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A PSICOLOGIA JUNGUIANA E A TRANGENERIDADE: A DIVERSIDADE

EM FOCO

Priscila Tamarozzi Julião de Souza Angélla.

1. Incongruência de gênero: a Sexualidade e a Saúde LGBTQIA+

A sexualidade pode ser conceituada como elemento universal do


comportamento e da realidade humana. Como afirma Marnicio at al (2017, p.29): “A
sexualidade não é apenas física, mas também inclui sexo, gênero, identidade sexual e
de gênero, orientação sexual, erotismo e ligação emocional/amor.”
A temática da sexualidade ainda é um assunto delicado no que tange aos
preconceitos e estigmas. A polaridade negativa da vivência da sexualidade pode
acarretar como sombra coletiva toda uma série de repressões no que tange à liberdade
e autonomia do ser humano. Em sua face iluminada, pode trazer experiências
compensadoras e a possibilidade de ampliação de consciência.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), define saúde sexual como o estado
de bem estar físico e emocional, ou seja, não se trata apenas da ausência de doenças,
disfunções ou enfermidades:

Saúde sexual é o estado de bem estar físico, emocional, mental e social relacionado à
sexualidade; não se refere à mera ausência de doenças, disfunções ou enfermidades. A saúde
sexual exige uma abordagem respeitosa no que tange a sexualidade e relacionamentos sexuais,
assim como a possibilidade de ter experiências sexuais seguras e prazerosas, sem coerção,
discriminação ou violência. Para que a saúde seja atingida e mantida, os direitos sexuais de
todas a pessoas precisam ser respeitados, protegidos e cumpridos.” (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DA SÁUDE, 2006)

A saúde sexual é um direito adquirido e é necessário trazer visibilidade a temas


como a identidade de gênero para a discussão e aprofundamento teórico. Pode-se
definir identidade de gênero a partir do conceito de gênero. Ao primeiro conceito,
gênero, pode-se afirmar que se trata de uma noção que requer cuidado para toda a
extensão do mesmo, pois tem-se o papel da cultura e de maneiras de conceber o mundo
daqueles que definem o conceito gênero:

As noções de gênero, papéis sociais, diferenças inerentes a homens e mulheres e até


mesmo do que se conhece por sexo, estão impregnadas tão profundamente em nossa cultura e
ligada à nossa maneira de ver o mundo que se torna praticamente impossível distingui-las da
realidade material e captar seu caráter interpretativo e contextualizado. Compreende-se ser um
desafio, até mesmo para os estudiosos na área, imaginar uma realidade em que esses mesmos
conceitos inexistam ou tenham significados divergentes daqueles assumidos, relacionem-se de
outros modos, embasados em premissas baseadas a outro universo. (TONIETE, 2017)

Quanto à identidade de gênero, uma vez colocada a complexidade da questão


relacionada ao aspecto histórico e social da construção desse termo, pode-se afirmar
que é autorreferida e que somente o portador da identidade pode exteriorizá-la. Ciasca
(2021) coloca como definição:

Identidade de gênero é a convicção da pessoa em se reconhecer como homem, mulher,


algo entre essas definições ou fora do padrão binário hegemônico, independentemente do sexo
biológico e da expressão de gênero. Ela é sempre autorreferida, só o próprio sujeito pode
exteriorizá-la. Algumas pessoas apresentam fluidez de gênero, ou seja, uma variabilidade no
decorrer da vida, o que é mais comum em crianças. Aqueles que se identificam com o gênero
designado ao nascimento a partir do reconhecimento do sexo são chamados de cisgênero e
aqueles que não se identificam são conhecidos como transgêneros.(CIASCA, 2021)

Nesse contexto, percebe-se a importância dos estudos e ampliações desse tema


plural e rico. A Psicologia junguiana tem como arcabouço teórico conceitos que se
mostram profícuos e que coloca o estudioso do tema em um desafio no que tange à
ampliação dessa temática. A construção de uma costura é objetivo deste estudo, a
mitologia pode ser um caminho interessante para a ampliação deste tema.
A saúde LGBTQIA+ abrange a população que foi relegada à sombra coletiva
de uma sociedade heteronormativa. Essa população sofre os preconceitos e estigmas de
uma sociedade ainda mergulhada em padrões estanques e excludentes. Trata-se de um
conjunto de pessoas que não vivem à luz da identidade cisgênera, heterossexual,
endossexual e alossexual, ou seja, sujeitos que correspondem à lésbicas, gays,
bissexuais, pessoas transgênero, pessoas intersexo, assexuais, pansexuais entre outras
possibilidades.
Nesse contexto, o recorte do estudo direciona para o olhar mais aprofundado
para a transexualidade, ou seja, pessoas como uma identidade de gênero diferente
daquele designado ao nascimento, com ou sem a disforia quanto ao gênero. A disforia
de gênero, refere-se ao sofrimento de uma pessoa relacionada à vivência de uma não
conformidade quanto ao gênero. É uma categoria diagnóstica ainda presente no CID 10
(Classificação Internacional de Doenças, 10ª Edição).
O caminho para a despatologização segue seu curso e o CID 11, versão
atualizada do CID 10 trará o diagnóstico, já presente nas normativas do Conselho
Federal de Psicologia (CFP), com outro denominação, mais adequada ao contexto atual,
de incongruência de gênero, pois esses indivíduos podem ou não sentir sofrimento
quanto à não conformidade do gênero, como coloca Ciasca:

Nela há o diagnóstico de incongruência de gênero, que se refere a todas as pessoas


que não se identificam, total ou parcialmente ao gênero designado a elas, a partir do genital
reconhecido ao nascimento (incluindo pessoas transexuais, travestis, não binárias, ou sejam
todas as pessoas não cis). (CIASCA, P.427. 2021)

O Conselho Federal de Psicologia, coloca a despatologização como uma


premissa a ser seguida, com enfoque na luta à essa causa tão importante para os
psicólogos, ou seja, a luta contra qualquer forma de discriminação: “Antes mesmo da
decisão da OMS, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) já havia publicado
a Resolução CFP n°01/2018, que orienta a atuação profissional de psicólogas e
psicólogos no Brasil para que travestilidades e transexualidades não sejam consideradas
patologias.” (Spinillo, 2019).
O corpo trans necessita de espaço, de aprofundamento e de visibilidade.
Iluminar o corpo trans é tirá-lo da sombra e assim integrado à consciência, ampliar sua
voz na sociedade marcada pela verticalidade das relações. Esse conhecimento é crucial
para que o diálogo com o outro possa ser o diálogo do lugar do outro, da alteridade.
Preciado (2016, p. 222) aprofunda esse olhar a partir de sua própria experiência trans,
convida ao leitor a mergulhar em sua experiência almada, em seu corpo trans:

Meu corpo trans é uma instituição insurgente, sem constituição. Um paradoxo


epistemológico e administrativo. Devir sem teleologia nem referente, sua existência inexistente
é a destituição ao mesmo tempo da diferença sexual e da oposição homossexual-heterossexual.
Meu corpo trans volta-se contra a língua daqueles que o nomeiam para negá-lo. Meu corpo
trans existe como realidade material, como trama de desejos e práticas, e sua inexistente
existência coloca tudo em xeque: a nação, o júri, a família, a lei, o livro, o centro de internação,
a psiquiatria, a fronteira, a ciência, deus. Meu corpo trans existe. (PRECIADO, 2016)

A importância do tema exposto convida ao mergulho. Desse modo,


compreender a questão da transexualidade à luz de conceitos junguianos, como a
individuação, os arquétipos da persona e sombra, anima e animus é o convite para tecer
possibilidades para circuambular sobre essa imagem que existe e resiste.

2. O arquétipo do andrógino em discussão

O hermafrodita ou andrógino é um tema em discussão na obra junguiana,


particularmente explorada em seus livros sobre Alquimia, nas Obras Completas,
volume 12 e 13 e no livro Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, volume 9/1. Trata-se
de um tema iluminado por este autor e no trabalho atual busca-se pontuar algumas de
suas colocações acerca desse tema. Jung ([1936], 2014, p.147) refere o arquétipo do
hermafrodita, trazendo algumas colocações a esse respeito:

À medida em que cresce, o jovem deve poder libertar-se do fascínio pela anima,
exercido sobre ele pela mãe. Há, no entanto, exceções, especialmente no caso dos artistas, onde
o problema se coloca frequentemente de modo bastante diferente; o mesmo se dá com o
homossexualismo que em geral se caracteriza por uma identificação com a anima. Em vista da
conhecida frequência deste último fenômeno, concebê-lo como uma perversão patológica é
extremamente questionável. Segundo as descobertas da psicologia, trata-se mais de um
desligamento incompleto do arquétipo hermafrodita, unido à uma resistência expressa a
identificar-se com o papel de um ser sexual unilateral. (JUNG, [1936], 2014.)

Chevalier (2020, p. 98) discorre sobre o conceito do andrógino nos estágios


iniciais e finais. Para o mesmo, o conceito da androginia está presente nas cosmologias
e escatologias em diferentes culturas: “O andrógino inicial não é senão um aspecto,
uma figuração antropomórfica do ovo cósmico. Encontramo-lo ao alvorecer de toda
cosmogonia, como também no final de toda escatologia.”
Mircea Eliade, cientista das religiões, mitólogo e filósofo, cita inúmeros
exemplos de androginia em sua obra Mefistófeles e o Andrógino. Chevalier (2020, p.98)
cita esse autor a fim de ampliar o conceito acerca do andrógino: “Mircea Eliade, a esse
respeito, cita numerosos exemplos retirados das religiões nórdicas, grega, egípcia,
iraniana, chinesas, indianas. Quando aplicada ao homem, é normal que essa imagem de
unidade primeira tenha uma expressão sexual, apresentada muitas vezes como a
inocência ou virtude primeira a idade de ouro a ser reconquistada”.
Muitos são os exemplos citados por Eliade (1999, p. 106) para ilustrar o mito
do andrógino. Um deles se destaca, o mito de Adão:

Recordemos também que vários midrashim apresentavam Adão como andrógino.


