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Universidade Estadual de Maringá - UEM

Centro de Ciência Humanas Letras e Artes - CCH


Campus Regional de Cianorte - CRC
Departamento de Pedagogia – DPD

Acadêmicas: Ednair da Silva R.A. 12889


Franciele Aline da Silva Souza Bolim R.A:123983

RESENHA CRITÍCA DO FILME O ENIGMA DE KASPAR HAUSER

O Enigma de Kaspar Hauser filme alemão de 1974 dirigido por Werner


Herzog. História baseada em um caso real que ocorreu na Alemanha no século
XIX, em que um jovem chamado Kaspar Hauser apareceu em Nuremberg sem
qualquer identificação ou conhecimento de sua história. Em 1960, Clarice
Lispector lançou "Laços de Família", contendo o conto "A Menor Mulher do
Mundo", onde um pesquisador francês descobre, em uma floresta africana,
uma pigmeia grávida, considerada a menor mulher do mundo. Essa descoberta
chocou a classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, gerando
questionamentos sobre cultura e barbárie. Inspirado nessa temática, o cineasta
alemão Werner Herzog produziu o filme "O Enigma de Kaspar Hauser", que
trata da descoberta insólita de Kaspar Hauser, o enigma, ao invés da pigmeia.

A partir dessa história, Herzog explora as questões sobre cultura e


barbárie, assim como Lispector em seu conto. O filme retrata a história de
Kaspar Hauser, desde sua descoberta até sua morte. A história é narrada de
forma lenta e contemplativa, com muitas cenas longas que mostram Kaspar
tentando se adaptar à sua nova vida. O personagem principal é interpretado
por Bruno S., que dá uma atuação convincente e emocionante como o jovem
confuso e desorientado.

Kaspar Hauser foi um jovem alemão que ganhou notoriedade no século


XIX por ter aparecido misteriosamente em Nuremberg, em 1828, sem nenhum
conhecimento prévio sobre sua origem, história ou família. Ele afirmava ter
passado a maior parte de sua vida trancado em um porão, sem contato com o
mundo exterior. Kaspar Hauser se tornou objeto de curiosidade e fascinação da
sociedade da época, e muitas teorias foram propostas para explicar sua origem
e o mistério que envolvia sua história. Ele não tinha contato físico ou verbal
com nenhum outro ser humano. Sem acesso ao aprendizado de uma língua,
ele também era incapaz de elaborar pensamentos e de interpretar o que
acontecia à sua volta.

Ele foi acolhido por autoridades locais e recebeu educação e


treinamento para se tornar um cidadão respeitável. No entanto, a vida de
Kaspar Hauser foi marcada por várias controvérsias e dificuldades. Ele sofria
de problemas de saúde e comportamento, e foi alvo de várias tentativas de
assassinato. A história de Kaspar Hauser é vista como um exemplo
emblemático de uma criança selvagem ou feral, ou seja, uma criança que
cresceu em isolamento, sem contato humano adequado.

Esses casos são frequentemente usados para examinar a natureza


humana e os processos de desenvolvimento da linguagem, cognição e
sociabilidade. O filme aborda temas como a natureza humana, a liberdade e a
busca por identidade. A história de Kaspar é uma metáfora para a condição
humana, em que cada pessoa tem que lutar para descobrir quem é e encontrar
seu lugar no mundo. Herzog usa a história de Kaspar para explorar a questão
da liberdade, mostrando como a sociedade tenta controlar e moldar as pessoas
de acordo com suas próprias convenções. O filme é visualmente
impressionante, com paisagens desoladas e cenários sombrios que refletem a
solidão e o isolamento do personagem principal.

O Enigma de Kaspar Hauser é um filme que apresenta diversas


questões relacionadas à psicologia. Uma das principais temáticas abordadas
no filme é a natureza humana, e como as experiências que vivenciamos
moldam a nossa personalidade e comportamento. Kaspar Hauser, personagem
principal do filme, é um jovem que viveu a maior parte de sua vida em um
porão escuro, sem contato com o mundo exterior. Sua vida mudou
radicalmente quando foi descoberto e levado para a cidade, onde foi inserido
em uma nova realidade, com novas pessoas, valores e expectativas. A partir
daí, o filme mostra como Kaspar tenta se adaptar a essa nova realidade,
enquanto luta para entender sua própria identidade.
A psicologia infantil após o abandono é um campo de estudo que se
dedica a compreender as consequências psicológicas de crianças que são
abandonadas por seus cuidadores. O abandono pode ser definido como a
ausência ou a negligência de cuidados básicos, como alimentação, higiene,
afeto e proteção, e pode ter efeitos graves no desenvolvimento infantil.
Crianças que são abandonadas tendem a apresentar dificuldades emocionais e
comportamentais, como ansiedade, depressão, insegurança, agressividade e
dificuldades de relacionamento. Essas dificuldades podem persistir ao longo da
vida, afetando a capacidade da criança de formar vínculos afetivos e de se
adaptar às mudanças e desafios da vida. Kaspar Hauser foi uma figura
histórica que despertou grande interesse no campo da psicologia,
principalmente por sua história de vida peculiar e misteriosa.

