Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Michel Foucault (1993) questiona não só a existência desse sujeito, como também
denuncia os mecanismos e práticas discursivas que o constituem, assim como a tipologia
psicológica construída pela medicalização da sexualidade humana. Foucault desconstrói a hipótese
repressiva e (re) elabora uma leitura do período vitoriano, em que a sexualidade foi não só criada a
partir de práticas bem articuladas de poder/saber/prazer, como também o discurso sobre sexo nesse
período foi prolixo e objetivou constituí-lo como um problema.
O sexo então passa a ser uma verdade, um segredo a ser desvendado, que apenas
aqueles devidamente autorizados poderiam pronunciar-se sobre o assunto. Não será apenas a
1
Rosangela de Araujo Lima/FESP/João Pessoa/PB/Brasil- Doutora em Sociologia; Mestre em Educação; Especialista
em: Sexualidade Humana; Saúde Coletiva; Metodologia do Ensino Superior; Psicóloga. Psirosa2@gmail.com
Leciona as disciplinas de: Sociologia Geral e Antropologia e Sociologia e Psicologia Jurídicas.
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
pedagogia que terá autoridade neste campo, mas o Estado, a Igreja Cristã e, sobretudo, a medicina.
Será a partir da apropriação do discurso sexual, ancorado num saber científico, que esta ciência
empodera-se e apodera-se do saber sobre o sexo, construindo o que se cristalizou ideologicamente
como sexualidade humana, articulada por uma discursividade que Foucault denomina scientia
sexualis; ela é a norma ocidental para produzir a verdade do sexo. Uma outra forma, esta própria do
Oriente, é a ars erótica, a qual, grosso modo, produz a verdade sobre o sexo vivenciando-o por ele
mesmo, intensificando o êxtase sexual, refinando práticas sexuais, cultivando técnicas que
eternizem o prazer e energizem os corpos. Na arte erótica não há o que falar, discursar, dizer... tudo
se reúne ao sentir e desfrutar...
Neste contexto, há algo dentro do individuo, incrustado na sua mente, uma verdade
do sexo que só alguém com saber e poder científico pode explicar; a isto, a esta essência, a
medicina oitocentista denominou de sexualidade humana. Foucault (1993) provoca:
A sexualidade foi defendida como sendo, “por natureza”, um domínio penetrável por
processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização;
um campo de significações a decifrar; um lugar de processos ocultos por mecanismos
específicos (...) a história da sexualidade – isto é, aquilo que funcionou no século XIX
como domínio da verdade específica – deve ser feita, antes de mais nada, do ponto de
vista de uma história dos discursos. (FOUCAULT, 1993, p.67)
Sob essa perspectiva, então, e é a que defendo neste trabalho, a sexualidade humana
é uma construção linguística discursiva de um determinado momento histórico e cultural da
sociedade ocidental. A grande questão é que as verdades, sobre este construto erigidas, continuam
intocadas em muitos dos seus aspectos mais significativos.
Com a construção de uma sexualidade essencial a cada ser humano, inicia-se o que
Foucault denomina: “o projeto de uma ciência do sujeito” Foucault (1993), o qual irá gravitar em
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
torno do sexo. O indivíduo que antes era um pecador ou um transgressor da legislação constituiu-se
agora em um tipo humano específico.
