1912-13/2013), “mesmo em casos gritantes como esse,
a hostilidade não é admitida como tal, mas revestida de cerimonial.” (p. 86). A
hostilidade aparece como discurso sem palavras, ou, neste caso, o discurso para além
das palavras, no discurso inconsciente da enunciação, uma formação inconsciente.
Lacan (1959-1960/1991) também trata desta questão no seminário VII, sobre a
ética, em seu capítulo sobre “a função do bem”, trazendo o exemplo do amor ao
próximo. Quando ele aponta que o desejo, sendo inconsciente, não partilha de um bem
53

apreendido pela consciência – ou seja, do bem do enunciado, pois o “bem” do


enunciado do outro é uma barreira ao desejo do sujeito, já que este “bem” é corruptível
pela falta inscrita no sujeito da linguagem que aparece no discurso sem palavras da
enunciação – isso tem a mesma estrutura do exemplo de Freud em “Totem e Tabu”.
Deste ponto de vista podemos pensar que o amor ao próximo é cruel, pois o
próximo pode querer um bem diferente do bem que quero para mim. Assim, fazer o
bem ao próximo é domesticá-lo cruelmente ao modo que eu decido como bem. E isso
me deixa tranquilo em nome do bem, como nos revela Freud no exemplo acima citado
em “Totem e Tabu”, pois aqui também a hostilidade não é admitida, por mais gritante
que seja a crueldade, apontando a estrutura trans-histórica do discurso sem palavras.
Quando Lacan enfatiza o discurso sem palavras, o faz para que não percamos de
vista que o que define um discurso é o tipo de relação que nele ocorre no laço social
para além do enunciado. Além disso, é o discurso sem palavras que deve ser escutado
pelo analista no exercício de sua função a partir da ética da psicanálise, que é a ética do
desejo como já vimos, levando em conta que o discurso sem palavras é um modo de
gozo, modo de gozo que diz respeito aos discursos de Lacan.
No seminário XVII, Lacan (1969-70/1992) descreve 4 discursos, e para
descrevê-los ele se refere às três profissões impossíveis apontadas por Freud
(1925/1976), qual sejam, governar, educar e curar, às quais Lacan somará uma quarta
impossibilidade: fazer desejar. Assim, Lacan (1969-70/1992) formaliza essas quatro
impossibilidades em 4 discursos – discurso do mestre (governar, discurso pelo qual o
sujeito entra na linguagem), discurso histérico (fazer desejar, a quarta impossibilidade
adicionada por Lacan), discurso do analista (psicanalisar ou curar) e discurso
universitário (educar). Estes seriam modos de gozo impossíveis, pois embora estes
discursos sejam ordenadores do gozo, é impossível ordenar todo o gozo do sujeito.
O mesmo ocorre com o quinto discurso, o do capitalista, citado por Lacan
(1972/inédito) na conferência de Milão, pois embora tal discurso tenha a pretensão de
ordenar todo o gozo do sujeito, ao mesmo tempo nele está implícito que isso é
impossível. Daí a questão que se apresenta sobre o discurso capitalista: ele é ou não um
quinto discurso? Mas disso trataremos mais tarde. Comecemos pela maneira como
Lacan formaliza os 4 discursos.
54

2.1 Introdução à formalização dos 4 discursos

Para formalizar os 4 discursos, Lacan (1969-70/1992) propõe matemas que


demonstram 4 formas possíveis de laço social, esperando com isso mostrar todo o
processo de estruturação dos discursos e apresentar neles a lógica inconsciente. Os
matemas propostos são o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso do
analista e o discurso universitário. Para a construção dos matemas, Lacan coloca 4
lugares fixos e 4 letras que são os elementos de giro para representar os discursos.
Vejamos.

Lugares fixos:
Segue abaixo os 4 lugares fixos dos matemas e o que eles representam no
discurso e em seguida sua posição nos matemas:
AGENTE, é o lugar que domina o discurso, ele é o agente da castração. Essa
dominante20 funciona de maneira diferente em cada discurso;
OUTRO, é o lugar de dominado no discurso;
VERDADE, é o lugar que sustenta o agente do discurso, verdade sempre parcial;
PRODUÇÃO, é o resultado, é o que o discurso produz.
Posição dos lugares fixos no matema:

Agente Outro

Verdade Produção

Elementos de giro:
Quanto aos elementos de giro, eles são letras que giram em torno dos 4 lugares
fixos. Segue abaixo as letras e o que elas representam nos discursos:
S1 – Significante mestre representante da lei que marca a incompletude e que dá origem
à rede de significantes.
S2 – Saber

20
Segundo Lacan, “A palavra dominante não implica a dominância no sentido de que essa dominância
especificaria (...) o discurso do mestre. Digamos que se pode dar, por exemplo, segundo os discursos,
diferentes substâncias a essa dominante” (LACAN, 1969-70/1992, pp.41), ou seja, a dominante tem uma
função diferente em cada discurso.
55

$ – Sujeito barrado, representando o sujeito dividido pelo inconsciente e,


consequentemente, marcado pela falta.
a – Objeto “a” enquanto mais-de-gozar - No Seminário XVI, Lacan (1968-69/2008)
parte do conceito de mais-valia de Marx para tratar do conceito de objeto a enquanto
mais-de-gozar, fazendo entre eles uma homologia. Ele aponta que, se a mais-valia é a
extorsão da força de trabalho, tempo de trabalho pelo qual o trabalhador não é
remunerado e jamais terá acesso – já que essa parte fica para o capitalista – o mais-de-
gozar é colocado nos discursos como perda de gozo, uma extorsão de gozo pelo fato de
o sujeito estar submetido à linguagem e por isso tornar-se impossível a tudo simbolizar,
portanto ele também jamais terá acesso – mas este gozo não fica pra ninguém.
Mesmo assim, o objeto a enquanto mais-de-gozar é tido como força que
movimenta a busca incessante de recuperação de um gozo supostamente perdido, assim
como a mais-valia caracteriza uma perda que movimenta o sistema capitalista. Nas
palavras de Lacan (1969-1969/2008):

O mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso.


É isso que dá lugar ao objeto a desde o momento em que o mercado define
como mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto
carrega em si algo da mais-valia. Assim, o mais-de-gozar é aquilo que
permite isolar a função do objeto a. (p. 19, grifos do autor).

Assim como o objeto a enquanto mais-de-gozar representa uma renúncia de


gozo que movimenta o desejo do sujeito e sua cadeia de significantes – por colocar o
sujeito sempre em busca do objeto perdido –, a mais-valia representa uma renúncia da
parcela de remuneração a um tempo de trabalho que movimenta o sistema capitalista
por estar em busca da subsistência. Se o objeto a enquanto mais-de-gozar é o cerne que
movimenta a busca do sujeito pela completude impossível, ele é homólogo à mais-valia,
que é o cerne do movimento e sustentação do sistema capitalista. Sem mais-valia não há
capitalismo, o qual busca o acúmulo de capital; sem mais-de-gozar não há deslizamento
da cadeia de significante que busca a recuperação do gozo.
Tais letras, mesmo que girem infinitamente em torno dos 4 lugares fixos, não
poderão produzir mais do que 4 discursos, pois devem respeitar o critério de que esses
giros somente podem ser movidos no sentido horário ou anti-horário, como
representados pelos vetores. E caracterizam, em cada giro, cada um dos discursos,
sinalizando que há somente 4 possibilidades de discursos – exceto quando se trata do
discurso capitalista de Lacan (1972/inédito), que será tratado mais adiante.
56

Assim, nos diz Lacan (1969/70-1992): “Se parece legítimo que a cadeia, a
sucessão de letras dessa álgebra, não pode ser desarrumada, ao nos dedicarmos à
operação de quarto de giros, iremos obter quatro estruturas, não mais, das quais a
primeira mostra de algum modo o ponto de partida.” (p. 12). Lacan começa pelo
discurso do mestre e ao realizar os giros, os outros 3 discursos se configuram nos
matemas. Há ainda a questão de um impossível e uma impotência em cada discurso,
pela qual começaremos.

2.1.1 A Impossibilidade, impotência e potência dos discursos

A figura abaixo localiza o impossível representado pelo vetor horizontal entre o


agente e o outro; a impotência é representada pelas barras verticais entre a verdade e a
produção, representação que estrutura e orienta a lógica dos 4 matemas dos discursos
formalizado por Lacan no seminário XVII. Vejamos a estrutura:

Figura 1: A estrutura dos 4 discursos

Esquema adaptado (Bousseyroux, 2012, p. 186).

Vejamos do que se trata a impossibilidade e a impotência. A impossibilidade se


trata de que aquilo que o agente demanda do outro, este outro não consegue
corresponder plenamente. Ou seja, governa-se através do discurso do mestre, faz-se
desejar através do discurso da histérica, psicanalisa-se através do discurso analítico e
educa-se através do discurso universitário, mas nenhuma destas realizações é plena. A
impotência nos discursos se trata do fato de que não há relação entre a produção e a
verdade, pois mesmo que o sujeito queira tal encontro, ele esbarra no real de seu
sintoma que não permite submissão total a tal produção demandada do agente.
57

Observemos que nenhum vetor chega na verdade. Isso acontece porque o Outro também
é barrado e não tem uma resposta que promova o encontro da produção como a verdade.
Como aponta Lacan (1960a/1998):

Partamos da concepção do Outro como significante. Qualquer enunciado de


autoridade não tem nele outra garantia senão a sua própria, pois lhe é inútil
procurar por esta num outro significante, que de modo algum pode aparecer
fora deste lugar. É o que formulamos ao dizer que não existe metalinguagem
que possa ser falada, ou, mais aforisticamente, que não há Outro do Outro. (p.
827)

Não havendo Outro do Outro, a falta de garantias é inerente ao ser falante. E é


justamente por estar submetido à linguagem que ele busca essa verdade como garantia
também pelo mesmo fato que lhe é garantido se dar com a impotência de obtê-la.
A impotência diz do fato de que a produção do discurso jamais poderá produzir
uma verdade sobre o que qualquer um dos discursos demande, o que é uma
consequência do impossível. Segundo Silveira (2013):

A impotência será relacionada com a parte inferior dos discursos,


especificamente com um lugar que resulta do trabalho, ou seja, a sua
produção, em relação àquilo que ocupa o lugar da verdade. Aquilo que o
discurso produz é impotente em mostrar a verdade deste mesmo discurso, não
há relação entre a produção e a verdade (s/n).

Se não há relação entre a produção e a verdade, por conseguinte os discursos são


impotentes em dar conta da verdade do gozo do sujeito. Silveira (2013) nos diz ainda
que Lacan vai além do impossível de Freud, “vai articular o caminho por onde a
impossibilidade é mantida, ou seja, vai formular a impotência como aquilo que nos
detém diante do real e do impossível. E o que nos detém diante do real é a nossa relação
com a verdade. É por nos tornarmos amantes da verdade que ficamos paralisados em
nossa impotência” (s/n).
Observaremos agora, nos matemas dos discursos de Lacan, que a partir do
discurso do mestre há um giro dos elementos (S1, S2, $, a) em cada matema, e cada giro
culmina em um novo discurso. Descreveremos os giros apresentando os matemas dos 4
discursos, demonstrando a impossibilidade e a impotência em cada uma deles.
Começaremos pelo discurso do mestre e seguiremos com os outros na sequência dos
giros no sentido horário, vejamos:
58

O agente, S1, dominante no discurso do mestre, tem função de lei. Neste discurso
há uma impossibilidade entre o S1 e o S2. Trata-se, segundo Lacan (1969-70/1992), da
impossibilidade do significante mestre – S1 enquanto agente – dominar completamente
o S2 – enquanto saber no lugar do outro, – pois não é possível que o outro, S2, conclua
totalmente a produção demandada pelo agente, S1. Com isso há sempre uma perda, que
no matema é representada pelo a mais-de-gozar. Isso significa que se governa, mas a
produção não é idêntica à demanda do agente. Esta seria a referida impossibilidade de
governar freudiana.
A impotência no discurso do mestre está no fato de que o objeto de sua produção
não dá conta da verdade do sujeito, revelando uma perda de gozo, a mais-de-gozar,
apontando a impotência de relação entre a produção do discurso com a verdade do real
do sujeito. A potência do discurso do mestre está no simples fato de ele se identificar
como sujeito do poder e ser reconhecido pelo escravo como tal, ou seja, em fazer o
escravo crer que é assim, simplesmente porque é assim.

A função da dominante no discurso da histérica se dá em função da verdade do


objeto faltoso, a mais-de-gozar. Isso se dá pois é a partir de sua falta de gozo,
representada pelo objeto a mais de gozar, que a histérica, enquanto $, domina o
discurso. Assim ela coloca o mestre a trabalhar para produzir um saber que tampone sua
falta de gozo ao mostrar sua divisão, demandando um saber sobre esta falta de gozo.
59

Neste discurso há uma impossibilidade entre o $ e o S1. Trata-se da


impossibilidade do $ aceitar a resposta produzida pelo outro, S1, pois a histérica não se
sente representada pelo saber do mestre. Por isso ela continua insatisfeita como quer,
pois sua demanda é de desejo, e de um desejo insatisfeito. E é assim que ela mantém seu
lugar de sujeito dominante.
A impotência neste discurso está no fato de que a produção do discurso, S 2, não
dá conta da verdade sobre o real do gozo histérico. É a revelação da perda de gozo, a
mais-de-gozar, o que aponta a impotência da relação entre a produção do saber e a
verdade da falta na histérica, pois ela não se sente representada pelo saber do mestre. A
potência deste discurso é a manutenção do sintoma em função do desejo de desejo
insatisfeito, que atrapalha a bela ordem do discurso do mestre.

O agente do discurso do analista, função da dominante, é o objeto a-mais-de-


gozar ocupado pelo analista – lembrando que o discurso do analista é o único que
coloca o $ no lugar do outro – que convoca o sujeito, $, a produzir uma verdade sobre
seu saber. Neste discurso o analista, enquanto objeto a mais-de-gozar, tem a função de
causar o desejo do sujeito, colocando-o a trabalhar para produzir a lei sobre a verdade
de seu próprio desejo.
A impossibilidade neste discurso se dá pelo fato de que é impossível que a
demanda do agente, no caso o analista enquanto a-mais-de-gozar, exclua a necessidade
de gozo do sujeito. E este seria o referido impossível de curar freudiano.
A impotência neste discurso se dá pelo fato de que a produção de uma lei do
desejo, S1, não dá conta do real da verdade do saber, pois não é possível produzir uma
lei do desejo que dê conta do saber sobre a castração, já que o objeto a-mais-de-gozar,
enquanto agente, é faltoso por essência, apontando que não há Outro do Outro. Assim, a
produção não tem relação com a verdade.
60

Sobre a potência do discurso do analista, Silveira (2013) nos dirá que “Todos os
discursos se relacionam com o real, com o impossível, mas é somente a partir da
emergência do discurso do analista que esta questão fica colocada; eles só ficaram
explícitos após o advento da psicanálise” (s/n). Ou seja, a potência do discurso do
analista está em implicar o sujeito com sua castração e como consequência aponta a
castração também nos outros discursos, já que não há Outro do Outro.

O agente do discurso universitário, função da dominante, é o Saber, S 2, que,


apoiado na camuflagem do S1, significante mestre, aponta para uma falta de saber no
outro, representado pelo objeto a-mais-de-gozar, o explorado neste discurso. A função
do discurso é produzir um sujeito suturado de sua falta de saber, pois é saber do agente
que domina, buscando produzir um sujeito ancorado no saber científico, educado,
adequado e obediente à autoridade científica proposta como mentora do saber,
destituindo o sujeito de seu saber.
A impossibilidade deste discurso está no fato de que não se realiza plenamente,
pois o sujeito, à sua revelia, não se permite adequar-se a tal saber, já que existe um saber
do sujeito sobre ele mesmo que não pode ser destituído.
A impotência se trata de que não há relação entre o $ produzido pelo discurso e a
verdade real da lei representada pelo S1. Sua potência está em fazer o escravo perder seu
saber, pois o saber passa a ser da ciência, que se coloca como dona do saber,
apresentando argumentos da razão como resultados de estudos e não como uma ordem a
ser obedecida pelo simples poder que lhe é conferido, diferente do que ocorre no
discurso do mestre em que o escravo é dono do saber. Sua potência está em fazer o
sujeito se comportar como se não tivesse saber.
Enfim, todos os discursos apresentam uma impossibilidade e uma impotência.
Isso é estrutural, e como nos diz Lacan (1969-70/1992):
61

Ao propormos a formalização do discurso e estabelecendo para nós mesmos


no interior dessa formalização, algumas regras destinadas a pô-la à prova,
encontramos um elemento de impossibilidade. Eis o que está propriamente na
base, a raiz do que é um fato de estrutura. E é isso na estrutura que nos
interessa no nível da experiência analítica. (p.43).

Portanto, como nos diz Silveira (2013), “Os agentes dos discursos são agentes de
alguma coisa que é impossível” (s/n), ou seja, ainda que se governe, que se analise, que
se eduque e que se faça desejar, não se faz possível a plenitude destas façanhas em
nenhum dos discursos. Mesmo assim não paramos de repetir as tentativas de fazer os
discursos funcionarem, sem sucesso, mas uma necessidade para a manutenção dos
laços.
Assim, é o advento da psicanálise que possibilita construir a emergência dos
discursos a partir da história e com isso observar a impossibilidade de ultrapassar a
rocha da castração e a impotência que nos detém diante desse impossível da completude
em qualquer um dos 4 discursos, pois trata-se do real em jogo, real este que é
estruturalmente impossível.
Apesar desta impossibilidade, Lacan (1969-70/1992) aponta que “O sujeito
participa do real, justamente, por ser aparentemente impossível” (p. 97). Participar,
porém, não significa realizar-se nele, ou seja, o acesso ao gozo é limitado, mas goza-se,
e a impotência é o que nos mostra que a repetição, por mais que se repita a busca pela
verdade do objeto, é impossível encontrá-lo. Nas palavras do próprio autor:

Trata-se de articular uma lógica que, por mais frágil que pareça – minhas
quatro letrinhas que não parecem nada, salvo que temos que saber as regras
segundo as quais elas funcionam –, é ainda bastante forte para comportar
aquilo que é o signo dessa força lógica, a saber, a incompletude. Isto os faz
rir. Mas tem uma consequência muito importante, especialmente para os
revolucionários – é que nada é tudo. Por onde quer que encarem as coisas, de
qualquer modo que as revirem, a propriedade de cada um desses esqueminhas
de quatro patas é a de deixar sua hiância. (LACAN, 1969-70/1992, p. 193).

Podemos ver que essa hiância, esse buraco que impede o sujeito de alcançar a
completude, é a marca condicional dos discursos de Lacan (1969-70/1992) e que todos
os 4 discursos são formas de ordenação de gozo e que “toda a repetição se funda num
retorno ao gozo” (p. 44).
Há ainda o fato de que, como aponta Quinet (2012): “Nossa sociedade se
estrutura com os laços sociais de dominação e seus avessos” (p. 58). O discurso do
mestre é o avesso do discurso psicanalítico, pois onde o primeiro oferece uma lei
universal, o segundo oferece a possibilidade de uma lei do desejo. O discurso
62

universitário é o avesso do Discurso da histérica, pois onde o primeiro oferece um saber


sobre o sintoma, o segundo questiona este saber com seu próprio sintoma.
É importante deixar claro desde já que nenhuma cultura de nenhuma época se
fixa em nenhuma destas 4 formas discursivas, qualquer que seja seu modo de
funcionamento. Estas 4 formas discursivas giram nas formas de funcionamento das
culturas em todas as épocas. Porém, segundo Castro (2009, p. 3), “isso não significa que
se pode conceber a história como uma sucessão de discursos, tal como se pensa, em
termos marxistas, a história como sucessão de modos de produção. Não obstante, é
perfeitamente possível associar determinados fenômenos históricos a determinados
discursos, e também conceber mudanças de hegemonia entre os discursos”. Assim, ao
longo da história, nota-se: o discurso do mestre predominante no feudalismo, o discurso
da histérica predominante na época de inquisição, o discurso universitário predominante
na atualidade e o discurso do analista predominante, não numa época, mas na análise...
Dadas as 4 formas discursivas de Lacan, tendo apontado a impossibilidade e a
impotência em cada uma, a seguir trataremos de suas características, especificidades,
sua política, seus modos de gozo e seus efeitos para o laço social. Estas são reflexões
nos dão subsídios para pensar que o discurso do analista pode implicar alguma forma de
resistência ao discurso capitalista, pois esclarecem que todo discurso tem sua
impossibilidade e sua impotência, características que ao não serem admitidas pelo
discurso capitalista, revelam sua astucia em tentar esconder o obvio, como veremos no
item 2.6 desta parte. Passemos agora ao discurso do mestre.