Segundo o Bereshit rabba, “Adão e Eva eram feitos de costas, ligados pelos ombros; então
Deus os separou em uma machadada, cortando em dois. Outros têm outra opinião: o primeiro
homem (Adão) era homem do lado direito e mulher do lado esquerdo; mas Deus fendeu-os em
duas metades. (ELIADE,1999)

O próprio deus Dionísio e Afrodite, segundo Eliade (1999 p.113), traz em suas
narrativas características andróginas: “Em Chipre, venerava-se uma Afrodite barbuda,
denominada Afrodito e, na Itália, uma Vênus calva. Quanto a Dionísio, era um ser
bissexuado por natureza.”
Os ritos de totalização pela androginia simbólica pode ser compreendido de
diversas formas, Eliade (1999, p.119) aponta como objetivo o sucesso de um começo,
tal como a primavera ou uma iniciação específica:

Vê-se, pois, que a esses ritos de totalização pela androginia simbólica ou pela orgia
podem ser atribuídos diversos valores. Mas todos eles são realizados quando se trata de garantir
o sucesso de um começo: começo da vida sexual e cultural representada pela iniciação, o Ano
Novo, a primavera, ou o “começo” representado por qualquer nova colheita. (ELIADE, 1999,
P.119)

Jung, em seus escritos sobre Alquimia, discorre sobre a androginia, valendo-se


de escritos antigos, dos alquimistas e a sua obra. Recorta-se em seus escritos o paralelo
lapis-Cristo. A alquimia foi uma fonte rica de aproximações dos processos psíquicos:

As relações do mundo da interpretação alquímica e dessas duas formas do processo


de interpenetração inconsciente-consciente são tão próximos a ponto de ser justo supor-se que
no procedimento alquímico se trata de processos semelhantes ou iguais aos da imaginação ativa
e dos sonhos, e enfim ao processo de individuação. (JUNG, P. 399, [1943], 2021)

Cristo, como hermafrodita e matéria prima é descrito por Jung em seu livro
Psicologia e Alquimia. São conceitos que retratam a visão do Self, que Jung distingue
do conceito de ego, em nota de rodapé, neste citado livro:

Muito embora eu tenha insistido, a cada situação que se apresenta, o conceito do si-
mesmo, tal como o defini, não coincidi com o da personalidade empírica e consciente,
constantemente deparo o mal-entendido que quer que o “eu” coincida com o “si-mesmo”.
Devido ao fato de a personalidade humana ser fundamentalmente indefinível, o si-mesmo é um
conceito limite, expressando uma realidade ilimitada em si. (JUNG, [1943], 2021, P.374)

Avança-se nesse conceituação a fim de trazer Cristo em suas definições e


ampliações realizadas por Jung ([1943], 2021, p.374 ) à luz de seus estudos sobre
alquimia. Cita-se a opus como o si-mesmo, assim como Cristo resgata o Divino no
homem: “Para sermos mais exatos, deveria ser reconhecido que tomara sobre si o “opus”
não enquanto ego, mas enquanto si-mesmo, do mesmo modo que Cristo: não para
resgatar o homem, mas o divino.”
Cristo, para Jung ([1943], 2021, p.389) é gnóstico e tem, como na alquimia
cristã uma aproximação com Adam, sendo constituído por uma quaternidade. O autor
descreve, dessa forma o Anthropos, primeiro homem: “É o Anthropos, o primeiro
homem, simbolizado pelos quatro elementos, idêntico ao “lapis” que possui a mesma
estrutura.”
A pedra secreta ou lápis é retratada por Jung ([1943], 2021, p.395) em seus
relatos sobre alquimia: “Essa pedra secreta é uma dádiva de Deus. É a pedra sem a qual
a alquimia não poderia existir. É o coração e a tintura do ouro.” Em outra ampliação,
sobre os símbolos gnósticos do si-mesmo, Cristo se configura como hermafrodita:

O ato de produzir a mulher tirando-a do seu próprio lado indica que Cristo era
concebido como Adam secundus (segundo Adão). O fato de Ele produzir mulher indica
que desempenha o papel de Deus criador de Gênesis. Do mesmo modo pelo qual o Adão
anterior à criação de Eva é tido em diversas tradições como bissexual, assim também nesse
contexto Cristo mostra sua androginia de forma drástica. Em geral, o Homem Primordial
é hermafrodita. Assim, na tradição védica ele também produz sua metade feminina e se
une à ela. (JUNG, [1950], 2021, p. 243)

Jung ([1950], 2021, p.248) traz a iconografia medieval de Cristo como o


homem primordial, sendo a divisão do homem e da mulher expressa como um ato de
tomada de consciência: “A iconografia medieval conhece as representações de Cristo
com seios femininos, de acordo com as palavras de Cântico1, 1: Meliora sunt ubera tua
vino (Os teus seios são mais deliciosos que vinho).”
Em seu livro Arquétipos e o Inconsciente coletivo, volume 9/1 das Obras
Completas, Jung traça correlações entre o arquétipo da criança divina e o arquétipo do
hermafrodito. A explanação do Jung ([1940], 2014, p.175) tem em seu aspecto
introdutório a visão de que a maioria dos deuses cosmogônicos são de natureza
bissexual: “É um fato digno de nota que talvez a maioria dos deuses cosmogônicos
sejam de natureza bissexual. O hermafrodita justamente significa uma união dos
opostos mais fortes e estranhos.”
O hermafrodita ou andrógino não pode ser visto como algo negativo,
mosntruoso ou errático, porém passou por adjetivos polarizados do extremo positivo ao
extremo negativo ao longo de nossa história. Segundo Jung, o tema hermafrodita é
simbólico e aponta para a superação e cura:

Em seu significado funcional, o símbolo não aponta mais para trás, mas para a frente,
para uma meta ainda não atingida. Sem ater-nos à sua monstruosidade, o hermafrodita tornou-
se pouco a pouco, inequivocamente, um portador de cura, superador de conflitos, significado
que já alcançara em fases bem anteriores da cultura. (JUNG, [1940], 2014, p.176)

O pensador Daniel Mundukuru (2013, p.45) traz como o próprio Jung, uma
visão de superação em relação à possibilidade de aprendizado e sensibilidade para
formar um novo povo, o “povo arco-íris”, marco simbólico da bandeira LGBTQIA+,
idealizada por Gilbert Baker, apresentada ao mundo em 1978, com a inspiração dos
hippies, segundo Ferreira (2022, p.1): “Ele se inspirou nos hippies, que veem o arco-
íris como símbolo da paz, e na música Over The Rainbow, que traz a mensagem: “além
do arco-íris existe um lugar muito bom”.

Todas essas profecias sempre estiveram escritas na memória desses povos milenares.
Menciona-se nelas, inclusive, uma nova modalidade de amigos dos “homens vermelhos”
(como são chamados os nativos norte-americanos). A profecia refere-se às pessoas que não
nasceriam “vermelhos”, mas com a alma dos “homens vermelhos” e que trariam em si a
possibilidade do aprendizado, a sensibilidade para construir um povo novo. Eles seriam o
“povo do arco-íris”, cuja história já começou. (MUNDUKURU, 2013, P. 45)

Segundo Leite (2009, p.287): “O hermafrodita ou andrógino, figura constante


no que se convencionou chamar genericamente de cultura ocidental, não é apenas mais
um monstro dos compêndios e coletâneas de narrativas fantásticas, mas o grande
prodígio sexual que cresce em importância e influência da Antiguidade até o
surgimento da “ciência sexual ”no século XIX.
Tal concepção alinha-se à Jung ([1940], 2014, p.176), pois, em sua visão este
reitera que não se trata de uma disposição que deve ser avaliada como negativa: “Este
significado vital explica por que a imagem do hermafrodita não se apaga nos primeiros
tempos, mas, pelo contrário, pôde afirmar-se com a profundidade crescente do conteúdo
simbólico através dos séculos.”
Trata-se de um tema que é fonte de múltiplos sentimentos que podem caminhar
do medo ao fascínio, como afirma Leite (2009, p. 287): “Fonte de medo e curiosidade,
mas também de fascínio e desejo, a idéia de um ser ao mesmo tempo macho e fêmea,
feminino e masculino, ameaça e questiona os limites dos padrões culturais sobre o que
é ser homem ou mulher.”
O desenvolvimento da cultura traz à tona novamente o ser originário bissexual,
mas não mais retratando o início dos processo psíquico, a cosmogonia dos deuses, mas
torna-se símbolo da totalidade, do si-mesmo, segundo Jung:

Na medida em que a cultura se desenvolve, o ser originário bissexual torna-se símbolo


da unidade da personalidade do si-mesmo, em que o conflito dos opostos se apazigua. Neste
caminho, o ser originário torna-se a meta distante da autorrealização do ser humano, sendo que
desde o início já fora uma projeção da totalidade inconsciente.” (JUNG, [1940], 2014, p.177)
Trata-se de um tema a ser explorado e considerado à luz da teoria analítica com
suas raízes profundas no que tange à noção de arquétipo para Jung. O tema remonta à
viltalidade das idéias arquetípicas e este é o convite para o aprofundamento em seu
significado para nosso momento histórico no qual a transgeneridades aparece de modo
exuberante e questionador.

