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SEXUALIDADE HUMANA – UMA DISCUSSÃO SOB A VISÃO QUEER.

Rosangela de Araujo Lima1

Resumo Este trabalho reporta-se á força da linguagem na construção do simbólico. Ao tratar da


temática da sexualidade humana, refere-se à mesma como um constructo linguístico proveniente do
discurso médico cientificista, burguês, do século XIX, o qual, a partir da lógica aristotélico-tomista
do terceiro excluído, forma pares binários, com polaridades assimétricas de poder. Sob a
perspectiva de um olhar da teorização Queer, propõem-se uma desconstrução do pensamento
dicotomizado estabelecido pelo discurso sobre a sexualidade humana da burguesia e seus
“referentes’ e advoga-se uma radicalização dos saberes sobre esta sexualidade, indo bem além do
“enquadramento” de seres humanos em identidades sexuais que as aprisionam e as rotulam e
propõem-se uma concepção da vivência daquelas a partir da perspectiva do desejo, postula-se, pois,
que este é da ordem da contingência e do acaso e não apresenta nenhuma “essencialidade, quer seja
de procedência “biológica” ou “psicológica”.
Palavras-chave: Teoria Queer. Sexualidade. Pares Binários.

Falar da sexualidade humana é mergulhar nas verdades construídas pela


racionalidade instrumental da modernidade a qual concebe o indivíduo como possuidor de um
núcleo adquirido ao nascer, e que permanece ao longo de sua existência, essencialmente o mesmo,
constituindo-se das capacidades da razão. Este é um indivíduo unificado interiormente e ao núcleo
racional, permanente e estável, denomina-se identidade. Cada indivíduo apresenta-a de forma
constante, estável e fixa por toda a sua vida. É soberano no seu pensamento, consciente e situa-se no
centro do conhecimento, o que conduz à máxima de René Descartes: “Penso, logo existo”, apud
Stuart Hall (2002, p.27). Daí ser chamado de sujeito cartesiano.

Michel Foucault (1993) questiona não só a existência desse sujeito, como também
denuncia os mecanismos e práticas discursivas que o constituem, assim como a tipologia
psicológica construída pela medicalização da sexualidade humana. Foucault desconstrói a hipótese
repressiva e (re) elabora uma leitura do período vitoriano, em que a sexualidade foi não só criada a
partir de práticas bem articuladas de poder/saber/prazer, como também o discurso sobre sexo nesse
período foi prolixo e objetivou constituí-lo como um problema.

O sexo então passa a ser uma verdade, um segredo a ser desvendado, que apenas
aqueles devidamente autorizados poderiam pronunciar-se sobre o assunto. Não será apenas a

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Rosangela de Araujo Lima/FESP/João Pessoa/PB/Brasil- Doutora em Sociologia; Mestre em Educação; Especialista
em: Sexualidade Humana; Saúde Coletiva; Metodologia do Ensino Superior; Psicóloga. Psirosa2@gmail.com
Leciona as disciplinas de: Sociologia Geral e Antropologia e Sociologia e Psicologia Jurídicas.

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pedagogia que terá autoridade neste campo, mas o Estado, a Igreja Cristã e, sobretudo, a medicina.
Será a partir da apropriação do discurso sexual, ancorado num saber científico, que esta ciência
empodera-se e apodera-se do saber sobre o sexo, construindo o que se cristalizou ideologicamente
como sexualidade humana, articulada por uma discursividade que Foucault denomina scientia
sexualis; ela é a norma ocidental para produzir a verdade do sexo. Uma outra forma, esta própria do
Oriente, é a ars erótica, a qual, grosso modo, produz a verdade sobre o sexo vivenciando-o por ele
mesmo, intensificando o êxtase sexual, refinando práticas sexuais, cultivando técnicas que
eternizem o prazer e energizem os corpos. Na arte erótica não há o que falar, discursar, dizer... tudo
se reúne ao sentir e desfrutar...

