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8. A LUTA SOBRE A NATUREZA DE JESUS ...

86
CONSTANTINOPLA, 381 .......................................... 86
PROLEGÓMENOS ................................................... 1
ÉFESO, 431 ............................................................. 88
PRÓLOGO: A ANTIGUIDADE .............................. 2 CALCEDÓNIA, 451 .................................................. 89
UMA HISTÓRIA CRIMINOSA DO CRISTIANISMO........ 91
NO PRINCÍPIO ........................................................... 2
UM PROFETA COXO E UMA RELIGIÃO MUNDIAL ...... 94
MISTÉRIOS DE ILUMINAÇÃO..................................... 4
A MANTA DO HELENISMO ........................................ 6 9. A LUTA SEXUAL DE TRÊS SANTOS PADRES
A PALESTINA JUDAICA............................................. 7 DA IGREJA.............................................................. 96
NO TEMPO DE JESUS ................................................ 9
UM MONGE ENTRE MULHERES ............................... 96
NÃO SÃO SÓ FARISEUS ........................................... 10
O ESPANCAMENTO DE JOVINIANO .......................... 99
ESTÓICOS E ADORADORES DE MITRA..................... 13
O PODEROSO BISPO DE MILÃO ............................. 100
1. JESUS, QUE SE TORNOU CRISTO ................ 15 OS PECADOS JUVENIS DE AGOSTINHO DE HIPONA 101
SOBRE UMA CIDADE DE DEUS .............................. 103
O BAPTISMO NO JORDÃO........................................ 15 UM VELHO SOMBRIO ............................................ 105
OS ANOS DA JUVENTUDE DE JESUS ........................ 16
CRISTO .................................................................. 18 10. A HERANÇA PERDIDA ................................ 107
A RESSURREIÇÃO ................................................... 20
DEUS COMO MULHER ........................................... 107
2. A PALAVRA ESCRITA ..................................... 24 A MULHER EM JESUS ............................................ 109
A CABEÇA DA MULHER ........................................ 111
PAULO ................................................................... 24 UM AMOR PROIBIDO ............................................. 114
DOGMA OU INTUIÇÃO? .......................................... 25 SEXUALIDADE VERSUS VIRGINDADE .................... 117
CIRCUNCISÃO E PECADO ........................................ 27
ESPIRITUALIDADE, GNOSE E MÍSTICA ................... 128
A BOA NOVA .......................................................... 29
CONCEPÇÕES CONTRADITÓRIAS EM WITTEMBERG E
OS ESCRITOS SECRETOS ......................................... 31
ZURIQUE .............................................................. 142
OS EVANGELHOS GNÓSTICOS ................................. 33 UM ARTISTA VISIONÁRIO ....ERRO! MARCADOR NÃO
O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO ......................... 35
DEFINIDO.
3. SOBRE MAGOS, PROFETAS E UM EPÍLOGO: A NOVA ERA...... ERRO! MARCADOR
BALNEÁRIO EM ÉFESO ...................................... 36 NÃO DEFINIDO.
SIMÃO MAGO ........................................................ 36
A NEW AGE ESTÁ NA MODAERRO! MARCADOR NÃO
HELENA ................................................................. 37
DEFINIDO.
CLEMENTE DE ROMA, A AUTORIDADE E OS PROFETAS
.............................................................................. 39
UMA FUGA DO BALNEÁRIO .................................... 40 Prolegómenos
4. O VIBRANTE SÉCULO II ................................. 42
O LONGO CAMINHO DA ALMA ................................ 42 Sete proposições prévias provocatórias...
HÁ MUITOS CAMINHOS QUE VÃO DAR A ROMA ...... 47 1. O achado de 1945, em Nag Hammadi, no
SOBRE UM MÁRTIR E UM MÍSTICO .......................... 50 Egipto, é a mais importante descoberta ar-
FALAR A PARTIR DO ESPÍRITO E DESPEDIDA DA queológica deste século, porque põe a nu um
CARNE.................................................................... 54
sistema raiz da nossa cultura ocidental que foi
5. A REACÇÃO ....................................................... 57 cada vez mais encoberto pela igreja cristã
O BISPO DE LYON................................................... 57 posterior e acabou por ser extirpado. ‘Nag
MENSAGEM DE ÁFRICA ......................................... 60 Hammadi’ dá uma profunda compreensão
O ANTI-BISPO DE ROMA ......................................... 62 colmatante da história do aparecimento do
MAIS PERSEGUIDORES DE HEREJES ........................ 63 cristianismo e mostra uma imagem de Jesus
6. O CADINHO EGÍPCIO ...................................... 66 da Nazaré que, por toda a espécie de razões,
O TRÊS VEZES GRANDE HERMES ............................ 66 foi atacada e deformada pela tradição ecle-
UM AMÁVEL ALEXANDRINO .................................. 68 siástica posterior.
UM EUNUCO PARA O REINO ................................... 70
UM CARREGADOR E UM EREMITA .......................... 72 2. Um certo número de escritos paleo-cristãos
AS PEDRAS DE CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA ........ 74
encontrados em Nag Hammadi (entre os quais
7. O FIM DE UM PRINCÍPIO E O PRINCÍPIO DE o Evangelho de Tomé) ainda conserva em par-
UM FIM .................................................................... 77 te as expressões orais de Jesus e nisso são
O SONHO DE CONSTANTINO ................................... 77 mais antigos e mais autênticos do que os
NICEIA, 325 ........................................................... 79 evangelhos bíblicos, onde muito desse mate-
O ESPANTOSO ATANÁSIO ....................................... 82
O APÓSTATA JULIANO............................................ 84
rial original se perdeu.
3. A composição do Novo Testamento é uma Prólogo: a Antiguidade
selecção arbitrária de entre as muitas dezenas
de escritos sobre a vida e os ensinamentos de No princípio
Jesus que circulavam nos primeiros cento e
cinquenta anos depois de Cristo. Além disso,
o cânon definitivo só foi estabelecido no sécu- No princípio havia uma unidade perfeita. Em
lo IV depois de Cristo. quase todas as culturas existe esta imagem de
harmonia 1. Não apenas no Oriente, mas certa-
4. Jesus de Nazaré nunca quis uma igreja en- mente também no Ocidente, ao qual nos limi-
quanto instituto. A palavra grega ekklésia taremos, dado a natureza do nosso tema. Des-
significa comunidade e não igreja. Jesus foi o de as escavações de Nag Hammadi em 1945,
inspirador de uma comunidade espiritual de onde se desenterrou um vaso contendo 52 es-
homens que se reuniam no seu espírito para critos do princípio da nossa era, que estamos
ter experiência do Cristo. Nessa comunidade, seguros de que homens com visão interior,
os homens e as mulheres tinham inicialmente com gnose, viam a criação tal como descrita
papéis absolutamente equivalentes. Maria no Génesis do Antigo Testamento da nossa
Madalena chegou a ser chamada na antiguida- Bíblia como uma fase tardia num ciclo cósmi-
de apóstola acima dos apóstolos. co abrangente e não como o princípio de tudo.
Esses homens, que tinham a gnose e por isso
5. As questões de fé e os dogmas principais eram designados por ‘gnósticos’, falavam do
quer da igreja católica quer das igrejas da re- pleroma, da plenitude que existia antes de tu-
forma não provêm de Jesus de Nazaré e nem do. Na sua linguagem imaginativa, esse plero-
mesmo dos seus discípulos. São originários ma era o puro reino espiritual das forças de
de teólogos paleo-cristãos que sentiram neces- Deus. Deus, que era visto como fonte primor-
sidade de uma autoridade da doutrina. Con- dial, como energia primordial, como princípio
ceitos como pecado original e predestinação, sem fim e como fim sem princípio, como o
que tantos cristãos oprimiram durante mais de invisível omnipresente presente em tudo (por-
quinze séculos, não aparecem de todo nos pri- tanto também no homem).
meiros séculos do cristianismo. O cristianis- Este Deus totalmente transcendente não era,
mo eclesiástico é uma doutrina desenvolvida segundo essas pessoas, o criador do mundo;
por teólogos que pouco ou nada tem em co- essa função era desempenhada por uma po-
mum com os verdadeiros ensinamentos de Je- tência de uma ordem ‘inferior’, de um reino
sus e que, até aos dias de hoje, nunca condu- que tinha surgido da sombra do pleroma. A
ziu à paz no mundo. partir desse reino de ‘sombras’, o criador do
mundo, o demiurgo, pôs-se ao trabalho com
6. Na teologia, a fé continua a ser colocada as suas forças auxiliadoras e criou o cosmos
acima do conhecimento. Ela trabalha de modo visível e o homem. É esta fase que está des-
essencialmente não histórico, partindo apenas crita no Génesis 2.
de determinadas fontes, a que ela própria co-
locou a etiqueta de ‘santas’, desprezando o 1
Ver, por exemplo, Robert J. Stewart, Creation, e Jo-
restante material. Isto conduz a resultados dis- seph Campbell e Bill Moyrers, Mythen & Bewustzijn,
torcidos. sobretudo 58-69.
2
No Génesis lê-se literalmente: ‘Os Elohim (os deuses)
7. A espiritualidade actual em forte cresci- criaram o homem’. Devemos aqui ter em mente que se
trata de imagens. Alguns gnósticos eram bastante dua-
mento deixou de se deixar aprisionar em es- listas na sua imagem de um deus criador que tinha sur-
truturas clericais, porque a experiência inte- gido de uma queda; o que implicava que a noção que
rior e a teologia clerical estão cada vez mais tinham da matéria era quase sempre negativa. Nos neo-
em conflito. platonistas posteriores também há alguma distância en-
tre o princípio absoluto (o Único) e a criação, mas a se-
paração não é tão nítida. Para uma noção melhor da
Jacob Slavenburg linguagem imaginativa da gnose ver J. Slavenburg,
Gnosis, e para uma apresentação dos mitos gnósticos
da criação, ver J. Slavenburg, De geheime woorden, so-
bretudo 38-61.
gada ao corpo. Isto explica parcialmente as
Não deixa de ter significado que aqui já é muitas correntes ascéticas que perpassam to-
questão de diferenças de tradição. A igreja das as épocas e culturas e dá uma melhor
cristã posterior viu o Génesis como o princí- compreensão do simbolismo dos muitos ri-
pio da história mundial e tirou, portanto, da tuais que têm a ver com a elevação da alma.
história da criação uma série de consequên- Voltarei mais detalhadamente a isto mais
cias que deixaram profundas marcas na cultu- adiante.
ra cristã. Mas paralelamente, existiu sempre A experiência religiosa, a procura do divino,
uma tradição que interpretou a serpente, a ce- da fonte de tudo, manifestou-se de diversas
na da tentação e o pecado original de uma ma- maneiras em diferentes culturas e épocas. Co-
neira totalmente diferente. Essa tradição, que nhecemos em determinadas culturas o culto
tem mais parentesco com as concepções dos antepassados, em que era dado um estatu-
orientais de evolução, teve no Ocidente co- to divino aos antepassados. Também o pai do
nhecidos representantes pré-cristãos, como clã pode ser objecto de culto desta maneira.
Zaratustra, Pitágoras, Sócrates e Platão, e apa- Nalgumas culturas, as forças naturais ‘anima-
rece também na doutrina de sabedoria judaica das’ foram paralelamente objecto de oração.
e em diversas religiões dos mistérios. Sentia-se o poder divino no trovão, na chuva,
A religião, literalmente ‘religação’, é a nostal- no rio às vezes furioso outras vezes calmo e
gia primordial do homem por uma unificação no crescimento vegetal. Encontramos esta for-
com o divino. Tanto em alguns sistemas filo- ma de animismo por exemplo nos romanos
sóficos (como em Platão) como nos primitivos que adoravam Silvanus como deus
gnósticos, há, porém, uma espécie de da floresta e, mais tarde, imitando os gregos,
dualidade: segundo o corpo e a alma, o Neptuno, como regente divino de todos os
homem é uma criação do demiurgo e dos seus mares. Ao lado dos deuses da natureza, os ro-
auxiliadores do reino das sombras, de modo manos tinham deuses conceptuais como Spes
que se pode mover no mundo material; o seu (esperança), Concordia (concórdia), Fides
espírito, porém, o seu núcleo mais profundo, é (confiança), Virtus (virtude), Vesta (lareira e
nada menos do que uma centelha divina lar) e Victoria (vitória); um arsenal multicor
proveniente do puro mundo espiritual, que os onde as companhias de seguros actuais vão
gnósticos designavam por pleroma. O espírito por vezes buscar os seus nomes. Para ‘assegu-
divino está actualmente como que cativo num rar’ o auxílio destes deuses, considerava-se
corpo material e sente a nostalgia da sua que eram necessários sacrifícios e usavam-se
origem, da plenitude. Esta imagem estava determinados rituais e actos mágicos.
ainda muito viva nos teósofos do século
passado, que comparavam essa centelha a Por simplicidade, temos falado até agora de
uma gota e o mundo espiritual ao oceano. A deuses, mas no mesmo fôlego poderíamos ter
gota é da mesma essência, mas permanece também falado de deusas. Por vezes, estas
uma gota solta até se incorporar no oceano. formavam parte de um conjunto variegado,
A experiência desta dualidade, e, a partir dela, como no panteão grego, outras vezes tinham
o impulso para a unidade, é chamada ‘estre- também um papel dirigente. Quando esse era
mecimento primordial’ por Walter Schubart 3. o caso, como em Astarte, Cibele e Ísis, havia
Todos os homens conhecem, consciente ou sempre relação com o princípio genético da
inconscientemente, este estremecimento pri- fecundidade. Não é, pois, de estranhar que se-
mordial, este impulso primordial para a unida- ja sobretudo nas regiões fluviais dos grandes
de, para a harmonia com a totalidade da exis- rios como o Eufrates, o Tigre e o Nilo – rios
tência. Isto significa que a união mística da que eram de importância vital para os habitan-
sua própria parte divina com o ‘mundo supe- tes da zona – que as deusas femininas da fe-
rior de Deus’, como dixia o místico Jakob cundidade gozassem de uma grande conside-
Böhme, tem de incluir uma elevação do cor- ração. Voltarei ao significado disto quando fa-
po, que está ligado à terra, e da alma, está li- lar do papel da mulher na cultura cristã.

3
W. Schubart, Erotiek en Religie, 1
Ao lado do politeísmo, as religiões de mais de se uma fonte estava limpa ou contaminada.
um deus, também há o monoteísmo, as reli- Para saber coisas do género desta última, dis-
giões de um só deus. O monoteísmo não é pomos de aparelhagem avançada; os nossos
uma invenção cristã, pois havia já muitíssi- antepassados longínquos sabiam-no por uma
mos séculos que os judeus se distinguiam dos certa forma de clarividência (inconsciente).
povos vizinhos pela crença num só deus. Mas Isso era necessário, porque a consciência de
também no Egipto, por exemplo, houve uma vigília, a consciência com que nos encontra-
época em que se pôde falar de cultura mono- mos neste mundo, estava muito menos desen-
teísta, sob a égide do lendário faraó Echna- volvida do que no homem actual. Com o pas-
ton 4, e também Zaratustra acreditava num sar dos séculos, porém, a antiga faculdade cla-
deus bom que era muito superior a um deus rividente foi diminuindo lentamente e o ho-
mau (inferior). Além disso, o fosso entre o mem fixou-se cada vez mais fortemente à ma-
politeísmo e o monoteísmo não é tão grande téria terrestre.
como frequentemente se supõe. Quando há Partindo da consciência onírica, em que ainda
culto a vários deuses, é frequente haver um se podia falar de uma unidade mais ou menos
deus supremo, tal como o Zeus dos gregos e o harmoniosa com as esferas espirituais a partir
Sol Invictus dos romanos tardios. Inversa- das quais o homem era ‘alimentado’, a cons-
mente, o cristianismo conhece além de Deus, ciência diurna inicialmente obscura desenvol-
também o Filho e o Espírito Santo (e os ne- veu uma clareza cada vez maior, o que foi
cessários poderes angélicos). acompanhado por uma orientação cada vez
maior para a matéria, para a terra, e por um
‘afastamento’ do estado puramente espiritual.
Mistérios de iluminação Antes o homem tinha ainda em si mesmo a
noção do bem e do mal, porque o seu ser ain-
Na nossa época, diferenciamos na ciência re- da estava muito fortemente fundido com o
gular, teologia e ciência. Na antiguidade, essa mundo espiritual, agora esse saber interior ia
diferença ainda não existia. O contacto com a desaparecendo lentamente em cada vez maior
divindade era uma experiência religiosa que medida e o homem passou a ter necessidade
tinha um efeito no pensar e no agir. de leis como impulso moral. Vemos assim
No esquema da página 254 deste livro, repre- que as leis, que antes estavam sediadas no
sentei, de acordo com aminha maneira de ver, próprio homem, agora são-lhe oferecidas por
alguns estádios culturais que vou passar a es- uma divindade, do exterior, portanto. Um belo
clarecer. No Epílogo deste livro, onde traço a exemplo disto são as tábuas da lei de Moisés.
linha até ao presente, voltarei a este assunto. Outro exemplo ilustrador é a estela (coluna,
No passado longínquo, o homem vivia numa grande pedra trabalhada) de Hammurabi, que
fase de consciência diferente da de hoje. Ele foi rei da Babilónia no século XVIII antes da
encontrava-se numa espécie de consciência nossa era. Nessa estela estão gravadas leis sob
onírica que o fazia viver ainda parcialmente uma imagem que representa Hammurabi a re-
no mundo espiritual. Num documentário so- ceber essas leis das mãos da divindade (Sha-
bre os aborígenes australianos emitido há mash). Encontramos muitas situações parale-
pouco tempo pela televisão holandesa, foi las a esta. Segue-se depois um período em que
mostrado de maneira impressionante em ima- vemos surgirem homens que ainda tinham
gens que eles ainda ainda mostram vestígios uma ‘visão aberta’ do mundo espiritual e
do estado de consciência a que aqui nos refe- transmitiam aos seus semelhantes ensinamen-
rimos. tos sobre ele. Chamamos profetas a esses ho-
Em espírito, o homem ainda podia ‘andar com mens. Isaías e Ezequiel, por exemplo, foram
os deuses’. Devido a isso, ele sabia intuitiva- videntes deste género, que tentaram restabele-
mente um grande número de coisas; o que era cer o antigo contacto entre a divindade e o ho-
o ‘bem’ e o ‘mal’, mas também, por exemplo, mem.