3. A luz e a sombra da transgeneridade sob o enfoque junguiano: a saída do


armário

A saída do armário é um tópico multifacetado da vivência de pessoas


transgêneras. Trata-se de uma expressão que se refere à revelação pública da orientação
sexual ou identidade de gênero LGBTQIA+. Pode-se considerar um rito de passagem,
bem como a aceitação de algo sombrio, nesse caso a aceitação de algo que esteve em
território de trânsito difícil para a indivíduo trans. A saída do armário carrega a luz da
revelação e autoaceitação, mas pode levar o sujeito à se defrontar com o ódio e o
preconceito do outro.
A origem da palavra armário remonta o latim armarium e segundo o dicionário
pode ter como significado o lugar onde eram guardadas as armas. A expressão sair do
armário tem sua correlação na língua inglesa skeletons in the closet, sinônimo para um
segredo vergonhoso. Sair do armário guarda a ambivalência e a potência dessa ação.
A expressão sair do armário retrata as particularidades de uma sociedade em
que o outro determina como se deve ser e viver. Kast (2022, p.51) traz a visão da
persona impessoal e da sombra impessoal, colocando como impessoal o contexto do
lugar e atuação dos outros, ou seja, como os outros determinam como se deve viver:
“Esse ‘impessoal’ impõe uma ditadura indetecável: nós aproveitamos a vida como se
aproveita a vida, pensamos como se pensa, nós nos vestimos como a sociedade se veste.”
A saída do armário daquilo que a sociedade heteronormativa regulamentou
implica em uma ditadura, que somente é percebida quando não se subjulga à essa norma,
ou seja a norma da heterossexualidade como regra de adequação social. Kast (2022,
p.52) afirma que:

Sob a ditadura do impessoal, criamos um convívio com certa mediocridade, e essa


mediocridade controla as exceções. Isso faz com que toda a originalidade seja harmonizada,
que toda conquista se transforme em algo que possa ser manuseado, que todo desconhecido se
torne algo que se conhece desde sempre.” (KAST, 2022).
A saída do armário impõe um ruptura com a persona, descrita por Kast (2022)
como correspondente ao eu ideal: “De um lado, a persona corresponde ao nosso eu
ideal, de outro, à nossa ideia de como os outros querem nos ver.” Jung,(2014 [1940], p.
126, § 221) por sua vez informa o perigo da identificação com a persona: “Exagerando
um pouco, poderíamos até dizer que a persona é o que não se é realmente, mas sim
aquilo que os outros e a própria pessoa acham que se é.”
A possibilidade de identificação com a persona traz como ganho imediato o
reconhecimento do outro, como completa Jung (2014 [1940], p. 126): “Em todo caso a
tentação de ser o que se aparenta é grande, porque a persona frequentemente recebe seu
pagamento à vista.” Kast (2022, p. 13) levanta a possibilidade da vivência da
inautencidade: “Essa imagem que mostramos para o mundo pode concordar muito bem
com a nossa identidade, mas podemos também ter a sensação de não sermos autênticos,
de exercemos um papel que não nos agrada muito ou de estarmos nos disfarçando.”
A percepção dessa incongruência quanto ao que se mostra socialmente e o que
o mundo interno revela no tocante ao chamado da alma, ou seja, a persona pode ser
colocada sobre a perspectiva do relato de um homem trans de nome fictício Rodrigo,
com 31 anos, citado por Khouri (2022, p.122):

“[...] quando me assumi trans foi uma segunda “saída do armário”, porque o
meu entendimento de identidade de gênero veio depois da descoberta da sexualidade.
Não foi fácil, foi uma dupla batalha, embora eu acredite que a diversidade sexual seja
mais aceita socialmente. Porém, quando assumi a decisão de transicionar, muito
daqueles com quem eu convivia fazia parte de alguma letra LGBTQIA+, e raras foram
as vezes que não sofri uma enxurrada de julgamento e questionamento deles, tendo
como enquete principal a seguinte pergunta: “mas precisa disso?” e respondia: “sim,
precisa!” (KHOURI, 2022)

Carl Gustav Jung, no livro Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo compara a


persona à túnica de Dejanira colada à pele do herói Héracles. Essa túnica estava
envenenada com o sangue de hidra de Lerna. O herói, tentando arrancar a túnica,
percebe desesperado que esta ficou aderida à sua carne. Assim como a identificação
com a persona, a túnica está aderida de tal modo que passa ser um ato heróico e final
de Héracles, acender a pira e se atirar na mesma, para enfim se livrar da túnica embebida
com o veneno da hidra. Jung (2014 [1940], p. 126, § 221) refere à túnica-persona e ao
desafio do herói:
A túnica de Dejanira colou-se à pele de Héracles e nela se enraizou. É preciso
a determinação desesperada de um Héracles para arrancar do corpo a túnica de Nesso
e entrar no fogo da imortalidade, a fim de transformar-se naquilo que verdadeiramente
é. (JUNG, 2014 [1940])

A expressão da identidade de gênero é de fato uma vivência árdua para aqueles


que não se identificam com o gênero designado no nascimento, olhar-se como um
estrangeiro em seu próprio corpo, ser visto como algo que não corresponde à verdade
interna pode ser uma vivência terrível. O desejo de tirar o manto envenenado, mesmo
que dele saia pedaços de pele é o preço pago para o livramento de uma sensação de
angústia e dor. Essa vivência é chamada de disforia de gênero. Essa sensação pode ser
acompanhada pelo relato do psicólogo e ativista João Nery, falecido em 2018, autor de
diversos livros LGBTQIA+:

As evidências do meu corpo me obrigavam a ser visto como mulher.


_Merda! _bem alto, com todas a forças de meus pulmões. Olhei-me nu no espelho do
quarto. Analisei-me em todos os ângulos. E tudo, absolutamente tudo, estava fora de lugar. O
que sobrava em cima, faltava embaixo e vice-versa. Minha alma não se conformava de ter de
se expressar por meio daquele monte de carne, sobre o qual não tinha podido decidir nada. Foi-
me imposto sem pedir licença, para forma, para o conteúdo e todos os papéis que,
obrigatoriamente, carregava comigo. Não conseguiria me submeter a essa sociedade pronta e
chauvinista. Não sou isto! (NERY, 2019)

Segundo Kast (2022, p.53), a rebeldia à persona impessoal é uma ruptura à


submissão do ditado dos outros: “ Aquele que se rebela contra a ‘persona impessoal’
deixa de se submeter ao ditado dos outros, mas leva em conta também o outro, as
exigências do mundo interior. A morte do herói Herácles, seu ato de rebeldia, passa
pelo fogo, como é apresentado por Brandão (2007, p.128):

No píncaro do monte mandou erguer uma pira e deitou-se sobre ela. Tudo pronto,
ordenou que se pusesse fogo na madeira (...). Esse fogo pode ser o símbolo de sua purificação,
despindo-se dessa vida e da túnica. Nossos heróis passam por esse fogo, a saída do armário
rumo à uma nova vida pode conter elementos simbolizados na túnica que está envenenada e
na tentativa de renascer, quem sabe pelo fogo. (BRANDÃO, 2007)

Passar pelo processo da saída do armário pode ser desafiador. Esse desafio é
arquetípico na medida em que se trata do convite singular à individuação: “Esse
processo corresponde ao decorrer natural de uma vida, em que o indivíduo se torna o
que sempre foi.” (Kast, 2022. p. 31)
Edinger (2020, p. 58) coloca a importância da aceitação no processo de
individuação, considerando o Si-mesmo como o órgão de aceitação por excelência:
O Si-mesmo, na qualidade de centro e totalidade da psique, capaz de conciliar todos
os opostos, pode ser considerado o órgão de aceitação par excellence. Como inclui a
totalidade, ele deve ser capaz de aceitar todos os elementos da vida psíquica, por mais
antitéticos que possam ser. O sentimento de ser aceito pelo Si-mesmo dá ao ego força
e estabilidade. Esse sentimento de aceitação é o veiculado para o ego através do eixo
ego-Si-mesmo. Um sintoma de danificação desse eixo é a falta de auto-aceitação. O
individuo sente que não merece viver ou ser o que é. A psicoterapia oferece à pessoa
que passa por isso uma oportunidade de enfrentar a aceitação. Em casos bem-
sucedidos, essa experiência pode equivaler a um reparo do eixo ego-Si-mesmo que
restabelece o contato com as fontes internas de força e de aceitação – o que deixa o
paciente livre para viver e crescer. (EDINGER, 2020, P. 58)

O sentimento de ser aceito pelo Si-mesmo dá ao ego estabilidade. Ser livre para
viver e crescer é algo valioso para todos, nesse caso a ênfase se dá ao paciente que vive
a sua revelação.

3. Encontro com a anima e o animus: do chamado do Self à expansão da


consciência

A anima e o animus são conceitos importantes para a psicologia analítica e


amplia a discussão da transexualidade em tempos atuais. Se a sombra pode ser
relacionada com os aspectos ocultos de nossa psique, anima e o animus pode ser,
segundo Stein (2006, p. 115) o caminho para o interior profundo. A visão sobre o
gênero tem em sua atualidade um chamado à novos encontros e discussões na esfera
trans.
Conforme Kast (2019, p.81), animus e anima são imagens arquetípicas
reguladoras do relacionamento no amplo sentido. Acrescenta a autora: “Poderíamos
designá-los como arquétipos do relacionamento e da união.” Ao apresentar o conceito,
Kast (2019, p.81) o amplia para os tempos atuais em um revisão do constructo teórico:

Quando Jung dala de anima e animus em termos de conteúdo – por exemplo, que a
anima personifica o eros e o animus o logos_, isso pode levar facilmente a conclusões
específicas de gênero se não separarmos com precisão essas imagens internas dos aspectos
conscientes da personalidade. Nesse caso mulheres passariam a corresponder ao princípio de
eros, e os homens, ao princípio do logos. Essas também são as maiores alterações nesse
conceito que precisamos realizar hoje: como Jung não falou em nenhuma ocasião de arquétipos
específicos de gênero, podemos supor que tanto anima quanto o animus aparecem em ambos
os sexos, muitas vezes até como casal. (KAST, 2019, P.81)

Trata-se de um tema controvertido na teoria de Jung, pois suscita profundas


questões sobre o sexo, conforme aponta Stein (2006, p.116): “De todos os aspectos da
teoria de Jung, o tópico deste capítulo tornou-se, de muitas formas, o mais controvertido,
porque suscita profundas questões de sexo e sugere diferenças essenciais na psicologia
de homens e mulheres. Embora esse assunto possa ser parecido calmo e resolvido no
tempo de Jung, ele provoca hoje mais agitação que um ninho de marimbondo.”
Stein (2006, p.116) amplia o olhar acerca dessa tema, trazendo sua visão acerca
dessas formas vitais básicas, arquetípicas, assim como sua visão sobre a contribuição
de Jung sobre este tema: “A alguns contemporâneos parece que Jung foi um homem
avante do seu tempo, que previu e, com enfeito, advogou um protofeminismo. Para
outros, ele apresenta-se coo um porta-voz de pontos de vista tradicionais estereotipados
sobre as diferenças entre homens e mulheres. De fato, penso que ele foi um pouco
ambas as coisas.”
À guisa de definição, anima e animus foram definidos por Jung (2013, [1921],
p. 428, § 759) em muitas obras, em seu livro Tipos Psicológicos, escrito em 1921. Os
termos foram descritos em um glossário de definições, no capítulo IX:

