Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela PETRA EDITORIAL LTDA.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de
banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação
etc., sem a permissão do detentor do copirraite.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
K92j
ISBN 978.85.8278.043-5
PETRA EDITORA
Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – 21042-235
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8312/8313
SUMÁRIO
Conclusão
INTRODUÇÃO I
Mas este livro não é tanto sobre o estilo losó co, nem sobre o método e,
tampouco, sobre o “tipo de mente” de Jesus, mas é sobre sua essência losó ca,
suas respostas losó- cas, sua loso a.
INTRODUÇÃO III
Existem quatro perguntas losó cas perenes. “Filoso a” quer dizer “amor à
sabedoria”, e a sabedoria, se a tivermos, pode responder, pelo menos, a quatro
grandes perguntas:
O nome pelo qual Jesus chamava Deus era ainda mais espantoso que aquele
que Deus revelou a Moisés. Os judeus aprenderam com Moisés que Deus é
apenas Eu Sou, a pessoa eterna, perfeita, única e totalmente real. E Jesus
chamava essa pessoa por um nome que ninguém jamais sonharia ou ousaria
usar: “Pai”.
Esse fato representava dois choques: Deus era Pai de Jesus, por natureza,
na eternidade; e nosso Pai, por adoção, no tempo.
(No mundo antigo, “ lho adotivo” era o título legal genérico para
mulheres e homens adotados; uma vez que o direito de herança era passado por
meio dos homens, “ lho” era a palavra necessária para designar o fato de que
mulheres e homens tinham direito à plena herança espiritual de todas as
riquezas de Deus concedidas por intermédio de Cristo. O ponto realmente
“inclusivo” só poderia ser expresso por meio de uma palavra aparentemente
“exclusiva”.)
E Jesus ainda foi mais adiante. Ele usava a palavra “Abba” — não apenas
“Pai”, mas “Papai”, o termo íntimo usado pela criança ou pelo bebê. (Até
mesmo um bebê consegue balbuciar: “Abba”, ou “Papa”.) Aquele que é
in nitamente transcendente, agora, também será, por todo o resto do tempo e
da eternidade, in nitamente íntimo. Agora, o Pai está brincando com o bebê e
usando a fala dos bebês. O divino inacessível tornou-se tão acessível que pôde
ser morto. Ele não só tornou seu espírito acessível, mas também seu sangue.
Suas palavras de salvação não eram como as dos lósofos: “Esta é minha
mente”, mas: “Isto é o meu corpo” (Mateus 26:26).
O apóstolo João, já idoso, ainda estava espantado e estupefato quando
ponderou esse paradoxo ao escrever sua primeira epístola. A primeira frase do
Evangelho dele diz: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com
Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória.” A primeira frase de sua epístola declara: “O que era desde
o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que
contemplamos e as nossas mãos apalparam.” A origem implícita de toda
manifestação tornou-se clara. O “Tao”, por trás das “dez mil coisas”, se tornou
uma dessas manifestações.
A equação de Deus com Cristo é semelhante à equação E = mc². A
energia divina foi convertida em massa por uma espécie de ssão transnuclear.
O sujeito divino (“Eu”) tornou-se um objeto humano (“ele”). A velocidade da
luz celestial tornou-se nita.
Por que Ele fez isso?
3. A metafísica do amor
* Fosse eu mulher, diria “sua” e em “si mesma”. Não direi “seu ou sua” nem “eles mesmos”, pois abusar da
gramática não é reparação para o pecado de insultar as avós.
5. A santidade como essência da ontologia
E como os santos são “pequenos Cristos”, Gabriel Marcel está certo quando
diz que “a santidade é a verdadeira introdução para a ontologia” (“On the
Ontological Mystery” [“Sobre o mistério ontológico”], em e Philosophy of
Existentialism [A loso a do existencialismo]).
Considero essa uma das mais enigmáticas e signi cativas expressões já
ditas por algum lósofo. Não é sentimentalismo, mas lógica perfeita. Pois:
“Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-se.”
Disseram-lhe os judeus: “Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?”
Respondeu Jesus: “Eu lhes a rmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!”
Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo (João 8:56-59).
Que lugar é esse? Jesus. Ele é o lugar em que habita a sabedoria. Só Jesus
revela Deus e o homem para o homem, pois só Ele é perfeitamente Deus e
perfeitamente homem. Conforme diz Pascal:
Nós não só conhecemos Deus por intermédio de Jesus Cristo, mas também só nos
conhecemos por intermédio dele; só conhecemos a vida e a morte por meio de Jesus
Cristo. À parte de Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido de nossa vida nem
de nossa morte, de Deus nem de nós mesmos. (Pensamentos, p. 417)
O que devemos saber? Apenas duas coisas: quem somos e quem é Deus.
Pois essas são as duas únicas pessoas de quem jamais conseguiremos fugir por
toda a eternidade. E saber quem somos envolve conhecer o sentido da nossa
vida, e isso envolve conhecer o sentido da morte, pois ela limita a vida da
mesma forma que a moldura limita o quadro. A a rmação de Pascal (que é a
a rmação do próprio Jesus e de todos seus discípulos que escreveram o Novo
Testamento) é que Jesus é a resposta, a verdadeira, e nal, e suprema, e única
resposta adequada para as quatro questões de Pascal: Deus, “eu”, vida e morte.
A primeira dessas quatro questões é Deus. Ele é a primeira questão
porque Deus é o primeiro em tudo. Temos de começar com o Princípio. O que
mais precisamos conhecer é o Ser mais necessário.
Mas isso é impossível porque Ele “habita em luz inacessível” (terceiro
cânon da missa). Como o Sujeito eterno, Eu Sou, pode tornar-se objeto do
conhecimento humano? Como pode o mero homem mortal, esse tolo nito,
caído e falível, conhecer Deus? É muito mais fácil uma ameba descerebrada
conhecer o homem.
A resposta de Cristo vem em duas partes: primeiro a má notícia; depois,
a boa.
A má notícia (que já conhecemos se formos sábios como Jó) é que não
podemos conhecê-lo. “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18). Mas, logo a
seguir, ele nos dá a boa notícia: “O Deus Unigênito, que está junto do Pai, o
tornou conhecido” (João 1:18). A busca universal do homem por Deus, como
a torre de Babel, é um fracasso universal. A loso a, em última instância, é o
clássico gracejo do fazendeiro de Vermont: “É, daqui não dá para chegar lá.”