2.2 Discurso do mestre

Não há mil maneiras de fazer leis (...)


porque há, talvez, leis de estrutura que
fazem com que a lei seja sempre a lei
situada nesse lugar que chamo de
dominante no discurso do mestre.
(LACAN, 1969-70/1992, p. 41)

Algo de essencial sobre o discurso do mestre para a psicanálise, como aponta


Lacan (1964/1998), é o fato de que ele caracteriza o discurso de entrada na linguagem,
63

ou seja, sem passar pelo discurso do mestre não haveriam seres da linguagem
caracterizados como humanos.
Para tratar do discurso do mestre, comecemos pelo Seminário XI onde Lacan
(1964/1996) fala sobre a entrada do sujeito na linguagem e sua estrutura alienada, o que
culminará na formalização do discurso do Mestre.
Neste seminário XI, Lacan (1964/1998) formalizará os conceitos de alienação e
separação21, apresentando a alienação do sujeito como algo que o determina à sua
revelia (em concordância com Freud), em função de sua alienação como efeito da
linguagem, pois a entrada na linguagem veda o acesso ao real, estruturando o sujeito em
uma constituição alienante. A alienação em psicanálise lacaniana é tida como forma
única de inserção do sujeito na cultura em função de sua entrada na linguagem, pois é
pela via da alienação à linguagem que o sujeito dividido existe, considerando-se que não
se pode falar de sujeito dividido fora dela.
O processo de alienação é apresentado por Lacan como correspondente ao
encontro do sujeito com a linguagem que se estabelece na relação do sujeito com o
Outro. Outro este representado pelos pais ou pelos primeiros cuidadores da criança que
fornecerão para ela os primeiros significantes, necessários para que ela possa servir-se
da linguagem. A este Outro é dirigido um apelo do sujeito sobre o que este Outro quer
dela (a criança), e a partir de uma resposta que o próprio sujeito cria, em função do
próprio desejo, que ele se constitui como ser desejante. Porém, para não lidar com a
responsabilidade de seus próprios desejos, o sujeito o atribui como um desejo do Outro.
Sobre esta forma de funcionar, Lacan (1957a/1998) nos diz: “O inconsciente é
esse desejo do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à
promessa, sua própria mensagem esquecida” (p. 440). É nesta perspectiva que Lacan
(1962/2005) afirma que o inconsciente é discurso do Outro e que, portanto, “o desejo do
homem é o desejo do Outro” (p. 31). Este posicionamento de Lacan (1953-1954/1986,p.
172) já aparece desde o Seminário I, em que o autor utiliza o conceito de « outro » com

21
Lembremos que a separação pode ou não ocorrer no sujeito da linguagem. Se ela não ocorre, é porque o
sujeito se recusa à castração simbólica. É o caso da psicose em que por algum motivo a criança não lê nos
significantes apresentados pelo Outro (mãe) a possibilidade de produzir uma cadeia de significantes com
bordas como acontece na neurose, ou seja, produz uma cadeia que transborda, pois ela não se sente
causada pelo desejo da mãe. De alguma maneira o desejo da mãe fica revelado para a criança como
desejo de gozar dela (a criança) como um objeto. Daí essa criança não consegue estabelece a operação da
separação, tornando-se um sujeito fora do discurso. Mesmo dentro da castração simbólica em que o
sujeito aceita a separação, uma terceira estrutura pode se dar se o sujeito criar um fetiche para lidar com o
horror da castração colocando-o como alternativa a ela. Assim, através do fetiche, ele desafia a lei e a
transgride, traços fundamentais da estrutura perversa.
64

« o » minúsculo, e se deu a partir de suas leituras de Hegel a respeito da necessidade de


reconhecimento do outro para a constituição subjetiva. Kojève (1933-1939/2002), numa
leitura da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, ao tratar da questão do desejo, aponta
que “O homem se confirma como humano ao arriscar a vida para satisfazer seu desejo
humano, isto é, que busca outro desejo. Ora, desejar um desejo é pôr-se no lugar do
valor desejado por esse desejo. (...) desejar o desejo do outro é, em última análise,
desejar que o valor que eu sou ou que represento seja o valor desejado por esse outro”
(p.14). Ou seja, desejo do sujeito de reconhecimento de si como valor autônomo. É
nesse sentido que Lacan afirma com Hegel que o desejo do homem é o desejo do Outro.
Esse Outro funciona como tesouro dos significantes, pois é a partir dele que a
cadeia de significantes se institui em função desta busca de reconhecimento. O
significante é o que instaura o objeto a em sua infinitude, objeto para sempre perdido,
pois a cadeia de significantes é infinita.
Tal objeto a representa uma operação constante de falta que causa desejo no
sujeito, ou seja, não há desejo sem falta. Esse desejo se apresenta na busca de um objeto
da realidade, mas é impossível ser encontrado, instaurando uma falta inerente ao ser
falante, representando a renúncia ao gozo pleno que o sujeito faz ao entrar na
linguagem.
Essa falta movimenta infinitamente o desejo do neurótico, sempre na busca da
completude, o que é impossível, de modo que o objeto a causa de desejo é o que
representa esta impossibilidade, pois o desejo é sempre desejo de outra coisa.
Essa breve descrição da entrada na linguagem do sujeito se fez necessária
porque é importante ter claro que é a partir da entrada na linguagem que o sujeito
renuncia ao gozo pleno e aliena-se ao Outro, sendo que esse Outro é o mestre que Lacan
(1968-69/2008) colocará como agente, dominante no matema do discurso do mestre ao
formalizá-lo no Seminário XVII. Segundo Lacan (1969/70-1992):

(...) é fato, determinado por razões históricas, que essa primeira forma, a que
se enuncia a partir desse significante que representa um sujeito ante outro
significante, tem uma importância toda particular na medida em que, entre os
quatro discursos, ela se fixará no que iremos enunciar este ano como a
articulação do discurso do mestre. (p.18).
65

O mestre domina, o escravo é dominado, essa é a característica central do


discurso do mestre. Segundo Kojève (1933-1939/2002), o mestre se impõe pela
coragem de correr o risco de se submeter à luta de morte, diz ele que “Somente nessa e
por essa luta a realidade humana se engendra, se constitui, se realiza e se revela a si
própria e aos outros (...). Para que a realidade humana possa constituir-se como
realidade reconhecida, é preciso que ambos os adversários continuem vivos após a luta”
(pp.14-15), isso para que a partir de então, aquele que foi derrotado, recuse-se a arriscar
a vida novamente, restringindo a satisfação de seu desejo para satisfazer o desejo do
Outro.
Sobre o discurso do mestre, nos diz Lacan (1969/70-1992): “S1 é, para andar
rápido, o significante, a função de significante sobre a qual se apoia a essência do
senhor (...) o campo próprio do escravo é o saber S2” (p.18).
No discurso do mestre, Lacan (1969/70-1992) coloca o objeto a no lugar da
produção, caracterizando-o como mais-de-gozar. O mais-de-gozar para Lacan é perda
de gozo, assim como para Marx a mais-valia é perda de trabalho. No caso do discurso
do mestre Lacan coloca o mais-de-gozar no lugar da produção, porque a produção do
escravo vai direto para o bolso do senhor (p.19). Lacan faz esta colocação articulando-a
à mais-valia descoberta por Marx. Sobre o processo de produzir mais-valia, Marx
(1867/2010) nos relata que o capitalista tem seus objetivos:

Primeiro, quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um


artigo destinado à venda, uma mercadoria. E segundo, quer produzir uma
mercadoria de valor mais elevado do que o valor conjunto das mercadorias
necessárias para produzi-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção
e força de trabalho, pelos quais antecipou seu bom dinheiro no mercado.
Além do valor de uso quer produzir mercadoria; além de valor uso, valor, e
não só valor, mas também valor excedente (mais-valia). (p.220).

Na atualidade, é a produção do trabalhador que vai direto para o bolso do


capitalista, aqui articulado ao mestre do discurso, que produz o valor excedente,
sustentáculo do sistema capitalista.
66

Ao se permitir ser extorquido em sua força de trabalho, o trabalhador é o escravo


da teoria de Hegel. Hegel se refere a uma luta com armas, espada por exemplo. No caso
do capitalismo, se houve uma luta que elegeu um mestre (o capitalista) foi pelo fato de
ele ter arriscado seu dinheiro (espada) nos investimentos tecnológicos que fazem os
meios de produção e o trabalhador (escravo) se submeteu porque não tinha dinheiro
(espada) e morreria de fome se não se submetesse. Pode-se dizer que essa é a luta de
morte no capitalismo e é uma luta de morte covarde, já que nela o trabalhador (escravo)
não tinha dinheiro para investir em meios de produção (espada).
A luta no entanto continua até hoje, pois há concorrência entre os capitalistas,
eles arriscam seu dinheiro (espada) entre eles, numa luta por reconhecimento. Qualquer
capitalista que abra mão desse desejo de reconhecimento que ocorre em favor de sua
conservação no mercado capitalista, entra em falência, ou seja, se torna escravo.
Voltemos ao matema do discurso do mestre. O que caracteriza o discurso do
mestre é que, tendo o S1, representante da lei, como agente deste discurso e portanto
como castrador, ele (DM) é um sustentador da lei. Vejamos isso com Lacan
(1970/2003): “Naquele a que chamo discurso do mestre, é simplesmente o professor, o
legislador, que sustenta a lei, essa lei a qual é maravilhoso que ninguém supostamente
ignore, por ser ela o próprio mestre” (pp. 305-306), isso seria o mesmo que dizer, “eu
mando porque mando”.
Tendo em vista que o discurso do mestre se caracteriza como sustentador da lei
– fazendo com que o mais-de-gozar como função de renúncia e perda de gozo, coloque
em funcionamento a busca do sujeito pelo gozo pleno que ele acredita ter perdido, mas
que é impossível de ser alcançado –, o gozo perdido dá lugar ao objeto a mais-de-gozar.
Sendo o gozo pleno inalcançável, por estabelecer-se como uma instância do real,
inimaginável, a alienação do sujeito se caracteriza por essa impossibilidade de realizar-
se em tal gozo impossível, suscitando a presença do real do sintoma. O sintoma, a seu
turno, é um efeito que determina a impossibilidade de governar, pretensão do discurso
do mestre. No entanto, a política do discurso do mestre é exercer o poder de fazer com
que as coisas andem.
É o discurso histérico que se apresenta como sintoma ao discurso do mestre,
atrapalhando sua bela ordem e presentificando assim a impossibilidade de governar. É
do discurso histérico que trataremos no próximo tópico.
67

2.3 O discurso da histérica

O psicanalista, de início, teve apenas que


escutar o que a histérica dizia. Quero um
homem que saiba fazer amor. (LACAN,
1969/70-1992, p. 193, grifos do autor).

Comecemos retomando Freud (1886-1899) em seus estudos pré-psicanalíticos


para acompanharmos a evolução da psicanálise a partir de sua escuta às histéricas e a
formalização do discurso histérico por Lacan. Em 1885, Freud foi premiado com uma
bolsa de estudos e partiu para o Hospice de la Salpêtrière, em Paris, para dar
continuidade a seus estudos de neuropatologia.
Freud solicitou tal bolsa de estudos por saber que lá encontraria um grande
acervo de material clínico e também porque lá lecionava Charcot. Este era um médico
de renome na época, com quem Freud queria aprender e porque lhe parecia que havia
algo diferente e característico em função do fato de que seus estudos na época se
tratavam das doenças nervosas crônicas e sua base anatomopatológica, questão que
muito lhe interessava. É também o momento em que Freud começa a tratar os
problemas da histeria com a hipnose, em busca de deixar de lado a neurologia,
voltando-se à psicopatologia.
Segundo Freud (1886/1990), naquele momento, a histeria caracteriza-se
“cientificamente apenas por sinais negativos (...) e carrega a ira de alguns preconceitos
muito difundidos” (p. 44). Dentre esses preconceitos, era dito por exemplo que os
sintomas se tratavam de fingimento por parte das histéricas. Charcot chegou a
reconhecer os sintomas histéricos como reais, mas sem negligenciar as precauções
exigidas pela insinceridade do paciente. Este era um momento em que o método da
hipnose era considerado bem sucedido, inclusive por Freud.
No período pré-psicanalítico, Freud (1888/1990) conclui que o tratamento da
neurose “dificilmente pode ser abordado em poucas palavras. Nenhuma outra doença
dispõe o médico a fazer tantos milagres ou mostrar-se tão impotente” (p. 90). Sobre essa
questão, Castro (2006), nos dirá que:

A evidência histórica da impotência do saber médico (...) nos foi dada pelos
procedimentos dotados no tratamento da histeria: eletrochoques e
neurocirurgias (nos casos graves), medicação psicotrópica (nos casos agudos)
68

e atamentos hidropáticos (nos casos ocasionais) e, ainda, pelo uso da


sugestão hipnótica como procedimento técnico ao qual o próprio Freud
recorreu durante o período pré-psicanalítico. O uso da sugestão hipnótica,
durante esse mesmo período (...) foi uma manifestação, a mais visível
possível, do governo do significante-mestre (S1) nos tratamentos conduzidos
por Freud segundo o discurso do mestre: o mestre-Freud a impor – tanto a
seus leitores quanto a seus pacientes – os significantes de uma nova teoria.
(p. 11).

Nesta citação podemos ver que era um momento em que Freud passava seus
ensinamentos enquanto um mestre, discurso do mestre de Lacan, mas o autor aponta
também que “Coube ao pioneiro (...) a preocupação de transmitir suas descobertas
recorrendo, para tal, a uma dose considerável de didatismo” (CASTRO, 2006, p. 12).
Apontamos também que não só essa dose de didatismo foi necessária como
também foram importantes os estudos pré-psicanalíticos de Freud para o que ele veio a
desenvolver posteriormente. A consequência dessa busca tem sido desde então o
desenvolvimento da psicanálise, tanto freudiana quanto lacaniana, portanto, esforços de
fundamental importância para o desenvolvimento da Psicanálise como um todo.
Os “Estudos sobre a histeria” de Freud (1893/1995) são fundamentais para o fim
do período pré-psicanalítico. Nele, ao prosseguir com seus estudos sobre a histeria,
começando com o caso de Anna O., Freud entende que as histéricas não mentem, elas
falam com algo de seu inconsciente. Assim ele começa a dar um status central à
associação livre da fala nos tratamentos psicanalíticos. Segundo Castro (2006):

Na dimensão da cura, o sintoma de Anna O. envolveu esse viés


revolucionário. Sintoma que, no mínimo, revolucionou os modos usuais de
tratamento, marcando assim um tempo com a invenção freudiana de um novo
método, a associação livre, agora, sim, consonante com a ética do desejo e
distanciada dos poderes da sugestão. Sintoma – da sublime Anna O. – que
abriu ao mestre de Viena a perspectiva dos poderes da fala, em forma de
deixar-dizer, produzida pelo sujeito histérico em tratamento analítico,
tratamento esse doravante afastado da sugestão hipnótica. Conduzir o
tratamento sem, contudo, dirigir o sujeito, tornou-se, então, a partir daí, um
preceito ético peculiar à psicanálise. (p.16).

Além do caso de Anna O. (de 1880), houve o caso da Sra. Emny Von (de 1889).
Esta foi quem disse, nas palavras de Freud (1893/1995), “num claro tom de queixa, que
eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a
deixasse contar-me o que tinha a dizer” (p. 95). Segundo Roudinesco e Plon (1998):

Na história oficial e mítica das origens da psicanálise, atribuiu-se a Emmy von


N., portanto, a invenção da cena psicanalítica, assim como se atribuiu a Anna O.
a invenção do tratamento psicanalítico (por “limpeza de chaminé”). Emmy
69

fabricou, segundo se disse, as proibições necessárias a uma nova técnica de


tratamento, fundamentada na retirada do olhar. Depois dela, o médico tornou-se
psicanalista e se instalou fora da visão do doente, renunciando a tocá-lo e se
obrigando a escutá-lo. (p. 525)

Assim, sem nos determos mais nas inúmeras minúcias da clínica da histeria de
Freud, que o levaram a intensificar a importância da regra fundamental da associação
livre no tratamento psicanalítico, apontamos para o fato de que foi a partir destes
estudos sobre a histeria que tal regra se consolidou como fundamental para a condução
de uma análise, tornando-se um conceito central e irrevogável ao tratamento no método
psicanalítico até hoje.
Uma consequência importante, advinda da consolidação da regra fundamental da
associação livre na psicanálise, é que Freud, no decorrer dos anos de sua experiência,
conclui que o psicanalista não deve intervir de maneira a conduzir o paciente – como
era feito no caso da hipnose com a sugestão. Usando conceitos cunhados por Lacan
Segundo Castro (2006) para Freud:

Já bastavam os poderes do significante na estrutura subjetiva,


tornando-se desnecessário e até mesmo recomendável, eticamente,
não reduplicá-lo na sugestão. Doravante, a redução da sugestão
(tendendo para zero) e, em seu lugar, a implicação do sujeito no lugar
do trabalho - como meio de manejar a transferência - firmou-se como
um procedimento ético no campo clínico-freudiano. (p.19)

Assim, a partir dos estudos sobre a histeria, cada vez mais Freud (1893-
1895/1995) começa a reduzir a sugestão até sua completa eliminação. A partir do
manejo da transferência na direção do tratamento, a eliminação da sugestão se torna um
procedimento ético da clínica freudiana. Este procedimento indicava que seria
necessário que o analista afastasse qualquer preconceito, questão moral ou opiniões
pessoais em suas intervenções com o paciente, permitindo assim que o sujeito se
implicasse com seu sintoma e produzisse, ele mesmo, as respostas que lhes fossem
possíveis.
A teoria psicanalítica propõe que as intervenções do analista devem interpelar as
formações inconscientes na associação livre do paciente, permitindo a verdade do
desejo que se repete nas demandas decorrentes de tal regra fundamental (associação
livre). A esse respeito, segundo Castro (2006):
70

A nova metodologia (calcada na associação livre) de abordagem da histeria


postulava, para o sujeito em análise, a regra fundamental, e exigia, por parte
do analista, ocupar a posição daquele que não responderia às demandas do
sujeito, com vistas à abordagem do desejo. Frustrar o sujeito, deixando-o
assim, pelo manejo da transferência, a desejar, tornou-se um lema ético
derivado da clínica freudiana. Freud acreditou que a frustração levaria o
sujeito à regressão e à repetição, na/sob transferência, de cenas inconscientes,
havendo assim uma chance de serem recordadas ou construídas e elaboradas
(p.19).

Bem, é a partir dos estudos sobre a histeria que Freud descobre a importância da
associação livre, mas é ao sonho da bela açougueira22 que Lacan (1969-70/1992) recorre
para formalizar o discurso da histérica em função da necessidade do desejo insatisfeito
da bela.
Num primeiro momento, para analisar o sonho, Freud solicita que a paciente lhe
diga de que material decorreu o sonho. Ela responde que deseja comer sanduíche de
caviar todas as manhãs, mas mesmo o marido permitindo, ela implorava que ele não lhe
desse nenhum caviar. A partir disso, Freud (1900/1987) propõe a seguinte análise:
“Naturalmente, o marido a deixaria obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido.
Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer
com ele por causa disso.” (p. 162, grifos do autor). Ou seja, ela frequentemente
mostrava ao marido seu desejo e ao recusar que ele o realizasse, mantinha seu desejo
insatisfeito para que ele continuasse a querer realizar sempre sem sucesso, insucesso
que a interessava.
Freud continuou com a análise deste sonho, mas o que foi trazido aqui basta para
mostrar o que nos aponta Lacan (1957-58/1999). No seminário 5, Lacan repassa toda a
análise de Freud e aponta o seguinte:

O problema levantado por Freud é a relação da identificação com a amiga


invejosa. A propósito disso quero chamar-lhes a atenção para o seguinte: o
desejo como o que nos deparamos desde os primeiro passos da análise, é a partir
do qual se desenrola a solução do enigma, é o desejo como insatisfeito. (...) Qual
é a função deste desejo insatisfeito? (...) e o que descobrimos a esse respeito é a
subjacência de uma situação que é a situação fundamental do homem entre a
demanda e o desejo, (...) à qual efetivamente os introduzo através da histérica,
porque a histérica fica presa na clivagem cuja necessidade lhes mostrei à pouco,
entre a demanda e o desejo. (...) Que deseja ela? Ela deseja caviar. Basta
simplesmente ler. E que quer ela? Quer que não lhe deem caviar. (...) O que se
exprime é uma estrutura que, além de seu aspecto cômico, deve representar uma

22
O sonho da Bela Açougueira é o sonho de uma paciente que Freud atendeu. Segue o relato: “Eu queria
oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e
comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam
fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito.
Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.” (FREUD, 1900/1987, p.161).
71

necessidade. A histérica é, precisamente, o sujeito para quem é difícil estabelecer


com a constituição do Outro como grande Outro, portador do signo falado, uma
relação que lhe permita preservar seu lugar de sujeito. (LACAN, 1957-58/1999,
p. 376).

Notamos então que, ao manter o desejo insatisfeito, ou seja, apontando ao Outro


sua impossibilidade de atender sua demanda, a histérica preserva seu lugar de sujeito
desejante, foi isso que Lacan (1957-58/1999) valorizou no sonho da bela. Sendo assim,
torna-se lógico porque Lacan (1969-70/1992) escreve o matema do discurso da histérica
como aquele que atrapalha a bela ordem do discurso mestre. Basta que ele tente
responder ao seu desejo para que ela o desbanque e siga com sua repetida queixa de
insatisfação.
Daí também a importância em uma análise de o sujeito neurótico histerizar seu
discurso e de Lacan formalizar o discurso da histérica, pois o tratamento analítico abre
espaço para que o sintoma apareça fazendo com que o analisante questione seu gozo,
endereçando uma pergunta ao analista em quem supõe saber. Não haverá por parte do
analista em sua função uma tentativa de responder tal demanda, promovendo a
histerização do discurso na associação livre, e segundo Lacan (1969-70/1992):

O que a histérica quer que se saiba é, indo a um extremo, que a linguagem


derrapa na amplidão daquilo que ela, como mulher, pode abrir para o gozo. Mas
não é isto que importa à histérica. O que lhe importa, é que o outro chamado
homem saiba que objeto precioso ela se toma nesse contexto de discurso. Não
estará, afinal, o próprio fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela
dá ao outro, como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histeriza
seu discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer
referência que não seja a das quatro paredes que o envolvem, e que produza
significantes que constituam a associação livre soberana, em suma, do campo. (p.
32).

Lacan dá uma importância especial ao discurso da histérica justamente por ele


apresentar o sintoma como aquilo que atrapalha a bela ordem do discurso do mestre.
que tem como sua política a segregação.
Como nos outros três discursos formalizado por Lacan (1969-70/1992), o da
histérica também comporta sua impossibilidade, pois é um desejo que não se realiza
plenamente. Sua especificidade é a de, através de seu sintoma, causar o desejo de saber
do mestre e recusar esse saber sobre seu gozo em função de sua insatisfação intrínseca,
preservando seu sintoma e o seu lugar de sujeito desejante. No Seminário XVII, Lacan
(1969/70-1992) aponta tal caráter (de preservar seu lugar de sujeito) na histeria, da
seguinte maneira:
72

Seguindo o efeito do significante-mestre, a histérica não é escrava. Demos-lhe


agora o gênero sexual sob o qual esse sujeito se encarna mais frequentemente.
Ela faz, a sua maneira, uma espécie de greve. Não entrega seu saber. No entanto,
desmascara a função do mestre com quem permanece solidária, valorizando o
que há de mestre no que é o Um com U maiúsculo, do qual se esquiva na
qualidade de objeto de seu desejo. (p. 88)

Daí Lacan (1969-70/1992) apontar o discurso da histérica como aquele que


atrapalha a bela ordem do discurso do mestre, pois basta que o mestre tente responder
ao seu desejo para que a histérica rechace suas tentativas e siga com sua repetida e
interminável queixa de insatisfação, deixando o mestre a buscar um novo saber que
possa satisfazê-la. Lacan (1969-70/1992) diz ainda que:

O que a histérica quer (...) é um mestre. Isto é completamente claro. A tal ponto,
inclusive, que é preciso indagar se a invenção do mestre não partiu daí. Isto
arremataria elegantemente o que estamos traçando. Ela quer um mestre. É o que
está no cantinho acima e à direita, para não nomeá-lo de outro modo. Ela quer
que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas, mesmo assim,
que não saiba demais, para que não acredite que e1a é o prêmio máximo de todo
o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual e1a reine. Ela
reina, e ele não governa. (p.122)

E ela reina com seu sintoma. Segue-se o matema do discurso da histérica.