Nessa mesma época, mais ou menos no sécu-
lo VI antes da nossa era, vemos ocorrer como
4
Ver J. Vergote, De Egiptenaren en hun godsdienst, que uma explosão de sabedoria. Apareceram
61-71.
os grandes filósofos chineses Lao Tsé e Con- mistérios, os mistérios órficos caracteriza-
fúcio, o reformador religioso persa Zaratustra, vam-se por determinadas iniciações que eram
o mestre doutrinário universal Buda e os filó- necessárias para penetrar até à essência das
sofos gregos Pitágoras, Tales e Heráclito. coisas. Frequentemente, essas iniciações com-
Mas, mais uma vez, a teologia e a filosofia punham-se de vários ‘graus’ (estádios) e qua-
ainda não estavam separadas nessa época. Bu- se sempre o segredo era obrigatório.
da dá-nos profundos ensinamentos sobre a Foi precisamente esse carácter secreto que le-
nossa existência na terra; Pitágoras ensina-nos vou muitos a considerar todo esse ‘disparate’
a harmonia com a divindade. Aquilo que a hu- uma superstição sinistra; em essência, esse ca-
manidade recebeu do alto como que gravado rácter secreto tinha em vista precisamente
em si mesma (embora em todas as épocas es- uma auto-protecção contra uma sociedade crí-
se saber, quase sempre inconsciente, esteve tica que ainda não estava em condições de
presente em cada homem individual) como adquirir conhecimento das coisas ocultas. É
leis de vida moral, é explicado e esclarecido um elemento que, entre outros, encontramos
pelos profetas. também na Bíblia. 6
Quanto mais o homem se transferia da cons-
ciência onírica para a consciência de vigília, O orfismo é um mistério de redenção. Uma
quanto mais ele como que se fixava sobre a vida pura pode fazer a alma tomar parte na
terra, tanto mais ele pensava sobre as coisas. imortalidade depois da morte. Isto é válido
Um belo exemplo disto é a filosofia pós-so- também aqueles que talvez sejam os mais fa-
crática da Grécia; ao lado da experiência in- mosos de todos os mistérios, os de Elêusis.
tuitiva ainda presente, começa-se a pensar, a Em Elêusis, uma cidadezinha da Ática a uns
desenvolver sistemas, a consultar fontes anti- vinte quilómetros de Atenas, surgiu um culto
gas, etc. Vemos isto muito claramente em Pla- à volta de Deméter (deusa da fecundidade) e
tão e Aristóteles, que viveram ambos no sécu- da virgem Koré (ou Perséfone, filha de Demé-
lo IV antes da nossa era. ter) que remonta seguramente a dois mil anos
antes da nossa era. Este culto da fecundidade
A procura de experiência religiosa por entrada cresceu até tornar-se numa religião dos misté-
em contacto com a divindade foi correspondi- rios onde eram admitidos apenas iniciados. A
da pelas muitas religiões dos mistérios que revelação dos segredos era castigada com a
funcionaram nessa época no mundo antigo. morte; e eles foram tão bem guardados que
Na antiga Grécia, o deus Dioniso. (nome lati- uma reconstrução detalhada é praticamente
no: Baco) gozava de um grande prestígio. impossível. Sabemos que tinha lugar um culto
Dioniso era o deus da embriaguez, o deus do em que os participantes entravam em transe e
vinho, o deus da euforia, o deus da fertilidade, alcançavam uma certa forma de iluminação.
da potência, da sensorialidade. Na arte, somos Pedras tumulares com inscrições como ‘a
na maior parte das vezes confrontados com o morte é mais um bem do que um mal para os
Dioniso das orgias, das bacantes; mas Dioniso mortais’ testemunham de que o princípio da
é também o deus da suprasensorialidade, o redenção e a certeza de uma existência depois
deus da visão divina, o deus também do re- da morte estavam muito vivos nestes círculos.
nascimento, corporizado pela morte e revivi- Na primavera haviam os chamados ‘Mistérios
ficação das estações do ano. Menores’ em Agra, um subúrbio de Atenas, e
Estreitamente entretecido com o culto dionísi- no Outono os ‘Grandes Mistérios’ que come-
co, temos o orfismo, uma das mais antigas e çavam em Atenas e continuavam em Elêusis.
mais duradoiras das religiões dos mistérios da Antes de o cortejo partir em procissão para
antiguidade clássica. 5 Tal como muitos desses Elêusis, os participantes banhavam-se no mar
(purificação), cada um com um leitão que de-
5
pois era abatido e sacrificado. Chegados à
Ver entre outros, G. M. Kirkwood, A Short Guide to noite a Elêusis, cantava-se e dançava-se; o dia
Classical Mythology, 37. Ver também o interessante
estudo de E. R. Dodds, The Greek and the Irrational.
6
Dodds parte do princípio de que todo o mundo dos Lc. 8:10: ‘A vós é-vos dado conhecer os segredos do
deuses provém do interior dos gregos. Ver também Reino de Deus, mas os outros recebem-nos em
Georg Luck, Arcana Mundi. parábolas...’
seguinte era dia de jejum. Seguiam-se mais Encontramos algo parecido entre as sibilas.
alguns dias de iniciação no ‘telestérion’ (o Na nossa época chamaríamos a este fenómeno
edifício de iniciação). O grau de iniciação (uma espécie de) chanelling.
mais elevado era a ‘epopteía’ (contemplação),
uma iniciação que só se podia obter passado
no mínimo um ano (a única excepção conhe- A manta do helenismo
cida foi a do general Demétrio que, apesar da
oposição do hierofante – o sumo-sacerdote Há historiadores que vêem a história como
supremo de Elêusis – recebeu todas as inicia- um processo cíclico e há historiadores que
ções de uma vez; para isso, a lei teve de ser consideram a história linear. 11 No primeiro
temporariamente mudada! 7). O facto de parte caso parte-se de ciclos; as culturas aparecem,
das festas de Elêusis serem celebradas em florescem, desagregam-se e desaparecem num
Atenas, onde era respeitada uma trégua de ciclo infinito. Nesta visão das coisas, em es-
cinquenta e cinco dias, testemunha a favor da sência pouco muda. O homem não tem ten-
suposição de que havia muitíssmos partici- dência a aprender com o passado e repete vez
pantes nestes mistérios e também de que exis- após vez os mesmos erros que conduzem ao
tiam diversos graus de iniciação. ocaso da cultura. 12 Os historiadores que acre-
Nos oráculos vemos um fenómeno diferente; ditam num percurso linear da história, com
uma forma de mediunidade. Quando a Pítia, a um princípio, um desenvolvimento e, prova-
sacerdotisa de Apolo, falava em transe, o que velmente, também um fim, têm geralmente o
dizia parecia vir de esferas superiores. Ela era apoio dos teólogos; sucede apenas que estes
o canal de transmissão. últimos pensam ter uma resposta mais clara a
como é qu esse fim vai ser. Também há, natu-
Nos tempos antigos, a pítia 8 recebia inspiração de
ralmente, posições intermédias. Pode-se ver a
Apolo... Ela entrava em êxtase ao respirar um vapor
que se elevava de uma fenda na terra... A divindade história como uma série de círculos que trans-
penetrava-lhe no corpo e obrigava-a a entregar-se à sua bordam uns dos outros, como numa espiral.
direcção (por meio da) inspiração divina... Ela Com isso faz-se também jus ao pensamento
submetia-se e produzia palavras que eram, não suas, evolucionário.
mas da divindade que a dominava. 9
Seja qual for a visão que se tenha da história,
O famoso historiador Dodds escreveu sobre constata-se sempre de novo ser uma tarefa
isto: praticamente impossível transladarmo-nos in-
teiramente para uma época muito remota no
Um autómato feminino começa de repente a falar com
uma profunda voz masculina; o seu comportamento, os passado e pormo-se no lugar do homem que
seus movimentos, a sua expressão facial, mudam de lá vivia. Levamos connosco toda a nossa ba-
abruptamente; fala de coisas que normalmente não lhe gagem do século XX e julgamos a partir do
despertam interesse e por vezes numa língua estranha quadro referencial que nos é próprio. É notá-
ou de uma maneira que não concorda de modo algum
vel que os artistas medievais e renascentistas
com o seu carácter; e frequentemente, ao voltar à sua
maneira habitual de falar, não tem qualquer recordação (e também posteriores) representem a mange-
do que disse. 10 doira de Jesus num estábulo de um mercado
flamengo. Pode ser que aqui tenha também
desempenhado um papel o desejo de aproxi-

7
Plutarco, Demetrius – Antonius. Ver 11
Ver Th. J. G. Locher em Gestalte der Geschiedenis,
também Revista portuguesa de filosofia, Braga, 1992 226-244 e K. J. Popma, Evangelie en geschiedenis.
12
Vol. 48 e Grécia Mágica – o fogo secreto dos deuses, Esta concepção era muito forte nos clássicos e foi
ed. Ésquilo, o artigo referente aos mistérios de Elêusis. transmitida neste século (sob uma forma diferente)
8
N.R.C: Ou pitonisa (literalmente serpente). Do grego: pelo historiador A. J. Toynbee no seu A Study of
Πυθία, transl. Pythía. History. Para uma breve perspectiva ver Raoul Bauer,
9
Lewis Bayles Paton, Spiritism and the Cult of the ‘Arnold Joseph Toynbee’ em Kritisch Denkers
Dead in Antiquity, 83; op. cit. Jon Klimo, Channelling, Lexicon. É verdade que Toynbee concede que as
105. culturas, através do challenge- and response-principe,
10
E. R. Dodds, The Ancient Concept of Progress in podem usufruir de uma vida mais longa se satisfizerem
Greece and Rome, op. cit. Jon Klimo, Channelling, determinadas condições sociais, mas na sua visão,
105. continuam a ser finitas.
mar de nós a acção para se poder participar o cristianismo, voltarei de novo a esta fasci-
numa posição menos afastada. nante figura de Mitra.
O controle de todas estas complicadas ques-
Supondo que já adquirimos uma imagem cla- tões de fé estava confiado ao cargo de ponti-
ra do mundo antigo, o mínimo que se pode di- fex maximus, um cargo que, desde Augusto,
zer é que essa imagem é complicada; muitas foi desempenhado pelo próprio imperador. O
culturas diferentes de tantos povos diferentes. pontifex maximus era presidente de um con-
Só no Médio Oriente conhecemos os Hititas, selho de pontífices (composto na época impe-
os Persas, os Medos, os Caldeus, os Babiló- rial tardia por 16 membros) e não é por coin-
nios, os Israelitas, os Cananitas, os Filisteus, cidência, é muito conscientemente, que os pa-
os Samaritanos, os Arameus, os Fenícios, os pas continuem ainda hoje a usar o título de
Sumérios, os Assírios, os Semitas, os Partos, pontifex maximus.13
os Bactos, etc.
Mas de repente tem lugar algo de notável. Al-
go de uma importância fundamental para a A Palestina judaica
posterior difusão do cristianismo. Entre 336 e
323 (a.C.), Alexandre, cognominado ‘o Gran- Os romanos tinham conquistado e incorpora-
de’, empreende uma série de expedições mili- do no seu próprio império uma grande parte
tares que o levam para lá das fronteiras da Ín- do antigo mundo greco-helenístico. Na maior
dia e até ao Egipto. Espectacular, mas não parte dos casos, os domínios conquistados fi-
único. A história conhece outros relatos de cavam sob administração directa dos romanos
conquista. O que é único é o facto de, com a como províncias, mas havia outras formas
conquista, esse mundo marcadamente pluri- possíveis de fazer sentir o poder romano,
forme adquirir traços homogénios. A cultura quando a incorporação não estava ao alcance
grega é como que colocada como uma cober- ou não era desejável. Neste último caso estava
tura sobre as culturas locais. É aquilo a que o Egipto, riquíssimo celeiro cerealífero que
chamamos helenismo. Pela acção dos gover- foi feito propriedade particular dos imperado-
nantes que regem os países conquistados, a res 14; no preimeiro estava a Judeia, onde os
cultura grega torna-se uma característica co- romanos usaram alternadamente reis-clientes,
mum desde as margens do Ganges até ao Sa- como Herodes, o Grande (37-4 a.C.) e, mais
hara norte africano e à Espanha. tarde, Herodes Agripa (41-44 d.C.), e procu-
A sobreposição da cultura helenística influen- radores (funcionários do governo).
ciou as culturas regionais mas não as extin- A Judeia fazia parte da Palestina. A Palestina
guiu. O memso género de coisa aconteceu bíblica estava na realidade dividida em três
mais tarde com os romanos. Estes adoptaram regiões, cada uma com o seu próprio carácter.
a cultura helenística e levaram para os países Ao norte estava a Galileia, uma região fértil
que conquistaram uma estrutura romana no com o Lago de Genesareth (Tiberias) e cida-
que diz respeito a governo e meios. O direito dezinhas como Cafarnaum e Nazaré. 15 É a re-
civil romano podia ser aplicado a qualquer ha-
bitante livre do imenso império, não sendo li-
mitado aos romanos latinos. E se os povos 13
A denominação vaticana de cúria é também retirada
submetidos, e também os próprios cidadãos, dos romanos, que chamavam ao senado cúria.
14
não causassem dificuldades, muitas coisas H. M. Beliën e F. J. Meijer, Een geschiedenis van de
eram permitidas. Oude Wereld, 270.
15
A designação ‘cidadezinha’ para Nazaré é talvez
Encontramos assim entre os romanos toda exagerada; segundo J. Wilkinson, na sua Jeresalem as
uma escala de religiões, desde deuses naturais Jesus knew it, a população da Nazaré da juventude de
e conceptuais e deuses adoptados dos etruscos Jesus não ultrapassava os 500 habitantes. No Pseudo-
e dos gregos, até às deusas orientais da fecun- evangelho de Mateus é dito que Cafarnaum era a terra
didade e às religiões dos mistérios egípcias. de José, o pai de Jesus. Alguns investigadores afirmam
que o nome de ‘Nazareno’ que era frequentemente da-
Na época romana tardia, foi sobretudo o culto do a Jesus não se refere necessariamente a Nazaré. Po-
de Mitra que teve um prestígio muito alarga- de ter a ver com os Nazireus (literalmente, consagrados
do. Como se pode falar de concorrência com a Deus), uma seita da Palestina de então que encontra-
mos já no Antigo Testamento. Que Jesus tenha passado
gião de onde, com toda a probabilidade, pro- turbação dos seus discípulos – não respeitou,
vinham os antepassados de Jesus e era tam- como veremos mais adiante.
bém a terra natal de Maria de Magdala (= Ma- Durante o cativeiro babilónico, os judeus tive-
dalena). ram de se manter num mundo que lhes era
Mais para sul, na direcção do Mar Morto, es- hostil. As pessoas voltaram-se fortemente pa-
tendia-se a vasta província da Samaria, com a ra a antiga fé num deus único, Jahveh. Segun-
sua capital do mesmo nome. Era também uma do o profeta Jeremias, que pregava por esta
região fértil, com agricultura e criação de ga- época, da infidelidade a esse Deus teria resul-
do. Cesareia (do Mar) era nessa época o cen- tado a destruição de Jerusalém. Jahveh teve
tro urbano mais importante (contruído sob nessa altura de se opôr a uma enorme quanti-
Herodes, o Grande 16) e o local de residência dade de deuses astrais dos vitoriosos
dos governadores romanos. caldeus 18 e sobretudo ao seu deus supremo,
A parte mais meridional era formada pela Ju- Anu. O facto de esse Anu ter uma esposa,
deia, com as cidades de Jerusalém, Jericó e Antu (ou Ishtar), teve talvez consequências
Belém, entre outras. Esta zona tinha de viver para o desenvolvimento de determinadas
dos seus vastíssimos rebanhos e sobretudo da correntes dentro do judaísmo, como veremos
cultura da oliveira, pois o solo era menos ade- em breve.
quado à agricultura. A distância de Jerusalém Quando mais tarde é a vez dos persas baterem
ao Lago de Genesareth é de aproximadamente os caldeus, os judeus entram também em con-
120 km. tacto com a religião dos novos governantes,
Sabemos pelo Antigo Testamento que depois uma religião que ainda estava fortemente in-
da morte de Salomão em 926 antes de Cristo, fluenciada por Zaratustra. Muitos vêem aqui
o reino das doze tribus se dividiu em dois: Is- uma explicação para a aceitação da noção de
rael ao norte e Judá (com Jerusalém) ao sul. ‘anjos’ na fé judaica. Pois Zaratustra acredita-
Dois séculos mais tarde, na época em que va num único deus, chamado Ahura-Mazda.
