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© 2007 por Peter Kreef

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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

K92j

Kreeft, Peter, 1937--


Jesus, o maior lósofo que já existiu/Peter Kreeft; [tradução Lena Aranha]. - 3ª ed. - Rio de Janeiro:
Petra, 2016.
Tradução de: e Philosophy of Jesus

ISBN 978.85.8278.043-5

1. Jesus Cristo - Ensinamentos. 2. Jesus - Personalidade e missão. 3. Igreja Católica - Doutrinas. 4.


Cristianismo - Filoso a. I. Título.

08-4778. CDD: 232.954


CDU: 27-31-475

PETRA EDITORA
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SUMÁRIO

Introdução I: A quem se dirige o livro?


Introdução II: Por que Jesus é lósofo?
Introdução III: Quais são as quatro grandes perguntas da loso a?
I. A metafísica de Jesus (O que é real?)
1. Metafísica judaica de Jesus
2. O novo nome que Jesus usa para Deus
3. A metafísica do amor
4. As consequências morais da metafísica
5. A santidade como a essência da ontologia
6. A metafísica de “Eu Sou”
II. A epistemologia de Jesus (Como sabemos o que é real?)
III. A antropologia de Jesus (Quem somos nós para saber o que é real?)
IV. A ética de Jesus (O que deveríamos ser para sermos mais reais?)
1. Personalismo cristão: ver “só Jesus”
2. A superação do legalismo
3. A refutação do relativismo
4. O segredo do sucesso moral
5. Jesus e o sexo
6. Jesus e a ética social: solidariedade
7. Jesus e a política: ele é de esquerda ou de direita?

Conclusão
INTRODUÇÃO I

A quem se dirige o livro?

Este livro é para cristãos e para não cristãos.


(1) O livro pretende apresentar aos cristãos uma nova dimensão de Jesus:
Jesus, o lósofo.
(2) E pretende apresentar aos não cristãos uma nova dimensão da
loso a, uma nova loso a e um novo lósofo. O livro não pretende convertê-
los.
Mas eu sou cristão e também lósofo, ou seja, acredito que Jesus é Deus.
E não escondo esse fato nem o disfarço. Por isso, coloco em maiúscula seu
nome do começo ao m do livro.
Espere um pouco! Se acabo de perdê-lo como leitor potencial por causa
dessa declaração, desa o-o — agora como lósofo, não como cristão — a se
perguntar antes de largar a leitura e a dar uma resposta lógica: você se recusaria
a ler um livro sobre a loso a de Buda apenas por ser escrito por um budista?
Ou um livro explicando a loso a do Alcorão apenas por ser escrito por um
muçulmano? Não faria mais sentido recusar-se a lê-lo se não fosse escrito por
alguém que conhecesse bem o assunto?
INTRODUÇÃO II

Por que Jesus é filósofo?

O quê? Jesus é lósofo? Ele faria uma preleção em Harvard, ou empreenderia


um longo diálogo socrático na Academia de Platão, ou, ainda, escreveria um
comentário sobre a Crítica da razão pura de Kant?
É claro que não. E todo mundo sabe disso. Essa é uma “verdade trivial”.
Jesus, em outro sentido, foi um lósofo, mas esse segundo sentido
também é trivial. Todos têm alguma “ loso a de vida”. Até Homer Simpson é
lósofo.
Contudo, Jesus foi um lósofo em um sentido intermediário relevante,
no sentido em que Confúcio, Buda, Maomé, Salomão, Marco Aurélio e Pascal
foram lósofos.
Cito C. S. Lewis, como a autoridade que me apoia nessa classi cação,
em uma carta que escreveu para dom Bede Griffeths (Collected Letters of C. S.
Lewis, volume II [Coletânea de cartas de C. S. Lewis, volume II]. São Francisco:
Harper/SF, 2004, p. 191):
Questiono seu relato sobre nosso Senhor quando diz: “Ele é essencialmente um
poeta, e não é, de forma alguma, um lósofo”. Com certeza, o “tipo de mente”
representada na natureza humana de Cristo (e em virtude de sua humanidade,
suponho, que, nem de forma absurda nem irreverente, podemos falar dela como
“um tipo de mente”) acha-se exatamente na mesma distância do poeta e do lósofo.
[...] A nal, ele é pleno de argumentos, de respostas argutas e até mesmo de ironia. A
passagem sobre o denário (“De quem é esta imagem e esta inscrição?”); o dilema a
respeito do batismo de João Batista; o argumento contra os saduceus nas palavras:
“Eu sou [...] o Deus de Jacó etc.”; a terrível, mas quase engraçada, armadilha
preparada por seu an trião fariseu (“Simão, tenho algo a lhe dizer”); o repetido uso
de a fortiori (“Se [...] quanto mais”); e os apelos à nossa razão (“Por que vocês não
julgam por si mesmos o que é justo?”) — sem dúvida, reconhecemos em todos esses
exemplos o veículo humano e natural da Palavra encarnada como uma compleição
mental em que a perspicácia de um arguto camponês é tão notável quanto uma
qualidade imaginativa — em outras palavras, algo bastante próximo (em termos de
natureza) a Sócrates e a Ésquilo.
Mesmo em relação às parábolas, [...] o modo como a alegoria representa sua
verdade é intelectual, não imaginativo — como a ilustração de um lósofo, e não o
símile de um poeta. Para a imaginação, o juiz injusto não tem nenhuma semelhança
com Deus — não traz para a história nem o aroma nem o colorido de Deus (como,
por exemplo, o pai do lho pródigo traz). A semelhança dele com Deus é puramente
para o intelecto. É um tipo de soma da proporção — A:B::C:D.

Mas este livro não é tanto sobre o estilo losó co, nem sobre o método e,
tampouco, sobre o “tipo de mente” de Jesus, mas é sobre sua essência losó ca,
suas respostas losó- cas, sua loso a.
INTRODUÇÃO III

Quais são as quatro grandes perguntas da filosofia?

Existem quatro perguntas losó cas perenes. “Filoso a” quer dizer “amor à
sabedoria”, e a sabedoria, se a tivermos, pode responder, pelo menos, a quatro
grandes perguntas:

1. O que é? O que é real? Em especial, o que é mais real?


2. Como podemos saber o que é real e, em especial, o que é mais real?
3. Quem somos nós, quem quer conhecer o real? “Conhecer a si
mesmo.”
4. O que deveríamos ser, como deveríamos viver para sermos mais reais?

Há perguntas a respeito do ser, da verdade, do “eu” e da bondade. As


divisões da loso a que examinam esses quatro aspectos recebem nomes
técnicos: metafísica, epistemologia, antropologia losó ca e ética.
1. Vamos começar pelo começo: tudo é relativo na metafísica. A primeira
coisa que todo bebê quer descobrir é: o que existe? A primeira pergunta
que meu lho fez foi: “Que é aquilo?” Ele continuou a fazer essa
pergunta em relação a tudo, como uma metralhadora, até conseguir
compilar um catálogo de respostas, um universo. Se formos sábios, não
crescemos nunca.
2. Mas nós mudamos. No início da adolescência, nos tornamos críticos:
não queremos saber apenas a diferença entre gatos e cachorros, mas
também entre verdade e falsidade. Queremos saber como podemos
compreender, como podemos ter certeza. Tornamo-nos epistemólogos.
E como a questão mais interessante da metafísica é a respeito da
realidade última, a questão mais interessante da epistemologia é sobre
conhecer a realidade última: como nós, tolos nitos, podemos conhecer
a sabedoria in nita? Como o homem pode conhecer Deus? Ou até
mesmo saber se existe um Deus?
3. Um pouco depois, também nos voltamos para o nosso interior.
Perguntamos quem realmente somos quando deixamos de representar
nos palcos das outras pessoas. Por que é tão difícil “conhecer a si
mesmo”? É claro que somos seres humanos, mas o que é isso? (“Que é
aquilo?”) Uma vez que tomamos consciência do conhecido, queremos
saber quem é o conhecedor.
4. Por m, quando constatamos que esse “eu” que compreendermos é
fundamentalmente diferente de tudo o mais no universo conhecido,
porque apenas ele pode fracassar em ser seu verdadeiro “eu”, então
precisamos não só discernir entre verdade e falsidade, mas também entre
bem e mal. Podemos ser bons ou maus. Nada mais no universo tem essa
escolha. O nosso “eu”, de forma distinta das nozes ou das estrelas, não é
totalmente dado a nós, mas é formado pelas nossas escolhas. Uma vez
que percebemos isso, perguntamos como podemos nos tornar nosso
verdadeiro “eu”, nosso “eu” real, nosso “eu” bom. Como pessoas ruins
podem se tornar boas? E o que é ser uma pessoa boa? (“Que é aquilo?”)
A ordem lógica das perguntas é esta: antes de sabermos como
reconhecemos que algo é real, precisamos conhecer alguma coisa real; e antes
de sabermos o que é bom para nós, precisamos compreender quem somos. Essa
ordem lógica apresenta solidez, praticidade e acessibilidade crescentes, e
interessa às pessoas comuns. A ética baseia-se na metafísica; do ponto de vista
lógico, ela é posterior à metafísica, mas é psicologicamente mais convincente.
Há mais de dois milênios, os lósofos meditam profundamente a
respeito dessas quatro perguntas. Por que eles não encontraram respostas
adequadas, conclusivas e aceitas por todos? Por que uma das melhores
de nições de lósofo é “aquele que contradiz outros lósofos”? H. L. Mencken
declarou: “A loso a consiste basicamente no fato de um lósofo argumentar
que os outros são tolos. Cada lósofo, em geral, prova isso.”
O argumento cristão é: porque a única resposta adequada e nal para as
quatro perguntas é Cristo. João, o escritor mais losó co da Bíblia, começa seu
Evangelho identi cando Jesus com o logos (“No princípio era aquele que é a
Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a Palavra tornou-se
carne e viveu entre nós.”). O que é logos? É uma palavra grega de sentido
incrivelmente rico. Eis alguns dos sentidos: o logos representa a Palavra de
Deus, a revelação de Deus, a fala de Deus, a sabedoria de Deus, a mente de
Deus, a verdade de Deus, a razão de Deus, a loso a de Deus.
Jesus é a loso a de Deus.
I
A METAFÍSICA DE JESUS
1. Metafísica judaica de Jesus

O primeiro fato que devemos conhecer a respeito de Jesus, a m de entender


a sua metafísica — na verdade, o fato que é a chave histórica necessária para a
compreensão de tudo que Ele diz, fato esse que, de uma maneira ou de outra,
tem sido negado, esquecido, ignorado ou minimizado por todos os hereges da
história — é que Jesus era judeu.
Ele não era gnóstico, nem da Nova Era. Ele não era modernista, nem
humanista secular. Ele não era marxista, nem socialista. Ele não era lósofo
platônico. Ele não era panteísta brâmane. Ele não era ariano racista. Ele não era
assistente social, nem psicólogo pop, nem mito pagão, nem mágico. Ele não era
democrata nem republicano; na verdade, Ele não era norte-americano. Ele não
era libertário, nem monarquista; não era anarquista, nem radical e, tampouco,
neoconservador. Ele não era um homem medieval nem moderno. Ele era
judeu.
O que isso tem a ver com metafísica? Tem tudo a ver. Jesus conhecia a
resposta crucial para a pergunta crucial da metafísica porque era judeu. A
verdade suprema da metafísica, a natureza última da realidade, para os judeus,
não era o mistério incognoscível, como o era para todas as tribos, nações e
religiões pagãs que existiam ao redor deles.
Isso não se devia ao fato de que os judeus eram mais espertos que todos
os outros povos. Isso se devia ao fato de que a Realidade suprema, por motivos
conhecidos apenas por ela mesma, escolheu revelar-se a eles, e a ninguém mais.
Deus saiu do esconderijo.
Na verdade, Ele lhes disse seu nome: “Eu Sou”.
“Eu” é o nome de uma pessoa, não de uma força. Deus é um ser, e não
algo.
A meio hemisfério de distância, na Índia, grandes sábios tiveram a
percepção de que a Realidade suprema era única e in nita, mas não sabiam que
seu nome era “Eu”. Ao contrário, a maioria deles pensava que o “eu” ou “ego”
(a palavra latina para “eu”) — ou seja, nosso senso de que somos indivíduos
únicos, irredutíveis e distintos — era a ilusão suprema e o grande obstáculo
para o esclarecimento supremo.
É provável que esse tenha sido o motivo pelo qual o Oriente nunca
desenvolveu uma moralidade ou política de direitos humanos como zeram os
judeus, os cristãos e os mulçumanos; en m, o Ocidente. Pois o fundamento
metafísico para a noção dos direitos do homem é a ideia (ou, antes, a verdade
revelada) de que o homem foi criado à imagem de Deus. Os direitos humanos
do “eu” e a própria realidade humana do “eu” estão fundamentados no “eu”
divino. O Ocidente foi receptivo aos dois “eus”, enquanto o Oriente obstruiu
os dois.
Na verdade, duas religiões não poderiam diferir de forma mais radical
em sua metafísica que o judaísmo e o hinduísmo. O que o hinduísmo a rmava
ser a ilusão suprema e o obstáculo supremo ao esclarecimento e à sabedoria era
exatamente o que o judaísmo a rmava ser a realidade e a sabedoria supremas.
Se um judeu dissesse ao seu rabino: “Acabo de descobrir que sou Deus”, o
rabino rasgaria a roupa dele e clamaria: “Blasfêmia! Insanidade! Arrogância!
Idiotice!” Mas se um hindu dissesse a mesma coisa para seu guru, este sorriria e
diria: “Parabéns. Finalmente você descobriu a verdade. Bem-vindo à categoria
dos iluminados”.
O hinduísmo e o judaísmo elevaram-se acima do paganismo pela
percepção de que Deus era único e perfeito. Os hindus alcançaram esse ponto
de baixo para cima; os judeus, de cima para baixo: os hindus chegaram a Ele
por meio da experiência mística humana; os judeus, por meio da revelação
divina.
O hinduísmo e o judaísmo eram as duas religiões mais puras do mundo
antigo. As duas religiões ultrapassaram o paganismo por meio do
conhecimento de que Deus é onisciente e, portanto, não pode ser enganado,
iludido, in uenciado como os deuses do paganismo, nem se pode escapar dele.
Mas o motivo para a crença dos judeus era diferente do dos hindus. O motivo
dos judeus era que Deus sabia tudo, pois Ele criou o universo; o dos hindus era
que Deus estava sonhando o universo.
A noção da Criação, propriamente dita, é única dos judeus. Ela é
expressa por uma palavra exclusivamente judaica: bara’. Essa palavra não tem
equivalente em nenhuma outra língua antiga. É um verbo que não tem outro
sujeito além de Deus. Apenas Deus pode criar. Pois criar quer dizer fazer a
partir do nada, não a partir de alguma coisa. Criar quer dizer trazer à própria
existência alguma coisa, não apenas sua forma, sentido, estrutura, ordem ou
destino. Criar não é apenas dar nova forma a uma matéria já existente; é fazer a
própria existência da matéria.
Nenhuma vez na história, essa ideia, a ideia de um único Deus criar a
própria existência de tudo a partir do nada, entrou em alguma mente humana
a não ser na dos judeus e daqueles que aprenderam com eles (principalmente
cristãos e muçulmanos).
O Deus judeu, sozinho entre os muitos deuses antigos, sempre foi “Ele”,
nunca “ela” (nem “isto”, nem “eles”, nem um ser hermafrodita). Pois “ela”
simbolizava algo imanente, enquanto “Ele” era transcendente. “Ela” era o
ventre de todas as coisas, a mãe cósmica, mas “Ele” era outro que não a mãe-
Terra. Ele criou a terra e entrou nela vindo de fora, da mesma forma que o
homem vem do interior da mulher. Ele impregnou o não-ser com o ser, a
escuridão com a luz, a matéria morta com a vida, a história com os milagres, as
mentes com as revelações, seu povo escolhido com os profetas, e as almas com
a salvação. Ele era transcendente.
Por isso, apenas o judaísmo, dentre todas as religiões antigas, não tem
deusas nem sacerdotisas. Pois os sacerdotes são representantes e símbolos dos
deuses. Os sacerdotes são os intermediários não só entre o homem e Deus, mas
também entre Deus e o homem. As mulheres, como os homens, também
podem representar o homem diante de Deus, pois elas também são seres
humanos, valiosas, boas e piedosas. Mas as mulheres não podem representar
esse Deus para o homem, pois Deus não é nossa mãe, mas nosso Pai. A Terra é
nossa mãe.
Jesus sempre chamou Deus de “Pai”. E Jesus não era de forma alguma um
misógino. Ele libertou a mulher mais que qualquer outro em seu tempo. Mas
Ele também era judeu. Ele acreditava que o judaísmo era a revelação do
verdadeiro Deus. Ele acreditava que Deus nos ensinou como falar dele. Ele não
só acreditava nisso, mas sabia disso, pois estava lá! Ele era (e é) o eterno Logos,
Mente, Razão ou Palavra de Deus. Ele era a Mente que tinha inventado o
judaísmo — a não ser que Ele fosse um mentiroso; e o judaísmo, uma mentira.
O monoteísmo hindu harmonizou-se com o politeísmo. Até hoje, os
hindus adoram muitos deuses tanto quanto adoram apenas um. Brahma
manifestava-se igualmente em Vishnu, o “criador” imanente da vida; e em
Shiva, o destruidor; e em Kali, a esposa de mil braços de Shiva — e em
literalmente milhares de deuses e deusas. Mas, para os judeus, simplesmente
não existem outros deuses. Com um traço não ecumênico da caneta de Deus,
todos os deuses de todas as religiões do mundo foram riscados do mapa.
A história não é complacente com o politeísmo. No Ocidente, todos os
outros deuses estão mortos. (Quantos templos de Diana, de Mitra ou de Zeus
você encontra nas Páginas Amarelas da sua cidade?) E também os adoradores
deles. (Qual foi a última vez que você conversou com um cananeu, ou um
moabita, ou um hitita?) Quatro mil anos depois de Abraão, metade das pessoas
do mundo aprendeu com os judeus que (como dizem os muçulmanos) “não
existe nenhum Deus além de Deus”. Ele é o único, o Criador. Ele é o único
Deus.
Esse é o primeiro ponto da metafísica de Jesus. Ele não é original. Todos
os judeus sabiam disso. Qualquer pessoa que ignore, duvide ou minimize a
força desse fato histórico não tem a mínima possibilidade de entender a
loso a de Jesus.
E eis uma segunda crença exclusivamente judaica: que a vontade divina é
perfeitamente boa, reta, santa e justa. Deus é o único Deus que você não pode
in uenciar. E uma vez que esse é o caráter da Realidade suprema — e desde
que para sermos verdadeiramente reais temos de nos conformar ao caráter da
Realidade suprema — por conseguinte, o sentido da vida é ser sagrado, santo.
A moralidade ui da metafísica, porque a bondade ui de Deus. “Sejam santos
porque eu, o SENHOR, o Deus de vocês, sou santo.” A Torá repete essa ligação
como uma fórmula litúrgica. Deus, ao contrário dos deuses do politeísmo ou
do panteísmo, não tem um lado obscuro. Por isso, nós também não podemos
ter um lado obscuro. As consequências da metafísica judaica para a ética
abalaram o mundo. O mundo todo tem uma mãe judia, uma consciência
judia, porque o mundo todo tem um Pai judeu.
Essa bondade divina não é apenas perfeita, ela é mais que perfeita. Ela
irradia como a luz do sol. Ela é o amor ágape, generoso, altruísta, que doa e
sacri ca a si mesmo. Deus procura intimidade com o homem, Deus quer se
casar com o homem. Isaías declara: “O seu Criador é o seu marido” (Isaías
54:5). Para esse m, Ele faz alianças, prepara para a aliança fundamental, o
casamento.
Nenhum pagão jamais suspeitou da possibilidade de existir essa
intimidade, nem mesmo com seus deuses nitos e antropomór cos, ou seja, o
relacionamento que a Escritura chama de “fé” ou delidade. E, por essa razão,
nenhum pagão jamais entendeu o sentido mais profundo nem o horror do
“pecado”, pois o pecado é a ruptura desse relacionamento. O pecado é para a fé
o mesmo que a in delidade é para o casamento. Apenas quem conhece a
maravilha do casamento pode conhecer o horror da in delidade.
Por isso, Jesus, o judeu, levava o pecado muito mais a sério que qualquer
pagão poderia levar, e é por isso que Ele paga o preço máximo — sua própria
vida — para nos salvar do pecado.
Do ponto de vista puramente racional do lósofo, a coisa mais
surpreendente acerca do conceito judaico de Deus não é o fato de Deus ser
único, nem perfeito, nem bom, nem mesmo amoroso, mas de que Ele, o ser
in nito, tem caráter. Ele não é apenas “o fundamento do ser”, mas um
indivíduo com personalidade. E esse indivíduo e sua personalidade podem ser
conhecidos (connaitre, kennen) por intermédio da experiência da oração, do
esforço moral, do arrependimento e da fé como um relacionamento vivo com
Ele semelhante ao casamento. Apesar de ser in nito; “in nito” não quer dizer
“que não tenha caráter”. Ele é in nitamente santo, in nitamente reto,
in nitamente justo, in nitamente amoroso etc. Ele não é tudo em geral e nada
em particular. Ele discerne entre o bem e o mal, e exige que façamos o mesmo
no pensamento e na vida. Para esse propósito, Ele concede a cada um de nós a
consciência, o profeta interior: para que sejamos moralmente rigorosos e
judiciosos e saibamos discernir entre o bem e o mal. Ele, por ser in nitamente
rigoroso, não faz concessão ao mal. E nós, se quisermos viver em sua família,
como seus lhos, devemos fazer o mesmo. Da mesma forma que seu Filho
unigênito é igual ao Pai, nós, seus lhos adotivos, também temos de ser iguais
ao Pai. Por isso, Ele nos diz: “Sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de
vocês” (Mateus 5:48).
Os judeus religiosos anteriores a Jesus já tinham aprendido com seus
profetas boa parte dessas verdades surpreendentes a respeito de Deus (embora
eles não soubessem que Deus tinha um Filho eterno) e, assim, acerca da
Realidade suprema e, portanto, acerca da metafísica. Tudo que Jesus fez foi
mostrar o que eles já sabiam, mostrar isso de “forma próxima e pessoal”, pôr a
face de Deus “na face deles”. Ele não mostrou a eles um novo Deus, nem
ensinou um novo conceito de Deus nem um novo atributo de Deus, mas deu a
eles uma nova obra de Deus, a mais extraordinária de todas as obras de Deus, a
Encarnação, e nela, a redenção por meio do sofrimento, da morte e da
ressurreição divinas.
O Pai e o Filho são o mesmo Deus, pois “quem me vê [Jesus], vê o Pai”
(João 14:9). Tal pai, tal lho. Jesus não era Deus representado, mas Deus
presente, Deus tornado o mais presente possível, Deus conhecido pela visão,
até mesmo pelo toque e também pela fé. O Céu veio à terra. Esse não era um
novo conceito de Céu, mas uma nova presença do Céu. Jesus mostrou ao seu
povo escolhido 33 anos de Céu. Pois o Céu está onde Deus está. Deus de ne o
Céu, não é o Céu que de ne Deus.
2. O novo nome que Jesus usa para Deus

O nome pelo qual Jesus chamava Deus era ainda mais espantoso que aquele
que Deus revelou a Moisés. Os judeus aprenderam com Moisés que Deus é
apenas Eu Sou, a pessoa eterna, perfeita, única e totalmente real. E Jesus
chamava essa pessoa por um nome que ninguém jamais sonharia ou ousaria
usar: “Pai”.
Esse fato representava dois choques: Deus era Pai de Jesus, por natureza,
na eternidade; e nosso Pai, por adoção, no tempo.
(No mundo antigo, “ lho adotivo” era o título legal genérico para
mulheres e homens adotados; uma vez que o direito de herança era passado por
meio dos homens, “ lho” era a palavra necessária para designar o fato de que
mulheres e homens tinham direito à plena herança espiritual de todas as
riquezas de Deus concedidas por intermédio de Cristo. O ponto realmente
“inclusivo” só poderia ser expresso por meio de uma palavra aparentemente
“exclusiva”.)
E Jesus ainda foi mais adiante. Ele usava a palavra “Abba” — não apenas
“Pai”, mas “Papai”, o termo íntimo usado pela criança ou pelo bebê. (Até
mesmo um bebê consegue balbuciar: “Abba”, ou “Papa”.) Aquele que é
in nitamente transcendente, agora, também será, por todo o resto do tempo e
da eternidade, in nitamente íntimo. Agora, o Pai está brincando com o bebê e
usando a fala dos bebês. O divino inacessível tornou-se tão acessível que pôde
ser morto. Ele não só tornou seu espírito acessível, mas também seu sangue.
Suas palavras de salvação não eram como as dos lósofos: “Esta é minha
mente”, mas: “Isto é o meu corpo” (Mateus 26:26).
O apóstolo João, já idoso, ainda estava espantado e estupefato quando
ponderou esse paradoxo ao escrever sua primeira epístola. A primeira frase do
Evangelho dele diz: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com
Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória.” A primeira frase de sua epístola declara: “O que era desde
o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que
contemplamos e as nossas mãos apalparam.” A origem implícita de toda
manifestação tornou-se clara. O “Tao”, por trás das “dez mil coisas”, se tornou
uma dessas manifestações.
A equação de Deus com Cristo é semelhante à equação E = mc². A
energia divina foi convertida em massa por uma espécie de ssão transnuclear.
O sujeito divino (“Eu”) tornou-se um objeto humano (“ele”). A velocidade da
luz celestial tornou-se nita.
Por que Ele fez isso?
3. A metafísica do amor