Como foi encontrado em uma praça em Nuremberg, Alemanha, sem


saber falar, ler ou escrever. Acredita-se que Kaspar tenha sido mantido em
cativeiro durante grande parte de sua vida, sendo privado de estímulos e
experiências que são fundamentais para o desenvolvimento humano. Isso pode
ter levado a problemas significativos em seu desenvolvimento físico, emocional
e cognitivo. Após ser encontrado, Kaspar foi levado para um lar adotivo, onde
recebeu cuidados básicos e começou a aprender a falar e a se comunicar.

No entanto, sua adaptação à sociedade foi difícil e ele continuou a


enfrentar problemas em sua vida adulta. Os psicólogos têm discutido
amplamente sobre as possíveis consequências do confinamento de Kaspar
Hauser e como isso pode ter afetado seu desenvolvimento. Algumas teorias
sugerem que o isolamento social e a privação sensorial podem ter afetado seu
desenvolvimento cognitivo e emocional, dificultando a aquisição de habilidades
sociais e emocionais.

De acordo com Vygotsky, como citado por Oliveira (1997, p. 24), a


relação do ser humano com o mundo não é direta, mas mediada pelos
sistemas simbólicos. No entanto, Kaspar Hauser, que viveu em isolamento, não
teve a oportunidade de aprender e internalizar esses sistemas simbólicos, o
que levou a uma dificuldade em compreender sua relação com o mundo.
Somente após um longo período convivendo com a comunidade de Nuremberg
é que Kaspar Hauser começa a entender a relação simbólica entre os signos e
as coisas concretas e a relação de representatividade que existe entre eles.

Outras teorias sugerem que a falta de estímulos sensoriais e cognitivos


pode ter levado a um atraso no desenvolvimento cerebral de Kaspar, o que
pode ter afetado sua capacidade de aprendizado e memória a longo prazo.
Embora seja difícil determinar com precisão como o confinamento de Kaspar
Hauser afetou seu desenvolvimento, sua história tem sido valiosa para o
campo da psicologia como um exemplo das consequências da privação social
e cognitiva na infância e adolescência.

Em 1833, ele foi morto por um golpe de faca, em circunstâncias ainda


não completamente esclarecidas. Acredita-se que a sua morte foi
encomendada por uma universidade, que desejava estudar seu cérebro. Tudo
isso para tentar explicar o fenômeno da privação da linguagem. Além disso,
desejavam entender sobre a capacidade humana de aprender, quando em
convívio social.

A história de Kaspar Hauser pode ser vista como uma metáfora para a
condição humana em geral, em que cada pessoa deve descobrir sua própria
identidade e encontrar um lugar no mundo. O filme também aborda a questão
da liberdade, mostrando como a sociedade pode tentar controlar e moldar as
pessoas de acordo com suas próprias convenções. Outra temática psicológica
importante do filme é a relação entre Kaspar e o médico que o acompanha. O
médico é um personagem que simboliza a figura paterna, e sua relação com
Kaspar é um exemplo de como a figura paterna pode influenciar a formação da
personalidade de um indivíduo. O filme mostra como a relação de Kaspar com
o médico evolui ao longo do tempo, e como isso afeta o comportamento e o
desenvolvimento emocional do personagem.

Além disso, o filme também aborda questões relacionadas à linguagem


e à comunicação. Kaspar, que cresceu sem qualquer contato com o mundo
exterior, tem dificuldades para entender a linguagem e se comunicar com as
pessoas. Isso mostra como a linguagem e a comunicação são fundamentais
para a nossa interação com o mundo e com os outros. Em resumo, O Enigma
de Kaspar Hauser é um filme que oferece uma visão profunda e complexa
sobre a psicologia humana, mostrando como as experiências que vivenciamos
moldam a nossa personalidade e comportamento, e como a figura paterna e a
linguagem são fundamentais para o nosso desenvolvimento emocional e social.