Isaías profetizava, o reino setentrional (Israel) Ora esta divindade era rodeada por um certo
foi transformado numa província assíria. Sé- número de forças benfazejas, que assumiram
culo e meio mais tarde, Judá caíu em poder do rapidamente as funções de ‘anjos’. Havia tam-
príncipe babilónio Nabucodonosor, que tinha bém um deus maligno, Ahriman, que não es-
conquistado aos assírios a hegemonia sobre tava em pé de igualdade com Ahura-Mazda e
aquela zona. Jerusalém caíu em 587 antes de que seria vencido por este no fim dos tempos.
Cristo; o templo construído sob Salomão foi Também Ahriman estava rodeado por auxilia-
arrasado. O governo da cidade e parte da po- dores.
pulação foram deportados para a Babilónia. É notável que na teologia iraniana dessa épo-
Lê-se no Antigo Testamento que só houve ca- ca houvesse uma crença num saoshyant. Essa
tiveiro 17 quando a Samaria foi conquistada e figura messiânica anunciaria os tempos do
aniquilada. Em sentido inverso, foram trazi- fim e apelaria a todos os fiéis que se preparas-
dos assírios para a Palestina que trouxeram sem para o dia do juízo pela oração e pela pu-
consigo o seu panteão (conjunto) de deuses. rificação. É praticamente impossível que o
Com o passar do tempo, estes ‘novos’ samari- movimento messiânico judaico não tenha sido
tanos converteram-se à fé em Jahveh, mas influenciado por estas concepções.
apesar disso foram olhados de lado pelos ju- Foi também no tempo do cativeiro babilónico
deus entretanto regressados do cativeiro. Os que o profeta Ezequiel teve uma visão impres-
investigadores bíblicos vêem aqui as raízes da sionante de uma espécie de um trono com ro-
inimizade clássica entre os judeus e os sama- das, levado por seres e com uma figura lumi-
ritanos; uma inimizade que Jesus – para per- nosa em forma de homem em cima. 19 E no sé-
culo II antes de Cristo, o poeta trágico judeu
Ezequiel Tragicus diz que Moisés contemplou
esta manifestação de Deus em forma humana
a sua juventude na região da Galileia é, porém, pratica-
mente certo.
16 18
Ver, entre outros, K. Kenyon, The Bible and Recent H. Ringgren chega a falar de 3000 deuses no Die Re-
Archaeology. ligionen des Alten Orients (117).
17 19
2 R 17:6. Ez. 1.
no Monte Sinai. 20 Essa figura luminosa em Palestina ficou sob os Selêucidas (Síria). Du-
forma andrógina (masculino-feminino) teria rante o domínio de Antíoco IV, que quis ex-
sido o exemplo ideal do homem, Adão. En- terminar os judeus pela violência e tornar o
contramos a mesma tendência em alguns es- culto de Zeus obrigatório, rebentou uma re-
critos gnósticos sobre a criação do mundo e volta (a revolta dos Macabeus). Depois de al-
do homem recentemente descobertos. 21 Volta- gumas vitórias iniciais, os judeus foram obri-
mos a encontrar uma variante desta ideia-base gados à defensiva e apelaram ao auxílio dos
na cabala, sob a forma de Adam Kadmon. romanos.
São aqui notáveis os paralelos com a mística O povo estava dividido. O estrato superior, a
judia da merkavah 22; o místico experimenta o aristocracia, tinha adoptado o estilo de vida
caminho que a alma tem de seguir para con- grego. Esse grupo era composto principal-
templar o carro do trono de Deus (merkavah). mente pelos saduceus. Uma categoria diferen-
Esta contemplação do divino só tem lugar de- te, porém, os Hassidim, opunha-se com unhas
pois da travessia dos sete céus e de uma via- e dentes à influência grega. Com o correr do
gem por sete salas palacianas (hekhalot), onde tempo, esse grupo dividir-se-ia em fariseus e
guardiães tentam impedir a passagem da alma essénios. 23
em elevação. A alma só os pode passar se Era esta a situação quando os romanos con-
souber as respostas correctas. Proferindo fór- quistaram a Judeia em 63 a.C.. Após tempos
mulas de conjuramento (senhas) e os nomes perturbados, Roma decidiu em 40 antes de
extremamente difíceis de cada uma das salas Cristo pôr ordem nas coisas e Herodes foi no-
palatinas, pode-se chegar à contemplação do meado rei; com a anuência dos romanos, ele
altíssimo: uma luz ofuscante com o carro do conquistou para si grandes partes da Palestina.
trono de Deus. Certos elementos desta mística Quando se lê o Novo Testamento, parece tudo
da merkavah são o fundamento da cabala pos- muito confuso: há um rei, Herodes, que decre-
terior. ta a matança dos inocentes; há um governador
romano, Pôncio Pilatos, que tem de condenar
Jesus à morte, competência que o Conselho
No tempo de Jesus Supremo judeu (o Sinédrio) não tem; esse
mesmo conselho volta a ser competente para
O cativeiro babilónico durou uns longos ses- condenar Estêvão à morte por apedrejamento;
senta anos. No reinado dos reis persas Cambi- depois, há de repente outra vez um Herodes
ses (529-522 a.C.) e Dario I (521-485 a.C.) que manda matar o irmão de Jesus, Tiago;
uma grande parte da população regressou a mas na prisão de Paulo, o Conselho Supremo
Judá e começou a reconstrução do templo. é novamente dependente dos governadores ro-
Depois da morte de Alexandre, o Grande, que manos. Vamos tentar desatar este nó.
também tinha conquistado a Palestina, o norte Herodes (o Grande) soube colocar a Palestina
(Israel) e o sul (Judá) caíram sob o poder dos sob o seu domínio. Por ocasião de uma mu-
Ptolomeus, uma família grega que se tornou dança de poder em Roma, o imperador Au-
reinante no Egipto. Em 197 antes de Cristo, a gusto confirma os direitos de Herodes como
rei e aliado de Roma. Herodes morre no ano 4
20
P. W. van der Horst, Joods-hellenistisch poëzie, 11- antes de Cristo e Augusto divide o reino pelos
51. Ver também G. Quispel ‘Gnosis als ervaring’ em seus três filhos: Arquelau, Herodes Antipas e
M. Messing, Religie als levende ervaring, 151/152. Filipe. Arquelau tornou-se rei da Judeia, da
21
Como no códice acerca sobre A Criação do Mundo, Samaria e da Idumeia, Herodes Antipas (o
Códice de Nag Hammadi (CNH) II. 5. Ver J.
Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de Nag Herodes que manda decapitar João Baptista)
Hammadi vol. II. Ver também G. Quispel, ‘Ezekiel ficou com a Galileia e a Pereia a seu cargo.
1:26 in Jewish Mysticism and Gnosis’ in Vigiliae Quando Arquelau, que era um mau governan-
Christianae 34 (1980), 1-13.
22
I. Gruenwald, Apocalyptic and Merkavah Mysticism;
23
G. Scholem, Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism Entre os manuscritos do Mar Morto, que foram des-
and Talmudic Tradition; N. A. van Uchelen, Joodse cobertos em 1947 (e nos anos subsequentes) em
Mystiek. Merkawa. Tempel en troon; e A. van der Hei- Qumran, encontrava-se algo como uma ‘acta de
de, ‘De Joodse Mystiek’ em De Heraut, ano 118, nº 10 separação’. Ver J. Slavenburg, ‘Het mysterie van de
(1987), 266-269. Essenen’, em Jonas 17, 17 de Abril de 1992, p. 7.
te, foi deposto e desterrado após muitos pro- textos eram lidos sucessivamente segundo
testos, o imperador nomeou um procurador uma ordem repetida anualmente.
para a Judeia e a Samaria, que pouco mais tar- Com a revolta judaica de 66 d.C. (70 d.C.:
de foi substituído por um prefeito (governa- destruição do templo), a Judeia tornou-se uma
dor) que dependia directamente de Roma. Por província romana. Com uma nova revolta em
isso, Jesus foi condenado por um governador. 135 depois de Cristo, o nome desta província
Um neto de Herodes, o Grande, Herodes integrada no império romano muda para
Agripa I, que tinha sido educado em Roma e Palestina.
tinha relações de amizade com o imperador No tempo de Jesus, Jerusalém era a maior ci-
romano Calígula, recebeu em 40 depois de dade da Judeia, uma espécie de lugar de pere-
Cristo grande parte do reino. Ele é o rei res- grinação onde havia sempre muita animação.
ponsável pela decapitação de Tiago e pela pri- Além de Jerusalém, havia ainda algumas cida-
são de Pedro. À morte deste príncipe quatro des e aldeias mais pequenas. A maior parte da
anos mais tarde, toda a região fica de novo população vivia da agricultura. No Mar de Ti-
sob governadores romanos, uma situação que beríades, a pesca era a principal fonte de sus-
ainda se mantém quando Paulo é preso por tento. A diferença entre ricos e pobres era
volta de 60 depois de Cristo. Entretanto, um grande, como aliás em todo o mundo antigo.
filho de Herodes Agripa I, Agripa II, tinha-se Por isso, esprava-se que o judeu piedoso pa-
tornado príncipe de um reino na fronteira se- gasse impostos duplamente: aos romanos
tentrional de Israel, mas com uma espécie (‘Dai a César o que é de César’) e aos sacer-
particular de protectorado sobre as questões dotes para o serviço do templo. Para as clas-
religiosas em Jerusalém. Também este reben- ses inferiores, e também de modo muito forte
to da dinastia de Herodes se encontra no No- para os Fariseus, a profissão de cobrador de
vo Testamento. impostos para os romanos, era desprezível.
Do ponto de vista religioso, a Palestina man-
teve-se independente sob um Conselho Supre-
mo judeu, o Sinédrio, que funcionava também Não são só fariseus
como tribunal em assuntos religiosos. O
poder do sinédrio tinha diminuído depois Jesus disse:
depois da tomada do governo da Judeia pelos ‘Ai dos Fariseus.
próprios romanos. Por exemplo, este Pois parecem cães a dormir
na manjedoira das vacas.
Conselho Supremo deixou de poder condenar
Não comem
à morte. O sinédrio tinha 71 membros Mas também não deixam as vacas comer’
divididos em três categorias: os ‘anciãos’,
laicos, quase sempre chefes de famílias Estas palavras de Jesus, que se encontram no
antigas 24, os ‘graduados’ ou doutores da lei, Evangelho de Tomé 25, adequam-se bastante
que tinham o título de Rabbi e que no tempo bem a outras expressões e relatos sobre os Fa-
de Jesus eram sobretudo Fariseus, e os riseus do Novo Testamento. Os Fariseus (si-
‘sacerdotes superiores’, uma espécie de ca- gnificado provável: ‘separados’) vivam fre-
pítulo, quase todos Saduceus. quentemente em comunidades, mas no meio
O ‘sumo-sacerdote’ era o chefe do Conselho da sociedade. Cumpriam de modo muito estri-
Supremo e era assessorado pelo capitão do to as leis e os pagamentos dos dízimos. Para
templo (mestre de cerimónias), pelo encarre- além da lei escrita de Moisés, davam valor
gado do templo (guardião das chaves) e pelo aos escritos dos profetas (nevi’iem) e às tradi-
mestre do tesouro. ções inicialmente orais, mas mais tarde postas
O culto judeu propriamente dito desenrolava- por escrito (chetoeviem) que vieram a ser de-
se no templo em Jerusalém, mas quer em Je- signadas pelas respectivas iniciais: tenach.
rusalém quer noutras cidades havia sinagogas Em geral tinham um grande prestígio nas ci-
onde os membros masculinos se reuniam ao dades, tanto por causa do seu estilo de vida
sábado em torno dos livros sagrados, cujos como por causa dos seus ensinamentos. Tal

24 25
Lucas chama-lhes ‘os principais do povo’ (Lc. 10:47) Evangelho de Tomé (EvT), logion 102.
como os grandes filósofos gregos, ensinavam mais claro que há muitas concordâncias entre
gratuitamente os seus discípulos e manti- a doutrina dos Essénios e a posterior pregação
nham-se através de presentes. 26 de Jesus. 29 Os Essénios eram homens piedo-
Porquê então uma imagem tão negativa na Bí- sos e pacíficos que eram contra o uso de ar-
blia? Principalmente porque, tal como é dito mas e davam às escrituras uma interpretação
tão expressivamente noutro logion do Evan- alegórica. Os ‘filhos da luz’, como se chama-
gelho de Tomé: vam a si mesmos, tinham grandes poderes cu-
rativos. Ocupavam-se com a cura dos homens
os Fariseus e os doutores da lei e com a procura de plantas e ervas medicinais.
receberam as chaves do conhecimento Eram também conhecedores dos minerais e
e esconderam-nas.
Eles próprios não entraram
das rochas porque, segundo afirmavam, sen-
nem deixaram entrar tiam os seus campos de força e energias. Os
os que queriam. 27 Essénios tinham um caminho de iniciação re-
gular; os discípulos passavam por um certo
Por outras palavras: era trabalho exterior. número de provas e eram julgados quanto ao
Do seu meio surgiram grandes mestres, como seu valor espiritual antes de poderem entrar
Shammai e Hillel. É conhecido um certo na fraternidade e de poderem participar nas
número de expressões de sabedoria, sobretudo suas refeições sagradas comunitárias. Fre-
de Hillel, que era originário da Babilónia e quentemente formavam comunidades mona-
viveu de cerca de 50 d.C. a 10 d.C. ; essas cais, a mais importante das quais na zona de
expressões mostram por vezes uma forte Qumran não era longe do local onde os ma-
semelhança com as do seu contemporâneo nuscritos do Mar Morto foram encontrados.
Jesus. Em séculos posteriores, Hillel foi Havia também comunidades essénias na
sobretudo conhecido como um reformador da maior parte das cidades e aldeias.
lei. 28 Os Essénios podiam casar. Só o núcleo mais
interior do mosteiro se compunha de
Os Saduceus, que, como vimos, pertenciam à sacerdotes celibatários; a parte mais exterior
classe dirigente e se sentiam razoavelmente
em casa na cultura helenística, eram, no que
diz respeito à doutrina, muito mais conserva-
29
dores do que os Fariseus, porque eram os úni- Em português: os textos essénios Manuscritos do
cos que pretendiam partir da lei escrita de Mar Morto (ed. Ésquilo), tradução de Geza Vermes.
Ver também Christian D. Ginsburg, Os Essénios, sua
Moisés (a Tora) sem quaisquer adições suple-
História e Doutrinas, editado em português pela
mentares. Enquanto que os Fariseus acredita- Pensamento. Sobre a história da descoberta e as
vam numa existência posterior da alma e nu- peripécias posteriores, ver, entre outros, A. Dupont-
ma ressurreição do corpo no dia do juízo, os Sommer, Aperçus Préliminaires sur les manuscrits de
Saduceus não encontravam nas escrituras la Mer Morte; E. Wilson, The Scrolls from the Dead
Sea; J. van der Ploeg, Vondsten in de woestijn van
qualquer referência a estas matérias e portanto
Juda; R. de Vaux, L’Archéologie et les Manuscrits de
rejeitavam-nas totalmente. Com a destruição la Mer Morte; e A. H. Edelkoort, De handschriften van
do templo em 70 depois de Cristo, a influên- de Dode Zee. A tradução mais recente (e mais
cia deste grupo foi quase aniquilada. trabalhada) dos manuscritos do Mar Morto encontra-se
em F. García Martínez/A. S. van der Woude, De Rolle
van de Dode Zee I, Kampen/Tielt, 1994; Robert H.
Um terceiro grupo importante desses dias era
Eisenman e Michael Wise, The Dead Sea Scrolls
o dos Essénios. Desde a descoberta dos ma- Uncovered. Sobre a possível relação entre Jesus e os
nuscritos do Mar Morto em 1947, ao pé de Essénios, ver, entre outros, M. Barthel, Wat werkelijk
Qumran, no sul da Palestina, que é cada vez in de Bijbel staat, 213-223; D. S. Russell, Tussen
Maleachi en Mattheüs, sobretudo 76-77; H.
Schonfield, Odyssee der Essenen; W. Brant, Wie was
26
Ver Morton Smith, ‘Palestinian Judaism in the First Jesus van Nazareth?; J. van der Ploeg e outros, La sec-
Century’, em Israel: Its Role in Civilization, ed., Mo- te de Qumran et les origines du christianisme; John Al-
she David, 81. legro, The Dead Sea Scrolls; Carsten Pieter Thiede,
27
EvT. 39. Die älteste Evangelien-Handschrift?; M. Baigent e R.
28
Ver, entre outros, Jacob Neusner, De joodse wieg Leigh, The Dead Sea Scrolls Deception; e J. Maier e K
van het Christendom, 71-101. Schubert, Die Qumran-Essener.
da comunidade era formada por famílias. 30 Os dando a tudo forma, tudo examinando,
Essénios viviam numa intensa espera do penetrando todos os espíritos,
por inteligentes, puros e subtis que sejam.
messias, quer de um messias real, quer de um Pois a Sabedoria é mais móvel que todo o movimento,
messias sacerdotal. 31 penetra e impregna tudo,
com a força da sua pureza.