O saber/poder médico começa então a clarificar, rotular, esquadrinhar, definir,
separar tipos humanos, a partir de sua essência sexual. Há a elaboração das perversões, muitas,
diversas,observe o relato:
Há os exibicionistas de Lasègue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastes de Krafft-
Ebing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá os mixoscópilos, os ginecomastos, os
presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres disparêunicas. (FOUCAULT,
1993.p.44)
Julgo que, quase 50 anos depois do Relatório Kinsey, a maioria de nós, psiquiatras,
psicólogos ou psicanalistas, sequer chegou onde ele havia chegado. Continuamos
insistindo em chamar pessoas de homossexuais, em buscar qual o trauma, o desejo, a
fantasia, a estrutura, a perversão, a neurose, a fixação, a regressão, o gene, em suma, qual a
forma estável ou essência imutável da homossexualidade. (COSTA, 1995, p. 190)
Mas o que nos leva a crer cegamente que diferenças entre homens e mulheres é igual à
“diferença sexual”? E mesmo admitindo que a diferença sexual existisse na natureza,
porque esta diferença deveria tornar-nos todos, compulsoriamente, homossexuais e
heterossexuais? Será tão difícil perceber que nos dois casos, uma coisa pode vir sem a
outra? (COSTA,1995, p. 20)
Pergunto eu, o que é o mesmo sexo? Homens e mulheres sempre foram concebidos
como detentores de genitálias anômalas e excludentes? Essa é mais uma verdade a-histórica? Vou
procurar responder a essas provocações, caminhando na história em busca de dois modelos díspares
de conceber anatomicamente os sexos: O one sex model e o two sex model.
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Thomas Laqueur (2001) relata que nem sempre foram concebidos dois sexos, pois
até o final do século XVII e início do XVIII anatomistas e fisiologistas partilhavam da compreensão
de Galeno de Përgamo (130-200 d.C.) de que na natureza só havia um sexo, o masculino, e a
mulher era o homem invertido: “Se virarmos [os órgãos genitais] da mulher para fora e, por assim
dizer, virarmos para dentro e dobrarmos em dois os do homem, teremos a mesma coisa em todos os
aspectos” (Galeno apud Laqueur, 2001, p. 41).
É importante informar que o termo homossexual foi Cunhado pelo médico húngaro
Benkert em 1868 (Katz, 1996) e em 1870, no famoso artigo de Westphal, a homossexualidade é
constituída como “categoria psicológica, psiquiátrica e médica”, afirma Foucault (1993, p. 43).
Portanto, para que gays e lésbicas fossem devidamente classificados como invertidos
fez-se necessário à adoção do two sex model. É preciso questionar não o homoerotismo, mas a
Norma Heteroerótica a-histórica.
Acadêmicas anglo-saxães, (Deborah Britzman, 1996; Judith Butter, 1998, 1999;
Jeffrey Weeks, 1999; Sandra Harding, 1993) que são seguidas por Tomás Tadeu da Silva, 2000,
2001; Guacira Lopes Louro 1998, 1999, 2001, 2002), radicalizam o feminismo pós-estruturalista9
com base nos teorizações de Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, produzem na área
dos Estudos gays e lésbicos uma série de postulados a que denominam Teoria Queer. O termo
Queer (usado pejorativamente para referir-se às pessoas de prática homoerótica) pode também ser
traduzido por estranho, diferente. Pensar estranho, diferente, ousar ir além da bem comportada
moral sexual que usualmente permeia a compreensão das relações homoeróticas é desconstruir o
conhecimento produzido sobre o assunto a partir do século XIX, em um sentido derredeano, ou seja,
é desconstruir esse discurso como posição política no sentido de apresentar abertura para o outro, ou
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
como traduz Francisco Ortega (2000, p. 55): “A desconstrução seria uma certa experiência do
impossível”. Para Derrida, o impossível seria a urgência do instante, causando não imobilismo
utópico, mas possibilitando a criticidade, oferecendo resistência a verdades da ordem do positivo,
prontas, acabadas, tautologicamente defendidas assim porque da natureza humana e porque
naturais.
Desconstrução, portanto, é um conceito central na teorização Queer, principalmente
em se tratando da concepção de sujeito sob a ótica moderna; desconstrói-se, dessa forma, o sujeito
cartesiano, já aludido neste texto, o qual encerra, em si, a racionalidade, a fixidez e a consciência
norteando-lhe as ações, tornando-o soberano de sua existência.
