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O unheimlich e as transexualidades
Unheimlich and transexualities
Ricardo César Gonçalves
Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo
O presente artigo aborda aspectos da temática das transexualidades e sua relação com o
Unheimlich (estranho) apresentado na teoria freudiana. Inicialmente, partimos de uma re-
visão bibliográfica dos escritos de Freud, buscando conceitos basilares para compreender o
masculino e feminino, bem como, os processos identificatórios. Em seguida, analisamos as
contribuições teóricas de Robert Stoller ao fenômeno transexual. Concluímos, reiterando que
o fenômeno transexual, eventualmente, causa em profissionais especializados um sentimento
de estranhamento, por reativar processos anteriormente recalcados. Por fim, entendemos que
as transexualidades se mostram como uma “solução”, uma forma de “sobrevivência psíquica”
(Mcdougall, 1997).
1. Vale ressaltar que o título do artigo do Dr. D. O. Cauld- Somente o transexualismo leva o sujeito não
well provavelmente teve como inspiração o célebre trabalho
de Krafft-Ebing. apenas a mudar de estado civil, mas também
2. “Termo introduzido em 1953, pelo psiquiatra norte-a-
mericano Harry Benjamin, para designar um distúrbio pu- 3. Tirésias foi um famoso profeta cego de Tebas. Sua par-
ramente psíquico da identidade sexual, caracterizado pela ticularidade se dá pelo fato de ter passado sete anos trans-
convicção inabalável que tem um sujeito de pertencer ao formado em mulher. Ele também é um dos personagens da
sexo oposto” (Roudinesco; Plon, 1998, p. 764). Odisseia, de Homero.
a transformar, através de uma intervenção ci- irmãos Karamazov, obras que reencenaram o
rúrgica, seu órgão sexual normal num órgão mito de Édipo, da tragédia de Sófocles. Essa
artificial do sexo oposto. Assim, o transexual construção teórica, que começa em uma das
masculino tem a convicção de ser uma mu- inúmeras cartas que Freud trocava com seu
lher, embora anatomicamente seja um ho- amigo Wilhelm Fliess, perpassa por sonhos,
mem normal. Do mesmo modo, a mulher sua relação com seus pais e parentes próximos.
transexual está convencida de ser homem, Como observado, é lícito adentrar para a
muito embora seja mulher em termos anatô- íntima ligação da vida pessoal de Freud e sua
micos. construção conceitual do complexo de Édi-
po.
Ressalta-se que o desejo de mudar de sexo Burker (2010, p. 219) acertadamente afir-
existia bem antes da invenção e do aperfei- ma:
çoamento de procedimentos cirúrgicos. Na
mitologia grega, três personagens abarcam Édipo incorpora o detetive de seu próprio
esse fenômeno: Cibele, Átis e Hermafrodito destino [...] Freud se identificava com Édipo.
(Roudinesco; Plon, 1998). Ele também era um homem do destino, um
Ademais, aquilo atualmente conhecido herói que vence os obstáculos em seu cami-
como transexualidades não é próprio de nho.
nossa cultura e de nossa época. O que é novo
é justamente a possibilidade de “mudar de Em suma, a descoberta do complexo de
sexo”, graças às avançadas técnicas de cirur- Édipo, na realidade, se trata de sua própria
gia e à hormonoterapia constantes (Cecca- descoberta.
relli, 2017). Diante das transexualidades, Loures e Borges (2017, p. 582) apontam:
somos convocados a pensar em suas diversas
facetas. Ao acompanharmos os passos que levaram
Neste artigo pretendemos analisar, atra- Freud ao complexo de Édipo, inevitavelmente
vés do arcabouço teórico disponibilizado na esbarramos em sua autodescoberta. Não dife-
teoria psicanalítica, a relação entre as tran- rente de nós, Freud reencena a trama do herói
sexualidades e o sentimento de estranheza de Sófocles, cujo desvelamento de sua origem
[Unheimlich], frequentemente sentido por acontece de forma gradativa e engenhosa –
profissionais especializados (psicanalistas, assim como percurso de uma análise. Nesse
psicólogos e psiquiatras) frente à demanda desvelamento, Édipo, que se vê como estra-
do transexual. nho em Tebas, se descobre, contudo, filho de
Laio e Jocasta. E Freud, ao se deparar com o
Freud e a esfinge: o enigma dos sexos estranho destino de Édipo, encontra na tra-
Considerado a medula espinhal da psicaná- gédia algo de familiar: uma metáfora de seus
lise, o complexo de Édipo ocupa um lugar próprios desejos infantis (grifo nosso).