A ciência sexual ocidental, pelo contrário, incentiva o falar, o dizer, o perscrutar,


pois há a concepção de que, ao verbalizar seus mais secretos desejos, pensamentos e sensações será
descoberto algo alheio, muitas vezes, ao próprio indivíduo, pois:

O sexo é dotado de um poder inesgotável e polimorfo. O acontecimento mais discreto na


conduta sexual – acidente ou desvio, déficit ou excesso – é supostamente capaz de
provocar as conseqüências mais variadas (...) Sim, porque o funcionamento do sexo é
obscuro (...) porque seu poder causal é, em parte, clandestino (FOUCAULT, 1993, p. 64-
65).

Neste contexto, há algo dentro do individuo, incrustado na sua mente, uma verdade
do sexo que só alguém com saber e poder científico pode explicar; a isto, a esta essência, a
medicina oitocentista denominou de sexualidade humana. Foucault (1993) provoca:

A sexualidade foi defendida como sendo, “por natureza”, um domínio penetrável por
processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização;
um campo de significações a decifrar; um lugar de processos ocultos por mecanismos
específicos (...) a história da sexualidade – isto é, aquilo que funcionou no século XIX
como domínio da verdade específica – deve ser feita, antes de mais nada, do ponto de
vista de uma história dos discursos. (FOUCAULT, 1993, p.67)

Sob essa perspectiva, então, e é a que defendo neste trabalho, a sexualidade humana
é uma construção linguística discursiva de um determinado momento histórico e cultural da
sociedade ocidental. A grande questão é que as verdades, sobre este construto erigidas, continuam
intocadas em muitos dos seus aspectos mais significativos.

Com a construção de uma sexualidade essencial a cada ser humano, inicia-se o que
Foucault denomina: “o projeto de uma ciência do sujeito” Foucault (1993), o qual irá gravitar em

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torno do sexo. O indivíduo que antes era um pecador ou um transgressor da legislação constituiu-se
agora em um tipo humano específico.
O saber/poder médico começa então a clarificar, rotular, esquadrinhar, definir,
separar tipos humanos, a partir de sua essência sexual. Há a elaboração das perversões, muitas,
diversas,observe o relato:
Há os exibicionistas de Lasègue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastes de Krafft-
Ebing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá os mixoscópilos, os ginecomastos, os
presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres disparêunicas. (FOUCAULT,
1993.p.44)

Alfred Kinsey (apud Jurandir Freire Costa, 1995) pesquisando o comportamento


sexual de homens, na década de 40 do século passado, constatou que, ao inverso de uma
polarização entre heterossexualismo e homossexualismo, havia um continuum entre estes
comportamentos, com pouca exclusividade nos pólos. Jurandir Freire Costa (1995) médico
psiquiatra e psicanalista, a partir da pesquisa de Kinsey, denuncia:

Julgo que, quase 50 anos depois do Relatório Kinsey, a maioria de nós, psiquiatras,
psicólogos ou psicanalistas, sequer chegou onde ele havia chegado. Continuamos
insistindo em chamar pessoas de homossexuais, em buscar qual o trauma, o desejo, a
fantasia, a estrutura, a perversão, a neurose, a fixação, a regressão, o gene, em suma, qual a
forma estável ou essência imutável da homossexualidade. (COSTA, 1995, p. 190)

Costa (1995) prossegue em seu questionamento indagando o que de tão natural há


na homossexualidade e responde, pela maioria, que aquela é autoevidente, autoexplicativa, pois há
homens e mulheres, dois sexos, quem se interessar por alguém do seu mesmo sexo é homossexual...
simples assim!

Mas o que nos leva a crer cegamente que diferenças entre homens e mulheres é igual à
“diferença sexual”? E mesmo admitindo que a diferença sexual existisse na natureza,
porque esta diferença deveria tornar-nos todos, compulsoriamente, homossexuais e
heterossexuais? Será tão difícil perceber que nos dois casos, uma coisa pode vir sem a
outra? (COSTA,1995, p. 20)

Pergunto eu, o que é o mesmo sexo? Homens e mulheres sempre foram concebidos
como detentores de genitálias anômalas e excludentes? Essa é mais uma verdade a-histórica? Vou
procurar responder a essas provocações, caminhando na história em busca de dois modelos díspares
de conceber anatomicamente os sexos: O one sex model e o two sex model.