“Para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é


com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (1 João 1:3). O “ponto crucial” ou o
resultado prático do paradoxo teológico da Encarnação é a oportunidade
religiosa de relação, ou intimidade, com a Realidade suprema. Essa é a solução
mais radical para o problema fundamental da metafísica: como conhecer o Ser.
O Ser (“Sou”) também se tornou pessoa (“Eu”), e constata-se que o
conhecimento é casamento! O objeto da metafísica propôs casamento ao
metafísico. Isso é algo totalmente inesperado, como se Newton, ao descobrir a
gravidade, tivesse ouvido uma voz vinda de toda a gravidade do universo:
“Você quer se casar comigo?” É como se o quadrado da hipotenusa declarasse
estar apaixonado por Pitágoras.
Apenas o amor poderia motivar essa loucura. Os braços estendidos de
Cristo na Cruz são a resposta de Deus à nossa pergunta infantil: “Quanto você
me ama?”; “Esse tanto!” Quão grande é essa extensão? É a distância entre o
Céu e a terra que foi transposta pela Encarnação, e era a distância entre o Céu e
o Inferno que foi transposta pela nossa salvação.
Cristo é a revelação, ou a realidade, suprema de Deus, do mais supremo
segredo da metafísica. A busca metafísica do homem encontra sua realização
terrena nal no Gólgota, o “lugar da Caveira”, no qual o mundo assistiu ao
mais dramático evento da história: a morte e a vida travando um combate
milagroso (Mors et Vita duello, con ixere mirando, nas palavras do Dies Irae
[Dia da Ira]). A vida não venceu a morte pela força, mas pelo amor. O pequeno
Cordeiro derrotou a grande besta usando sua arma secreta: seu sangue, seu
amor. Ele deixou a besta, como um Drácula invertido, beber seu sangue.
Ele poderia nos redimir com uma gota de sangue; por que sofreu uma
morte tão sangrenta? Porque tinha mais sangue para dar. Para escândalo dos
estudiosos, a resposta de Deus à nossa busca metafísica não é um conceito nem
um símbolo mítico, mas essa obra. Você consegue ver a natureza da realidade
suprema quando olha para um cruci xo. Há mais sabedoria metafísica no olhar
sincero de uma única criança cristã que nas mais altas experiências místicas do
sábio ou do guru, e que no mais excelente dos sistemas losó cos de um Platão
ou de um Aristóteles. Eles podem conhecer a experiência do Ser ou o conceito
do Ser, mas a criança cristã vê a face do Ser.
Como algum homem mortal poderia ousar imaginar essa história? Como
o coração humano poderia conceber esse pensamento? O efeito não pode
exceder a causa. Esse pensamento — de que o Deus perfeito agiria como se
precisasse muitíssimo de nós, pecadores — é muito absurdo para ser outra
coisa além de uma terrível insanidade ou uma revelação celestial.
Como poderíamos saber, se não por Cristo, que Deus nos ama? Quero
dizer, que Ele realmente nos ama, não apenas com a lantropia apropriada, mas
com paixão totalmente imprópria. Mesmo se algum homem ousasse esperar
isso, que fundamento poderia haver para essa louca esperança? Que dados
temos para isso? Que provas? Com certeza, não a natureza (“Natureza, rubra
em dente e garra”), nem a vida humana (“solitária, pobre, sórdida, embrutecida
e curta”), nem a história humana (“O banco da matança no qual a felicidade
das pessoas é sacri cada”). Cristo é o único dado que temos para saber que
Deus é amor.
Contudo, uma vez revelada, a história absurda parece totalmente bela.
Tolkien diz a respeito do Evangelho: “Não existe uma lenda que os homens
mais desejam que seja verdade.” Pois a maior alegria da vida é ser amado,
apaixonadamente amado, in nitamente amado; ser totalmente conhecido, com
todos os meus defeitos, e, ainda assim, ser totalmente amado.
Sartre, em sua obra Huis clos [Sem saída], mostra como, aparentemente,
isso é impossível. Ele argumenta que eu conhecer você equivale a conhecer
tudo que o torna não digno de ser amado; e que eu amar você é o mesmo que
amar um ideal, um sonho, uma fantasia de mim mesmo. Apenas Deus torna
possível o impossível. Ser, ao mesmo tempo, amado e conhecido, isso é
celestial. Lembra-se da alegria que você sente quando recebe até mesmo um
pouquinho de amor, até mesmo a coisa mais minimamente próxima de amor
de um ser humano pouco inteligente e pecaminoso como você mesmo? Bem,
multiplique isso in nitamente, essa é a diferença entre humanidade e
divindade; e aí você começa a entender a alegria de ser conhecido e amado por
Deus. Quão amado? Amado esse tanto. Amado a ponto de Ele enviar Cristo.
Todavia, vivemos à sombra do pecado, a roupa amortecedora de luz que
usamos sobre a glória divina com que fomos criados; por isso, o amor de Deus
nos parece menos intenso e poderoso que o amor de um homem ou uma
mulher. Mas essa sombra foi retirada por Cristo. Ela era o véu que escondia o
Santo dos Santos no templo, e Ele rasgou o véu. No Céu, nós, com olhos
puri cados, conseguiremos suportar a visão da luz, e o véu será retirado por
completo. Por enquanto, conseguimos suportar apenas um pouco da luz da
tumba vazia. (Lembra-se da cena nal do lme A Paixão de Cristo, de Mel
Gibson?) Talvez seja por isso que Cristo não permitiu que fôssemos verdadeiras
testemunhas oculares do evento de sua ressurreição; esse evento nos teria
cegado.
4. As consequências morais da metafísica

As consequências dessa metafísica para a moralidade são importantes. Da


mesma forma que o amor “percorre todo o caminho para o alto” em direção à
Realidade suprema, a Deus, a moralidade também faz isso. A verdadeira
moralidade (diferente da moralidade legalista, pragmática ou política) é
fundamentada na metafísica. Pois a essência da moralidade, o amor ágape, é a
essência do Ser divino. Cristo revolucionou a metafísica ao revelar não só o
amor, mas a metafísica do amor, o fato de que o amor é a essência de Deus;
esse amor, em última instância absoluta, é “como ele é”.
Todo argumento consiste numa relação entre “A” e “B”: “B” decorre de
“A”; “C” decorre de “B”; “D” decorre de “C”; e assim por diante. Contudo, é
preciso haver alguma causa primeira que não é explicada por nenhuma outra,
apenas por si mesma. A respeito dessa última, devemos apenas dizer: “Porque é
assim.” Cristo revelou que o “é assim” é o amor. A equação suprema é “Deus é
amor” (1 João 4:8), e não “Ser é Ser”.
Essa é a verdade suprema a respeito do “é assim”, a verdade de que Deus
é amor; essa é outra razão por trás de outro paradoxo surpreendente do
cristianismo; o paradoxo de que o Deus absolutamente único é uma Trindade
de pessoas. A razão é que a coisa suprema, a unidade suprema, é a unidade de
amor, não de número nem de matéria. A matéria segue a lei da matéria, que
são as leis da matemática, as leis da quantidade. Matéria é aquilo que pode ser
quanti cado. Mas a unidade matemática, aritmética, não é o tipo mais elevado
de unidade, o tipo mais uni cado de unidade. Antes, a empatia pessoal e ativa
da identidade do amante com a identidade do amado é a unidade mais elevada.
E aqui, por unidade “mais elevada”, não me re ro apenas à “melhor”, mas
também à “mais verdadeiramente uma.”
Observamos pálidas, mas de nitivas, indicações disso até mesmo em
nossos débeis amores, se ao menos eles forem de nitivos. O amante encontra
sua unidade, sua identidade, seu “eu”, seu ego, mais no ente amado que em si
mesmo.* A morte, sofrimento ou pecado do ente amado são muito mais
ameaçadores para a vida, a identidade e a alegria do amante que a dele mesmo
poderia ser. Conhecemos esse fato estranho só por experiência e só se formos
amantes. Assim, conhecemos por experiência a base para a Trindade.
Conhecemos essa base apenas praticando o amor, praticando o que a Trindade
é, e não por meio da teorização.
Contudo, a isso segue-se a teoria, como uma sombra, se a substância viva
vier primeiro. E a teoria é isto: que o amor, conforme já observamos, o mais
elevado e mais uni cado tipo de unidade, requer mais de uma pessoa, a menos
que se trate apenas de amor egoísta, de autoerotismo. O amor requer o amante
e o ente amado.
E o mais elevado grau de amor entre o amante e o ente amado pode ser
tão real que é uma realidade em si mesma, uma terceira pessoa. Pois o amor é
produtivo e criativo. A sexualidade humana é uma pálida, mas santa, imagem
desse fato supremo. Por isso, o fugaz ato sexual é tão extasiante, e isso nos dois
sentidos da palavra: a alegria indizível e o sair de si mesmo de forma mística.
No nível meramente animal, o ato sexual supera qualquer coisa, pois ele é uma
imagem do êxtase in nito e eterno da Trindade.
Se Deus fosse apenas uma pessoa, apenas um amante, em vez de ser o
amor completo, ele precisaria de outra pessoa para poder amar, e, assim, Deus
precisaria de suas criaturas. Ou ele não precisaria de outra pessoa, e então o
amor dele seria apenas o amor de si mesmo. Mesmo quando esse amor
“egoísta” não é competitivo nem pecaminoso, ele não pode produzir o êxtase e
a alegria, espiritual e sexual, que o amor abnegado pode produzir e produz.
Uma vez que Deus é completo, Ele é o amor completo; amante, ente
amado e amor, tudo em um: sujeito do amor, objeto do amor e o ato de amor.
Esses três aspectos, cada um deles, são tão reais em Deus que eles não são
apenas aspectos abstratos distinguidos pela mente, mas são verdadeiramente
pessoas reais, distintas e concretas.
Assim, a natureza da Realidade suprema é Trina: não só uma unidade
absoluta, mas também uma multiplicidade absoluta. A pluralidade e a unidade
“percorrem todo o caminho para o alto”. Esse fato também é revelado apenas
por Cristo. Quem não crê em Cristo, não crê na Trindade. O dado para o
segredo supremo da metafísica é Cristo. Ele é o maior metafísico do mundo.
Nota

* Fosse eu mulher, diria “sua” e em “si mesma”. Não direi “seu ou sua” nem “eles mesmos”, pois abusar da
gramática não é reparação para o pecado de insultar as avós.
5. A santidade como essência da ontologia

E como os santos são “pequenos Cristos”, Gabriel Marcel está certo quando
diz que “a santidade é a verdadeira introdução para a ontologia” (“On the
Ontological Mystery” [“Sobre o mistério ontológico”], em e Philosophy of
Existentialism [A loso a do existencialismo]).
Considero essa uma das mais enigmáticas e signi cativas expressões já
ditas por algum lósofo. Não é sentimentalismo, mas lógica perfeita. Pois:

1. A ontologia, ou metafísica, é a ciência do ser.


2. Nossa compreensão mais clara do ser, ou da realidade, deve vir do ser
mais real, não do menos real.
3. E o ser mais real, a origem, o padrão e o arquétipo de toda a realidade
é Deus.

4. Mas não conhecemos Deus diretamente, como um objeto, pois o


nome dele não é “Isto É” (objeto), mas “Eu Sou” (sujeito).
5. E nós também somos sujeitos “eus”, não-objetos, uma vez que fomos
criados à imagem dele.
6. Contudo, de alguma maneira podemos conhecer, e conhecemos, a nós
mesmos.
7. Portanto, o indivíduo, ou individualidade, é a chave, porta ou janela
para a metafísica.
8. No entanto, o indivíduo, como ser, é analógico. É uma questão de
grau. Nós somos mais ou menos autênticos, mais ou menos reais. Os
átomos não são reais como as almas, as almas humanas não são reais
como Deus.
9. As pessoas humanas mais reais são os santos. Eles são o que todos nós
fomos planejados para ser.
10. Além disso, o estudo da santidade é a chave para o estudo do ser.

Vejamos isso novamente, mas, desta vez, enfatizando o papel primordial


de Cristo.

1. A metafísica é a ciência do ser.


2. A natureza do ser é a natureza de Deus, pois todos os seres são
de nidos por Deus, o Criador de todo ser. Por exemplo, todo ser é bom
porque Deus é bom; e todo ser ou é o Criador, que é supremamente
bom, ou a criatura criada pelo Criador e, portanto, também é boa.
3. Deus “fala”, ou “expressa”, ou “revela” a si mesmo em seu Logos, sua
palavra eterna, sua mente. Esse é o Cristo eterno. Jesus é seu nome
humano, Logos é seu nome eterno; Jesus e Logos são a mesma pessoa.
Deus Pai não retém nada ao expressar seu “Eu” completo em Deus Filho.
4. Deus Filho tornou-se homem e nos deu a revelação nal, de nitiva e
perfeita de Deus e, portanto, do Ser.
5. Os santos são pequenos Cristos. Vemos Cristo por intermédio dos
santos. Eles são as janelas que mostram mais a luz de Cristo, que é a luz
do Pai, que, por sua vez, é a luz do Ser.

6. Por isso, os santos são as janelas para o Ser, e, assim, o estudo da


santidade é a chave para a metafísica.

O pensamento de Marcel refuta nosso hábito tolo e nocivo de colocar a


metafísica e a santidade em compartimentos muito separados. De um lado,
supõe-se que a metafísica é objetiva e impessoal. Contudo, o objeto último, o
ser último, a realidade última da metafísica é uma Pessoa. O nome dela é “Eu
Sou”. De outro lado, supõe-se que a santidade é subjetiva e psicológica. No
entanto, o ponto último de ser santo é ser real, ser semelhante a Deus, a m de
nos conformarmos à natureza última da realidade objetiva e, assim, revelá-la.
Outra forma de observar a conexão entre metafísica e santidade é
lembrar dois dos nomes de Deus, o Deus único: ele é Amor (ágape) e também
é o Ser necessário, a Imutável forma como as coisas são, o Real nal, a
Realidade suprema. Assim, a Realidade suprema é o amor ágape. Portanto, o
objeto da metafísica é a santidade.
Vejamos ainda outra fórmula: para ter êxito na metafísica precisamos
conhecer o real nal; para conhecer o real nal temos de amar; amar é ser
santo; portanto, ter êxito na metafísica é ser santo.
6. A metafísica de “Eu Sou”

Os judeus, até a Encarnação, eram proibidos de ter alguma imagem ou


pintura de Deus. Pois a essência de Deus, revelada no nome que Ele forneceu a
Moisés na sarça ardente (Êxodo 3:14), é “Eu Sou”. Deus é o genuíno sujeito, e
não o objeto. Não existe uma foto de Deus porque é Ele que está por trás da
câmera.
Quando a câmera fotográ ca era uma novidade, meu avô era o único
que tirava fotos da família. O resto da família sempre aparecia nas fotogra as,
mas ele não. Ele tinha a única câmera fotográ ca da família, e cabia entregá-la
a outro membro da família para que pudesse ter uma fotogra a de si mesmo.
Foi isso que Deus fez na Encarnação. O Ser tornou-se um ser, o Sujeito tornou-
se um objeto, Deus tornou-se homem, Eu Sou tornou-se um Ele.
No entanto, Ele ainda é Eu Sou. Observe como, agora, Ele interage com
suas criaturas, e você detectará o segredo metafísico do nome “Eu Sou”.

“Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se.”
Disseram-lhe os judeus: “Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?”
Respondeu Jesus: “Eu lhes a rmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!”
Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo (João 8:56-59).

Uma das evidências mais impressionantes a respeito de Jesus — Eu Sou,


o sujeito, não o objeto — é como Ele sempre manifesta sua identidade na
interação com suas criaturas. Em todos os seus encontros com as pessoas, Ele se
torna, no tempo, o que é na eternidade. Ele é o primeiro e, por isso, não pode
ser o segundo. Ele é o sujeito e, por isso, não pode ser o objeto.
Ele não pode ser objeto da manipulação nem do controle humano a
menos que consinta. Claro que esse consentimento culmina em sua
cruci cação. Contudo, lembre-se de que Ele a rmou: “Ninguém a tira de
mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade” (João 10:18).
Ele também não pode ser objeto da compreensão e do entendimento
humanos. Pois “a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam”
(João 1:5; ARC). Quando Ele é questionado por seus inimigos, quando eles
tentam transformá-lo em algo e pendurá-lo na parede, quando tentam
transformá-lo em objeto do controle e da compreensão deles, Jesus não só
escapa, como também inverte a relação para que Ele se torne o questionador; e
eles, os questionados. (Jesus entende perfeitamente o arquétipo do gracejo
judaico: “Diga-me, por que um rabino sempre responde a uma pergunta com
outra pergunta?”; resposta: “Por que um rabino não deveria responder a uma
pergunta com outra?”)

1. “Devemos apedrejar a adúltera ou não?”


(Se apedrejar, desa a a Roma; se não, a Moisés.)
“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a
pedra” (João 8:7).

2. “É certo pagar imposto a César ou não?”


(César é o rei de vocês ou não? São esses mesmos homens que logo
gritariam: “Não temos rei, senão César!”)
“Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (em vez
de vice-versa, que era o que eles estavam fazendo) (Lucas 20:25).

3. “Com que autoridade estás fazendo estas coisas?”


“De onde era o batismo de João?”
“Não sabemos.”
“Tampouco lhes direi com que autoridade estou fazendo estas coisas”
(Mateus 21:25-27).
4. “‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua
alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’, e ‘Ame o seu
próximo como a si mesmo’ [...] E quem é o meu próximo?”
Jesus, depois de contar a parábola do bom samaritano, disse: “Vá e
faça o mesmo.” (Responda à pergunta sobre quem é o próximo sendo o
próximo — como eu estou fazendo.) (Lucas 10:37)

5. “Senhor, serão poucos os salvos?”


“Esforcem-se para entrar” (Lucas 13:23,24).