Discurso da Histérica - DH
agente outro
$-Sujeito barrado S1 - Lei

a- mais-de-gozar // S2 - Saber
verdade produção

O conceito de sintoma é desenvolvido no decorrer da construção teórica da


psicanálise freudolacaniana e é um conceito fundamental que orienta limites da prática
clínica em psicanálise. O Sintoma enquanto enigma representa a divisão do sujeito.
Vejamos com Quinet (2009a):

A constituição do sintoma analítico é correlata ao estabelecimento da


transferência que faz emergir o sujeito suposto saber, pivô da transferência. Esse
momento em que o sintoma é transformado em enigma é um momento de
73

histerização, já que o sintoma representa aí a divisão do sujeito ($). Enquanto o


sintoma faz parte da vida do sujeito — vida com a qual ele se acostumou antes
do encontro com o analista — pode ser considerado como um signo (ou sinal):
aquilo que representa alguma coisa para alguém. Quando esse sintoma é
transformado em questão, ele aparece como a própria expressão da divisão do
sujeito. É nesse momento que o sintoma, encontrando o endereço certo que é o
analista, se torna sintoma propriamente analítico. É isso que Lacan quer dizer
com a formulação “o analista completa o sintoma” — que corresponde ao
discurso da histérica. (pp.17-18, grifos do autor).

Vemos aí, então, dois momentos do sintoma, sintoma como signo e sintoma
como enigma, este segundo apontando para a indagação do sujeito sobre seu sintoma e
consequentemente sobre sua divisão. Assim, a histerização do discurso é fundamental
não apenas à histérica, mas a todos aqueles que se submetem a uma análise, pois
transforma o sintoma do sujeito (signo) em sintoma analítico (enigma), o que faz o
processo clínico de análise andar.
Quando Lacan (1969/70-1992) aponta que a histérica “Ela faz, a sua maneira,
uma espécie de greve” (p.88), ele quer dizer que ela atrapalha. Daí a função do analista
em conduzir que a histérica transforme o sintoma queixa em sintoma enigma,
propriamente analítico, para dar ao discurso da histérica uma importância que permita
que o sintoma de fato atrapalhe a bela ordem do discurso do mestre e não fique apenas
sendo um discurso de gritos sem efeitos. Se a histérica constrói um saber sobre seu
sintoma, ela pode fazer alguma coisa com isso, coisa que cause efeitos sobre seu gozo.
Importante indagar que há uma articulação entre o discurso da ciência e o
discurso da histérica, que se dá pelo fato de que a ciência tem sua histeria ao questionar
os conhecimentos postos e se por a demandar novos conhecimentos, nunca se dando por
satisfeita. Como ela nunca encontra a verdade, esse movimento é contínuo – já que não
é possível tamponar tal insatisfação – e coloca a ciência neste movimento histérico.
Como aponta Lacan (1969-70/1992):

Seja qual for a fecundidade que a interrogação histérica tenha mostrado,


interrogação que, como já disse, o introduz primeiro na história, e embora a
entrada do sujeito como agente do discurso tenha tido resultados muito
surpreendentes, sendo o primeiro deles a ciência, nem por isso a chave de
todos os mecanismos está ali. A chave está na indagação sobre o que cabe ao
gozo. (p. 168)

Lacan expõe aqui os dois lados do discurso da histérica, pois, além de contribuir
com a produção da ciência pela fecundidade em função da sua demanda, essa produção
não consegue responder a ela (histérica), pois o quer é manter seu desejo insatisfeito. A
74

ciência, articulada ao discurso do mestre, busca produzir resposta à indagação histérica


sobre seu gozo, porém sua demanda é inesgotável em virtude de seu desejo de
insatisfação.
Vemos aí que a ciência aparece tanto no discurso da histérica quanto no discurso
do mestre, pois se a ciência é mestre enquanto busca produzir um saber que dê conta da
verdade ou da insatisfação da histérica, ela também é histérica em função de suas
indagações ao comportar-se também insatisfeita. Lacan (1969-70/1992) já havia dito em
outro momento: “O que conduz ao saber não é o desejo de saber, o que conduz ao saber
é (...) o discurso da histérica” (p. 21), esse discurso que indaga o mestre e o faz
produzir.
Assim, no lugar de dominante, tomando o pai enquanto mestre, a histérica
demanda deste mestre um saber que dê conta de sua falta. Não aceitando o saber, ela
mostra que não é escrava obediente ao mestre, pois ela entra e sai do lugar de objeto,
tendo seu sintoma como aliado nessa inconstância de entrar e sair. Por isso poderíamos
dizer que o sintoma é política do discurso da histérica. Sobre o discurso da histérica,
Quinet (2009b) destaca ainda que:

No discurso histérico, a causa é o padecimento do sujeito, a miséria do ser


humano, e a verdade é justamente o objeto a, excluído da civilização, objeto
causa de desejo. É o que mais se aproxima do discurso do analista,
constituindo-se como sua condição de possibilidade na medida em que toma
a falta-a-ser como objeto causa da política. É a histerização do discurso
necessária à entrada em análise. (...) A política da histérica é que é a política
da falta-a-ser. (p.35)

Concordando com Quinet (2009b), podemos dizer ainda que é em função do


sintoma que se dá a política da falta-a-ser que sustenta o discurso da histérica, ao qual
Lacan (1969-70/1992) diz que ele (o discurso da histérica) “É muito importante, porque
é com ele que se desenha o discurso do analista” (p. 188, grifos nossos). Para
entendermos sua importância no desenho do discurso do analista, trataremos da
distinção entre o gozo da histérica e o gozo feminino.
Quanto ao gozo da histérica em Lacan, Checchia (2012) faz uma distinção entre
o gozo feminino e o gozo da histérica. Checchia (2012) aponta que a histérica goza
“incitando o mestre a produzir saber, ou melhor, provocando seu desejo de saber (...)
Foi somente no Seminário 20 (1972-73/1985) que ele passou a elaborar com maior
precisão o gozo feminino como um gozo Outro, não fálico, um gozo pautado pela lógica
do não-todo, sendo assim distinta da lógica do Um” (p. 300).
75

Achamos importante abordar esta questão para apontar que é a partir do gozo
feminino – da histérica curada, deste gozo não-todo que a faz recusar o saber do mestre
como complemento – que Lacan (1969-70/1992) vai desenhar o discurso do analista,
“ainda mais se levarmos em conta que a lógica do não-todo da posição feminina é
similar à lógica da posição do psicanalista, na medida em que (...) sua posição não é a
do Um, mas do a” (CHECCHIA, 2012, p. 300).
Por um lado o discurso da histérica, apesar de atrapalhar a bela ordem do mestre,
também contribui com a ciência do discurso capitalista. As indagações da histérica
colocam a ciência do capitalismo a trabalhar incessantemente para criar objetos de
consumo para suas demandas, incitando o consumo, interesse do capitalismo. Assim ela
se mantém consumindo, pois o objeto nunca é adequado. Nesse sentido que o discurso
da histérica não é revolucionário, pois não há objeto adequado a seu gozo. E a ciência
sempre terá que produzir outro objeto como nova tentativa, o qual será consumido e
novamente inadequado, colocando a ciência a trabalhar e a histérica a consumir,
respondendo assim ao discurso capitalista.
O discurso do analista, porém, – ao se opor a responder às demandas da histérica
fazendo com que, na histerização de seu discurso, ela entre em análise e busque a
castração em sua posição desejante, em contraponto à busca do saber do mestre como
complemento – dá voz ao seu desejo de desejo insatisfeito, fazendo com que o discurso
da histérica possa ser revolucionário. Sendo assim o discurso da histérica, na medida em
que sustenta o sintoma, tem um papel importante para que o discurso do analista
implique alguma forma de resistência ao discurso capitalista.
Lacan desenha o discurso do analista inspirado no desejo de desejo insatisfeito
da histérica. É no discurso do analista que a histérica pode encontrar um ponto de basta
para suas demandas impossíveis e se dar com a castração – gozo não-todo com qual o
analista já teve que se deparar para exercer sua função –, daí porque o desenho do
discurso do analista se dá a partir do discurso da histérica. Passemos então ao discurso
do analista.
76

2.4 O discurso do analista

Vejamos o que aqui está em jogo no


discurso do analista. Ele, o analista, é
que é o mestre. Sob que forma?
(LACAN, 1969-70/1992, p. 33)

O nascimento da psicanálise e os conceitos desenvolvidos no capítulo 1 deste


trabalho (gozo, desejo do analista, ética da psicanálise, objeto a, tempo lógico e ato
analítico) dão início ao desenvolvimento do discurso do analista, pois são conceitos que
foram desenvolvidos ao longo da teoria de Lacan, e que são utilizados por ele para
formalizar o discurso do analista. Sabendo disso, não nos repetiremos aqui em relação a
eles. A estratégia de apresentá-los no começo do trabalho se deu pelo fato de que tais
conceitos seriam abordados em todos os itens ao longo do presente capítulo sobre os
discursos, inclusive no discurso do mestre e da histérica, que são anteriores ao discurso
do analista, já que decidimos apresentar os discursos na sequencia dos giros no sentido
horário, como puderam ler, entendendo que isso facilita o entendimento do leitor. Isso
posto, vamos ao discurso do analista.
Dirigir o sujeito com aconselhamentos é o que faz um psicoterapeuta; o analista,
porém, dirige o tratamento. Se no discurso do analista ele está no lugar da dominante, é
porque ele domina seu próprio gozo narcísico que o impede de dominar ou dirigir a vida
do analisante, para deixa-lo produzir um saber sobre seu desejo. Ante passarmos para o
matema, vejamos essa dificuldade com Lacan(1969-70/1992):

É exatamente esta a dificuldade que tento aproximar tanto quanto posso do


discurso do analista – ele deve se encontrar no polo oposto a toda vontade,
pelo menos confessada, de dominar. Disse pelo menos confessada não porque
tenha que dissimulá-la, mas porque, afinal, é sempre fácil voltar a escorregar
para o discurso da dominação, da mestria. (pp. 65-66, grifos do autor)
77

Assim é apresentado o matema do discurso do analista, o objeto a, no lugar de


agente neste discurso representa justamente a falta de saber do analista sobre o $
enquanto analisante. Podemos ainda pensar a formalização do discurso do analista como
uma consequência lógica do desejo do analista, pelo fato de ele ser investido de objeto a
mais-de-gozar, representando perda de gozo, objeto este que é a política do discurso do
analista.
Sobre o S2 diz Lacan (1969-70/1992): “O Édipo desempenha o papel do saber
com pretensão de verdade, quer dizer, o saber que se situa, na figura do discurso do
analista no lugar do que designei há pouco como o da verdade”. (p.92). Daí, podemos
entender que o analista, fazendo semblante de objeto a causa de desejo, permite que o
analisante produza um saber sobre sua castração, uma lei própria, mas uma lei que no
fim das contas não tem relação com a verdade sobre a castração do sujeito, uma lei do
desejo. Nela este sujeito continua castrado, inclusive porque o próprio agente (a) não
lhe responde do lugar de saber, permitindo que o sujeito trabalhe para produzi-lo. Mais
adiante, diz Lacan (1969-70/1992):

Chegamos enfim ao nível do discurso do analista. Naturalmente, ninguém


assinalou – é muito curioso que o que ele produz nada mais seja do que o
discurso do mestre, já que S1 é o que vem no lugar da produção. (...) talvez
seja do discurso do analista, se fizermos esses três quartos de giro, que possa
surgir um outro estilo de significante-mestre (...). Será que acentuo o bastante
a relevância da impossibilidade de sua posição, na medida em que o analista
se coloca em posição de representar, de ser o agente, a causa do desejo?
(p.168)

Assim, a especificidade do discurso do analista é suportar a falta do sujeito na


histerização do discurso, investindo-se de objeto a causa de desejo. Assim ele não
responde à demanda do analisante. Essa é a sua novidade, é o que faz surgir esse outro
estilo de significante-mestre apontado por Lacan. Esse discurso não zela pela
eliminação do sintoma, nem pela completude, ao contrário, através do ato do analista
que em sua função está investido de objeto a causa de desejo, ele expõe a
impossibilidade de completude e a impotência da relação da produção com a verdade
nos outros discursos. Isso, como já vimos, é o que localiza sua potência, marcando
assim sua finalidade de presentificar o objeto a enquanto objeto faltoso para o sujeito,
que aparece em sua repetição na busca de gozo.
78

O discurso do analista é também o único que possibilita fazer ato analítico, pois
tendo o objeto a tomado a posição de dominante, torna-se uma dominante que impede
que o sujeito encontre a verdade sobre sua castração.
Mesmo o discurso da histérica, que é um discurso questionador, pode ficar
girando em falso no sentido de busca da verdade, pois, como diz Lacan (1969-70/1992),
a histérica fabrica “um homem que seria movido pelo desejo de saber” (p. 31). Fabrica
porque neste discurso o mestre se põe a trabalhar para dar conta das demandas dela e
mesmo que ela vá dizendo “não” ao saber do mestre, ela se faz de amiga e espera sua
nova produção para negá-la novamente. Coloca então o mestre a trabalhar de novo e de
novo... mesmo assim, histerizar o discurso é uma regra para a análise, para que no
discurso do analista ela encontre seu limite. Segundo Lacan (1969-70/1992):

Eis o que quer dizer o discurso da histérica, industriosa como ela é. Ao dizer
industriosa, assim no feminino, fazemos da histérica uma mulher, mas isto
não é privilégio seu. Muitos homens se analisam e, só por este fato, são
forçados a também passar pelo discurso histérico, pois essa é a lei, a regra do
jogo. (p. 31, grifos do autor)

Regra do jogo porque o sujeito encontra, no analista em sua função, um limite


neste agente investido de objeto a, ele não responde do lugar de mestre que sabe o que
ela deve fazer, mas do lugar do mestre que a faz criar um saber de sua falta, fazendo
com que ela lide com o limite de seu gozo, um limite que a faz produzir um saber sobre
seu desejo de desejo insatisfeito, como já trabalhado a partir do sonho da bela
açougueira.
É o analista em sua função que indaga a histérica sobre seu gozo nas repetições.
Sem esse limite, o discurso histérico fica à deriva e é nesse sentido que o discurso do
analista foi desenhado a partir dele, e é por isso que não há análise sem a histerização do
discurso. O fato de que esses discursos não se ajoelham diante de verdades universais,
faz de ambos avessos à dominação.
Lacan (1969-70/1992), ao formalizar o discurso da histérica, diz que “fazer
desejar, para completar com uma definição ao que caberia ao discurso histérico, são
operações que, falando propriamente, são impossíveis.” (p.165). E é o discurso do
analista que diz à histérica dessa impossibilidade por esclarecer a impotência do
encontro da produção do mestre com a verdade de seu objeto faltoso, ao não responder à
sua demanda.
79

Alberti (2009) aponta que Freud operou um corte na transferência ao não se


identificar com o mestre que sabe sobre seu analisante, e mais:

E foi por não se enganar de que sabia, que pôde devolver a seu paciente a
possibilidade de saber, que era deste e não de Freud! Eis porque a psicanálise
é portadora de uma desalienação possível e eis porque jamais um psicanalista
pode saber mais sobre seu paciente do que ele próprio, sujeito. Ao partir daí,
Freud instaura um discurso, o discurso do psicanalista, aquele em que o
agente, o analista, se dirige ao sujeito para este produzir o que sabe. (p.120).

Essa possibilidade de saber do sujeito é uma possibilidade de saber sobre sua


castração. Eis porque o discurso do mestre é o avesso do discurso psicanalítico, onde o
primeiro tem como política uma lei universal segregadora, o segundo oferece a
possibilidade de o sujeito produzir a lei de seu desejo sobre sua castração, uma margem
de liberdade que o separa de qualquer lei que se pretenda universal. Essa é a política da
causa analítica, a da separação, ela é atuada a partir da política do analista, que é a
política do objeto a.
Embora no texto “direção do tratamento” Lacan (1958a/1998) tenha apontado a
fata-a-ser como política do psicanalista, no seminário XVII Lacan (1969-70/1992) deixa
claro que não é possível um discurso do analista sem falta-a-ser, mas que a verdadeira
política do analista é a do objeto a, deixando para a histérica a política da falta-a-ser.
Vejamos com Quinet (2009b):

Se Lacan utilizou em 1958 a expressão “a política da falta-a-ser” para


designar a política do analista, no texto “A direção do tratamento e os
princípios de seu poder” (...), foi para contrapô-la ao ego forte do analista
como baluarte da realidade para o analisante. A política referente ao discurso
do analista não toma a falta como causa, mas sim o objeto causa de desejo.
(p. 35)

Segundo Checchia (2012), na “técnica psicanalítica, há uma teoria do poder que


permeia todos os escritos de Freud sobre a técnica. Há também uma concepção ética
sobre o uso desse poder que dá à técnica psicanalítica um caráter subversivo, tanto pelo
seu manejo como pelo seu efeito libertador” (p. 63). A partir das citações de Quinet
(2009b) e Checchia (2012), podemos afirmar que o analista, se ele tomasse a falta como
objeto, ele tentaria produzir um objeto para dar conta da falta, mas isso quem faz é o
discurso do mestre. No lugar de agente do discurso, o analista, ao tomar o objeto a
como causa de desejo, faz com que a histérica produza um saber sobre seu sintoma,
apresentando o caráter subversivo da psicanálise. É somente dessa forma que o
80

analista em sua função pode ser tomado como mestre, ou, como disse Lacan (1969-
70/1992) “talvez seja do discurso do analista (...) que possa surgir um outro estilo de
significante-mestre” (p. 168).
No campo político, através da história, podemos dizer que as transformações que
foram acontecendo na sociedade só foram possíveis porque o discurso da histérica
estava presente e porque de alguma maneira o discurso do analista se fez presente
mesmo antes da psicanálise ser teorizada.
Sendo assim, as transformações sociais ocorrem a partir da histerização do
discurso e de alguma forma do não saber do analista como resposta a ela, por essa união
proporcionar a subversão do sujeito, nosso próximo assunto.

2.4.1 A subversão do sujeito

Uma verdade sempre pode ser substituída por outra, é por isso que a verdade
última não existe. A ciência mostra isso todos os dias com suas novas descobertas em
detrimento das antigas. Sempre se pode descobrir algo novo que substitua a descoberta
anterior, o mesmo acontece com o sujeito: não há verdade última que dê conta de seu
gozo, aliás, é o próprio sujeito da ciência que revigora a existência do sujeito dividido
ao presentificar a limitação da verdade diariamente.
As 3 feridas narcísicas (1- a terra não é o centro do universo, 2- O homem é um
animal fruto de uma evolução natural, 3- é o inconsciente que controla o ser humano)
apresentadas como verdades, são descobertas da ciência e são uma prova da inexistência
da verdade última.
Com a primeira verdade nos parece que todo mundo já concorda, principalmente
na atualidade que nem pega bem negá-la, pois, se é preciso ver para crer, temos, por
exemplo, um telescópio chamado Hubble que mostra essa verdade com perfeição,
mesmo assim pode ser que exista alguém que conteste. Ninguém é obrigado a acreditar
nas duas últimas verdades propostas, isso por si só já diz do fato da inexistência da
verdade. Ela pode servir para alguns e não para outros, mas sobre a terceira, mesmo
antes da psicanálise, já era possível questionamentos sobre o por quê de se querer fazer
uma determinada coisa e não se conseguir mesmo com a vontade própria e o apoio e
incentivo dos outros, ou mesmo o por quê de o apoio e incentivo, às vezes, inclusive
atrapalharem, à revelia do sujeito, uma questão de estrutura.
81

Na busca da verdade sobre o desejo, articulado ao objeto a, aparece a questão da


impossibilidade da verdade, que se dá no deslizamento dos significantes, pois o fato de
o S1 representar o sujeito para o S2, quer dizer que, apesar de os significantes sempre
serem derivados do S1, isso não impede que se produza o novo no seu deslizamento.

Esse novo apresenta novas verdades, como o faz a ciência diariamente.