O filme apresenta uma visão interessante sobre as consequências da


privação social e cognitiva na infância e adolescência, mostrando como Kaspar
Hauser enfrenta dificuldades em sua adaptação à sociedade e em seu
desenvolvimento cognitivo e emocional. Além disso, o filme também destaca o
papel da educação e do ambiente social na formação da identidade e
personalidade. Kaspar Hauser é apresentado como uma pessoa em busca de
sua identidade e propósito na vida, lutando para encontrar um lugar na
sociedade.

Aqui fazemos uma analogia da vida de Kaspar, com a vivência de uma


criança surda. Isso porque, guardadas as devidas proporções, ambos estão
privados das interações sociais. E isso acontece pela falta de acesso a uma
língua. Sabemos que é o conhecimento gerado pelas interações sociais,
confrontados com novas experiências, que gerarão novos conhecimentos. Em
um espiral constante. Que estratégias cognitivas podem desenvolver um surdo
que não recebeu estímulos adequados? Qual leitura de mundo ele será capaz
de fazer? O comprometimento do aparato cognitivo pode ser revertido? A
resposta é sim, desde que haja estímulos adequados. Não foi exatamente isso
que aconteceu com Kaspar Hauser?

No entanto, uma crítica ao filme é que ele pode apresentar uma visão
limitada e estereotipada das pessoas que foram criadas em cativeiro. Embora
seja possível que a privação social e cognitiva tenha efeitos graves no
desenvolvimento, cada indivíduo é único e pode responder de maneira
diferente à privação. Além disso, o filme apresenta uma visão pessimista sobre
o potencial de desenvolvimento e aprendizagem de Kaspar Hauser, sugerindo
que suas limitações eram permanentes. Na realidade, muitas pessoas que
foram criadas em situações similares a de Kaspar conseguiram se adaptar e
desenvolver habilidades básicas de socialização e aprendizagem.

Vários autores da psicologia oferecem diferentes perspectivas sobre o


filme O Enigma de Kaspar Hauser, John Bowlby, um pioneiro da teoria do
apego, pode ter visto o filme como uma ilustração vívida dos efeitos da falta de
apego seguro na infância. A falta de relacionamentos afetivos precoces em
Kaspar pode ter levado a dificuldades em formar vínculos interpessoais
saudáveis e pode ter contribuído para seu isolamento social e emocional.

Já a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg destaca o processo


pelo qual as crianças desenvolvem o raciocínio moral. O filme pode ser visto
como uma ilustração dos desafios que Kaspar enfrentou em relação à sua
compreensão moral e ética, devido à falta de interações sociais e educacionais.

No século XIX, período em que Kaspar Hauser viveu, a perspectiva


positivista, evolucionista e desenvolvimentista estava em pleno auge.
Acreditava-se que existia um modelo de civilização e desenvolvimento a ser
alcançado, tanto pelos indivíduos como pelas sociedades. Qualquer pessoa
que não se adequasse ao padrão de homem "civilizado" era rotulada como
primitiva e atrasada, e deveria ser "ajudada" a alcançar níveis mais elevados
na escala de desenvolvimento e evolução. É nesse contexto histórico que
Kaspar Hauser foi socializado.

Ao expressar o desejo de ser um cavaleiro que voa para um combate


sangrento, Kaspar Hauser demonstra falta de compreensão sobre as limitações
da condição humana. Mais tarde, ao conversar com o Sr. Daumer, Hauser
revela sua dificuldade em se adaptar à vida em sociedade, refletindo a
importância do aprendizado social na humanização do indivíduo. Durante um
passeio pela cidade, Hauser não consegue entender como uma torre pode ser
construída por um homem comum, mostrando a limitação de sua compreensão
espacial. Posteriormente, durante um debate com clérigos, Hauser demonstra
dificuldade em compreender conceitos abstratos como Deus, o que evidencia
que suas funções mentais superiores não estão completamente desenvolvidas.
Esses exemplos ilustram a importância da interação social para o
desenvolvimento das funções mentais superiores, como planejamento,
memória, atenção, pensamento abstrato e representações simbólicas,
conforme investigado por Vygotsky.

Para ele, o conhecimento do mundo através da linguagem e dos signos


linguísticos não parecia ser suficiente. Talvez isso se deva ao fato de que a
compreensão do mundo deve surgir antes mesmo da codificação linguística
com que o mundo é percebido. Os significados já estão sendo desenhados na
própria percepção e cognição da realidade (Blikstein, 1983, p. 17). Essa
perspectiva é compartilhada por Vygotsky, que enfatiza que o pensamento e a
linguagem originam-se independentemente, fundindo-se posteriormente em um
tipo de linguagem interna que constitui a maior parte do pensamento maduro.