Todos esses exemplos têm em comum o fato de que o juiz e o julgado


trocam de lugar. Cristo, o tigre, abre as barras da jaula que os homens tentam
colocar em torno dele e prende seus pretensos captores na jaula. Ele é o
pescador, o Rei pescador, e nós somos o peixe, não vice-versa. Esse pescador
não pode ser pego como um peixe. Ele não se amolda a nenhuma rede nem
morde nenhuma isca, nem mesmo a da tentação do diabo no deserto. Não há
lugar na boca dele para o anzol se prender, pois sua boca é fogo.
O evangelho de João deixa esse fenômeno especialmente claro; já logo no
início, com as próprias primeiras palavras que João registra como saídas dos
lábios de Jesus: “O que vocês querem?” (João 1:38) A pergunta pode parecer
fortuita e comum, mas é profunda.
É profunda uma vez que é uma sondagem que chega ao âmago do nosso
coração. Ela quer dizer: “O que você mais ama?” E isso quer dizer: “Quem é
você?” Pois somos o que amamos. Transformamo-nos naquilo que amamos.
Nós nos “identi camos com” o que amamos. Encontramos nossa identidade
naquilo que amamos. Santo Agostinho sabia bem disso; é por isso que
escreveu: Amor meus, pondus meum — “meu amor é minha gravidade”, meu
sentido, meu destino. Transformamo-nos naquilo que mais amamos, naquilo
em que pomos nosso coração. Nossa hereditariedade nos faz o que somos, mas
nossos corações nos fazem quem somos.
Jesus diz a mesma coisa: “Peçam, e lhes será dado; busquem, e
encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta.” (Mateus 7:7) Em outras
palavras, o que você ama você consegue. Por isso, tenha cuidado com o que
você ama.
Por essa razão, o amor é uma coisa muito perigosa. Ele muda você. Ele
muda sua vida. Ele é tão objetivamente real como uma grande pedra quente
atirada no seu rosto. Não é apenas um pensamento ou sentimento interior, isso
realmente acontece. Nós nos unimos ao que amamos. Tornamo-nos o que
amamos. Quanto mais você amar chocolate, mais chocolate você se torna.
Quanto mais amar o canibalismo, mais canibal se torna. Quanto mais amar a
Cristo, mais semelhante a Ele se torna. Nada é mais assustador que isso.
Lembre-se de como o mundo cou com medo de Cristo: ele o cruci cou.
Você quer isso? Jesus pergunta-lhes: “O que vocês querem?”, da mesma
forma pessoal e insistente que perguntou a seus primeiros discípulos. Pensamos
que estamos em uma busca por Ele, mas Ele questiona nossa busca, questiona
nosso coração. Ele está em uma busca por nós. Ele é o questionador, e temos de
responder a ele, e não vice-versa. Foi exata-mente isso que Jó descobriu quando
se encontrou com Deus. Foi isto também que Viktor Frankl observou alguns
prisioneiros de Auschwitz descobrirem: que o ultraje que acontecera com eles,
o sofrimento imenso demais para a mente apreender, a coisa terrível cujo
sentido questionavam (“Por que devo sofrer tanto?”); isso não era a resposta,
mas a pergunta; apenas podiam descobrir a resposta para suas perguntas por
meio da ação deles mesmos; eles eram a resposta, e a vida era a pergunta, e não
vice-versa. E isso era verdade quer eles acreditassem que havia um Deus por
trás da “vida”, usando-a como sua máscara, quer achassem que era apenas a
“vida” fazendo a pergunta a eles.
Jesus, nestas quatro palavrinhas: “O que vocês querem?”, não faz apenas
uma pergunta, mas muitas. Por exemplo, Ele está fazendo a pergunta que a
maioria dos judeus da época Dele respondia de forma errônea, da mesma
forma que muitos gentios o fazem hoje: vocês querem um Messias político?
Um sentido para seus objetivos políticos, sejam quais forem, de direita ou
esquerda, socialista ou libertário, monarquista ou marxista, herodiano ou
zelote, colaboracionista ou rebelde? Nessa pergunta, Jesus deu a resposta para a
pergunta deles (“O Senhor é o nosso Messias?”). Ele está dizendo: “Se vocês
querem um meio sobrenatural para seu m natural, não sou seu Messias. Não
venham a mim.” (Provavelmente foi por isso que Judas o traiu. A política
sempre traiu a religião, da Inquisição à Al Qaeda.)
Com essa pergunta, Ele também se dirigia a um grupo menor, os
eclesiásticos apolíticos que o viam como um rabino em vez de como um
rebelde, e Ele estava perguntando: “Vocês querem um mestre que os afague, e
sirva de instrumento para desígnios escusos, e os proteja, e reforce a autoestima
de vocês, a satisfação com vocês mesmos e o orgulho digno de vocês? Um
contraste com o criador de problemas, João, o Batista? Alguém que vai
condenar e ofender seus inimigos, os romanos, mas não vocês? Se é isso que
vocês querem, não venham a mim. Não sou seu Messias.”
E Ele também se dirige a um grupo de pessoas ainda menor, mas
relevante, seus contemporâneos estudiosos e lósofos e seus seguidores ao
longo dos séculos. Ele lhes pergunta: “Vocês querem um lósofo racional que
não os surpreenda nem confunda? O tipo de mestre que os deixa seguros ao
contar a vocês o que já sabem, em vez de deixá-los inseguros por desa á-los a ir
além do limite da segurança do conhecimento humano, até mesmo do
conhecimento mais profundo, a mergulhar nas ondas terríveis onde vocês
encontram de fato aquele que é todo santo e em cuja presença vocês caem ‘aos
seus pés como morto’ (Apocalipse 1:17)? Vocês preferem conhecer ideias
satisfatoriamente inteligentes em vez de Deus? Ou, se vocês se encontrarem
com Deus, preferem encontrá-lo como um tio, em vez de como um terremoto
(para usar as palavras memoráveis do rabino Abraham Heschel)? Se é isso que
vocês querem, não venham a mim. Não sou seu Messias”.
Nossa pergunta fundamental para Jesus — “Quem é você?” —
ricocheteia nele e bate em cheio em nosso rosto. Ele não responde a nossa
pergunta: “Quem é você?”, até que respondamos à pergunta dele: “Quem são
vocês? O que vocês querem?” Vamos a Ele com a esperança de que seja a
resposta para nossa pergunta e O encontramos nos perguntando se somos a
pergunta para a resposta dele.
Esse não é um artifício, como um enigma, um método opcional,
escolhido, como o método socrático. É uma inevitabilidade ontológica por
causa de quem Ele é. Ele é Deus. Deus não é nossa resposta na forma de
homem, nosso servo, o meio para o nosso m. Pensar isso é antropomor smo
pagão. Não, Deus é o m. Ele é o Absoluto; Ele não é relativo a nós, mas nós a
Ele. Ele é o Primeiro, o Criador, o Iniciador. Ele é o cortejador, e nós, os
cortejados; Ele é o fecundador; e nós, os fecundados; Ele é o noivo; e nós, a
noiva. (A imagem de cortejar talvez seja relativa do ponto de vista social, mas a
da fecundação não o é. Por isso, Deus, na Bíblia, sempre é “Ele” e nunca “ela”.
Pensar o contrário disso seria cometer um erro metafísico, um solecismo contra
a gramática do ser, um pecado da mente contra a natureza imutável da
realidade suprema.)
Esse é o Deus de Abraão, o Deus verdadeiro. Os lhos muçulmanos de
Abraão jamais sucumbiram à tentação da psicologia pop, do relativismo, do
subjetivismo, do humanismo secular ou do feminismo “politicamente correto”,
como muitos judeus e cristãos norte-americanos o zeram. (Eles têm tentações
diferentes, como o fascismo islâmico. Nenhum de nós está imune às correntes
de pensamento.)
Nos quatro Evangelhos, nenhum dos encontros entre Cristo e nós é
estruturado pelo fato de que Deus é o grande Eu Sou; o sujeito, não o objeto;
aquele que questiona, não o que responde; o juiz, não o réu; quem inicia, não
quem reage. Esse é um dos indícios, uma das pegadas, por assim dizer, do
verdadeiro Deus; e quando judeus ou muçulmanos devotos leem os
Evangelhos, eles conseguem encontrar esse indício, fundamentados em suas
próprias Escrituras. Cristo fala dessa possibilidade ao declarar: “Todos os que
ouvem o Pai e dele aprendem, vêm a mim” (João 6:45); e: “Se vocês cressem
em Moisés, creriam em mim” (João 5:46).
Essa possibilidade ou sinal — o sinal de que a divindade de Cristo é
encontrada no fato de que Ele sempre é o provocador, não o provocado — é
exatamente o que devemos esperar se duas premissas forem verdadeiras. A
primeira premissa é a essência do Cristianismo: que Cristo é o Filho de Deus.
A segunda é que o princípio “tal pai, tal lho” é uma verdade não só no sentido
literal e biológico, mas também analógico e teológico, uma vez que a realidade
biológica deriva da realidade teológica da mesma forma que a criatura deriva
do Criador. Portanto, conhecer o Pai é realmente conhecer o Filho, conhecer
um é conhecer o outro.
Imagine um muçulmano devoto. O muçulmano devoto é simplesmente
alguém que é cheio com o verdadeiro “islamismo”, ou submisso e entregue ao
único Deus, a quem os muçulmano chamam de Alá (o sentido simples e literal
do termo “Alá” é “o único Deus”). O muçulmano tem profunda reverência
pelo profeta Maomé exatamente porque vê nele o exemplo perfeito de
“islamismo” para Alá. Quando Alá ordena, Maomé obedece. Quando Alá diz:
“Narre!”; Maomé narra.
Agora, imagine esse muçulmano lendo os evangelhos pela primeira vez.
Ele caria impressionado com o fato de que Jesus, como Maomé, é totalmente
obediente ao Pai. (“Pois desci dos céus, não para fazer a minha vontade, mas
para fazer a vontade daquele que me enviou. [...] O meu ensinamento não vem
de mim mesmo. Vem daquele que me enviou.”) Esse fato reforçaria a crença
muçulmana de que Jesus é um grande profeta. Todavia, a seguir, surge um
enigma: Jesus, ao contrário de Maomé, sempre é o juiz, nunca o julgado. O
próprio Corão classi ca Maomé como um pecador, ao qual Alá ordena que se
arrependa de seus pecados. No entanto, Jesus indaga: “Qual de vocês pode me
acusar de algum pecado?” E o que faria esse muçulmano com o fato de que
depois de esbravejar contra a “inadequada” e blasfema noção cristã de que Alá
teria um lho, Maomé, de forma repentina e surpreendente, declara: “Mas
saiba que se Alá tivesse um Filho, eu seria o primeiro a adorá-lo”?
Há incerteza, como no Salmo 139:19-24, de Davi?
A pegada divina que o muçulmano pode detectar nas palavras de Jesus
registradas nos evangelhos não é o mero fato de que Ele a rma ser divino.
Homens loucos já a rmaram isso, e os muçulmanos declaram aqui que loucos
eram os cristãos que escreveram os Evangelhos, não Cristo. A pegada divina de
que falo é o estilo das a rmações de Jesus. Sempre que lhe é feita uma pergunta,
Ele reverte a situação de modo que o questionador se torne o questionado.
Sempre que lhe é feita uma pergunta abstrata e impessoal, Ele fornece uma
resposta concreta e pessoal. Quando lhe perguntam quem a rma ser, Ele não
fornece um nome discutível, como “Zeus”, mas o nome santo e único de seu
Pai que declara a presença real dele: “Eu Sou.”
Imagine os maiores lósofos do mundo promovendo uma conferência a
respeito da existência de Deus: ateístas versus teístas. Depois da apresentação de
todos os argumentos em prol do ateísmo, o caso em prol do teísmo é
apresentado por um visitante: o próprio Deus que aparece na conferência não
como um lósofo defendendo uma teoria, mas como uma constatação de fato,
e ele chega silenciosamente por trás dos lósofos e faz: “Buu!”
Esse é o grande e santo gracejo de São Tomás de Aquino em um de seus
textos mais famosos, o artigo sobre a existência de Deus que faz parte da obra
Suma Teológica. (Aquino tem o mesmo tipo de senso de humor de Jesus: é o
extremo oposto da piada, é a ironia que reside na própria essência do que ele
fala.) Em cada artigo da Suma, Tomás de Aquino, depois de ouvir as objeções à
sua tese, defende-a em dois estágios: primeiro, na seção que começa com a
fórmula “Ao contrário”, seguida de uma citação de autoridade; e, segundo, na
seção que inicia com a fórmula “Respondo que”, seguida de um argumento
original. Qual citação de autoridade sobre a existência de Deus que Aquinate
usa? Nenhuma citação a respeito de Deus, mas uma citação de Deus: “Ao
contrário, Deus mesmo disse: ‘Eu Sou’.” Deus entra às escondidas no debate da
conferência e se apresenta como prova. É como o “alôôôôô” que a adolescente
dirige aos pais quando eles falam dela na sua presença, como se ela não
estivesse ali. Jesus usou esse tipo de humor em João 8:58. A resposta foram
pedras atiradas nele. Também é o mesmo tipo de humor que Sócrates usou na
Apologia quando, julgado por ateísmo, levou à corte, como sua testemunha, a
palavra de um deus do oráculo dél co. A resposta que Sócrates teve foi a cicuta.
As pessoas não gostam que suas vítimas inocentes riam delas de forma sutil e
amistosa.
Essa situação continuará até o m dos tempos, já que Jesus durará até o
m dos tempos, sabendo-se que Ele é “o mesmo, ontem, hoje e para sempre”
(Hebreus 13:8). A Encarnação teve um começo, mas não tem um m. Ela
divide o tempo em dois para sempre, cortando o nó górdio da história. Abraão
olhava em direção ao início desse evento, enquanto nós o olhamos em
retrospectiva; mas Deus não olha para adiante nem para trás, já que Ele não é
um mero personagem em sua peça, mas o próprio dramaturgo. Para Deus, é
uma verdade eterna o fato de que a carne, o sangue, o corpo e a alma humanos
se ligam em uma união hipostática a seu Filho, a Palavra divina de Deus.
Conforme a rma o Credo de Atanásio, a Encarnação não aconteceu pelo
rebaixamento da divindade em humanidade, como se a divindade pudesse
sofrer mudança, mas pela elevação da humanidade à divindade. Nós sofremos
mudança, nós somos potencialmente isso ou aquilo, mas Deus é
completamente presente. Nós somos potencialmente passíveis de sermos feitos
divinos, mas Deus não é potencialmente passível de se tornar humano. Deus é
completamente presente. (Esse é o primeiro sentido de “agir”.) Por essa razão,
Ele age (esse é o segundo sentido de “agir”), enquanto nós também sofremos a
ação dele. Não se pode agir sobre a natureza divina. Ela não pode ser mudada.
Ela não é passiva nem potencial. Apenas quando Deus assume a natureza
humana nós podemos agir sobre Ele. E então agimos a ponto de rejeitá-lo, de
coroá-lo com espinhos e de pregá-lo.
Na Encarnação, o “Eu Sou” tornou-se o Ele “foi concebido pelo Espírito
Santo e nasceu da Virgem Maria”. A seguir, no Calvário, o Eu que se tornou
Ele se tornou uma coisa: o Deus que se fez homem se tornou um cadáver.
Contudo, depois, houve (ou, antes, há) “o resto da história”: a
ressurreição. O ponto surpreendente de toda essa história para a metafísica é
que essa história toda é a história do Ser.
II
A EPISTEMOLOGIA DE JESUS
A primeira grande pergunta losó ca é: o que é? A segunda, que segue
naturalmente a primeira, é: como sabemos o que é? A primeira pergunta refere-
se ao ser; e a segunda, à verdade.
A verdade diz respeito ao ser, pois “verdade” quer dizer “a verdade sobre
o ser”. “A laranja é redonda” é verdade apenas porque a laranja é redonda.
A resposta de Jesus para a primeira pergunta, a respeito do ser, foi Ele
mesmo. A resposta não era apontar para algo, mas ser, ser “Eu Sou”. Por isso, a
resposta dele para a segunda pergunta, a respeito da verdade, também não
aponta para nenhuma outra coisa como a verdade, mas simplesmente para o
fato de Ele mesmo ser a verdade: “Eu sou [...] a verdade” (João 14:6).
Daí a suprema ironia de Pilatos dirigir cinicamente a grande pergunta
dos lósofos, “O que é verdade?”, à própria verdade eterna, perfeita, absoluta,
divina, encarnada, concreta e pessoal, a Verdade em pé diante dele, condenada.
O ceticismo de Pilatos reclama implicitamente: “Como se supõe que eu
conheça o grande fogo-fátuo losó co, a ‘verdade’? Posso vê-la? Posso tocá-la?”
E Jesus responde: “Sim, pode. Na verdade, você pode cruci cá-la.”
Contudo, quando o homem cruci ca a Verdade, a verdade cruci ca o
homem. Justamente no ato por meio do qual Pilatos condena a Verdade
encarnada, a verdade não-encarnada condena Pilatos.
Jesus não responde a Pilatos com palavras, porque a Verdade encarnada é
a luz, não um objeto iluminado. Jesus não está em julgamento, Pilatos está.
Quando justapomos Jesus com essa segunda grande pergunta losó ca, a
pergunta epistemológica, observamos a repetição do mesmo padrão que vimos
com a primeira pergunta: da mesma forma como Jesus não é um metafísico,
mas algo mais metafísico que um metafísico — Ele é o próprio Ser, objeto de
toda a busca da metafísica —, Ele não é apenas um epistemólogo, mas a
verdade que toda a epistemologia busca. Pois Jesus não é um lósofo
tradicional, um amante da sabedoria, pelo simples fato de que Ele é a
sabedoria. Ele é o amado por quem “o amor pela sabedoria” está apaixonado. O
título deste livro é apropriado porque Jesus é mais losó co que qualquer
lósofo, não menos.
Ele é a resposta para a grande e constante busca de Jó:

Existem minas de prata


e locais onde se re na ouro.
O ferro é extraído da terra,
e do minério se funde o cobre.
O homem dá m à escuridão
e vasculha os recônditos mais remotos em busca de minério, nas mais escuras trevas.
Longe das moradias ele cava um poço,
em local esquecido pelos pés dos homens;
longe de todos, ele se pendura e balança. [...]
As mãos dos homens atacam a dura rocha
e transtornam as raízes das montanhas.
Fazem túneis através da rocha,
e os seus olhos enxergam todos os tesouros dali.
Eles vasculham as nascentes dos rios
e trazem à luz coisas ocultas.

Onde, porém, se poderá achar a sabedoria?


Onde habita o entendimento?
O homem não percebe o valor da sabedoria;
ela não se encontra na terra dos viventes.
O abismo diz: “Em mim não está”;
o mar diz: “Não está comigo”.
Não pode ser comprada, mesmo com o ouro mais puro,
nem se pode pesar o seu preço em prata. [...]
De onde vem, então, a sabedoria?
Onde habita o entendimento?
Escondida está dos olhos de toda criatura viva,
até das aves dos céus. [...]
Deus conhece o caminho;
só Ele sabe onde ela habita (Jó 28).

Que lugar é esse? Jesus. Ele é o lugar em que habita a sabedoria. Só Jesus
revela Deus e o homem para o homem, pois só Ele é perfeitamente Deus e
perfeitamente homem. Conforme diz Pascal:

Nós não só conhecemos Deus por intermédio de Jesus Cristo, mas também só nos
conhecemos por intermédio dele; só conhecemos a vida e a morte por meio de Jesus
Cristo. À parte de Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido de nossa vida nem
de nossa morte, de Deus nem de nós mesmos. (Pensamentos, p. 417)

O que devemos saber? Apenas duas coisas: quem somos e quem é Deus.
Pois essas são as duas únicas pessoas de quem jamais conseguiremos fugir por
toda a eternidade. E saber quem somos envolve conhecer o sentido da nossa
vida, e isso envolve conhecer o sentido da morte, pois ela limita a vida da
mesma forma que a moldura limita o quadro. A a rmação de Pascal (que é a
a rmação do próprio Jesus e de todos seus discípulos que escreveram o Novo
Testamento) é que Jesus é a resposta, a verdadeira, e nal, e suprema, e única
resposta adequada para as quatro questões de Pascal: Deus, “eu”, vida e morte.
A primeira dessas quatro questões é Deus. Ele é a primeira questão
porque Deus é o primeiro em tudo. Temos de começar com o Princípio. O que
mais precisamos conhecer é o Ser mais necessário.
Mas isso é impossível porque Ele “habita em luz inacessível” (terceiro
cânon da missa). Como o Sujeito eterno, Eu Sou, pode tornar-se objeto do
conhecimento humano? Como pode o mero homem mortal, esse tolo nito,
caído e falível, conhecer Deus? É muito mais fácil uma ameba descerebrada
conhecer o homem.
A resposta de Cristo vem em duas partes: primeiro a má notícia; depois,
a boa.
A má notícia (que já conhecemos se formos sábios como Jó) é que não
podemos conhecê-lo. “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18). Mas, logo a
seguir, ele nos dá a boa notícia: “O Deus Unigênito, que está junto do Pai, o
tornou conhecido” (João 1:18). A busca universal do homem por Deus, como
a torre de Babel, é um fracasso universal. A loso a, em última instância, é o
clássico gracejo do fazendeiro de Vermont: “É, daqui não dá para chegar lá.”
Contudo, a busca de Deus pelo homem é um sucesso, e o nome desse sucesso é
Jesus.
Não podemos conhecer Deus, a Verdade suprema, escalando alguma
torre humana, quer construída com palavras quer com tijolos. Só podemos
conhecer Deus se Ele descer até nós, se Ele descer a escada de Jacó. Jesus é a
escada de Jacó (Ele mesmo diz isso, compare João 1:51 com Gênesis 28:12); e
vemos essa escada de cabeça para baixo, pois ela realmente está apoiada no
Céu, não na terra, como a torre de Babel. A fundação dela não pode ruir como
a de Babel, pois não é constituída de pensamento e de palavras (logoi)
humanos, mas de pensamento e palavra divinos (o Logos, João 1:1).
É totalmente razoável o fato de que o raciocínio humano não consiga
encontrar Deus. Para provar isso, precisamos de um princípio básico da
epistemologia, o qual descobriremos observando os vários graus do
conhecimento humano. Pois os graus de conhecimento correspondem aos
graus de realidade, uma vez que o conhecimento corresponde à realidade. (Na
verdade, “conhecimento” quer dizer “correspondência com a realidade”.)
Comecemos com a suposição de que queremos conhecer algo muito
inferior a nós mesmos: alguma abstração, ideia, regra ou número imaginado
pelo homem. Nesse caso, toda a atividade vem de nós. Pois uma ideia abstrata
não pode fazer nada por si mesma; toda a vida dela origina-se na nossa.
A seguir, suponha que você queira conhecer algo inferior a você, algo que
não é vivo, e cuja realidade independe de você, como uma pedra. A realidade
dela independe da sua mente, mas toda atividade dela (exceto o próprio ato de
existir e sua natureza) vem de você. Você tem de ir até ela e estudá-la. Ela não
faz nada, ca ali passiva e se deixa estudar.
Depois, suponha que você queira conhecer algo vivo, uma planta. Ela
tem alguma atividade própria. Ela muda de semente para árvore, de viva para
morta, de saudável para doente. Portanto, a planta é um pouco mais difícil de
conhecer, em especial, de prever. Ela é viva, e nós falamos “do mistério da vida”.
Não falamos sobre o “mistério das pedras”. Mas a planta ainda é razoavelmente
fácil de conhecer e, em essência, é passiva.
A seguir, suponha que você queira conhecer um animal. Isso é ainda
mais difícil, pois o animal tem um grau de realidade muito mais elevado e rico.
Ele é ativo. Ele, ao contrário da planta, pode fugir e esconder-se de você. É
preciso conquistar a con ança dele. Vocês compartilham uma vida mental.
Contudo, você ainda é o iniciador. Não vemos cobaias fazendo experimentos
de laboratório em homens.
Bem, você sobe mais um degrau, quando o ser que você quer conhecer é
outro ser humano, um igual, a atividade é dividida igualmente, ou quase, entre
vocês. (Você faz a maior parte da atividade quando dialoga com criancinhas,
enquanto a pessoa mais velha e mais sábia faz a maior parte da atividade ao
dialogar com você. Essa é a razão pela qual devemos dedicar a maior parte do
tempo de oração ouvindo.)
Depois, suponha que você queira conhecer um anjo. Se o anjo não se
revelar por si mesmo, saberemos muito pouco, quase nada a respeito dele.
Por m, suponha que você queira conhecer Deus. Aqui toda atividade
tem de ter origem nele. Se Ele não tomar a iniciativa, simplesmente não
podemos conhecê-lo.
Por isso, para haver o conhecimento de Deus é preciso ocorrer a
revelação divina.
Mas existe revelação divina, Deus revelou-se e de muitas formas:
primeiro, ao criar o universo, mas, por último e acima de tudo, por intermédio
de Cristo, a revelação nal e de nitiva de Deus. Não haverá mais nenhuma
revelação de nitiva até o m dos tempos. “Pois foi do agrado de Deus que nele
habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19). Esse versículo informa-nos que
Cristo é tudo de Deus que podemos conhecer, pois Ele é tudo de Deus que
existe. Não há mais em Deus do que em Cristo. O Pai está todo no Filho, não
reteve nada. Cristo é a suprema revelação epistemológica da suprema realidade
metafísica. Cristo é a chave para a epistemologia.
Observe o desdobramento dessa realidade nos Evangelhos. Note como
Cristo trabalha, como Ele faz muito mais que apenas conhecer a verdade e
ensiná-la. Observe como Ele é a verdade, não como na equação dois mais dois
são quatro, mas como as abelhas são em uma colmeia. (Ser abelha é o que as
abelhas fazem. Existir é um ato.) Observe como a epistemologia ganha vida
porque a verdade está viva e ativa e, por isso, pode nos libertar. Observe como
“a verdade os libertará”:

Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em


adultério. Fizeram-na car em pé diante de todos e disseram a Jesus: “Mestre, esta
mulher foi surpreendida em ato de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar
tais mulheres. E o senhor, que diz?” Eles estavam usando essa pergunta como
armadilha, a m de terem uma base para acusá-lo. Mas Jesus inclinou-se e começou
a escrever no chão com o dedo. Visto que continuavam a interrogá-lo, Ele se
levantou e lhes disse: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe
atirar uma pedra.” Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão. Os que
o ouviram foram saindo, um de cada vez, começando pelos mais velhos. Jesus cou
só, com a mulher em pé diante dele. Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe:
“Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?” “Ninguém, Senhor”, disse ela.
Declarou Jesus: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de
pecado” (João 8:3-11).