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Thomas Laqueur (2001) relata que nem sempre foram concebidos dois sexos, pois
até o final do século XVII e início do XVIII anatomistas e fisiologistas partilhavam da compreensão
de Galeno de Përgamo (130-200 d.C.) de que na natureza só havia um sexo, o masculino, e a
mulher era o homem invertido: “Se virarmos [os órgãos genitais] da mulher para fora e, por assim
dizer, virarmos para dentro e dobrarmos em dois os do homem, teremos a mesma coisa em todos os
aspectos” (Galeno apud Laqueur, 2001, p. 41).

Neste universo linguístico, todos os relacionamentos, se vistos sob a ótica biológica,


eram homossexuais, pois havia apenas um sexo. As pessoas compreendiam que havia dois gêneros,
mas só um sexo, “onde as fronteiras entre masculino e feminismo eram de grau e não de espécie”
(Thomas Laqueur 2001, p. 40). Serão razões políticas e ideológicas que pressionarão para a
mudança de paradigma no século XVIII, pois, até então, afirma Jurandir Freire Costa (1995, p.
100): “Dominado pelo neoplatonismo, o pensamento ocidental até o século XVIII não pode
representar a sexualidade humana como bipolar e originalmente dividida entre sexualidade
masculina e feminina”.

É importante informar que o termo homossexual foi Cunhado pelo médico húngaro
Benkert em 1868 (Katz, 1996) e em 1870, no famoso artigo de Westphal, a homossexualidade é
constituída como “categoria psicológica, psiquiátrica e médica”, afirma Foucault (1993, p. 43).
Portanto, para que gays e lésbicas fossem devidamente classificados como invertidos
fez-se necessário à adoção do two sex model. É preciso questionar não o homoerotismo, mas a
Norma Heteroerótica a-histórica.
Acadêmicas anglo-saxães, (Deborah Britzman, 1996; Judith Butter, 1998, 1999;
Jeffrey Weeks, 1999; Sandra Harding, 1993) que são seguidas por Tomás Tadeu da Silva, 2000,
2001; Guacira Lopes Louro 1998, 1999, 2001, 2002), radicalizam o feminismo pós-estruturalista9
com base nos teorizações de Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, produzem na área
dos Estudos gays e lésbicos uma série de postulados a que denominam Teoria Queer. O termo
Queer (usado pejorativamente para referir-se às pessoas de prática homoerótica) pode também ser
traduzido por estranho, diferente. Pensar estranho, diferente, ousar ir além da bem comportada
moral sexual que usualmente permeia a compreensão das relações homoeróticas é desconstruir o
conhecimento produzido sobre o assunto a partir do século XIX, em um sentido derredeano, ou seja,
é desconstruir esse discurso como posição política no sentido de apresentar abertura para o outro, ou

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como traduz Francisco Ortega (2000, p. 55): “A desconstrução seria uma certa experiência do
impossível”. Para Derrida, o impossível seria a urgência do instante, causando não imobilismo
utópico, mas possibilitando a criticidade, oferecendo resistência a verdades da ordem do positivo,
prontas, acabadas, tautologicamente defendidas assim porque da natureza humana e porque
naturais.
Desconstrução, portanto, é um conceito central na teorização Queer, principalmente
em se tratando da concepção de sujeito sob a ótica moderna; desconstrói-se, dessa forma, o sujeito
cartesiano, já aludido neste texto, o qual encerra, em si, a racionalidade, a fixidez e a consciência
norteando-lhe as ações, tornando-o soberano de sua existência.

