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FICHAMENTO – DEUS – JOSEPH CAMPBELL

O PODER DO MITO

A fonte da vida temporal é a eternidade. A eternidade se derrama a si mesma no


mundo. É a idéia mítica, básica, do deus que se torna múltiplo em nós. Na índia, o
deus que repousa em mim é chamado o “habitante” do corpo. Identificar se com
esse aspecto divino, imortal, de você mesmo é identificar se com a divindade. Ora, a
eternidade está além de todas as categorias de pensamento. Este é um ponto
fundamental em todas as grandes religiões do Oriente. Nosso desejo é pensar a
respeito de Deus. Deus é um pensamento. Deus é um nome. Deus é uma idéia. Mas
sua referência é a algo que transcende a todo pensamento. O supremo mistério de
ser está além de todas as categorias de pensamento. Como Kant disse, a coisa em
si é não coisa. Transcende a coisidade e vai além de tudo o que poderia ser
pensado. As melhores coisas não podem ser ditas porque transcendem o
pensamento. As coisas um pouco piores são mal compreendidas, porque são os
pensamentos que supostamente se referem àquilo a respeito de que não se pode
pensar. Logo abaixo dessas, vêm as coisas das quais falamos. E o mito é aquele
campo de referência àquilo que é absolutamente transcendente.
[…]
A suprema palavra, em nossa língua, para o transcendente é Deus. Mas aí você tem
um conceito, percebe? Você pensa em Deus como o pai. Agora, nas religiões em
que o deus ou o criador é a mãe, o mundo inteiro é o corpo dela. Fora daí não há
nada. O deus masculino geralmente está em alguma outra parte. Mas masculino e
feminino são dois aspectos de um só princípio. A divisão da vida em sexos foi uma
divisão tardia. Biologicamente, a ameba não é macho nem fêmea. As células
primiƟvas são apenas células. Elas se dividem e se tornam duas por reprodução
assexual. Não sei em que estágio a sexualidade aparece, mas é um estágio tardio.
Eis por que é absurdo falar em Deus como deste ou daquele sexo. O poder divino é
anterior à separação sexual.

Alguns anos atrás, tive uma experiência muito divertida. Eu estava na piscina do
Clube Atlético de Nova Iorque, onde fui apresenta do a um padre, que era professor
em uma de nossas universidades católicas. Então, após ter nadado, sentei me em
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uma dessas cadeiras tipo espreguiçadeira, de modo a ficar na posição que
chamamos de “atleta horizontal”, e o padre que estava a meu lado perguntou:
“Então, sr. Campbell, o senhor é padre?” Eu respondi: “Não, padre”. Ele perguntou:
“O senhor é católico?” Respondi: “Eu era, padre”. Então ele perguntou – e acho
interessante o modo como ele formulou a questão: “O senhor acredita em um deus
pessoal?” “Não, padre”, disse lhe. E ele replicou: “Bem, suponho que não há como
provar, pela lógica, a existência de um deus pessoal”. “Se houvesse, padre, qual
seria então o valor da fé?” “Bem, sr. Campbell”, disse ele rapidamente, “foi bom tê-lo
conhecido.” E se foi. Senti como se eu tivesse aplicado um golpe de jiu jitsu. Mas
aquela foi uma conversa iluminadora para mim. O fato de um padre católico ter
perguntado “Você acredita em um deus pessoal?” significava para mim que ele
também reconhecia a possibilidade de um deus impessoal, isto é, um fundamento
transcendente ou energia em si mesma. A idéia da consciência búdica é a de uma
consciência imanente, luminosa, que anima todas as coisas e vidas. Vivemos
irracionalmente, através de fragmentos daquela consciência, de fragmentos daquela
energia. No entanto, o caminho da vida religiosa não é viver de acordo com
intenções egoístas para com este corpo e tempo particulares, mas de acordo com
aquela consciência mais ampla. Há uma importante passagem no recém descoberto
Evangelho Gnóstico segundo São Tomás: ‘Quando o reino virá?’, perguntavam os
discípulos de Jesus”. Em São Marcos, versículo 13, suponho, lemos que o fim do
mundo está por vir. Vale dizer, uma imagem mitológica – a do fim do mundo está lá
para ser tomada como predizendo um fato real, İsico, histórico. Mas na versão de
São Tomás, Jesus replica: “O reino do Pai não virá, conforme o esperado. O reino
do Pai está disseminado pela terra e os homens não o vêem”. Nesse sentido, olho
para você agora e o esplendor da presença do divino chega até mim através de
você.

Quando eu era estudante de graduação na Alemanha — isso foi em 1928-29 — descobri as obras
de Freud e Jung, que abriram uma dimensão psicológica para o campo da mitologia. De repente,
percebi porque o assunto era tão interessante para mim, e muitos novos mistérios e maravilhas
surgiram.
Bem, Jung não era muito conhecido nos Estados Unidos naquela época. Acho que houve duas
pequenas traduções de seu trabalho. Freud, é claro, era bem conhecido. Só que eu não tinha sido
um estudante de psicologia, porém, esses dois homens começaram a me informar sobre um
aspecto de meu próprio tema. Hoje eu vejo que um aspecto do assunto (mitologia) é o mistério

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psicológico e o outro aspecto é histórico e etnográfico. Então, do lado psicológico, esses dois
homens iam e vinham à minha mente. Quando escrevi O herói de mil faces, eles eram iguais em
meu pensamento: Freud serviu em um contexto, Jung em outro. Mas então, nos anos seguintes,
Jung tornou-se cada vez mais eloquente para mim. Acho que quanto mais você vive, mais Jung
pode dizer a você. Eu volto para ele de vez em quando, e coisas que eu li antes sempre dizem
algo novo. Freud nunca mais me disse algo novo; Freud nos diz o que os mitos significam para os
neuróticos. Por outro lado, Jung nos dá pistas de como deixar o mito falar conosco em seus
próprios termos, sem colocar uma fórmula nele. Estou com Jung desde 1928, e é um longo
período. Como eu disse, ele traz mais e mais para mim. Mas ele não é a palavra final - não acho
que haja uma palavra final; seu trabalho abriu perspectivas e perspectivas, no entanto.
(...)No que diz respeito à interpretação de mitos, Jung me dá as melhores pistas que tenho. Mas
estou muito mais interessado na difusão e relações históricas do que Jung, de modo que os
junguianos pensam em mim como uma pessoa questionável. Não uso essas palavras-fórmula
com muita frequência em minha interpretação dos mitos, mas Jung me dá o pano de fundo a
partir do qual posso deixar o mito falar comigo.
— Joseph Campbell: An Open Life - in conversation with Michal Thomas

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