central das teorizações freudianas. Assim
sendo, o mestre de Viena começa a pensar Torna-se interessante estabelecer uma
sobre o conceito de Édipo a partir de vivên- analogia entre a figura do herói trágico Édipo
cias que experenciou no decorrer da vida e e o arqueólogo do inconsciente Freud. Indu-
faz paralelos com grandes obras da literatura bitavelmente, como afirma a tragédia grega,
e do teatro. Édipo foi capaz de desvendar o enigma da
De acordo com Moreira (2004), a teoriza- esfinge. Já Freud, por sua vez, caracterizou-
ção sobre o complexo de Édipo remete a clás- se por desvendar os segredos da sexualidade
sicos da literatura mundial, como Hamlet, de infantil. Ambos, Freud e Édipo, demonstra-
Shakespeare, e à trama do parricídio de Os ram ser capazes de resolver enigmas, e se-
4. “Não encontramos o termo “gênero”, pois em alemão, 5. Novamente um problema de tradução: “no original lê-se:
uma só palavra designa sexo e gênero: Geschlecht” (Cecca- Mannilich oder weiblich, ou seja, ‘masculino ou feminino’”
relli, 2017, p. 56). (Ceccarelli, 2017, p. 58).
1998). Para o autor, “[...] sexo e gênero de servado para desenvolver-se sadiamente, ao
modo algum necessariamente estão relacio- contrário, ela é uma conquista.
nados” (Stoller, 1993, p. 21).
A contribuição do conceito de gênero para Conforme Stoller (1993, p. 49), “[...] a
a psicanálise representa um valor inestimá- gratificação não conflituosa pode levar ao
vel. A concepção stolleriana parte do pres- impasse no desenvolvimento”. Dito de outra
suposto de que faltava ao freudismo clássi- forma, uma simbiose mãe-bebê excessiva-
co uma categoria que permitisse diferenciar mente estreita e gratificante, não perturbada
radicalmente a pertinência da anatomia (o pela presença de uma figura paterna, pode
sexo) da pertinência a uma identidade social impedir a construção da masculinidade.
ou psíquica (o gênero), existindo a possibili- Portanto, os eventos relativos ao período
dade de ambas terem uma dissimetria radi- anterior ao complexo de Édipo também são
cal (Roudinesco; Plon, 1998). imprescindíveis para compreensão sobre as
Assim, a distinção entre sexo e gênero, transexualidades.
utilizada para melhor compreensão da psi- Ainda sobre o primeiro estágio de iden-
codinâmica transexual sugerida por Stoller tificação o psicanalista norte-americano res-
(1993), tem por finalidade isolar, para me- salta: “No estágio pré-edípico existe a proto-
lhor delimitar, os aspectos da psicossexuali- feminilidade formada pelo abraço da mãe”
dade que são “independentes” do biológico. (Stoller, 1993, p. 259).