Sendo assim, a impotência da relação da produção com a verdade não impede
que se produza algo novo. Paradoxalmente, inclusive, é essa mesma impotência que faz
com que o novo se produza, justamente por nunca dar conta da verdade, pois se dela
fosse possível dar conta, não seria preciso continuar buscando o novo nas repetições,
inclusive nem haveria repetição, já ela ocorre justamente por não haver acesso ao gozo
pleno da verdade.
Essa impotência da relação da produção com a verdade nos discursos se dá em
função do real inatingível e é isso que caracteriza que somos governados por algo para
além de nosso pensamento consciente. Freud (1900/1987) disse que isso ocorre em
função do recalque e do desejo inconsciente. Por isso os psicanalistas apostam que é
possível lidar com esse desejo inconsciente por meio de uma análise, em função da
atualização do reprimido, mesmo que o que ele deseje, seja irrealizável. Essa aposta faz
com que haja analisantes demandando análise e apostando no próprio desejo,
transformando seu sintoma signo em sintoma enigma (histerização). Com isso alguns
chegam ao fim da análise conduzidos pelo analista em sua função.
É a partir do desejo inconsciente descoberto por Freud que Lacan (1960a/1998)
tratará sua dialética e a subversão do sujeito, desenhando o grafo do desejo na medida
em que desenvolve seu pensamento sobre o tema. Não nos ateremos aqui às minúcias
do grafo do desejo, mas a coisas importantes que Lacan nele localiza sobre as
possibilidades da subversão do sujeito a partir de seu desejo, que só pode acontecer
porque não há verdade última. No texto “Para além do princípio da realidade” Lacan
(1936/1998) já dizia que:

(...) no homem, a ideia de um mundo unido a ele por uma relação harmoniosa
deixa adivinhar sua base no antropomorfismo do mito da natureza; à medida
que se realiza o esforço que impulsiona essa ideia, a realidade dessa base
revela-se na subversão cada vez mais vasta da natureza, que é a hominização
do planeta: a "natureza" do homem é sua relação com o homem. (pp. 91,
grifos do autor).
82

Nessa citação, Lacan aponta uma primeira ideia de subversão, quando o animal é
humanizado e transforma-se no homem sociável da cultura. Ou seja, a partir da entrada
na linguagem o corpo passa a ser comandado pela lei do significante, que é a lei do
desejo do sujeito, como diz autor: “O símbolo manifesta-se em primeiro lugar como
assassinato da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo”,
(LACAN, 1953/1998, p. 320), daí sua afirmação de que “a palavra mata a coisa”.
No texto “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”,
Lacan (1960a/1998) complementa a ideia de “morte da coisa” a partir dos termos
“necessidade, demanda e desejo” para dizer dessa morte do corpo biológico, morte do
corpo enquanto coisa em função da entrada do sujeito na linguagem. Em suas palavras:

O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade:


essa margem é a que a demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão
em relação ao Outro, abre sob a forma da possível falha que a necessidade
pode aí introduzir por não haver satisfação universal (o que é chamado de
angústia). Margem que, embora sendo linear, deixa transparecer sua
vertigem, por mais que seja coberta pelo pisoteio de elefante do capricho do
Outro. É esse capricho, no entanto, que introduz o fantasma da Onipotência,
não do sujeito, mas do Outro em que se instala sua demanda (já era tempo de
esse clichê imbecil ser recolocado, de uma vez por todas, e por todos, em seu
devido lugar), e, juntamente com esse fantasma, a necessidade de seu
refreamento pela Lei. (LACAN, 1960a/1998, p. 828)

Ou seja, o corpo do sujeito deixa de ser governado pela necessidade biológica,


pois essa necessidade ao rasgar-se da demanda constitui o sujeito dividido, governado
pelo desejo, uma representação simbólica do inconsciente em função de sua entrada na
linguagem, subvertendo o sujeito à lei do significante, lei do desejo.
Nesse momento Lacan passa a ter uma segunda ideia de subversão, essa
promovida pelo psicanalista em sua função. Se o sujeito, pela entrada na linguagem,
passa a ser governado pelo significante, ele pode buscar tal subversão. Essa segunda
subversão diz da possibilidade de que o sujeito se separe radicalmente do desejo do
Outro e atravesse sua fantasia de completude dando-se com sua castração a partir do ato
analítico. É isso que o analista busca desde o princípio da análise a partir do ato
analítico. Como aponta Fingerman (2009b), destacando a política do fim da análise, é
esta subversão do sujeito o que é desejado pelo analista desde o começo da condução de
uma análise, diz ela:

Lacan dirá que o ato do analista é agente de um novo discurso no mundo;


“novo” porque causa uma posição que subverte a relação do sujeito com o
saber e com o gozo, proporcionada pelo discurso vigente. (...) O operador de
83

discurso “ato do psicanalista” ordena uma dialética do desejo que implica a


subversão do sujeito até sua “insurreição”, sua separação radical do Outro; é
um ato causador de um novo laço social, forçosamente político. (p. 2, grifos
da autora).

Assim, a subversão do sujeito se dá pela separação radical do sujeito na relação


com o saber do Outro, ao dar-se com o fato de que o Outro também é barrado, ou seja,
que o pai é morto desde sempre. Por isso Lacan (1958a/1998) já havia articulado em
“A direção do tratamento” o lugar do pai morto ao lugar do analista, diz ele: “Mas o que
há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível neste jogo: o do
morto; e que ao ressuscitá-lo o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz” (p.
595). Ou seja, o analista em sua função, ao investir-se de objeto a, encarnando esse pai
morto, mostra, consequentemente, que o Outro é barrado, e sem isso não há trabalho de
análise.
Porém, é difícil para o neurótico admitir a falta do Outro, pois isso denuncia sua
própria castração e, como aponta Lacan (1960a/1998), “essa castração (...) é algo a que
ele [neurótico] se apega. O que o neurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente
até o fim da análise, é sacrificar sua castração ao gozo do Outro, deixando-o servir-se
dela.” (p. 841).
Isso significa que o neurótico quer acreditar que o Outro não é castrado, pois
isso significa que ele um dia pode chegar lá. Sendo assim, a castração do Outro coloca
em jogo a castração do neurótico, por isso ele prefere deixar o Outro servir-se de sua
castração do que sacrificá-la. Ao deixar que o Outro se sirva de sua castração, o
neurótico, inclusive adia realizações possíveis.
É por isso que o dar-se com a castração, admitindo que não há Outro do Outro,
culmina numa separação do saber do Outro e consequentemente com seu próprio gozo,
pois, ao caminhar em direção à castração, o desejo do sujeito é causado e ele não precisa
mais que Outro sirva-se dela (castração). Ao dar-se com a castração, ele pode usufruir
da fatia de gozo que lhe é possível, e suas realizações possíveis não precisam mais ser
adiadas.
Desprendido da busca por uma lei universal, Lacan (1969-70/1992) declara:
“Não esperem de meu discurso nada de mais subversivo do que não pretender a
solução” (p. 66). Essa é a subversão do discurso do analista, pois enquanto os discursos
de dominação buscam a solução, não pretender a solução se torna uma política
subversiva que propõe o desejo sustentando o mal-estar necessário para que algo novo
84

sempre possa se realizar. Esse é um processo de recusa ao gozo e por isso leva as
políticas orientadas por valores morais e processos identificatórios ao fracasso.
A questão da busca de uma lei universal totalizante se agrava ainda mais no
discurso universitário. Vejamos porque, passando agora ao discurso universitário, que se
faz na sequência de giro no sentido horário do discurso do analista, mas sendo ele um
discurso de dominação.

2.5 O discurso universitário

O fato de que o tudo-saber tenha passado


para o lugar do senhor, eis o que, longe
de esclarecer, torna um pouco mais
opaco o que está em questão – isto é, a
verdade. (LACAN, 1969-70/1992, p.30).

Lacan (1969-70/1992) vai mostrando que na história existem circulações


privilegiadas de certos discursos em certos contextos históricos. Ao trazer os 4 discursos
como 4 diferentes modos de gozo, Lacan contribui não apenas com a noção de sujeito
como algo da ordem de uma estrutura em função de sua entrada na linguagem, mas
também com formas de apresentar as figuras históricas da subjetividade, relativas aos
tipos de saberes históricos e culturalmente determinados. Ele apresenta o discurso
universitário como privilegiado em seu momento histórico, o que é ainda atual.
Lacan (1969-70/1992) caracteriza o discurso universitário como um discurso de
passagem do “discurso do mestre” para o discurso do mestre moderno, levando em
conta que o capitalismo, aliado à tecnociência, cria meios de produção para apropriar-se
do saber do escravo. Daí Lacan chamá-lo de “discurso do mestre moderno”. Ele assim o
chama, pois este também é um discurso de dominação, mas como já foi dito
anteriormente, ele domina pela concentração e não pela segregação, como no discurso
do mestre. Marx (1867/2010) já apontava o poder o dinheiro como embrião dessa
concentração:

Não revelando o dinheiro aquilo que nele se transforma, converte-se tudo em


dinheiro, mercadoria ou não. Tudo se pode vender e comprar. A circulação
torna-se grande retorta social a que se lança tudo, para ser desenvolvido sob a
forma de dinheiro. Não escapam a essa alquimia os ossos dos santos e, menos
ainda, itens mais refinados, como coisas sacrossantas (...) No dinheiro
85

desaparecem todas as diferenças qualitativas das mercadorias, e o dinheiro,


nivelador radical, apara todas as distinções (p.158).

Não é a toa que o próprio trabalho humano se torna mercadoria. Abaixo segue o
matema do discurso universitário.

O agente deste discurso é o Saber (S2), que camufla o S1, significante mestre,
explorando a falta de saber do sujeito. Nesta posição o saber como agente desse
discurso fabrica saber a ser imposto ao sujeito que nada sabe, buscando assujeitá-lo a
um saber científico universalizante. Camuflagem porque não se trata de apontar o poder
do mestre, mas o poder do saber construído cientificamente. Segundo Quinet (2006):

O mestre foi substituído pelo saber universal científico. Consequência: tirania


do saber, que exige, a qualquer custo, a obediência ao mandamento do saber,
a ordem que se apresenta como a verdade da ciência (...). No discurso
universitário da ciência tudo o que é tratado pelo saber é considerado um
objeto (a), mesmo quando são homens e mulheres tratados epistemicamente.
Trata-se de objetivar, objetalizar para aplicar o saber. (p.20).

Apoiado no significante mestre, o discurso universitário fabrica saber a ser


imposto ao sujeito que nada sabe, impondo-lhe um saber científico universalizante.
Camuflagem porque não se trata de apontar o poder do mestre, mas o poder de um saber
que transforma o sujeito em objeto a ser unificado por uma espécie de manual
científico.
Sob o rótulo de representante do saber científico (S2) a ciência camufla o mestre
(S1) “sei porque sei”, para propagar um saber científico, que dá uma explicação sobre
porque o sujeito deve aceitar seu lugar de objeto vazio de saber. Dizem: “São
informações comprovadas cientificamente!”
Isso diz da política do discurso universitário, que segundo Quinet (2009b) “trata-
se do todo-saber, da política da regulamentação do gozo pelo saber, cujo outro nome é
86

burocracia” (p. 48). De que burocracia se trata? Do certificado de conclusão de curso


como um saber universalizante. Segundo Lacan (1968-69/2008): “A unidade de valor,
esse papelzinho que pretendem conceder a vocês, é isso. É o sinal daquilo em que o
saber se transformará cada vez mais, nesse mercado chamado Universidade. A verdade
pode ter funções espasmódicas aí, mas não é isso que regerá para cada um sua
existência de sujeito.” (p.42). Ou seja, Lacan aponta para o fato de que o saber do
sujeito é mais do que um título acadêmico, mais do este certificado que busca paralisar,
contrair o saber do sujeito inferindo-lhe o saber acadêmico. E mais, não é só sobre esse
“papelzinho” concedido aos estudantes que o discurso universitário infere a falta de
saber no sujeito, a consequência é mais ampla, a ciência se apropria da via do discurso
universitário para desaparecer com o sujeito na sociedade para além da universidade.
Lacan (1969-70/1992) aponta que “O que há de chocante, e que não parece ser
visto, é que a partir daquele momento o significante-mestre, por terem sido dissipadas
as nuvens da impotência, aparece como mais inatacável, justamente na sua
impossibilidade” (p. 169). E os fenômenos da dissipação das nuvens da impotência
privilegia a circulação do discurso universitário neste momento histórico em escala
mundial.
Isso porque, sob o rótulo de representante do saber – ao desalojar o mestre da
posição de agente, apontando para a comprovação de um saber embasado no nome de
um autor e suas produções, com o suporte da mídia, dos meios de comunicação de
massa e dos aparatos científicos – a ciência dá ao sujeito uma explicação à qual ele se
conforma e supõe que não há contra o que se rebelar, pois esvaziado de saber o sujeito
se identifica com essas verdades tendo-as como absolutas. Mas não podemos esquecer
que o sujeito circula também nos outros discursos, o que presentifica em cada um deles
o impossível.
Em nome destas verdades comprovadas cientificamente, faz-se todo tipo de
inferência ao sujeito a todo tipo de verdade que propõe que o sujeito se assujeite a um
desejo fabricado do lado de fora dele, amparado pela ideologia do mercado. Ou seja, a
ciência a serviço de evitar a queda da economia dos ideais do capitalismo, portanto a
ciência a serviço do capitalismo.
Lacan (1969-70/1992) aponta que o fato de o saber ter se deslocado do escravo
para o mestre não clareia a questão verdade:
87

Pois este é precisamente o S2 do senhor, mostrando o cerne do que está em


jogo na nova tirania do saber. Isto é o que torna impossível que nesse lugar
apareça, no curso do movimento histórico – como tínhamos, talvez,
esperanças –, o que cabe à verdade. O sinal da verdade está agora em outro
lugar. Ele deve ser produzido pelos que substituem o antigo escravo, isto é,
pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto
os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. (p. 30, grifos do autor).

Pacheco Filho (2010) nos indica aonde os caminhos trilhados pelo discurso
universitário podem levar o sujeito. Em nome da verdade científica, tudo pode virar
mercadoria, inclusive o próprio corpo. O autor começa relatando fatos sobre pessoas
que vendem seu corpo para tatuagem na pele com logos de divulgação de empresas,
sites ou comércios. Fala também das campanhas de legalização do comercio de órgãos
que pregam as vantagens de “preço” dos órgãos com a legalização. Pacheco Filho
(2008) mostra ainda outro tipo de falta de limite para o aumento de ofertas que aceleram
o desejo de consumir mercadorias, qual seja, a própria imortalidade tornando-se
mercadoria. Ele comenta sobre as empresas de congelamento de corpos que atendem
clientes que querem congelar seu corpo, crendo que a evolução da medicina possa trazê-
los de volta à vida um dia, com sua sanidade inalterada.
Vemos como consequência destas situações (venda da pele para tatuagem,
legalização da venda de órgãos) que o próprio corpo do ser humano torna-se um objeto
mercadoria. Ele aponta que o congelamento do corpo supondo imortalidade é algo mais
sem limite ainda, pois:

Isto trouxe consequências perigosas, na medida em que o próprio ser humano


deixou de representar um ‘enigma’, para tornar-se, igualmente, um objeto
com ‘valor-desejo’ quantificado e padronizado. Isto acontece na medida em
que, reduzido a mera “encarnação do trabalho assalariado”, o sujeito
também passe a ter seu valor, como mercadoria: o trabalho que põe à venda
no ‘mercado de trabalho’, e a que tende a se reduzir. (PACHECO FILHO,
2008, p.33, grifos do autor).

Isso faz com que a padronização do desejo passe a ser encarada como forma de o
sujeito adequar-se à sociedade contemporânea e aos interesses da classe dominante.
Isso obviamente não é novo. Marx já denunciava esse tipo de fenômeno quando se
remeteu à compra da força de trabalho do trabalhador pelo empresário, sendo a força de
trabalho, e consequentemente o trabalhador, uma mera mercadoria de subsistência do
capitalismo. Esses exemplos são uma evolução do que Marx já denunciava, são novas
maneiras de o sujeito vender-se como objeto, incluindo sua pele, e a própria
88

imortalidade é colocada à venda como uma mercadoria. Que isso seja uma evolução do
que Marx já apontava, não quer dizer que ele pudesse imaginar que as coisas chegariam
a tal ponto.
Há autores que defendem que esse tipo de fenômeno é efeito de uma nova
economia do corpo que se instaura e por isso propõem a concepção de uma nova era
nomeada como pós-modernidade. Autores como Bauman (1998 e 2005) e Doufour
(2005), defendem essa posição. Sobre Doufour (2005), Dias (2006) aponta que:

O autor baliza suas conclusões retomando a tese do mal-estar na


civilização de Freud, postulando que na sociedade atual há um só mal-
estar na civilização: o discurso capitalista, porque essa nova
modalidade de gozo apresentada aos sujeitos na sociedade
contemporânea rejeita a castração e a eleição forçada do sujeito do
inconsciente, constituindo uma subjetividade absoluta, que se impõe
como vontade no mundo, sem que nada que a limite, nem nada que a
divida em sua verdade (Dias, 2006a).

Não será possível aqui aprofundar essa questão, mas queremos discordar da
ideia de que se trata de uma nova modalidade de gozo como propõe o autor, ou de uma
nova economia simbólica. Embora concordemos com os autores sobre os novos
fenômenos engendrados pelo discurso capitalista na sociedade contemporânea e à
respeito da nocividade de tais fenômenos, insistimos, no entanto no fato de não se trata
de uma nova economia de gozo.
Nesse ponto corroboramos com Pacheco filho (2010) quando diz que esse tipo
de fenômeno “é consequência da articulação entre a infraestrutura econômica e a
economia simbólica do capitalismo, levada ao limite paroxístico de sua aceleração”
(p.38), pois a mercadoria, ao encantar com seu fetiche na economia simbólica, faz com
que o sujeito a tome como lúdica na repetição.
Com isso o sujeito inserido na lógica do consumo, não percebe que esses
objetos, dados como do desejo, por virem de fora, não produzem nada novo. E como
são extremamente abundantes, aceleram intensamente a busca do sujeito por eles,
inibindo a percepção de seu desejo singular em função das produções aceleradas dos
objetos criados pela tecnologia e propagados pela mídia, culminando nos fenômenos
descritos. No caso do consumo, não há tempo de criar o novo nessa repetição, pois o
sujeito mal acaba de consumir um objeto e já aparece outra oferta externa de consumo,
não há tempo de consultar seu próprio desejo.
89

Sendo assim, não se trata de uma nova economia do corpo, mas de uma
economia que vem de fora do corpo, um imperativo de gozo acelerador de consumo, em
que tudo pode virar mercadoria. Ainda segundo Pacheco Filho (2008), em decorrência
das exigências imperativas dos interesses do capital:

Toda pesquisa que não atenda aos interesses de geração de lucros das
empresas capitalistas tende a ser considerada inútil, com a justificativa de que
“não atende aos interesses da sociedade”. Do mesmo modo, as
universidades e centros de formação de pesquisadores e profissionais, que
não produzam os trabalhadores-mercadorias requeridos pelas empresas
capitalistas, passam a ser considerados “fora da realidade do mercado de
trabalho. (p.34, grifos do autor)

O fato, porém, não é que não atendem aos interesses da sociedade, a verdadeira
justificativa é que não atendem aos interesse do capital.
Os efeitos deste discurso para o laço social é que nele o sujeito se sente frustrado
por não conseguir corresponder a ele, como sua lei camuflada o impele, ou seja, por não
conseguir se adequar ao saber científico universalizante ao qual é submetido. Nessa
condição, Lacan (1969-70/1992) aponta que “como sujeito, em sua produção, de
maneira alguma poderia se perceber por um só instante como senhor do saber” (p. 166);
e disso nasce tanto a vontade do sujeito em adequar-se aos imperativos propostos pelo
discurso, quanto uma revolta por ser tratado como objeto vazio de qualquer saber,
mesmo que essa revolta venha à revelia do sujeito nos sintomas.
Mesmo assim, o sujeito busca dar conta deste impossível universalizante, que
provoca “uma aceleração da tendência totalitária à alienação, em escala sem precedentes
nas demais formas históricas de sociedade” (p.155) como aponta Pacheco Filho (2009).
Desta feita, tais aspectos inseridos na sociedade influenciam severamente a maneira
como constituímos nossa subjetividade.
O discurso universitário, concentrador, na tentativa de universalização do
sujeito, busca que nele advenha o apagamento de sua cultura, de sua história e das
diferenças singulares entre eles, buscando engendrar uma única forma de subjetividade.
Askofaré (2009) faz uma distinção entre os termos “sujeito” e “subjetividade”,
apontando que a estrutura do sujeito do inconsciente se define por operações trans-
históricas – recalque, foraclusão, recusa, alienação, separação. O autor reanima o
conceito de subjetividade histórica “sustentada sobre as categorias de discurso e de
saber, que indica em que a articulação do sujeito e do laço social requer a colocação em
90

jogo de figuras da subjetividade – distintas da estrutura do sujeito – relativas aos tipos


de saberes histórica e culturalmente determinado” (p.165).
Askofarè (2009) propõe que para entendermos esta distinção é preciso não
reduzir o sujeito ao puro significante e nos atentarmos à disposição da multiplicidade do
sujeito lacaniano, evocando os elementos decisivos que contemplam a trans-
historicidade do sujeito barrado com sua historicidade subjetiva.
Essa multiplicidade do sujeito lacaniano permite suas mudanças subjetivas, mas
impede que ele seja universalizado, pois como aponta Askofarè (2009), se:

O inconsciente é estrutura, (...) é lugar do Outro; mas ele é também


saber (...). Esse Outro, do qual o inconsciente é o discurso, não se
reduz aos pais; é o Outro do discurso universal que determina o
inconsciente como transindividual. Ora, o Outro, entendido nesse
sentido, ou seja, o simbólico, se ele é invariável em sua estrutura (...) é
também submetido às mudanças, às mutações, às rupturas, às
subversões” (p. 169),

Isso ocorre em função das influências sustentadas pelas categorias de discurso e


pelo saber, pois é com eles que o sujeito se coloca no laço social. Essa multiplicidade do
sujeito lacaniano é o que possibilita as mudanças em sua subjetividade em épocas e
culturas diferentes, ou seja, a multiplicidade do sujeito trans-histórico do inconsciente
que, influenciado pelos discursos e pelo saber, causa mudanças em sua subjetividade na
história. Se o sujeito da ciência só pode promover mudanças por se situar em “uma
relação com o saber” (LACAN, 1960/1998, p.80), significa que ele está tão submetido à
estrutura trans-histórica quanto o sujeito da magia e o da religião.
Entendemos assim que na contemporaneidade não se trata de uma concepção
pós-moderna de sujeito instaurando uma nova economia de gozo, mas de um imperativo
de gozo que parte de um saber estrutural Outro, como sempre ocorreu na história.
Portanto, sua estrutura é trans-histórica. Segundo Dias (2010):

Se o inconsciente é lugar do Outro, é também lugar de saber, ou seja, se o


simbólico é invariável na sua estrutura de linguagem aos seus usuários, ao
mesmo tempo estes usuários estão submetidos às mudanças de seu tempo.
Dito de outra maneira, a subjetividade – em sua forma variável, instável e
histórica – se desenvolve a partir da estrutura do inconsciente – em sua forma
invariável e permanente – enquanto houver linguagem. (p.52, grifo da
autora).