Além destes três agrupamentos, havia no tem- Pois ela é o alento da força de Deus
po de Jesus muito mais seitas e grupos, tais e puro esplendor da magnificência do Todo-Poderoso:
por isso não é atacada
como os Zelotas, ‘lutadores da liberdade’ con- por nada que esteja conspurcado.
tra os odiados romanos. Ela é o resplendor da luz eterna,
Sobretudo nos últimos anos, graças aos esfor- o espelho cristalino da actividade de Deus,
ços do erudito judaico Gershom Scholem e a e a imagem da sua divindade.
alguns achados arqueológicos como os de Embora seja única, tudo pode;
embora permaneça em si mesma, renova tudo;
Qumran, ficámos mais cientes da existência de geração em geração
de um misticismo judaico. É dessa tradição ela entra em almas santas
que, como já vimos anteriormente, que surgi- e torna-as amigas de Deus
ria mais tarde a cabala. Tal como os Essénios, e profetas.
os místicos encontram o cerne da sua doutrina Pois Deus só ama
aqueles que coabitam com a Sabedoria.
nos próprios livros antigos, portanto inteira- Pois ela é mais bela que o sol
mente dentro do quadro da ortodoxia. É notá- e mais excelente do que todo o céu estrelado.
vel o papel desempenhado pela Sabedoria co- Comparada à luz do dia
mo instrumento de Deus. Deus, na sua pleni- vê-se que ela é superior,
tude, transborda, emana, e a sua primeira ma- pois a luz do dia desvanece-se com a noite
mas a Sabedoria não é dominada pela maldade.
nifestação (emanação) é a Sabedoria. Sobretu-
do no libro bíblico dos Provérbios encontra-
Encontramos este magnífico hino à sabedoria
mos referências notáveis sobre este assunto:
na Sabedoria de Salomão 34, um escrito apare-
Jahveh fundou a terra por meio da Sabedoria. 32
cido provavelmente no século I antes de Cris-
Jahveh criou-me (à Sabedoria) no princípio dos seus to no Egipto. Vemos aqui a Sabedoria como
caminhos, ainda antes das suas obras, antigamente. hipóstase (autonomização) de uma força de
Desde a eternidade que fui formada, desde o princípio, Deus, um padrão que encontramos também
antes de a terra ser formada. 33 nos gnósticos. É esta Sabedoria, Sophía, que é
responsável pela ‘brecha’ no mundo divino do
E também: pleroma de que surgiu um caos. Para levar a
ordem (=kósmos) a esse caos, ela dá-lhe um
Conheci tudo o que está oculto
e tudo o que é visível,
regente: o posterior criador do mundo. Nos
pois a Sabedoria, a criadora de tudo mitos gnósticos, a Sabedoria é responsável,
ensinou-me. não só pela brecha no pleroma, mas também
Com efeito, nela está um espírito pela implantação do alento divino (pneûma no
que é inteligente, santo, homem, o que o fez ser corporalmente partí-
único, multifacetado, subtil,
móvel, penetrante, imaculado,
cipe da criação e espiritualmente partícipe do
claro, invulnerável, atento ao bem, perspicaz, pleroma. Também na doutrina russa da
irresistível, benfazejo, amante dos homens Sophía, esta, enquanto sabedoria omni-divina,
firme, inabalável, tranquilo, se recorda da oigem divina e tenta voltar a
unir a humanidade à divindade. 35 A própria
30
É essa a razão porque há alguns anos se acharam nas Sophía, que nas concepções gnósticas mais
escavações esqueletos femininos. John Romer, apoian- antigas era a metade feminina de Deus,
do-se exclusivamente no testemunho de Plínio, tirou a afasta-se, em especulações posteriores, cada
conclusão errada de que Qumran era um forte e não um
mosteiro. Ver J. Romer, Geschiedenis en archeologie vez mais de Deus devido à constante
van de Bijbel, 166. emanação de energia divina e chega até à
31
H. Schonfield, Odyssee der Essenen, 15 e seg., Rus- ‘borda’ do pleroma. Para sublinhar o lado
sell, 101 e seg. e J. Maier e K. Schubert, Die Qumran
Essener.
32 34
Pr. 3:19. Sb. 7:21-30.
33 35
Pr. 8:22-23. W. Schubart, Erotiek en religie, 46.
divino essencial da Sophía, faz-se, por vezes, Durante muitos anos, o pensamento ocidental
uma diferenciação entre a Sophía, a força foi influenciado pelos estóicos. 37O fundador
feminina de Deus, e a ‘pequena Sophía’, que da stoá, assim chamada por causa da galeria
provocou a brecha na plenitude do pleroma e porticada do mercado de Atenas, foi Zenão (c.
foi assim indirectamente responsável pelo 340-260 a.C.). A stoá é, porém, conhecida so-
aparecimento da matéria e do homem. 36 Mas bretudo pelo seu período tardio, porque, por
nunca podemos perder de vista que, em exemplo, Séneca (o mestre de Nero) e o impe-
essência, a criação do homem remonta ao rador romano posterior Marco Aurélio, foram
próprio Deus, que o homem é Deus. Foi um seguidores dessa filosofia.
acto da infinita Sabedoria (Sophía) de Deus A stoá parte do princípio de que uma parte da
ter trazido o homem à existência. Este é o alma divina do mundo, também aqui designa-
sentido profundo que se esconde atrás de mui- da pela palavra Lógos, habita no homem. Essa
tas imagens mitológicas. Deus manifesta-se parte é a razão humana; apenas o homem po-
através do homem. de, enquanto ser racional, compreender as leis
divinas, porque estas como que perpassam a
Fílon de Alexandria, um contemporâneo de vida humana. A vida serve para nos orientar-
Jesus (30 a.C.-50 d.C.), também descreve pro- mos para o conhecimento da razão. Na tenta-
cessos de emanação. Na época em que Fílon tiva de o conseguir, alcançar o bem (a virtude)
aí trabalhou, Alexandria era uma metrópole é o ponto central. Nesse sentido, os estóicos
gigantesca habitada por judeus em dois dos são seguidores de Sócrates, que partia do
seus cinco bairros. Fílon fez uma tentativa im- princípio de que o bem superior devia ser fei-
pressionante de harmonizar a fé judaica com a to em atenção ao próprio bem e não com a es-
filosofia ‘pagã’ (helénica) também ricamente perança de uma recompensa, independente-
florescente em Alexandria. Ao fazê-lo, partiu mente do lugar e do momento em que ela
do princípio de que Deus só pode ser com- viesse.
preendido através das forças que o acompa- Essa tentativa faz o homem compreender a es-
nham, portanto através das suas emanações. À cassa importância do destino. Todos os golpes
primeira emanação de Deus dá o nome de do destino são, no pensamento dos estóicos,
Lógos (literalmente, discurso), aqui concebido independentes da nossa vontade; eles actual
como ‘a palavra de Deus’, as intenções divi- autonomamente, o que faz com que não te-
nas. A partir do Lógos, existem por seu lado nhamos qualquer domínio sobre eles. Deve-
muitas emanações, que pairam entre o divino mos ter uma atitude indiferente (estóica) face
e o terrestre e são designadas por ‘anjos’. Ve- a eles. Mais ainda, devemos evitar tanto quan-
mos aqui semelhanças com o misticismo ju- to possível participar neles. Isto significa: in-
daico e com o gnostocismo posterior, assim diferença face às paixões humanas. Com efei-
como com o filósofo neo-platónico Plotino, to, essas paixões desviam o homem do seu es-
que também descreve a força da emanação forço pelo bem superior, enganam a razão e
mas continua a ver o mundo material como dão a ilusão de que o que não é bom teria va-
um produto divino. Fílon era um filósofo reli- lor. Só a disposição desapaixonada (apátheia
gioso. Para ele, a fé vinha em primeiro lugar. em grego) torna o homem verdadeiramente li-
Segundo Fílon, a condição para conhecer vre e independente. A justiça e um amor uni-
Deus era vencer as paixões inferiores, pôr-se versal aos homens, incluindo escravos e bár-
ao serviço do outro e contemplação. baros, são condições para se poder atingir o
bem.
É conhecido por relatos que os estóicos invo-
Estóicos e adoradores de Mitra cavam frequentemente o Lógos como Pai. Es-
se Lógos regia o cosmos e dava sentido e har-

37
Muitos manuais de filosofia dão um bom resumo dos
estóicos e de outros agrupamentos e pessoas aqui refe-
ridos. Ver, por exemplo, Hans-Joachim Störig, Ge-
36
‘A Sophia da morte’. Ver J. Slavenburg, De geheime schiedenis van de filosofie, 2 vol.; e Bertrand Russell,
woorden, 38 e seg. Geschiedenis der Westerse filosofie.
monia à natureza. Se o homem viver segundo senhas correctas, porque transformou as im-
essa natureza, a sua vida tem sentido. Tudo purezas iniciais em características boas, a al-
paralelismos, portanto, com o cristianismo ma eleva-se cada vez mais. Vemos aqui seme-
posterior. lhanças notáveis com a mística judaica da
merkavah já mencionada e com o pensamento
Mitras provém da religião mazdeísta persa. O religioso dos gnósticos. 40
culto em sua honra, onde só eram admitidos O culto de Mitra espalhou-se por todo o Im-
homens, foi inicialmente muito popular entre pério Romano; estações mitraicas (as pessoas
os soldados romanos, mas posteriormente es- reuniam-se em grutas ou espaços subterrâneos
palhou-se em círculos superiores da socieda- cuja abóbada estava pintada de forma a ser
de, onde haviam, além disso, linhas de ligação uma cópia fiel do firmamento) foram desco-
com a stoá. 38 Havia ritos de iniciação (tanto bertas na Inglaterra, na Holanda, na Alema-
físicos como espirituais) e atravessavam-se nha, em França, na Espanha, em Portugal, na
sete graus diferentes. Havia também uma re- Itália, na Suíça, na Áustria, nos Balcãs, na
feição sacramental em santuários subterrâ- Grécia, na Turquia, no Médio Oriente e no
neos. Norte de África, entre outros lugares. Em 307
O ponto central do mistério estava na viagem depois de Cristo, os imperadores romanos
da alma. Acreditava-se que esta, no momento proclamaram Mitra ‘protector do império’.
do nascimento, descia da sua Casa de Luz Também Constantino, o Grande, não foi des-
através de sete esferas planetárias, onde se favorável ao culto no princípio do seu reina-
carregava de impurezas tais como a ambição do; mas no fim, o grande inimigo do culto mi-
de Júpiter, a voluptuosidade de Vénus, a avi- traico, o cristianismo, saíu vitorioso.
dez de lucro de Mercúrio, a indolência de Sa-
turno e a ira de Marte. Como será claro, o mundo greco-romano era
Também os sete graus de iniciação estavam extremamente complicado no princípio da
ligados aos planetas. O grau de Corax (corvo) nossa era. Muitas formas de religião era pro-
cairia sob Mercúrio, o de Nymphus (noiva) fessadas lado a lado e entrosadamente. Simul-
sob Vénus, o de Miles (soldado) sob Marte, o taneamente, diversas correntes filosóficas
de Leo (leão) sob Júpiter, o de Perses (persa) exerciam uma influência directa na atitude de
sob a Lua, o de Heliodromus (mensageiro so- vida de grupos de seguidores. A sociedade or-
lar) sob o Sol e o de Pater (Pai) sob Saturno. 39 ganizatória e militar romana estava a desen-
Uma vez descida à terra, a alma estaria em volver-se, e nem sempre da maneira mais har-
condições de sacudir de si a carga destas im- moniosa, nas convivências regionais, que, por
purezas e, por meio do conhecimento revela- seu lado, eram fortemente influenciadas pela
do durante a iniciação, de chegar a um estado cultura helenística que tudo recobria.
superior de consciência e de intensificar o es-
forço pelo verdadeiro bem. Após a morte, os Foi neste mundo extremamente colorido que
espíritos da Luz e das Trevas lutam pela alma, Jesus de Nazaré nasceu.
que deveria ter encontrado as contra-senhas
na vida acabada de encerrar. O seu caminho é,
com efeito, impedido por ‘guardiães da fron-
40
teira’ que têm de ser ou convencidos ou as- É muito conhecida a passagem do Poimándres, o pri-
sustados para que a viagem para a Luz possa meiro tratado dos Hermetische Geschriften, onde se lê
ser efectuada. Aqui, o Deus Mitra aparece co- literalmente:
‘E assim se move o homem para o alto através da com-
mo juiz da separação. Se conhecer as contra- posição das esferas: na primeira esfera, ele dá a facul-
dade de crescer e diminuir, na segunda, o instrumento
do mal, a manha agora inútil, na terceira, a ilusão tor-
38
Ver G. R. S. Mead, De Mysteriën van Mithra. Een nada impotente do desejo, na quarta, a exibição exte-
Mithrisch Ritueel, 20. rior de poder, agora sem egoísmo, na quinta, a petulân-
39
Ver M. J. Vermaseren, ‘Mithras in der Römerzeit’ cia ímpia da leviandade imprudente, na sexta, os maus
em M. J. Vermaseren (coord.), Die orientalische Reli- instintos da riqueza, que agora já não tem efeito e na
gionen in Römerzeit, 96-114, sobretudo 106-107; M. J. sétima esfera as mentiras que estendem armadilhas’
Vermaseren, Mithras, de geheimzinnige god; e C. A. (tradução de R. van de Broek, em R. van de Broek e G.
Wouters, Mithras. Quispel, Corpus Hermeticum, 37-38).
1. Jesus, que se tornou Cris- dro’ igreja? Poderá, além disso, existir um
cristianismo sem igreja?
to Sejamos muito claros. Há uma cultura cristã.
Nenhum de nós no Ocidente pode subtrair-se
O baptismo no Jordão a ela. Tudo aqui está como que impregnado
com ela. Isto é válido também para os ateís-
A história de Jesus de Nazaré, tal como foi tas, para os humanistas, para os livre-pensa-
contada de diversas maneiras pelos autores do dores e para outros não religiosos. Para expe-
evangelho, teve uma influência impressionan- rimentar a cultura cristã não se precisa, por-
te sobre uma imensa parte da população mun- tanto, de ser ‘religioso’. Mas para experimen-
dial. A pergunta de por que é que o cristianis- tar Cristo também não é preciso ser membro
mo se espalhou tão depressa e de modo tão desta ou daquela igreja. Vivenciar Cristo é
firme no mundo antigo, apesar das persegui- uma experiência estritamente pessoal. Ela po-
ções, dos martírios e das execuções, ocupou de ser estimulada pela visita à igreja e pelo
muita gente. A mensagem de Jesus, tal como contacto com pessoas de orientação seme-
aparece nos Evangelhos, era assim tão apelati- lhante, mas isso não é uma condição indispen-
va? Dar a outra face quando se é batido numa sável. Determinados agrupamentos e persona-
e amar os inimigos seria tão atractivo que as lidades da história confirmam isto. Pois atra-
pessoas se converteram em massa à nova fé? vés dos séculos foi sempre questão de uma
Não haveria no altíssimo número de religiões tradição cristã que nem sempre esteve ligada à
aceites que podiam ser seguidas uma única instituição igreja. Este ‘terceiro componente
que se adaptasse à natureza pessoal? Não ha- da tradição cultural europeia’, como lhe cha-
via já suficiente sabedoria no mundo depois mou o professor Quispel 41, está felizmente a
das profundas filosofias de Platão, Aristóteles disfrutar nestes últimos tempos da atenção
e dos estóicos? A tendência para o misticismo que merece. De novo com o perigo que seja
não podia ser plenamente satisfeita nos mui- isolado como fenómeno. A história cultural
tos cultos dos mistérios? do cristianismo aqui apresentada coloca-o no
É difícil dar uma resposta simples a todas es- meio da história geral, o que o faz aparecer
tas perguntas. Os investigadores que se ocu- muitas vezes a uma luz muito diferente; pois
pam com a pesquisa do pensamento de Jesus, tudo se relaciona muito muito estreitamente
da explicação que dele deve ser dada e da in- com tudo. Sem conhecimento deste ‘terceiro
fluência que ele teve nos expoentes do cristia- componente’, a época actual com a sua secu-
nismo através dos tempos tentam-no regular- larização e o esvaziamento das igrejas não po-
mente. Entre esses investigadores existem de ser compreendida.
teólogos. Ora os teólogos vêem o tema de Infelizmente, o pensamento clerical teve um
dentro. Frequentemente educados, ou pelo efeito asfixiante em vez de libertador, como
menos, instruídos, no pensamento clerical, se constatará ao ler este livro. E isso nunca
têm frequentemente a inclinação de interpre- foi, parece-me, de modo algum a intenção do
tar a história a partir desse quadro referencial. homem a cuja existência terrestre damos a
Os historiadores da igreja dão muitas vezes nossa atenção neste capítulo, Jesus, que se
mostras de uma visão mais ampla do curso de tornou o Cristo.
desenvolvimento da humanidade, mas relacio-
na-o, como a própria designação já indica, Jesus de Nazaré nasceu com toda a probabili-
com o homem da igreja. E aqui chegamos a dade alguns anos antes do início da nossa era.
um ponto crucial. Jesus queria mesmo uma Mas isso não foi o nascimento de Cristo. Cris-
igreja? Não se referiria ele ao falar de ekklésia to, enquanto filho de Deus, isto é, enquanto
(palavra grega que significa comunidade, mas força divina, enquanto Lógos, existia já antes
é quase sempre traduzida por igreja) a uma de o homem aparecer na terra. E essa força-
comunidade universal, a uma fraternidade de Cristo divina pré-existente desceu no homem
homens, que agiria a partir do seu espírito? Só Jesus; um processo que teve a sua coroação
se poderá compreender Jesus a partir do ‘qua-
41
G. Quispel (coord.), Gnosis.
durante o baptismo no Jordão. Este aconteci- lação nos seus escritos comemorativos dos
mento é de um alcance infinitamente mais apóstolos. 43
vasto do que o nascimento do menino Jesus. Segundo Bakels, o pensamento de que a unifi-
Este saber foi desfeito por vinte séculos de cação teve lugar logo na concepção, que foi
cristianismo, mas ainda era conhecido na anti- elevado a dogma pela igreja posterior, só sur-
guidade. Dois dos quatro evangelistas, entre giu muito mais tarde. 44 Numa esplêndida es-
os quais o ‘discípulo amado’ de Jesus, come- critura apócrifa 45, o Evangelho de Filipe, con-
çam a sua história com o baptismo no Jordão. ta-se que
A igreja primitiva celebrava amplamente a re-
cordação deste facto a 6 de Janeiro, a festa da Jesus, nas margens do Jordão, recebeu a plenitude do
epifánia (aparição). A celebração do nasci- Reino dos Céus, Ele, que existia antes do Todo, foi de
novo engendrado. Ele, que se tinha tornado Filho, foi
mento de Jesus, qu foi implantada sobre a fes- de novo ungido. Ele que tinha sido redimido, redimiu
ta do nascimento do deus sol, Sol Invictus, re- outros. 46
monta apenas ao século IV. E nessa época, a
noção do que Cristo realmente representava Nesse dia memorável num local pouco fundo
estava já a tornar-se vaga e começavam-se a do rio Jordão, a Palavra se fez carne em toda a
conceber construções difíceis com um nasci- sua força.
mento virginal, como se a força-Cristo não
fosse já o mais puro que existia. E em épocas
posteriores, a ênfase deslocou-se cada vez Os anos da juventude de Jesus
mais para o ‘menino’ Jesus.