Os mestres da lei e os fariseus exigem que Jesus responda a essa pergunta,


eles estão certos de que o pegarão em uma armadilha: o que Ele diria que devia
ser feito a essa mulher pega em adultério? A Lei de Moisés, ou seja, a Lei de
Deus, ordenava que ela fosse apedrejada. (Observe que a Lei não permite ou
recomenda essa punição, mas ordena.) Todavia, a lei romana proibia que os
judeus exercessem o direito de aplicar a pena capital independentemente do
crime. (Note que essa lei não desencorajava a aplicação dessa punição pelos
judeus, em vez de pelos romanos, mas proibia.) Assim, se Jesus dissesse: “Não,
não apedrejem a mulher”, seria desobediência a Moisés; portanto, uma heresia.
Se Ele dissesse: “Sim, apedrejem a mulher”, desobedeceria a Roma e seria
considerado traidor. Se ele não dissesse nada, desobedeceria à lei da
honestidade e seria covarde.
Nenhuma sabedoria humana escaparia dessa armadilha perfeita. Apenas
três respostas são logicamente possíveis (sim, não e o silêncio), e todas as três
condenariam Jesus: a lei mosaica o condenaria se dissesse não; a lei romana, se
dissesse sim; e a lei natural, se não dissesse nada.
Ah, mas lembre-se de quem Ele é. Ele é Eu Sou. Ele é aquele que falou a
Moisés da sarça ardente, quando este tentou sujeitá-lo ao exigir que dissesse seu
nome. Assim, Ele sujeitou Moisés ao fornecer, como seu nome, o nome que
nenhum judeu devoto ousaria sequer pronunciar dali em diante. Pois
pronunciar “Eu Sou” seria o mesmo que a rmar possuir esse nome, a rmar ser
esse “Eu”. Esse nome só pode ser dito na primeira pessoa. Qualquer outro
nome pode ser dito na segunda pessoa, àquela a quem se dirige (“você”), ou na
terceira pessoa, àquela a quem se representa ou refere (“ele” ou “ela”).
Bem, 1.500 anos depois, Jesus interpreta a mesma reversão de papel. Ele
interpretou esse papel na sarça ardente ao transformar sua resposta em
pergunta. (Lembre-se, Ele é um rabino. “Por que um rabino sempre responde a
uma pergunta com outra pergunta?”) Ele, de fato, diz: “Se algum de vocês
estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.” E eles, como Jó,
percebem de imediato que o tempo todo apenas pareciam ser os
questionadores, mestres, juízes, examinadores, controladores, ativos, sábios
que, como os cientistas, examinavam uma nova espécie de animal. Na verdade,
eles eram, e sempre foram, os questionados, os alunos, os julgados, os testados,
os controlados, aqueles que sofrem a ação, os conhecidos, não os conhecedores.
Eles sempre tiveram esse papel porque eles são criaturas. Deus, em todos os
momentos da vida deles, sempre os testou, não vice-versa. Aqui, Cristo apenas
levantou por um momento a cortina da ignorância humana para que, pela
primeira vez, todos pudessem entender de forma clara o que estivera
acontecendo o tempo todo.
Nenhuma técnica pode realizar essa guinada epistemológica radical.
Apenas a presença real de Cristo pode. Por isso, nenhum homem consegue
imitar com sucesso os métodos dele. Por isso, ninguém consegue ser bem-
sucedido em imaginá-lo como personagem de cção. Nunca foi escrita uma
cção convincente sobre o homem mais famoso da história. Contudo, já se
escreveu muita cção convincente, e ainda se escreverá muita, sobre a maioria
dos outros homens famosos da história. Eis um forte argumento, para o
Cristianismo, em favor da verdade dos Evangelhos: não é possível que Cristo
seja uma cção, pois ninguém no mundo até hoje, depois de 2.000 anos que o
conhecemos, escreveu uma cção convincente a respeito dele; se ninguém
consegue imaginar, de forma convincente, “o que Jesus faria”, enquanto
consegue calcular o que Alexandre, Buda, Sto. Agostinho, Lincoln ou
Churchill fariam, como alguns pescadores judeus de 2.000 anos atrás poderiam
escrever essa cção incrivelmente original, de criatividade sem precedentes,
baseados em nada? Esse personagem não poderia ser inventado porque Ele
continua não podendo ser inventado. Ele só pode ser real.
A forma como Jesus reverte o papel entre questionador e questionado
não pode ser posta em nenhuma fórmula, pois todas as fórmulas são universais
e, portanto, repetíveis; mas Cristo é o Filho unigênito de Deus. A forma como
Jesus reverte o papel entre questionador e questionado também não pode ser
posta em nenhuma fórmula porque todas as fórmulas são objetivas e
impessoais, mas Cristo é o Sujeito pessoal, o divino Eu Sou. Ele é bem-
sucedido de forma reiterada nas “armadilhas” preparadas simplesmente sendo
Ele mesmo, apenas por essa ser a natureza dele, da mesma forma como o sol é
bem-sucedido em sua “armadilha” de brilhar simplesmente porque brilhar é sua
natureza. A luz do sol ilumina naturalmente, sem esforço, todas as coisas, de
todos os tamanhos, formas e cores. Isso é o que a luz faz porque isso é o que a
luz é. E Cristo continua a reverter o papel porque Eu Sou é o que Ele é.
Os Evangelhos mostram várias vezes essa inversão de papéis. Nós
aprendemos pela repetição. Os sábios precisam de poucos exemplos porque são
rápidos em entender a verdade universal no exemplo particular. Quanto mais
sábios somos, de menos exemplos precisamos. Se fôssemos realmente sábios, se
tivéssemos visão espiritual de raio X, descobriríamos que Jesus é divino apenas
com essa passagem do Evangelho de João. (Na verdade, de acordo com seu
livro autobiográ co Ben Israel [Filho de Israel], aconteceu exatamente isso com
Arthur Katz.)
Jesus, após livrar-se da condenação dos mestres da lei e dos fariseus,
liberta a mulher acusada: “Eu também não a condeno.” Ele não dá
continuidade à acusação dos mestres da lei e dos fariseus contra ela; ao
contrário, impede-a e, em vez de condená-la, liberta-a. Eles queriam prendê-lo
e também a ela, na armadilha lógica que armaram; mas, em vez disso, Ele a
liberta e também a si mesmo. O trabalho deles é prender; o dele, libertar. Pois
Ele é a verdade, e “a verdade os libertará” (João 8:32).
Uma vez que Deus existe, nada acontece por acaso. E já que nada
acontece por acaso, não foi por acaso que Deus permitiu que essa passagem
fosse inserida no Evangelho de João. A passagem não se refere apenas a essa
mulher, mas a todos nós. Todos nós cometemos adultério contra Deus. E ao
lermos essa passagem, nós é que somos testados — não apenas pela Lei de
Deus contra o adultério físico e espiritual, mas também pela própria história
que nos testa ao perguntar que trabalho estamos fazendo — o de Cristo ou o
dos fariseus? Podemos ter a esperança, enquanto lemos essa passagem, de
permanecer espectadores que julgam o espetáculo da arquibancada, mas não
podemos fazer isso. Somos jogados na situação; não estamos julgando a
situação, mas sendo julgados. Na verdade, estamos sempre sendo julgados, não
pela Lei, mas por Cristo. Ele sempre é o Sujeito que julga, que tem
conhecimento; e a nós somos sempre o objeto julgado, conhecido. Nossa
verdade é a nossa conformidade ao conhecimento dele.
Pois Deus não descobre a verdade, como nós fazemos. Ele a decreta, Ele
a cria. Nós, em parte, também fazemos isso nas artes criativas. Nelas, fazemos a
verdade; no mais, a descobrimos. É verdade que os elfos são pequenos e
travessos no mundo de Sonhos de uma noite de verão, pois Shakespeare os fez
assim; e é verdade que os elfos são altos e imponentes em O senhor dos anéis,
pois Tolkien os fez assim. A Criação (o universo) é a arte de Deus e a ciência do
homem. O que é objetivo para nós (por exemplo, tigres) é subjetivo para Deus.
Primeiro, Ele inventa os tigres, então nós os descobrimos; da mesma forma que
primeiro Tolkien inventa os hobbits, depois, nós os descobrimos. Quando
descobrimos a verdade a respeito da Criação, estamos lendo os pensamentos do
Criador.
O que essa verdade teológica tem a ver com João 8? Ela é o fundamento
para Cristo libertar a mulher pega em adultério. Pois Cristo não é criatura, mas
o Criador. Nas palavras do Credo Niceno, ele é “gerado, não feito;
consubstancial com o Pai. A mulher recebeu a compensação prática desse
mistério teológico; e nós também. Cristo não está passivamente preso pela
verdade, como nós estamos; Cristo libera ativamente a verdade, como Deus o
faz. Cristo não é cientista, mas artista.
Apenas conecte estes três versículos, e você perceberá isto: (1) Eu sou [...]
a verdade (João 14:6); (2) A verdade vos libertará (João 8:32); (3) Portanto, se
o Filho vos libertar, vocês de fato serão livres (João 8:36).
Mas essa é apenas metade da história, e gostamos de esquecer a outra
metade dela. Cristo não diz apenas: “Eu também não a condeno”; Ele
acrescenta: “Abandone sua vida de pecado”. As duas partes são igualmente
necessárias em sua obra de libertação, como a fé e as obras (obras de amor) o
são na salvação. Lembre-se, a profecia não diz: Ele receberá o nome de Jesus
[Salvador ou o Senhor salva] porque Ele salvará o seu povo da punição por
causa do pecado; e sim: Você deverá dar-lhe o nome de Jesus, porque Ele
salvará o seu povo dos seus pecados. Dizer: “Eu também não a condeno”, sem
acrescentar: “Abandone sua vida de pecado”, seria uma obra de
aprisionamento, não de libertação; da mesma forma que, como zeram os
mestres da lei e os fariseus, dizer: “Abandone sua vida de pecado”, sem
acrescentar: “Eu também não a condeno”, é algo que prende, em vez de
libertar. Pois o pecado nos aprisiona da mesma forma que, com certeza, não
perdoar o faz. Todo aquele que vive pecando é escravo do pecado (João 8:34).
Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna
em Cristo Jesus, nosso Senhor (Romanos 6:23).
O pecado é como a droga. São necessárias duas coisas para se libertar do
vício de alguma droga: alguém tem de amá-lo ternamente o bastante para
libertá-lo, e alguém tem de amá-lo de forma dura o bastante para exigir que
você permaneça livre do vício. Essa é a obra dupla do Salvador. Os teólogos, às
vezes, chamam-na de justi cação e santi cação. As duas coisas não podem ser
separadas. Separar a delicada urdidura e a resistente trama dessa vestimenta sem
costura representa des á-la e destruí-la completamente. Contrapor ternura
liberal com obstinação conservadora, ou vice-versa, não é nada mais que um
novo aprisionamento, um novo dilema como o que os fariseus apresentaram
para Jesus.
Mas Jesus, como escapou do dilema dos fariseus, também escapa do
nosso dilema. Ele escapa de todas as nossas redes, pois não é peixe, mas o
Pescador, “o pescador de homens”, e nós somos seus peixes. Ser pego em sua
rede é ser libertado, pois sua rede é a verdade.
Por isso, no mesmo capítulo, Ele, após libertar a mulher, interpreta o que
acabara de fazer ao nos contar que a verdade os libertará (v. 32). Mas a verdade
libertou a mulher? Não era verdade que ela tinha cometido adultério? Como
essa verdade podia libertá-la?
Temos di culdade em entender como essa verdade pode libertá-la
porque pensamos na verdade como algo abstrato e impessoal; como um
princípio geral (por exemplo, adultério é pecado) ou como um fato especí co
(por exemplo, ela cometeu adultério). Ambos, o princípio geral e o fato
especí co, são expressos em proposições, sentenças, a rmações. Isso é verdade
proposicional.
Não jogarei aqui o popular jogo de cartas de descartar a verdade
proposicional. Pois esta é preciosa e é serva de Cristo, não sua inimiga. Por isso,
até mesmo a verdade proposicional, a verdade abstrata e a verdade losó ca
podem ser libertadoras.
A loso a de Sócrates, por exemplo, liberta-nos de muita ignorância, em
especial da nossa ignorância a respeito da nossa ignorância. Mas ela não nos
liberta de toda a ignorância. Ela nos conta muito a respeito de nós mesmos,
mas muito pouco sobre Deus.
E as proposições da boa psicologia podem nos libertar de muito
autoengano; mas não de todos. Na verdade, pensar que ela faz isso é o maior
dos autoenganos.
E as proposições da ciência, lha da loso a, e da tecnologia, neta dela,
podem nos libertar de muita ignorância em relação à natureza e de muita dor e
muito sofrimento por meio da conquista da natureza; mas podemos apenas
adiar, não derrotar, o trunfo da natureza: a morte.
As verdades da ciência aumentam nossa liberdade. Por exemplo, somos
livres para escapar da gravidade da terra e viajar pelo ar ou espaço apenas por
causa das verdades proposicionais da física e da matemática. Mas não podemos
nos libertar completamente da gravidade, pois ela está em nossa essência
enquanto criaturas feitas de matéria. Em algum momento, o que sobe tem de
descer. Nenhum conhecimento da verdade proposicional abstrata pode nos
livrar disso.
Mas Jesus pode. Ele torna possível escapar para sempre da gravidade da
terra, subir para o Céu, não descer para o Inferno. Ele levanta nosso corpo da
sepultura; e nossa alma dos nossos pecados.
Como Ele consegue fazer isso? Porque Ele é a verdade, e a verdade vos
libertará, e se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres (João 8:36).
Essa é a epistemologia encarnada e, portanto, fortalecida. Ele é a palavra
poderosa, pois é a Palavra de Deus. Ele tem poder para libertar a mulher
porque tem poder para criar o universo. Ele é a Palavra do Pai pronunciada
para criar o universo (Gênesis 1:2). Ele não é apenas a palavra “com
autoridade”, mas a “palavra poderosa” (Lucas 4:32; Hebreus 1:3). Ele não copia
meramente o que é quando fala, Ele cria o que é. Quando Ele, no túmulo de
Lázaro, diz: “Lázaro, venha para fora!”, até mesmo a morte o obedece.
Ele é a Palavra de Deus no singular porque Ele é absolutamente singular.
Ele não é a palavra sobre Deus, nem a última palavra sobre Deus, mas, sim, a
Palavra de Deus. Ele não é sobre nada mais, tudo o mais é sobre Ele. Tudo no
universo e tudo na Bíblia é um dedo apontando para Ele. Ele é o m da
epistemologia.

*
Como conhecemos Deus? Uma forma indispensável para obter esse
conhecimento é a oração. E se a oração pretende alcançar o Pai, chega a Ele,
quer tenhamos consciência quer não, quer saibamos quer não, por intermédio
do Filho. Portanto, Jesus, aqui também, é o caminho para conhecer Deus.
Conhecer pessoas requer palavras. Como Julieta conheceria Romeu se
nunca trocassem palavras entre si? E como você poderia conhecer Deus, se Ele
não tivesse falado com você por intermédio da Sua Palavra inspirada e escrita e,
acima de tudo, pela Palavra encarnada, e se você não falasse com Ele por meio
da oração? O amor precisa de palavras como também de música, pois o amor
canta.
Assim, a oração é necessária para conhecer Deus (como algo distinto de
ter conhecimento sobre Deus). Mas a oração não é a necessidade exigida por
uma obrigação, entre tantas outras, como ajustar uma peça no acolchoado de
retalhos. Na oração, lidamos com Deus, o fogo ardente, resplandecente e
explosivo existente no cerne de toda bondade, beleza e vida. Orar é mais
semelhante a se atirar em um vulcão que a encaixar uma peça no quebra-
cabeça. Orar é uma questão de justiça, mas é muito mais que isso: é uma
questão de amor. Orar não é apenas dar a Deus o que lhe é devido, realizar sua
obrigação moral, ajeitar alguma coisa; orar é tocar o corpo do Deus cujo amor,
na forma de sangue humano, transborda de cinco feridas.
III
A ANTROPOLOGIA DE JESUS
A terceira grande pergunta da loso a é a do questionador, a questão do
homem. A posição natural dela é a terceira, pois, após meditar a respeito da
realidade (metafísica), nós naturalmente pensamos sobre o pensamento
(epistemologia) e, depois, a respeito dos pensadores, de nós mesmos
(antropologia).
Porém, existe um “mas”. Essa divisão da loso a é muito mais
interessante que a metafísica e a epistemologia; todavia, apesar de todo intenso
interesse, tempo, energia e livros dedicados a essa busca; a despeito do fato de
que mais da metade de todos os livros sobre todas as ciências vendidos hoje nas
livrarias serem sobre algum aspecto da psicologia, não há ciência na qual haja
menos concordância, menos certeza e menos garantia de que agora sabemos o
que costumávamos não saber. Parece que, como resultado de todo esse
escrutínio moderno do “eu”, nos conhecemos menos bem que antes. Quanto
mais olhamos, menos enxergamos. Acontece exatamente o contrário em relação
ao mundo exterior. Hoje, entendemos os mistérios da origem do universo, 15
bilhões de anos atrás, ou as forças que mantêm as galáxias girando há trilhões
de anos-luz de distância melhor do que entendemos a nós mesmos. Na aurora
da loso a, Sócrates disse: “Conhece-te a ti mesmo.” Contudo, “conhecer a si
mesmo” parece um quebra-cabeça insolúvel, um koan. Nós não conseguimos
conhecer a nós mesmos; no entanto, devemos conhecer a nós mesmos.
O que isso tem a ver com Jesus, ou Jesus, com isso? Nas palavras, muito
repetidas, de João Paulo II: “Só Jesus mostra o homem a si mesmo.” Uma vez
que Jesus é perfeitamente Deus e perfeitamente homem, Ele revela
perfeitamente a Deus e ao homem. Jesus é a solução do koan.
Mas a resposta é apenas tão relevante quanto a questão. Precisamos
entender por que essa questão é um koan para poder valorizar a singularidade
de Jesus ser a solução para ela.
“Conhece-te a ti mesmo” parece ser um koan insolúvel. E é. Não
conseguimos resolver esse problema porque ele, de forma alguma, é um
problema; ele é um mistério (para usar a útil distinção de Gabriel Marcel):
estamos envolvidos nele, e não distanciados dele. Esse problema “transgride
seus próprios dados”. Não podemos resolver esse problema porque nós somos
esse problema. Da mesma forma que o olho pode ver um objeto, mas não a si
mesmo, a mente pode conhecer qual-quer objeto, mas não a si mesma, porque
ela não é um objeto.
Quando olhamos para nós mesmos, fazemos isso da nossa própria
maneira. Ficamos na nossa própria luz e produzimos nossa própria sombra.
Assim, nos identi camos com nossa sombra, a sombra que produzimos ou a
imagem de nós mesmos que lançamos no espelho. Mas isso não é o “eu”, é uma
imagem ou sombra do “eu”.
Somos espectadores em uma peça cuja exata presença e olhar afetam e
alteram os atores e a peça. Pois não somos só os espectadores, também somos
os atores. Na ciência, isso se chama “efeito observador”: alteramos as coisas
observadas por meio do próprio ato de observá-las. Quer esse princípio se
aplique às partículas subatômicas quer não, ele certamente aplica-se a nós. Pois
só nós no universo somos sujeitos, não objetos. No homem, o universo atinge,
pela primeira vez, a autoconsciência. Nós somos “eus”, sujeitos, quens, não
coisas, objetos, o quês. Como transformamos um sujeito capaz de conhecer em
um objeto de conhecimento? Como o arqueiro pode se transformar em seu
próprio alvo? Como o eu pode se transformar em isso sem deixar de ser eu?
Com certeza, ele não pode. E, com certeza, ele deve. Não conseguimos
conhecer a nós mesmos, mas devemos. Esse é o nosso koan. Precisamos
conhecer a nós mesmos porque se não zermos isso, então não saberemos de
forma alguma quem é que está conhecendo qualquer outra coisa. Se não
assinalarmos a impressionantemente grande conta bancária do nosso
conhecimento, nós não possuiremos nenhum tostão furado.
No zen-budismo, o koan é um enigma; em princípio, não solucionável
pelo pensamento comum, racional. O propósito dele é acabar com o
pensamento comum, ou adormecê-lo, a m de libertar a “mente de Buda”, que
consideram não ter o dualismo sujeito-objeto. O despertar repentino desse tipo
radicalmente novo de pensamento é “Iluminação”, ou satori, a versão zen de
nirvana (“extinguir” a vela do pensamento comum).
Não acredito nesse objetivo budista, pois, como cristão, creio em Deus e
na Criação e, portanto, na realidade do dualismo sujeito-objeto para o qual o
budismo busca a superação. O universo todo é objetivo para Deus. O dualismo
sujeito-objeto, o dualismo eu-isso que o budismo tenta superar é, na verdade, o
dualismo Criador-criatura, uma vez que o nome do Criador é “Eu Sou”, e suas
criaturas são seus objetos. Existe outro dualismo sujeito-objeto que o budismo
nega: o dualismo entre os objetos do universo e nós, sujeitos humanos, que
carregamos a imagem de Deus e, por essa razão, também somos “eus” ou
sujeitos. As duas coisas que Cristo revela para o homem, Deus e o homem, os
dois sujeitos, são as duas coisas que o budismo nega.
No entanto, embora não acredite na resposta budista, acredito na
profundidade da pergunta budista e no poder do koan de transformar a
consciência. Acredito também que Deus estabeleceu um koan para nós ao nos
dar uma curiosidade insaciável a respeito de nós mesmos e, ao mesmo tempo,
fazer esse “eu” inacessível à curiosidade comum.
Ele nos fez à sua própria imagem como eu (sujeitos, pessoas) e, ao
mesmo tempo, isso (objetos, criaturas). Somos meta sicamente duais, duplos.
Parece que não conseguimos superar esse dualismo a não ser pela
negação da realidade de um ou dos dois de seus tentáculos: os materialistas
ocidentais reduzem a personalidade a uma coisa entre as outras coisas no
mundo, enquanto o misticismo oriental reduz a realidade objetiva das coisas,
incluindo nossa própria nita coisi cação, à consciência, ao espírito, ou à
“mente de Buda” ou Brâman (“você é aquilo”).
Ao longo das eras, nossos mais brilhantes lósofos lançam-se a um ou a
outro desses dois erros clássicos na antropologia: ou o materialismo natural ou
o panteísmo espiritual; ou confundir o homem com as coisas ou com Deus.
Incrível! Nossos maiores lósofos, nossos maiores conhecedores não conhecem
a si mesmos bem o bastante para evitar confundir a própria essência deles com
o que não são!
E quando nossos lósofos evitam os dois erros extremos do materialismo
e do panteísmo, ainda caem em uma forma modi cada de um ou do outro:
animalismo ou angelismo. Quando não nos confundem com a matéria ou com
Deus, eles nos confundem com os animais ou com os anjos. Empiristas,
positivistas, pragmatistas e secularistas cam escandalizados com a alma, o
sobrenatural, os milagres, o Céu e as verdades universais abstratas. Esses são
animalistas. Platônicos, gnósticos, cartesianos, adeptos da Nova Era e os que,
em sua religião, buscam “espiritualidade”, em vez de santidade, são angelistas.
Eles cam escandalizados com o corpo, o natural, a Encarnação, os
sacramentos, a Igreja visível e o concreto.
Cristo é a resposta para esse dilema. Ele é a refutação de nitiva dos dois
erros (pois, lembre-se, Cristo nos revela perfeitamente não só o perfeito Deus,
mas também o perfeito homem). Cristo não só é o perfeito antropólogo, mas
também é o perfeito anthropos. Ele é a essência da antropologia. Ele é homem
como o homem é planejado para ser. Ele não é uma anomalia, nós somos a
anomalia. O maior lósofo antropólogo moderno foi o papa João Paulo II. A
antropologia era a essência de sua loso a, e Cristo era o cerne de sua
antropologia. Ele sempre repetia: “Cristo é o sentido do homem.” E, por essa
razão, “na verdade, só no mistério da Palavra feita carne é que o mistério do
homem realmente ca claro”. João Paulo amava citar essa sentença do
documento Vaticano II (veja Catecismo da Igreja Católica [doravante designado
pela sigla CIC], 359). O que não conseguimos entender em nossas loso as,
psicologias e antropologias a respeito de nós mesmos, entendemos em Cristo:
nosso próprio sentido e destino. Ele é um espelho raio X; quando olhamos para
Ele, vemos nosso âmago.
Cristo é a resposta para a pergunta: qual é o sentido da vida humana?
Quem somos destinados a ser? A resposta é que estamos destinados a ser
pequenos Cristos. O sentido da vida é ser Cristo. A resposta à principal
pergunta da antropologia não é um ideal abstrato, mas um fato concreto,
consumado. O sentido do homem é um homem, esse homem.
O Antigo Testamento informa-nos que fomos criados por Deus e à
imagem dele (Gênesis 1:26,27), mas só o Novo Testamento mostra-nos de
forma completa o que é essa imagem: ela é Cristo. É a isso, não a um vago
humanismo, que Inácio de Loyola se refere ao dizer que “a glória de Deus é um
homem totalmente vivo”. (Todos jesuítas, nota bene, por favor!) “Um homem
totalmente vivo” quer dizer “um pequeno Cristo”.
Como não percebemos isso? Só porque mais da metade do tempo
estamos mais que meio adormecidos. Diversas passagens do Novo Testamento
a rmam essa verdade de forma rme e clara. Por exemplo, Romanos 8:29:
“Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a m de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos.” Ou 1 Coríntios 15:49: “Assim como tivemos a imagem do
homem terreno, teremos também a imagem do homem celestial.” Ou 2 Pedro
1:4: “Ele nos deu as suas grandiosas e preciosas promessas, para que por elas
vocês se tornassem participantes da natureza divina.”
Existe ainda uma segunda razão por que precisamos da revelação divina
de Cristo para conhecer a nós mesmos: “Sem o conhecimento de Deus
concedido pela revelação, não podemos reconhecer de forma clara o pecado e
somos tentados a explicá-lo como mera falha de desenvolvimento, fraqueza
psicológica, engano ou a consequência necessária de uma estrutura social
inadequada” (CIC 389). Cristo nos ensina como somos anormais ao sermos o
padrão ideal. Se deixarmos que Ele nos julgue, em vez de julgá-lo,
perceberemos que nosso “normal” realmente é anormal. Esta é a pergunta
epistemológica crucial da antropologia: nós julgamos a Cristo ou Ele nos julga?
Sem conhecermos Cristo e, assim, sem conhecermos nossa
“anormalidade”, caímos no erro fundamental do “normalismo”. Toda
psicologia, sociologia e antropologia secular é fundamentalmente oblíqua em
seu próprio fundamento, pois assume, de forma errônea, que seu objeto de
estudo, o homem, está em seu estado natural. Todos os dados dessas ciências
são suas observações de comportamento humano “normal”, da mesma forma
que todos os dados da física ou da astronomia têm origem na observação de
como a matéria se comporta naturalmente. Apenas imagine a mudança radical
que acarretaria à física, se os físicos viessem a acreditar que a gravidade não é,
de modo algum, inerente à matéria, mas que a matéria “caiu” nessa condição
anormal em algum momento do passado. Imagine o choque astronômico
radical que aconteceria, se os astrônomos viessem a acreditar que as estrelas só
começaram a brilhar em algum ponto do passado chamado “Queda”. A
doutrina da Queda do Cristianismo, em sua mais básica interpretação da
história humana, na qual os três grandes eventos de nidores são a Criação, a
Queda e a Redenção, revela um choque dessa magnitude na antropologia.
O cristianismo acrescenta dois homens à sua base de dados que a
antropologia secular não conhece: Adão e Cristo, os únicos dois homens
inocentes que já viveram, e o cristianismo julga os homens caídos por esse
padrão. Sem esse corretivo, nós, inevitavelmente, ao pensar em retrospectiva,
interpretamos de forma errônea nossa atual pecaminosidade como algo natural
e normal e, por isso, vemos a inocência e até mesmo a santidade como algo
anormal e não-natural, como algo sobre-humano, em vez de humano. Bêbados
e viciados em drogas, da mesma forma, veem as pessoas sóbrias como
anormais. Do ponto de vista moral, somos todos bêbados e viciados em drogas.
Por isso, é bastante natural para os partidários de Bill Clinton a rmarem que é
errado, e até mesmo imoral, que os críticos dele esperassem que presidentes
tivessem virtudes morais “não realistas e inatingíveis”, como delidade e
honestidade.
Esse é o erro mais fundamental da visão de homem da nossa sociedade
secular, e a raiz de todos os outros enganos da sociedade. “Ignorar o fato de que
o homem tem uma natureza doente, inclinada ao mal, gera graves erros nas
áreas da educação, política, ação social e moral” (CIC 401). O “liberalismo”
secular (termo enganoso, pois ele não é realmente libertador), em todas essas
quatro áreas, nega a realidade do pecado pessoal e acha que o homem é um pé
de alface, não uma batata. (A alface apodrece de fora para dentro; a batata, de
dentro para fora.) Por essa razão, a solução deles sempre é uma “solução alface”:
façamos isso ou aquilo, melhoremos o ambiente social, coloquemos algum
dinheiro nas estruturas sociais ou condicionemos as pessoas com uma educação
melhor. Eles são como os fariseus que limpam o exterior, mas ignoram a
podridão interior (Mateus 23:25,26). Alguém de niu o liberal como aquele
que exige o direito de respirar ar puro para que possa proferir palavras sujas.
A única forma de corrigir essa perspectiva distorcida é encontrar o
verdadeiro ponto de referência. Mas não conseguimos! “Médico, cure-se.”
Somos o aleijado do comercial: “Caí e não consigo levantar.” Não podemos
voltar para o paraíso. As palavras da canção estão muitíssimo erradas: “E os
cavaleiros não nos pararão, pois a única droga que encontrarão é o paraíso.”
Não, os cavaleiros (os policiais) nos pararão porque encontrarão todas as outras
drogas, menos essa.
Não podemos voltar para o paraíso a m de ver o Adão não caído.
“Vemos, todavia, [...] Jesus” (Hebreus 2:9). Cristo é o nosso novo dado para a
antropologia. Cristo é nosso padrão ou norma.
Sem esse dado, somos como o cachorro no aeroporto, em uma gaiola,
que mastigou a etiqueta de identi cação para não saber seu verdadeiro nome, o
nome do seu dono nem onde mora. Ele não sabe de onde veio, quem é nem
para onde deve ir.
“Sem Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido da vida, da morte,
de Deus e de nós mesmos” (Pascal). Só com Cristo conseguimos essas quatro
informações cruciais. Nosso verdadeiro nome é “irmão de Cristo, lho adotado
de Deus”. Temos de guardar essa placa de identi cação, acariciá-la, viver por
ela, lembrar-nos dela, lê-la sempre. A placa é Cristo. Cristo é a chave para a
antropologia.
Mas como podemos nos tornar Cristos? Esse não é outro koan
impossível de solucionar? Temos de nos tornar Cristos, mas não podemos.
Nem todas as nossas orações, os nossos soluços e as nossas lágrimas, nem todo
o amor, os pensamentos, as obras e as experiências místicas podem fazer isso.
Nós simplesmente não podemos nos tornar Cristos. Para fazer isso temos de
nos transformar em outra pessoa. Temos de “nascer de novo”. De todas as
imagens de transformação de todos os professores do mundo, a imagem de
Jesus aqui (em João 3) destaca-se como a mais radical de todas. É tão radical
que Nicodemos argumentou que isso era simplesmente impossível: “Como
pode ser isso?”