Contudo, a busca de Deus pelo homem é um sucesso, e o nome desse sucesso é
Jesus.
Não podemos conhecer Deus, a Verdade suprema, escalando alguma
torre humana, quer construída com palavras quer com tijolos. Só podemos
conhecer Deus se Ele descer até nós, se Ele descer a escada de Jacó. Jesus é a
escada de Jacó (Ele mesmo diz isso, compare João 1:51 com Gênesis 28:12); e
vemos essa escada de cabeça para baixo, pois ela realmente está apoiada no
Céu, não na terra, como a torre de Babel. A fundação dela não pode ruir como
a de Babel, pois não é constituída de pensamento e de palavras (logoi)
humanos, mas de pensamento e palavra divinos (o Logos, João 1:1).
É totalmente razoável o fato de que o raciocínio humano não consiga
encontrar Deus. Para provar isso, precisamos de um princípio básico da
epistemologia, o qual descobriremos observando os vários graus do
conhecimento humano. Pois os graus de conhecimento correspondem aos
graus de realidade, uma vez que o conhecimento corresponde à realidade. (Na
verdade, “conhecimento” quer dizer “correspondência com a realidade”.)
Comecemos com a suposição de que queremos conhecer algo muito
inferior a nós mesmos: alguma abstração, ideia, regra ou número imaginado
pelo homem. Nesse caso, toda a atividade vem de nós. Pois uma ideia abstrata
não pode fazer nada por si mesma; toda a vida dela origina-se na nossa.
A seguir, suponha que você queira conhecer algo inferior a você, algo que
não é vivo, e cuja realidade independe de você, como uma pedra. A realidade
dela independe da sua mente, mas toda atividade dela (exceto o próprio ato de
existir e sua natureza) vem de você. Você tem de ir até ela e estudá-la. Ela não
faz nada, ca ali passiva e se deixa estudar.
Depois, suponha que você queira conhecer algo vivo, uma planta. Ela
tem alguma atividade própria. Ela muda de semente para árvore, de viva para
morta, de saudável para doente. Portanto, a planta é um pouco mais difícil de
conhecer, em especial, de prever. Ela é viva, e nós falamos “do mistério da vida”.
Não falamos sobre o “mistério das pedras”. Mas a planta ainda é razoavelmente
fácil de conhecer e, em essência, é passiva.
A seguir, suponha que você queira conhecer um animal. Isso é ainda
mais difícil, pois o animal tem um grau de realidade muito mais elevado e rico.
Ele é ativo. Ele, ao contrário da planta, pode fugir e esconder-se de você. É
preciso conquistar a con ança dele. Vocês compartilham uma vida mental.
Contudo, você ainda é o iniciador. Não vemos cobaias fazendo experimentos
de laboratório em homens.
Bem, você sobe mais um degrau, quando o ser que você quer conhecer é
outro ser humano, um igual, a atividade é dividida igualmente, ou quase, entre
vocês. (Você faz a maior parte da atividade quando dialoga com criancinhas,
enquanto a pessoa mais velha e mais sábia faz a maior parte da atividade ao
dialogar com você. Essa é a razão pela qual devemos dedicar a maior parte do
tempo de oração ouvindo.)
Depois, suponha que você queira conhecer um anjo. Se o anjo não se
revelar por si mesmo, saberemos muito pouco, quase nada a respeito dele.
Por m, suponha que você queira conhecer Deus. Aqui toda atividade
tem de ter origem nele. Se Ele não tomar a iniciativa, simplesmente não
podemos conhecê-lo.
Por isso, para haver o conhecimento de Deus é preciso ocorrer a
revelação divina.
Mas existe revelação divina, Deus revelou-se e de muitas formas:
primeiro, ao criar o universo, mas, por último e acima de tudo, por intermédio
de Cristo, a revelação nal e de nitiva de Deus. Não haverá mais nenhuma
revelação de nitiva até o m dos tempos. “Pois foi do agrado de Deus que nele
habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19). Esse versículo informa-nos que
Cristo é tudo de Deus que podemos conhecer, pois Ele é tudo de Deus que
existe. Não há mais em Deus do que em Cristo. O Pai está todo no Filho, não
reteve nada. Cristo é a suprema revelação epistemológica da suprema realidade
metafísica. Cristo é a chave para a epistemologia.
Observe o desdobramento dessa realidade nos Evangelhos. Note como
Cristo trabalha, como Ele faz muito mais que apenas conhecer a verdade e
ensiná-la. Observe como Ele é a verdade, não como na equação dois mais dois
são quatro, mas como as abelhas são em uma colmeia. (Ser abelha é o que as
abelhas fazem. Existir é um ato.) Observe como a epistemologia ganha vida
porque a verdade está viva e ativa e, por isso, pode nos libertar. Observe como
“a verdade os libertará”:
*
Como conhecemos Deus? Uma forma indispensável para obter esse
conhecimento é a oração. E se a oração pretende alcançar o Pai, chega a Ele,
quer tenhamos consciência quer não, quer saibamos quer não, por intermédio
do Filho. Portanto, Jesus, aqui também, é o caminho para conhecer Deus.
Conhecer pessoas requer palavras. Como Julieta conheceria Romeu se
nunca trocassem palavras entre si? E como você poderia conhecer Deus, se Ele
não tivesse falado com você por intermédio da Sua Palavra inspirada e escrita e,
acima de tudo, pela Palavra encarnada, e se você não falasse com Ele por meio
da oração? O amor precisa de palavras como também de música, pois o amor
canta.
Assim, a oração é necessária para conhecer Deus (como algo distinto de
ter conhecimento sobre Deus). Mas a oração não é a necessidade exigida por
uma obrigação, entre tantas outras, como ajustar uma peça no acolchoado de
retalhos. Na oração, lidamos com Deus, o fogo ardente, resplandecente e
explosivo existente no cerne de toda bondade, beleza e vida. Orar é mais
semelhante a se atirar em um vulcão que a encaixar uma peça no quebra-
cabeça. Orar é uma questão de justiça, mas é muito mais que isso: é uma
questão de amor. Orar não é apenas dar a Deus o que lhe é devido, realizar sua
obrigação moral, ajeitar alguma coisa; orar é tocar o corpo do Deus cujo amor,
na forma de sangue humano, transborda de cinco feridas.