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Desconstruir e questionar a política identitária sexual, através da formação da subjetividade
proposta por Lacan, também implica na desconstrução do sistema sexo/gênero e dos estereótipos
culturais de masculino e feminino. Drucilla Cornell e Adam Thurschwell (1987) afirmam que:
(...) a reconstituição dos conceitos “feminino” e “masculino” aponta para uma realidade de
igualdade e diferença que nega que o outro possa ser sempre relegado à pura diferença (...)
a rígida separação de gêneros representa uma ofuscação ideológica daquilo que
partilhamos. (CORNELL e THURSCHWELL, 1987, p. 170-171)
Judith Butler (1999, p. 167) diz que “na teoria do ato da fala, um ato performativo é
aquela prática discursiva que efetua ou produz aquilo que nomeia”; no entanto, esta autora postula
que a mesma eficácia que garante atos performativos possibilita a interrupção da repetição de
identidades hegemônicas pela ruptura, questionamento e contestação, o que geram outras
performances e o cruzamento constante de fronteiras.
É neste ponto da discussão teórica Queer, da performatividade da linguagem, que os
postulados de Jacques Derrida (apud Francisco Ortega, 2000) vêm dar sua contribuição, como
também a ideia de desconstrucionismo e citacionalidade. Derrida, a partir da concepção saussuriana
da língua como algo que vai além do individual e é da ordem do social, concebe os significados
desta como construídos em si mesmos e que tais significações processam-se por oposições binárias,
ou seja, as palavras e os sentidos são definidos pelo que não são. Sob esse aspecto, as identidades
sexuais constituem-se a partir da diferença do outro: eu sou gay, porque não sou hetero, ou como
esclarece Tomás Tadeu da Silva (2002, p. 106): “A identidade é sempre uma relação: o que sou só
se define pelo que não sou; a definição de minha identidade é sempre dependente da identidade do
outro”. Para tanto, há a formação dos pares binários que trazem em si uma assimetria de poder, pois
existe um pólo positivo (mais forte) e seu oposto, negativo e enfraquecido.
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Os pares binários representam fronteiras que, para Derrida e para a Teoria Queer,
devem ser desconstruídas, atentando para a seguinte explicação de Judith Butlet (1998):
Desconstruir não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais
importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que
anteriormente não estava autorizada (...) a desconstrução implica somente que
suspendamos todos os compromissos com aquilo a que o termo “o sujeito” se refere, e que
examinemos as funções linguísticas a que ele serve na consolidação e ocultamento da
autoridade. (BUTLET,1998, p. 34)
Para Judith Butler (1999) esta repetibilidade presente nos atos performativos pode
ser a saída para o rompimento da política de identidades, posto ela ser passível de interrupção, de
críticas vindas de um discurso contra-hegemônico. No entanto, para que isso ocorra, entra em cena
um terceiro ponto de relevância na proposta Queer de uma política pós-identitária: a relação
saber/poder dos discursos circulantes. É em Michel Foucault e sua história da sexualidade que o
pensamento Queer encontra os subsídios necessários para verificar o que já está posto: a
sexualidade constitui-se e origina-se a partir de bem articuladas relações de poder e saber, passa a
existir historicamente por meio de práticas discursivas, como procuro deixar claro neste texto. Chris
Beasley (1999), afirma:
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Butler recommend, in common with Foucault, a desegregation of sexual categories and
their heterosexist binary organization on the basis that the sexed body cannot be located
outside of discursive framework: The body’s sexuality and the direction of its desires are
constructions within the frameworks.10(BEASLEY,1999, p. 96)
A cadeia afirmativa que faz das coisas o que elas são chama-se positivismo, e rege ainda
hoje a vida cotidiana e a apreensão do mundo. É assim, diz o discurso social, porque
“sempre” foi, porque é tradicional, porque é natural, porque está escrito, porque o jornal
disse, porque os filósofos explicaram, porque os padres afirmam, porque a ciência
demonstrou, porque o historiador concluiu.Como explicar o sujeitar-se aos papéis sociais
senão em função de seqüências aparentemente lógicas, que de fato são impressas no
pensamento como verdades inquestionáveis, como certezas que sustentam o ser e o
social? Como aceitar denominações, identidades a partir de práticas, de critérios mutáveis
que não passam de categorizações impostas do exterior, de acordo com as transformações
e os espaços sociais?(SWAIN, 2000, p. 29)
10
Butler aconselha, em comum com Foucault, uma desagregação de categorias sexuais e sua organização binária
heterossexista, com base no fato de que o corpo sexualizado não pode ser estabelecido fora das estruturas discursivas: a
sexualidade do corpo e a direção dos seus desejos são construções dentro destas estruturas (Tradução minha).