Havia um fariseu chamado Nicodemos, uma autoridade entre os judeus.


Ele veio a Jesus, à noite, e disse: “Mestre, sabemos que ensinas da parte de Deus,
pois ninguém pode realizar os sinais miraculosos que estás fazendo, se Deus não
estiver com ele”. Em resposta, Jesus declarou: “Digo-lhe a verdade: Ninguém pode
ver o Reino de Deus, se não nascer de novo.” Perguntou Nicodemos: “Como alguém
pode nascer, sendo velho? É claro que não pode entrar pela segunda vez no ventre de
sua mãe e renascer!” Respondeu Jesus:
“Digo-lhe a verdade: Ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nascer da
água e do Espírito. O que nasce da carne é carne, mas o que nasce do Espírito é
espírito. Não se surpreenda pelo fato de eu ter dito: É necessário que vocês nasçam
de novo. O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem
nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito”. Perguntou
Nicodemos: “Como pode ser isso?” Disse Jesus: “Você é mestre em Israel e não
entende essas coisas?” (João 3:1-10)

Nicodemos procurou Jesus com duas perguntas em mente: a respeito do


Messias e do “Reino de Deus”. De acordo com os profetas, o Messias realizaria
esse Reino na terra, e Jesus pregara sobre o Reino; portanto, Ele era o Messias
ou não? E se era, como podemos entrar nesse “Reino de Deus”?
Parece que Nicodemos tinha preparado um pequeno discurso de lisonjas.
Ele iniciou, de forma polida e indireta, com uma palavra de louvor pelos
milagres (“sinais”) realizados por Jesus: “Mestre, sabemos que ensinas da parte
de Deus, pois ninguém pode realizar os sinais miraculosos que estás fazendo, se
Deus não estiver com ele.” Essa foi uma forma polida e indireta de perguntar:
você é o Messias? Provavelmente, Nicodemos gastaria mais cinco minutos de
elogios para chegar à segunda pergunta, a de teor prático, a pergunta “crucial”
sobre como entrar nesse Reino de Deus. Mas Jesus corta a parte dos elogios e
responde diretamente ao questionamento que repousa no coração de
Nicodemos sem esperar que a pergunta a ore aos seus lábios: “Digo-lhe a
verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo.”
Nicodemos ca chocado. Jesus surpreende três tipos diferentes de
pessoas, e, assim, revela três tipos de choques distintos em relação a Ele. Tudo é
relativo para Jesus. Ele é o melhor padrão para julgar qualquer coisa, incluindo
as pessoas e seus choques. Na verdade, esses choques são um indício para uma
antropologia básica, uma classi cação básica das pessoas em três categorias.
Pascal de ne essas três classes desta forma: “Existem apenas três tipos de
pessoas: as que buscam a Deus e o encontram — estas são razoáveis e felizes; as
que estão buscando a Deus, mas ainda não o encontraram — estas são
razoáveis e infelizes; e as que nunca buscam a Deus nem o encontram — estas
são insensatas e infelizes” (Pensamentos, p. 160). Jesus choca seus discípulos,
que o encontraram, de um jeito. Ele choca Nicodemos, que está à procura de
Deus, mas ainda não o encontrou, de outro jeito. E ele choca seus inimigos,
que nunca buscam nem encontram, de um terceiro jeito.
Os que se tornaram seus discípulos e “nasceram de novo” do Espírito
tinham a mesma habilidade de chocar o mundo que Jesus tinha. É um poder
invisível como o vento, um poder que pode destruir todo um império pagão, o
maior da história mundial, como um furacão pode destruir uma oresta. Por
isso, o mundo se referia aos seus discípulos como “Esses homens, que têm
causado alvoroço por todo o mundo” (Atos 17:6).
Nicodemos pede para Jesus explicar essa imagem chocante que Ele
apresentou. Sem dúvida, Ele não se referia a nascer de novo no sentido literal,
pois seria uma impossibilidade física. Nem se referia à reencarnação, na qual
nenhum judeu acreditava, pois implicaria que o indivíduo não é a única
criatura criada à imagem de Deus, um “eu” nito que é singularmente
individual, em sua forma nita, como Deus, o in nito “Eu Sou”. Por isso,
Nicodemos acredita que a imagem apresentada por Jesus é mais gura de
expressão, um exagero retórico. Mas ele se pergunta: qual é o sentido literal
disso?
A interpretação que Jesus apresenta da imagem é ainda mais chocante
que a imagem inicial. A interpretação não diminui a força da imagem (“É
apenas uma imagem”), mas repete-a na fórmula rabínica: “Digo-lhe a verdade”;
que quer dizer: “Você deve interpretar essas palavras no sentido mais forte
possível, não no mais frágil. Ela é mais que literalmente verdade, não menos.”
A seguir, Ele acrescenta uma explicação: a identidade dos pais; eles não
são a mãe terra e a matéria, mas o Espírito de Deus Pai e a água do batismo:
“Ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nascer da água e do Espírito.”
Portanto, esse renascimento é espiritual, não físico. Mas esse fato não o
torna meramente simbólico, menos real, uma simples imagem. Ao contrário, o
Espírito é mais real, mais sólido e substancial que a carne perecível. Assim, o
nascimento espiritual é mais sólido e substancialmente mais real que o
nascimento físico.
Depois, Jesus compara o nascimento físico e o espiritual ao explicar que,
nos dois casos, o lho é parecido com os pais: “O que nasce da carne é carne,
mas o que nasce do Espírito é espírito.” Isso é chocante, embora totalmente
razoável. Contudo, Jesus, vendo a expressão de incompreensão de Nicodemos,
acrescenta de forma irônica: “Você é mestre em Israel [mestre dos mistérios
revelados de Deus] e não entende essas coisas? [O nascer de novo é todo o
ponto e propósito de Israel].”
A seguir, Ele compara essa coisa desconhecida com uma conhecida, o
vento. O vento é um símbolo natural para o Espírito. A mesma palavra em
hebraico (ruah’ ) e em grego (pneuma) quer dizer “espírito”, “vento” e “sopro de
vida”. O vento é bastante invisível, mas bastante real. E embora a origem do
vento seja tão invisível quanto o próprio vento, seus efeitos não são invisíveis; e
podem ser radicais. O vento forte pode derrubar casas e árvores. O mesmo é
verdade em relação ao vento do Espírito: ele pode derrubar o maior reino deste
mundo, o universal (“católico”) Império Romano e erigir outro reino, que “não
é deste mundo”: a universal (“católica”) Igreja Romana.
Você não vê o vento, mas pode ver que há vento ao ver os efeitos dele, ao
ler, por assim dizer, as pegadas do vento. A não ser, é claro, que você esteja
hipnotizado pela idiotice moderna do materialismo, a falácia de que as árvores
fazem o vento, de que coisas visíveis causam as invisíveis, e não vice-versa.
Costumamos pensar que o invisível é abstrato e impessoal, como um
conjunto de ideias ou ideais, palavras ou princípios. E pensamos que apenas as
coisas visíveis são concretamente ativas, vivas e perigosas, como tigres, câncer
ou cirurgiões. Contudo, o Espírito de Deus é muito mais ativo e impetuoso
que as coisas visíveis, além de ser o agente supremo na concepção de todos os
bebês e também em toda conversão. O Espírito Santo não é “isso”, mas “Ele”:
uma Pessoa, não uma Força. Ele é tão perturbadoramente real e revolucionário
quanto o furacão.
E Jesus o envia para todos que abrem a porta do coração para Ele. E se
você abrir sua porta para o vento, ele modi ca de forma radical a mobília da
sua casa.
Assim, a imagem de “nascer de novo” não é forte demais, mas fraca
demais. A diferença entre nascer de novo e não nascer de novo é ainda mais
radical que a diferença entre nascer e não nascer. Pois a diferença entre nascer e
não-nascer é a diferença entre ser temporal e não-ser temporal neste mundo;
mas a diferença entre nascer de novo e não nascer de novo é a diferença entre
ser eterno e não-ser eterno. Céu e Inferno. É uma diferença absoluta, como a
diferença entre estar grávida e não estar. Não é uma diferença relativa, como a
diferença entre ser muito bom e ser muito mau. Não é apenas um acréscimo ou
melhoria na sua vida; é a própria vida. Não é a diferença entre mais e menos
vida, ou entre vida boa e má, mas entre vida e morte. Por essa razão, o nascer
de novo não é realizado por se esforçar um pouco mais ou muitíssimo mais,
nem por ser muito bom, sincero ou agradável. O nascer de novo é uma dádiva
da mesma forma que a nova vida física é uma dádiva. É a dádiva de um novo
ser. É a transição do não-ser para o ser. É um ato de criação. Só Deus pode criar
(bara’).
Mas Deus, para fazer isso, para nos fecundar com sua nova vida, precisa
estar de fato tão presente para nós como o homem está para a mulher para
fecundá-la. Não existe gravidez via e-mail. Você não pode engravidar apenas
por pensar nisso nem por uma “transformação da consciência”, por mais
profunda que ela seja. O corpo da mulher só pode ser fecundado com a vida
humana pela presença real de um homem dentro do seu corpo, e sua alma só
pode ser fecundada com a vida divina pela presença real de Deus na sua alma.
E Jesus é essa presença de Deus para o homem. Ele esteve, por 33 anos,
visivelmente presente em seu corpo humano individual em Israel do século I,
mas Ele está, de fato, tão presente, embora de forma invisível, no corpo da sua
Igreja universal, o “corpo místico de Cristo”, pelo resto da história e em todo o
mundo. A Igreja é “a extensão da Encarnação”. Por isso, a Igreja não só ensina
em nome de Jesus e com sua autoridade, mas também batiza em seu nome,
perdoa os pecados em seu nome, oferece a Eucaristia em seu nome e a presença
real.
Isso não é opcional. Esse é o caminho. A não ser que nasça de novo, você
não pode entrar no Reino de Deus. A não ser que seja fecundado por Deus,
você não pode ir para o céu. Isso não é fundamentalismo dos Batistas do Sul, é
o cristianismo de Jesus de Nazaré.
Todavia, muitos de nós, como Nicodemos, ainda não entendemos isso.
Deixamos escapar o cerne e a essência de todo esse negócio de religião.
Achamos que a religião diz respeito a pensar diferente, crer diferente, avaliar
diferente e agir diferente; e esquecemos que a raiz de todas essas coisas é ser
diferente. Cristo não veio apenas para nos dar novos pensamentos e valores,
mas um novo ser.
Da mesma forma que muitos de nós, como Nicodemos, não
apreendemos a essência da religião, muitos de nós não apreendemos o cerne da
nalidade do sexo. Da mesma forma que o principal ponto e propósito da
religião é a Criação (a Criação de um ser novo, divino), o principal ponto e
propósito do sexo é a procriação. Mas transformamos a gravidez em um
“acidente”! Isso é a mesma coisa que aceitar a religião, a fé, o credo, a igreja, os
sacramentos e todo o pacote e, depois, chamar nossa entrada no Céu de
acidente! Ou a mesma coisa que comer alimento saudável e chamar a saúde do
nosso corpo de acidente. Não somos apenas obtusos, somos deformados!
Quando Jesus disse a Nicodemos: “Ninguém pode ver o Reino de Deus,
se não nascer de novo”, ele cou surpreso e externou sua surpresa: “Como pode
ser isso?” Essa é uma reação cândida, honesta e humilde. Nicodemos era
fariseu, mas nem todos eles eram maus. A voz dele é muito diferente da voz
que ouvimos da maioria dos outros fariseus no Novo Testamento. Mas não
diferente da voz de todos, não é diferente da voz de Gamaliel (Atos 5:34-39)
nem da de Paulo (veja Filipenses 3:5). O espanto de Nicodemos é o espanto de
uma criança honesta, pois ele não está escondido por trás da máscara da alta
posição, da reputação nem da suposta perícia. Ele está sem máscara. Naquele
momento, Nicodemos, como Sócrates, não está preocupado com a aparência,
mas apenas com a realidade e a verdade.
A resposta de Jesus ao espanto de Nicodemos é outro tipo de espanto.
Jesus está surpreso com o espanto de Nicodemos. A reação de Jesus ao espanto
totalmente não irônico de Nicodemos é a surpresa irônica: “O que é isso? Você
é um rabino, um mestre de Israel e não sabe isso? É disso que se trata todo Israel
e todo o judaísmo.”
“Todas as leis e os profetas, todas as suas Escrituras e a história, tão cheia
de profetas, toda a Providência divina e os milagres, todo esse longo programa
de ensino divino de 2.000 anos, a começar com Abraão; na verdade, todas as
alianças, a começar com Adão e Noé, foram feitas por isso. Esse é o m que
meu Pai tinha em mente quando escolheu Israel. Ele o escolheu para ser o
ventre para dar à luz o segundo nascimento da humanidade. Essa era a
intenção dele desde o princípio, desde a Criação do universo. Esse é o ponto de
tudo, das estrelas e galáxias, da evolução geológica e biológica. O mais alto
propósito do universo material que Ele criou é suprir a terra, da qual Ele
formou a raça humana (Gênesis 2:7), para ser o ventre do primeiro nascimento
físico da raça humana. Esse foi o ventre que Ele designou para dar à luz o
ventre das mulheres dos quais, por sua vez, nascerão novos homens e mulheres,
novas pessoas, com almas imortais, feitas à imagem dele. Este foi o principal
motivo da Criação do universo: as pessoas. Você acha que Deus se importa
com gases e galáxias? Eles foram apenas a preparação, a preliminar, a placenta
para as pessoas. As pessoas são o motivo do universo. O universo foi criado
para carregar ‘pessoas’ como o ramo foi feito para carregar as ores.”
“E o objetivo de Israel, nessa humanidade, é ser o segundo ventre, o
ventre dentro do ventre do mundo. E o ponto e o produto máximos desse
ventre escolhido é o Messias, e este, neste momento, fala face a face com você.
Eu sou todo o sentido de Israel, e você, o mestre de Israel, não me conhece.
Que ironia!”
“E em Israel existe um terceiro ventre, o de minha mãe. Nela, toda a
nação de Israel chega a um único e decisivo ponto: uma jovem virgem
ajoelhada para orar é abordada por um anjo, e este prende a respiração à espera
de saber se a porta escolhida para eu entrar na humanidade e na salvação desta
se abriria livremente ou não. E a porta se abriu. Ela disse sim. Eu sabia que ela
diria sim. Sou o único homem da história que escolheu a própria mãe.”
“Assim, o universo foi o ventre para a humanidade, a humanidade foi o
ventre para Israel, Israel foi o ventre para Maria, e Maria foi o ventre para mim.
Por isso, Maria é o ponto do universo, e eu sou o ponto desse ponto.”
Tudo isso, nem uma vírgula a menos, está implícito na declaração de
Jesus. Desvelar esse tanto levou 2.000 anos, e desvelar tudo levará mais milhares
de anos — não: levará a eternidade. A Igreja apenas começou a desempacotar
sua mala santa, seu “depósito de fé”. Da perspectiva do ano 5000 d.C., nós
seremos “os cristãos primitivos”.
A cada estágio do desígnio de Deus, o Espírito tem um papel
fundamental. O Espírito soprou ordem no caos (Gênesis 1:2) e vida no
homem (Gênesis 2:7). Somos feitos à imagem de Deus porque temos o sopro
de Deus (Espírito). E quando des guramos a imagem dele em nós com o
pecado, a resposta de Deus foi enviar o Espírito para evocar o milagre de Israel
e para, por m, conceber Maria, sem o pecado original, no ventre de sua mãe
Ana e, depois, conceber Cristo, sem pai humano, no ventre de Maria. O
Espírito foi o alimento, a força e a sabedoria de Cristo durante toda a sua vida
terrena. E a dádiva de Cristo de si mesmo e do Espírito de seu Pai para nós foi
o ponto culminante do ministério terreno dele (veja João 16:7). A obra do
Espírito é o novo nascimento do qual Jesus fala para Nicodemos. O Espírito
cumpre a oração profética de Davi em Salmo 51: “Cria em mim um coração
puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável.” Só Deus pode criar
(bara’ ), fazer algo do nada, transpor o abismo in nito entre o não-ser e o ser.
Na concepção, Deus cria um novo espírito humano (uma alma) toda vez que o
amor físico provê um corpo receptivo; e ele cria um novo espírito, a verdadeira
participação humana na vida divina dele, toda vez que do amor espiritual e da
fé provêm uma alma receptiva. A porta para a nova vida humana natural (bios)
entrar no mundo é uma mulher dizer sim a um homem por meio da relação
sexual; a porta para a nova vida eterna sobrenatural (zoe) entrar no mundo é a
alma dizer sim a Deus pela fé, como o fez Maria. A promessa feita a Maria
também é para nós: “O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a
cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de nascer será chamado Santo,
Filho de Deus” (Lucas 1:35).
Este é o verdadeiro sentido e propósito da história; esta é a verdadeira
“breve história do tempo”: nosso novo nascimento na vida eterna, nossa
transformação em pequenos Cristos, lhos de Deus, com a natureza divina do
nosso Pai divino e também com a natureza humana de nossos pais humanos —
em suma, ter, como Cristo, duas naturezas, a humana e a divina (embora nossa
natureza divina seja só pela Graça, pela adoção e pela participação). Pois esta é
a primeira e principal dádiva dos pais para o lho: a própria natureza dos pais.
Essa dádiva é o fundamento de todas as outras: amor, tempo e educação.
E esse é o ponto da religião que Nicodemos não conhecia. Ele sabia
tudo, menos a coisa mais importante: a razão para tudo o mais que já
aconteceu e acontece. E essa razão estava sentada bem diante dele.
E está diante de nós.
IV
A ÉTICA DE JESUS
De todas as grandes perguntas da loso a que, por natureza, todos os
homens fazem em todos os tempos, lugares e culturas, a pergunta ética ou
moral é a mais necessária, a mais prática, a mais interessante, a mais pessoal, é
aquela que nos encara olho no olho e exige resposta. Como, então, devemos
viver? Qual é o maior bem, o mais alto valor, o sentido da vida? Como posso
evitar a tragédia de tirar “A” em todas as matérias, mas ser reprovado na vida?
Essa, das quatro grandes perguntas losó cas, é a que todos sabem que
tem algo a ver com Cristo. Até mesmo as pessoas que não creem na a rmação
de Ele ser o Senhor, em geral, elogiam a moralidade em sua pregação e em sua
prática. Ele é, com larga margem de vantagem, o professor da moral mais
admirada, aquele que, em todos os tempos, exerce mais in uência. Contudo, o
que é ímpar, o que é diferente, o que é novo na resposta dele à pergunta moral?
A moralidade dele não era nova. Não existe essa coisa de nova
moralidade, existem apenas novas imoralidades. Todo mundo sempre soube o
que era bom e o que era mau. Nenhum indivíduo sadio e nenhuma sociedade
sã jamais acreditaram que justiça, caridade, honestidade, autocontrole,
misericórdia, lealdade e sabedoria eram coisas ruins ou imorais, nem que
injustiça, ódio, mentira, vício, crueldade, traição e insensatez fossem boas ou
obrigações morais. A moralidade de Jesus foi apenas a or mais plena da planta
que Deus já semeara na natureza do homem, em todo coração e toda
consciência humana ao nos criar à sua imagem.
A consciência é universal. Todos os homens a têm. Em alguns, ela é
terrivelmente fraca; em outros, ela parece estar quase morta, mas nunca está
morta. O homem totalmente sem consciência não é homem, da mesma forma
que o homem sem mente alguma não é homem. (O homem com Q. I. 45 é
homem; o homem com Q. I. 0 não o é.)
Portanto, o apelo da moral de Jesus é um apelo para a consciência moral
que já existe. A terra já fora adubada. E outro semeador plantara sementes
morais naquele campo, e muitas sementes criaram raízes profundas e
germinaram vivamente, embora ninguém tenha plantado sementes tão
profundas com tão poucas palavras como Jesus o fez. É difícil que você
encontre, ao ler a tradição judaica de Jesus, algum dito moral dele, registrado
nos Evangelhos, cujo equivalente não esteja em alguma passagem das Escrituras
ou das falas dos rabinos. Boa parte dessas falas, até mesmo alguns dos pontos
mais surpreendentes a respeito de humildade, e autossacrifício, e o poder da
fraqueza, também são encontrados fora do judaísmo; em Lao Tse, Buda,
Confúcio ou Sócrates. Então, o que é novo? Que nova porta moral a chave de
ouro abre?
Existem de fato três perguntas morais, três partes básicas da moralidade:
como devemos nos relacionar uns com os outros, conosco e com Deus? Como
meu barco coopera com os outros barcos da frota, como ele deve ser mantido
em forma? E qual é a missão da frota? Essas três perguntas referem-se à questão
da moralidade social, à questão da moralidade individual e à questão do
sentido da vida. A última é a mais importante porque a resposta a ela in uencia
a resposta para todas as outras. É a questão do m derradeiro de tudo o mais.
Tudo o mais, em última instância, é um meio para esse nal derradeiro. E
embora “o m não justi que os meios” — ou seja, o m bom não justi ca o
meio mau — o m bom justi ca os meios bons, pois os meios estão
relacionados com o m. Isto é o que quer dizer meios: um “meio” para alcançar
um m.
Então, qual é a resposta de Jesus para o sentido da vida, o m supremo,
o bem maior?
A resposta é o próprio Cristo. Cristo é o bem maior.
Como, então, devemos viver? Que tipo de pessoa devemos ser? Devemos
ser Cristos. Devemos ser pequenos Cristos. Devemos “atingi[r] a medida da
plenitude de Cristo” (Efésios 4:13).
E como devemos tratar uns aos outros? Como Cristos. “Digo-lhes a
verdade: O que vocês zeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o
zeram” (Mateus 25:40).
Veja que Cristo, em vez de dizer a resposta, mostra-nos a resposta, pois
Ele é a resposta. Ele se revela a nós.
Isso é que é novo, esse novo homem. Todos nós sabemos as outras
respostas. Jamais vivemos muito bem a moralidade, mas sempre a conhecemos
bastante bem, de forma bem adequada. Compare o quão bem conhecemos a
moralidade com o quão bem conhecemos a metafísica, a epistemologia ou a
antropologia — ou, com certeza, a teologia. Deus nos deixa cometer muitos
erros nessas outras áreas, mas Ele não deixou de, Ele mesmo, dar um claro
testemunho na área da moralidade. Ele concede a cada um de nós dois profetas
celestiais da moralidade que, se escutarmos, falam poderosamente a nós. Cada
um de nós tem consciência, e cada um de nós tem um anjo. Cada um de nós
tem dois profetas de Deus, um profeta interior e outro exterior.
Com toda essa ajuda, o mapa dos princípios morais está tão claro que até
um tolo pode lê-lo. (Aplicar esses princípios a situações complexas e variáveis,
sem dúvida, é uma tarefa complexa, variável e não tão simples.) Não temos
princípios de menos em nossas muitas loso as morais, temos princípios
demais. Precisamos descobrir a unidade de todos eles. E descobrimos isso
quando observamos Jesus. Descobrimos que “apenas uma [coisa] é necessária”
(Lucas 10:42), e essa “coisa” é Ele. Não precisamos de “Jesus e”, mas de “mais
ninguém a não ser Jesus” (Mateus 17:8). Nele estão todos os bens, todas as
dádivas, absolutamente tudo de que precisamos (Filipenses 4:19). Pois quando
conhecemos Jesus, aprendemos que não precisamos de fato das pequenas coisas
boas que achávamos que precisávamos; as muitas coisas ao estilo de Marta,
como garantir que o jantar sempre seja servido na hora certa. E quando o
conhecemos, aprendemos que precisamos de uma coisa que não sabíamos que
precisávamos: a coisa ao estilo de Maria, apenas sentar aos pés dele, e ouvi-lo e
amá-lo. Ele é, de fato, tudo de que precisamos; literalmente. Além dele, a única
outra questão que precisamos saber é que não existe outra coisa a conhecer
além dele.
São Paulo ensina essa ideia escandalosamente simples de que a vida boa é
só Cristo. A fórmula para a vida boa de Paulo não poderia ser mais simples:
“Para mim o viver é Cristo” (Filipenses 1:21). Por isso, ele prossegue e diz: “E o
morrer é lucro”, pois se a vida é Cristo, a morte é apenas mais Cristo.
Cerca de metade das palavras proferidas por Jesus nos Evangelhos fala de
ética. Contudo, a obra ética de Jesus mais transformadora do mundo não está
nas palavras dele, que são muitas, mas nele mesmo, que é um. Ele não é
chamado “as palavras de Deus”, mas “a Palavra de Deus”.
Ele é o maior mestre de moral do mundo, porém é mais que isso. Ele é o
exemplo moral mais perfeito do mundo, porém é mais que isso. Ele é o maior
profeta do mundo, porém é mais que isso. Ele é mais que alguém que ensinou
bondade, e viveu bondade, e exigiu bondade. Ele é bondade.
Certa ocasião, alguém se dirigiu a Ele como “Bom Mestre”, e Jesus
perguntou à pessoa: “Por que me chamas bom?” (Mateus 19:17; ARC). Ele não
estava negando que era Deus, mas a rmando isso e, assim, a rmava que era
mais que um homem bom, mais até mesmo que um “Bom Mestre”. Ele não é
apenas um homem bom, é a totalidade da bondade, a bondade encarnada, o
bem universal; não o bem apenas parcial ou particular. Ele não é apenas o
melhor mestre do sentido da vida, ele é o sentido da vida. Buda diz: “Não olhe
para mim, olhe para meu ensinamento”; Jesus diz: “Venham a mim” (Mateus
11:28). Ele não é apenas aquele que personi ca perfeitamente o sentido da
vida, ele é o sentido da vida. Ele não é o exemplo de alguma coisa. Os exemplos
apontam para além de si mesmos, mas ele não aponta apenas o bom caminho,
ele é o bom caminho. Ele não fala apenas a verdade a respeito da bondade, ele é
a verdade a respeito da bondade. Ele não vive apenas a vida boa, ele é a vida
boa. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6).
Isso é tão chocante que se parece com o que os lósofos analíticos da
linguagem chamariam de “confusão de categoria”, como se Platão tivesse dito
que a própria essência da beleza eterna estava em sua cozinha preparando o
jantar, ou que a justiça tinha 1,82 metro de altura.
É difícil entender a questão justamente porque ela é tão simples, tão
singela. Uma vez que nossa mente e nosso coração não são simples, temos mais
facilidade de entender a questão se a tornamos mais complexa. Portanto, vamos
dividi-la em quatro partes, ou quatro pontos, ou quatro dimensões: primeiro, o
“personalismo” de seguir Jesus, em vez de seguir um conjunto de princípios
impessoais; segundo, a superação do legalismo por essa simplicidade; terceiro, a
refutação do relativismo moral, o oposto aparente do legalismo; e quarto, o
segredo do sucesso moral.
1. PERSONALISMO CRISTÃO: VER “SÓ JESUS”