III
A ANTROPOLOGIA DE JESUS
A terceira grande pergunta da loso a é a do questionador, a questão do
homem. A posição natural dela é a terceira, pois, após meditar a respeito da
realidade (metafísica), nós naturalmente pensamos sobre o pensamento
(epistemologia) e, depois, a respeito dos pensadores, de nós mesmos
(antropologia).
Porém, existe um “mas”. Essa divisão da loso a é muito mais
interessante que a metafísica e a epistemologia; todavia, apesar de todo intenso
interesse, tempo, energia e livros dedicados a essa busca; a despeito do fato de
que mais da metade de todos os livros sobre todas as ciências vendidos hoje nas
livrarias serem sobre algum aspecto da psicologia, não há ciência na qual haja
menos concordância, menos certeza e menos garantia de que agora sabemos o
que costumávamos não saber. Parece que, como resultado de todo esse
escrutínio moderno do “eu”, nos conhecemos menos bem que antes. Quanto
mais olhamos, menos enxergamos. Acontece exatamente o contrário em relação
ao mundo exterior. Hoje, entendemos os mistérios da origem do universo, 15
bilhões de anos atrás, ou as forças que mantêm as galáxias girando há trilhões
de anos-luz de distância melhor do que entendemos a nós mesmos. Na aurora
da loso a, Sócrates disse: “Conhece-te a ti mesmo.” Contudo, “conhecer a si
mesmo” parece um quebra-cabeça insolúvel, um koan. Nós não conseguimos
conhecer a nós mesmos; no entanto, devemos conhecer a nós mesmos.
O que isso tem a ver com Jesus, ou Jesus, com isso? Nas palavras, muito
repetidas, de João Paulo II: “Só Jesus mostra o homem a si mesmo.” Uma vez
que Jesus é perfeitamente Deus e perfeitamente homem, Ele revela
perfeitamente a Deus e ao homem. Jesus é a solução do koan.
Mas a resposta é apenas tão relevante quanto a questão. Precisamos
entender por que essa questão é um koan para poder valorizar a singularidade
de Jesus ser a solução para ela.
“Conhece-te a ti mesmo” parece ser um koan insolúvel. E é. Não
conseguimos resolver esse problema porque ele, de forma alguma, é um
problema; ele é um mistério (para usar a útil distinção de Gabriel Marcel):
estamos envolvidos nele, e não distanciados dele. Esse problema “transgride
seus próprios dados”. Não podemos resolver esse problema porque nós somos
esse problema. Da mesma forma que o olho pode ver um objeto, mas não a si
mesmo, a mente pode conhecer qual-quer objeto, mas não a si mesma, porque
ela não é um objeto.
Quando olhamos para nós mesmos, fazemos isso da nossa própria
maneira. Ficamos na nossa própria luz e produzimos nossa própria sombra.
Assim, nos identi camos com nossa sombra, a sombra que produzimos ou a
imagem de nós mesmos que lançamos no espelho. Mas isso não é o “eu”, é uma
imagem ou sombra do “eu”.
Somos espectadores em uma peça cuja exata presença e olhar afetam e
alteram os atores e a peça. Pois não somos só os espectadores, também somos
os atores. Na ciência, isso se chama “efeito observador”: alteramos as coisas
observadas por meio do próprio ato de observá-las. Quer esse princípio se
aplique às partículas subatômicas quer não, ele certamente aplica-se a nós. Pois
só nós no universo somos sujeitos, não objetos. No homem, o universo atinge,
pela primeira vez, a autoconsciência. Nós somos “eus”, sujeitos, quens, não
coisas, objetos, o quês. Como transformamos um sujeito capaz de conhecer em
um objeto de conhecimento? Como o arqueiro pode se transformar em seu
próprio alvo? Como o eu pode se transformar em isso sem deixar de ser eu?
Com certeza, ele não pode. E, com certeza, ele deve. Não conseguimos
conhecer a nós mesmos, mas devemos. Esse é o nosso koan. Precisamos
conhecer a nós mesmos porque se não zermos isso, então não saberemos de
forma alguma quem é que está conhecendo qualquer outra coisa. Se não
assinalarmos a impressionantemente grande conta bancária do nosso
conhecimento, nós não possuiremos nenhum tostão furado.
No zen-budismo, o koan é um enigma; em princípio, não solucionável
pelo pensamento comum, racional. O propósito dele é acabar com o
pensamento comum, ou adormecê-lo, a m de libertar a “mente de Buda”, que
consideram não ter o dualismo sujeito-objeto. O despertar repentino desse tipo
radicalmente novo de pensamento é “Iluminação”, ou satori, a versão zen de
nirvana (“extinguir” a vela do pensamento comum).
Não acredito nesse objetivo budista, pois, como cristão, creio em Deus e
na Criação e, portanto, na realidade do dualismo sujeito-objeto para o qual o
budismo busca a superação. O universo todo é objetivo para Deus. O dualismo
sujeito-objeto, o dualismo eu-isso que o budismo tenta superar é, na verdade, o
dualismo Criador-criatura, uma vez que o nome do Criador é “Eu Sou”, e suas
criaturas são seus objetos. Existe outro dualismo sujeito-objeto que o budismo
nega: o dualismo entre os objetos do universo e nós, sujeitos humanos, que
carregamos a imagem de Deus e, por essa razão, também somos “eus” ou
sujeitos. As duas coisas que Cristo revela para o homem, Deus e o homem, os
dois sujeitos, são as duas coisas que o budismo nega.
No entanto, embora não acredite na resposta budista, acredito na
profundidade da pergunta budista e no poder do koan de transformar a
consciência. Acredito também que Deus estabeleceu um koan para nós ao nos
dar uma curiosidade insaciável a respeito de nós mesmos e, ao mesmo tempo,
fazer esse “eu” inacessível à curiosidade comum.
Ele nos fez à sua própria imagem como eu (sujeitos, pessoas) e, ao
mesmo tempo, isso (objetos, criaturas). Somos meta sicamente duais, duplos.