Em sua obra, o psicanalista norte-americano O menino, para entrar no conflito edípi-
busca analisar a gênese do fenômeno tran- co, terá que progressivamente se desidenti-
sexual. ficar da mãe e paulatinamente se identificar
Essa odisseia teórica, por meio das ruínas com o pai (temido/admirado) para, assim,
psíquicas, por assim dizer, levou Stoller a ter direito à neurose.
pesquisar profundamente os primeiros anos
de infância de seus pacientes. Na concepção Nós estamos acostumados a encontrar o con-
do autor, o processo formador da identidade flito edípico como uma fonte de patologia.
de gênero, ocorre por meio de identificações Dessa forma, nós podemos esquecer que nes-
primárias no período pré-edipiano. Em ou- se conflito – com suas ameaças, invejas, me-
tras palavras, a gender identity será resultado dos e raivas – estão as forças necessárias para
das aquisições de masculinidade e feminili- produzir as estruturas de caráter, tais como a
dade em um momento primordial (Stoller, masculinidade e a feminilidade, que mantêm
1993). a sociedade. Os meninos transexuais, con-
Stoller argumenta que a primeira forma tudo, nos lembram de como é necessário o
de identidade de gênero origina-se na sim- desenvolvimento com sofrimento e sugerem
biose com a mãe na qual não existe frontei- que conflito de menos também pode produzir
ra nem anatômica, nem psíquica. Por meio patologia. (Stoller, 1993, p. 93)
dessa perspectiva, a identificação primeva
pré-verbal pode naturalmente incrementar Em seus estudos sobre Masculinidade
o desenvolvimento da feminilidade nas me- e feminilidade (1993) e como citado ante-
ninas, porém, para o menino, ela se tornará riormente em Sex and Gender (1968), Stol-
um obstáculo a ser superado na construção ler também traça um breve perfil das mães
da masculinidade. de crianças transexuais. Em sua concepção,
Diante disso, para Stoller (1993, p. 37): essas mães seriam basicamente bissexuais,
apresentando um perfil depressivo. Além
A masculinidade nos homens não é simples- disso, não é raro casos em que anteriormente
mente um estado natural que precisa ser pre- existiu uma criança que veio a falecer (ge-
ralmente do sexo oposto ao da criança que freudiano o Infamiliar (Freud, [1919] 2019),
nasce). essa inusitada estranheza, pode ser obser-
vado quando se é confrontado à dissimetria
Essas crianças, verdadeiros falos da mãe, têm entre seu sexo anatômico e seu gênero. Em-
seu ‘destino transexual’ traçado bem cedo, en- bora o transexual tenha consciência de seu
tre dois ou três anos de idade, às vezes, antes. sexo anatômico, ocorre uma familiaridade/
(Ceccarelli, 2017, p. 44) estranheza (heimlich/unheimlich) entre seu
sentimento de identidade sexual e a imagem
Em síntese, a identidade de gênero será que tem de seu corpo. Ou seja, entre seu sexo
resultado das identificações e das aquisições e gênero. Essa familiaridade/estranheza o
da masculinidade e da feminilidade. Não ex- acompanha em inúmeras situações ao longo
cluindo também os diversos fatores sociais, da vida, causando-lhe desconforto e levan-
comportamentais e imaginários presentes do-o à demanda da cirurgia de redesignação
em nossa cultura, a questão do gênero em sexual.
si é extremamente vasta, e neste trabalho a Adicionalmente, o sujeito transexual
questão não foi tratada de forma exaustiva. apresenta aquilo que denominamos de “nar-
Adicionalmente, Stoller (1993, p. 28) nos cisismo negativo”. Por esse conceito, enten-
lembra de que: de-se
Masculinidade ou feminilidade é uma con- [...] uma profunda repugnância pelos órgãos
vicção – mais precisamente, uma densa massa genitais que são percebidos como “estranhos
de convicções, uma soma algébrica. apêndices” destruídos de valor erótico, pois
no período autoerótico e do narcisismo pri-
Por fim, o psicanalista norte-americano mário não foram libidinalmente investidos.
conclui que o gênero prima sobre o sexo. (Ceccarelli, 2008, p. 59)
relacionado a complexos infantis que haviam gular, que leva o sujeito ao caminho mais ra-
sido recalcados. Essa inabitual estranheza é dical das identificações.