As fontes antigas lançam uma luz muito clara À luz do que está dito acima, não é de estra-
sobre o significado do baptismo no Jordão. nhar que apenas dois dos quatro evangelhos
Lemos no Evangelho dos Ebionitas, uma es- bíblicos forneçam indicações sobre a infância
critura paleo-cristã: de Jesus. O que é imensamente notável são as
maneiras diferentes como essas indicações
Depois de o povo ter sido baptizado, veio Jesus e foi
baptizado por João. E quando saíu da água, os céus têm lugar. Não só as genealogias têm pouco
abriram-se e viu o Espírito Santo em forma de pomba em comum, como também os acontecimentos
que desceu e entrou Nele. E uma voz do céu disse: ‘Éu descritos não se parecem em nenhum aspecto
o meu filho amado. Tenho apreço em ti.’ E também: uns com os outros. O vidente Rudolf Steiner
‘Hoje engendrei-te’. E no mesmo instante, o lugar foi
chegou a emitir a ideia de que se estaria a fa-
rodeado por uma grande luz. Ao ver isto, João disse-
lhe: ‘Quem és, Senhor?’ E de novo soou uma voz do lar de duas crianças diferentes. 47
céu que lhe disse: ‘É o meu filho amado. Tenho apreço Fora dos evangelhos de Mateus e de Lucas,
nele.’ Então João ajoelhou-se perante ele e disse: ‘Pe- encontramos também informação sobre o nas-
ço-te, Senhor, baptiza-me.’ Mas ele negou-lhe isso com cimento de Jesus em alguns textos cristãos
as palavras: ‘Deixemos as coisas assim, porque é assim
muito antigos. Há, por exemplo, a história O
que tudo tem de se cumprir.’ 42
nascimento de Maria. 48 Fala-se lá de um certo
Um dos mais antigos manuscritos do Evange- 43
lho de Lucas (manuscrito D) e algumas tradu- Justinus Martyr, Gedenkschriften der apostolen, edi-
tado por H. Bakels, Nieuwtestamentische Apocriefen I,
ções latinas antigas não dizem ‘em quem te- 298.
nho apreço’ e referem apenas ‘hoje engen- 44
H. Bakels, Nieuwtestamentische Apocriefen I, 293.
45
drei-Te’. Também Justino utiliza esta formu- Os Apócrifos do Novo Testamento são escrituras que
não foram incorporadas no cânone. Ver sobretudo W.
Schneemelcher, Neutestamentlicher Apokryphen I, 1-7.
46
Evangelho de Filipe (EvFlp.), 67. seguimos a
tradução do texto holandês estabelecido por J.
Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de Nag
42
Os Padres da Igreja designam por Ebionitas um Hammadi I, 2ª edição, mantendo-se igualmente a
grupo não inteiramente uniforme de orientação numeração indicada nesta obra.
47
jacobista no cristianismo mais antigo. Este evangelho, Rudolf Steiner, O evangelho Segundo Lucas.
48
que apenas nos chegou de forma fragmentada pode ser A tradução portuguesa de O Nascimento de Maria
oriundo dessa tradição. Seguimos aqui a tradução de A. pode ser encontrada em Urbano Zilles, Evangelhos
F. J. Klijn, Apokriefen van het Nieuwe Testament I, 23- Apócrifos, pela EDIPUCRS-Editora da Pontifícia
24. Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Joaquim, avô de Jesus (pelo lado materno). brecht Dürer foi beber a esta tradição para as
Joaquim e Ana, sua mulher, ambos já idosos, suas ilustrações ‘da vida de Maria’.
têm com ajuda divina um filho, Maria. A par- Em nenhuma dessas histórias o nascimento de
tir dos três anos, essa Maria é educada no Jesus tem lugar no estábulo de uma estala-
templo. Ao chegar aos doze anos, os sacerdo- gem, é sempre numa gruta. Já no século II ha-
tes do templo começam a recear que ela cons- via habitantes de Belém que mostravam aos
purque o santuário (por aparecer a menstrua- visitantes uma gruta fora da cidade onde Jesus
ção) e procuram-lhe um noivo adequado. O teria nascido. É o lugar onde Constantino, o
noivo é José, viúvo e pai de quatro filhos, que Grande, fez erguer no século IV uma basílica
é escolhido pelo destino para tomar à sua cruciforme de cinco naves.
guarda a virgem do templo. Uma vez que ele Além disso, é cada vez mais claro que as his-
se opõe bastante à perspectiva, os sacerdotes tórias do nascimento dos evangelhos bíblicos
do templo têm de exercer constrangimento são elaborações de um período posterior. Os
verbal para o convencerem. O texto que nos autores tentaram desesperadamente fazer con-
foi transmitido prossegue com um relato deta- cordar entre si determinados factos da salva-
lhado sobre o anjo que aparece a Maria e lhe ção. Como o messias devia nascer da geração
comunica que ficará grávida. de David em Belém, o lugar da acção foi des-
Como esta história é atribuída a Tiago, filho locado para Belém. De facto, Jesus nasceu em
de José e, portanto, (meio-)irmão de Jesus, es- Nazaré, na região da Judeia, uma aldeia que
ta escritura também se chama Proto-evange- está a cerca de cento e quarenta quilómetros
lho de Tiago (proto = pré). Outro texto paleo- de Belém. No seu livro The unauthorized ver-
cristão, o Evangelho de pseudo-Mateus 49, sion: truth and fiction in the Bible, o historia-
mostra bastante concordância no que diz res- dor Robin Lane Fox acaba definitivamente
peito a conteúdo, com esta escritura. Também com a ideia de que os evangelhos teriam sido
aqui se conta a história do nascimento maravi- escritos com a intenção de fornecer um relato
lhoso de Maria, da sua educação no templo e historicamente fiável; já há muito que é con-
do seu noivado com José; José que também sensual no mundo teológico que os evange-
aqui é retratado como um homem de idade de lhos foram escritos como escrituras de persua-
cabelo grisalho. são. 51 A mensagem de que Jesus Cristo era o
Estas histórias, que não se encontram na Bí- messias, o redentor, devia ser transmitida e to-
blia, tiveram, não obstante, influência sobre o dos os meios que pudessem servir para isso
cristianismo posterior, sobretudo no Oriente. foram usados, mesmo quando não se encon-
Muitos artistas foram inspirados por esta co- trava qualquer fundamento histórico para eles.
lorida história, como é ainda bem visível nos Febrilmente, tentou-se encaixar na nova histó-
esplêndidos mosaicos da antiga Igreja de ria tudo o que nas antigas escrituras pudesse
Chora, na actual Istambul. Na Idade Média, relacionar-se com Jesus, a fim de aumentar
uma colecção de lendas compilada sob o no- dessa maneira a autenticidade do que aconte-
me de Legenda Aurea por Jacobus de Voragi- cera.
ne (1230-1290), foi muito popular e nela en- Sobre a juventude de Jesus depois do regresso
contram-se muitos versos agradáveis sobre os do Egipto, são também conhecidos relatos
três casamentos de Ana, a avó de Jesus. 50 No muito antigos. Numa escritura da primeira
Ocidente, a adoração de Santa Ana dos três metade do século II, que se baseia em relatos
era muito usual nessa época. Restam-nos des- orais ainda mais antigos, A história da juven-
sa época ainda muitas pinturas magníficas que tude de Jesus, por Tomé 52, o pequeno Jesus
mostram a mãe Ana com a filha Maria e o aparece inicialmente como um jovem um
menino Jesus e também o artista alemão Al-
51
R. Lane Fox, The unauthorized Version: Truth and
Fiction in the Bible. Ver também M. Walsh, De wortels
49
O Evangelho de pseudo-Mateus encontra-se em tra- van het christendom, 48-51 e B. van Ginkel e J. A. Pi-
dução portuguesa em Urbano Zilles, Evangelhos card, Het Evangelie van Jesus, 7.
52
Apócrifos, pela EDIPUCRS-Editora da Pontifícia A história da juventude de Jesus, por Tomé, foi pu-
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. blicada em Die Apokryphen Schriften zum Neuen Tes-
50
Ver R. Benc, Die Legenda Aurea von Jacobus de tament, Uebersetzt und erläutert von Wilhelm Michae-
Voragine. lis, 96-111.
pouco estranho que ainda não lida equilibra- terrível antevisão; uma antevisão captada na
damente com as suas forças. Outros textos an- sua consciência total. 55
tigos têm também este alcance. 53
Tanto as histórias apócrifas da juventude co- Após o baptismo, Jesus teria andado ainda
mo as escrituras de Mateus e Lucas estendem três anos sobre a terra. Mas que três anos!
os seus relatos até ao décimo segundo ano da João encerra o seu evangelho com a observa-
vida de Jesus, quando ele fica no templo para ção de que se todas as coisas que Jesus fez ti-
discutir com os doutores da lei, deixando os vessem de ser escritas
pais em grande inquietação. No meu livro Een
ander testament cheguei a uma reconstituição O mundo inteiro seria pequeno demais para conter to-
após estudo de muitas fontes antigas: por vol- dos os livros que teriam de ser escritos. 56
ta dos doze anos, Jesus conseguiu equilibrar
de tal modo as suas forças divinas e físicas É notável que a descrição que João faz destes
que teve lugar uma fusão total no seu ser; um três últimos anos se afasta bastante da dos pri-
estado que poderíamos comparar à iluminação meiros três evangelhos; dos três evangelhos a
de Buda sob a figueira. 54 que, por causa das concordâncias que mos-
tram entre si, chamamos evangelhos sinópti-
cos. Voltarei ao aparecimento destes evange-
Cristo lhos num capítulo posterior.
O que é importante é reconhecer que os evan-
gelhos são primariamente escritos testemu-
Segundo a tradição eclesiástica, Jesus teria nhais e não descrições históricas rigorosas. O
aproximadamente trinta anos quando foi próprio Jesus nada deixou escrito e as suas
preenchido pelo Espírito de Cristo durante o palavras não foram imediatamente registadas.
baptismo no Jordão. Esse baptismo, que foi Mas nessa época havia uma tradição oral mui-
como que a consumação de um processo em to maior do que a de hoje. Graças a essa tradi-
curso e cujo selamento teve lugar por meio de ção, muito se conservou e pôde ser posto por
símbolos – como por exemplo, a pomba en- escrito numa fase posterior.
quanto personificação do Espírito Santo –, é Desde o primeiro início que existiu uma tradi-
essencial na história do homem Jesus, e é ção oral das chamadas ‘palavras de Jesus’,
também essencial na história do cristianismo, das expressões que Jesus proferiu em público
é essencial até na história de toda a humanida- ou perante os seus discípulos em particular.
de. A força divina desceu com tão grande in- Encontramos uma curta colecção nuclear des-
tensidade no homem Jesus – frequentemente sas palavras por exemplo no Evangelho de
usa-se aqui o termo ‘irradiado’ – que o ego do Tomé 57, cujo texto completo foi desenterrado
homem Jesus se apagou totalmente nela. Isto em 1945, depois da descoberta, meio século
não quer dizer que ele não conheceu mais antes, de alguns intrigantes fragmentos de pa-
luta. Mesmo numa tão grande medida de divi- piro 58 deste interessante evangelho.
nidade, o homem está submetido às forças ter-
restres, materiais. Jesus era um homem e tinha
a ver com elas. Mas já não era o seu ego que o
55
guiava, era o espírito de que estava preenchi- A visão que aqui damos e que nem todos aceitarão,
do. Mesmo durante a horrível antevisão do foi apresentada no Een ander testament e apoia-se, em
cerca de setenta fontes não bíblicas, além dos
grande sofrimento corporal que o esperava e evangelhos conhecidos.
que ele teria com toda a certeza podido evitar 56
Jo. 21:25.
– sabia, porém, que tudo isso tinha de aconte- 57
O Evangelho de Tomé tem algumas traduções em
cer – foi essa a força que o guiou, embora português. A mais recente é a que está contida na
suasse literalmente sangue e lágrimas por essa edição da Biblioteca de Nag Hammadi (vol.I, II e III) /
Antonio Piñero, José Montserrat Torrents, Francisco
García Bazán, ed. Ésquilo. O autor segue a tradução de
53
Ver um resumo das muitas histórias sobre o nasci- Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de Nag
mento e a juventude de Jesus em J. Slavenburg, Een Hammadi I, 129-169). Todas as citações que dele se
ander testament. Ver também Schneemelcher, 331- fazem neste livro são tiradas dessa tradução.
58
373. Os papiros de Oxyrhynchus. Ver B. Layton, The
54
J. Slavenburg, Een ander testament, 49-57. Gnostic scriptures, 378 e seg.
A tradição das palavras de Jesus é a mais anti- Flusser, Jacob Neusner, Shalom Ben-Chorin e
ga de todas. Numa fase posterior, esta tradi- Pinchas Lapide mostraram claramente que a
ção foi adaptada a uma história cronológica herança de Jesus Cristo tem raízes judaicas 63,
da sua vida. Mas, tal como escreveu João, onde, segundo Flusser, se discortinam in-
nem tudo foi registado, longe disso. E de tudo fluências grego-helenísticas. 64 Naturalmente,
o que foi registado mais tarde, apenas uma não podemos perder de vista que, embora Je-
parte se conservou. Os escritos que apresenta- sus fosse judeu, os seus ensinamentos reti-
vam uma tradição que não concordava com as niam numa sociedade multicultural – e por-
concepções posteriores da igreja estabelecida tanto, não exclusivamente judaica.
foram destruídos. Isso aconteceu, entre ou- Em que é que consistiam esses ensinamentos
tros, aos escritos gnósticos, de que felizmente, que iam mais profundo do que as parábolas
um certo número de exemplares cuidadosa- para o povo? Poderíamos chamar-lhes ensina-
mente escondidos foi encontrada em 1945 mentos ‘esotéricos’, ensinamentos que só po-
perto da aldeia egípcia de Nag Hammadi. 59 diam ser transmitidos em círculos reduzidos
Que se lhes tenha dado tão pouca atenção, so- (‘quem tem ouvidos para ouvir, que oiça’),
bretudo na Holanda, deve-se, como nota o porque a grande massa ainda não estava ma-
professor Quispel com razão 60, às tentativas dura para eles.
de bagatelização de teólogos com um forte
preconceito. Não deis o que é santo aos cães
Este achado é de longe o mais importante des- e não lanceis as vossas pérolas aos porcos,
para que estes não as pisem com as patas...
te século, porque lança uma luz ofuscante so-
bre o significado de cristo e nos põe em con-
teria dito Jesus. É uma daquelas expressões
tacto com o lado oculto do saber antigo. Pou-
que mais tarde seriam postas por escrito. 65 E
co importa que nem todos os escritos encon-
no Evangelho de Tomé é transmitida a expres-
trados sejam cristãos, porque a revelação é to-
são de Jesus:
talmente universal. Com uma abertura despre-
conceituosa a esta outra tradição, muitos dos Conto os meus segredos àqueles
textos que fora encontrados podem ser uma que são dignos dos meus segredos... 66
fantástica fonte de inspiração para a época ac-
tual. Os ensinamentos de Jesus tinham a intenção
de tornar o homem consciente da sua origem
Lê-se na Bíblia que Jesus falava ao povo em divina, do seu lugar nesta terra e do caminho
parábolas mas fazia de outro modo na instru- que tinha de seguir para chegar a essa cons-
ção dos seus discípulos. 61 Tal como vimos, ciência. E o que é particularmente notável é
por exemplo a propósito dos Fariseus, era per- que nos escritos recentemente descobertos é
feitamente normal nessa época na Palestina delineado um caminho muito mais concreto
que um mestre (rabi) reunisse à sua volta um do que nas histórias bíblicas. Jesus ensina o
certo número de discípulos. 62 Jesus era um homem a contemplar dentro de si mesmo. Le-
rabi judeu. Eruditos judaicos como David mos no Evangelho de Tomé:
59 Jesus disse:
J. M. Robinson (coord.), The Nag Hammadi Library
in English contém uma tradução inglesa de todos os es- ‘Quem (pensa) conhecer o Todo
critos descobertos. Para uma tradução portuguesa inte- e não se conhece a si mesmo
gral, consultar Biblioteca de Nag Hammadi vol. I, II, continua completamente carente.’ 67
III, com enquadramento científico de Antonio Piñero,
José Montserrat Torrents, Francisco García Bazán.