Isso indica que a alienação é inerente ao ser da linguagem, portanto trans-


histórica, porém com modos específicos de alienação dependendo do discurso da cultura
91

e da história. Também está incluída aí sua predisposição de perverter o laço neurótico,


que Freud (1905/1989) já apontava no sujeito desde a infância quando trata da
disposição perversa polimorfa no texto “três ensaios sobre a teoria da sexualidade”,
apontando que “é impossível não reconhecer nessa tendência uniforme a toda sorte de
perversões algo que é universalmente humano e originário” (179), portanto, o neurótico
adulto é portador do traço perverso da infância. Essa seria uma disposição do
inconsciente trans-histórico do neurótico em função da multiplicidade do sujeito
lacaniano.
Nossa posição sobre a perversão do laço como uma disposição do neurótico,
algo estrutural e trans-histórico, se torna importante em nosso trabalho porque se trata
de pensar as possibilidades de implicação do discurso do analista como resistência ao
discurso capitalista.
Se tomássemos a posição de pós-modernos como Bauman (1998 e 2001) e
Doufour (2005) não poderíamos pensar tal implicação, pois, por tratar-se de uma
mudança na economia libidinal do sujeito, seria impossível levantar tal possibilidade,
entendendo que admitir a possibilidade de uma nova modalidade de gozo que dos seres
humanos, inclusive tornaria desnecessária essa tese.
Tratamos aqui do discurso universitário, um discurso de dominação e
concentração, apontando suas implicações para o laço na sociedade contemporânea,
mas Lacan não para por aí. Em 1972, no discurso de Milão, ele escreve mais um
matema de discurso, apresentando o discurso capitalista, entendido como um efeito do
discurso universitário.
O discurso universitário culmina no discurso capitalista porque o primeiro tem
as descobertas da ciência como saber universal (S2), erigido pelo saber do mestre oculto
(S1). Ao contar com a mídia para propagar este saber, promove o efeito eficaz ao
colocar o sujeito no curto-circuito do discurso capitalista, consumo incessante, seu
objetivo. Vamos a ele.
92

2.6 O discurso capitalista (?)

De jeito nenhum lhes digo que o


discurso capitalista seja medíocre; é,
pelo contrário, algo loucamente
astucioso, hein? Loucamente astucioso,
mas destinado ao furo. (LACAN, 1972,
inédito).

Bem, na teoria dos 4 discursos, no seminário XVII, como já foi dito, Lacan
afirma que os elementos de giro só podem se movimentar no sentido horário ou anti-
horário, e assim, por mais que girem, não produzirão mais do que 4 discursos. No
entanto, posteriormente Lacan (1972/inédito), em sua conferência “Do discurso
psicanalítico” em Milão, profere + um discurso, o discurso capitalista, e neste discurso é
quebrada a regra de que os elementos de giro só podem girar no sentido horário ou anti-
horário.
Além disso, nos 4 discursos o impossível se trata daquilo que o agente demanda
do outro e a que o outro não corresponde de maneira plenamente satisfatória em função
do fato de que o Outro também é barrado. Por isso, como já foi dito, governa-se, faz-se
desejar, analisa-se e educa-se, mas nenhuma destas realizações é plena. Essa
impossibilidade tem como consequência a impotência em cada um dos 4 discursos,
impotência que impede que a produção do discurso se relacione com a verdade nele
proposta.
As coisas são bem diferentes no discurso capitalista. Vejamos abaixo a estrutura
do matema do discurso capitalista, apresentando também a estrutura dos 4 discursos
para efeito de comparação.

Esquemas adaptados (Bousseyroux, 2012, p. 186).


93

Observamos na estrutura do matema dos 4 discursos que não há nenhum vetor


que aponte para a verdade. Já no discurso capitalista há uma inversão do vetor da
esquerda na estrutura do discurso capitalista em relação à estrutura dos 4 discursos: esse
vetor apontava para cima, mas na estrutura do matema do discurso capitalista ele aponta
para baixo, fazendo com que o agente do discurso tenha acesso direto à verdade.
A isso soma-se a inversão também das letras do lado esquerdo do matema, S1 e
$, sendo que o $ sobe e o S1, desrespeitando assim a regra de que os elementos só
poderiam girar no sentido horário e anti-horário proposto na formalização dos 4
discursos e colocando o sujeito no curto-circuito do discurso capitalista.
Vejamos o matema completo do discurso capitalista proferido por Lacan (1972,
inédito) e na sequência segue também o discurso do mestre para efeito de comparação e
em seguida a discussão das consequências dessas mudanças:

Discurso Capitalista
agente outro
$- Sujeito barrado S2 - Saber
_____________ ________________
S1 – Lei a- mais-de-gozar
verdade produção

Essas mudanças do discurso do mestre para o discurso capitalista tem


consequências. Vemos que no discurso capitalista o agente, função da dominante, é o $.
Mas ele é agente de quê? Agente que demanda um saber sobre seu gozo. Nas inversões
apresentadas por Lacan no matema do discurso capitalista, o sujeito encontra o gozo,
94

pois ele entra no curto-circuito do discurso. A inversão do vetor leva o sujeito a uma
relação direta com a verdade – coisa que não existe na estrutura dos 4 discursos –
embrenhando-se num giro infinito na busca de um objeto de gozo no consumo para
preenchê-lo.
Vejamos que com a inversão do vetor e das letras, além de o sujeito entrar no
curto-circuito do discurso pelo consumo, há duas consequências. A primeira é que ao ter
acesso direto à verdade, a verdade existe para o sujeito. A segunda é que o agente ($)
perde sua relação com o outro ao entrar no curto-circuito do discurso capitalista – pois
nesse curto-circuito o objeto a mais-de-gozar fica entre o agente ($) e o outro (S2),

conforme aponta o vetor – impossibilitando o laço social permitido nos outros 4


discursos. Sendo assim, este é um discurso que desfaz os laços sociais.
Porém há algo de ambíguo quando Lacan apresenta o discurso capitalista, pois
após a apresentação deste, ele afirma que: “não são 36 possibilidades, há somente
quatro” (1972, inédito). Desta feita, ao mesmo tempo em que apresenta mais um
discurso e um novo matema para o mesmo, Lacan afirma que há somente 4
possibilidades.
A partir desta maneira ambígua como Lacan apresenta esse discurso, há
controvérsia entre os autores sobre entender o discurso capitalista como um quinto
discurso ou como uma mera variação do discurso do mestre. Esta é mais uma discussão
polêmica entre os analistas sobre a qual não nos posicionaremos de maneira veemente.
No entanto, apontaremos aqui nossa posição sobre a escolha entre essas duas
possibilidades para desenvolver este trabalho e os motivos que justificam nossa escolha.
Comecemos com Lacan (1972, inédito):

Afinal, foi o que se fez de mais astucioso como discurso. Esse último não é
menos destinado ao furo. É porque é insustentável… num truque que poderia
lhes explicar… porque o discurso capitalista está ali, vocês veem… uma
pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $… que é o sujeito… basta
para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas,
justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se
consuma. (1972, inédito).

Nesta citação entendemos que Lacan trata o discurso capitalista como uma
variação do discurso do mestre pelo fato de ser destinado ao furo. Nessa troca de lugares
– o sujeito, $, no lugar de agente, e o S1, no lugar da verdade, marca que o $, sustentado
95

pelo significante, S1 – passa a ser dono de sua vontade de gozo no consumo, numa

busca incessante pela completude impossível.


Checchia (2012) apresenta características e questões interessantes sobre o
impasse, diz ele:

Ao contrário dos outros quatro discursos, que exercem a função de laço


social para os sujeitos, o discurso capitalista promove uma ruptura ou, como
diz Soler (...) fragmentação dos laços sociais. As relações são estabelecidas
tomando o outro sempre como objeto, não como sujeito. Mas de onde
provém esse poder de desfazer os laços sociais? E como, ao mesmo tempo,
esse discurso consegue se sustentar se ele promove tais efeitos? (...)
característica importante e que explica a primeira é seu poder de introduzir
em um novo campo discursivo o que é excluído no discurso do mestre: a
fantasia. (p. 292).

São questões complicadas, pois o próprio Lacan demonstra essa ruptura dos
laços ao inverter o vetor e as letras do lado esquerdo do matema do discurso capitalista,
dando ao sujeito acesso à verdade e colocando o a mais-de-gozar entre o agente ($) e o
S2 (outro) no curto-circuito do discurso. Porém, há o fato de que nenhum sujeito fica
retido neste discurso o tempo todo, assim como em nenhum dos 4 discursos, mas
passeia-se por todos eles.
Pensamos que, pelo simples fato de o sujeito passear pelo discurso capitalista,
mas não se fixar nele infinitamente, por si só já o desqualifica como um discurso
efetivamente. Há ainda o fato de ele não cumpre o que promete, nem potência de
relação com a verdade do gozo do sujeito, pois ninguém chega à completude, e ainda
esse discurso não tira a possibilidade de o sujeito circular pelos outros discursos, o que
seria lógico dado que se o sujeito encontrasse a completude do gozo nesse curto
circuito, não haveria espaço ou motivo para ele circular pelos outros discursos.
Considerando a tentativa do discurso capitalista de remover o impossível e a
barra da impotência de chegar na verdade, culminando no rompimento do laço social,
Pacheco Filho (2015) aponta que “Lacan nos remete ao que tantas vezes tem sido
denominado imperativo de gozo na sociedade de consumo: um imperativo de gozo por
meio dos objetos-mercadoria que a tecnologia gerada pela ciência moderna permite
fabricar” (p.28). Essa é característica central que ocorre pelas inversões realizadas na
passagem do discurso do mestre para o discurso capitalista.
O que de fato acontece, como diz Lacan (1972, inédito), é que este é um
discurso astucioso, por sustentar-se a partir da fantasia de completude do sujeito, mas
96

também destinado ao furo, porque não consegue excluir o sintoma. Ao contrário, como
mostra a racionalidade psiquiátrica, centenas de sintomas são diagnosticados e
medicados aquecendo o mercado farmacêutico; ou seja, ao mesmo tempo que promete
completude, denuncia seu furo para inserir mais consumo, de medicamentos neste caso.
Sendo assim, julgamos que para considerar o discurso capitalista como um
quinto discurso, ele teria que ser o primeiro e o único, pois não havendo nele impotência
de relação com a verdade, não haveria necessidade de o sujeito sair dele, nem
possibilidade de escapar dele. Assim estaríamos retidos nele o tempo todo, o que não
acontece, pois mesmo sendo frouxa, a impossibilidade existe, já que o sujeito não se
deixa universalizar.
Quanto ao imperativo de consumo, no entanto, o sujeito corresponde muito bem,
já que nunca se consumiu tanto, e isso pode fazer pensar que se trata de um quinto
discurso. Assim, o discurso capitalista impera na sociedade contemporânea a partir de
seu paradoxo cínico, ao mesmo tempo em que insere o imperativo de gozo pelo
consumo como promessa de completude e consequentemente de eliminação da falta. É
essa mesma falta que o sustenta e faz girar o consumo a partir da vontade de gozo.
Bem, sabemos que se o discurso capitalista é ou não um quinto discurso, é uma
discussão ainda em pauta e com muitas controvérsias entre os autores, questão que não
aprofundaremos. Por isso não pretendemos reduzir a discussão às questões aqui
apresentadas, ao contrário queremos apenas lançar mais essa questão sobre o tema e
dizer que nesta pesquisa, quando falarmos do discurso capitalista, estaremos
apresentando-o como uma variação do discurso do mestre ou como um estilo do
discurso do mestre moderno, conservando a tirania do discurso universitário, como
aponta Lacan (1969-70/1992).
O fato é que o discurso capitalista governa, e governa, digamos, mantendo sua
mestria astuciosa. Lacan (1969-70/1992), mesmo antes de formalizar a conceituação
sobre o discurso capitalista diz que:

Jamais se honrou tanto o trabalho, desde que a humanidade existe. E mesmo,


está fora de cogitação que não se trabalhe. Isso é um sucesso, então, do que
chamo de discurso do mestre. Para isso, foi preciso que ele ultrapassasse
certos limites. Em poucas palavras, isso acontece àquilo cuja mutação tentei
apontar-lhes. Espero que se recordem disso, e se não recordam – é bem
possível –, vou lembrar-lhes Já-Já. Falo dessa mutação capital, também ela,
que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista. (p. 160)
97

Ou seja, questões sobre o capitalismo e uma mutação capital, precedem sua


matemização por Lacan. O discurso capitalista é uma ideologia que esconde e revela a
dominação, como qualquer outra, mas sua astúcia está mais além em função dessa
mutação capital em relação ao discurso do mestre expressada por Lacan.
Essa mutação que faz o sujeito pensar que acessa a verdade do gozo ao
promover sua entrada no curto-circuito do consumo, traz como consequência o
desencontro do sujeito com o outro e a fragmentação dos laço sociais. Ao estabelecer o
conceito de fetiche da mercadoria, Marx (1967/2010) já denunciava este aspecto no
capitalismo, diz ele:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato


de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio
trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho,
como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a
relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social
existente fora deles, entre objetos. (...) Não é mais nada que determinada
relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas. (...) Aqui, os produtos do cérebro
humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm
relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias,
acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que
adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e
que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (pp.198-199)

Com Marx (1967/2010) podemos entender que o fetiche da mercadoria torna o


sujeito alheio ao seu próprio trabalho, pois além de ele não ter acesso ao que produz, ele
também não sabe produzir uma mercadoria inteira. Com isso sua própria força de
trabalho é transformada em mercadoria, o que aliena o sujeito ao laço com o objeto
proposto pelo capitalismo. Segundo Pacheco Filho (2015):

A fetichização das relações entre as coisas produz uma alienação mais


poderosa, porque menos visível do que a fetichização das relações entre os
sujeitos. Não há déspota ou tirano a responsabilizar pelas mazelas da vida.
Mais radicalmente ainda: o próprio ‘mal-estar do existir’ pode ser anestesiado
pela supressão da barreira que separava o mais-de-gozar e a verdade do amo.
(p. 35).

Seja no anterior capitalismo de produção ou no atual capitalismo de consumo, ao


pregar o individualismo e comprar força de trabalho, embora a preço de banana, isso faz
o sujeito pensar que é livre para vender sua força de trabalho. Então, se ele é livre,
contra o que vai se rebelar? Daí o fetichismo da relação entre as coisas produzirem uma
alienação menos visível e de novo a astúcia do discurso capitalista, pois o sujeito acha
98

que não há contra o que se rebelar em relação à classe dominante e pelo fato de ela ser
dona dos meios de produção. Isso se torna argumento suficiente para convencer o
sujeito a assujeitar-se aos mandos do mestre capitalista, suprimindo suas críticas sobre o
fato de que o que interessa nesse discurso é o acúmulo do capital conseguido através da
mais-valia e do consumo.
Pacheco Filho (2009), fazendo contraponto a autores que defendem o declínio
social da função paterna como responsável pelas mudanças na sociedade – por falta de
repressão social, por ser uma sociedade com um discurso que convoca o gozo como
obrigação, o que reduziria a população à estrutura psicótica ou perversa –, argumenta
que não há declínio do pai, e sim a elevação do pai capitalismo, muito mais exigente e
muito mais imperativo, pois sua ordem é “goze”, como sempre foi a lei do supereu. E o
agravante é que o gozo requerido é sobretudo um gozo dentro dos limites do
capitalismo de forma que ele continue acumulando capital.
Sendo assim, a função paterna está ainda mais forte, só que em nome do
capitalismo o imperativo de gozo é direcionado para o consumo até o máximo de seus
limites, fortificando o fetiche da mercadoria e a alienação do sujeito no laço com o
objeto, portanto fazendo função paterna, mas substituindo a imago paterna.
Como já apontado anteriormente neste trabalho, Pacheco Filho (2009) indica que
isso possibilita “um aspecto específico (particular) do laço social implicado pelo
capitalismo: uma aceleração da tendência totalitária” (pp.154-155). Essa aceleração à
tendência totalitária do capitalismo é nada mais que o resultado da entrada do sujeito no
curto-circuito do discurso capitalista como efeito dos imperativos de gozo propostos.
Vejamos como o capitalismo foi imperando na sociedade em escala mundial e
seus efeitos para o laço social.

2.6.1 Efeitos do discurso capitalista

O mercantilismo, enquanto embrião do Capitalismo, fornece as condições para o


desenvolvimento deste e promove a ascensão das burguesias na Europa do século XVII.
Patrocinou as tecnologias que se elevam na produção da qualidade e da quantidade,
sendo que os navios vão longe para comercializar tais mercadorias, mostrando que não
haveria capitalismo sem burguesia. Nesse momento começa a dominação da América
Latina e também da África, em que milhões de africanos são arrancados de suas
99

comunidades mediante violência e permuta. Esta foi a base essencial do enriquecimento


burguês dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Segundo Beaud (2004 ) no século XVIII, o capitalismo se estabelece com o
modo de produção que lhe é próprio: a extorsão da mais-valia. Quando se amplia a
produção capitalista, torna-se cada vez mais crescente o número de trabalhadores
explorados e o aumento da acumulação de riquezas. Isso amplia o agravamento da
miséria, porque, com a ascensão da burguesia, os pequenos camponeses que até então
trabalhavam em solo próprio, são acometidos por concorrências desleais e obrigados a
vender suas terras para grandes fazendeiros. Ao mesmo tempo começa a extinção dos
trabalhadores artesãos que trabalhavam por conta própria, pois estes vão perdendo seu
lugar enquanto produtores em função da mesma concorrência desleal.
Por não poderem competir com os preços das mercadorias produzidas pelas
indústrias, estes artesãos vão sendo cooptados pelo sistema de produção capitalista e
obrigam-se a sair em busca de trabalho nas fábricas. Isso faz crescer o poder dos
burgueses sobre a mão de obra barata dos trabalhadores em âmbitos gerais, poder neles
centralizado por deterem os meios de produção.
Consequência disso é que, no fim do século XIX, os assalariados do mundo
capitalista superam em número o dos pequenos produtores independentes da agricultura,
do comércio e do artesanato em vários países da Europa, momento em que os
trabalhadores começam a tomar consciência da exploração e a fazer resistência ao modo
capitalista da sociedade. As resistências dos operários, que se dão através de greves e
outras manifestações, assim como o capitalismo, cresce em todos os lugares, resultando
na tendência do aumento de salários.
Mesmo assim, no século XX, o capitalismo cresce mais ainda na medida em que
as indústrias pequenas são absorvidas pelas grandes e na mesma proporção os bancos
pequenos são absorvidos pelos grandes. As guerras trazem um novo agravamento da
crise e em seguida, surpreendentemente, há uma nova expansão do sistema. Além disso,
é no século XX que o capitalismo de produção se transforma em capitalismo de
consumo. Isso se deu o graças ao desenvolvimento da tecnologia propagada pela mídia
através dos meios de comunicação de massa, ao difundir a ideia de que o consumo deve
ser o objetivo primeiro do sujeito na sociedade.
Como aponta Žižek (1996), com o desenvolvimento do capitalismo no século
XX há uma modificação política em que as pessoas, de forma geral, pararam de buscar
100

alternativas ao capitalismo, principalmente a partir dos anos 80, década em que o


capitalismo de consumo alcança seu objetivo de forma absoluta.
Houve também o desenvolvimento da tecnologia avançada, da automatização e
da informatização, o que, além de proporcionar a fabricação acelerada de mercadorias,
proporciona também o incomensurável alcance da mídia, impondo imperativos que
levam o sujeito a tornar-se consumidor em um círculo vicioso, situação que caracteriza
o curto-circuito no matema do discurso capitalista proposto por Lacan (1972, inédito).
Podemos pensar a mídia como um elemento contundente para solidificar a
ideologia dominante. Ela apresenta as mercadorias como coisas obrigatórias a serem
adquiridas, sustentando a ideia do consumo como objetivo primeiro do sujeito na
sociedade, tornando o capitalismo cada vez mais sólido.
Esta solidez se dá porque o sujeito busca completude sem analisar as
contradições e impossibilidades implícitas no discurso capitalista. E ainda se sente
culpado por não conseguir atender tais demandas contraditórias e consequentemente
impossíveis, sentindo-se incompetente e encaminhando-se desenfreadamente para o
universo do consumo o quanto lhe for possível. Isto faz, como diz Lacan (1972,
inédito), o capitalismo deslizar “como sobre rodinhas”, e podemos dizer, rodinhas bem
lubrificadas.
Isso aponta uma ilusão de unanimidade da construção fantasmática, como nos
diz Checchia (2012):

Por meio dessa construção fantasmática, que ilude o sujeito de que ele estará
recuperando algo do gozo perdido ao consumir os objetos forjados pela
tecnociência, o discurso capitalista consegue manter um circuito fechado
entre sujeito e objeto, fazendo com que o sujeito seja governado pelo objeto.
Com isso, o gozo passa a ser regulado pela lógica do consumo. (p.293)

Penso que isso não quer dizer que a fantasia só funciona na lógica do discurso
capitalista, mas quer dizer que nele a fantasia parece mais possível de concretizar-se,
por manter o objeto a mais-de-gozar entre o sujeito e o outro. Além do mais, ao apontar
que esse objeto é oferecido pelo saber do mercado, ele acelera a perda de gozo e
intensifica a busca do gozo de completude via consumo, mostrando sua potência ao
afrouxar o laço social. É isso que torna o discurso capitalista um discurso
concentrador, por tentar eliminar as diferenças do sujeito pelo consumo, coisa que
Marx (1967/2010) já denunciava com relação ao trabalho:
101

Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o


caráter útil dos trabalhos neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as
diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das
outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho
humano abstrato. (p. 60).