O objetivo da teoria Queer é o de problematizar e complicar a temática da identidade


sexual, pois, até então, os estudos e reivindicações do movimento gay/lésbico pretendiam buscar
aceitação social de suas práticas sexuais, sem questionar o núcleo central: a política de identidades
que sustenta o binarismo heterossexualidade x homossexualidade. Ao contrário de questionar a
heteronormatividade compulsória, o movimento homossexual assumia o discurso moderno sobre a
existência de sexualidades desviantes ou periféricas. A teoria Queer propõe o caminho inverso:
denuncia a artificialidade dessa divisão, postulando que não há um núcleo central, essencial,
definidor de uma identidade estática, cristalizada, mas sim possibilidades identificatórias,
extremamente fluidas, de ordem contingencial (Deborah Britzman, 1996; Judith Butter, 1998, 1999;
Jeffrey Weeks, 1999; Sandra Harding, 1993; Tomás Tadeu da Silva, 2000, 2001; Guacira Lopes
Louro 1998, 1999, 2001, 2002).
Jacques Lacan advoga que o ser humano se constitui enquanto eu a partir do olhar do
outro e que o contato desse indivíduo, desde a infância, com os sistemas simbólicos exteriores a si,
acarreta conflitos, sentimentos opostos que, ao longo da vida do individuo, vão construindo sua
subjetividade e sua identidade. Porém esta identidade sempre será dividida, partida em nível
inconsciente, muito embora, conscientemente, o individuo tenha a fantasia de que conseguiu uma
certa unicidade. Stuart Hall (2002), ao discorrer sobre o pensamento lacaniano relata que:

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos


inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento (...)
assim, em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de
identificação, e vê-la como um processo em andamento (HALL, 200, p. 38-39)

É importante lembrar a formação do sistema sexo/gênero, cujas identidades de


gênero, masculino e feminino, encontram-se atreladas às sexuais, hetero ou homossexual.

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Desconstruir e questionar a política identitária sexual, através da formação da subjetividade
proposta por Lacan, também implica na desconstrução do sistema sexo/gênero e dos estereótipos
culturais de masculino e feminino. Drucilla Cornell e Adam Thurschwell (1987) afirmam que:

(...) a reconstituição dos conceitos “feminino” e “masculino” aponta para uma realidade de
igualdade e diferença que nega que o outro possa ser sempre relegado à pura diferença (...)
a rígida separação de gêneros representa uma ofuscação ideológica daquilo que
partilhamos. (CORNELL e THURSCHWELL, 1987, p. 170-171)

A Teoria Queer rejeita, não só qualquer noção essencialista, como também a


perspectiva da construção social das identidades sexuais. Judith Butler, argumenta que indivíduos,
constantemente, cruzam fronteiras, quebrando as construções sociais de gênero e sexuais, (Guacira
Lopes Louro, 2001). Butler advoga que a performatividade é um conceito central para esta
discussão, pois, linguisticamente, performatividade é o poder que uma frase/sentença traz em si de
constituir, de dar forma a algo, como no exemplo: Eu vos declaro marido e mulher. Esta é uma
proposição performativa, pois, ao mesmo tempo em que é pronunciada, faz algo se concretizar: as
pessoas estão casadas, afirma Tomas Tadeu da Silva (2001, p. 72).

Judith Butler (1999, p. 167) diz que “na teoria do ato da fala, um ato performativo é
aquela prática discursiva que efetua ou produz aquilo que nomeia”; no entanto, esta autora postula
que a mesma eficácia que garante atos performativos possibilita a interrupção da repetição de
identidades hegemônicas pela ruptura, questionamento e contestação, o que geram outras
performances e o cruzamento constante de fronteiras.
É neste ponto da discussão teórica Queer, da performatividade da linguagem, que os
postulados de Jacques Derrida (apud Francisco Ortega, 2000) vêm dar sua contribuição, como
também a ideia de desconstrucionismo e citacionalidade. Derrida, a partir da concepção saussuriana
da língua como algo que vai além do individual e é da ordem do social, concebe os significados
desta como construídos em si mesmos e que tais significações processam-se por oposições binárias,
ou seja, as palavras e os sentidos são definidos pelo que não são. Sob esse aspecto, as identidades
sexuais constituem-se a partir da diferença do outro: eu sou gay, porque não sou hetero, ou como
esclarece Tomás Tadeu da Silva (2002, p. 106): “A identidade é sempre uma relação: o que sou só
se define pelo que não sou; a definição de minha identidade é sempre dependente da identidade do
outro”. Para tanto, há a formação dos pares binários que trazem em si uma assimetria de poder, pois
existe um pólo positivo (mais forte) e seu oposto, negativo e enfraquecido.