Parece que não conseguimos superar esse dualismo a não ser pela
negação da realidade de um ou dos dois de seus tentáculos: os materialistas
ocidentais reduzem a personalidade a uma coisa entre as outras coisas no
mundo, enquanto o misticismo oriental reduz a realidade objetiva das coisas,
incluindo nossa própria nita coisi cação, à consciência, ao espírito, ou à
“mente de Buda” ou Brâman (“você é aquilo”).
Ao longo das eras, nossos mais brilhantes lósofos lançam-se a um ou a
outro desses dois erros clássicos na antropologia: ou o materialismo natural ou
o panteísmo espiritual; ou confundir o homem com as coisas ou com Deus.
Incrível! Nossos maiores lósofos, nossos maiores conhecedores não conhecem
a si mesmos bem o bastante para evitar confundir a própria essência deles com
o que não são!
E quando nossos lósofos evitam os dois erros extremos do materialismo
e do panteísmo, ainda caem em uma forma modi cada de um ou do outro:
animalismo ou angelismo. Quando não nos confundem com a matéria ou com
Deus, eles nos confundem com os animais ou com os anjos. Empiristas,
positivistas, pragmatistas e secularistas cam escandalizados com a alma, o
sobrenatural, os milagres, o Céu e as verdades universais abstratas. Esses são
animalistas. Platônicos, gnósticos, cartesianos, adeptos da Nova Era e os que,
em sua religião, buscam “espiritualidade”, em vez de santidade, são angelistas.
Eles cam escandalizados com o corpo, o natural, a Encarnação, os
sacramentos, a Igreja visível e o concreto.
Cristo é a resposta para esse dilema. Ele é a refutação de nitiva dos dois
erros (pois, lembre-se, Cristo nos revela perfeitamente não só o perfeito Deus,
mas também o perfeito homem). Cristo não só é o perfeito antropólogo, mas
também é o perfeito anthropos. Ele é a essência da antropologia. Ele é homem
como o homem é planejado para ser. Ele não é uma anomalia, nós somos a
anomalia. O maior lósofo antropólogo moderno foi o papa João Paulo II. A
antropologia era a essência de sua loso a, e Cristo era o cerne de sua
antropologia. Ele sempre repetia: “Cristo é o sentido do homem.” E, por essa
razão, “na verdade, só no mistério da Palavra feita carne é que o mistério do
homem realmente ca claro”. João Paulo amava citar essa sentença do
documento Vaticano II (veja Catecismo da Igreja Católica [doravante designado
pela sigla CIC], 359). O que não conseguimos entender em nossas loso as,
psicologias e antropologias a respeito de nós mesmos, entendemos em Cristo:
nosso próprio sentido e destino. Ele é um espelho raio X; quando olhamos para
Ele, vemos nosso âmago.
Cristo é a resposta para a pergunta: qual é o sentido da vida humana?
Quem somos destinados a ser? A resposta é que estamos destinados a ser
pequenos Cristos. O sentido da vida é ser Cristo. A resposta à principal
pergunta da antropologia não é um ideal abstrato, mas um fato concreto,
consumado. O sentido do homem é um homem, esse homem.
O Antigo Testamento informa-nos que fomos criados por Deus e à
imagem dele (Gênesis 1:26,27), mas só o Novo Testamento mostra-nos de
forma completa o que é essa imagem: ela é Cristo. É a isso, não a um vago
humanismo, que Inácio de Loyola se refere ao dizer que “a glória de Deus é um
homem totalmente vivo”. (Todos jesuítas, nota bene, por favor!) “Um homem
totalmente vivo” quer dizer “um pequeno Cristo”.
Como não percebemos isso? Só porque mais da metade do tempo
estamos mais que meio adormecidos. Diversas passagens do Novo Testamento
a rmam essa verdade de forma rme e clara. Por exemplo, Romanos 8:29:
“Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a m de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos.” Ou 1 Coríntios 15:49: “Assim como tivemos a imagem do
homem terreno, teremos também a imagem do homem celestial.” Ou 2 Pedro
1:4: “Ele nos deu as suas grandiosas e preciosas promessas, para que por elas
vocês se tornassem participantes da natureza divina.”
Existe ainda uma segunda razão por que precisamos da revelação divina
de Cristo para conhecer a nós mesmos: “Sem o conhecimento de Deus
concedido pela revelação, não podemos reconhecer de forma clara o pecado e
somos tentados a explicá-lo como mera falha de desenvolvimento, fraqueza
psicológica, engano ou a consequência necessária de uma estrutura social
inadequada” (CIC 389). Cristo nos ensina como somos anormais ao sermos o
padrão ideal. Se deixarmos que Ele nos julgue, em vez de julgá-lo,
perceberemos que nosso “normal” realmente é anormal. Esta é a pergunta
epistemológica crucial da antropologia: nós julgamos a Cristo ou Ele nos julga?
Sem conhecermos Cristo e, assim, sem conhecermos nossa
“anormalidade”, caímos no erro fundamental do “normalismo”. Toda
psicologia, sociologia e antropologia secular é fundamentalmente oblíqua em
seu próprio fundamento, pois assume, de forma errônea, que seu objeto de
estudo, o homem, está em seu estado natural. Todos os dados dessas ciências
são suas observações de comportamento humano “normal”, da mesma forma
que todos os dados da física ou da astronomia têm origem na observação de
como a matéria se comporta naturalmente. Apenas imagine a mudança radical
que acarretaria à física, se os físicos viessem a acreditar que a gravidade não é,
de modo algum, inerente à matéria, mas que a matéria “caiu” nessa condição
anormal em algum momento do passado. Imagine o choque astronômico
radical que aconteceria, se os astrônomos viessem a acreditar que as estrelas só
começaram a brilhar em algum ponto do passado chamado “Queda”. A
doutrina da Queda do Cristianismo, em sua mais básica interpretação da
história humana, na qual os três grandes eventos de nidores são a Criação, a
Queda e a Redenção, revela um choque dessa magnitude na antropologia.
O cristianismo acrescenta dois homens à sua base de dados que a
antropologia secular não conhece: Adão e Cristo, os únicos dois homens
inocentes que já viveram, e o cristianismo julga os homens caídos por esse
padrão. Sem esse corretivo, nós, inevitavelmente, ao pensar em retrospectiva,
interpretamos de forma errônea nossa atual pecaminosidade como algo natural
e normal e, por isso, vemos a inocência e até mesmo a santidade como algo
anormal e não-natural, como algo sobre-humano, em vez de humano. Bêbados
e viciados em drogas, da mesma forma, veem as pessoas sóbrias como
anormais. Do ponto de vista moral, somos todos bêbados e viciados em drogas.