60 63
J. Slavenburg, ‘Hermes Trismegistos in Amsterdam; D. Flusser, De joodse oorsprong van het christen-
interview met prof. Gilles Quispel’ em Bres 145 dom; D. Flusser, Het christendom/een joodse religie; J.
(1990/1991), 62. Neusner, De Joodse wieg van het christendom; S. Ben-
61
Mt. 13:13-16; Marc 4:11-12; Lc. 8:9-10. Chorin, De Tien Woorden; P. Lapide, Hij leerde in hun
62
Isto era também usual para os filósofos gregos antes synagogen.
64
do início da nossa era e, por exemplo, também nas es- D. Flusser, De joodse oorsprong van het christen-
colas de sabedoria alexandrinas de Clemente, Ammo- dom, 11-62.
65
nius Saccas, Hermes Trismegistos, Valentino e Plotino Mt. 7:6.
66
dos séculos II/III d.C. EvT. 62.
A ressurreição
O primeiro passo no caminho para chegar ao
auto-conhecimento é procurar, e não parar de Se Jesus tivesse falecido em idade avançada
procurar até se ter encontrado. 68 Só quando o como um homem sábio, como lhe chama o
homem se conhece por dentro e por fora e es- historiador judaico-romano José 72, ou se ti-
tá consciente dos seus impulsos, só quando vesse tomado a liderança na luta contra os ro-
conhece a ‘raiz’ é que o homem é capaz de manos no ano 66, o seu nome teria certamente
compreender o enorme processo cósmico de sobrevivido em círculos judaicos, mas então,
que faz parte. Ele pode então, lentamente, ul- nunca se poderia ter escrito uma história cul-
trapassar a divisão em si mesmo, o abismo en- tural do cristianismo. Se o fim de tudo tivesse
tre o seu saber interior e a sua actuação exte- consistido numa condenação pelos judeus e
rior, a oposição entre a sua receptividade fe- numa crucificação pelos romanos, a históri
minina e o seu impulso de acção masculino, e mundial não teria sido mudada. Não estavam
tornar-se uno 69; e pôr-se em perfeita harmonia os seus discípulos depois de ele morrer na
consigo mesmo e com tudo o que o rodeia. É cruz com o sentimento de ‘isto foi tudo?’
isso entrar no Reino. Jesus ensina o homem a Na tradição cristã, a morte de Jesus só adqui-
libertar-se da rotina aprisionante em que ele riu significado com a sua suposta ressurrei-
próprio se meteu. Quando o saber interior se ção. Com essa ressurreição, ele teria demons-
torna suficientemente forte, as leis exteriores trado que era verdadeiramente o Cristo, o fi-
tornam-se supérfluas para essa pessoa, porque lho de Deus. Face a este pano de fundo, a his-
ela as transcende em muito. 70 Isto conduz a tória da sua vida adquiriu uma dimensão total-
uma esplendorosa liberdade humana que só mente diferente. Paulo escreve na sua primei-
pode existir num amor absoluto. Num amor ra carta à comunidade de Corinto:
absoluto a si mesmo e num amor absoluto ao
próximo, aos outros. ... se Cristo não ressuscitou, a nossa prédica é vazia e a
É precisamente nesta época que muitos vossa fé também. 73
sentem um grande interesse por estes
ensinamentos esotéricos de Jesus. Na grande O que é interessante é que uma afirmação co-
corrente da nossa corrente cultural cristã mo esta é susceptível de uma interpretação
quase não se encontra este interesse. Tudo dupla. 74 Que foi feita. Pois no que diz respeito
andou mais à volta do nascimento, morte e à história da ressurreição há várias tradições.
ressurreição de Jesus do que à volta dos seus A igreja viu na afirmação acima uma confir-
ensinamentos, esotéricos ou não esotéricos. O mação da ressurreição corporal de Jesus, mas
apelo de Jesus a que se amasse o próximo, existiram, e ainda existem, outros cristãos que
portanto uns aos outros, não conduziu até hoje lêem nela que se não deixarmos o Cristo res-
a uma paz mundial geral. E a lei mosaica suscitar em nós mesmos, as nossas palavras
repetidamente confirmada por Jesus ‘Não são vazias e a nossa fé também. Pseudo-Filipe
matarás’ 71 não impediu que cristãos de todas concorda com isto ao afirmar:
as épocas se pegassem de maneira bestial ao
seu próximo. Na Idade Média, a igreja era tão Aqueles que dizem:
hipócrita sobre este ponto que os suspeitos de ‘O Senhor primeiro morreu e depois ressuscitou’
erram.
heresia que ela considerava culpados eram Pois ele ressuscitou primeiro
entregues ao poder legal para condenação e e depois morreu.
martirização; assim não ficava com sangue Se não se conseguir primeiro a ressurreição
nas mãos. não se pode morrer!

72
Durante muito tempo, considerou-se o chamado Tes-
timonium Flavianum uma passagem falsa acrescentada
posteriormente à obra de Flávio José. David Flusser
67
EvT. 67. compara este texto com uma fonte recentemente desco-
68
EvT. 2. berta (Agápio) e publica-a em Ontdekkingen in het
69
EvT. 22. Nieuwe Testament, 140-152.
70 73
EvT. 6 e 14. 1 Co. 15:14.
71 74
Mt. 5:21, 19:18; Mc. 10:19; Lc. 18:20. Ver E. Pagels, The gnostic Paul, 81-82.
Só se Deus começar a viver nele Marcos 16:9-20 é um acrescento posterior, tal
é que ele (=o seu antigo ser) pode morrer. 75 como hoje é geralmente aceite. 81 Isto não dei-
xa de ser significativo, porque o Evangelho de
Sobretudo no século passado, quando havia Marcos é o evangelho mais antigo e serviu de
um forte interesse pela pesquisa da fonte a Mateus e Lucas.
historicidade de Jesus, foi sugerido que o Que Jesus ressuscitou em espírito é, em todo
aparecimento de Jesus aos seus discípulos o caso, reconhecido por todos os cristãos, in-
teria sido uma visão. 76 E mesmo na nossa dependentemente da sua orientação. Ninguém
época coexistem imensas opiniões e negará que ele apareceu primeiro a quem lhe
explicações. Alguns declaram que Jesus como estava mais chegado e mais tarde, por exem-
que podia materializar o seu corpo à vontade, plo, também a Paulo. A luta em volta da ques-
outros têm uma explicação parapsicológica 77, tão de se houve ou não ressurreição no corpo
outros ainda partem da ideia de que Jesus é assim tão importante? Que esse é o caso
teria vivido não como pessoa mas como ideia constatou-se logo nos primeiros séculos de-
e, por isso, não podia ressuscitar 78, e outros, pois de Cristo. 82 E isso tem tudo a ver com a
finalmente, adoptam a hipótese de que Jesus noção de redenção.
nunca teria morrido realmente e ainda vivia
quando foi retirado da cruz. 79 A igreja posterior partiu do princípio de que o
A morte na cruz é detalhadamente descrita em pecado entrou no mundo por causa de Adão –
todos os quatro evangelhos do Novo Testa- na realidade, mais por causa de Eva, pois ela é
mento e também em muitos apócrifos. Ela que apanhou a maçã. Isso significou uma que-
deixou em todas as épocas uma profunda im- bra sensível na relação Deus-humanidade.
pressão na humanidade e penso que foi, de Mas o Deus compassivo enviou o seu próprio
longe, o tema que mais foi representado em filho para reconciliar de novo a humanidade
todas as expressões artísticas ao longo dos sé- consigo. Um acto de pura graça, portanto.
culos. Com a sua incarnação e a sua morte martirial,
Nos evangelhos bíblicos, não encontramos, Jesus retirou os pecados aos homens e resta-
porém, qualquer descrição da própria ressur- beleceu a sua relação com Deus. O homem
reição, apenas das aparições de Jesus; primei- que é baptizado em Cristo é redimido pelo seu
ro a Maria Madalena, que não o reconhece sacrifício do pecado contínuo desde Adão. No
imediatamente e o toma por um jardineiro, e dia do juízo, no fim dos tempos, Cristo sepa-
mais tarde, repentinamente, no meio dos seus rará os bons dos maus; todos serão então de
discípulos, estando as portas fechadas. 80 Mar- novo reunidos nos seus corpos. Os maus desa-
cos ainda é o mais comedido. Não dedica uma parecerão para o lugar de castigo do fogo
única palavra à ressurreição corporal de Jesus. eterno, os bons herdarão a vida eterna no rei-
Dois dos mais antigos, e dos menos duvido- no de Deus; uma concepção que foi repetida-
sos, textos que possuímos deste evangelho, o mente posta em imagens pela arte. Sobretudo
Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus, termi- entre os séculos X e XIV, quando a generali-
nam em Marcos 16:8: dade do povo era ainda analfabeta, os frontões
das igrejas foram cobertos com magnífica es-
E por medo, não disseram nada a ninguém sobre isto.
tatuária sobre este tema, numa espécie de ins-
trução visual, algo como uma banda desenha-
75
da avant la lettre. O objectivo era levar o ho-
EvFlp. 17. mem a uma vida piedosa.
76
E. Renan, La vie de Jésus; D. F. Strauss, Das Leben
Jesu kritisch bearbeitet.
77
G. Zorab, De derde dag. Mas havia cristãos que não acreditavam na
78
P. Krijbolder, Jezus de Nazoreeër. concepção farisaica de uma ressurreição cor-
79
Ver entre outros, H. Kersten, Jesus leefde in India;
H. E. Boeke, Enkele medische aspecten van de kruisi-
81
ging van Jesus; H. M. G. Ahmad, Jesus starb in Indien; Ver, entre outros, M. Baxter, The Formation of the
K. Berna, Jezus niet aan het kruis gestorven; J. D. Christian Scriptures, 28 e J. Bentley, Het geheim van
Shams, Waar stierf Jezus?; H. J. Schonfield, The Pass- de berg Sinaï, 124-139.
82
over Plot. Ver, entre outros, J. J. Thierry, Opstandingsgeloof in
80
Lc. 24:36; Jo. 20-19. de vroegchristelijk kerk.
poral no fim dos tempos; que não acreditavam mo, uma unção e uma ressurreição simulta-
numa espécie de amnistia em massa por meio neamente 86, um abandono do antigo mundo e
da redenção dos pecados pelo sacrifício de Je- a entrada na nova vida, uma libertação do me-
sus. Que, além disso, não acreditavam que o do da ignorância, um subtracção à força do
homem fosse pecador por natureza. E que destino. O pai da igreja Clemente de Alexan-
também não acreditavam num deus julgador dria escreveu sobre isto:
que, além de amar o próximo, também podia
odiar. Que punham a expressão Antes do baptismo (com o Espírito Santo) o fatum
(destino) e ainda um verdadeiro poder; depois do bap-
... pois Eu, Jahveh, vosso Deus, sou um Deus tismo, as previsões dos astrólogos deixam de ser verda-
ciumento, que vinga a culpa dos pais nos filhos até à de. 87
terceira e quarta geração daqueles que Me rejeitam 83
Pela ressurreição, as pessoas tornavam-se par-
na conta do demiurgo, do criador do mundo, tícipes na imortalidade, porque tinham uma li-
que podia com razão sentir-se ciumento do gação com o eterno. No Evangelho de Filipe
Deus desconhecido da pura energia-luz, encontramos isto referido com as seguintes
infinitamente longe das limitações do bem e palavras:
do mal. 84
Eva não cometeu, portanto, nenhum pecado Aqueles que dizem:
‘Primeiro morre-se e depois ressuscita-se’,
ao desobedecer a esse sequioso de poder que erram.
tentava impedir que o homem obtivesse co- Pois se não se conseguir a ressurreição durante esta vi-
nhecimento (gnôsis, em grego) da distinção da,
entre as forças boas e más. Com efeito, a pos- também não se conseguirá depois de morrer. 88
se desse conhecimento implicava ao mesmo
tempo a possibilidade de libertação, a inde- Para estes cristãos, a ressurreição era, portan-
pendência do deus castigador. E esses cris- to, sempre uma pura questão espiritual. Eles
tãos, que tinham concepções que a posterior podiam ligar-se de coração às palavras de
igreja de poder declarou heréticas, aceitavam Paulo ‘a carne e o sangue não herdarão o Rei-
em Jesus Cristo o filho do Deus verdadeiro, no de Deus’. 89
do Deus totalmente transcendente da Luz in-
descritível, que só podia ser conhecida pelas O pensamento de que o homem ressuscita, não no seu
antigo corpo terrestre, mas num corpo espiritual novo,
suas forças, pelas suas emanações. 85 Tinha si- demonstrou na prática eclesiástica subsequente ser de-
do uma dessas forças divinas emanadoras que masiado subtil para contrariar a ameaça de uma volati-
tinha vindo no homem Jesus para trazer a lização e espiritualização gerais da fé na ressurreição.
gnose à humanidade, para manifestar o conhe- Isto conduziu a que, no catolicismo primitivo, se expli-
cimento do como e do porquê de todas as coi- casse cada vez mais a ressurreição como uma identida-
de entre o corpo terrestre e o corpo da ressurreição.
sas. E quando chegasse a essa gnose e tivesse
descoberto no seu coração uma centelha dessa
Estas afirmações são do professor van den
luz indescritível, o homem estaria liberto. Pa-
Broek num comentário à sua tradução holan-
ra ele, isto significava literal e figuradamente
desa do Tratado sobre a Ressurreição 90, um
a iluminação. Era uma iniciação, um baptis-
escrito gnóstico-cristão do achado de Nag
Hammadi. Pois, como diz também o autor do
83
Deut. 5:9. Evangelho de Filipe:
84
Em relação a este tema ver o Livro Secreto de João
(Biblioteca de Nag Hammadi / Antonio Piñero, José
Alguns receiam estar nus na ressurreição.
Montserrat Torrents, Francisco García Bazán), O apa-
Por isso, querem ressuscitar na carne.
recimento do mundo e A essência das potências, Có-
dices de Nag Hammadi (daqui em diante designados
por CNH) 2,1; 2,4 e 2,5 respectivamente. Existem vá-
86
rias versões do Livro Secreto de João; três nos CNH e Flp 56.
87
uma no Códice de Berlim. Ver texto, introduções e co- Excerpta ex Theodoto, 87,1.
88
mentários em J. Slavenburg/W. J. Glaudemans, Flp 71.
89
Biblioteca de Nag Hammadi I e II. 1 Co. 15:50.
85 90
Ver J. Slavenburg, ‘Onderzoek naar Gnosis in volle ‘De verhandeling over de opstanding’ em R. van den
gang’, em Bres 125, (1987), 87-94. Broek, De taal van de Gnosis, 153.
Não sabem, porém, que são precisamente os que levam da entrada directa no Reino. Para isso, o ho-
a carne mem tem de restabelecer em si mesmo a uni-
que estão nus... 91
dade original e de abolir a dualidade em si
mesmo. Jesus ensina aos seus discípulos:
Para estes iniciados cristãos, Cristo era a força
divina pré-existente de que Jesus se revestiu. Se fizerdes dos dois um,
Jesus trouxe essa força à terra, irradiou-a e fa- e se fizerdes o interior como o exterior
lou dela aos seus discípulos e a muitos outros. e o exterior como o interior
Deus revelou os muitos segredos através de e o que está em cima como o que está em baixo
Jesus. É isso o que se quer dizer com ‘as pala- e se tornardes o masculino e o feminino num
de modo que o masculino não seja masculino
vras secretas’, que serão reveladas a todos os e o feminino feminino...
que estiverem abertas a elas, mas que são ca- entrareis no Reino. 94
luniadas e troçadas por aqueles que (ainda)
não as compreendem. Isto custou a vida a Je- Mateus liga indirectamente o Reino ao fim
sus. O seu corpo humano ficou para trás, mas dos tempos. 95 Sobretudo a imagem por ele
a força continuou a existir e continua a viver. pintada, de Cristo sentado num trono a sepa-
Foi sobretudo a força de Cristo, que se ligou rar os bodes das ovelhas, inspirou muitos ar-
mais firmemente à terra e à humanidade, que tistas. Ela está extremamente afastada da ex-
despertou inspiração no cristianismo primiti- pressão de Jesus no Evangelho de Tomé:
vo. No século I quase não se ouve falar de Je-
sus, mas ouve-se muito sobre Cristo. Paulo é Fendei um pedaço de madeira
disso um brilhante exemplo. e eu estarei lá,
Também a prédica de Jesus não terminou com levantai uma pedra
e encontrar-me-eis lá. 96
a sua vida e permaneceu invocável. Por isso,
ele respondeu quando os seus discípulos per-
Também Lucas liga, embora de maneira mui-
guntaram quando surgiria o Reino dos Céus:
to subtil, o Reino ao regresso de Cristo à ter-
Não vem por se esperar por ele;
ra. 97 Também a promessa de enviar um con-
ninguém dirá: está aqui, ou: está ali. solador, um parácletos 98, foi tomado por mui-
Pois o Reino do Pai está espalhado sobre a terra. tos em sentido literal. 99
E os homens não o vêem. 92 O facto de isto não ter acontecido (pelo me-
nos em forma material) foi para eles uma de-
Marcos e João vêem o Reino como um lugar cepção. Nem todos compreenderam as conso-
atingível por todos os homens de boa vontade ladoras palavras de Jesus no fim do Evange-
e que tenham a coragem de renascer. E so- lho de Mateus:
bretudo o Evangelho de Tomé, que abriga
uma tradição de palavras de Jesus que remon- Vede, eu estou convosco todos os dias até à
ta a uma época anterior à dos evangelhos bí- consumação do mundo. 100
blicos 93, encontra-se fortemente sob o signo

91
EvFlp. 19. sited’ em B. Barc (coord), Colloque international sur
92
EvT. 113. les textes de Nag Hammadi, 218-266. Ver também J.