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Os pares binários representam fronteiras que, para Derrida e para a Teoria Queer,
devem ser desconstruídas, atentando para a seguinte explicação de Judith Butlet (1998):

Desconstruir não é negar ou descartar, mas pôr em questão e, o que talvez seja mais
importante, abrir um termo, como sujeito, a uma reutilização e uma redistribuição que
anteriormente não estava autorizada (...) a desconstrução implica somente que
suspendamos todos os compromissos com aquilo a que o termo “o sujeito” se refere, e que
examinemos as funções linguísticas a que ele serve na consolidação e ocultamento da
autoridade. (BUTLET,1998, p. 34)

Um outro conceito derrideano utilizado pela teoria Queer é o de citacionalidade, o


qual pode ser descrito como a propriedade que a linguagem tem de ser repetida, ou seja, ser
“retirada de um determinado contexto e inserida em um contexto diferente”, esclarece Tomaz Tadeu
da Silva (2000 p. 95). Exemplifico para uma melhor compreensão: quando alguém diz: você é
lésbica, o emitente tem a impressão que está fazendo uma afirmação livre e soberana, mas na
verdade, para a concepção de Derrida, o indivíduo está realizando um processo de recorte e
colagem, retirando “a expressão de um contexto social mais amplo em que ela foi tantas vezes
enunciada”, colocando-a no novo contexto, no qual ela reaparece como original e fiel depositária da
sua mais exclusiva opinião. Na verdade esta fala inscreve-se num “sistema mais amplo de operação
de citação, de performatividade e, finalmente, de definição, produção e reforço da identidade
cultural” (Tomáz Tadeu da Silva, 2000, p. 95) sendo neste exemplo específico, sexual.

Para Judith Butler (1999) esta repetibilidade presente nos atos performativos pode
ser a saída para o rompimento da política de identidades, posto ela ser passível de interrupção, de
críticas vindas de um discurso contra-hegemônico. No entanto, para que isso ocorra, entra em cena
um terceiro ponto de relevância na proposta Queer de uma política pós-identitária: a relação
saber/poder dos discursos circulantes. É em Michel Foucault e sua história da sexualidade que o
pensamento Queer encontra os subsídios necessários para verificar o que já está posto: a
sexualidade constitui-se e origina-se a partir de bem articuladas relações de poder e saber, passa a
existir historicamente por meio de práticas discursivas, como procuro deixar claro neste texto. Chris
Beasley (1999), afirma:

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Butler recommend, in common with Foucault, a desegregation of sexual categories and
their heterosexist binary organization on the basis that the sexed body cannot be located
outside of discursive framework: The body’s sexuality and the direction of its desires are
constructions within the frameworks.10(BEASLEY,1999, p. 96)

Denuncio então a artificialidade e simplificação da sexualidade humana em


heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transexuais e transgêneros e lembro que há indivíduos
que cruzam as fronteiras dessas delimitações, vivem na fronteira ou, tão somente, as desconhecem,
a exemplo de outras culturas que não concebem a vivência das práticas sexuais nesse apertado jogo
identitário. É o caso dos Sambia (Jurandir Freire Costa, 2002), do povo Mojave (Jonathan Ned
Katz, 1996), dos Berdaches do século XIX, índios das planícies e do oeste da América do Norte,
que escolhiam seu sexo social (Tânia Navarro Swain, 2000), das índias Tupinhabás descritas por
Gabriel Soares de Souza em 1587, que tinham esposas e as trocas de gênero eram uma constante,
tanto entre mulheres como entre os homens também (Luiz Mott, 1987). Todos estes exemplos são
de culturas em que o cruzamento das fronteiras das identidades de gênero e sexuais existem
(Sambias, povo Mojave) ou existiram como os Berdaches e os Tupinanbás.