O caráter complementar da alma também atinge também o caráter sexual, conforme


pude constatar muitas vezes. Mulher muito feminina tem alma masculina; homem muito
masculino tem alma feminina. Deve-se esse contraste ao fato do homem não ser extremamente
viril em todas as coisas, mas possuir em geral, certo traços femininos. Quanto mais viril for sua
atitude externa, mas suprimidos são os traços femininos; aparecem então, no inconsciente.
(JUNG, 2013 [1921], p. 428, § 759)

Mais adiante em sua explanação Jung, traz a definição de anima e animus


propriamente dita, em contrapontos relacionados aos opostos:

Se, com relação ao homem, falarmos de anima, deveríamos logicamente falar de


animus em relação à mulher. Geralmente na atitude externa do homem predomina ou são
consideradas ideais a lógica e a objetividade, nas mulheres predomina o sentimento. Na alma,
porém a situação se inverte: o homem sente e a mulher delibera. (JUNG, 2013 [1921], p. 428,
§ 759)

As definições apresentadas referem-se à visão clássica. James Hillman


contribui para a ampliação desse olhar, colocando a princípio a idéia de opostos que
Jung traz para a primeira noção de anima e animus. Para o autor citado a anima é um
conceito que tem o sentido do feminino e da vida e se faz relevante na psique do homem
e da mulher. A anima pode compor a psique das mulheres: “[...] a anima, como
arquétipo, é por demais ampla para ser contida na noção de contrassexualidade. Livres
desta limitante definição, anima incide também na psique das mulheres.”
Como forma de alongar e problematizar a visão de Hillman, tem-se a discussão
entre conceitos masculino e feminino em debate:
Hoje em dia as noções de “masculino” e “feminino” estão em disputa. Essa disputa
ajudou a diferenciar papéis sexuais dos papéis sociais, e mesmo a diferenciar tipos de
identidade sexual, isto é, se baseada em características sexuais primárias ou secundárias,
manifestas ou genéticas, físicas ou psíquicas. Ficou difícil falar de anima como feminilidade
inferior já que não estamos mais seguros do que seja “feminilidade”, que dirá “feminilidade”
inferior. (HILLMAN, 2020, P.350)

Nesse contexto, o homem feminino em sua expressão egóica pode ter o


inconsciente representado pela sombra ctônica masculina, segundo Hillman (2020,
p.33): “Quando o ego do homem apresenta uma preponderância de traços anímicos
clássicos, o inconsciente é representado pela sombra ctônica masculina; quando o ego
de um homem é feminino, sua contrassexualidade inconsciente deve ser masculina.”
A ampliação do olhar pode trazer contribuições para o caminho de uma visão
que coloque em cheque a noção binária e heteronormativa. Esse caminho foi citado por
Hopke (1993, p.200) de maneira esclarecedora e esperançosa:

A grande riqueza dos insights de Jung e das elaborações posteriores feitas pelos
junguianos deve ser solidificada por um instrumento teórico capaz de lançar luz sobre uma das
mais fortes experiências de seres humanos: nossa sexualidade, suas paixões, seus movimentos,
sua orientação, significado e propósito. (HOPKE, 1993, P.200)

Stein (2006, p. 125) abre uma discussão sobre os aspectos de identificação com
características identificadas como masculinas por mulheres e femininas por homens em
nossa cultura: “Mas o que dizer a respeito de mulheres que não são muito femininas e
de homens que não são muito masculinos em suas personas?”.
Questionamentos pertinentes são movimentados por Stein em confomidade
com o questionamento em relação à contrassexualidade indagada por Hillman: “O que
dizer de homens que não se identificam com o gênero designado pelo sexo definido ao
nascimento? O que dizer de mulheres que não se identificam com o gênero definido
pelo sexo designado ao nascimento?” (Stein, 2006, p.126)
Jung (2013,[1930], p.354, §781) versando sobre as etapas da vida do homem,
em sua época, ou seja, nos idos dos anos 30, já colocava o tema em debate. Nessa
discussão parece intuir dados importantes sobre a masculinidade e feminilidade na
perspectiva de mudança que pode acontecer no meio da vida:

Há uma notícia interessante na bibliografia etnológica a respeito de um chefe


guerreiro índio a quem o Grande Espírito apareceu em sonhos no meio da vida e lhe anunciou
que a partir de então ele devia sentar-se entre as mulheres e as crianças, usar vestes femininas e
alimentar-se com comida de mulher. Ele obedeceu a este sonho, sem perder a reputação e o
prestígio. Esta visão e a expressão fiel da revolução psíquicas do meio dia da existência e do
começo de seu declínio. Os valores do homem e mesmo seu corpo tendem a converter-se em
seus opostos pelo menos alusivamente. (JUNG, 2013, [1930], p.354, §781)

Neste contexto é possível aproximar a vivência do chefe indígena como um


chamado do Grande Espírito para a vivência do feminino? Apesar de causar certa
polêmica, é um arauto de uma visão que se pode antever a vivência da transexualidade.
Sanford (1987, p. 9) traz como contribuição às ampliações dos conceitos de
anima e animus, a contribuição de que todo ser humano é andrógino: “Os homens
costumam pensar e julgar-se apenas como homens, e as mulheres pensam e julgam-se
apenas como mulheres, mas os fatos psicológicos mostram que todo ser humano é
andrógino.” Essa colaboração ilumina o campo da transexualidade e permite vislumbrar
possibilidades para se pensar essa vivência. O autor ainda traz a etimologia da palavra
andrógino e a aproxima da palavra hermafrodita:

A palavra andrógino vem de duas palavras gregas, andros e ginos, que significam
“homem” e “mulher” respectivamente, e se refere a uma pessoa que combina na sua
personalidade tanto elementos masculinos quanto femininos. A palavra hermafrodita é uma
palavra análoga. Vem do deus grego Hermafrodito, que nasceu da união de Afrodite e Hermes
e que encarnava características sexuais de ambos. (SANFORD, 1987, P.9)

Em relação à terminologia atual, o termo hermafrodita foi substituído por


diferenças ou variações congênita da diferenciação sexual (DDS), de acordo com Diehl
(2018, p. 184). A autora ainda afirma: “Atualmente, ativistas preferem que sejam
utilizados o termo intersexo, intersexual ou intersexualidade. É importante ressaltar que
intersexualidade não se refere à transexualidade.”
À guisa de novas searas, a fala de Stein (2006, p.125) aponta caminhos para
que se possa aprofundar o olhar para as questões referentes à vivência do que se
convencionou chamar de masculinidade e feminilidade: “O estilo mais andrógino de
décadas recentes afastou-se claramente da clássica polarização entre homens machos e
mulheres passivas.”
O autor, dando continuidade à sua contribuição, coloca, mais adiante em sua
tentativa de se aproximar das novas imagens coletivas predominantes: “Em
conformidade com a regra, tudo o que é deixado fora da adaptação consciente da cultura
reinante da pessoa individual é relegado para o inconsciente e reunir-se-á em torno da
estrutura que Jung chamou de anima/us.” (Stein, 2006, p. 125)
Em sua visão, acrescenta um dado para o pensamento em relação aos corpos
que abrigam a estrutura anima ou animus: “Quer alojadas num corpo masculino ou
feminino, essas categorias de atributos parecem manter-se estáveis. O debate gira em
torno de saber se essas categorias devem ser associadas ao sexo.” (Stein, 2006, p. 125)
Esse debate é vivo e merece o olhar mais aprofundado para um fenômeno que
requer a atenção e o esforço para melhor compreensão dos estudiosos. Jung, sem dúvida,
contribuiu para esse aprofundamento, mas não olhou diretamente para a
transexualidade, que é atravessado pelas noções de gênero, sua identificação, assim
como os constructos teóricos acerca da masculinidade e feminilidade.
Nesse rico debate, mais do que respostas, levanta-se perguntas a serem
elaboradas: qual o chamado da alma de uma pessoa trans? Esse chamado está a serviço
da ampliação da consciência? Faz parte de sua individuação? As respostas não estão
prontas. Pode-se contemplá-las e trazê-las à reflexão.

4. O trânsito em narrativas míticas

A apresentação histórica da transexualidade está inserida no Compêndio de


Sexualidade. Diehl, no capítulo 13, Transgeneridade em Adolescentes e Adultos, como
uma condição que não é moderna. Há precedentes nos mitos, na história e em
sociedades e culturas pelo mundo. Comenta a autora: “A diversidade de gênero não é
uma condição moderna; há precedentes mitológicos, históricos e científicos em muitas
sociedades ao redor do mundo (...).”(Diehl, 2017, p.184)
Os mitos são fontes fertéis para discussões, assim como apresenta em sua
estrutura os imagens arquetípicas que podem ser ampliadas e revisitadas a fim de
conhecimento em relação à psique humana. Robert Bly (1991, p. 4) traz como
referência às imagens arquetípicas como reservatórios onde os seres humanos guardam
as novas maneiras de agir, quando as maneiras convencionais se desgastam:

Saber como fazer um ninho numa árvore sem folhas, como voar para um lugar onde
passar o inverno, como realizar a dança do acasalamento — todas essas informações estão
armazenadas em reservatórios do cérebro instintivo do pássaro. Os seres humanos, porém,
sentindo toda a flexibilidade de que poderiam precisar para enfrentar situações novas,
resolveram armazenar esse conhecimento fora do sistema dos instintos: guardaram-no nas
histórias. As histórias, portanto — contos de fadas, lendas, mitos, folclore — equivalem a um
reservatório onde guardamos as novas maneiras de reagir, que podemos adotar quando as
maneiras convencionais e habituais se desgastam. (BLY, 1991, P. 4)
Os mitos e contos podem conter variadas temáticas sobre a vivência humana,
a sexualidade é um desse motes, dentre os quais a fluidez de gênero. Segundo Brandão,
especialista em mitologia grega e latina, são vários os mitos que versam a mudança de
sexo: “Acrescente-se logo que esses repetidos cambiamentos de sexo na antiguidade já
eram considerados ‘como forma de expressão de uma natureza propriamente andrógina,
segundo resulta da representação de um espelho etrusco, em que Tirésias , no Hades,
aparece com aspecto de hermafrodito.” (Brandão, 2007, p.35)
Brandão (2007, p.36) refere algumas passagens míticas da fluidez de gênero:
“Igualmente na Eneida, de Vergílio, 6, 488, o lápita Ceneu aparece como mulher:
Ceneu, outrora mulher, amada por Posídon, foi por ele, como recompensa,
transformada em homem (...)”.
A seguir serão apresentados alguns mitos em que a masculinidade, assim como
a concepção do que seja ser homem e a feminilidade, assim como do que seja ser mulher
e a possibilidade de transitar por esses papéis é apresentada como tentativa de
aproximação ao tema da transgeneridade. Levantar-se-á algumas possibilidades para
reflexão.
Estão entre os mitos a serem apresentados: o mito do ser humano original,
apresentado no Banquete de Platão, com suposto ano de publicação 385 a. C a 380 a.
C. por Aristófanes; o velho Tirésias, apresentado por Campbell (1990) e Brandão
(2009), Aquiles, o herói grego, filho da nereida Tétis e de Peleu, apresentado por
Brandão (2007), Hermafrodito, filho da deusa Afrodite e do deus Hermes, apresentado
por Alvarenga (2010) e Oxalá e Obá, orixás do panteão africano, apresentado
respectivamente por Noguera (2018) e Prandi (2001).