Por isso, é bastante natural para os partidários de Bill Clinton a rmarem que é
errado, e até mesmo imoral, que os críticos dele esperassem que presidentes
tivessem virtudes morais “não realistas e inatingíveis”, como delidade e
honestidade.
Esse é o erro mais fundamental da visão de homem da nossa sociedade
secular, e a raiz de todos os outros enganos da sociedade. “Ignorar o fato de que
o homem tem uma natureza doente, inclinada ao mal, gera graves erros nas
áreas da educação, política, ação social e moral” (CIC 401). O “liberalismo”
secular (termo enganoso, pois ele não é realmente libertador), em todas essas
quatro áreas, nega a realidade do pecado pessoal e acha que o homem é um pé
de alface, não uma batata. (A alface apodrece de fora para dentro; a batata, de
dentro para fora.) Por essa razão, a solução deles sempre é uma “solução alface”:
façamos isso ou aquilo, melhoremos o ambiente social, coloquemos algum
dinheiro nas estruturas sociais ou condicionemos as pessoas com uma educação
melhor. Eles são como os fariseus que limpam o exterior, mas ignoram a
podridão interior (Mateus 23:25,26). Alguém de niu o liberal como aquele
que exige o direito de respirar ar puro para que possa proferir palavras sujas.
A única forma de corrigir essa perspectiva distorcida é encontrar o
verdadeiro ponto de referência. Mas não conseguimos! “Médico, cure-se.”
Somos o aleijado do comercial: “Caí e não consigo levantar.” Não podemos
voltar para o paraíso. As palavras da canção estão muitíssimo erradas: “E os
cavaleiros não nos pararão, pois a única droga que encontrarão é o paraíso.”
Não, os cavaleiros (os policiais) nos pararão porque encontrarão todas as outras
drogas, menos essa.
Não podemos voltar para o paraíso a m de ver o Adão não caído.
“Vemos, todavia, [...] Jesus” (Hebreus 2:9). Cristo é o nosso novo dado para a
antropologia. Cristo é nosso padrão ou norma.
Sem esse dado, somos como o cachorro no aeroporto, em uma gaiola,
que mastigou a etiqueta de identi cação para não saber seu verdadeiro nome, o
nome do seu dono nem onde mora. Ele não sabe de onde veio, quem é nem
para onde deve ir.
“Sem Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido da vida, da morte,
de Deus e de nós mesmos” (Pascal). Só com Cristo conseguimos essas quatro
informações cruciais. Nosso verdadeiro nome é “irmão de Cristo, lho adotado
de Deus”. Temos de guardar essa placa de identi cação, acariciá-la, viver por
ela, lembrar-nos dela, lê-la sempre. A placa é Cristo. Cristo é a chave para a
antropologia.
Mas como podemos nos tornar Cristos? Esse não é outro koan
impossível de solucionar? Temos de nos tornar Cristos, mas não podemos.
Nem todas as nossas orações, os nossos soluços e as nossas lágrimas, nem todo
o amor, os pensamentos, as obras e as experiências místicas podem fazer isso.
Nós simplesmente não podemos nos tornar Cristos. Para fazer isso temos de
nos transformar em outra pessoa. Temos de “nascer de novo”. De todas as
imagens de transformação de todos os professores do mundo, a imagem de
Jesus aqui (em João 3) destaca-se como a mais radical de todas. É tão radical
que Nicodemos argumentou que isso era simplesmente impossível: “Como
pode ser isso?”
Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago, e os
levou, em particular, a um alto monte. Ali ele foi trans gurado diante deles. Sua face
brilhou como o sol, e suas roupas se tornaram brancas como a luz. Naquele mesmo
momento, apareceram diante deles Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então
Pedro disse a Jesus: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se quiseres, farei três tendas: uma
para ti, uma para Moisés e outra para Elias.” Enquanto ele ainda estava falando, uma
nuvem resplandecente os envolveu, e dela saiu uma voz, que dizia: “Este é o meu
Filho amado em quem me agrado. Ouçam-no!” Ouvindo isso, os discípulos
prostraram-se com o rosto em terra e caram aterrorizados. Mas Jesus se aproximou,
tocou neles e disse: “Levantem-se! Não tenham medo!” E erguendo eles os olhos,
não viram mais ninguém a não ser Jesus (Mateus 17:1-8).
Quando lhe informaram que o profeta estava em Dotã, ele enviou para lá uma
grande tropa com cavalos e carros de guerra. Eles chegaram de noite e cercaram a
cidade. O servo do homem de Deus levantou-se bem cedo pela manhã e, quando
saía, viu que uma tropa com cavalos e carros de guerra havia cercado a cidade. Então
ele exclamou: “Ah, meu senhor! O que faremos?” O profeta respondeu: “Não tenha
medo. Aqueles que estão conosco são mais numerosos do que eles”. E Eliseu orou:
“SENHOR, abre os olhos dele para que veja”. Então o SENHOR abriu os olhos do
rapaz, que olhou e viu as colinas cheias de cavalos e carros de fogo ao redor de
Eliseu.
Deus não pôs essa visão do exército de anjos em carros de fogo nos olhos
do servo de Eliseu. Ele apenas removeu as travas dos olhos do servo. (Os anjos
não estão presentes apenas quando os vemos!)
No monte da trans guração, Deus fez algo semelhante com Pedro, Tiago
e João. Pouco antes da trans guração, Pedro achara difícil, quando andou sobre
as escuras e amedrontadoras águas da tempestade no mar (Mateus 14), ver só a
Jesus; e ele começou a afundar quando tirou os olhos de Jesus. Aqui, Pedro
também acha difícil ver só a Jesus no alto do monte em meio à resplandecente
glória celestial (Mateus 17). Pois ele faz, sem pensar, uma proposta ridícula,
mas que soa razoável, de montar três santuários. Se Jesus tivesse permitido isso,
o local, em poucos séculos, teria se tornado uma armadilha turística, e Pedro
caria famoso como incorporador, não como discípulo. O ridículo não é a
ideia de construir os santuários, mas de fazer três deles, pondo Jesus na mesma
categoria de Moisés e Elias. E é provável que Pedro pensasse que isso era uma
lisonja! Deus corrige Pedro por meio de uma voz vinda do céu que, em
essência, diz: “O que você está pensando? Tenho muitos servos, mas apenas um
Filho” (Mateus 17:5).
