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DOI: https://doi.org/10.35919/rbsh.v24i1.193
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masculinos e femininos em sua alma, em seus sen- estranho “relatam-se acontecimentos que podem
timentos? perfeitamente ser explicados pelas leis da razão,
É esse o tema da polêmica desastrosa e mas que são, de uma maneira ou de outra, incrí-
cruel entre as Academias do Sião. veis, extraordinários, chocantes, singulares, inquie-
Ainda uma palavra sobre o “científico” que tantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na
tenta explicar o fenômeno já capaz de motivar nos- personagem e no leitor reação semelhante àquela
so bruxo em 1884. O tema foi estudado seriamen- que os textos fantásticos nos tornaram familiar.”
te por dois cientistas americanos nos anos 1950 e O estranho não é um gênero bem delimita-
1960. Um via o corpo dominando a alma neutra e do; mais precisamente, só é limitado por um lado,
o outro via a alma sexuada dominando o corpo dos o do fantástico; pelo outro, dissolve-se no campo
seres. geral da literatura (os romances de Dostoievski, por
A primazia da biologia, da morfologia somá- exemplo, podem ser colocados na categoria do es-
tica, era expressada pelo endocrinologista Harry tranho).
Benjamin em 1953 no seu trabalho “Transvestism Assim, ainda segundo Todorov, teríamos o
and transsexualism”. Mas 15 anos depois a prima- gênero maravilhoso como o sobrenatural aceito e
zia da volição se revelou no sentimento de gênero, o gênero estranho como o sobrenatural explicado.
em acordo com as ideias do psicanalista Robert Então, se o gênero fantástico se localiza no limite
Stoller em 1968 no trabalho “Sex and gender”. desses outros dois gêneros, ele ocorre na incerte-
Em Machado o gênero era também domi- za:
nante. O Rei Kalafangko, era um homem feminino “Já o fantástico comporta inúmeras indica-
e seu reino era femininamente conduzido, logo a ções a respeito do papel que o leitor irá representar,
concubina Kinnara, uma mulher com alma masculi- pois esse gênero “produz um efeito particular sobre
na, ocupa o corpo do rei e passa a conduzir o reino o leitor – medo, ou horror, ou simplesmente curiosi-
masculinamente. Essa é a percepção do leitor to- dade –, que os outros gêneros ou formas literárias
mado pelo passivo como feminino e o ativo como não podem provocar”.
masculino. É o que ocorre com o leitor “escutando Ma-
O conto “As academias do Sião” configura chado” contar as peripécias de “As academias do
o fantástico estranho em Machado. Vejamos o que Sião”.
é esse fantástico que tomou nosso prosador maior. Será essa “função” de leitor que fará se ins-
taurar a percepção ambígua no texto, e a hesitação
O gênero fantástico do leitor seria um elemento necessário à concepção
Segundo Todorov, o gênero fantástico an- do gênero fantástico.
tes parece se localizar no limite de dois gêneros,
o maravilhoso e o estranho, do que ser um gênero O gênero fantástico em Machado
autônomo. Cavalcante nos lembra que a primeira obra
De forma resumida, temos que no gênero brasileira dentro desse modelo literário foram os
maravilhoso “os elementos sobrenaturais não pro- contos de Noite na taverna, de Álvares de Azeve-
vocam qualquer reação particular nem nas perso- do (PIMENTEL, 2001). Também nos informa que
nagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude Machado leu e apreciou esses contos, e que seu
para com os acontecimentos narrados que caracte- contato com esse tipo de gênero não se restringiu
riza o maravilhoso, mas a própria natureza desses aos escritores locais, sendo leitor também de Ernst-
acontecimentos” -Theodore-Amadeus Hoffmann (1776-1822), Edgar
Já nas obras que pertencem ao gênero Allan Poe (1809-1849) e talvez de Gui de Maupas-
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- Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noi- Vai senão quando, uma das academias achou
te o lindo Kalafangko? esta solução ao problema:
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- Umas almas são masculinas, outras femininas. A - Creio nos teus olhos Kinnara, que são o sol e a
anomalia que se observa é uma questão de cor- luz do universo.
pos errados.
- Mas cumpre-lhe escolher: - ou crer na alma neu-
- Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; tra, e punir a academia viva, ou crer na alma se-
nada tem com o contraste exterior. xual, e absolvê-la.