A. O velho Tirésias e sua ampliação de consciência

Nessa apresentação o velho adivinho Tirésias é apresentado como homem e


como mulher, tendo adquirido o conhecimento de ambas as vivências. Tirésias é punido
pela pela deusa Hera e esse castigo tem como pano de fundo a discussão entre o casal
olímpico Zeus e Hera, sobre quem extraía mais prazer da relação sexual. Tendo sido
transformado pelas serpentes, primeiro em mulher, depois em homem, adquiriu o
conhecimento sobre a experiência de ambos.
Brandão (2009, p. 183) relata esse episódio, evidenciando o caráter profético
desse personagem da mítica grega:
Tirésias era cego porque possuía o dom da manteia, da adivinhação. Era um uates,
um profeta, dotado de uaticinium, do poder da predição. Um parentêses para explicar algo
importante: a cegueira e a manteia de Tirésias eram consequência de um castigo e de uma
compensação. Ao atingir a época de sua dokimasía, a saber, das “provas” de caráter iniciático
que passava todo jovem, ao ingressar na efebia e, em seguida participar da vida da pólis,
Tirésias escalou o monte Citerão e viu duas serpentes que se acoplavam em um ato de amor.
O jovem Tirésias a separou, ou, consoante outras fontes, matou a serpente fêmea. O resultado
dessa intervenção foi desastroso: o jovem se tornou mulher. Sete anos mais tarde, subiu o
mesmo Citerão e, encontrando cena idêntica, repetiu a intervenção anterior, matando apenas a
serpente macho, e recuperou seu sexo masculino, Tirésias era, portanto, alguém que tinha
experiência dos dois sexos. (BRANDÃO, 2009, P.183)

Segundo a explanação de Campbell (1990, p. 212) em entrevista à Moyers, este


analisa o mito, através da pergunta do jornalista: “Tendo sido transformado pelas
serpentes, primeiro em mulher, depois de novo em homem, Tirésias adquiriu
conhecimento da experiência masculina e da feminina e ficou sabendo mais do que o
deus ou a deusa sabiam, isoladamente?”
A resposta de Campbel (1990, p.212) remete a noção de que Tirésias
representava simbolicamente a unidade do masculino e do feminino: “(...) ele
representava simbolicamente a unidade dos dois”. Sanford (1987, p. 10) corrobora essa
análise, atestando que a concepção do ser humano original compor macho e fêmea pode
ser encontrado em muitas tradições:

Essa ideia de que o ser humano original era macho e fêmea é encontrada em inúmeras
tradições. Por exemplo, tanto nas mitologias persas quanto talmúdicas falam de que modo Deus
criou primeiro um ser bissexuado _ um macho e uma fêmea unidos em um só ser_ e depois
dividiu em dois. (SANFORD, 1987, P.10)

No clássico livro O Banquete de Platão, a fala de Aristófanes nos diálogos


sobre o amor, traz em sua argumentação a existência de três gêneros de seres humanos,
que eram duplos, havia o gênero masculino/masculino, o feminino/feminino e
masculino/feminino. Este terceiro era conhecido como andrógino:

Com efeito nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em
primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o
feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a esses dois, do qual resta agora um
nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no
nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome
posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com dorso redondo, os flancos
em círculo, quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um
pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro
era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor.
(PLATÃO, 1983, P.22)
Segundo Diehl (2018, p. 184), a mudança de gênero como castigo tem registros
na mitologia: “A mudança de gênero como castigo ou punição tem registros na
mitologia grega, como observado no caso de Tirésias, o profeta grego de Tebas, que
ficou famoso por ter passado 7 anos transformado em mulher.”
Tirésias passa por dois castigos: o primeiro castigo é a sua transformação em
mulher. Seria um castigo ou um chamado à ampliação de consciência? O seu segundo
castigo é a punição de Hera, com sua cegueira. Ao ver Tirésias cego, Zeus lhe concede
o dom da profecia e a possibilidade de viver sete gerações humanas: “Para compersar-
lhe a cegueira e por ‘gratidão’, Zeus lhe concedeu-lhe p dom da manteia, da profecia e
o privilégio de viver sete gerações humanas.” (Brandão, 2009, p. 184)
Em relato atual, João Nery, o Tirésias dos tempos atuais, psicólogo, pensador
e ativista refere a sua condição transgênera: “Somos seres únicos, a diferença e a
diversidade entre indivíduos são condições essenciais da natureza humana. Hoje sei
que sou uma pessoa melhor, mais completa, mais corajosa e infinitamente mais livre.”
(Nery, 2019, p.9)

B. Himeneu em seu caráter heróico e andrógino

A narrativa de Himeneu por Junito de Souza Brandão, em sua trilogia sobre


mitologia está descrita em uma nota de rodapé. Brandão cita os heróis que mudam de
sexo, dentre estes cita Himeneu. Trata-se do deus que conduz o cortejo nupcial e era
considerado filho de Apolo. Seu nome segundo este autor (2007, p. 35) tem origem
grega e seria idêntico ao hymém, hímen, película, membrana. Alguns mitos explicam a
invocação dessa tratativa nos cortejos de casamento:

Conta-se que Himeneu era um jovem atenisense de tamanha beleza, que comumente
era confundido com uma lindíssima adolescente. Embora de condições modestas, apaixonou-
se por uma jovem eupátrida e, desesperado por não poder desposá-la, seguia-a, de longe, aonde
quer que ela fosse, como Eco, se bem que, em condições diversa, buscava sempre a Narciso.
Certa feita, moças atenienses nobres foram a Elêusis oferecer sacrifícios à Deméter, mas uma
súbita irrupção de piratas as raptou a todas, incluindo-se Himeneu, mais uma vez identificado
a uma simples e linda mulher. Após longa travessia, os piratas chegaram a uma costa deserta
e, extenuados, dormiram. Himeneu, com grande ousadia matou a todos e, tendo deixado as
jovens em lugar seguro, voltou só a Atenas e se prontificou a devolvê-las, desde que se lhe
desse em casamento aquela que ele amava. Concluído o pacto, as atenienses foram devolvidas
às suas famílias. (BRANDÃO, 2007, P. 35)
Segundo Brandão (2007, p.35), Himeneu era reconhecido em Pompéia como
andrógino. Trata-se de mais um mito sobre o caráter andrógino do herói. O feito heroico
de Himeneu, visto como uma bela mulher que defende as moças nobres atenienses
aproxima-se do relato de um homem transgênero, Tarso Brant, descrito no livro Vidas
Trans:

Um sentimento que me dominava nessa época era de “defensor” das frágeis e


oprimidas meninas. É que eu não via as garotas apenas como amigas, mas como minhas
protegidas. Minha estratégia era me aliar aos meninos na intenção de formar um “esquadrão
sentinela. Protegê-las das minimaldades fazia com que eu me sentisse mais forte e, ao mesmo
tempo, conquistava a aceitação dos dois lados. E assim minha personalidade masculina se
acentuava cada vez mais. (BRANT, 2017, P.34)

O heroísmo e o chamado da alma em Tarso, nosso Himeneu, é uma metáfora


dessa voz que ecoa no coração desse herói: salvar as meninas, ser livre, assim como
Himeneu, para escolher seu destino. Tarso traduz em suas memórias o que ele chama
de essência e entre parênteses a palavra alma:

Filha única de uma família de classe médiam eu era, portanto, a princesa da casa.
Meus pais eram bancários, e a vida não era tinha grandes dificuldades. Mas o que eles não
sabiam é que, diferentemente do meu estado físico de menina, eu nasci menino. E não estamos
falando de aparência, mas, sim, de essência (alma). Um sentimento de estar em um corpo com
o qual você não se identifica. (BRANT, 2017, P.32)

Himeneu pode estar vivo em nossa sociedade e se sentir em um corpo que não
atende ao chamado de sua alma. Raptado como mulher por piratas, tem a chance de
defender quem ama e a si mesmo, salvando em si a possibilidade de escolher seu destino.