Safatle (2008) aponta que o sujeito, por não querer se dar conta das contradições
do discurso capitalista, perde o desejo de julgamento, saindo em busca de objetos e
buscando neles a completude. Ou seja, essa conexão direta com o objeto faz com que o
desejo do sujeito esteja relacionado diretamente com ele (objeto). No caso, as
mercadorias consumíveis no mercado ficam nesse lugar, o outro deixa de ser alvo de
laço e passa a ser plateia. Assim, nesse discurso o sujeito goza de como o outro o vê em
função dos objetos que possui, destituindo a importância dos laços que havia no
feudalismo quando o mestre gozava do saber-fazer do escravo numa relação direta, num
laço com o escravo.
Embora o gozo do poder sempre tenha existido, o discurso capitalista o
intensifica por sua função de incitar o individualismo, mais uma forma de concentração
do discurso capitalista ao qual o sujeito se submete.
Para facilitar que o sujeito se instale na lógica do discurso capitalista, este cria os
créditos concedidos a longo prazo, tornando possível que o sujeito adquira mercadorias
sem dinheiro, tornando-o escravo das dívidas. Nessa lógica para tornar o sujeito mais e
mais escravo, cria-se mais e mais mercadorias... e o que resulta é uma busca frenética
em massa de gozo pelo consumo, substituindo a busca de gozo pela privação que antes
acontecia no capitalismo de produção como aponta Weber (2001) em “A ética
protestante e o espírito do capitalismo”.
Objetos de marca passam a ter um valor extremo, multiplicados muitas vezes
pelo custo de sua produção para definir seu preço final. Na atualidade, além de contar
com a supervalorização da marca, a lógica do capital conta também com a
obsolescência do produto, que, aliando-se às tecnociências, criam novos produtos que
substituem o anterior para que o sujeito adquira o novo produto inutilizando o antigo
mesmo em bom estado.
A maneira como funciona o discurso capitalista em tempos de consumo implica
na eliminação da castração, o que agrava ainda mais a situação do sujeito nesta lógica,
pois faz com que ele busque superar os limites de suas buscas e aspirações de consumo
como fantasia de completude, levando-o a adentrar-se em dívidas impagáveis. Este tipo
de movimento da tecnologia é impulsionado pela mídia, que passa a ideia de que a
102

completude está sempre na aquisição de um produto ainda por vir. Ou seja, após a
obtenção de uma mercadoria, certamente o sujeito terá que consumir novamente.
Mesmo antes de consumir a próxima mercadoria o sujeito já sabe que depois
dela virá outra que tornará a última obsoleta. É possível observar inclusive a ansiedade
do sujeito que, ao adquirir um produto, imediatamente começa a esperar que um novo
produto venha para substituir o recente.
Como já apontamos antes, não existe objeto que satisfaça o sujeito, pois não há
objeto adequado ao gozo, mesmo assim o sujeito fica prezo no circuito do consumo,
sem jamais alcançará o gozo em razão de sua impossibilidade, já que o próprio
capitalismo apresenta essa impossibilidade quando coloca a necessidade de constância
do consumo – seu próprio seu paradoxo - mas tal paradoxo não impede que o sujeito
continue imerso nesta lógica, imersão esta que torna possível a organização do
capitalismo de consumo tão extrema na maneira como se apresenta hoje.
Marx (1844/2009) aponta que ao trabalhador pertence a parte mínima e
indispensável do produto acabado, o necessário para ele existir, não como humano, mas
como trabalhador. Aponta que o capitalismo é procriador de escravos trabalhadores,
pois o salário nestas condições fica equiparado à, por exemplo, lubrificação de
máquinas para seu funcionamento normal.
De acordo com estas observações, Marx contextualiza a alienação no
capitalismo pelo modo como o trabalhador se ajusta a este sistema. Tal sistema, além de
transformar o homem em escravo, nega-lhe sua capacidade criadora, pois, para Marx, o
trabalhador, ao se alienar à maneira capitalista de acordo com suas necessidades, não
consegue se dar conta de sua capacidade criadora, ou seja, de que o produto que ele
produz seja de fato uma produção sua. Segundo Marx (1844/2009):

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma
mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização
do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não
produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como
uma mercadoria, e isso na medida em que produz, de fato, mercadorias em
geral. (p. 80).

Marx aponta ainda que isso acontece porque os meios de produção são
propriedade privada nas mãos do capitalista e não do trabalhador. Assim o meio de vida
do trabalhador fica na dependência do capitalista, e que “este fato nada mais exprime
103

senão: objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como
um ser estranho, como um poder independente do produtor”. (MARX, 2009, p. 80).
Sendo assim, os avanços tecnológicos conquistados são usados para impulsionar
o funcionamento do capitalismo, alienando o trabalhador a seu modo de funcionamento;
e ao invés de servir ao homem, coisifica-o.
É neste sentido que a alienação ao capitalismo se mostra na divisão do trabalho a
partir da fragmentação do mesmo, pois na alienação do trabalho, o trabalhador, ao
realizar apenas uma pequena parte do trabalho de produção de uma determinada
mercadoria, jamais saberá como produzir uma mercadoria inteira, não se dando conta da
importância de seu trabalho na produção total das mercadorias, tornando-se alienado ao
trabalho e às mercadorias que produz, pois ele não se apropria da função essencial de
seu trabalho na concretização do produto final. Acredita que não produz de fato uma
mercadoria e que apenas vende sua força de trabalho e, a partir deste pensamento, se
submete às condições da empresa para garantir seu sustento.
Esse tipo de relação do produtor com o trabalhador implica a desvalorização do
trabalho a partir da apropriação dos meios de produção pelo capitalista, pois assim é
possível produzir muitas mercadorias em pouco tempo, diferente de um trabalhador
artesanal. Isso explica o enfraquecimento dos pequenos produtores com a entrada do
capitalismo de produção, algo extremamente reduzido hoje em dia, pois com o
capitalismo de consumo eles são em número cada vez menores e mesmo assim, eles têm
muito menos força, e são bem mais vulneráveis aos cartéis e aos monopólios dos
grandes produtores, sendo facilmente levados à falência.
Essa vulnerabilidade imposta aos pequenos produtores é um elemento chave
para o crescimento e manutenção do capitalismo, pois essa imposição pelo sistema torna
a força de trabalho humana uma mercadoria vendável.
Marx (1867/2010) já denunciava que do ponto de vista do capitalismo o
trabalhador não deve se colocar contra o interesse dessa forma de sociedade, mas que é
fundamental que a sociedade capitalista se coloque contra os interesses do trabalhador
para sua sobrevivência. Denunciava também que a economia conhece o trabalhador
apenas como animal de trabalho, uma besta reduzida às necessidades corporais.
Entendemos que o discurso capitalista, além do aspecto concentrador como no
discurso universitário, se torna ainda mais nocivo ao apresentar imperativos de consumo
de mercadorias através de propagandas mentirosas.
104

Já dissemos que o discurso universitário camufla o mestre, o discurso capitalista


se aproveita astuciosamente desta camuflagem para tirar proveito de onde puder. Se a
política do discurso universitário é política concentradora da regulamentação do gozo,
a política do discurso capitalista é concentradora por insistir na regulamentação do
gozo de maneira mais astuciosa em função da manipulação incidida sobre ciência.
Uma notícia muito atual e relevante a se pensar sobre o aspecto manipulador da
ciência que a transforma em ciência do capitalismo, pois inclusive coloca em cheque a
confiabilidade das pesquisas, é o caso da Volkswagen, a maior montadora de carros do
mundo (nesse momento).
A empresa está envolvida em um escândalo de falsificação de resultados de emissões
de poluentes em carros vendidos entre 2009 e 2015, são mais de 11.000 veículos23. Para
responder à demanda do cliente em relação à alta velocidade dos veículos, a empresa
fabricou carros velozes para competir com outras empresas que já o fazem. A fabricação dos
carros foi dada como se estivessem dentro da lei das emissões de poluentes, e segundo
documentos assinados pelos responsáveis isso foi comprovado cientificamente através de
testes. Porém, esses carros foram equipados com um software de manipulação de dados
de emissões de poluentes, que escondem os dados verdadeiros. Assim os carros eram
vendidos como velozes e dentro das normas. É verdade que são velozes, é mentira que
estão dentro das normas.
Desta feita podemos perceber que não temos qualquer dimensão da verdade
sobre a manipulação de pesquisas científicas para produzir o resultado esperado no
mercado em qualquer que seja o seguimento, pois tudo é válido para responder à
demanda do consumidor, inclusive burlar as leis criadas para resguardar a saúde e a vida
humana no planeta. O ar que respiramos, diga-se de passagem, vital para nossa
sobrevivência, tem sua importância desvanecida diante dos interesses de manutenção do
consumo no mercado e da concorrência para sobrevivência entre as empresas no sistema
capitalista, coisa que Marx (1967/2010) já descrevia:

O capital não tem a menor consideração com a saúde e com a vida do


trabalhador (...) a queixa sobre a degradação física e mental, a morte
prematura, o suplício do trabalhador levado até a completa exaustão,
responde: por que nos atormentarmos com esses sofrimentos, se aumentam
nosso lucro? (p.312)

23
Conf. em: http://g1.globo.com/carros/noticia/2015/09/volkswagen-admite-que-11-milhoes-de-carros-
tem-software-que-frauda-testes.html Acesso em 11 jan. 2016.
105

Era um tempo em que o capitalista tinha somente o trabalhador para abusar, pois
a camada de ozônio ainda não estava em perigo. Hoje temos a camada de ozônio da
qual eles também abusam, uma evolução da nocividade do capitalismo para a vida em
geral, humana e animal, não somente a do trabalhador.
E Marx (1967/2010) complementa: “de modo geral isso não depende, entretanto,
da boa ou má vontade do capitalista. A livre competição torna as leis imanentes da
produção capitalista leis externas, compulsórias para cada capitalista individualmente
considerado” (p.312). Ou seja, cada empresário faz a lei para sua sobrevivência, burlar a
lei se torna uma espada na luta de morte (Hegel) para o acumulo de capital e
sobrevivência do capitalismo.
Ainda podemos tirar do caso da Volkswagen mais uma questão: por que a
ilegalidade foi descoberta? Nossa hipótese é de que houve interesse por parte de outra
empresa que vende carros velozes dentro da lei e que foram investigar os carros dos
concorrentes por perderem mercado, portanto um interesse do capital. Será que alguma
empresa se interessaria pelas investigações se não estivesse sendo prejudicada no seu
capital? Pois nos parece que as investigações governamentais não são suficientes. Se
nossa hipótese trata-se de uma espada invisível, pois somente quando há interesse de
outro empresário, que se vê prejudicado por tais condutas do competidor, é que é
possível que essa espada covarde apareça, aliás, isso mais parece um tiro pelas costas.
Esse exemplo nos faz pensar em quanto mais as empresas, em nome do sucesso
de mercado, pode manipular dados para vender seu produto, escamoteando da sociedade
qualquer prejuízo à humanidade, e que pouco se investiga se não houver interesse.
Perguntamo-nos inclusive sobre fatos assim na indústria farmacêutica, pois não temos
que nos preocupar apenas com o fato de que a verdade última não existe a partir da
ciência positivista e concentradora, mas também com a manipulação de dados que
fazem parte da pseudociência do capitalismo, que ocorre em função da proteção dos
interesses do capital.
Seja pela apresentação das evoluções da ciência como verdade (discurso
universitário), seja pela manipulação de dados para chegar num resultado que interesse
ao mercado (discurso capitalista), nos dois casos prevalecem discursos de dominação e
concentração.
Hoje estamos vivendo um momento de “crise” em nosso país, crise essa que não
chega nem perto de outras crises já vividas por nós brasileiros em outros tempos. De
106

qualquer forma o que vemos como solução é que se gere emprego e que se fabrique
mais mercadorias.
As montadoras de automóveis são o principal alvo das queixas de desemprego
na sociedade brasileira, mas em nenhum momento se pensa que as ruas não serão mais
suficientes para transitar com eles, consequentemente não se pensa em alternativas.
Investir em transporte público ou em trens para transportar mercadorias não é
bom para o capitalismo, são investimentos que podem colocar em cheque seu equilíbrio,
ideia descartada no Brasil. Uma simples ciclovia vira polêmica nacional. Talvez
precisemos querer saber um pouco mais... Como já apontamos com Žižek, não existem
soluções verdadeiras, mas mudanças verdadeiras são possíveis, daí a importância de
querer saber, pois se todo saber não é possível, algum saber o é.
Com a evolução do capitalismo nessa direção, as pessoas vão parando de cogitar
outras formas de sociedade não capitalistas (comunismo, socialismo, anarquismo etc.).
Segundo Žižek (1996):

Até uma ou duas décadas atrás, o sistema produção-natureza (...) era


percebido como uma constante, enquanto todos tratavam de imaginar
diferentes formas de organização social da produção e do comércio; (...) hoje,
como assinalou Frederik Jameson com muita perspicácia, ninguém mais
considera seriamente as possíveis alternativas ao capitalismo. (p. 7).

Žižek, em 1996, como se vê, se refere às décadas de 70 e 80. Portanto podemos


dizer que já há aproximadamente 40 anos em que as pessoas pararam de imaginar tais
alternativas, de modo que continuamos tentando alimentar um sistema fadado a cada
vez mais alimentar o abismo das diferenças sociais e a aniquilação das diferenças dos
sujeito.
Tendo nesta segunda parte do trabalho desenvolvido a teoria dos discursos de
Lacan, vamos agora terceiro capítulo, onde trataremos exclusivamente de discutir se há
implicações do discurso do analista como resistência ao discurso capitalista.
107

CAPÍTULO 3 - O DISCURSO DO ANALISTA IMPLICA ALGUMA FORMA DE


RESISTÊNCIA AO DISCURSO CAPITALISTA?

A intrusão na política só pode ser feita


reconhecendo-se que não há discurso – e
não apenas o analítico – que não seja do
gozo, pelo menos quando dele se espera
um trabalho que alcance a verdade.
(LACAN, 1969-70/1992, p. 74).

Bem, a discussão central de nossa tese se dá em torno da questão: o discurso do


analista, enquanto dimensão política da psicanálise, implica alguma forma de resistência
ao discurso capitalista? Durante toda a tese fomos tratando dos conceitos psicanalíticos
e apontando sua eficácia na clínica e, ao mesmo tempo, tensionando sobre a
possibilidade da eficácia da teoria no campo político.
A partir do que foi trabalhado até agora, parece evidente, teoricamente, que o
discurso do analista pode implicar em alguma forma de resistência ao discurso
capitalista. Na práxis isso é possível a partir do trabalho do analista em sua função, por
ele colocar-se na posição de objeto a causa de desejo, sua política, em relação às
queixas sintomáticas da histérica. Isso é o que ocorre no consultório. Buscaremos agora
fazer uma articulação que possa demonstrar uma implicação da dimensão política no
campo social.

3.1 A dimensão política da psicanálise no laço social

Começamos este trabalho pensando em por que o sujeito não questiona o


sistema capitalista. Colocamos que a união entre o capitalismo, tecnologia e a mídia
gera um forte argumento para calar as inquietações do sujeito, pois, aliados, trabalham
incessantemente para fortalecer a ideologia capitalista e convencer o sujeito sobre a
verdade deste discurso, o que dificulta o questionamento do sujeito sobre o sistema que
o reifica.
Vimos que apesar de o sujeito não questionar o sistema de maneira consciente,
ele contesta com seu sintoma e à sua revelia, por não existir objeto adequado a seu gozo.
108

É fato que o discurso capitalista quer que o sujeito acredite em sua promessa de que há
objeto adequado ao gozo, mas é uma promessa que o sistema capitalista não pretende
cumprir, pois, além de não ser possível, por não haver objeto adequado ao gozo, caso
essa promessa se cumprisse, o consumo daria conta do gozo do sujeito e o capitalismo
não se sustentaria. Portanto, o que interessa para a sustentação do sistema é a crença do
sujeito numa promessa que jamais será cumprida.
Vimos que no sistema de produção capitalista o empresário extrai mais-valia do
trabalhador, uma vez que é o detentor dos meios de produção. E o trabalhador se
submete à exploração de sua força de trabalho, pois é o único meio que lhe resta para
sobreviver, já que não possui os meios de produção .
Como decorrência da concentração dos meios de produção nas mãos do
empresário, ocorre a alienação do trabalhador. A alienação acontece porque no processo
de produção, em função de o trabalhador realizar apenas uma pequena parte no processo
de execução de uma mercadoria, ele perde a dimensão de como realizar uma mercadoria
inteira e consequentemente perde o saber-fazer. Nesse movimento, inclusive, a maioria
das pessoas deixa de buscar ou preservar um saber-fazer, pois esse saber-fazer passa a
ser descartado como meio de subsistência, já que é quase impossível competir nos
preços com a produção realizada pelas fábricas.
Ao perder o saber-fazer, o trabalhador perde a dimensão criadora dos objetos
que fabrica e passa a vender sua mão de obra como mercadoria-trabalho. Nesse
movimento, o capitalista se apropria não apenas do saber-fazer, mas também da mais-
valia, um tempo de trabalho do qual o trabalhador abre mão em favor do empresário.
A exploração da mais-valia torna o trabalhador ainda mais escravo do
empresário, tanto porque não há possibilidade deste obter os meios de produção, quanto
porque ele perde a possibilidade de subsistência se não trabalhar na fábrica. Assim, para
manter sua subsistência, ele se torna alienado e, como indica Peixoto (2010),
“Alienação, então, nada mais é do que a negação da produtividade, ou seja, da
capacidade criadora do homem” (p. 34).
Sobre o gozo, vimos com Lacan (1964/1998) a essencialidade do autômaton –
por comandar o sujeito na busca de prazer – e da tiqué – que promove o encontro com o
real nas repetições, encontro essencialmente faltoso, que faz o sujeito produzir algo
novo. Em se tratando da clínica, o gozo é essencial, mas deve ser manejado pelo analista
na transferência para que o analisante, a partir da demanda, se depare com o encontro
faltoso – pois o analista sabe do fracasso da busca do objeto demandado – e possa criar
109

algo novo. Entendemos que é esse mesmo encontro faltoso nos laços sociais que cria a
oportunidade da subversão do sujeito e da invenção de alguma forma de resistência ao
discurso capitalista.
Vimos que a psicanálise nasce como sintoma do capitalismo, por dar voz ao
sintoma histérico, portanto, como resistência ao capitalismo. Como vimos no capítulo
2.3 deste trabalho, sobre discurso da histérica, o sintoma é o que atrapalha a bela ordem
do discurso do mestre, pois o discurso capitalista na tentativa de governar o sujeito
impõe-lhe uma verdade acabada. A histérica, porém, mostra seu sintoma como o
“retorno da verdade como tal na falha de um saber” (LACAN, 1966c/1998, p. 234).
Assim o discurso da histérica, ao sustentar o sintoma, se torna um forte aliado do
discurso do analista para fazer resistência ao discurso capitalista.
O fato de que, como já vimos, não é possível que o discurso capitalista invada o
inconsciente, isso nos faz crer que sempre poderemos contar com os sintomas e as
outras formações inconscientes enquanto seres falantes, para fazer resistência aos
discursos de dominação.
Ao resistir com seu sintoma, o sujeito mostra que não é objeto, pois o sintoma,
ao aparecer à sua revelia, revela a impossibilidade de eliminar o mal-estar na cultura e
consequentemente denuncia a falsa promessa do discurso capitalista de suturar o
sintoma. Temos assim a dimensão do sintoma que, através do discurso da histérica,
pode ou não fazer resistência ao discurso capitalista, para fazer resistência ele depende
do suporte do discurso do analista.
Lacan (1960a/1998) indica ainda que “o gozo é aquilo cuja falta tornaria vão o
universo” (p. 834), isso diz respeito ao universo do ser falante. Portanto é preciso um
pouco de gozo e temos aí a dimensão do gozo como podendo ou não fazer resistência ao
discurso capitalista, já é preciso ter tempo para que o sujeito sinta o encontro faltoso e
possa criar algo novo para funcionar como resistência. Se ele compulsivamente tenta
colocar outro objeto no seu lugar, é disso que o discurso capitalista se sustenta. Por
outro lado, temos o analista que sabe do fracasso do objeto por ter se submetido a uma
análise e tratado sua demanda e seu gozo, apontando como isso é essencial para que ele
possa exercer sua função e conduzir as análises de seus analisantes até o seu final. Seria
preciso que algo dessa natureza ocorresse no social para que o discurso do analista
implicasse resistência ao discurso capitalista.
A ética da psicanálise, que é a ética do desejo a partir da sustentação do objeto a,
se encontra no fundamento do ato analítico. Este, para acontecer, leva em conta o tempo
110

do inconsciente do sujeito, embora o analista busque calculá-lo, ele não é calculável,


pois seus efeitos são a posteriori. A questão do tempo foi tratada por Lacan (1945/1998)
no texto “Tempo Lógico”, quando o autor também traz, a partir do sofisma dos três
prisioneiros, a possibilidade de uma lógica coletiva, que é um contraponto à teoria da
identificação como fora proposta por Freud (1921/1976), cujas referências foram Le
Bon e outros autores na chamada psicologia das massas.
A ética da psicanálise, o objeto a, o ato analítico no tempo lógico e o desejo do
analista são conceitos que dão suporte ao discurso do analista para que ele funcione
como resistência aos discursos de dominação. Assim, o discurso do analista, ao
sustentar tais conceitos, pode fazer resistência ao discurso capitalista graças ao sintoma
que aparece a partir da histerização do discurso.
No segundo capítulo do trabalho, tratamos da teoria dos 4 discursos de Lacan
(1969-70/1992) como modos de gozo, explanamos sobre a impossibilidade e a
impotência de cada um, apontando também sua potencia e seus efeitos para o laço
social. Tratamos ainda de +1 discurso, o capitalista, apontando-o como uma variação do
discurso do mestre em função de sua astúcia.
Esclareçamos com Quinet (2012) que temos os discursos de dominação – que
são o discurso do mestre (segregador), o discurso universitário (discurso do mestre
moderno e concentrador) e o discurso capitalista (como uma variação do discurso do
mestre, também concentrador) – e os discursos de avesso da dominação: o discurso da
histérica e o discurso do analista.
Apontamos o discurso do mestre como um discurso de entrada na linguagem,
portanto, essencial para a existência do sujeito dividido, no entanto é um discurso de
dominação que tem como seu avesso o discurso do analista.
Assinalamos o discurso universitário como discurso do mestre moderno por ele
apropriar-se do saber-fazer do sujeito e criar as condições para dar poder à ciência de
apresentar verdades acabadas que devem dar conta da verdade do sujeito. O discurso
universitário tem como seu avesso o discurso da histérica, que com seu sintoma
questiona o saber da ciência a partir de seu desejo de desejo insatisfeito, ou seja,
questiona o sistema e o faz trabalhar, enquanto mestre, para dar conta da sua falta
inexorável.
A partir do discurso da histérica, Lacan desenha o discurso do analista para
devolver à histérica sua demanda, pois não lhe responde com uma verdade acabada. Ao
contrário, por devolver-lhe sua demanda, coloca a histérica para lidar com o fracasso do
111

objeto que satisfaria seu desejo impossível de ser satisfeito, por ser desejo de desejo
insatisfeito. Daí a importância da histerização do discurso para que uma análise possa
caminhar, pois para que uma análise caminhe, é preciso insatisfação.
Enfim, apontamos o discurso do mestre como um discurso segregador, pois sua
maneira de submeter o sujeito está em colocar sua condição desfavorável como um
destino. Apontamos o discurso universitário e o discurso capitalista como discursos
concentradores, em função da tentativa de aniquilação das diferenças dos sujeitos,
tentativa que é recusada pelo sintoma histérico.
Podemos concluir que a chance de resistência ao discurso do capitalista está no
discurso analista, mas ele não pode trabalhar sem o discurso histérico.
Vimos ainda que quando Lacan (1972, inédito), propõe + um discurso, o
discurso capitalista, ele o aponta como uma variação do discurso do mestre e como um
discurso astucioso e destinado ao furo, logo, isso abre a possibilidade de que algo lhe
faça resistência.
O maior problema é que o mesmo elemento que lhe faz resistência é o que o
sustenta, isso em função de tratar-se de um discurso astucioso que promete algo
impossível, o acesso à sua verdade.
Se por um lado o inconsciente divide o sujeito e o submete à castração, é esse
mesmo inconsciente que determina ao neurótico uma margem de liberdade estrutural
pela via da separação – que é a política da psicanálise –, permitindo que o sujeito gire
nos discursos ao responder de diferentes maneiras, o que implica a possibilidade de
transformar sua realidade no laço social a partir da materialidade do significante, pois
mesmo que o sujeito se entregue ao gozo do capitalismo, não o faz sem sintoma.
Daí, o discurso do analista ao dar voz às queixas da histérica – sobre sua
insatisfação e ao suportar não responder-lhe sobre a verdade de seu sintoma, como faz o
discurso capitalista – à incita a voltar-se para a busca da verdade de seu desejo.
Assim, há uma dimensão política da psicanálise que possibilita o ato analítico e
promove a subversão do sujeito para que advenha uma transformação de sua
subjetividade a partir do sintoma no consultório. Essa mesma dimensão possibilitaria
um ato politico que promoveria a subversão do sujeito para que adviesse uma
transformação da sociedade a partir do sintoma social?
Já vimoso que o sintoma é sempre resistência, mas é preciso que o sujeito venha
a bem dizer seu sintoma para que haja transformação. Quinet (2003) aponta que:
112