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago, e os
levou, em particular, a um alto monte. Ali ele foi trans gurado diante deles. Sua face
brilhou como o sol, e suas roupas se tornaram brancas como a luz. Naquele mesmo
momento, apareceram diante deles Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então
Pedro disse a Jesus: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se quiseres, farei três tendas: uma
para ti, uma para Moisés e outra para Elias.” Enquanto ele ainda estava falando, uma
nuvem resplandecente os envolveu, e dela saiu uma voz, que dizia: “Este é o meu
Filho amado em quem me agrado. Ouçam-no!” Ouvindo isso, os discípulos
prostraram-se com o rosto em terra e caram aterrorizados. Mas Jesus se aproximou,
tocou neles e disse: “Levantem-se! Não tenham medo!” E erguendo eles os olhos,
não viram mais ninguém a não ser Jesus (Mateus 17:1-8).

A primeira coisa a esclarecer a respeito da “trans guração” é que ela não


foi a trans guração da realidade de Jesus, mas da visão dos discípulos. Jesus não
mudou e brilhou mais que a luz. Ele sempre foi, e é, mais brilhante que a luz.
(Ele não é um pouco parecido com a luz; a luz se parece um pouco com Ele.)
Os olhos dos discípulos é que foram mudados. Deus capacitou-os a ver o que
é, em vez de apenas o que parece ser. Ele levantou a cortina.
É exatamente igual à cena de 2 Reis 6, na qual o perverso rei da Síria
descobre onde Eliseu está e envia tropas para matá-lo:

Quando lhe informaram que o profeta estava em Dotã, ele enviou para lá uma
grande tropa com cavalos e carros de guerra. Eles chegaram de noite e cercaram a
cidade. O servo do homem de Deus levantou-se bem cedo pela manhã e, quando
saía, viu que uma tropa com cavalos e carros de guerra havia cercado a cidade. Então
ele exclamou: “Ah, meu senhor! O que faremos?” O profeta respondeu: “Não tenha
medo. Aqueles que estão conosco são mais numerosos do que eles”. E Eliseu orou:
“SENHOR, abre os olhos dele para que veja”. Então o SENHOR abriu os olhos do
rapaz, que olhou e viu as colinas cheias de cavalos e carros de fogo ao redor de
Eliseu.
Deus não pôs essa visão do exército de anjos em carros de fogo nos olhos
do servo de Eliseu. Ele apenas removeu as travas dos olhos do servo. (Os anjos
não estão presentes apenas quando os vemos!)
No monte da trans guração, Deus fez algo semelhante com Pedro, Tiago
e João. Pouco antes da trans guração, Pedro achara difícil, quando andou sobre
as escuras e amedrontadoras águas da tempestade no mar (Mateus 14), ver só a
Jesus; e ele começou a afundar quando tirou os olhos de Jesus. Aqui, Pedro
também acha difícil ver só a Jesus no alto do monte em meio à resplandecente
glória celestial (Mateus 17). Pois ele faz, sem pensar, uma proposta ridícula,
mas que soa razoável, de montar três santuários. Se Jesus tivesse permitido isso,
o local, em poucos séculos, teria se tornado uma armadilha turística, e Pedro
caria famoso como incorporador, não como discípulo. O ridículo não é a
ideia de construir os santuários, mas de fazer três deles, pondo Jesus na mesma
categoria de Moisés e Elias. E é provável que Pedro pensasse que isso era uma
lisonja! Deus corrige Pedro por meio de uma voz vinda do céu que, em
essência, diz: “O que você está pensando? Tenho muitos servos, mas apenas um
Filho” (Mateus 17:5).
Como o insensato Pedro e os outros conseguiram car tão sábios a ponto
de ver só a Jesus? Muito simples: no mesmo instante em que a voz de Deus
ordenou: “Ouçam-no”, eles obedeceram. “Os discípulos prostraram-se com o
rosto em terra e caram aterrorizados” (Mateus 17:6). (Vivemos em uma era
terrivelmente empobrecida na qual essa emoção religiosa mais básica
surpreende nossos professores, por considerá-la primitiva; e nossos estudantes,
por considerá-la incompreensível.) Só porque obedeceram, os discípulos
sentiram o medo santo, e só porque sentiram o medo santo, Jesus pôde se
aproximar, tocá-los e dizer: “Não tenham medo!” O medo é pré-condição
necessária para o “não-medo”. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”
(Provérbios 9:10). E essa é a sabedoria moral, a sabedoria da santidade. (Ver Jó
28:28.)
Em geral, achamos que a sabedoria vem primeiro e leva à santidade, mas
acontece o oposto. Acreditamos que temos primeiro de ver e, depois, agir, mas
acontece o oposto. Achamos que a vontade segue a mente, mas acontece o
oposto. Somos gregos, não judeus. Os judeus sabiam que a sucessão de fatos
era a outra, que primeiro vem a obediência moral e, depois de obedecermos,
nossa percepção é esclarecida. Apenas a vontade receptiva à obediência pode
abrir nossos olhos para a sabedoria. Por isso, Jesus diz: “Se alguém decidir fazer
a vontade de Deus, descobrirá se o meu ensino vem de Deus ou se falo por
mim mesmo” (João 7:17).
E a percepção dos discípulos foi esclarecida pela obediência deles. Qual
foi o esclarecimento? Apenas que quando eles levantaram “os olhos, não viram
mais ninguém a não ser Jesus.” Isto é sabedoria: não ver “mais ninguém a não
ser Jesus”. A única forma de alcançar essa sabedoria aprimorada de não ver
“mais ninguém a não ser Jesus” é começar com a sabedoria inicial de temer ao
Senhor e obedecer à voz dele.
O que quer dizer não ver “mais ninguém a não ser Jesus”? Aqui, o “a não
ser” não é o “a não ser” exclusivo, mas o inclusivo. Não é Jesus fora de todas as
coisas, mas Jesus em todas as coisas; não é Jesus excluindo todas as coisas, mas
incluindo todas as coisas. Pois a “Graça aperfeiçoa a natureza”, em vez de
destruí-la. Deus capacita seus lhos, como o ótimo pai que está disposto a
parecer pequeno para que seus lhos pareçam grandes. Ele não rivaliza com
seus lhos, como o pai egoísta que está preocupado em parecer grande e, por
isso, faz com que seus lhos pareçam insigni cantes. Deus não nos diminui,
Ele nos faz grandes.
O motivo máximo por que a Graça aperfeiçoa a natureza é Deus ser
amor, e o amor não fere, não rivaliza, não destrói nem destitui nada de forma
alguma. Jesus não destitui Moisés, Elias, Pedro ou o judaísmo (“Não pensem
que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir”; Mateus
5:17). A prova concretíssima desse princípio é o próprio Cristo, no qual a
divindade (Graça) aperfeiçoa perfeitamente a humanidade (natureza).
Não obstante, Ele veio para destruir algo: o pecado. Ele é o Senhor da
vida e, portanto, inimigo do inimigo da vida, o pecado. Ele só mata aquele que
mata e, por isso, precisa ser morto. Todos nós sabemos que abrigamos e
afagamos alguns inimigos da vida, da nossa vida, algum pecado habitual ou até
mesmo alguma coisa inocente em si mesma, mas que Jesus sabe que nos leva a
pecar ou nos impede de ter a vida plena: algum conforto, alguma segurança,
alguma alegria terrena — talvez a própria vida biológica — que levanta uma
redoma ao nosso redor di cultando a entrada dele, que torna mais difícil
receber a plenitude de vida e de alegria no m, por causa dessa vida inferior
atual. Por isso, o jardineiro divino poda-nos, matando a vida inferior para que
a superior cresça.
Por Ele matar a vida inferior, parte da natureza, parece que a Graça dele
não aperfeiçoa a natureza, mas a destrói. Mas essa morte aperfeiçoa a natureza,
pois o resultado da morte é uma vida superior. Naturalmente, o ramo podado
duvida das boas intenções do jardineiro. Contudo, se Ele, pela fé, deixar-se
podar agora, descobrirá, no ano seguinte, por que foi certo con ar no
jardineiro. Não é verdade que “ver é crer”, mas que “crer é ver”. Conforme
Jesus disse no túmulo de Lázaro: “Não lhe falei que, se você cresse, veria a
glória de Deus?” (João 11:40).
É claro que nós não conseguimos, como Ele, ver o m quando estamos
no início. Não vemos a planta perfeita que nos tornaremos com a poda que Ele
faz nem vemos o jardineiro: “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18).
“Vemos, todavia, [...] Jesus” (Hebreus 2:9). Não vemos “mais ninguém a não
ser Jesus” (Mateus 17:8). E se tiramos nosso olho dele, somos como a
criancinha que apenas vê a bola de sorvete cair da casquinha e chora
inconsolável, como se isso fosse uma tragédia irremediável. A criança precisa
apenas afastar os olhos do sorvete e voltá-los con antes para o pai que foi quem
deu.
Esta é a melhor coisa que podemos fazer: olhar para Jesus. Foi isso que
Maria fez, mas Marta não. E quando olhamos para Ele em busca de ajuda para
nossa necessidade real ou aparente, quer grande quer pequena, quer a queda do
World Trade Center quer a queda do sorvete da casquinha, o melhor que
temos a fazer é repetir as palavras que Ele disse para Jó: “Apenas con e em
mim, lho. Você conhece a si mesmo e conhece a mim. Eu sou aquele de quem
vem ‘toda boa dádiva e todo dom perfeito’ (Tiago 1:17), e você é apenas uma
criança que não pode entender meus desígnios. A sua sabedoria é a con ança, a
minha sabedoria é a providência. Pois você é apenas você, e eu sou eu. Não sou
homem, e você não é Deus. Por que você tem tanta di culdade para se lembrar
desse fato elementar? Deixe-me ajudá-lo a se lembrar, diga-me: ‘Onde você
estava quando lancei os alicerces da terra?’” (Jó 38:4).
Esta é a primeira lição: o que nós não sabemos. Se não soubermos isso,
não sabemos nada mais. Deus ensinou a primeira lição para Jó e também para
Sócrates.
Depois, Jesus nos ensinou a segunda lição, a resposta da primeira lição:
“Onde você estava quando lancei os alicerces da terra?” Ele diz: “Vou dizer
onde você estava: você estava no centro da minha visão e do meu coração.
Planejei o universo para você, para sua maior glória e sua maior alegria, e essa
também é minha maior glória e minha maior alegria. Você é minha maior
alegria, e sua maior alegria sou eu. Sua alegria foi todo o motivo para eu
realizar o Big Bang. Você acha que eu tinha estrelas em vista, em vez de almas?
Você acha que sou mais glori cado por queimar hidrogênio que por queimar
corações? Pelos grandes atos de explosões de supernovas que pelos pequenos
atos de amor?
“Você não entende sua vida porque você não é simples. O sentido da
vida para você sou Eu; e o sentido da vida para Mim, você. O amado está
sempre no centro da percepção do amante. Isso é o que amor quer dizer.
Esperei bilhões de anos por você, enquanto as galáxias esfriavam; e aqueles anos
não foram nada para Mim por causa do meu amor. Eu era como Jacó à espera
de Raquel: ‘Então Jacó trabalhou sete anos por Raquel, mas lhe pareceram
poucos dias, pelo tanto que a amava’ (Gênesis 29:20). Por isso, ‘mil anos [...]
são como o dia de ontem’ para mim (Salmo 90:4): porque sou amor.
“Seja como eu. Seja amor. Veja todas as outras coisas como relacionadas
com o amor e como minhas cartas de amor para você. Veja as coisas como elas
são: todas as coisas do universo e todas as coisas da sua vida são a escada de
Jacó, vias para a troca entre dois amantes, Eu e você. Se você vir isso, então verá
todas as suas tempestades terríveis e os seus sofrimentos semelhantes ao de Jó
caindo como o sorvete cai da casquinha. Melhor ainda, você as verá como a
minha Cruz. E uma vez que é a minha Cruz, você a verá como uma Cruz de
amor e de vida. Seus próprios sofrimentos serão como o monte da
trans guração: através do prisma da sua fé em Mim e do poder das Minhas
feridas de amor, suas feridas re etirão minha luz de Filho e se transformarão
em ouro e glória. Eu, Jesus, sou seu toque de Midas.”
Achamos que cremos nas boas novas de que “Deus é amor” (1 João 4:8),
e de que ele “age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam”
(Romanos 8:28) — e cremos, mas nossa fé é principalmente o que Newman
chamou “aceitação nocional”, e não “aceitação real”. É mais a aceitação da
verdade da ideia que da realidade. É fácil dizer um sim completo para a verdade
de Cristo. Fazer isso é simplesmente ser cristão. Mas é difícil dizer um sim
completo para Cristo. Fazer isso é ser santo.
Nossa fé é verdadeira, preciosa e inestimável, mas não é rme o bastante.
É como uma linda nuvem de ouro. Quando a vida deposita um fardo pesado
sobre nós, ele atravessa a nuvem como uma bola de canhão porque é mais
pesado que qualquer nuvem, até mesmo de uma de ouro. Nossa fé tem de se
tornar mais que uma nuvem, tem de se tornar uma coisa, uma coisa mais real,
mais sólida e mais substancial que qualquer fardo. E essa coisa só pode ser não
ver “mais ninguém a não ser Jesus”. Não pode ser “Jesus, se”, “Jesus e” nem
“Jesus, mas”. Em Cristo não há se, e ou mas (2 Coríntios 1:20).
2. A superação do legalismo

Atualmente, ninguém defende o legalismo, embora poucos escapem dele.


A única forma de escapar dele é a verdade, a verdade a respeito da Lei. E
essa verdade é que o propósito da Lei é levar a Cristo (“A Lei foi o nosso tutor
até Cristo”; Gálatas 3:24).
A Lei é boa (Romanos 7:12). Precisamos dela para ter mais
discernimento moral, para de nir o bem e o mal. Isso é verdade em relação à
lei moral e à lei civil. Mas enquanto apenas os criminosos precisam se
preocupar com a lei civil, todos nós temos de nos preocupar com a lei moral.
Apenas poucas pessoas transgridem a lei civil, mas todos nós somos
transgressores da lei moral.
Preocupamo-nos muitas vezes com a transgressão de muitas leis morais,
pois sabemos que somos muito criativos em inventar novas maneiras de pecar e
novas desculpas para repetir pecados antigos. Cristo é a única solução para
todos os nossos pecados. Existem muitos pecados e muitas leis, mas só um
Cristo.
Nossa vida moral interior parece complexa. Existem muitas leis, muitas
tentações e muitos pecados. Nossa vida social externa também é complexa,
cada vez mais complexa e, às vezes, esmagadora. Por isso, corremos tanto:
estamos tentando fazer o impossível — tudo. Talvez em algum lugar haja
poucas pessoas, escondidas em árvores, que são saudáveis o bastante para não se
deixarem contagiar pela nossa adoração pelo relógio e, por essa razão, ainda
têm e sentem a liberação, lazer e liberdade em sua vida — mas nunca as
encontramos. Temos tantas angústias e preocupações, espirituais e físicas,
internas e externas. Somos complexos e nos preocupamos externamente apenas
porque somos complexos e nos preocupamos internamente, da mesma forma
que existem guerras externas porque existem guerras internas. (Ver Tiago 4:1-
3.) A simplicidade seria a liberação. Mas a simplicidade parece estar
impraticável e impossivelmente distante.
Ouçamos a palavra radical e liberadora de Cristo, que nos liberta da
complexidade física e espiritual e, desse modo, do legalismo; a palavra
liberadora que Ele dirigiu a Marta. (Nós somos Marta.) “Marta! Marta! Você
está preocupada e inquieta com muitas coisas, todavia apenas uma é necessária”
(Lucas 10:41,42).
Ó Evangelho! Ó novas de um bem acima da esperança! Ó segredo do
sucesso para a sanidade e a santidade! Ó doce substituto da psiquiatria! Isso
pode ser verdade? O que essa única coisa “necessária” pode ser?
Cristo não nos diz a resposta, Ele nos mostra a resposta: “Maria escolheu
a boa parte.” O que Maria escolheu? Ela escolheu Jesus. Só Jesus. Maria
renunciou a tudo o mais para se sentar aos pés de Jesus. Essa “[coisa]
necessária” é Jesus. Ele é o Messias prometido por todas as leis e profetas, e Ele
foi prometido para todos nós e para todas as nossas necessidades.
Em especial, nossas necessidades morais. Para o cristão, a vida moral é
simplesmente Cristo vivo por intermédio dos membros do corpo dele, sua
Igreja, seu povo. A lei moral descreve e prescreve apenas essa vida; Cristo é essa
vida, e ele a concede. Ele dá o que é. Ele dá a si mesmo.

Ele dá sua vida, em especial, na Eucaristia. A Eucaristia é o corpo dele e


também a Igreja. E da mesma forma como a Eucaristia não é um mero símbolo
ou imagem de Cristo, mas o próprio Cristo, também a vida moral dos cristãos,
ou seja, da Igreja de Cristo, não é uma mera imagem, mas a presença real de
Cristo atuando por intermédio de seu povo pecador, tolo e insensato.
A diferença entre a presença secreta dele na Eucaristia e a presença
secreta em seu povo é que a Eucaristia não tem duas naturezas. Ela é perfeita.
Ela é 100% Cristo, e 0% pão e vinho, enquanto nós somos misturados e
imperfeitos. Nós somos 99% Adão e 1% Cristo. Por essa razão, não devemos
adorar o povo imperfeito dele, mas a Eucaristia. O que, na Eucaristia, parece
ser não-Cristo é Cristo, mas o que parece ser não-Cristo na humanidade caída
e pecaminosa é realmente não-Cristo. O pão da Eucaristia é transubstanciado,
enquanto nós somos consubstanciados. A teologia luterana da Eucaristia está
certa, mas está certa a nosso respeito, não quanto à Eucaristia.
(“Consubstanciação” representa a crença de que Cristo e o pão e o vinho estão
realmente presentes na Eucaristia depois da Consagração.)
Mas a presença de Cristo em nós, embora minúscula e imperfeita, é real.
Pois ser cristão quer dizer verdadeira incorporação no corpo real de Cristo. E
esse corpo é vivo! É um corpus, não um cadáver. E este é todo o ponto da
moralidade: Cristo e seu corpo. Da mesma forma como o motivo completo da
existência das casas é abrigar; e o da medicina, curar; e o da ciência, o
conhecimento; o motivo da religião é nos tornar pequenos Cristos, nos tornar
noivas de Cristo, nos tornar a Igreja, nos tornar o corpo Dele, nos tornar um
com Ele em corpo e em espírito. (Como existem várias maneiras de dizer a
mesma coisa!) Cristo transforma a moralidade, a coisa mais distante do mundo
do legalismo: é um romance, casamento, caso de amor com o Senhor. Como
pudemos achar que a moralidade fosse algo maçante, sombrio, desumanizador,
repressivo e limitante? Apenas porque não sabíamos qual era o completo
sentido dela: Ele.