Tânia Navarro Swain (2000) afiança de modo apropriado:

A cadeia afirmativa que faz das coisas o que elas são chama-se positivismo, e rege ainda
hoje a vida cotidiana e a apreensão do mundo. É assim, diz o discurso social, porque
“sempre” foi, porque é tradicional, porque é natural, porque está escrito, porque o jornal
disse, porque os filósofos explicaram, porque os padres afirmam, porque a ciência
demonstrou, porque o historiador concluiu.Como explicar o sujeitar-se aos papéis sociais
senão em função de seqüências aparentemente lógicas, que de fato são impressas no
pensamento como verdades inquestionáveis, como certezas que sustentam o ser e o
social? Como aceitar denominações, identidades a partir de práticas, de critérios mutáveis
que não passam de categorizações impostas do exterior, de acordo com as transformações
e os espaços sociais?(SWAIN, 2000, p. 29)

É um excelente questionamento, diante do fato de que há (e houve) outras culturas


que concebem (e conceberam) as identidades de gênero e as identidades sexuais de forma bastante
diversa do discurso da Scienta sexualis do século XIX, como bem o diz Jurandir Freire Costa
(1995):

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Butler aconselha, em comum com Foucault, uma desagregação de categorias sexuais e sua organização binária
heterossexista, com base no fato de que o corpo sexualizado não pode ser estabelecido fora das estruturas discursivas: a
sexualidade do corpo e a direção dos seus desejos são construções dentro destas estruturas (Tradução minha).

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A natureza não era muda e pudica até o século XIX e, subitamente perdeu a vergonha,
começando a mostrar toda a sua privacidade cromossômica-sexual. Quem se interessa, por
exemplo, pela natureza genética de padeiros, marceneiros, dos que preferem as louras ou
das que preferem os morenos? Porque achamos que classificar os humanos conforme suas
tendências sexuais, é “mais real, mais biológico, mais psicológico” do que classificá-los
segundo a religião ou o gosto por artes e esportes? Que outra “realidade” existe na
homossexualidade, exceto aquela definida como desvio da norma? (COSTA, 1995, p.
20)

A Teoria Queer responde a estes questionamentos ao propor uma política sexual pós-
identitária, pois as pessoas e, em especial, as mulheres de prática homoerótica, são apenas isto:
mulheres! Suas práticas, gostos e preferências sexuais não lhes concedem uma identidade própria,
especial. Não há porque sair do armário, se não há armário. Este trabalho trata da força da
linguagem na construção do simbólico. O feminismo só poderá avançar quando se autoquestionar e
perceber que só desconstruindo todos os binarismos contribuirá para a construção de uma sociedade
em que valha a pena existir.

Referências

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Petrópolis: Vozes.

HUMAN SEXUALITY - A DISCUSSION IN THE QUEER VISION.

Astract: This work refers to the force of language in the construction of the symbolic. In addressing
the issue of human sexuality, refers to it as a linguistic construct from the medical discourse
scientist, bourgeois nineteenth century, which, from the Aristotelian-Thomist logic of the excluded
middle, form binary pairs with asymmetric polarities power. From the perspective of an eye of
Queer theory, we propose a deconstruction of thought established by dichotomized discourse on
human sexuality and its bourgeois 'referring' and advocates to a radicalization of knowledge about
human sexuality going well beyond the "framework" human sexual identities in the trap and the
label and propose a conception of sexuality to this experience from the perspective of desire and it
is postulated that this is the order of contingency and chance and presents no "essentiality or order is
"biological" or "psychological". Keywords: Queer Theory. Sexuality. Binary Couples

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