No início de uma análise, o sintoma é um dizer que ainda não encontrou seu
dito. A passagem do dizer do sintoma a seu dito é o que constitui propriamente
falando o processo analítico, que se alinha na ética do bem dizer o sintoma. Para
que o sintoma do sujeito se transforme, no início do processo analítico, num
sintoma analítico é preciso que seja considerado pelo sujeito como um parceiro
de verdade. (p. 140)

Esse fato faz toda diferença, pois mostra que o sintoma pode vir a ser
revolucionário. Entendemos que o capitalismo, como as formas anteriores de sociedade,
não é imutável. Quinet (2003) nos dirá ainda que é preciso adotar o sintoma, vejamos:

A análise vai do sintoma parasita ao sintoma adotado. O sintoma parasita, seja


ele histérico, fóbico ou obsessivo, é o sintoma mensagem que contém uma
mensagem a ser decifrada, memorial histórico dos ditos do Outro escritos em
suas cifras de gozo, ou seja, é o sintoma que desaparece numa análise conduzida
a seu termo. O sintoma adotado é o que resta do deciframento, mas não deixa
de ser sintomático (...) constituindo aquilo com o qual o sujeito vai ter que lidar
bem ou mal. Adotar o sintoma, sabendo que ele é parte de seu gozo e de seu
inconsciente, é a condição para que o sujeito possa saber lidar com ele e tomar
distância dele. (p.147)

Transpondo as palavras de Quinet sobre a clínica para sociedade, é possível


dizer que seria preciso adotar o sintoma social e bem dizê-lo. Mas como tomar o
sintoma, que é algo singular de cada sujeito, como sintoma social?
Segundo Askofaré (1997), sintoma social quer dizer, nada mais do que, que todo
sujeito tem sintoma. Nesse sentido poderíamos pensar que se o sintoma social fosse
interpelado pela intervenção de ato político, ocorreria que a sociedade como um todo
lidaria com o sintoma singular de cada sujeito. Pensando a ideia de Quinet (2003), a
sociedade adotaria o sintoma social na busca de tratá-lo e não de eliminá-lo.
É na medida em que o sintoma social pudesse ser adotado pela sociedade, que
ele poderia funcionar como resistência ao capitalismo ao considerar o tratamento dos
conflitos e não de sua eliminação, a partir de sua politica da separação fazendo
contraponto à política concentradora do capitalismo. Mas como é possível que algo
que se dá no consultório possa funcionar na sociedade? Lacan (1969-70/1992) aponta
que:

Ele, o analista, se faz de causa do desejo do analisante. O que quer


dizer essa coisa estranha? Devemos considera-la um acidente, uma
emergência histórica, que teria surgido no mundo pela primeira vez?
Antecipando a tomada de uma via que nos arrastará, talvez, por um longo
desvio, vou apenas assinalar que essa função já apareceu, e que não é por
113

nada que Freud recorria de preferência a tantos pré-socráticos, Empédocles


entre outros. (p. 36).

Podemos assim considerar, a partir de Lacan, que o nascimento da psicanálise


articulou-se com ações antigas, ações que já se faziam presentes desde os tempos pré-
socráticos, muito antes da descoberta do inconsciente à maneira freudiana, e de alguma
maneira já funcionava no social. Sendo assim, não é preciso que se esteja dentro de um
consultório para que o discurso do analista funcione, assim como não é preciso estar
dentro do consultório para que a transferência ocorra.
Se o manejo da transferência no consultório por um analista em sua função pode
levar o sujeito a transformar sua subjetividade, entendemos que é possível um manejo
da transferência no social que possa transformar a sociedade pela intervenção da política
da psicanálise, que é a da separação.
Os resultados de um final de análise se dão pela reinvenção do sintoma que
revela ao sujeito o direito à castração. Esses resultados poderiam ser transpostos para
pensar a reinvenção do sintoma social revelando à sociedade o direito ao conflito e ao
espaço de constante tensão no laço social? Como já foi apontado anteriormente, Lacan
(1967a/2003) propõe a noção de aplicação da psicanálise em intenção como guia para a
aplicação da psicanálise em extensão.
Claro que isso é muito complicado, pois um sujeito dado como mestre na
identificação, suposto saber, teria que revestir-se de objeto a e se abster de responder à
demanda de uma sociedade inteira e colocá-la a trabalhar, como faz o analista no
consultório. É aí que as coisas se complicam.
A concepção ética da psicanálise propõe que no discurso do analista surja um
novo estilo de significante mestre que se abstenha do saber sobre o analisante. Seria
possível surgir um mestre que se absteria do saber sobre a sociedade que colocaria o
social a trabalhar?
No nosso país, o presidente de que diminuiu a pobreza nos últimos anos, Lula,
portanto promoveu grandes mudanças sociais, não conseguiu sair do lugar de mestre, e
o que estamos presenciando neste momento é sua destituição como mestre, ele, que
buscou o bem de todos. Tanto buscou o bem de todos que os ricos ficaram ainda mais
ricos. Então como fazer para destituir-se do lugar de mestre?
Há um acontecimento interessante neste aspecto que se passa com Lacan. Numa
conversa com os estudantes no momento de manifestações estudantis em 1969 na
114

França, quando estes lhe exigiam um posicionamento quanto à revolução, Lacan (1969-
70/1992) responde aos estudantes:

Se tivessem um pouco de paciência, e se aceitassem que nossos


improvisos continuassem, eu lhes diria que a aspiração revolucionária
só tem uma chance, a de culminar, sempre, no discurso do mestre. Isto
é o que a experiência provou. É o que vocês aspiram como
revolucionários, a um mestre. Vocês o terão. (p.196)

Obviamente Lacan não estava ingênuo à situação, ele tinha escrito o texto do
tempo lógico já havia 24 anos e percebeu naquela aspiração revolucionária que a
relação não se tratava de uma lógica coletiva e sim da relação de identificação da lógica
da psicologia das massas de Freud (1921/1976).
Nesta passagem Lacan aponta aos estudantes que eles estão buscando um
mestre, um estudante responde, “já o temos, temos Pompidou” (p.192), ninguém
contesta, está feito. Mesmo assim as relações sociais foram sendo profundamente
modificadas num sentido libertador desde maio de 68 pelas manifestações.
O que isso quer dizer? Quer dizer que mesmo quando se trata de um mestre no
comando, podem ocorrer consequências libertadoras? Ou teríamos que pensar essas
consequências libertadoras como um benefício para o sistema capitalista? Ou isso é um
processo de retroação significante como resultado de um ato político e estes foram os
efeitos a posteriori, de algo anterior em que as pessoas precisaram de um tempo lógico
para dar uma resposta coletiva? É difícil avaliar, mas não se pode negar que houve
consequências libertadoras.
Voltemos à conversa de Lacan com os estudantes: digamos que com sua
resposta Lacan tenha se revestido de objeto a, outro estilo de significante-mestre, que se
abstém do lugar de saber sobre o que fazer que lhe foi solicitado diante das
manifestações, pois ao mesmo tempo em que denuncia essa repetição da busca de um
novo mestre com respostas prontas, parece querer sustentar um ato que o incite os
estudantes a criar alternativas coletivas para a transformação social requerida ao invés
de buscar a resposta em um único mestre.
De qualquer forma, sua posição não foi bem recebida pelos estudantes e não se
caracterizou como um ato político, pois o ato é um acontecimento a posteriori, por
retroação significante, o que nesse caso não aconteceu. Os estudantes não estavam em
momento de concluir a intervenção de Lacan como um ato político. Como vimos,
115

tratava-se mesmo da busca de um mestre com seu poder de saber uma resposta que
trouxesse harmonia social.
Há de se considerar que Lacan não é o único que tentou isso, mas outros que
tentaram também não encontraram terreno fértil para propor um ato político como
resposta ao sintoma social que promovesse uma subversão no laço social no sentido de
o discurso do analista implicar resistência ao discurso capitalista.
Já dissemos com Checchia (2012) que a teoria do poder apontada por Freud
sobre a técnica psicanalítica tem seu caráter subversivo pelo manejo que engendra um
efeito libertador. Esta é a única forma de o analista em sua função ser tomado como
mestre a partir do discurso do analista. O discurso do analista, como vimos, é uma
forma de assumir o significante-mestre a partir de um novo uso, isto é, o da política do
objeto a. Desse modo, visa a propiciar uma contingência para que o sujeito se implique
com o saber que ele mesmo tem e acesse sua margem de liberdade.
Entendemos que a posição de Lacan (1969-70/1992) busca deixar essa pista para
os estudantes sobre a busca de uma construção social de uma lógica coletiva. Talvez
essa passagem da história, sobre tal posicionamento de Lacan e outros posicionamentos
neste mesmo nível, ainda possam ter repercussões futuras, quem sabe?!
Bem, tendo apontado uma articulação da atuação da política da clínica e as
possibilidades de que ela seja transposta para o social, trataremos agora da teoria da
lógica coletiva proposta por Lacan (1945/1998) como contraponto à teoria da
identificação apontada por Freud (1921/1976). Esperamos assim demonstrar
teoricamente mais uma possibilidade de implicação do discurso do analista como
resistência ao discurso capitalista no campo político da sociedade.

3.2 A teoria da identificação com Freud e a Lógica coletiva de Lacan

Temos a teoria da identificação com Freud e a teoria da lógica coletiva de


Lacan, que se diferencia e faz contraponto à primeira (identificação). Para tratar da
teoria da identificação, recorreremos ao clássico texto de Freud (1921/1976),
“Psicologia das massas e análise do eu”, e para tratar da teoria da lógica coletiva,
voltaremos ao texto de Lacan (1945/1998), “O tempo lógico e a asserção da certeza
antecipada”.
116

Buscaremos apontaremos seus usos e suas diferenças para demonstrar a


possibilidade de o discurso do analista implicar alguma forma de resistência ao discurso
capitalista a partir de uma lógica coletiva, como uma política do real.
Comecemos pela teoria da identificação. Freud (1912-1913/2013) aponta que na
comunidade primitiva totêmica, pôde-se observar a identificação com o pai quando,
após seu assassinato, todos se unem pelas proibições totêmicas com direitos iguais,
porém cada um torna-se chefe de uma família, repetindo o pai gozador. O autor
(1921/1976) afirma que essa identificação com o pai “constitui a forma mais primitiva e
original do laço emocional” (p. 135). O autor aponta ainda que segundo Le Bon:

Um grupo é extremamente crédulo e aberto à influência; não possui


faculdade crítica e o improvável não existe para ele. Pensa por imagens, que
se chamam umas às outras por associação (tal como surgem nos indivíduos
em estados de imaginação livre), e cuja concordância com a realidade jamais
é conferida por qualquer órgão razoável. Os sentimentos de um grupo são
sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhece a
dúvida nem a incerteza. Ele vai diretamente a extremos; se uma suspeita é
expressa, ela instantaneamente se modifica numa certeza incontrovertível;
um traço de antipatia se transforma em ódio furioso. (FREUD, 1921/1976,
pp. 101-102).

No nosso país podemos observar notícias bem atuais sobre como a maioria das
pessoas são influenciáveis e sem faculdade crítica. Isso fica bem claro quando
observamos as notícias infundadas amplamente difundidas nas redes sociais sem
nenhuma dúvida sobre sua veracidade, onde também se nota que qualquer tentativa que
gerar algum traço de antipatia se transforma em ódio furioso. Freud (1921/1976) aponta
ainda que:

Alguns outros aspectos da descrição de Le Bon mostram, a uma clara luz,


quão justificada é a identificação da mente grupal com a mente dos povos
primitivos. Nos grupos, as ideias mais contraditórias podem existir lado a
lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição
lógica entre elas. (FREUD, 1921/1976, p. 103)

O aspecto primitivo da coexistência de tais contradições lógicas sem conflito


podem ser observadas em algumas das atuais manifestações brasileiras. Um exemplo
disso foi notável nas redes sociais e pela televisão, manifestantes pedindo intervenção
militar para trazer de volta o direito à liberdade. Nada mais contraditório. O autor
aponta ainda que:
117

Inclinado como é a todos os extremos, um grupo só pode ser excitado por um


estímulo excessivo. Quem quer que deseje produzir efeito sobre ele, não
necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas
cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes.
(FREUD, 1921/1976, p.102)

Enfim, este é um aspecto apontado por Freud em 1921 e notamos sua atualidade
diariamente na sociedade contemporânea. Estímulos excessivos são repetidamente
inseridos nas propagandas através dos meios de comunicação de massa para estimular o
consumo, além de propagar falsas informações que buscam convencer a sociedade da
certeza da ideologia da classe dominante.
São imperativos impostos por um pai muito mais exigente em sua função do que
qualquer outro que já existiu, pois conta com a ajuda da tecnologia e da mídia através
dos meios de comunicação de massa para promover a aniquilação das diferenças e
acelerando a tendência totalitária que assistimos na sociedade contemporânea.
Freud (1921/1976) inclusive fornece uma fórmula para a constituição de grupos
hoje formados pelo discurso capitalista, diz ele: “Um grupo primário desse tipo é um
certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal
do ego e, consequentemente, se identificam uns com os outros em seu ego” (p.147). O
objeto que hoje traduz esse lugar do ideal apontado por Freud é o objeto de consumo
proposto pelo discurso capitalista.
Sobre essa forma de laço, Gallano (2014b) diz que “Sabemos o quanto
tristemente a opinião comum pode acomodar-se na banalidade do mal em voluntárias
servidões, e a negação do real levar às cegueiras subjetivas” (p.23). São situações
apontadas nos exemplos atuais que expusemos acima, que se dão através de imperativos
enunciados pelo mestre que é o sistema capitalista através de seu discurso.
Para fazer contraponto à teoria da identificação apresentada por Freud,
abordaremos a teoria da lógica coletiva proposta por Lacan (1945/1998) que, em seu
texto sobre o tempo lógico, nos trouxe o sofisma dos três prisioneiros.
Este sofisma contém uma solução perfeita para uma lógica coletiva, conceito já
introduzido no capítulo 1.4 deste trabalho. Sabendo disso, iremos nos repetir no que já
foi tratado lá, apenas nos aspectos que se fizerem necessários.
Neste texto, logo após apresentar a solução perfeita para o sofisma, Lacan
(1945/1998) se pergunta se essa solução perfeita pode ser atingida na experiência, pois
na teoria isso é possível. Outra questão colocada por Lacan (1945/1998) no final do
118

texto é que embora a lógica do sofisma possa ser aplicada a um número ilimitado de
pessoas24, as coisas se complicam quando esse número cresce. Nas palavras do autor:

Basta desenvolver por recorrência a demonstração do sofisma para ver que


ele pode aplicar-se logicamente a um número ilimitado de sujeitos, posto que
o atributo “negativo” só pode intervir num número igual ao número de
sujeitos menos um. Contudo, a objetivação temporal é mais difícil de
conceber, à medida que a coletividade aumenta, parecendo criar obstáculos à
lógica coletiva (LACAN, 1945/1998, pp. 212-213, grifos do autor).

Essa dificuldade se dá em função de algumas variantes. Uma delas, que não


pode ser esquecida, é que a proposta do diretor do presídio exigia dos três prisioneiros
uma solução lógica que não poderia ser resolvida por probabilidade, por isso implicou
que os três prisioneiros estivessem no mesmo ambiente para chegar na solução perfeita,
já que é preciso observar a reação dos outros para chegar a tal solução, daí tratar-se de
uma lógica coletiva.
De acordo com o sofisma utilizado por Lacan (1945/1992), que possibilita a
aplicação a um número ilimitado de sujeitos, seria possível transpô-lo para a sociedade
da seguinte maneira: existem sete bilhões de pessoas aprisionadas no mundo e elas
estariam todas no mesmo ambiente, planeta Terra.
No entanto, por se tratar de um número exorbitante de pessoas – existiriam sete
bilhões de discos brancos e seis bilhões, novecentos e noventa e nove mil e novecentos
e noventa e nove discos pretos – existiria variantes que aumentaria o grau de dificuldade
de as escansões ocorrerem, que no sofisma que se aplica a apenas 3 prisioneiros (ou em
uma análise quando se trata de dois sujeitos, ou um cartel da escola com seus 4+1), pois
não seria possível o acesso visual a todos os discos dos sujeitos, essa inferência teria
que ser incorporada através de informações.
A solução perfeita para a humanidade seria que todos e ao mesmo tempo
concluíssem logicamente a cor do disco em suas costas, e como no sofisma, cada um
não pode ver a cor de seu próprio disco. É digno de nota apontar ainda que a solução do
sofisma dos três prisioneiros se dá através do discurso sem palavras, onde ocorre uma
relação para além do enunciado entre os prisioneiros. No caso de o sofisma ser aplicado

24
Em nota de rodapé da página 212 dos Escritos, Lacan (1945/1998) explica a possibilidade da solução
perfeita do sofisma com 4 sujeitos, quatro discos brancos e três pretos, afirmando que a solução pode ser
aplicado a um número ilimitado de sujeitos contando com três escansões, as mesmas escansões
necessárias para a solução do sofisma dos três prisioneiros. Se compreendermos sua explicação,
entenderemos de lógica coletiva a um número ilimitado de pessoas.
119

a todos os seres falantes, teríamos que contar com algum enunciado informativo como
já foi dito.
A teoria da lógica coletiva tem uma dimensão diferente da teoria da
identificação, pois os prisioneiros não colocam um único objeto no lugar do ideal para
identificar-se com os outros em seu ego, como acontece na teoria da identificação
apresentada por Freud. Ao contrário, eles não podiam dizer uns aos outros a cor do
discos dos oponentes, pois perderiam a chance de ter a liberdade. O mesmo ocorre com
os bilhões de falantes.
Todas essas variantes nos fazem tomar o sofisma como uma simbolização da
lógica coletiva, entendendo que ela não poderia ser aplicada aos falante de um planeta
inteiro. Há que se perguntar inclusive, quem seria o diretor, teria que ser alguém que
fizesse um ato político. Enfim, entendemos que a conjuntura global e a situação
histórica-econômica-política do nosso mundo atual não comporta tal aplicação.
Essa conclusão, porém, não invalida a possibilidade que de alguma maneira a
lógica coletiva possa funcionar. Por exemplo, examinemos a questão de Gallano
(2014a): “Acaso poderíamos – ainda sem saber como – extrair de nossos singulares
aconteceres, experiências a compartilhar em que, embora separadas em suas plurais
diversidades, possam pensar políticas alternativas para tratar as vias de uma existência
comum? (p. 11, tradução nossa) Entendemos que essa questão está no coração de uma
possível aplicação da lógica coletiva.
A partir da questão de Gallano podemos formular mais outra pergunta: tal
solução interessa à classe dominante? Do ponto de vista da psicanálise, sabemos que a
classe dominante também não é livre, pois a ela é dada a mais-valia, porém, ao mais-de-
gozar, nenhum ser falante tem acesso. Inclusive porque o sistema capitalista não permite
que o empresário goze plenamente do capital, pois esse deve ser investido para que mais
capital se acumule. Assim, todo ser falante trabalha para o capitalismo como aponta
Vanier (2002):

Para Lacan, diferentemente de Marx, estamos em uma sociedade de


escravos, todos do mesmo lado da máquina da produção capitalista.
Todos renunciamos ao gozo, condição da entrada no laço social; mas somos
todos apanhados na promessa, reafirmada com insistência, de uma
possibilidade de recuperação desse gozo perdido oferecida pelo consumo que
será democraticamente repartido entre todos. (p.208)
120