Esse segundo ponto (superar o legalismo) é a conse-quência imediata do


primeiro ponto (personalismo). O personalismo cristão representa mais do que
a mera ideia de que as pessoas são importantes, mesmo intrinsecamente
valiosas; e representa mais que a ideia de que os princípios são para as pessoas,
em vez de as pessoas serem para os princípios; e mais que a ideia de que
devemos observar o sujeito individual que escolhe e age moralmente, em vez de
observar o objeto do pensamento, da escolha e da atuação dessa pessoa. O
personalismo cristão também representa todas essas coisas, mas não precisamos
ser cristãos para conhecer todos esses princípios. O personalismo cristão, acima
de todo objeto último do pensamento, da escolha e da atuação cristã, é uma
pessoa: Cristo. “Apenas uma vida; ela logo passará. Apenas o que é feito por
Cristo perdura.” Minha avó bordou essas palavras em um tecido e pendurou na
parede da sala de jantar da casa dela e também nas paredes da minha mente e
coração. Obrigado, vovó. Faz mais de sessenta anos que vi as palavras bordadas,
mas não as esqueci.
Jesus resume a vida moral em duas palavras: “Siga-me” (João 1:43).
Todos os outros grandes mestres da moral — Moisés, Buda, Confúcio, Lao
Tsé, Sócrates, Maomé — dizem: “Siga meu ensinamento.” Mas Cristo disse:
“Siga-me.” Eles disseram: “Eu ensino o caminho”; mas Cristo disse: “Eu sou o
caminho.” Buda disse: “Não olhe para mim, olhe para meu darma (doutrina).”
Cristo disse: “Venham a mim” (Mateus 11:28). Buda disse: “Sejam lâmpadas
para vocês mesmos.” Cristo disse: “Eu sou a luz do mundo” (João 8:12).
Os lósofos buscam a sabedoria. Cristo é a sabedoria (1 Coríntios 1:30).
Por essa razão, Cristo é a realização da loso a.
Os moralistas buscam a justiça. Cristo é justiça (1 Coríntios 1:30). Por
essa razão, Cristo é a realização da moralidade.
A diferença entre “siga meu ensinamento” e “siga-me” é a mesma
diferença entre seguir um mapa rodoviário e seguir um carro. Ser cristão é não
se preocupar em pegar todos os detalhes corretos do caminho nas indicações do
mapa; é uma caçada em um carro em alta velocidade. “Siga-me!”
E quando a caçada termina, e encontramos a Cristo, descobrimos que
Ele é “o cão de caça do Céu” que nos caçava muito antes de começarmos a
caçá-lo. Na verdade, nossa própria busca por Ele é resultado da busca dele por
nós. Nas palavras de um antigo hino:

Busquei o Senhor, depois, soube


Que Ele moveu minha alma a buscá-lo, em sua busca por mim.
Não fui eu quem o encontrou, Ó verdadeiro Salvador,
Não, eu fui encontrado por Ti.

Cristo é o único critério de moralidade. Não é possível encontrar um ato


inocente que não acolha bem o nome de Cristo, nem um ato pecaminoso que
o acolha. Mas Ele é mais que o critério, também é a meta, o bem que
buscamos, o “sentido da vida”, o summum bonum, o m, a “[coisa] necessária”.
Nosso coração não pode ser enganado a respeito do nosso bem supremo,
mesmo que nossa mente possa. Sabemos, e não podemos não saber, que nada
mais é su ciente, que nenhum dos outros candidatos ao cargo de rei da nossa
vida é realmente real. Nosso coração ca desassossegado até que descanse nele.
Temos um “divino descontente”, uma “disputa de amante com o
mundo”, um anseio misterioso por um não sabemos o quê. Esse anseio se
parece com o belo som de partir o coração da voz abafada de um pássaro, um
anseio tão fundo em nosso coração que parece in nitamente distante e
in nitamente próximo. É como a estrela de Belém, um dedo que se move
desassossegado pelo céu e só descansa sobre o berço do verdadeiro Cristo.
Esta é a nossa glória suprema: o fato de nosso anseio mais profundo ser a
glória divina, mesmo que ela pareça inalcançável, inacessível, inimaginável,
impossível, inefável, inde nível e in nita. Este também é nosso fracasso
supremo: o fato de ansiarmos por uma glória inalcançável. A vida é este koan: o
fato de que a coisa que mais queremos é a que menos podemos conseguir; o
fato de que, de um lado, a coisa gloriosa que queremos não é nada menos que a
glória de Deus e de que, de outro lado, “todos [...] estão destituídos da glória
de Deus” (Romanos 3:23). O m — Deus — excede in nitamente o meio —
todo esforço humano.
A seguir, ouvimos “o resto da história”, as boas novas de que Deus fez o
impossível porque “para Deus todas as coisas são possíveis” (Mateus 19:26); as
boas novas de que Deus baixou uma escada do Céu pela qual podemos subir
até Ele (João 1:51; Gênesis 28:12). Fomos destituídos da glória de Deus, então
a glória de Deus desceu até nós.
O que é a “glória de Deus” da qual todos nós fomos destituídos? É
Cristo. Cristo é a glória de Deus, a maior glória de Deus. “Pois foi do agrado
de Deus que nele habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19). O Catecismo
da Igreja Católica apresenta de forma clara essa equação simples: “A glória de
Deus é Jesus Cristo.”
3. A refutação do relativismo

A presença real de Cristo na vida moral liberta a moralidade não só do


legalismo, mas também do relativismo. Os dois são erros opostos: o legalismo
sacri ca as pessoas pelos princípios, enquanto o relativismo sacri ca os
princípios pelas pessoas. Contudo, Cristo é mais absoluto que qualquer
princípio, e é Cristo, é esse absoluto pessoal, não o legalismo impessoal, que
refuta o relativismo moral.
Relativismo moral é a ortodoxia do “politicamente correto” da nossa
cultura mofada. Na cabeça dos modeladores de mente, nada é pior que a
“intolerância”, e o absolutismo moral é intolerante. Daí a popularidade de
dizer coisas como “Não imponha seus valores a mim”; “Diferentes ritmos para
diferentes povos”; e “Viva e deixa viver”.
Na história mundial, nenhuma cultura que abraçou o relativismo moral
sobreviveu. Portanto, nossa cultura ou (1) será a primeira a fazer isso e a refutar
a lição mais clara da história, ou (2) persiste nesse relativismo e morre, ou (3)
arrepende-se de seu relativismo e vive. Não há outra opção.
O homem mais extraordinário do pior século da história chamou nossa
cultura de “cultura da morte”. É uma cultura que cada vez mais é indulgente
com os “matadores misericordiosos” como o “Doutor” Kevorkian, porque a
própria cultura está no processo de se “kevorkianizar”. Nossa cultura tolera o
aborto porque está abortando a si mesma. Por essa razão, ela precisa de uma
terapia muito mais profunda que de bons argumentos losó cos refutando o
relativismo. Esse é apenas um raio X da situação, e nós precisamos da cura para
ela. O raio X fornece apenas a observação dos sintomas, os efeitos da doença;
precisamos do diagnóstico da doença que está causando os sintomas antes de
prescrever a cura. E o diagnóstico mais profundo da principal causa da doença
da nossa cultura, em uma palavra, é a descrença em Cristo. Pior, é a
Cristofobia.
A resposta mais rme ao relativismo moral não é o argumento perfeito,
mas a pessoa perfeita: Cristo. Pois Ele é evidência concreta, dado real, presença
real. Encontre-o, e o relativismo, no mesmo instante, murcha, como o
vampiro, na luz do sol. Os argumentos mais irrefutáveis sempre são fatos,
dados, realidade concreta. Por exemplo, o argumento mais e caz contra o
aborto é simplesmente assistir a um aborto. Por isso, a operação mais comum
nos Estados Unidos é a única nunca vista em nenhuma emissora de televisão
ou tela de cinema.
As duas coisas que mais convencem as pessoas são os fatos e as pessoas.
Cristo é ambos.
Nossa cultura rejeita a moralidade cristã porque rejeita Cristo. Nossa
cultura, em geral, acha a moralidade útil em várias áreas, mas desagradável e
repressiva em uma área: o sexo. Ela não sabe que a moralidade é atraente: são as
preliminares espirituais, o namoro espiritual, a preparação do casamento
espiritual na terra para nossa enlevada consumação na eternidade. Nossa
cultura não sabe que, em última instância, a questão da moralidade é a união
matrimonial com Deus em Cristo, união essa que é um êxtase eterno, ilimitado
e inimaginável de amor que entrega a si mesmo, que esquece a si mesmo. Isso
se parece com o que nossa cultura entende por moralidade? Por que não?
Porque nossa cultura não conhece Cristo. Por isso, ela pensa na moralidade em
termos de regras humanas, necessárias, mas desagradáveis, como a inspeção de
bagagem nos aeroportos. Nossa cultura pensa que o bem necessário é o mal
necessário! As imagens que a nossa cultura tem da vida moral são imagens de
sujeição: marchar em leira cerrada em um des le, colorir dentro do contorno
do desenho ou até mesmo car atrás das barras de uma prisão.
Se nossa cultura conhecesse Cristo, saberia que a moralidade é mais
como lições de navegação para iniciantes, em pequenos veleiros Sun sh em
águas rasas. Mas essas águas rasas são as mesmas águas, o mesmo elemento
santo, sobre as quais estamos destinados a velejar para sempre em grandes e
altas embarcações, selvagens e livres, com o vento do Espírito Santo em nossas
velas e a mente de Deus no leme. Pois nosso destino é navegar pela grande
profundidade de Deus, e isso não é mais impossível porque o próprio Deus se
tornou homem e subiu a bordo do barco. Ser um relativista moral quando o ele
absoluto está ao seu lado no barco é tão absurdo quanto ser tão cético em
relação à verdade a ponto de perguntar cinicamente: “O que é verdade?”, para a
própria verdade, de pé diante de você, e, depois, autorizar a morte dele.
4. O segredo do sucesso moral

Conhecemos o bem; não o praticamos. C. S. Lewis declara, com acerto, que


é simplesmente impossível pensar de forma clara sobre a vida sem admitir esses
dois fatos primordiais. (Veja o m da parte I de Mero Cristianismo.)
Conhecemos o bem porque não podemos não conhecê-lo. Deus continua a
iluminar nossa consciência. Mas nós não praticamos o bem porque não somos
santos. O bem que deveríamos praticar, não praticamos, e o mal que não
deveríamos praticar, nós praticamos (Romanos 7:15). Somos moralmente
impotentes. Temos conhecimento moral, mas não poder moral.
A chave de ouro da presença real de Cristo também destranca essa porta.
Cristo nos concede não só a mais profunda compreensão da moralidade, mas
também o poder para praticá-la. Ele faz as duas coisas ao entregar a si mesmo
para nós.
As primeiras palavras da seção sobre moralidade do Catecismo da Igreja
Católica explicam isso: “Cristão, reconheça sua dignidade e, agora, que
compartilha a própria natureza de Deus, não retorne à sua antiga condição
pelo ato de pecar. Lembre-se de quem é sua Cabeça e de cujo corpo você é
membro.” O segredo do sucesso moral é apenas praticar a presença de Cristo, o
que é “conheça a si mesmo”. Cristo não é apenas nossa autoridade moral, mas é
nossa identidade moral. Não somos apenas membros da sua organização; somos
membros do organismo dele, do seu corpo. “Membros” quer dizer “órgãos”!
Observe a forma literal como S. Paulo usa a palavra (“membros”) para
falar aos cristãos coríntios o que, agora, a imoralidade sexual representa para o
cristão: “Tomarei eu os membros de Cristo e os unirei a uma prostituta [ou
seja, farei dele uma também]?” (1 Coríntios 6:15)
Da mesma forma que o que fazemos a nossos irmãos fazemos a Cristo, o
que fazemos a nós mesmos fazemos a Cristo. Pois nós somos membros dele da
mesma forma que nossos irmãos também o são.
Pensar nos ensinamentos dele e tentar praticá-los é como pensar em tirar
“A” em uma prova difícil e tentar responder certo a todas as perguntas. Mas
praticar a presença dele é admitir que Ele está sentado bem ao seu lado fazendo
a prova com você. A presença dele é para o pecado o que a luz é para a
escuridão, o que o sol é para os vermes, e o que o cruci xo é para os vampiros.
Não existe nada, nem mesmo remotamente, comparável a isso em
nenhuma moralidade secular. Cristãos e se-cularistas concordam que a
autoestima é uma causa do bom comportamento moral, uma vez que agimos a
partir da nossa identidade concebida; todavia, nenhum secularista conhece o
principal motivo para a autoestima: o extraordinário fato de que pela Graça de
Cristo não somos apenas dele, mas Ele. (Lembre-se de 2 Pedro 1:4.)
Moralistas e lósofos podem nos convencer de que é bom ser bom, mas
eles não podem nos tornar bons. Psicólogos podem afastar nossos sentimentos
de culpa, mas não podem afastar nossa culpa.
Não obstante, pecadores tornam-se santos. Isso acontece. Algumas
pessoas superam a impotência moral. Existem santos. E santos são sempre
feitos da mesma matéria-prima: pecadores. Não existe outra matéria-prima.
Observe S. Paulo, Sto. Agostinho, S. Francisco de Assis, Sto. Inácio de Loyola:
um perseguidor fanático, um playboy viciado em sexo, um janota rico e um
matador pro ssional, e todos eles se tornaram grandes santos. Como isso pode
acontecer? Qual é a causa e caz disso? Pergunte a eles. Todos eles darão a
mesma resposta: a chave de ouro, Jesus Cristo.

Todos sabem que um santo é um grande amante de Deus e do homem.


E todos sabem que amar é a melhor coisa do mundo. Mas nem todos sabem
que tipo de amor é esse e em que lugar consegui-lo. A resposta para as duas
perguntas é Cristo.
Primeiro, o amor é de nido por Cristo. Em 1 Coríntios 13, o capítulo
mais famoso da Bíblia, o capítulo sobre amor, é uma de nição de Cristo. Mas
ele é uma realidade, não apenas uma potencialidade ou ideal. Os Evangelhos
são uma “exposição e narração” de Cristo: pois Cristo não nos conta apenas o
que é o amor, mas mostra o que é o amor. A Cruz é a “de nição-chave” de
amor. É o que acontece quando o amor perfeito encontra o mundo caído. Isso
não foi um acidente.
Segundo, Cristo não é só o que o amor é, mas Cristo também é onde
você obtém o amor. Para encontrar crocodilos, você tem de ir aonde eles estão.
Para se molhar você tem de ir aonde a água está. Para conseguir se queimar,
você precisa ir aonde a luz do sol está. Para conseguir se in amar com o amor
do Filho, você tem de ir aonde está a luz Dele. Isso é tudo. Aos que estão
cansados e sedentos de amor, ele diz: “Venham a mim todos os que estão
cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso” (Mateus 11:28). Esta é a
fórmula mais simples e perfeita para se tornar santo: vá a Cristo.
A única coisa que sempre pode salvar nosso mundo do desastre, de todas
as consequências do pecado, são os santos. E Jesus é o criador de santos. Ele
não foi chamado “Jesus” (“Salvador”) porque podia nos salvar da punição
devida para nossos pecados. A ordem do anjo foi: “Você deverá dar-lhe o nome
de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mateus 1:21).
Deus não descansará enquanto você não for santo. Ele ordena: “Sejam
perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês” (Mateus 5:48).
Mas nós não somos santos. Por quê?
É muito fácil encontrar a resposta. Olhe no espelho do seu coração. Seja
totalmente honesto com você mesmo. Você não acredita que (para citar
William Law) o único motivo pelo qual não é santo neste exato momento é
porque você não deseja isso inteiramente?
— Oh, mas eu quero ser santo — responde você, com bastante
honestidade.
Sim, você quer, mas não por inteiro, de corpo e alma.
O que pode tornar nossa vontade completa? Qual é o segredo dos
santos? Temos os mesmos ideais, os mesmos princípios, as mesmas crenças, as
mesmas aspirações que eles. Por que os santos os vivem tão melhor que nós?
Qual é o segredo do sucesso deles?
Paradoxalmente, não fazemos o bem su ciente porque fazemos o bem
em excesso. Isso quer dizer duas coisas: primeiro, nós somos Martas, estamos
preocupados com muitas coisas, em vez de sermos Marias, simplesmente
amando só Jesus. Segundo, tentamos ser santos por nós mesmos, procurando
Deus para pedir “ajuda”, em vez de seguirmos o primeiro passo, de qualquer
programa de ajuda de 12 passos, que determina que não conseguimos sozinhos.
Jesus tem de fazer isso. Nossos recursos são parcos; os dele, ilimitados.
O santo é um soldado que pôs fogo em todas as pontes que existiam
atrás dele e que não vê “mais ninguém [à sua frente] a não ser Jesus”.
Essa atitude não indica mais passividade do que indica atividade
semelhante à de Marta. Entregar-se a Deus é a coisa menos passiva que,
possivelmente, você pode fazer. São Paulo, aquele dínamo de atividade, foi
quem disse: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas
2:20). João Batista, outro dínamo, disse: “É necessário que Ele cresça e que eu
diminua” (João 3:30).
5. Jesus e o sexo