93
Sobre isto, ver sobretudo A. Guillaumont em ‘Les van Amersfoort, ‘Hermes, het Evangelie van Thomas
sémitismes dans l’Evangile selon Thomas. Essai de en het joodse christendom’, em G. Quispel (coord.), De
classement’ em R. van den Broek e M. J, Vermaseren Hermetische Gnosis in de loop der eeuwen, 186-226.
94
(coord.), Studies in Gnosticism and Hellenistic Reli- EvT. 22.
95
gions, 190-204 e também H. Köster, ancient Christian Mt. 13:36-43.
96
Gospels, their History and Development; ver igualmen- EvT. 77.
97
te H. Köster e E. H. Pagels na sua introdução à tradu- Ac 1:7-11.
98
ção inglesa do ‘The Dialoque and the Saviour’ em The Jo. 14:25-26.
99
Nag Hammadi Library in English, 229; C. Tuckett, Sobretudo na nossa época, voltou a existir por parte
Nag Hammadi and the Gospel Tradition, 128 e seg. e do lado teológico muito interesse pelos efeitos do espí-
C. W. Hedrick na introdução a C. W. Hedrick (coord.) rito, a chamada pneumatologia. Ver, entre outros, Jan
The Historical Jesus and the Rejected Gospels, sobre- Veenhof, De Parakleet e A. van de Beek, De adem van
tudo 5. Pode ver-se uma discussão sobre as ‘origens’ God.
100
de Tomé em G. Quispel, ‘The Gospel of Thomas revi- Mt. 28:20.
Muitos continuaram a procurar o Cristo Jesus tal, perseguidor entusiasta dos primeiros cris-
fora de si mesmos em vez de no seu próprio tãos. É praticamente certo que esteve presente
coração. Isso nota-se até bem demais na histó- no apedrejamento de Estêvão.
ria posterior. Numa viagem para Damasco, ele teve uma
perturbadora visão em que encontra Jesus. É
um ponto de viragem na sua vida. Em vez de
2. A palavra escrita perseguidor de cristãos, ele torna-se um im-
portante impulsionador da fé cristã. Antes de
Paulo ser preso, fez diversas viagens de evangeliza-
ção.
É provável que tenha sido executado em Ro-
Entre a morte de Jesus e o aparecimento de
ma pela espada. Segundo outra tradição, po-
Paulo vão, pelo menos, alguns decénios. Pau-
rém, teria escapado à sua prisão e partido para
lo nunca se encontrou pessoalmente com Je-
Espanha onde teria morrido. No fundo, faltam
sus. Paulo não foi discípulo de Jesus nem dis-
dados concretos sobre o fim da sua vida.
cípulo de discípulo. Aliás, Paulo dá-nos sur-
A autoridade de Paulo foi muito grande já nos
preendentemente poucas informações sobre
primeiros tempos do cristianismo. Tão grande
factos da vida de Jesus. Os únicos dados bio-
que algumas cartas do Novo Testamento que
gráficos que ele nos fornece é que Jesus era
desde sempre lhe são atribuídas, parecem não
da tribo de David e era judeu, que tinha nasci-
ser de sua autoria. Com base em crítica formal
do de uma mulher e sob a lei, que tinha morri-
e textual, os investigadores modernos chegam
do, que tinha ressuscitado e que tinha apareci-
a um máximo de sete cartas que podem ser
do aos apóstolos e também ao próprio Paulo.
atribuídas com alguma certeza ao próprio
No entanto, Paulo obteve uma autoridade
Paulo; são as cartas aos Romanos, aos Corín-
muito grande sobre o cristianismo. As suas
tios (duas), aos Gálatas, aos Filipenses, aos
cartas formam uma parte essencial do Novo
Tessalonicenses (a primeira) e a Filemon. 104 É
Testamento.
praticamente certo que as chamadas cartas
Para responder à pergunta de quem era Paulo,
pastorais (1 e 2 Tim. e Tit.) não são da autoria
temos de recorrer principalmente aos dados
de Paulo e são claramente mais tardias. 105
desse Novo Testamento. Ele não aparece nas
Quanto às restantes, não se pode excluir de
antigas escrituras e escritos premonitórios do
modo algum , é até mesmo muito provável,
Talmude 101, que se refeririam a ele, são muito
que os desvios na forma e no texto tenham a
incertas.
ver com interpolações e cortes posteriores, à
Saulo nasceu cerca do ano 10 depois de Cristo
maneira do que aconteceu com o texto dos
em Tarso, na Cilícia. Tarso está situada na ac-
evangelhos onde foram feitas as necessárias
tual Turquia, mas na época do nascimento de
‘adaptações’ (voltaremos a isto). Não se pode
Paulo fazia parte do Império Romano; a isso
assim, infelizmente, fazer um apelo cego a
devia ele a sua cidadania romana que invocou
‘Paulo’, porque foram postas na boca de Pau-
aquando da sua prisão. 102 Muito provavel-
lo coisas que com toda a probabilidade nunca
mente, ele foi ainda muito jovem para Jerusa-
saíram da sua pena. E que foram incorporadas
lém, onde se tornou discípulo do fariseu es-
como doutrina pela igreja. Mais adinate neste
clarecido Gamaliel. 103 Paulo desenvolveu-se,
livro, veremos exemplos salientes deste fenó-
aos seus olhos, como um judeu justo e, como
meno.
O que é que explica a grande autoridade de
101
O Talmude (em hebraico: ‫תַּ לְמוּד‬, transl. Talmud) é
um resumo escrito das discussões longas de séculos Paulo? Ele chamava-se a si mesmo apóstolo
entre diversos rabinos sobre a aplicação prática das leis de Cristo Jesus chamado pela vontade de
dadas pela Tora (os cinco primeiros livros da Bíblia). Deus. A sua irradiação e a força das suas pa-
Ver também Roland Gradwohl, Wat is de Talmoed? e
Woordenlijst van het Jodendom.
102 104
Devido a desordens em Jerusalém. Ver Act. 21:27. Ver, entre outros, L. A. Snijders, Bijbels Woorden-
103
Que por sua vez foi discípulo do já referido Hillel. boek, 122.
105
Ver W. C. van Unnik, ‘De historische Paulus’ em G. Christoph Burchard fala em ‘Jesus von Nazareth’
G. Berkhouwer e H. Oberman (coord.), De dertiende em Jürgen Becker e outros, Die Anfänge des Christen-
apostel en het elfde gebod. tums (12) de ‘discípulos de discípulos de Paulo’.
lavras devem ter sido de tal natureza que ele, ferenças de interpretação; por exemplo, ao fa-
que não era um discípulo directo de Jesus – lar de corpo da ressurreição, Paulo referia-se
pior, que tinha inicialmente odiado os cristãos ao corpo material ou ao corpo espiritual?
– foi mesmo assim aceite. Neste capítulo, quero deter-me principalmente
A sua visão de Cristo às portas de Damasco nas concepções de Paulo sobre o amor e sobre
foi, portanto, convincente para outros. Natu- a lei.
ralmente que, em si, nada há contra isso. Sa-
bemos por um grande número de escritos que Jesus punha o amor no centro de tudo. Jesus
Jesus apareceu a muitas pessoas ‘em espírito’. era amor. Algo do amor universal omni-abar-
O que é estranho é que, depois da época de cante ressoa com certeza no esplêndido hino
Paulo, as manifestações espirituais deixaram de Paulo contido na sua primeira carta aos
de ser aceites pela igreja. É como se se tivesse Coríntios:
fechado uma porta à chave. 106 Contudo, tive-
ram lugar visões em todas as épocas e como Mesmo que falasse com as línguas dos anjos e dos ho-
elas têm claramente a ver com a história cul- mens:
se não tivesse o amor,
tural do cristianismo, ocupar-nos-emos de seria como pratos que ressoam ou címbalos que reti-
grande parte delas neste livro. nem.
Mesmo que tivesse o dom da profecia,
mesmo que conhecesse todos os segredos e toda a ciên-
Dogma ou intuição? cia,
mesmo que tivesse a fé perfeita que desloca monta-
nhas,
No decorrer dos séculos, olhou-se de manei- se não tivesse o amor,
ras bastante diferentes para o ‘apóstolo’ Pau- nada seria.
Mesmo que desse todas as minhas posses,
lo. Para muitos (por exemplo, na reforma), ele
mesmo que abandonasse o meu corpo à morte pelo fo-
foi, e é, um ‘modelo’ do cristianismo. Outros go,
viram-no, e vêem-no, mais como um falsifica- se não tivesse o amor
dor do puro ensinamento original de Jesus. de nada me serviria.
Ao tentar julgar se este homem iluminado O amor é magnânimo e clemente,
o amor não é invejoso,
transmitiu de maneira inspirada os ensina-
não se envaidece,
mentos de Jesus ou é apenas o fundador de não se ensoberbece.
uma série de dogmas, tropeçamos na dificul- Não dá por ser belo,
dade de que as fontes a que vamos beber são não se procura a si mesmo,
contestáveis. Como se disse acima, é pratica- não se permite fazer mal
e não leva em conta o mal.
mente certo que uma série de cartas de Paulo
Não se alegra com a injustiça,
não provêm dele e que outras cartas, que se e encontra alegria na verdade.
aceita que tenham sido escritas ou ditadas por Ele tudo suporta,
ele, sofreram interpolações no texto; uma difi- tudo crê,
culdade que encontramos em praticamente to- tudo espera,
tudo tolera.
dos os escritos paleo-cristãos. E depois, há di-
O amor nunca perece. 107
106
A igreja posterior fez coincidir o encerramento da
época das ‘manifestações’ com o fim da época apostó- Jesus via a lei (terrestre) de Moisés como um
lica. A igreja (institucional) apoderou-se cada vez mais meio temporário para dar um certo apoio ao
da função de ‘manifestadora’. Isso não significa que to- homem que ainda não chegara à plena cons-
das as manifestações posteriores aos tempos apostóli- ciência. Ele não veio abolir a lei 108, pois é o
cos foram rejeitadas. Partes do Pastor de Hermas (séc. próprio homem que tem de chegar à abolição,
II) encontram-se em diferentes manuscritos bíblicos
(no Codex Sinaiticus, entre outros). Na fixação do câ- à elevação, das leis. Não é a lei que é impor-
non, a autoridade da ‘tradição apostólica’ foi cada vez tante, é a atitude do homem perante o que está
mais determinante. Estamos já numa época em que os contido nas leis. Isto é válido tanto para as
escritos são julgados não só pela sua historicidade, mas leis terrestres (temporárias) como para as leis
também pelo seu conteúdo. O padrão de comparação
era a ‘teologia’ que entretanto se tinha formado (ver,
107
entre outros) P. A. Roosen, De Bijbel over Openba- 1 Cor. 13:1-8.
108
ring). Ver Mt. 5:17.
cósmicas (eternas). As leis cósmicas não são ‘Se jejuais (apenas porque está na lei) produzireis peca-
abolíveis. São as leis vitais universais e po- dos para vós mesmos;
e se orardes (apenas porque assim é que está bem), as
dem ser consideradas divinas. Todas as outras vossas palavras serão condenadas;
leis são produtos do homem ainda não adulto. e se derdes esmolas (porque é uma obrigação), causa-
Num antigo manuscrito do Evangelho de Lu- reis danos ao vosso espírito.
cas, que não é incluído na maior parte das tra- E se fordes para um país
duções bíblicas, lemos de Jesus: e viajardes pelas terras
e vos receberem:
comei o que vos servirem
E nesse mesmo dia, viu um homem que trabalhava ao e curai os seus doentes.
sábado. E disse-lhe: ‘Homem, se sabes o que fazes, és Pois o que entrar pela vossa boca não vos tornará im-
abençoado. Mas se não sabes, és... um infractor da puros,
lei.’ 109 mas o que sair da vossa boca – tornar-vos-á impu-
ros.’ 112
Os seus discípulos, que ainda estavam enlea-
dos no pensamento legalista (material), ti- Jesus veio cumprir a lei. 113 Cumprir, tornar
nham dificuldade em distinguir o saber inte- plena, a lei quer dizer algo como entrar num
rior das leis exteriores. novo tempo. Nesse novo tempo, o homem
tem uma consciência de tal modo desenvolvi-
Os seus discípulos perguntaram-lhe...: da que o saber interior pode tomar o lugar das
‘Queres que jejuemos e como é que oraremos
(e) daremos esmolas?
leis exteriores, com o que ele se harmoniza
E que prescrições sobre a comida cada vez mais com as leis cósmicas eternas.
devemos ter em conta?
Jesus disse: Ensinava Paulo estas coisas? Ou punha em ci-
‘Não mintais e não façais o que execrais, ma do cristianismo novas leis exteriores?
pois para o céu todas as coisas são manifestas.
Pois nada há oculto que não seja revelado
Temos a sorte de possuir duas cartas de Paulo
e nada há coberto que não seja descoberto.’ 110 que é praticamente certo que são
autênticas 114, onde ele aborda profundamente
Também no contestado Evangelho Essénio da a problemática da lei: uma carta aos cristãos
Paz encontramos um ensinamento semelhante de Roma e uma aos Gálatas. 115
de Jesus aos seus discípulos: Ora nem sempre é fácil perceber quando é
que Paulo fala das leis cósmicas ou da lei ju-
Não procureis a lei nas escrituras, pois a lei é viva, daica; sobretudo esta última era um enorme
enquanto que a escritura é morta. Em verdade vos digo, espinho atravessado na conversão de não ju-
Moisés não recebeu as leis de Deus por escrito mas deus ao cristianismo. Estalou uma disputa so-
pela palavra viva. A lei é a palavra viva do deus vivo
dirigida aos profetas vivos para os homens vivos. A lei
bre a questão de saber se os pagãos que eram
está gravada em tudo o que vive. Encontrai-la na erva e baptizados como cristãos ficariam ou não sob
na árvore, no rio e na montanha, nas aves do céu e nos a alçada da lei judaica. É claro que Paulo, en-
peixes do mar; mas procurai-a sobretudo em vós quanto ‘apóstolo dos pagãos’, tal como se de-
mesmos! 111 signa a si mesmo 116, acha que não:
Quando encontrardes a ligação com o saber Afirmo, precisamente, que o homem é justificado pela
interior, ensinava Jesus, elevar-vos-eis acima fé, não por se conformar à lei. É Deus acaso Deus ape-
das leis materiais feitas pelos homens. nas dos judeus e não dos pagãos? Não, é também dos
pagãos, pois só há um Deus, que justificará pela fé tan-
Jesus disse-lhes:
112
EvT. 14.
113
Ver Mt. 5:17.
109 114
O manuscrito D dos evangelhos acrescenta isto ao Embora nunca se possam excluir interpolações pos-
início de Lc. 6:5. Ver Klijn, Apokriefen I, 17 e J. Jere- teriores.
115
mias, Unbekannte Jesusworte, 61-64. Sobre os campos de tensão nestas cartas, ver entre
110
EvT. 6. outros, Hans Hansen, ‘Allegorie van slavernij en vrij-
111
E. B. Szekely, The Essene Gospel of Peace, 13. Sze- heid’, e J. S. Vos, ‘Israël en de goddelijke wijsheid vol-
kely reclama ter traduzido do aramaico esta escritura gens Rm. 9-11’, ambos em T. Baarda e outros, Paulus
que afirma ser do séc. III. Mas até agora não foi possí- en de andere joden, resp. 75-114 e 114-146.
116
vel verificar a verdade da asserção. Rm. 11:13.
to circuncisos como incircuncisos. Significa isto que visão. 127 Para os judeus que se convertiam ao
me sirvo da fé para pôr a lei fora de acção? Pelo con- cristianismo, a questão não se punha: já esta-
trário, faço precisamente valer os direitos da lei. 117
vam circuncidados. Para os pagãos, a questão
era frequentemente um obstáculo.
Paulo fala aqui da ‘lei da fé’. 118 Também ele
Uma disputa sobre este assunto entre Paulo e
põe o saber interior acima da lei exterior.
Barnabé atingiu tais níveis que eles foram en-
Quando os pagãos, que não têm a lei, fazem por si
viados a Jerusalém para obter conselho junto
mesmos o que a lei exige, eles tornam-se eles mesmos dos ‘apóstolos e dos anciãos’. 128 Aí foram re-
a lei, embora não possuam a lei. cebidos pelo já velho e respeitável irmão de
Pelos seus actos, mostram que a lei está escrita nos Jesus, Tiago, que proclamou com toda a cal-
seus corações, ao que se junta o testemunho da sua ma que
consciência, enquanto os seus pensamentos os culpam
ou absolvem... 119
...não se deviam carregar de fardos inúteis aqueles que
se convertiam do paganismo a Deus... 129
Quando fala da lei que só veio depois do pe-
cado 120, Paulo refere-se às leis humanas. Mas, Não é certo se ele se estava a referir a uma
anuncia, enquanto homens novos conversa que o seu irmãos Jesus tinha tido
com alguns seguidores sobre a circuncisão,
...estamos mortos para a lei e libertos das suas algemas,
de modo que já não estamos sujeitos a um código enve-
muito antes da época em que esta questão se
lhecido e servimos Deus na nova vida do Espírito. 121 levantaria a propósito do baptismo de pagãos:
A ‘lei’ do Espírito que vos ofereceu a vida em Cristo
Jesus libertou-vos da lei do pecado e da morte. 122 Os seus discípulos disseram-lhe:
Pois Cristo significa o fim da lei e justiça para todos os ‘A circuncisão tem utilidade ou não?’
que crêem. 123 Ele disse-lhes:
‘Se tivesse utilidade
Na sua carta aos Gálatas, ele afirma: o vosso Pai fá-los-ia circuncidados no seio materno.