C. Aquiles em seu travestismo: a vida secreta da filha de Tétis e o chamado de Ulisses

Aquiles, proeminente herói grego, traz em sua história uma passagem


emblemática, que conduz à uma citação importante do estudioso Junito de Souza
Brandão: “Mais frequentes, todavia são os heróis que mudam de sexo.” (Brandão, p.
35, 2007).
Aquiles, filho de Tétis e Peleu, em um dos episódios da Guerra de Tróia, é
vestido como mulher e passa um período entre as filhas do rei Licomedes, como é
narrado pelo professor Cláudio Moreno, em seu livro Tróia:
Quando a guerra de Tróia é deflagrada, Tétis faz uma última tentativa de salvar a vida
de Aquiles, escondendo-o, vestido de mulher, entre as belas filhas de Licomedes, rei da ilha de
Skiros. Quando a Noite foi embora e Eos, a deusa da aurora, pintava o pálido céu da manhã
com os seus dedos cor-de-rosa, Tétis e seu filho já estavam na praia de Skiros. Despertando
aos poucos, com a luz do Sol nascente, Aquiles examinou inquieto, a paisagem desconhecida.
Tétis ao seu lado, tranquilizou o filho, acariciando seu cabelo. “Se a Fortuna, meu filho, tivesse
me dado o marido que eu merecia, tu estarias agora comigo no alto do Olimpo, e eu não teria
temor algum de que algo pudesse te acontecer. Mas nasceste de uma união desigual, herdando
de teu pai a sina de todos os mortais, e agora eu me preocupo contigo, pois dias de terror e
destruição começam a rondar a tua vida. Peço-lhe que te escondas aqui, entre as filhas do rei
Licomedes, enquanto passa essa nuvem negra que eu vejo se aproximar. Logo estarás de volta
as colinas de Tessália, correndo despreocupadamente ao lado de seu amigo centauro; mas agora
eu te suplico, troca a tuas roupa por estas roupas aqui; teu rosto ainda é macio e sem barba, e
se eu puder arrumar teu cabelo de modo a ocultar um pouco tuas feições, ninguém vai te
reconhecer no meio de tantas donzelas.” (MORENO, 2004, P. 99)

Pode-se considerar a façanha do herói grego Aquiles para além de uma punição,
ou artimanha de sua mãe com o objetivo de poupar o filho da participação na guerra de
Tróia. É possível pensar em Pirra, nome dado à Aquiles vestido como uma moça, como
o sentimento de um homem transgênero, vivendo como mulher, em uma situação que
não traduz sua vivência interna? As Pirras da atualidade podem traduzir a incongruência
com o gênero designado ao nascimento?
Ulisses, à procura do herói traça um plano para descobrir o que acontecera com
Aquiles, como se pode acompanhar na narrativa desse herói, ele é descoberto a partir
de seu próprio desejo e identificação com seu aspecto masculino, nesse caso a prontidão
para a guerra. No trecho abaixo, extraído do livro Tróia, Moreno (2004, p.105) revela
essa façanha de Ulisses e o chamado de Aquiles:

Num gesto teatral, Ulisses desembainhou-a de um só golpe, enchendo a sala toda com
o ruído de metal que roça em metal; em seguida, ergueu-a a acima da cabeça, para que a luz
da janela fizesse rebrilhar a lâmina polida, enquanto examinava a reação das princesas. Só uma
delas reagiu, e só podia ser Pirra, a donzela dos pés grandes. Ela vinha acompanhando
entediada, a demonstração do mercador, aborrecida com a incompreensível animação das
mulheres diante daquelas quinquilharias coloridas. Agora no entanto, tirou a espada das mãos
de Ulisses e apertou com prazer a empunhadura cinzelada; experimentou o fio da lâmina do
dorso da mão, fez com ela um floreio no ar, para melhor sentir-lhe o peso, e deu duas ou três
estocadas para frente contra um inimigo imaginário. “Ela é toda tua, Aquiles. Foi feita para
ti!”, disse-lhe então Ulisses, sorrindo ao ver a imensa satisfação com que o jovem renunciava
seu disfarce. (MORENO, 2004, P.105)

O tédio de Pirra pelos vestidos, tecidos e objetos de adorno tem semelhança ao


relato de Tarso Brant (2017. p. 139):

Meus pais faziam de tudo para me enfeitar e me empurrar para o universo das meninas,
Era raro o dia em que meu pai não me trazia um vestido. Quando via a caixa de presente, pensava:
“Uau! Um brinquedo, um jogo...”, mas não, era sempre um maldito vestido. E meu sorriso de
expectativa se transformava em decepção...E saía eu arrastando aquele trapo pela casa.
(BRANT, 2017, P. 139)

Stein (2006, p.125) sustenta alguns quesitos que nomeia como qualidades do
sexo, à guisa de algumas definições: “O que realmente significam, pois, qualidades do
sexo quando se pretende definir a natureza e a qualidade da atitude interior, a anima e
o animus?”
As características definidas por Stein (2006, p.125) como masculinas são
aquelas que saltam aos olhos quando Aquiles revela sua verdadeira identificação: “O
sexo masculino tem sido quase universalmente definido por adjetivos como ativo, rijo,
vigoroso, penetrante, lógico, peremptório, dominante; o sexo feminino tem sido
amplamente definindo como receptivo, suave, doce, generoso, nutriente, emotivo,
empático”.
Pirra, salta para o chamado de sua alma em prontidão de um herói: Aquiles
estava destinado à grandes feitos. Assim, em mais uma metáfora, pode-se alinhar o
chamado e ampliar sua consciência. A individuação passa pela integração dos
conteúdos sombrios, mas também da coragem em atender esse chamado: o esforço de
tornar-se consciente desenvolver consciência.

D. Hermafrodito e Salmácis: do encontro à cisão

O nascimento de Hermafrodito é um mito sobre a natureza andrógina do filho


de Afrodite e Hermes. Segundo Alvarenga (2010, p.185): “O Hermafrodito, resultante
da coniunctio Hermes-Afrodite, contém em si a natureza do andrógino primordial, que
se anuncia como ser simbólico de um tempo novo, com a qual a deusa retorna soberana
integrada com o deus.”
Segundo Brandão (2009, p.213), Hermafrodito foi criado pelas ninfas da
floresta, no Monte Ida, na Frígia e era de beleza comparável à Narciso:

Aos quinze anos pôs-se a percorrer o mundo, Viajando pela Àsia Menor, encontrou-
se um dia, na Cária, às margens de um lago, habitado pela ninfa Salmácis, que por ele se
apaixonou violentamente. Repelida pelo jovem, fingiu-se conformar-se, mas, quando
hermafrodito se despiu e se lançou às águas do lago, Salmácis o enlaçou fortemente e pediu
aos deuses que, para sempre, lhes unissem os dois em um só. Os imortais ouviram a súplica e,
assim, surgiu um novo ser, de dupla natureza. Por seu lado, Hermafrodito implorou aos deuses
e estes o atenderam, que todo aquele que se banhasse no lago da Ninfa Salmácis perdesse a
virgindade. (BRANDÃO, 2009, p. 213)
Segundo Alvarenga (2010, p. 2010), a união entre Afrodite e Hermes pode
expressar o surgimento do amor transgressor, evolutivo que transpõe intempéries e que
possibilita o reencontro com a totalidade: “A união de Afrodite e Hermes pode
expressar que, de posse dos atributos da deusa (encantamento, beleza, paixão e amor),
acessamos com mais facilidade os atributos do deus (astúcia, esperteza, trapaça).”
Em sua discussão sobre a dupla natureza humana, Brandão (2007, p. 37) cita
Carl Jung: “Para Jung, o homem nos mitos sempre exprimiu a idéia da existência do
masculino e do feminino em um só corpo. Tais intuições psicológicas se acham
projetadas de modo geral na forma da sizígia divina, o par divino, ou na ideia da
natureza andrógina do Criador”.
A androginia como conceito pode ser ampliada para além do comportamento,
afetos ou práticas sexuais. Segundo Molina (2017, p. 1): “A androginia é muito mais
um conjunto de fatores que afetam várias instâncias físicas e do pensamento, aliás, pode
ser lida como um elo de ligação entre os dois.”
Molina (2017, p.1) amplia a visão sobre androginia, traçando um espaço a ser
refletido sobre esse conceito: “(...) é mais uma idéia, um conceito, uma imagem do que
outrora foi e poderá vir a ser a humanidade: o andrógino como ser total e pleno de
potencialidades, Sem qualquer polaridades entre os sexos, mas não só isso: livre de
amarras e das obrigações impostas pela atual moral heteronormativa que se expressa
nas leis, na religião, na moda, na estrutura familiar.”
Salmácis aparece na narrativa como aquela que aprisiona Hermafrodito em
uma relação simbiótica. Nesse mitologema, a saga de Hermafrodito é a prisão em uma
fusão que não alimenta sua ânsia por liberdade.
Apesar da ideia de totalidade e a vivência da fluidez de gênero, Salmácis pode
representar o aprisionamento de uma sociedade que destrói a possibilidade de um
verdadeiro encontro com Hermafrodito. Ele se vê aprisionado com a ninfa, em uma
relação de fascínio e prisão. Definir quem é a Salmácis pode ajudar a definir o que
aprisiona Hermafrodito e todas as suas possibilidades de existência.
Letícia Lanz traz em seu relato, descrito em seu livro A construção de mim
mesma, o chamado pela liberdade: “Quando a liberdade grita dentro da gente, só há
duas coisas a fazer: tapar os ouvidos ou romper de uma vez por todas com os bloqueios
que nos mantêm prisioneiros de nós mesmos, nos impedindo de ser livres e felizes.” A
libertação de Salmácis pode ser um caminho para Hermafrodito.
E. Obá e Oxalá: experiências com o outro, entre o desejo e a transgressão

A mitologia africana, particularmente os mitos iorubás são ricos e podem


contribuir para a ampliação do conceito da transgeneridade. O sociólogo Bastide (1973,
p. 318) coloca a questão dentro da terminologia junguiana:

“[...] todo o homem tendo anima, toda a mulher, animus. É o desejo de efeminação do homem,
a nostalgia de Hercules de ficar aos pés de Ónfale; é o desejo de masculinização da mulher, de
que a mulher fálica é o símbolo extremo. Podemos dizer que a religião afro-brasileira
reconhece este bovarismo sexual e que apresenta justamente uma solução para ele, fazendo do
homem o possuído de uma deusa, da mulher, a possuída de um deus, forçando-os assim a
desempenhar no teatro místico papéis opostos aos fixados pelos status sociais dos dois sexos”.
(BASTIDE, 1973, P. 318).