Hoje, quando ouvimos a palavra “moralidade” pensamos automaticamente


em moralidade sexual. Isso se deve ao fato de que sabemos que o sexo é de
longe o maior campo de batalha moral do mundo. Todos falam da “revolução
sexual”; ninguém fala de uma revolução moral correspondente em alguma
outra área. Na verdade, o resto da lei moral ainda está bem no lugar na mente e
no coração das pessoas. Nenhum presidente dos Estados Unidos teria
sobrevivido a revelações de que é sádico, ladrão, homicida ou até mesmo
mentiroso deliberado a respeito de nenhuma outra coisa que não o sexo.
O relativismo moral é a nova ortodoxia entre nossos formadores de
opinião da mídia e da área de educação. E quase todas as justi cativas para o
novo relativismo moral são sexuais. Ninguém quer uma moralidade do tipo
“vale tudo”, “diferentes ritmos para diferentes povos”, “viva e deixe viver” ou
“não julgue” no que se refere à ecologia, à economia, à penologia, ao terrorismo
ou, até mesmo, ao tabagismo. Só para o sexo.
Não justi camos matar inocentes indefesos, a não ser em nome do sexo.
Se as cegonhas trouxessem os bebês, não haveria aborto. O aborto é a cópia de
segurança do controle da natalidade; e o controle da natalidade, a exigência do
sexo sem bebês. A força motriz do holocausto abortivo é sexual.
Não justi camos outra prática cujos resultados evidentes são (1) trair seu
amigo mais íntimo e a mais solene promessa que fez a ele; (2) prejudicar a
felicidade de seus lhos de forma profunda pelo resto da vida deles; e (3)
destruir o mais fundamental pilar da sociedade humana. Todavia, justi camos
o divórcio, embora ele acarrete esses três resultados, pois o divórcio acontece
em nome do sexo. Não podemos roubar o dinheiro de outro homem sem ir
para a cadeia, mas podemos roubar a esposa de outro homem. Não podemos
trair nosso advogado sem sermos castigados, mas podemos trair nossa esposa, e
ela é castigada. Não podemos destruir o ovo fecundado da águia-careca nem
matar a baleia azul sem infringir a lei, mas podemos matar nossos lhos não
nascidos sem infringir a lei.
Evidentemente, esta sociedade não tem em estoque muita sabedoria
losó ca nem consistência lógica. Todavia, há pouca esperança de repor essas
mercadorias apenas com argumentos, por mais irrefutáveis que sejam. Tente
convencer um maconheiro de que ele precisa arrumar seu cérebro. O cérebro
dele já está bagunçado; portanto, a mensagem não encontra solo fértil. O
viciado em sexo não pensa com mais clareza que o viciado em drogas.
Contudo, apesar do ato de pensar não ser su ciente, é algo necessário.
Pensar “desconfunde” as coisas. Temos de encontrar a essência da nossa
confusão e, depois, achar a chave de ouro para sair da confusão.
A essência da confusão é que confundimos sexo com amor. E Cristo é a
saída para essa confusão. Agora, veja como isso funciona.
Eis a confusão: os Beatles cantavam: “All you need is love” [“Tudo de que
você precisa é amor”]. Mas não é verdade. Alguém escreveu uma história
romântica com o título “Love Is Enough” [“O Amor é Su ciente”]. Mas isso
não é verdade. Não o tipo de amor a que eles se referem. Por sua vez, é verdade
que “tudo de que você precisa é amor”, e que “o amor é su ciente”, pois “Deus
é amor”, e Deus é su ciente.
E eis a limpeza da confusão, a aparente contradição: que tipo de amor
Deus é? A resposta é Cristo. Você quer saber o que, em última instância, é o
amor? Olhe para lá. Olhe para Cristo. Lá está o amor. A de nição não é
abstrata, mas tão concreta quanto um cruci xo.
Ninguém da civilização ocidental pode ignorar a sabedoria que
recebemos de Cristo, nem que a coisa mais valiosa que existe é o amor. O que
talvez ignoremos é o quão distinto esse amor é de todos os amores humanos
naturais; o quão desa ador é esse amor; o quão radical é a transformação que
esse amor exige. Cristo explica isso com uma analogia, Ele chamou essa
transformação de “nascer de novo”, usando como imagem a mudança mais
radical que vivenciamos em nossa vida natural. Confundimos o amor do qual
Ele falava (ágape) com amor sexual (eros), com compaixão e bondade subjetivas
ou com lantropia, as obras objetivas que esses sentimentos nos motivam a
praticar. A confusão com amor sexual não é defensável de forma racional e,
portanto, ela é inconsciente; a confusão com sentimentos interiores de
compaixão ou com obras exteriores de lantropia parecem defensáveis e,
portanto, essa confusão, em geral, é consciente. Todavia, 1 Coríntios 13 refuta
de forma explícita as duas coisas.
O amor de Cristo, ao contrário de todas as outras formas de amor, não é
fácil, natural nem emocional; ele é difícil, sobrenatural e um ato de vontade,
algumas vezes contra a forma como gostaria que esse sentimento fosse expresso.
O trabalho da Madre Teresa de recolher das ruas de Calcutá pessoas
desamparadas morrendo por contaminação de mosquitos baseava-se em algum
sentimento meigo e doce que ela sentia por elas? Ela era necró la? Jesus tinha o
mesmo sentimento em relação a Judas que tinha por João? Quando os
sentimentos dele mudaram, o amor dele mudou?
Em geral, não ignoramos a ordem de Cristo para que amemos, mas, em
geral, ignoramos como esse amor é distinto de todo amor meramente humano.
O pensamento revela as diferenças. Nós não pensamos a respeito do que Ele
disse: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se
amarem uns aos outros” (João 13:35). Se esse amor fosse o amor natural,
genérico e universal já existente no homem, essas palavras seriam uma
contradição. Elas diriam: “O mundo verá a diferença entre vocês e eles pelo
fato de que todos compartilham o mesmo tipo de amor.” Claro que elas
querem dizer exatamente o oposto disso.
Bem, que diferença Cristo e seu amor (ágape) fazem para o sexo (eros)?
Que luz a Luz do mundo derrama sobre o deus do mundo, o sexo, e sobre
nossa revolução sexual?
O sexo é o deus do mundo, da nossa cultura. É nossa exigência mais não
negociável. O ensinamento da Igreja el de Cristo a respeito do sexo é o
principal motivo pelo qual o mundo odeia e teme a Igreja, pois ela tem uma
atitude “julgadora” em relação ao vício e à real religião da nossa sociedade.
Cristo modi ca radicalmente a revolução sexual. Como ele faz isso? Não
ao contrapor religião e sexo, mas ao contrapor a verdadeira e a falsa religião.
Do ponto de vista de Freud, a religião é um substituto do sexo; da
perspectiva de Cristo, o sexo é um substituto da religião. E um substituto
bastante bom. De todas as coisas que Deus criou, o sexo é a melhor e um ícone
natural do amor sobrenatural e de nosso destino sobrenatural. Apenas coisas
muito boas podem ser cultuadas. Você não pode fazer uma religião a partir do
encanamento ou do seguro.
Examinemos quão próximo da religião o amor está. O cerne da religião,
o m supremo da religião, o “Santo dos Santos” da religião é o casamento
espiritual com Deus. De acordo com a Bíblia, no m do livro do Apocalipse, o
último evento da história humana é o casamento do Cordeiro com sua noiva,
sua Igreja. E o cerne do sexo e sua grande emoção é a intimidade da relação
sexual, a superação quase mística da separação e do egotismo; a identi cação,
em corpo e em mente, um com o outro; o fato de que o ente amado o admite
em seu “Santo dos Santos”. Isso é ícone, imagem, vulto, profecia, aperitivo e
antecipação naturais do êxtase in nito e inimaginável do Céu para o qual
fomos todos feitos. Somos preparados para nos tornar um com Deus; por isso,
vibramos tanto por nos tornar um com nosso parceiro e vice-versa. Por isso, o
autoesquecimento, o transcender o egoísmo e o perder o controle no orgasmo
sexual são tão misteriosamente satisfatórios. Não é apenas a mera sensação
física; é o sentido místico. Os animais superiores sentem a mesma sensação
física (observe os cachorros!), mas eles não escrevem poemas de amor místicos e
românticos a respeito disso, e eles não escreveriam mesmo que pudessem
escrever.
O sexo animal é apenas uma remota imagem do romance humano, e o
romance humano é uma remota imagem do êxtase celestial. A intimidade
terrena com o ente amado é uma faísca mínima, distante da fogueira que é a
intimidade celestial com Deus. O sexo é uma imagem desbotada da visão
beatí ca.
A Era da Fé investiu sua fé, sua esperança e seu amor no êxtase celestial.
Nossa era da apostasia perdeu isso, assim, tornou-se bastante natural ligar o
sexo humano à imagem do êxtase celestial. A revolução sexual não aconteceria
sem duas causas ou condições: (1) declínio da paixão religiosa; e (2) a pílula
capacitou-nos a separar o sexo da procriação e da responsabilidade que dura a
vida toda.
A religião não é um pálido substituto do sexo, mas o sexo é um pálido
substituto da verdadeira religião; porque, como Tomás de Aquino diz:
“Nenhum homem pode viver sem alegria; por isso, um homem privado da
alegria espiritual volta-se para os prazeres carnais” (ST II-II, 35, 4 e 2). A
origem da revolução sexual é religiosa. Por essa razão, as exigências dela são tão
inegociáveis.
Contudo, quando você tem a coisa verdadeira, ca livre do vício da
imagem dela. Quando você tem um relacionamento de amor (ágape) com
Deus, liberta-se do relacionamento de amor (eros) com as criaturas. E apenas
aí, apenas quando não precisamos tão desesperadamente das criaturas,
podemos usufruir e apreciar as criaturas livremente. O alcoó-latra não está livre
para apreciar o álcool, o viciado em sexo não está livre para apreciar o sexo.
O que Cristo tem a ver com isso? Tudo. Pois apenas Cristo nos fornece
intimidade com Deus. Portanto, só Cristo é a resposta para a revolução sexual.
Para muitas pessoas, essa conexão parecerá bizarra. A pergunta: “O que
Cristo tem a ver com sexo?”, parecerá suspeita, semelhante à que um dos
demônios fez a Cristo quando ele estava para expulsá-los de um homem
endemoninhado: “O que queres conosco, Jesus de Nazaré?” (Marcos 1:24;
Lucas 4:34). Como ousamos juntar essas duas coisas? Nós devemos juntar, pois
elas são as duas coisas mais veementes de nossa vida.
Repassemos isso de forma mais meticulosa. Observe o sentido mais
profundo da revolução sexual. Vivemos em uma época revolucionária.
Aconteceram mais mudanças, e as mais profundas, na história humana na
última metade do milênio que na primeira metade, e ainda mais no último
século que em qualquer outro. E a revolução sexual, com certeza, é a revolução
mais radical da nossa época. Pois “radical” quer dizer “sobre raízes (radix), e o
sexo é a raiz da própria vida humana.
O fruto mais radical da revolução sexual não é a ação, mas o
pensamento. Não é o que os inimigos dela, à direita, em geral, dizem que é, a
saber, cada vez mais imoralidade ou promiscuidade sexual, embora as
consequências disso sejam desastrosas para a família e, portanto, para toda a
sociedade, em especial para as mulheres. Nem o que os simpatizantes dela, à
esquerda, em geral, dizem que é, a saber, cada vez mais conhecimento e poder
por meio da “educação sexual” e da experimentação e experiência sexual. Mas
exatamente o contrário disso; o fruto mais radical da revolução sexual é a
ignorância: a ignorância da verdade mais básica de todas em relação ao sexo, à
relevância básica do sexo, ou seja, de qual é o sentido, ou signi cado, mais
básico do sexo, ou seja, “a que se refere o sexo”. O sexo se refere a gerar bebês.
O sexo é a origem de uma nova vida humana. Por isso, ele é tão extasiante! O
sexo se destina à procriação, o mais próximo que podemos chegar do êxtase
divino da Criação. E é isso que a revolução sexual esquece, nega, oculta ou
proíbe.
A mudança mais radical acarretada pela revolução sexual não foi no
comportamento. Já ocorreu todo tipo de explosão violenta de comportamento
sexual antes na história, notavelmente na agonizante Roma. A verdadeira
revolução foi no pensamento. No início do Dhammapada, Buda diz: “Tudo
que fazemos é a partir dos nossos pensamentos.” O que o Papa Paulo VI,
profeticamente, chamou de “mentalidade contraceptiva” foi a mudança mais
radical que qualquer outra prevista, com exceção da de Aldous Huxley em
Admirável mundo novo. A contracepção separa o sexo dos bebês. Isso é como
separar o alimento da nutrição, os olhos da função de ver, os congeladores do
gelo, as igrejas dos santos. (Nós também fazemos isso; quantos de nós não
vemos a Igreja, primeiro de tudo, como uma máquina de fazer santos? Mas era
assim que S. Paulo a via. Lembre-se disso, e todas as epístolas se tornarão
claras.)
Os simpatizantes e os inimigos da revolução sexual, em geral, dizem que
ela consistiu na remoção da censura e da restrição no comportamento sexual.
Os simpatizantes dizem que isso foi bom; e os inimigos, que não. Todavia,
ambos estão errados. Muito mais radical foi a imposição de uma nova censura,
a censura da essência do sexo, do sentido do sexo. Eles caram tão obcecados
com o fato de que as pessoas devem fazer sexo que se esqueceram de que o sexo
faz as pessoas. Eles caram tão absortos na psicologia que se esqueceram da
biologia.
Devemos expor as mentiras da revolução sexual. O divórcio e o aborto
são duas delas. A revolução justi ca o divórcio com um apelo à “compaixão”,
mas, na verdade, o divórcio é uma tremenda falta de compaixão para com suas
vítimas inocentes, as crianças. Nesse aspecto, é igual ao aborto. Na verdade, o
divórcio é um aborto: da nova pessoa, de “uma carne” criada pelo casamento. E
esta é a segunda mentira: o aborto, o principal sacramento da revolução sexual
e seu fruto mais assombroso.
Uma vez que a revolução sexual se fundamenta em uma mentira, ela só
pode ser derrotada ao contarmos a verdade, toda a verdade e nada mais que a
verdade a respeito do sexo. Isso quer dizer não apenas o “não” da revolução,
mas um “sim”: substituir a fantasia pela realidade, expondo toda a verdade, o
panorama geral. (Foi isso que João Paulo II fez em sua “teologia do corpo”.)
O “panorama geral” inclui duas das verdades mais básicas da teologia
cristã, a Criação e a Encarnação. Cristo, como judeu, acreditava na primeira, e
ele era a segunda.
A Criação quer dizer que o amor de Deus deu existência a todo o
universo material, incluindo o corpo humano e sua sexualidade. O cristianismo
é a religião mais materialista da história. A matéria é muito boa. Deus ama a
matéria. Observe quanta matéria Ele criou!
A Encarnação quer dizer que Deus não só criou a matéria, mas se tornou
matéria! Deus tornou-se um ser material! E Ele ainda é. Ele não deixou seu
corpo humano para trás quando ascendeu ao Céu. A ascensão não representou
o desfazer da Encarnação. Cristo levou sua natureza, seu corpo e sua alma
humanos com ele para o Céu, onde os tem para sempre.
A doutrina da Criação indica que toda matéria é santa porque Deus a
criou, mas a doutrina da Encarnação indica que o corpo humano é a matéria
mais santa, pois Deus a tomou sobre seu ser, casou-se com ela em uma união
indissolúvel. (O que Deus uniu, nenhum homem pode separar.) Cristo
encarnou-se para nos salvar, e a redenção foi física. Ela não aconteceu apenas
por meio de ensinamento e de dar bom exemplo. A redenção aconteceu com
Cristo entregando-nos sicamente seu sangue na Cruz, não estando apenas
mentalmente disposto a fazer isso. Tertuliano disse: “A carne é o eixo da
salvação.” “Nenhum outro sangue fará isso.”
Criação (de matéria), Encarnação (em matéria humana), ascensão (do
corpo humano material dele) e Eucaristia, “novos céus e nova terra” — Deus
aprecia a matéria como um artista. Apenas uma religião como essa produziria
uma “teologia do corpo” como a de João Paulo. Essa teologia será a marca
registrada dele para sempre, da mesma forma que “coração desassossegado” é a
de Sto. Agostinho, como a pobreza santa é a de S. Francisco de Assis e como o
casamento de fé e razão é a de S. Tomás de Aquino.
A teologia do corpo é totalmente cristocêntrica. Cristo não ensina a
teologia do corpo; Cristo é a teologia do corpo.
O cerne da teologia do corpo é a visão do sexo como um ícone da
Trindade e do nosso destino celestial nal e místico de nos casar com Deus.
Deus não é apenas um indivíduo; Ele é uma família, uma Trindade, uma
família formada de Pai, Filho e Espírito. Por isso, a família é semelhante a
Deus, porque Deus é uma família.
Deus é uma Trindade porque Ele é amor, o amor completo e, portanto,
amante, amado e amoroso. Ele não é apenas um amante, mas “Deus é amor” (1
João 4:8). E, por isso, o amor humano, em especial, o amor humano sexual, é
semelhante a Deus: porque Deus é amor.
Isso é cristocêntrico porque só Cristo revela a Trindade. (Só os cristãos
creem nisso.) Cristo é nosso dado fundamental para a doutrina da Trindade.
Cristo é o motivo pelo qual sabemos que Deus não é apenas uma única pessoa,
mas Pai, Filho e Espírito: Cristo chama a seu Pai de Deus e a si mesmo de
Deus, e chama o Espírito que enviariam de Deus; contudo, Ele, como judeu,
sabia que existia apenas um Deus. Portanto, Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
E a Trindade é o sentido supremo do sexo. Pois fomos feitos à imagem
de Deus, e isso quer dizer sexo. Na exata primeira vez que a Bíblia usa a
expressão “à imagem de Deus” (Gênesis 1:27), ela a identi ca como “homem e
mulher”.
Quão importante é a teologia do corpo? Isso depende de quão
importante é a revolução sexual. A importância de São Jorge depende da
importância do dragão. A importância do Dr. Van Helsing depende da
importância de Drácula.
E quão importante é a revolução sexual? Isso depende de quão
importante é a família — exatamente pela mesma razão.
E quão importante é a família? Ela é apenas o fundamento de toda a
sociedade humana; na verdade, de toda a existência humana.
As quatro sociedades mais estáveis, bem-sucedidas, pací cas em seu
interior e duradouras da história foram a judaica (mosaica), a confuciana, a
islâmica e a romana. Elas duraram cerca de 35, 21, 14 e 7 séculos,
respectivamente, por um motivo dominante: todas elas respeitavam muitíssimo
a família.
Acho que a família é mais importante para Deus até mesmo que a
ortodoxia doutrinal, pois a família diz respeito à própria imagem de Deus no
homem. O islamismo e o mormonismo são heresias teológicas, mas Deus os
está abençoando, e, hoje, eles estão se expandindo mais depressa que o
cristianismo, porque os muçulmanos e os mórmons são muito mais éis à
família, ao casamento, à moralidade sexual e à procriação que os cristãos. Eles
resistem à revolução sexual. Nós sucumbimos a ela.
Isso é ultrajante, pois a resposta de nitiva para a revolução sexual não é
Maomé nem Joseph Smith, mas Jesus, que não só revela, como também
encarna, o mistério da santidade do sexo, do casamento e da família como
sinais sagrados de nosso destino supremo: o casamento espiritual com Deus.
Jesus não nos conta apenas sobre o panorama geral, Ele é o panorama geral. Ele
não nos ensina apenas a Palavra de Deus a respeito de sexo; Ele é a Palavra de
Deus a respeito de sexo. Ele não revela apenas o casamento espiritual; Ele é o
casamento espiritual. Em Cristo, temos mais que o panorama geral, temos a
Pessoa toda.
6. Jesus e a ética social: solidariedade

O problema fundamental da sociedade é o aglutinante. O que aglutina


naturalmente indivíduos egoístas? Somos naturalmente egoístas. Essa é a
formulação, veri cável de forma empírica, da doutrina do pecado original. O
egoísmo divide, a comunidade une. O que funde o egoísmo na comunidade?
Sua força? Ou sua justiça social?
Nada disso. É a solidariedade. A solidariedade (sobornost, em russo,
solidarinosc, em polonês), como aglutinador humano, sempre foi mais poderosa
que a justiça, pois a justiça é abstrata e racional; enquanto a solidariedade,
concreta e mística.
Mas qual é o fundamento da solidariedade? Não é apenas nossa origem
comum em Adão, mas nosso m comum em Cristo.
Os secularistas dizem que nossa origem comum é o macaco, e que nosso
m comum é a morte. Um fundamento não muito bom para a solidariedade!
O mundo, com acerto, louva (quando é sadio) e pratica (quando é
moral) o respeito por toda vida humana, incluindo a menor, a mais fraca, a
mais necessitada, a mais vulnerável, a mais “inútil”. Mas, por quê? Baseado em
quê? Intuição e sentimento? Eles são tão inconstantes, imprevisíveis e
incontroláveis quanto o vento ou os ventos da moda, quando manipulados pela
mídia. A Igreja de Cristo fornece a verdadeira resposta: o verdadeiro
fundamento para a solidariedade humana é Cristo. É em Cristo que todos os
homens são irmãos. Tudo que fazemos a uma moradora de rua, a um bebê,
nascido ou não nascido, a um paciente terminal de câncer ou a um inimigo
político ou militar, fazemos a Cristo.
Pois Cristo, na Encarnação, não se tornou apenas um homem, mas o
Homem, a Humanidade. E não a “humanidade” como uma ideia abstrata, mas
como uma família concreta. Estas palavras não são uma cção jurídica: “O que
vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a mim
deixaram de fazê-lo” (Mateus 25:45). Elas são uma verdade literal. No
casamento físico, o casal “se torna [...] uma só carne”, um só corpo, uma nova
pessoa; e se você entender isso, não mais competirá, nem rebaixará, nem ferirá
seu cônjuge, pois ele é você mesmo, seu próprio corpo (Efésios 5:28). Todavia,
nós, em Cristo, somos casados com todos os homens, pois somos membros
(órgãos, mãos) do corpo dele. Se entendermos isso, entendemos a
solidariedade. A solidariedade, à parte de Cristo, é apenas um belo ideal. Em
Cristo, ela é um belo fato.
Esse belo ideal, à parte de Cristo, tem de ser realizado pelo esforço
humano. Mas o esforço humano está comprometido com o pecado. Por isso,
muitos dos regimes políticos que demonstram solidariedade humana
apaixonada e de autossacrifício, da Alemanha da década de 1930 ao Al Qaeda,
também são regimes que demonstram pecaminosidade e ódio apaixonados.
A solidariedade é a resposta fundamental para o problema social e
político fundamental. O problema é como conseguir que indivíduos egoístas
cooperem sem perder sua individualidade. Este é o problema da polis, da
civitas, da comunidade: qual é a unidade comum da “com-unidade”? Como
podemos viver em paz, em vez de em guerra?
A guerra é a ideia mais estúpida da história: “Temos problemas. Vamos
resolvê-los matando uns aos outros.” Todavia, há muitos exemplos dessa
brilhante ideia na história, e a paz é a exceção. Pois, na topogra a do nosso
mundo, para acontecer a paz, ela precisa primeiro acontecer na topogra a da
nossa mente, pois nossos pensamentos governam nossos atos. Nossa percepção
tem de ser mudada da guerra para a paz, de “nós versus eles” para “nós inclui
eles”. Como “eles” podem se tornar “nós”? Como podemos identi car o bem
particular com o bem comum? Como podemos superar esse “estado da
natureza (caída)”, que Hobbes descreve de forma memorável como o estado de
guerra de cada um contra todos, e de todos contra cada um, um estado de vida
que é “solitário, pobre, sórdido, bestial e curto”? Não apenas com os contratos
sociais e tecnológicos. A Alemanha de Hitler, a Rússia de Stalin e a China de
Mao tinham os dois, e a vida continuou solitária, pobre, sórdida, bestial e
curta.
Mais uma vez, Cristo não ensina apenas a resposta, Ele é a resposta. Ele
não nos direciona para a nossa paz, Ele é nossa única forma de paz.
7. Jesus e a política: Ele é de esquerda ou de direita?

Hoje, vemos todas as questões políticas pelo prisma direita versus esquerda, o
“nós versus eles” político. As categorias são abrangentes e dizem respeito à
economia de pensamento, a resposta automática que nos permite evitar
ponderar sobre o mérito de cada questão. Contudo, as categorias, e a
polarização que elas criam, são ainda mais indefensáveis quando aplicadas a
Cristo, pois isso representa o mundo caído julgar a Cristo, em vez de vice-
versa.
A polarização também é prejudicial à moralidade porque nos permite ser
seletivamente morais, seletivamente idealistas — o que quer dizer seletivamente
imorais e pragmáticos. Se pegarmos o caminho mais fácil do aborto, da
eutanásia e da sexualidade, podemos pegar o caminho mais difícil da guerra, da
pobreza e da poluição; ou vice-versa. Mesmo quando focamos uma questão
especí ca, como se toda vida humana é intrinsecamente valiosa ou não, essas
categorias permitem-nos chegar à esquizofrenia moral de dizer sim quando
tratamos do aborto e dizer não a essa mesma questão quando tratamos de
guerra e de pena capital — ou vice-versa. Isso não quer dizer que nós
simplesmente respondemos da forma errada (não tenho certeza de qual é a
resposta certa especí ca a respeito de uma guerra especí ca ou a pena capital
para um caso especí co), mas aponta para o fato de que temos princípios
autocontraditórios.
Apenas do ponto de vista daquele que é reto podemos julgar o
distorcido. Cristo é o reto, a linha de prumo — quando Ele é conhecido de
forma explícita, por meio da revelação divina, e quando Ele é conhecido de
forma implícita, por meio da consciência e da lei natural. Ele faz todas as
questões voltarem à ordem natural de Deus para julgar as desordens não
naturais do homem. Por essa razão, Ele também faz isso com a política.
Ele também une os interesses apropriados da direita e da esquerda, pois
Ele é o caminho reto (“Eu sou o caminho”) do qual a direita e a esquerda
partem. Ele fornece motivos mais sólidos para os interesses legítimos da direita
e da esquerda do que elas podem fornecer.
Por exemplo, por que alimentar o pobre? Porque o pobre é Cristo
disfarçado. E não só por ser correto do ponto de vista político ou por
sentimento individual.
Por que amar o pecador, como faz a esquerda, e por que odiar o pecado,
como faz a direita? Por que amar o viciado em drogas, a violência, o dinheiro
ou o sexo? E por que odiar o vício deles? Pela mesma razão. Porque Cristo ama.
Por isso, devemos ser mais compassivos com os pecadores do que os liberais o
são, e mais incompassíveis com os pecados do que os conservadores o são. Pela
mesma razão: Cristo.
Por que insistir na ortodoxia doutrinal? Não só pela correção, mas
também por lealdade a Cristo. Por que falar de pecado e salvação, duas palavras
que escandalizam os secularistas? Não apenas para refutar o secularismo, mas
por causa de Cristo. Cristo não fala apenas de pecado e de salvação, Cristo é a
salvação.
Por que pregar e praticar o “evangelho social”? Não para ser
politicamente correto nem para refutar os fundamentalistas, mas porque Cristo
o pregou e o praticou.
Por que ser universalista, inclusivo e ecumênico? Não para escarnecer da
xenofobia, do isolacionismo e do provincianismo, mas porque Cristo foi, e é,
universalista. Cristo não é uma divindade tribal.
Por que insistir no “escândalo da particularidade” e nas a rmações
concretas, visíveis, particulares e exclusivas de Cristo de ser o único Salvador?
Não para confundir os liberais, mas porque Cristo é particular, concreto,
visível, exclusivo e literal.
Por que ser progressista, radical, criativo e ser apaixonado pelo novo? Por
que se abrir para o vento como o veleiro? Porque Cristo é e faz isso.
Por que ser el e car preso, como âncora, na lama tradicionalista?
Porque Cristo “é o mesmo, ontem, hoje e para sempre”.
Por que ser um “liberal de coração mole”? Porque Cristo o é. Por que ser
um “conservador cabeça-dura”? Porque Cristo é.
Muitos substituíram o liberalismo, o conservadorismo ou algum outro
“ismo” por Cristo e cooptam Cristo para a causa deles. Cristo não pode ser
cooptado por nenhuma causa; todas as causas têm de ser cooptadas por Ele.
Todos os “ismos” são abstrações. Até mesmo o “ismo” perfeito, se houver
algum, não pode nos salvar nem nos amar.
O perigo especial da direita religiosa é adorar as doutrinas de Cristo em
vez de adorar a Cristo, confundindo o sinal com a coisa representada. A direita
está absolutamente certa em insistir em ser correta e em insistir nos absolutos.
Mas o dedo aponta para a lua; devemos ter compaixão do tolo que confunde o
dedo com a lua.
O perigo especí co da esquerda religiosa é adorar os valores de Cristo em
vez de adorar a Cristo. Isso é tão abstrato quanto a substituição de Cristo pelas
suas doutrinas feita pela direita. Os valores de Cristo também são apenas o
dedo que aponta para Ele.
A direita argumenta que a esquerda é vaga, mas até mesmo as doutrinas
reais e precisas da direita são vagas quando comparadas com Cristo. Tudo é. A
esquerda argumenta que a direita é in exível, mas até mesmo o coração terno e
compassivo de um liberal é in exível quando comparado com Cristo. Tudo é
in exível.
Direita e esquerda não podem convencer e converter uma à outra pela
mesma razão que os fariseus e os saduceus não podiam convencer e converter
uns aos outros. Pois os fariseus não precisam abrandar um pouco o coração,
não precisam de uma pequena dose de mundanidade, de psicologia pop, de
relativismo e de subjetivismo. Eles precisam de Cristo. E os saduceus não
precisam endurecer um pouco o coração, não precisam de um pouco de
arrogância, um bocadinho de avareza, como a do personagem de Charles
Dickens, Scrooge, não precisam de Maquiavel, nem da “sobrevivência do mais
forte” darwiniana. Eles precisam de Cristo.
E nossa sociedade, dividida como está hoje entre direita e esquerda, da
mesma forma que a sociedade da época de Jesus estava dividida entre saduceus
e fariseus, só precisa de Cristo.
As sociedades terrenas não são eternas, as almas o são. Ainda assim,
Cristo é o Salvador das sociedades, como também das almas. Nossa sociedade
está morrendo porque transformou o nome santo de seu Salvador em uma
imprecação. A Cristofobia está matando nossa sociedade. Nossos secularistas
estão nos fazendo esquecer Cristo mais depressa do que os fazemos se lembrar
dele, por isso nossa sociedade está morrendo. Seu estoque de sangue está
secando. O sangue precioso está evaporando. A cada dia, perdemos mais
sangue.
A resposta a isso é escandalosamente simples: a menos que Cristo, o
cristianismo, a Bíblia, a Igreja, os apóstolos de Cristo e todos os santos sejam
mentirosos. A resposta é que existe apenas uma esperança para as sociedades e
para as almas: “Ele lhe trará uma mensagem por meio da qual serão salvos você
e todos os da sua casa” (Atos 11:14).
Isso é simples e infantil demais para você? Você é muito “avançado” e
“adulto” para isso? Lembre-se do que signi ca uma cárie dentária em estado
avançado. Lembre-se do que nossa sociedade entende por “adulto”. Lembre-se
do que quer dizer lme “adulto”. E, depois, o compare com A Paixão de Cristo.
Então, “escolham hoje a quem irão servir” (Josué 24:15). Faça apenas isso.
Conclusão
Você não esperava que um livro sobre loso a terminasse desta forma, não é
mesmo? Contudo, esta foi a maneira que o maior lósofo do mundo terminou
sua loso a. As últimas palavras de Cristo, registradas na Bíblia por intermédio
de seu profeta João, no livro do Apocalipse, dizem a mesma coisa. (Leia
Apocalipse 22.) Pois essa é a coisa mais importante que alguém já disse, é a
escolha mais séria que fazemos, a escolha entre tudo e nada, ser e não-ser, luz e
trevas, Céu e Inferno, Cristo e anticristo — e se a loso a não tiver nada a
dizer a respeito disso: então para o Inferno com ela.
DIREÇÃO GERAL
Antônio Araújo

DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro

EDITOR RESPONSÁVEL
Hugo Langone

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Mônica Surrage

REVISÃO
Gustavo Nogy

PRODUÇÃO DO EBOOK
Ranna Studio

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