Estava aberta a passagem com aval acadê- E Kinnara providenciou o feitiço, o sortilé-
mico (científico?) para a transmigração das almas. gio, que retirou as almas dos corpos de um e outro
e Kinnara recebeu a alma de Kalafangko e ele a da
Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a
concubina. Adequados alma e corpos, no fantástico
flor das concubinas régias.
machadiano, como hoje se busca fazer pelos meios
Molemente deitado aos pés da bela Kinnara, o endócrinos e cirúrgicos que comandam a redesig-
jovem rei pedia-lhe uma cantiga. nação, a “busca da casa adequada”, e assim o rei-
no passou a ter um rei homem e uma concubina
- Não dou outra cantiga que não seja esta: creio mulher. O rei Kalafangko e a concubina Kinnara não
na alma sexual. trocam apenas de corpos, mas passaram a se com-
- Crês no absurdo, Kinnara. portar como machos homens e fêmeas mulheres.
O homem, agora com o corpo de homem, age com
- Vossa Majestade crê então na alma neutra? o poder cruel e impõe a ordem que o feminino de
Kalafangko não sabia impor.
- Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na alma
(Seres que se comportam como se espera,
neutra, nem na alma sexual.
culturalmente, quando há acordo alma/corpo.)
- Mas então em que é que Vossa Majestade crê,
se não crê em nenhuma delas? Mais do que original para a época: as Aca-
demias de Sião tentavam resolver um peculiar pro-
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blema: “por que é que há homens femininos e mu- meditava uma tragédia. Ia-se aproximando o ter-
lheres masculinas? e o que as induziu a (discutir) mo do prazo em que deviam destrocar os corpos,
isso foi a índole do jovem rei. e ele cuidava em iludir a cláusula, matando a lin-
Machado pinta a violência que ainda hoje da siamesa. Hesitava por não saber se padeceria
permeia as questões de gênero na luta entre as com a morte dela visto que o corpo era seu, ou
academias. mesmo se teria de sucumbir também. Era esta a
Eles acertaram que seis meses depois as dúvida de Kalafangko; mas a ideia da morte som-
almas seriam destrocadas. breava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito
“Um e outro estavam bem, como pessoas um frasquinho com veneno, imitado dos Bórgias.
que acham finalmente uma casa adequada. Kala-
fangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas Mas o rei queria apoio para suas ações e...
de Kinnara. Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Ka-
lafangko. Sião tinha, finalmente, um rei.” De repente, pensou na douta academia;
podia consultá-la, não claramente, mas por hipó-
“A primeira ação de Kalafangko (daqui em tese .......... Sabe-se que ele mandou chamar os
diante entenda-se que é o corpo do rei com a alma outros acadêmicos, mas desta vez separadamente,
de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a fim de não dar na vista, e para obter maior ex-
a alma do Kalafangko) foi nada menos que dar as pansão. O primeiro que chegou, ignorando aliás a
maiores honrarias à academia sexual.” opinião de U-Tong, confirmou-a integralmente com
“Faltava uma guerra. Kalafangko, com um a única emenda de serem doze os camelos, Ou
pretexto mais ou menos diplomático, atacou a outro treze, contando o próprio U-Tong. O segundo não
reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os res-
século. Na volta a Bangkok, achou grandes festas tantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam
esplêndidas.” camelos, outros usavam circunlóquios e metáforas,
que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto,
Mas a violência parece não abandonar a nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas. Ka-
questão, é como se o homem precisasse matar a lafangko estava atônito.
fêmea que existe dentro dele e a mulher seu macho
interior. É incrivel que Machado pudesse ter a sen- E foi então que Kalafangko percebeu que
sibilidade de tocar nesses temas com o seu fantás- a mentira e a hipocrisia – homossexualismo???
tico. (talvez alegoria e sátira às academias literárias que
Machado fundaria) dominava os acadêmicos, to-
De noite, acabadas as festas, sussurrou-lhe ao
dos, prenhes de individualidade, desprezavam seus
ouvido a bela concubina:
pares mas eram orgulhosos de seu lema:
- Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que “Glória a nós, que somos o arroz da ciência
curti na ausência; dize-me que a melhor das fes- e a claridade do mundo!”
tas é a tua meiga Kinnara.
Mas não foi esse o último espanto do rei.
Kalafangko respondeu com um beijo. Não podendo consultar a academia, tra-
tou de deliberar por si, no que gastou dois
- Os teus beiços têm o frio da morte ou do des- dias, até que a linda Kinnara lhe segredou
dém, suspirou ela. que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do
Era verdade, o rei estava distraído e preocupado;
crime. Como destruir o vaso eleito da flor