No primeiro mito a ser contemplado, Oxalá é punido, ao outorgar para si,


através de uma artimanha os poderes de Nanã sobre os espíritos, também chamados de
egunguns.
Noguera (2018, p.85) refere o momento em que Oxalá, a fim de controlar os
espíritos, observa Nanã e se coloca como uma mulher para obter o controle dos espíritos:

Durante o casamento, Obatalá seguiu e observou os passos de Nanã e como ela fazia
para passar pela porta do mundo dos vivos e dos mortos. Logo, ela engravidou e se recolheu
para cuidar dos filhos. Obalatá aproveitou-se, e vestido com roupas semelhantes às de Nanã,
passou-se por ela, dizendo para os espíritos que, de agora em diante, também deveriam
obedecer o marido. (NOGUERA, 2018. P. 85)

Oxalá se coloca para os espíritos como uma mulher e adquire poder. Qual pode
ser os efeitos dessa vivência para uma mulher transgênero? Qual a sua identificação
com o feminino e seus poderes? Quem pode narrar essa sensação? Quem adentra o
reino de Nanã e autoriza a descoberta de seus poderes a não ser com a voz, as roupas e
a energia de Nanã? Amaira Moira, no livro Vida Trans, refere essa vivência do travestir-
se e descobrir o poder da libertação das amarras sociais:

Eis a primeira vez que me imaginei travesti, como se tratasse de uma personagem de
livro, um papel, e não foi só comigo que isso se deu. Quantas e quantas pessoas vão de
descobrindo trans justo assim, algumas no próprio teatro, o momento em que acreditam estar
encarnando uma personagem sendo justo quando se libertam daquele eu que a vida inteira
foram ensinadas a ser? (MOIRA, 2017, P. 15)

Obá, famosa guerreira, amante desprezada por Xangô, possui características


consideradas masculinas. Não se sente atraente e feminina como Oxum ou Iansã,
esposas de Xangô. Tais características podem ser consideradas como uma prisão num
mundo masculino no qual não se reconhece. Obá, com a externalidade masculina,
anseia pelas características femininas?
Em seu mito, para satisfazer Xangô e orientada por Oxum, tira um pedaço de
sua orelha para colocar no prato de Xangô como refere Prandi (2001, p.315):

Obá e Oxum competiam pelo amor de Xangô. Cada semana, uma das esposas cuidava de
Xangô, fazia sua comida, servia à sua mesa. Oxum era a esposa mais amada e Obá imitava
Oxum em tudo, inclusive nas artes da cozinha, pois o amor de Xangô começava pelos pratos
que comia. Oxum não gostava de ver Obá copiando suas receitas e decidiu vencer
definitivamente a rival. Um dia convidou Obá à sua casa, onde a recebeu usando um lenço na
cabeça, amarrado de modo a esconder as orelhas. Oxum mostrou a Obá o aguildar onde
preparava uma fumegante sopa, na qual boiavam dois apetitosos cogumelos. Disse à curiosa
Obá que eram suas própria orelhas, orelhas que ela cortara, segredou cumplicemente. Xangô
havia de se deleitar com a iguaria. Não tardou para que ambas testemunhassem o sucesso da
receita. O marido veio comer e o fez com gula, se fartou. Elogiou sem parar os dotes culinários
da mulher. Na semana seguinte, Obá preparou a mesma comida, cortou uma de suas orelhas e
pôs para cozinhar. Xangô, ao ver a orelha no prato, sentiu engulhos. Enojado, jogou tudo no
chão e quis bater na esposa que chorava. Oxum chegou nesse momento, exibindo suas intactas
orelhas. Obá num segundo entendeu tudo, odiou a outra mais do que nunca. Envergonhada e
enraivecida , precipitou-se sobre Oxum e ambas se envolveram numa briga que não tinha fim.
Xangô não suportava ver tanta discórdia em casa e esse incidente só fez aumentar sua raiva.
Ameaçou de morte as briguentas esposas, perseguiu-as. Ambas tentaram fugir da cólera do
esposo. Xangô procurou alcançá-las, lançou o raio contra elas, mas elas corriam e corriam,
embrenhando-se nos matos, ficando cada vez mais distantes, inalcançáveis. Conta-se que elas
acabaram por ser transformadas em rios. E de fato, onde se juntam o rio Oxum e o rio Obá, a
correnteza é uma feroz tormenta de águas que disputam o mesmo leito. (PRANDI, 2001, p.315)

À guisa de uma ampliação, é possível encontrar nessa trama a dor de uma


pessoa nascida com o gênero designado masculino, vivendo as agruras e o desejo de
ser tratado e visto como uma mulher?
Márcia Rocha nasceu Marcos Cesar. Nessa medida, pode se pensar que Obá
nasceu para guerra, mas desejava o amor? Eros está à serviço da ampliação da
consciência. Segundo Aufranc (2018, p. 44): Eros é vida é transformação. A
individuação não necessariamente significa adaptação social. Não somos responsáveis,
em última instância, pelo que somos na nossa identidade mais profunda, mas sim pelo
que fazemos com isso.”
O corpo de Obá lhe trouxe os louros e as marcas da guerra e a masculinidade.
Apaixonada por Xangô, vivencia o desprezo e o desejo por expressar nesse corpo seu
chamado, ser amada como uma mulher. Rocha (2017, p, 103) revela parte desse desejo:

Na verdade, não eram as roupas, os sapatos, nem as maquiagens que o atraíam, mas
todo o universo feminino que representavam. Tudo o que revestia as mulheres e o que ele via
no dia a dia, assim como trejeitos, o andar, o falar, o jeito de ser, refletiam algo que havia
dentro de si. (ROCHA, 2017, P. 102)

Oxumarê, o orixá relacionado aos ciclos e ao arco-íris, traz em seus itans,


narrativas sobre sua vivência cíclica, metade do ano como homem e a outra metade
como mulher. Trata-se, no panteão iorubá, de um orixá andrógino, como ressalta Castro:
“Oxumarê representa a aspiração da ultrapassagem dos limites imposta pela vida para
homens e mulheres, abolindo a divisão masculino/feminino e tendendo a um ideal
andrógino, portanto temos em sua construção simbólica a falência de uma identidade
sexual única e fixa em sua representação.”
Aufranc (2018, p. 43) compara o orixá Oxumarê ao adivinho Tirésias, ambos
possuem características de vidência, cura e transformação e androginia : “É uma figura
complexa que muito se assemelha à de Tirésias.”
Este orixá está ligado à força vital do movimento, da transformação e da
renovação. Oxumarê, em sua faceta ligada à renovação está à serviço da ampliação da
consciência coletiva. A transgeneridade é nova para a consciência coletiva? O aspecto
iluminado dessa imagem arquetípica e andrógina é colocada por Aufranc (2018, p. 43):
“Oxumarê une com seu longo véu multicolorido, o céu e a terra, fazendo assim a
comunicação entre os deuses.” Os deuses comunicam-se na presença de Oxumarê,
imagem que levanta uma questão? Será essa comunicação uma nova possibilidade de
transcender as polarizações radicais do feminino e do masculino?
Para além das categorizações, Oxumarê está ligado à comunicação e da função
transcendente, trazendo como arauto a sexualidade fluída, distante do falocentrismo
que ainda está presente na consciência coletiva. Segundo Castro (ppp): “A natureza
andrógina em Oxumarê revela o mais íntimo dos pensamentos humanos, ele é o
equilíbrio e ao mesmo tempo o infinito, o seu elo é a busca de novas formas de
compreensão da realidade social.”
Os mitos iorubás apresentam sua contribuição para que se possa ilustrar e
ampliar o olhar sobre a transgeneridade, trazendo novo olhar para a questão da
identidade sexual. O legado africano, para além da repressão, não hostiliza, abarca em
seus saberes questões como a androginia, o hermafroditismo e a bissexualidade.

F.A moça-retrato-da-lua e a contribuição dos mitos indígenas


O encontro com o mito indígena se faz presente nesse contexto e ele se faz
presente na visão de Jung, já que para esse pensador os principais arquétipos humanos
também foram ativados e miticamente representados como afirma Gambini (2020, p.
25): “O grande pensador da psique Carl Gustav Jung, certamente diria que os principais
arquétipos humanos também foram ativados e miticamente representados no que veio
a ser o Brasil”.
Adentrar o terrítorio da sexualidade faz-se um desafio e a narrativa de um
indígena que traz como climax de seu drama a revelação de um segredo: “Você viu:
não sou homem, nem sou mulher.” (Santo, 2010, p.181). Neste segredo está a chave da
narrativa, está colocado em cheque o gênero dessa pessoa e sua saga está inserida nessa
revelação:

Era uma moça tão linda quanto a lua! Os jovens da tribo eram todos apaixonados por ela.
Amável, ela demonstrava amizade por todos eles. Apenas amizade. Convivia assim, expansiva
e sedutora, mas não queria ouvir falar em casamento. Até o filho do tuxaua se declarou a ela e
foi rejeitado. Ela alegou que não era filha de chefe e ele, talvez compreendendo que ela não se
sentisse à sua altura, se conformou, tristonho. Acontece que, quando não estava se divertindo,
junto com os outros jovens, ela costumava sumir da vista de todos. Deixava sua maloca e
ninguém via para onde ela ia. Intrigados, os rapazes resolveram segui-la. Imaginavam que tinha
um amante secreto e queriam matá-lo, por sentirem ciúmes. Foi numa noite de lua cheia que
eles resolveram pôr seu plano em ação. Com a luz do luar clareando a paisagem até bem longe,
viram quando ela se encaminhava para a cachoeira. Foram atrás e encontraram a moça sentada
numa pedra com o rosto voltado para cima, parecendo mirar a lua. Era tão bonita e tão clara
aquela visão que eles, atraídos, foram chegando cada vez mais perto. Aí perceberam que o
rosto da moça era a própria lua, igualzinha àquela que aparecia no céu. Emocionados, chegaram
a perder a fala de tanta surpresa! O clarão que viam parecia um fogo que iluminava tudo ao
redor. Mas não foi só isso. Logo eles viram descer do céu uma outra moça, bonita como a lua.
Nesse momento, a moça uanana levantou-se e já não parecia mais uma mulher: era um moço!
A moça que descera do céu e aquele moço se abraçaram, e um fogo frio os envolveu. A friagem
chegou até os rapazes e eles tremiam, sem saber ao certo se era de emoção ou frio... Chegavam
a sentir seus corpos doerem e voltaram depressa para casa, silenciosos durante todo o caminho.
Sentiam tanto medo ao lembrar o que tinham visto, que nem conseguiam falar uns com os
outros a respeito. Exaustos, adormeceram logo, e no dia seguinte, ao acordarem, não
recordavam direito o que havia acontecido. Tudo parecia não passar de um sonho e se mostrava
ainda mais irreal porque a moça tuxaua andava pela aldeia, naquela manhã, como fazia sempre,
normalmente... Mas quando os rapazes viam as outras jovens abraçando a moça misteriosa,
iam se lembrando pouco a pouco da cena a que tinham assistido... Mesmo assim, continuaram
não fazendo nenhum comentário sobre o acontecido. Foi a própria moça uanana quem resolveu
esclarecer o assunto. Ela começou contando para as outras jovens:
Antigamente, muito tempo atrás, havia uma terra, bem na raiz do céu, onde todo mundo era
bonito. E tinha um moço, mais lindo que todos, que chegava a ser tão bonito como o sol! Ele
era desejado por todas as moças da sua terra e cada qual procurava conquistá-lo a seu modo,
fazendo agrados e até puçanga para que ele as amasse. Só que ele era pajé também e pôde ver
pela sua sombra, enquanto sondava, o que estava acontecendo... O moço ia todas as noites para
a beira da praia, sentava na areia, e as moças iam atrás dele. Cansado dessa perseguição, ele se
sentia triste e ficava só olhando para elas, de longe, até que elas desistiam e voltavam para casa.
Ele continuava lá... Tantas vezes isso aconteceu que as mulheres combinaram de ir uma de
cada vez, para tentar conquistá-lo. Foi a primeira, abraçou-o, fez cócegas em seu corpo e
chegou a lhe dar um beijo na boca. Ele não se mexeu e ficou só olhando para ela. Decepcionada,
ela voltou e contou às amigas o que se passara e como fora rejeitada. Depois dessa, foi outra e
repetiu a tentativa de conquista, e tudo foi igual. Uma a uma, elas foram se revezando, até que,
muitas luas depois, cansadas, por não alcançarem nenhum resultado, combinaram: “Agora,
uma de nós vai sozinha e vai forçá-lo a namorar!” A mais novinha do grupo se ofereceu,
ameaçando matar-se, se ele não a quisesse. Combinaram que uma delas ficaria vigiando o que
ia acontecer e puseram o plano em prática. Assim que anoiteceu, lá foram as duas (uma mais
na frente, a outra mais atrás), seguindo o moço até o porto. A mocinha fez toda a cena de agrado
e sedução, tentando envolver aquele moço bonito como o sol. Ele olhou bem nos seus olhos e,
desconfiado, perguntou onde estavam suas amigas. Quando ela afirmou que estava sozinha,
ele quis saber por que viera e ela, então, se declarou, dizendo amá-lo.
– Mas por que você me ama? – quis saber o rapaz. Como paixão não tem explicação, ela só
conseguiu dizer que era isso o que sentia em seu coração. – Pois bem, se eu lhe revelar o motivo
por que não posso retribuir seu amor, você seria capaz de guardá-lo, em segredo? A mocinha
prometeu ser discreta, e o rapaz continuou: – Lembra que eu não cresci entre vocês? Vim de
outro lugar e não sou como vocês. Vou lhe mostrar como sou. Tirou, então, a tanga e mostrou-
lhe o corpo nu. – Vê? Dá pra dizer se sou homem ou sou mulher? A indiazinha, intrigada, viu
que naquele corpo não havia qualquer marca de definição de um sexo. Assustada, deu um grito
de pavor e, correndo, se jogou no rio. Sua companheira, que até então estava escondida,
percebendo o perigo, gritou tão alto que logo apareceram todas as outras moças. O que viram,
ao chegar ali, foi o moço saindo de dentro d’água, carregando nos braços a mocinha meio
desfalecida. Ele, então, beijou-lhe a boca e sussurrou em seu ouvido: – Você viu: não sou
homem, nem sou mulher. Não esqueça que me prometeu segredo. Guarde em seu coração o
que sabe! Levada pelas amigas para casa, a moça foi ficando cada dia mais triste. Olhar perdido,
não quis responder a nenhuma das perguntas das amigas. Irritadas, as moças se reuniram
novamente e decidiram insistir na conquista. Combinaram de matar o moço, se ele as recusasse
como namoradas. De longe, ele ouviu tudo e achou graça. Na noite seguinte, ainda era dia
quando o moço foi para o rio. O vento soprou, trazendo uma chuva fina e, quando as moças
foram atrás dele, viram uma grande fumaça no ar. Seguiram nevoeiro adentro e não
encontraram o rapaz. Aguardaram. Quando a madrugada foi chegando, o vento aumentou e a
neblina se espalhou. Aí elas viram a cabeça dele ir desaparecendo dentro da água enquanto
ouviam seu grito: – Êh! Êh! Êh! E o perderam de vista outra vez. Pularam todas na água
depressa, tentando achá-lo. Mergulharam várias vezes e nada! Como o dia já ia alto, voltaram
para casa, tristonhas, mas com o compromisso de recomeçarem a busca ao anoitecer. E assim
foi. Mal escureceu, foram se sentar lá, onde o moço costumava aparecer, e ficaram assim,
chorando desconsoladas, ouvindo o canto repetitivo do urutau. Dali pra frente, ninguém nunca
mais as viu, ninguém nunca soube para onde foram. Dizem que a lua as levou e a mãe-d’água
tomou o moço pra si. – É essa a história da lua – terminou de contar a índia uanana. – Agora
já é tarde, vamos todos dormir – e levantou se despedindo, desfazendo o grupo. Os rapazes
atentos, que, de longe, tinham ouvido a narração, começaram a pensar que talvez ela fosse uma
história verdadeira. Então, quando tarde da noite a índia saiu de casa e foi para a cachoeira,
eles a seguiram, como que encantados. Repetiu-se a cena das noites de luar e novamente o fogo
frio fez com que voltassem. Com a cabeça em rodopios, foram vendo passar o tempo. Muitas
luas depois, já andavam tão tristes e desanimados que as moças começaram a ter pena deles.
Foram procurar a moça bonita e pedir que fosse mais carinhosa com os rapazes. – Hoje à noite,
vou contar a cada uma de vocês o meu segredo. Vocês vão saber por que não posso agradar a
esses moços – foi a resposta que receberam. Quando anoiteceu, a moça cumpriu o prometido.
Ia abraçando cada garota e levando uma por uma até o mato. Lá lhe mostrava seu corpo.
– Vê? Não sou mulher, sou homem. Mas não diga a suas amigas. Deixe que eu me mostre a
cada uma delas. As moças sabiam, agora, que estavam apaixonadas por ela e concordavam
com o que pedia, pedindo que não as esquecesse. Isso durou três dias e três noites. Enquanto
isso, os rapazes continuavam a seguir a moça nos passeios noturnos até a cachoeira. Depois
que todas as jovens já sabiam de seu segredo, ela não conseguia mais sair de casa. Era tanta a
ciumeira que as mulheres sentiam que ficavam vigiando a noite toda, para que ninguém se
aproximasse dela. Uma noite, ela foi até a cachoeira, mesmo assim. As moças a seguiram.
Quando viram o fogo frio chegando, tiveram medo e gritaram. Na mesma hora, o clarão subiu
pro céu, correu em direção à lua e, juntando-se a ela, desapareceu de vez. Passadas muitas luas,
todas as moças apareceram grávidas. Quando seus pais perguntaram quem era o pai das
crianças, elas responderam: – O pai de nossos filhos é a Moça-retrato-da-lua, que nunca mais
ninguém viu.
... assim termina a contação, porque, a história mesmo, ninguém sabe dizer se já acabou.
(SANTO, 2010, P.181)

Mundukuru (2009, p.9 ) através de sua visão sobre uma educação libertadora
coloca algo caro ao psicólogo junguiano: “Uma das coisas que aprendi quando criança
é que por mais insignificantes que possam parecer, todas as pessoas merecem nossa
reverência.”
“Aceitar as diferenças, quaisquer que sejam elas, é importante para que haja a
vivência da alteridade.” (Carybé, 2020, p.35). O mito revela a importância que se esteja
ciente da natureza corporal fluída de nossa sexualidade e expressões de gênero. Muitos
pais transgênero estão gestando seus filhos.
É preciso encontrar espaço para expressão simbólica pois para Jung (2021
[1950] p. 65, § 111): “A alma, provavelmente não se importa com nossas categorias de
realidade.”
O arquétipo do andrógino marca presença na cultura indígena e com a força
desse arquétipo tem-se as grávidas do clarão da lua.

5 .Conclusão

Nesse estudo buscou-se adentrar na temática da sexualidade sob o enfoque da


psicologia junguiana. Diante da amplitude do tema o recorte da diversidade sexual foi
realizado, com ênfase na transgeneridade.
Trata-se de um assunto delicado no que tange aos preconceitos e estigmas.
Além disso, apesar de muitas discussões e estudos sobre esse tema, ainda o campo para
esse tópico é vasto, os psicólogos junguianos estão se debruçando e contribuindo para
a reflexão desse mote.
A polaridade negativa da vivência da sexualidade pode acarretar como sombra
coletiva toda uma série de repressões no que tange à liberdade e autonomia do ser
humano. Em sua face iluminada, pode trazer experiências compensadoras e a
possibilidade de ampliação de consciência.
Os mitos são caros à psicologia junguiana e foram utilizados como ferramentas
para que se possa circuambular pelas imagens que eles nos convidam a mergulhar.
Longe de responder à essas questões, o estudo propõe um mergulho em um território a
ser ampliado: buscou-se partir de uma visão comum sobre sexualidade, saúde sexual e
saúde LGBTQIA+ trazer elementos da psicologia junguiana.
O arquétipo do andrógino esteve em destaque, o hermafrodita ou andrógino é
um tema em discussão na obra junguiana e alguns recortes na obra de Jung foram
compilados, assim como os conceitos referentes ao animus e a anima em relação à
transexualidade.
A luz e a sombra da transgeneridade a partir do tema da saída do armário em
relação as pessoas que vivem a saga da revelação pública referente à orientação sexual
e expressão da identidade de gênero. O preconceito ainda é tema relevante em um país
que mata transexuais cotidianamente.
As narrativas míticas foram apresentadas a fim de que se possa construir novos
olhares a partir das imagens arquetípicas apresentadas nos mitos grego e iorubá. As
reflexões a partir das imagens arquetípicas traz à tona a vivência da fluidez de gênero
para além dos estigmas culturais, avança-se em um olhar menos binário e mais plural,
politeísta.
Finaliza-se esse encontro com a fala de um Tirérias contemporâneo, que ouviu
o chamado de sua alma: “Somos seres únicos, a diferença e a diversidade entre
indivíduos são condições essenciais da natureza humana. Hoje sei que sou uma pessoa
melhor, mais completa, mais corajosa e infinitamente mais livre.” (Nery, 2019, p.9)
Grande João, grande alma, grande encontro.

7.REFERÊNCIAS

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