revivida, mais uma vez, por meio de movi- Ao estudar as dinâmicas pulsionais pre-
mentos que o processo terapêutico suscita. sentes nas transexualidades, somos convoca-
Stoller (1993, p. 223) nos adverte dizendo dos a refletir sobre as posições de masculi-
que: “A moralidade pode ser a mais inflexível nidade e feminilidade na cultura ocidental:
das contratransferências”. quais as condições para que alguém possa
Ademais, a transexualidade não constitui afirmar com segurança ser homem ou mu-
uma entidade nosográfica fixa (definida), e lher? Indubitavelmente, aspectos sociais per-
progressivamente aceita-se que ela seja uma meiam essa pergunta, pois as representações
manifestação da sexualidade como qualquer simbólicas de masculino e feminino variam
outra. Nesse sentido, não se pode falar de de acordo com o tempo e a cultura. É fato
uma transexualidade típica, assim como não que as posições masculinas e femininas so-
é plausível dizer existir uma “heterossexuali- freram mudanças.
dade ou homossexualidade típica” (Cecca- Em A mínima diferença, Maria Rita Kehl
relli, 2008). (1996, p. 23), reitera que:
Sintetizando, enquanto para a maioria
das pessoas existe uma correspondência si- Na dinâmica de encontro e desencontro entre
métrica entre seu corpo anatômico e a repre- os sexos, a intensa movimentação das tropas
sentação psíquica (fantasmática) desse corpo, femininas nos últimos trinta anos parece ter
nos transexuais o cenário é diferente. Esses deslocado os significantes do masculino e do
sujeitos, embora reconheçam possuir um feminino.
corpo anatômico de homem ou mulher, ex-
perienciam uma profunda estranheza, uma Dissertando sobre o processo identifi-
inquietação, um mal-estar: o corpo lhes pa- catório, Freud ([1923] 2011) ressalta que as
rece infamiliar. Para esses estrangeiros de si primeiras relações com os progenitores são
mesmos, anatomia não é o destino em que fundamentais para construção do sentimen-
desejam pousar. to de identidade. Outrossim, masculinidade
e feminilidade seriam pontos de chegada es-
Considerações finais tabelecidos ao longo dos processos identifi-
Em nossa pequena excursão pelo transexual, catórios.
procuramos demonstrar alguns apontamen- Stoller (1993), utilizando-se de uma
tos teóricos que consideramos relevantes contribuição cultural cruzada, busca es-
para uma melhor compreensão da temática. tabelecer hipóteses acerca das origens da
Parece-nos claro que, na realidade, a transe- masculinidade. Ao analisar achados etno-
xualidade mostra-se como uma ‘solução’. gráficos da Nova Guiné, Stoller (1993) ob-
Entendemos solução no sentido matemá- serva que para a tribo dos Sâmbia, a cons-
tico do termo, ou seja, trução da masculinidade requer uma série
de ritos, entre eles, um dos procedimentos
[...] uma equação que comporta diferentes a que os meninos devem se submeter para
variantes frente às quais, tal como em um sis- se tornarem masculinos é ingerir sêmen via
tema vetorial de forças, uma resultante, uma felação. Destarte, através dessa contribui-
solução, será encontrada. (Ceccarelli, 2008, ção antropológica, Stoller (1993) procura
p. 56) demonstrar como a masculinidade é uma
conquista a ser adquirida progressivamen-
Frente às múltiplas variáveis possíveis, a te e, portanto, não é um simples estado na-
transexualidade é um arranjo pulsional sin- tural.
CECCARELLI, P. R. O corpo como estrangeiro. Psica- QUINET, A. Édipo ao pé da letra: fragmentos de tra-
nálise e Cultura, São Paulo, v. 31, p. 54-60, 2008. gédia e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
CECCARELLI, P. R. Transexualidades. 3. ed. São Pau- ROUDINESCO, É. Sigmund Freud: na sua época e em
lo: Casa do Psicólogo, 2017. nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
FERRAZ, F. C. Perversões. 5. ed. São Paulo: Casa do ROUDINESCO, É.; PLON, M. Dicionário de psicaná-
Psicólogo, 2010. lise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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