Como o insensato Pedro e os outros conseguiram car tão sábios a ponto
de ver só a Jesus? Muito simples: no mesmo instante em que a voz de Deus
ordenou: “Ouçam-no”, eles obedeceram. “Os discípulos prostraram-se com o
rosto em terra e caram aterrorizados” (Mateus 17:6). (Vivemos em uma era
terrivelmente empobrecida na qual essa emoção religiosa mais básica
surpreende nossos professores, por considerá-la primitiva; e nossos estudantes,
por considerá-la incompreensível.) Só porque obedeceram, os discípulos
sentiram o medo santo, e só porque sentiram o medo santo, Jesus pôde se
aproximar, tocá-los e dizer: “Não tenham medo!” O medo é pré-condição
necessária para o “não-medo”. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”
(Provérbios 9:10). E essa é a sabedoria moral, a sabedoria da santidade. (Ver Jó
28:28.)
Em geral, achamos que a sabedoria vem primeiro e leva à santidade, mas
acontece o oposto. Acreditamos que temos primeiro de ver e, depois, agir, mas
acontece o oposto. Achamos que a vontade segue a mente, mas acontece o
oposto. Somos gregos, não judeus. Os judeus sabiam que a sucessão de fatos
era a outra, que primeiro vem a obediência moral e, depois de obedecermos,
nossa percepção é esclarecida. Apenas a vontade receptiva à obediência pode
abrir nossos olhos para a sabedoria. Por isso, Jesus diz: “Se alguém decidir fazer
a vontade de Deus, descobrirá se o meu ensino vem de Deus ou se falo por
mim mesmo” (João 7:17).
E a percepção dos discípulos foi esclarecida pela obediência deles. Qual
foi o esclarecimento? Apenas que quando eles levantaram “os olhos, não viram
mais ninguém a não ser Jesus.” Isto é sabedoria: não ver “mais ninguém a não
ser Jesus”. A única forma de alcançar essa sabedoria aprimorada de não ver
“mais ninguém a não ser Jesus” é começar com a sabedoria inicial de temer ao
Senhor e obedecer à voz dele.
O que quer dizer não ver “mais ninguém a não ser Jesus”? Aqui, o “a não
ser” não é o “a não ser” exclusivo, mas o inclusivo. Não é Jesus fora de todas as
coisas, mas Jesus em todas as coisas; não é Jesus excluindo todas as coisas, mas
incluindo todas as coisas. Pois a “Graça aperfeiçoa a natureza”, em vez de
destruí-la. Deus capacita seus lhos, como o ótimo pai que está disposto a
parecer pequeno para que seus lhos pareçam grandes. Ele não rivaliza com
seus lhos, como o pai egoísta que está preocupado em parecer grande e, por
isso, faz com que seus lhos pareçam insigni cantes. Deus não nos diminui,
Ele nos faz grandes.
O motivo máximo por que a Graça aperfeiçoa a natureza é Deus ser
amor, e o amor não fere, não rivaliza, não destrói nem destitui nada de forma
alguma. Jesus não destitui Moisés, Elias, Pedro ou o judaísmo (“Não pensem
que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir”; Mateus
5:17). A prova concretíssima desse princípio é o próprio Cristo, no qual a
divindade (Graça) aperfeiçoa perfeitamente a humanidade (natureza).
Não obstante, Ele veio para destruir algo: o pecado. Ele é o Senhor da
vida e, portanto, inimigo do inimigo da vida, o pecado. Ele só mata aquele que
mata e, por isso, precisa ser morto. Todos nós sabemos que abrigamos e
afagamos alguns inimigos da vida, da nossa vida, algum pecado habitual ou até
mesmo alguma coisa inocente em si mesma, mas que Jesus sabe que nos leva a
pecar ou nos impede de ter a vida plena: algum conforto, alguma segurança,
alguma alegria terrena — talvez a própria vida biológica — que levanta uma
redoma ao nosso redor di cultando a entrada dele, que torna mais difícil
receber a plenitude de vida e de alegria no m, por causa dessa vida inferior
atual. Por isso, o jardineiro divino poda-nos, matando a vida inferior para que
a superior cresça.
Por Ele matar a vida inferior, parte da natureza, parece que a Graça dele
não aperfeiçoa a natureza, mas a destrói. Mas essa morte aperfeiçoa a natureza,
pois o resultado da morte é uma vida superior. Naturalmente, o ramo podado
duvida das boas intenções do jardineiro. Contudo, se Ele, pela fé, deixar-se
podar agora, descobrirá, no ano seguinte, por que foi certo con ar no
jardineiro. Não é verdade que “ver é crer”, mas que “crer é ver”. Conforme
Jesus disse no túmulo de Lázaro: “Não lhe falei que, se você cresse, veria a
glória de Deus?” (João 11:40).
É claro que nós não conseguimos, como Ele, ver o m quando estamos
no início. Não vemos a planta perfeita que nos tornaremos com a poda que Ele
faz nem vemos o jardineiro: “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18).
“Vemos, todavia, [...] Jesus” (Hebreus 2:9). Não vemos “mais ninguém a não
ser Jesus” (Mateus 17:8). E se tiramos nosso olho dele, somos como a
criancinha que apenas vê a bola de sorvete cair da casquinha e chora
inconsolável, como se isso fosse uma tragédia irremediável. A criança precisa
apenas afastar os olhos do sorvete e voltá-los con antes para o pai que foi quem
deu.
Esta é a melhor coisa que podemos fazer: olhar para Jesus. Foi isso que
Maria fez, mas Marta não. E quando olhamos para Ele em busca de ajuda para
nossa necessidade real ou aparente, quer grande quer pequena, quer a queda do
World Trade Center quer a queda do sorvete da casquinha, o melhor que
temos a fazer é repetir as palavras que Ele disse para Jó: “Apenas con e em
mim, lho. Você conhece a si mesmo e conhece a mim. Eu sou aquele de quem
vem ‘toda boa dádiva e todo dom perfeito’ (Tiago 1:17), e você é apenas uma
criança que não pode entender meus desígnios. A sua sabedoria é a con ança, a
minha sabedoria é a providência. Pois você é apenas você, e eu sou eu. Não sou
homem, e você não é Deus. Por que você tem tanta di culdade para se lembrar
desse fato elementar? Deixe-me ajudá-lo a se lembrar, diga-me: ‘Onde você
estava quando lancei os alicerces da terra?’” (Jó 38:4).