Tanto Masson (1997), Herzog (1974) e Blikstein (1983) enfatizam que,


após um período de convivência com a comunidade de Nuremberg, Kaspar
Hauser se tornou um incômodo para os outros, pois via a realidade de maneira
diferente. Enquanto a sociedade tentava impor referências e padrões culturais,
Kaspar via o mundo com olhos "subversivos" e "puros", sem filtros ou
estereótipos perceptuais. Ele olhava para as pessoas, objetos e situações com
surpresa e perplexidade, aproximando-se cognitivamente da realidade de uma
maneira direta e não estereotipada pela cultura dominante.

A socialização é um processo fundamental na formação do indivíduo,


pois é por meio dela que se aprendem as normas, valores e costumes da
sociedade em que se vive. Esse processo permite que o indivíduo se integre ao
grupo em que nasceu, assimilando hábitos e comportamentos característicos
da cultura em que está inserido.

Ao participar da vida em sociedade, o indivíduo aprende a reprimir suas


características instintivas e animais e desenvolver as sociais e culturais,
fazendo a transição da natureza para a cultura. Nesse sentido, ele aprende a
ver o mundo através dos "óculos sociais," tornando-se, como disse C. Dickens,
um "animal de costumes."

No caso de Kaspar Hauser, a falta de socialização o impediu de


adquirir os hábitos, valores e normas que são inerentes à cultura em que
estava inserido. Ele não tinha os "óculos sociais" necessários para
compreender o mundo em que vivia, o que o levou a ver a realidade de uma
maneira diferente, sem os filtros culturais que moldam nossa percepção. Essa
percepção pura e direta foi vista como uma ameaça pela comunidade de
Nuremberg, que buscava manter a ordem social vigente.
Alguém com a capacidade de enxergar mesmo na escuridão e de ouvir
o "grito do silêncio" (coisas inconcebíveis para o homem "civilizado") não
poderia ser considerado "normal". Mesmo que Kaspar Hauser tenha aprendido
a andar, falar e escrever, e tenha internalizado símbolos de comportamento,
ele nunca foi visto como um igual pela comunidade de Nuremberg, pois sua
história de vida estava inevitavelmente marcada pelo estigma da rejeição.

Na lápide de Kaspar Hauser, no cemitério de Ansbach, na Alemanha,


há uma inscrição que diz: "Hic occultus occultu uccisus est". Isso significa:
"Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido". Essa frase
resume perfeitamente o misterioso percurso da vida e morte deste homem.

O caso de Kaspar Hauser ilustra a falha fundamental de uma


sociedade baseada nos princípios do racionalismo positivista, mostrando que a
"humanização" do homem, entendida como socialização, não é um resultado
biológico natural da espécie, mas sim uma consequência de um processo
prolongado de aprendizado com o grupo social.

A trilha sonora do filme, composta por Popol Vuh, complementa


perfeitamente a atmosfera sombria e melancólica do filme. Embora seja um
filme bastante lento e contemplativo. O Enigma de Kaspar Hauser é um
trabalho emocionante e bem feito, que mergulha profundamente na psicologia
humana. O filme oferece uma visão única sobre a condição humana, e é uma
experiência cinematográfica fascinante e comovente. Recomendo este filme
para quem procura um trabalho de qualidade, que oferece muito para refletir.
REFERENCIAS
Blikstein, I. (1983). Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade São Paulo: Cultrix
/ EDUSP.

BOCK, Ana Mercês Bahia. FURTADO; Odair. TEIXEIRA. Maria de Lourdes


Trassi; Psicologia: uma introdução ao estudo de psicologia.13. Ed. - São Paulo:
Saraiva, 2002;

Goffman, E. (1988). Estigma: Notas sobre a manipulação da


identidade deteriorada Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.

Herzog, W. (1974). Jeder für sich und gott gegen alle Alemanha: ZDF Produções
(Original: Cada um por si e Deus contra todos. Traduzido como: O enigma de
Kaspar Hauser)

Masson, J. M. (1997). The lost prince: The unsolved mystery of Kaspar


Hauser New York: Free House.

Oliveira, M. K. (1997). Vygotsky: Aprendizado e desenvolvimento, um processo


sócio-histórico São Paulo: Scipione.

Vygotsky, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história


do comportamento: O macaco, o primitivo e a criança Porto Alegre, RS: Artes
Médicas.

O Estado de São Paulo (1997, 09 de março). p. D-6.

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