Obviamente que essa promessa não pode ser cumprida, pois a parte que deveria
ser repartida deve ser canalizada para mais acúmulo de capital. Se ela fosse repartida, o
sistema capitalista não sobreviveria.
Entretanto, a classe dominante tem o poder nas mãos (meios de produção, mídia,
tecnologia, armas...) e quer preservá-lo, o que faz com que ela não se interesse em
precipitar o momento de concluir, fazendo permanecer a dúvida aos bilhões de sujeitos
proletários que pudessem estar interessados na liberdade.
O proletário, cada um deles pensando individualmente, apesar de não ter acesso
ao poder, trabalha para o capitalismo na esperança de um dia estar no poder. Assim, no
capitalismo, em ambos os casos (tanto para o capitalista quanto para o proletário), o
senhor é o sistema capitalista.
Se estamos todos com os discos brancos nas costas, a classe dominante tem
dificultado a solução perfeita utilizando-se de seus poderes para ofuscá-la, assim como
todos aqueles que não se interessariam pela solução perfeita, a ofuscariam por não
apresentarem as pistas necessárias para a solução coletiva. O proletário faz o mesmo
para não perder a esperança de um dia alcançar o gozo que ele pensa que o capitalista
tem acesso, esse é o sacrifício de sua castração ao Outro. Assim deixamos o Outro
capitalista servir-se de nossa castração para não perder a fé de que podemos ter poder.
Se, como disse Lacan (1945/1998), a solução perfeita é a fórmula de uma lógica
coletiva numa relação de reciprocidade da falta de saber, é o discurso capitalista que
torna essa relação nebulosa, pois ao apresentar uma verdade sobre o gozo do sujeito,
dificulta o pensamento lógico dos envolvidos, que são todos os seres falantes.
Nesse pensamento poderíamos propor o cúmulo da utopia: A classe dominante
vislumbrar-se também como perdedora de gozo e tão presa ao sistema capitalista como
qualquer trabalhador ou os que estão à margem em relação ao acesso ao capital (os
aniquilados do sistema).
Pelo lado dos trabalhadores que não têm acesso ao capital, esses vislumbrariam a
impossibilidade de gozo da classe dominante (pois não há Outro do Outro) e assim
parariam de buscar tal gozo por sabê-lo impossível. Nessa perspectiva, ambos se
permitiriam perder gozo para ganhar desejo, pois, embora o capitalista se aproprie da
mais-valia, ao mais-de-gozar é garantido pela linguagem que ele não terá acesso.
Fingerman (2005) aponta que “há um sujeito, $, que é tanto o capitalista quanto
o proletário. É o sujeito do capitalismo radicalmente à mercê do sistema que ele produz
e que o produz” (p.79). Sendo assim, tal utopia poderia ser realizável se coletivamente
121

os seres falantes pudessem se dar com a castração, não só sua castração singular, mas
também com a castração que se impõe como impedimento a uma sociedade harmoniosa.
Mas essa utopia é o cúmulo, pois o difícil – para cada um, assim como para a sociedade
como um todo, enquanto seres falantes – é querer saber disso, dessa perda de gozo.
Considerando tais variantes, incluídas em um número incomensurável de
participantes e tendo concluído a impossibilidade da aplicação do sofisma sem invalidar
a lógica coletiva, perguntamos: seria necessário que todos os seres falantes chegassem
juntos à solução perfeita da lógica coletiva para que uma mudança social verdadeira
pudesse acontecer? Entendemos que tais variantes não necessariamente impedem uma
mudança verdadeira, como aponta Lacan (1969-70/1992) “nada é tudo” (p.193), e é isso
que nos atesta toda a teoria da incompletude proferida pela psicanálise.
Trata-se de uma teoria do conflito, portanto pode haver aqueles que preferem o
capitalismo, o que é admissível pela psicanálise. Aqui trata-se muito mais de pensar
sobre o deslocamento da impotência na busca da verdade, já que sempre há falantes que
buscam tal verdade mesmo à sua revelia em função do sintoma que lhes é inerente, isso
levando em conta que nem todos conseguem escapar de uma busca pelo saber.
Sendo assim, é importante ainda não perder de vista o que nos aponta Ema
(2014) sobre a importância da busca do deslocamento da impotência, mas não de sua
eliminação. Diz ele: “a impotência é deslocada por um saber-fazer na prática do
impossível, sem cancelá-lo, sem tamponá-lo, pois nenhuma solução é definitiva
mediante uma pílula mágica que restituiria definitivamente o equilíbrio perdido” (p.90).
Isso quer dizer que há uma impotência de se chegar na verdade, e é por isso que
a verdade é sempre parcial e se sustenta somente enquanto um nova verdade se constrói
a partir do sintoma do sujeito. Assim a impotência significa que não há verdade total,
mas não significa que devemos deixar de buscar tal deslocamento da impotência, essa
busca é recomendável e esperada segundo a teoria psicanalítica.
É um paradoxo, pois como aponta Ema (2014), por um lado “o desejo não é
independente da lei, há satisfação também na sujeição, nos mandos normativos, na
culpa, etc.” (p. 87), ou seja, alguma relação com o Outro é necessária para estabelecer
laço social, trata-se da alienação estrutural imposta pela entrada na linguagem
representada pelo discurso do mestre. Mas por outro lado é preciso que o sujeito busque
uma margem de liberdade em relação a ela para construir o próprio saber. Inclusive,
como já foi dito insistentemente, é por meio do sintoma à sua revelia, que o sujeito pode
122

estabelecer uma margem de liberdade nos laços sociais em relação à cultura em que ele
se constitui.
Sendo assim, por mais que o discurso do analista leve o sujeito para um sentido
contrário à identificação, visando a separação do sujeito da alienação ao Outro, ele (DA)
não levará à sua completa desaparição, dado que não é possível se desfazer da sua
alienação estrutural (como já apontada no capítulo 2.2 deste trabalho). E é o ato
analítico (ou político) que pode fazer com que o sujeito questione o que se apresenta
como sintoma de uma verdade para ele, uma chance de produzir o novo. Sobre a
verdade, Lacan (1969-70/1992) aponta que:

Para dizer a verdade, é só de onde é falso que o saber se preocupa com


verdade. Todo saber que não é falso não se importa com ela. Ao ser
averiguado, só tem sua forma como surpresa, surpresa de um gosto aliás
duvidoso, quando, pela graça de Freud, é de linguagem que nos fala, posto
que não é senão seu produto. É aqui que tem lugar a incidência política.
Trata-se em ato desta pergunta – de que saber se faz a lei? Quando se
descobre isso, pode ser que mude. O saber cai na categoria de sintoma,
visto com outro olhar. E ali, vem a verdade. Luta-se pela verdade, o que,
de todo modo, só se produz por sua relação com o real. Mas que isso se
produza importa muito menos do que aquilo que produz. O efeito de
verdade é apenas uma queda de saber. É essa queda que faz produção. O
real não é afetado por isso, de modo algum. Em geral, ele se agita até a
próxima crise. Seu benefício do momento é que recuperou seu verniz. Esse
seria aliás o benefício que se poderia esperar de qualquer revolução, esse
verniz que brilharia muito tempo no lugar, sempre turvo, da verdade. Só que,
desse verniz, nunca se vê mais do que o fogo. (...) o que há de pavoroso
na verdade é o que ela põe em seu lugar. O lugar do Outro, como sempre
disse, é feito para que nele se inscreva a verdade, quer dizer, tudo o que é
dessa ordem, o falso. (p. 178, grifo nosso).

Uma citação um tanto longa, mas muito elucidativa que articula vários
conceitos. Aponta que o saber não se preocupa com a verdade, ele surpreende o
sujeito expondo uma verdade que se sobrepõe à verdade anterior. Assim apresenta a
incidência da política na categoria do sintoma. Este se produz por sua relação com o
real como efeito de verdade pela queda do saber, importando o que tal verdade produz
a partir do ato de questionamento da lei.
Daí o real se agita até a próxima crise desta nova verdade que se instala para ser
novamente destituída. Nova verdade que desarmoniza o sujeito por ter que ser
substituída, reconstruída, trabalhosamente... Isso denota que o Outro, enquanto verdade,
é estabelecido para ser derrubado, pois sua verdade, por ser parcial, está condenada ao
fracasso. Mas o mais intrigante é que não há como planejá-lo, assim como numa análise
o ato analítico não pode ser calculado pois o trabalho da verdade leva um tempo longo
123

do sujeito em análise, na sociedade o ato político leva não pode ser calculado e o
trabalho da verdade leva um tempo também incalculável no laço social.
Para pensar a possibilidade de uma lógica coletiva numa perspectiva similar ao
que acontece em análise no consultório, portanto não identitária nem idealista, Ema
(2014) propõe que:

Este coletivo poderia vincular-se e manter certa coesão a partir de uma


condição, a do desejo, que passando pela abertura ao Outro (tanto ao outro
impossível de conhecer que causa desejo quanto aos outros concretos com os
quais o desejo se compõe) não pode fechar-se definitivamente. (p.98,
tradução nossa).

Ema (2014) propõe também a possibilidade de uma identificação com o sintoma,


relacionado por Žižek (2001) à “a parte sem parte” extraída do filósofo Rancière (1996).
Ema (2014) explica:

Aqui, “a parte sem parte” funciona como um lugar vazio que permite
encarnar uma batalha política singular, uma transformação política geral do
cenário comum. Essa parte que não conta para a ordem dominante como
legítima, pode aparecer como uma disfunção particular, um mal
funcionamento, quando na verdade denuncia o funcionamento injusto do
sistema em seu conjunto. (p. 99, aspas do autor, tradução nossa).

Ou seja, as manifestações que não têm parte na sociedade, são elas que
denunciam as injustiças do sistema e as que merecem toda a atenção da sociedade. No
Brasil, podemos pensar no MST (Movimento dos Sem Terra), que não tem parte no
sentido de uma luta legítima, mas denuncia o acúmulo de terra para poucos e a falta de
terra para muitos.
A ocupação das escolas25 pelos estudantes do Ensino Médio no Estado de São
Paulo no ano de 2015 é outro caso, que não tem parte como luta legítima, pois mereceu
intervenções policiais e espancamento das crianças (os ocupantes), mas denuncia a
precariedade da educação no nosso país.
A violência, atestada diariamente pelos programas sensacionalistas de televisão,
exercida pelos “bandidos”, que não tem parte como ação legítima, pois eles são
apresentados apenas como lixo humano pela mídia, mas denuncia a desigualdade social
no nosso país (desigualdade que é responde à pergunta: mas porque tanta violência?).

25
Consultar noticia em: http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/ocupacao-de-escolas-coloca-
reorganizacao-em-xeque/
124

Enfim, todos estes exemplos refletem uma batalha política tida como a parte que
atrapalha o bom funcionamento da sociedade. E isso pode ser verdade, mas atrapalham
o bom funcionamento do quê? Da bela ordem dos discursos segregadores e
concentradores, ou seja, refletem o sintoma social denunciando as injustiças propostas
pela classe dominante. E a lista é imensa...
Ema (2014) aponta ainda que “a política constituída como projeção de uma
posição particular muito concreta e nada universal (masculina, branca, ocidental,
heterossexual...) utilizada como ideal, é veículo de domínio e exclusão” (p.102,
tradução nossa). Assim, os excluídos existem apenas como exemplo de uma classe a
qual não se deve pertencer e que lá ela deve permanecer para não tirar o que é meu
(individualismo). Dessa maneira, a partir do discurso capitalista, luta-se
individualmente para escapar da exclusão. É impensável uma política de acolhimento
aos excluídos da sociedade, essa é a concentração do discurso capitalista a qual
estamos tratando desde o começo deste trabalho. Essa é a dificuldade, mas toda essa
lista que compõe a parte sem parte pode em algum momento do futuro funcionar como
ato político?
Cevasco (2014) aponta que para Alain Badiou o acontecimento político é a arte
de tornar o impossível possível, trata-se de um ato que se dá quando se admite correr
riscos sem garantias de sucesso de harmonia social, pois não há possibilidade de
conceber uma sociedade sem antagonismos. Assim, contar com as diferenças para lidar
com as consequências e com o saber-fazer de cada sujeito para reinventar a sociedade a
partir dos rompimentos proporcionados pelo ato é indispensável. Além disso, como
aponta Cevasco (2014):

A hiância entre o ato e o saber faz do ato algo incalculável e determinado por
uma decisão subjetiva que está submetida a uma lógica temporal que sempre
se produz como uma certeza antecipada e não como uma conclusão lógica de
um prévio raciocínio. (...) O ato é sempre antecipado, ele chega muito cedo,
como expressa Lacan, precisamente para que não seja muito tarde. Enquanto
se confrontar com um real, não é calculável a partir de um saber
estabelecido, embora seja precedido por alguns argumentos é a posteriori que
se pode localizar as condições da situação que dão lugar à emergência e
podem refletir sobre as estratégias de organização para manter abertas as
condições de sua reprodução. (p.122).

Assim, a lógica coletiva necessita da uma política do ato (o ato de fazer o corte e
inserir a pressa) que incide sobre o pedaço de real que é o sintoma e as outras formações
125

inconscientes. Trata-se portanto, de uma política do real, pois ela aborda o tratamento
do sintoma como o que vem do real.
Lacan (1975-1976/2007) assinala que o sintoma não deve ser confundido com o
real, ele é o que do real pode ser simbolizado, ele vem do real, ele é a forma de o real
fazer sua política, e como tal deve ser tratado pelo discurso do analista26. Utopia ou não,
somente arriscando é possível conhecer a dimensão política de tal utopia, se ela é
realizável ou não.
Tudo que foi trabalhado sobre o sintoma neste trabalho, nos apoia a afirmar que
o discurso do analista pode implicar alguma forma de resistência ao discurso capitalista,
pois o sintoma como o que vem do real é suficiente para atrapalhar a bela ordem dos
discursos de dominação se for adotado como uma instancia inerente ao laço social.
Infelizmente, até agora, não houve nada que atestasse na realidade que o discurso do
analista tenha implicado alguma forma de resistência ao discurso capitalista, mas é fato
que o que se trata de futuro não pode previsto, a teoria está posta para ser pensada,
articulada e praticada.

26
Recorremos neste momento do seminário XXIII apenas para apontar o momento em que Lacan trata o
sintoma como o que vem do real para apontar que a política do real é a política do sintoma da lógica
coletiva, mas não adentraremos no sinthoma (com th).
126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, acreditamos que cabe ainda mais alguns apontamentos sobre a
responsabilidade do sujeito no sistema capitalista alienante. Sobre a responsabilidade
em tal sistema, seja ele segregador ou concentrador, Pacheco Filho (2009) aponta que:

Resta (...) acrescentar a isso a consideração do que é da ordem do sujeito.


Uma das bandeiras de luta escolhidas pela Psicanálise é exatamente a que ela
tem empunhado contra a exclusão do sujeito pela pseudociência capitalista. E
sua responsabilidade, portanto, cuidar para que ele não fique de fora também
nas considerações críticas sobre o capitalismo, elucidando de que maneira ele
(o sujeito) também participa e tem responsabilidade na sua própria alienação
ao laço social capitalista e na aceleração de sua tendência totalitária. (p.155)

Ou seja, o sujeito é vítima e também causa de sua vitimização. Como aponta


Ema (2014):

É preciso considerar que não há relações de poder sem cumplicidade do


sujeito e da suspeita sobre tudo aquilo que supõe a ocultação ingênua e
idealista de que é impossível encontrar uma lei, um saber definitivo sobre
nossa maneira de nos conduzirmos na vida. E assim, se não se entender de
maneira realista os caminhos sinuosos da subjetividade, a política pode
converter-se em uma prática sustentada unicamente por ideais imaginários
que finalmente não nos permitiriam transformar nossas condições de vida.
(p.86, tradução nossa).

Além de apontar a cumplicidade do sujeito, Ema (2014) coloca algumas


advertências que a psicanálise faz à política em relação ao que leva o sujeito a não se
responsabilizar pelas mazelas sociais. A primeira advertência se trata da busca do
sujeito por condições de igualdade universais. Tal advertência vai de encontro com a
crítica que fizemos ao discurso universitário e ao discurso capitalista, pois, a partir do
princípio de concentração que busca a aniquilação das diferenças entre os sujeitos, não
há respeito às singularidades, como se houvesse um manual do que seria bom para todos
a ser cumprido, busca de harmonia social.
Outra advertência que a psicanálise faz à política, segundo o autor, trata-se da
ruptura com o Outro supondo que com isso seja possível alcançar a liberdade em sua
plenitude. Concordamos tal advertência, pois, como já foi trabalhado no capítulo 2.1.1
deste trabalho, sobre a impossibilidade e a impotência nos discursos, tal liberdade e
plenitude são impossíveis. Isso seria supor que há os bons e os maus numa visão
maniqueísta.
127

Já vimos com Freud (1912-1913/2013) em “Totem e Tabu” e com Lacan (1959-


1960/1991) no seminário da Ética, como o que é bom para alguns, pode ser
extremamente nocivo para outros. É possível dizer que o bem e o mal está em cada um
de nós, mas como já foi dito, não existe Outro do Outro. É isso o que caracteriza o mal-
estar na civilização, portanto não há como distinguir o que seria um bem e o que seria
um mal para todos. Essa foi a tentativa de Kant e também de Sade, segundo Lacan
(1962/1998).
Isso não impede que possamos fazer nosso julgamento e sejamos respeitados ou
não por tais diferenças, mas, respeitados ou não, a proposta da psicanálise é a
sustentação das diferenças a partir da causa de nosso desejo representado pelo objeto a,
denunciados pelo nosso sintoma e pelas outras formações inconscientes.
Nas palavras de Ema (2014), a ruptura com o Outro “desatenderia os processos
subjetivos, cedendo às servidões voluntárias, que nos faz cúmplices do poder que nos
oprime” (p. 87), pois romper com o Outro também é totalizador e desfazedor de laços
sociais na medida em que sou livre para fazer o que quiser (como Sade). Recusar o gozo
significa recusar a união primordial, o sujeito subverte na medida em que recusa o
acesso ao gozo mas com algum gozo é preciso contar. Subversão do sujeito significa
suportar a castração para gozar através da lei do desejo, e não do desejo sem lei.
A própria busca da eliminação do mal e edificação do bem é totalizadora, pois
bem e mal são duas polaridades que fazem parte do mal-estar na civilização já apontado
por Freud (1930/1974), e situam a singularidade do sujeito, singularidade esta que é
criadora dos conflitos necessários para que haja laço social. Repetindo que a psicanálise
é uma teoria do conflito, portanto do gozo insanável.
Que a totalização proposta pelo discurso capitalista queira a aniquilação das
diferenças do sujeito, este é o impossível dos discursos graças ao sintoma. Mas a
impotência da verdade deve ser enfrentada, já que a proposta da psicanálise é de que a
busca pela verdade não deve ser abandonada mesmo que ela se mostre sempre parcial.
Essa parcialidade é o sopro da vida revelador do desejo sempre de outra coisa
Assim, para que o discurso da psicanálise possa implicar alguma forma de
resistência ao discurso capitalista, a psicanálise conta com a disponibilidade do sujeito
de não se assujeitar. Por isso o discurso da histérica é tão importante, ele é responsável
por apresentar o sintoma descortinando o que não vai bem, mostrando que o sujeito não
é objeto, através de seu desejo de desejo insatisfeito.
128

Bem-dizer o sintoma e buscar a verdade do desejo impossível condiciona a


política do real, também proposta para a lógica coletiva. Enfim, a lógica coletiva
indicada pela psicanálise propõe a política da separação como resistência à teoria da
identificação proposta pelo discurso capitalista e sua política da concentração.
Freud (1916-17b/1976) chega em um momento do desenvolvimento da teoria
psicanalítica em que se dá conta de uma imposição dura, mas real:

Essas duas descobertas – a de que a vida dos nossos instintos sexuais não
pode ser inteiramente domada, e a de que os processos mentais são, em si,
inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de
percepções incompletas e de pouca confiança –, essas duas descobertas
equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria
casa. (p. 178, grifos do autor).

Está aí o descobrimento do sujeito cindido, o que foi ressaltado na obra de


Lacan. As descobertas de que há uma submissão do sujeito ao inconsciente e de que as
pulsões sexuais não podem ser domadas pelo ego, por si mesmas explicam porque o ato
não pode ser calculado e porque ele acontece sem cálculo consciente.
A psicanálise tem fundamentos epistemológicos, metodológicos, teóricos e
éticos, e justamente devido às divergências com outras abordagens, oferece uma clínica
original para o tratamento do sintoma do sujeito. A ética psicanalítica surge da relação
entre o analista em sua função (a partir do desejo de analista) e o analisante em função
de seu sintoma. Nessa relação, o analista, pela via do ato analítico, faz cortes que
incidem nos momentos férteis de atualização do reprimido do sujeito, procurando
produzir uma descontinuidade inconsciente. Os efeitos do ato só podem ser conferidos a
posteriori.
A teoria psicanalítica confirma sua eficácia no par analista e analisante, a partir
daqueles que, através do passe, dão suas provas (ver nota de rodapé número 10 deste
trabalho). A finalidade do passe não é verificar diretamente o término da análise do
sujeito, e sim, verificar se ali há um analista. No entanto, se alí há um analista, isso só
pode ser uma consequência do final de uma análise, ou seja, consequência que significa
que doravante ele pode se virar – sem a presença do analista – com a falta decorrente de
sua castração.
No entanto, isso não acontece em todos os casos em que uma análise ocorre,
pois o fim de uma análise não depende apenas de que um analista tenha uma boa
formação, depende também de que o sujeito que a ela se submete queira saber sobre seu
129

sintoma até o final. Isso é necessário para que o sujeito encontre uma saída em relação
ao gozo do Outro para gozar do seu próprio sintoma.
Quanto à teoria psicanalítica da lógica coletiva apresentada por Lacan
(1945/1998), esta propõe possibilidades de seu funcionamento para a transformação do
laço social. Embora a eficácia dessa proposta não tenha sido verificada no sentido de
expandir a política da psicanálise, a da separação, que levasse o discurso do analista a
ponto de promover uma transformação no laço social de maneira a fazer resistência ao
discurso capitalista, isso não significa que ela não terá a possibilidade de funcionar em
algum momento.
Segundo Cevasco (2014) com Lacan (1973/2003) “O discurso do analista pode
ser uma saída do discurso capitalista, porém ele requer que a saída não seja apenas para
alguns” (p.136). Ainda não é possível atestar na história, que o sujeito descoberto por
Freud e nomeado por Lacan, o sujeito barrado, dividido pelo inconsciente, foi capaz de
tal façanha, afinal o discurso capitalista está aí a todo vapor. Entretanto ninguém pode
garantir que ele não possa vir a realizar tal saída através do discurso do analista
justamente por se tratar do futuro. É o sujeito dividido que pode vir a dar provas de uma
práxis efetiva no âmbito da política coletiva no laço social.
Enfim, queremos deixar a seguinte reflexão: primeiramente, se consideramos
que há uma dimensão política da psicanálise clínica que permite a subversão do sujeito
por uma transformação em sua subjetividade ao possibilitar um querer saber sobre seu
sintoma singular a partir do ato do analista, vale pensar se essa mesma dimensão
política da psicanalise pode também permitir uma transformação na sociedade ao
possibilitar um querer saber sobre o sintoma social pela sociedade a partir do ato
político, considerando uma lógica coletiva. Colocado de outra maneira: o discurso do
analista possibilitaria uma lógica coletiva que implicasse alguma forma de resistência ao
discurso capitalista?
Ficaremos com essa questão, a qual pretendemos desenvolver mais detidamente
em um próximo trabalho, no qual insistiremos principalmente na responsabilidade do
sujeito nos acontecimentos que o alienam e em sua implicação com os mesmos para que
haja mudanças verdadeiramente separadoras na sociedade.
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