Esta é a primeira lição: o que nós não sabemos. Se não soubermos isso,
não sabemos nada mais. Deus ensinou a primeira lição para Jó e também para
Sócrates.
Depois, Jesus nos ensinou a segunda lição, a resposta da primeira lição:
“Onde você estava quando lancei os alicerces da terra?” Ele diz: “Vou dizer
onde você estava: você estava no centro da minha visão e do meu coração.
Planejei o universo para você, para sua maior glória e sua maior alegria, e essa
também é minha maior glória e minha maior alegria. Você é minha maior
alegria, e sua maior alegria sou eu. Sua alegria foi todo o motivo para eu
realizar o Big Bang. Você acha que eu tinha estrelas em vista, em vez de almas?
Você acha que sou mais glori cado por queimar hidrogênio que por queimar
corações? Pelos grandes atos de explosões de supernovas que pelos pequenos
atos de amor?
“Você não entende sua vida porque você não é simples. O sentido da
vida para você sou Eu; e o sentido da vida para Mim, você. O amado está
sempre no centro da percepção do amante. Isso é o que amor quer dizer.
Esperei bilhões de anos por você, enquanto as galáxias esfriavam; e aqueles anos
não foram nada para Mim por causa do meu amor. Eu era como Jacó à espera
de Raquel: ‘Então Jacó trabalhou sete anos por Raquel, mas lhe pareceram
poucos dias, pelo tanto que a amava’ (Gênesis 29:20). Por isso, ‘mil anos [...]
são como o dia de ontem’ para mim (Salmo 90:4): porque sou amor.
“Seja como eu. Seja amor. Veja todas as outras coisas como relacionadas
com o amor e como minhas cartas de amor para você. Veja as coisas como elas
são: todas as coisas do universo e todas as coisas da sua vida são a escada de
Jacó, vias para a troca entre dois amantes, Eu e você. Se você vir isso, então verá
todas as suas tempestades terríveis e os seus sofrimentos semelhantes ao de Jó
caindo como o sorvete cai da casquinha. Melhor ainda, você as verá como a
minha Cruz. E uma vez que é a minha Cruz, você a verá como uma Cruz de
amor e de vida. Seus próprios sofrimentos serão como o monte da
trans guração: através do prisma da sua fé em Mim e do poder das Minhas
feridas de amor, suas feridas re etirão minha luz de Filho e se transformarão
em ouro e glória. Eu, Jesus, sou seu toque de Midas.”
Achamos que cremos nas boas novas de que “Deus é amor” (1 João 4:8),
e de que ele “age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam”
(Romanos 8:28) — e cremos, mas nossa fé é principalmente o que Newman
chamou “aceitação nocional”, e não “aceitação real”. É mais a aceitação da
verdade da ideia que da realidade. É fácil dizer um sim completo para a verdade
de Cristo. Fazer isso é simplesmente ser cristão. Mas é difícil dizer um sim
completo para Cristo. Fazer isso é ser santo.
Nossa fé é verdadeira, preciosa e inestimável, mas não é rme o bastante.
É como uma linda nuvem de ouro. Quando a vida deposita um fardo pesado
sobre nós, ele atravessa a nuvem como uma bola de canhão porque é mais
pesado que qualquer nuvem, até mesmo de uma de ouro. Nossa fé tem de se
tornar mais que uma nuvem, tem de se tornar uma coisa, uma coisa mais real,
mais sólida e mais substancial que qualquer fardo. E essa coisa só pode ser não
ver “mais ninguém a não ser Jesus”. Não pode ser “Jesus, se”, “Jesus e” nem
“Jesus, mas”. Em Cristo não há se, e ou mas (2 Coríntios 1:20).
2. A superação do legalismo
Hoje, vemos todas as questões políticas pelo prisma direita versus esquerda, o
“nós versus eles” político. As categorias são abrangentes e dizem respeito à
economia de pensamento, a resposta automática que nos permite evitar
ponderar sobre o mérito de cada questão. Contudo, as categorias, e a
polarização que elas criam, são ainda mais indefensáveis quando aplicadas a
Cristo, pois isso representa o mundo caído julgar a Cristo, em vez de vice-
versa.
A polarização também é prejudicial à moralidade porque nos permite ser
seletivamente morais, seletivamente idealistas — o que quer dizer seletivamente
imorais e pragmáticos. Se pegarmos o caminho mais fácil do aborto, da
eutanásia e da sexualidade, podemos pegar o caminho mais difícil da guerra, da
pobreza e da poluição; ou vice-versa. Mesmo quando focamos uma questão
especí ca, como se toda vida humana é intrinsecamente valiosa ou não, essas
categorias permitem-nos chegar à esquizofrenia moral de dizer sim quando
tratamos do aborto e dizer não a essa mesma questão quando tratamos de
guerra e de pena capital — ou vice-versa. Isso não quer dizer que nós
simplesmente respondemos da forma errada (não tenho certeza de qual é a
resposta certa especí ca a respeito de uma guerra especí ca ou a pena capital
para um caso especí co), mas aponta para o fato de que temos princípios
autocontraditórios.
Apenas do ponto de vista daquele que é reto podemos julgar o
distorcido. Cristo é o reto, a linha de prumo — quando Ele é conhecido de
forma explícita, por meio da revelação divina, e quando Ele é conhecido de
forma implícita, por meio da consciência e da lei natural. Ele faz todas as
questões voltarem à ordem natural de Deus para julgar as desordens não
naturais do homem. Por essa razão, Ele também faz isso com a política.
Ele também une os interesses apropriados da direita e da esquerda, pois
Ele é o caminho reto (“Eu sou o caminho”) do qual a direita e a esquerda
partem. Ele fornece motivos mais sólidos para os interesses legítimos da direita
e da esquerda do que elas podem fornecer.
Por exemplo, por que alimentar o pobre? Porque o pobre é Cristo
disfarçado. E não só por ser correto do ponto de vista político ou por
sentimento individual.