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
A natureza não era muda e pudica até o século XIX e, subitamente perdeu a vergonha,
começando a mostrar toda a sua privacidade cromossômica-sexual. Quem se interessa, por
exemplo, pela natureza genética de padeiros, marceneiros, dos que preferem as louras ou
das que preferem os morenos? Porque achamos que classificar os humanos conforme suas
tendências sexuais, é “mais real, mais biológico, mais psicológico” do que classificá-los
segundo a religião ou o gosto por artes e esportes? Que outra “realidade” existe na
homossexualidade, exceto aquela definida como desvio da norma? (COSTA, 1995, p.
20)
A Teoria Queer responde a estes questionamentos ao propor uma política sexual pós-
identitária, pois as pessoas e, em especial, as mulheres de prática homoerótica, são apenas isto:
mulheres! Suas práticas, gostos e preferências sexuais não lhes concedem uma identidade própria,
especial. Não há porque sair do armário, se não há armário. Este trabalho trata da força da
linguagem na construção do simbólico. O feminismo só poderá avançar quando se autoquestionar e
perceber que só desconstruindo todos os binarismos contribuirá para a construção de uma sociedade
em que valha a pena existir.
Referências
BEASLEY, Chris (1999). What is feminism? In: __________. Na introcdution to feminist theory.
BRITZMAN, Deborah P. (1996). O que é esta coisa chamada amor – identidade homosexual,
educação e currículo. Educação e Realidade. 21 (1): jan/jun, p. 71-76.
__________ (1999). Curiosidade, sexualidade e currículo. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O
corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica
BUTLER, Judith (1998). Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pós-modernismo.
Cadernos Pagu. n. 11, p. 11-42.
_____________ (1999). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO,
Guacira Lopes (org.) O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica.
__________ (1999). De las categorias del feminismo. In: CARBONELL, Neus; TORRAS, Meri
(orgs.) Feminismos literários. Madrid: Arco Íris, p. 25-75.
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
COSTA, Jurandir Freire (2002). A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. 4. ed. Rio de
Janeiro: Relume Dumará.
_______________ (1995) A face e o verso: estudos sobre o homoerotismo II. São Paulo: Escuta
FOUCAULT, Michel (1993). História da sexualidade I – A vontade de saber. 11. ed. Rio de
Janeiro: Graal
HALL, Stuart (2002). A identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A
Editora.KATZ,
LAQUEUR, Thomas (2001). Inventando o sexo – corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Reluma Dumará.
LOURO, Guacira Lopes (1995). Produzindo sujeitos masculinos e cristãos. In: VEIGA-NETO,
Alfredo (org.) Crítica Pós-Estruturalista e Educação. Porto Alegre: Sulina.
_________ (2001). Teoria Queer – uma política pós-identitária para a educação. Estudos
Feministas. vol. 9, n. 2, p. 541-553.
ORTEGA, Francisco (2000). Para uma política de amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de
Janeiro: Relume Dumará
SILVA, Tomás Tadeu (org.) (2000). Identidade e Diferença – a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis: Vozes.
Astract: This work refers to the force of language in the construction of the symbolic. In addressing
the issue of human sexuality, refers to it as a linguistic construct from the medical discourse
scientist, bourgeois nineteenth century, which, from the Aristotelian-Thomist logic of the excluded
middle, form binary pairs with asymmetric polarities power. From the perspective of an eye of
Queer theory, we propose a deconstruction of thought established by dichotomized discourse on
human sexuality and its bourgeois 'referring' and advocates to a radicalization of knowledge about
human sexuality going well beyond the "framework" human sexual identities in the trap and the
label and propose a conception of sexuality to this experience from the perspective of desire and it
is postulated that this is the order of contingency and chance and presents no "essentiality or order is
"biological" or "psychological". Keywords: Queer Theory. Sexuality. Binary Couples
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X