Por que amar o pecador, como faz a esquerda, e por que odiar o pecado,
como faz a direita? Por que amar o viciado em drogas, a violência, o dinheiro
ou o sexo? E por que odiar o vício deles? Pela mesma razão. Porque Cristo ama.
Por isso, devemos ser mais compassivos com os pecadores do que os liberais o
são, e mais incompassíveis com os pecados do que os conservadores o são. Pela
mesma razão: Cristo.
Por que insistir na ortodoxia doutrinal? Não só pela correção, mas
também por lealdade a Cristo. Por que falar de pecado e salvação, duas palavras
que escandalizam os secularistas? Não apenas para refutar o secularismo, mas
por causa de Cristo. Cristo não fala apenas de pecado e de salvação, Cristo é a
salvação.
Por que pregar e praticar o “evangelho social”? Não para ser
politicamente correto nem para refutar os fundamentalistas, mas porque Cristo
o pregou e o praticou.
Por que ser universalista, inclusivo e ecumênico? Não para escarnecer da
xenofobia, do isolacionismo e do provincianismo, mas porque Cristo foi, e é,
universalista. Cristo não é uma divindade tribal.
Por que insistir no “escândalo da particularidade” e nas a rmações
concretas, visíveis, particulares e exclusivas de Cristo de ser o único Salvador?
Não para confundir os liberais, mas porque Cristo é particular, concreto,
visível, exclusivo e literal.
Por que ser progressista, radical, criativo e ser apaixonado pelo novo? Por
que se abrir para o vento como o veleiro? Porque Cristo é e faz isso.
Por que ser el e car preso, como âncora, na lama tradicionalista?
Porque Cristo “é o mesmo, ontem, hoje e para sempre”.
Por que ser um “liberal de coração mole”? Porque Cristo o é. Por que ser
um “conservador cabeça-dura”? Porque Cristo é.
Muitos substituíram o liberalismo, o conservadorismo ou algum outro
“ismo” por Cristo e cooptam Cristo para a causa deles. Cristo não pode ser
cooptado por nenhuma causa; todas as causas têm de ser cooptadas por Ele.
Todos os “ismos” são abstrações. Até mesmo o “ismo” perfeito, se houver
algum, não pode nos salvar nem nos amar.
O perigo especial da direita religiosa é adorar as doutrinas de Cristo em
vez de adorar a Cristo, confundindo o sinal com a coisa representada. A direita
está absolutamente certa em insistir em ser correta e em insistir nos absolutos.
Mas o dedo aponta para a lua; devemos ter compaixão do tolo que confunde o
dedo com a lua.
O perigo especí co da esquerda religiosa é adorar os valores de Cristo em
vez de adorar a Cristo. Isso é tão abstrato quanto a substituição de Cristo pelas
suas doutrinas feita pela direita. Os valores de Cristo também são apenas o
dedo que aponta para Ele.
A direita argumenta que a esquerda é vaga, mas até mesmo as doutrinas
reais e precisas da direita são vagas quando comparadas com Cristo. Tudo é. A
esquerda argumenta que a direita é in exível, mas até mesmo o coração terno e
compassivo de um liberal é in exível quando comparado com Cristo. Tudo é
in exível.
Direita e esquerda não podem convencer e converter uma à outra pela
mesma razão que os fariseus e os saduceus não podiam convencer e converter
uns aos outros. Pois os fariseus não precisam abrandar um pouco o coração,
não precisam de uma pequena dose de mundanidade, de psicologia pop, de
relativismo e de subjetivismo. Eles precisam de Cristo. E os saduceus não
precisam endurecer um pouco o coração, não precisam de um pouco de
arrogância, um bocadinho de avareza, como a do personagem de Charles
Dickens, Scrooge, não precisam de Maquiavel, nem da “sobrevivência do mais
forte” darwiniana. Eles precisam de Cristo.
E nossa sociedade, dividida como está hoje entre direita e esquerda, da
mesma forma que a sociedade da época de Jesus estava dividida entre saduceus
e fariseus, só precisa de Cristo.
As sociedades terrenas não são eternas, as almas o são. Ainda assim,
Cristo é o Salvador das sociedades, como também das almas. Nossa sociedade
está morrendo porque transformou o nome santo de seu Salvador em uma
imprecação. A Cristofobia está matando nossa sociedade. Nossos secularistas
estão nos fazendo esquecer Cristo mais depressa do que os fazemos se lembrar
dele, por isso nossa sociedade está morrendo. Seu estoque de sangue está
secando. O sangue precioso está evaporando. A cada dia, perdemos mais
sangue.
A resposta a isso é escandalosamente simples: a menos que Cristo, o
cristianismo, a Bíblia, a Igreja, os apóstolos de Cristo e todos os santos sejam
mentirosos. A resposta é que existe apenas uma esperança para as sociedades e
para as almas: “Ele lhe trará uma mensagem por meio da qual serão salvos você
e todos os da sua casa” (Atos 11:14).
Isso é simples e infantil demais para você? Você é muito “avançado” e
“adulto” para isso? Lembre-se do que signi ca uma cárie dentária em estado
avançado. Lembre-se do que nossa sociedade entende por “adulto”. Lembre-se
do que quer dizer lme “adulto”. E, depois, o compare com A Paixão de Cristo.
Então, “escolham hoje a quem irão servir” (Josué 24:15). Faça apenas isso.
Conclusão
Você não esperava que um livro sobre loso a terminasse desta forma, não é
mesmo? Contudo, esta foi a maneira que o maior lósofo do mundo terminou
sua loso a. As últimas palavras de Cristo, registradas na Bíblia por intermédio
de seu profeta João, no livro do Apocalipse, dizem a mesma coisa. (Leia
Apocalipse 22.) Pois essa é a coisa mais importante que alguém já disse, é a
escolha mais séria que fazemos, a escolha entre tudo e nada, ser e não-ser, luz e
trevas, Céu e Inferno, Cristo e anticristo — e se a loso a não tiver nada a
dizer a respeito disso: então para o Inferno com ela.
DIREÇÃO GERAL
Antônio Araújo
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITOR RESPONSÁVEL
Hugo Langone
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Mônica Surrage
REVISÃO
Gustavo Nogy
PRODUÇÃO DO EBOOK
Ranna Studio