Mas a verdadeira circuncisão no Espírito,
tem utilidade em todos os aspectos.’ 130
Antes de a fé vir, estávamos sob a guarda da lei, encer-
rados até que a fé se tornasse manifesta. A lei foi, por-
tanto, um guardião para nós até à vinda de Cristo, para Paulo compreendeu bem. Na sua carta aos
que fôssemos justificados pela fé. 124 Gálatas, escrita alguns anos depois do seu en-
contro com o respeitável Tiago, ele diz:
A lei que devemos cumprir é a ‘lei de Cris-
to’ 125, e essa lei é, na realidade, resumível nu- ...Em Cristo Jesus a circuncisão e a não circuncisão não
ma frase: têm importância, apenas a têm a fé que se expressa em
amor... 131
Amareis o vosso próximo como a vós mesmos. 126
Pois

do que se trata não é de circuncisão ou não circuncisão,


Circuncisão e pecado é de nova criação. 132

As concepções de Paulo sobre a lei não foram Uma nova criação onde, diz Paulo,
aceites sem crítica. Sobretudo o ponto delica-
do da circuncisão trouxe consigo disputa e di- já não se é judeu ou grego, escravo ou homem livre,
masculino ou feminino; sois, com efeito, todos um em
117
Rm. 3:28-31. Cristo Jesus. 133
118
Rm. 3:27.
119 127
Rm. 2:14-15. Ver, por exemplo, At. 15:2.
120 128
Rm. 5:13. At 15:2.
121 129
Rm. 7:6 At 15:19.
122 130
Rm. 8:2. EvT. 53
123 131
Rm. 10:4. Ga. 5:6
124 132
Ga. 3:23-24. Ga. 6:15.
125 133
Ga. 6:2. Ga. 3:28. Tradução de G. P. Luttikhuizen na sua
126
Ga. 5:14. Também Mt. 19:19 e 22:39; Mc. 12:31 e lição inaugural Op zoek naar de samenhang van
12:33; Lc. 10:27; Rm. 13:9; T. 2:8. Paulus gedachten, 24.
Quando a carne ainda determinava a nossa existência,
Também noutras cartas, Paulo não deixa qual- os nossos actos eram dominados por desejos pecadores
que a lei despertava em nós e que só davam ganhos à
quer dúvida sobre este ponto. Ele escreve aos morte. Agora, porém, estamos mortos para a lei e
cristãos de Filipos: libertos das suas algemas, de modo que já não estamos
sujeitos a um código envelhecido e servimos Deus na
Pois nós, que adoramos Deus no Espírito, somos os nova vida do Espírito... 139
verdadeiros circuncidados. Procuramos a nossa glória Devemos mesmo dizer que a lei é espiritual. Mas eu,
em Cristo Jesus, não em nós mesmos. 134 eu sou carnal, um escravo vendido ao pecado. Não
compreendo os meus próprios actos. Com efeito, não
E aos de Colossos: faço o que quero, faço o que abomino. Mas se faço o
que na realidade não quero, isso significa que concordo
com a lei e a acho boa. Na realidade, porém, já não sou
Nele, também vós sois circuncidados, não em sentido eu que ajo, é o pecado que habita em mim. Estou cons-
físico, por uma intervenção corporal, mas pela circun- ciente de que em mim, isto é, na minha carne, não ha-
cisão de Cristo... 135 bita nada de bom. A boa vontade está fora do meu al-
cance, mas o bom acto não. Não faço o bem que quero,
E essa circuncisão de Cristo, ou ‘circuncisão faço o mal que não quero. Se faço o que na realidade
no Espírito’, ensinava Jesus, é a verdadeira não quero, já não sou eu a pessoa actuante, é o pecado
circuncisão. que mora em mim. Descubro, portanto, em mim esta
‘lei’: quando quero fazer o bem, o mal assedia-me. O
meu interior compraz-se na lei de Deus, mas nos meus
Paulo não promulgava leis novas, mas referia- actos descubro uma lei diferente, que luta contra a lei
se a regras de vida moral. Regra que na sua da minha razão e me entrega cativo ao domínio do pe-
opinião tinham por objectivo libertar o ho- cado sobre os meus actos. Desgraçado que sou! Quem
mem. Ele testemunha: me salvará desta existência de morte? Deus seja louva-
do, Jesus Cristo, nosso Senhor! Abandonado a mim
próprio, sirvo, pois, a lei de Deus com a razão e a lei do
Os que se envolvem com o terrestre, não devem con- pecado com os meus actos. 140
fundir-se com ele, pois o mundo que vemos passa. 136

O homem inconsciente, voltado para a maté-


Quão antigo-testamentárias soam as suas afir-
ria, que ainda é ignorante das suas possibili-
mações sobre recompensa e castigo de Deus.
dades espirituais – possibilidades espirituais
Também a noção de ‘pecado’, que em Jesus
que ficaram mais ao seu alcance pela manifes-
era idêntico a ‘ignorância’ 137, é usada por
tação de Cristo – (ainda) está sempre ocupado
Paulo de maneira múltipla. É interessante in-
apenas com coisas materiais; nisso, ele deixa-
vestigar o que é que este conceito significava
se guiar exclusivamente pelos seus desejos. É
para ele e o que ele queria dizer com a frase,
a isso que Paulo chama carne; a carne que faz
por ele recebida e depois repetida, de que
manifesta-se o pecado, a ignorância patente.
‘Cristo morreu pelos nossos pecados’. 138 Pois
Para dar ao homem a possibilidade de acabar
esta frase tornou-se um dos pilares do cristia-
com essa ignorância e abrir o caminho para a
nismo clerical.
consciência espiritual, Jesus morreu na cruz.
Se lermos bem as cartas de Paulo, sobretudo a
É isto o que Paulo quis transmitir.
dos romanos, vemos que este homem avança-
do se referia com pecado, tal como Jesus, à
Paulo era um homem ardente, que no seu en-
ignorância. Paulo via o homem como um ser
tusiasmo de fé, anunciou por vezes coisas que
que era tanto corporal como espiritual. Uma
não concordavam totalmente com os ensina-
concepção que repousava numa tradição de
mentos de Jesus. Neste sentido, Paulo tinha as
sabedoria velha de séculos, que se manifesta-
suas limitações – quem não as tem? Na minha
va também na chamada ‘gnose’ nos primeiros
opinião, porém, é ir longe demais fazê-lo res-
séculos da nossa era. Ele escreve:
ponsável pelos muitos dogmas que a igreja
posterior chamou à vida. Paulo estava impre-
gnado da essência de Cristo – ‘já não sou eu
134
Flp. 3:3. que vivo, é Cristo que vive em mim’ 141 – e
135
Col. 2:11.
136 139
1 Co. 7:31. Rm. 7:5-6.
137 140
Ver J. Slavenburg, Een ander testament, 86. Rm. 7: 14-25.
138 141
1 Co. 15:3. Ga. 2:20.
juntou-lhe a sua própria coloração. Uma colo- anos entretanto decorridos e como é que foi
ração que, como poderia ser de outro modo, conservada a recordação de Jesus?
ainda mostrava tons da sua intensa educação Os investigadores bíblicos dos séculos prece-
judaica. Paulo, porém, punha a fé acima da dentes já tinham notado que os evangelhos de
lei 142, e o amor acima da fé 143, sim, mesmo Mateus, Marcos e Lucas têm muitas seme-
acima da gnose. Pois mesmo lhanças. Chama-se-lhes, por isso, evangelhos
sinópticos. Quer quanto ao estilo, quer quanto
o conhecimento é nada sem o amor. 144 ao conteúdo, o evangelho de João pouco tem
a ver com eles. Uma vez que os três evange-
lhos se pareciam tanto uns com os outros, sur-
A boa nova giu a ideia de que talvez proviessem de uma
única fonte. Teria existido uma espécie de
É geralmente aceite que as cartas de Paulo, na evangelho primordial, um proto-evangelho,
medida em que forem realmente da sua mão e de onde os três evangelistas teriam retirado o
libertas de interpolações e adições posteriores, seu conhecimento. Chama-se a essa fonte Q,
são as escrituras mais antigas do Novo Testa- da palavra alemã Quelle (=fonte). Nas reali-
mento. Os evangelhos são de uma data mais dade, as coisas são ainda mais complicadas,
tardia, pois surgiram como escrituras anóni- pois Mateus e Lucas retiraram dados de
mas várias décadas depois da morte de Jesus e Marcos, que para alguns estudiosos do Novo
foram adornados, num estádio posterior, com Testamento seria independente de Q. Este
o nome de um apóstolo ou de um seguidor de problema é solucionado por outros colocando
Jesus respeitado. 145 Não é possível datá-los ao lado de Q um proto-Marcos, precursor de
exactamente, mas os estudiosos defendem que Marcos e simultaneamente, conjuntamente
o Evangelho de Marcos apareceu por volta de com Q, fonte de Mateus e Lucas. 148 É com-
65 depois de Cristo, os de Mateus e Lucas en- preensível que o leitor comece a sentir-se
tre 80 e 90 depois de Cristo e o de João uma tonto.
década depois. 146 Se retivermos a data geral- Podemos com toda a segurança partir do prin-
mente mencionada para a morte de Jesus, cer- cípio de que existiram duas tradições impor-
ca de 30 depois de Cristo – o que na minha tantes relativas à vida e aos ensinamentos de
opinião é colocá-la demasiado tarde 147 –, há Jesus. A mais importante eram transmissões
pelo menos uma geração inteira entre o evan- orais das suas palavras, das suas expressões
gelho bíblico mais antigo e o momento da (logía). É a fonte mais directa. Discípulos
morte de Jesus. O que é que aconteceu nos contavam a outros discípulos o que Jesus ti-
nha dito e ensinado. Para eles, isto era o mais
essencial. Com o tempo, apareceram também
142
histórias sobre a sua vida e sobre os milagres
Rm. 3:28; Ga. 2:16 e 3:23. que teria feito.
143
1 Co. 13:13.
144
1 Co. 8:3.
Nos evangelhos escritos vemos factos supos-
145
Ver, por exemplo, A. F. J. Klijn, Na het Nieuwe tos da vida de Jesus combinados com as suas
Testament, 14. expressões e ensinamentos. Sem nunca esque-
cer – já o fiz notar antes – que os evangelhos
146
Para a história da formação do Novo Testamento, bíblicos nunca foram escritos do ponto de vis-
ver, entre outros, Köster, Helmut, Introdução ao Novo
ta histórico – neste aspecto são pouco fiáveis
Testamento, Vol. 1 - história, cultura e religião do
período helenístico, Paulus, São Paulo, 2005; H. – e são escrituras para convencer. 149 Os evan-
Baarlink (coord.), Inleiding tot het Nieuwe Testament;
M. Baxter, The Formation of the Christian Scriptures; 147
Ver J. Slavenburg, Een ander testament, 122.
A. F. J. Klijn, The Value of the Versions for the 148
Ver, entre outros, J. S. Kloppenborg, The formation
Textual Criticism of the New Testament"; E. of Q; B. M. Metzer, The early versions of the New Tes-
Charpentier, Para ler o Novo Testamento (ed. Loyola); tament; e para uma explicação curta e clara M. de Jon-
M. Barthel, What the Bible Really Says; J. L. Koole, ge, Jesus als Messias, capítulo I,2 ‘De aard van onze
Het beslissende woord. Een canonhistorisch onderzoek bronnen’.
(trata sobretudo do A. T., mas com fecundos paralelos 149
B. Walker nota com razão em Gnosticism: its Histo-
com o N. T.); e o claríssimo artigo de Rosemary ry and Influence: ‘It has been pointed out that the gos-
Radford Ruether, ‘The feminisme in the canon. pels do not present a biography, nor do they represent a
gelistas põem, pois, os ensinamentos originais Muitos tentaram já contar os acontecimentos que tive-
de Jesus ao serviço da mensagem que ele teria ram lugar entre nós à luz dos dados que nos foram
transmitidos por homens que foram testemunhas ocula-
trazido ao mundo. É particularmente notável res desde o princípio e se puseram ao serviço da pala-
que o Evangelho de Tomé 150, uma colecção vra. Por isso, nobre Teófilo, decidi – depois de ter exa-
de ditos de Jesus, é muito mais essencial e to minado tudo detalhadamente – escrever-te um relato
the point do que as passagens comparáveis ordenado com a intenção de te fazer ver quão fiel é o
dos evangelhos sinópticos 151. Poder-se-ia ensinamento em que foste instruído. 154
dizer que ‘Tomé’ apresenta um certo número
de pedras de construção sem o cimento da Lucas faz-se, pois, passar por um investigador
história da vida de Jesus. Não espanta, pois, histórico. Ele, que nunca conheceu pessoal-
que os investigadores modernos considerem mente Jesus, interroga pessoas que receberam
cada vez mais que a fonte de que Tomé se o seu conhecimento de testemunhas oculares
socorreu é Q, ou mesmo uma percursora de (não das próprias testemunhas oculares) e ten-
Q 152. Isso apesar do facto de que a forma ta pôr tudo por ordem. Ele não escreve: ‘Cris-
escrita com que este evangelho foi to manifestou-se-me e...’
transmitido datar apenas do século II; a sua Mas tal como já dissémos, Lucas não é a fon-
tradição é obviamente mais antiga. te mais directa.
O próprio nome de Evangelho de Tomé diz já
que havia mais evangelhos dos que os que es- Com toda a probabilidade, além de um proto-
tão no Novo Testamento. Muitos mais 153. Po- Marcos, existiu também um proto-Mateus. 155
der-se-ia dizer que Mateus, Marcos, Lucas e Houve evangelistas que juntaram a transmis-
João são apenas indivíduos numa longa série são oral das palavras de Jesus (os logía) às
de autores. Mas eles foram aceites pela igreja imagens que recebiam intuitivamente; uma
e os outros não. Porquê? questão de inspiração, portanto. A igreja tem,
Os Padres da Igreja deram a esta pergunta
uma resposta adequada: teriam sido 154
Lc. 1:1-4.
155
inspirados. Isto significa literalmente: ditados Tanto Epifânio (Panarion) como Jerónimo (In
pelo espírito. Na arte figurativa, o evangelista Esaiam) afirmam que os Nazarenos conheciam uma
Mateus é, por isso, frequentemente versão hebraica (ou aramaica) de Mateus. Também Da-
vid Flusser no seu estudo ‘Het schisma tussen joden-
representado com um anjo curvado atrás dele dom en christendom’ em D. Flusser, Tussen oorsprong
que lhe murmura as palavras ao ouvido. Os en schisma, 307-339, fala de várias redacções de Ma-
quatro evangelistas bíblicos receberam teus. Sobre esta questão ver também A. F. J. Klijn, Na
portanto inspiração ao escreverem a sua het Nieuwe Testament, 18-25. Talvez desnecessaria-
história. mente: Jesus falava a língua do povo do seu tempo,
aramaico, e é quase certo que sabia também grego. O
Não é bem essa a impressão com que se fica grego era a língua com que se podia comunicar com
ao folhear-se Lucas. Lê-se lá literalmente: terceiros (por exemplo com o comandante romano –
Mt. 8:5-13). É aceitável que os evangelhos tenham sido
escritos em aramaico, mas foram rapidamente traduzi-
dos para grego, o que muito provavelmente fez rejeitar
doctrinal teaching (Didaché), but are a proclamation os originais aramaicos por supérfluos. Para as relações
kérigma) of a new dispensation relating to the kingdom entre hebraico, aramaico e grego ver, entre outros, Pie-
of heaven’ (p. 71). Ver também B. v. Ginkel e J. A. ter Willem van der Horst, Het Nieuwe Testament en de
Picard, Het Evangelie van Jesus, 7-11; T. Baarda, De Joodse grafinscripties uit de hellenistisch-romeinse
betrouwbaarheid van de Evangeliën; E. Rivkin, Wat tijd.
kruisigde Jesus?, 98. Quanto a Marcos: o investigador americano Morton
150
O Evangelho de Tomé é uma colecção de ditos de Smith descobriu em 1958 uma carta de Clemente de
Jesus pertencente a uma tradição independente da dos Alexandria em que é citada uma passagem do ‘Evange-
evangelhos bíblicos. A sua forma literária dataria do lho Secreto de Marcos’. Segundo Clemente, havia vá-
princípio do século II, mas a sua tradição oral de onde rias versões de ‘Marcos’. A versão curta, destinada a
provêm esses ditos deverá remontar ao próprio Jesus. catecúmenos, encontra-se no N. T. A versão original
151
Ver, entre outros, C. Tuckett, Nag Hammadi and the (longa) incluía material considerado acessível apenas a
Gospel Tradition. iniciados e foi oferecido à igreja de Alexandria. Ver M.
152
Ver as referências bibliográficas da nota 92. Smith, The Secret Gospel. Ver também P. W. van der
153
Para fontes com especial relevância para as expres- Horst, ‘Het “geheime Marcus evangelie”. Over een
sões de Jesus ver J. Slavenburg, Een ander testament, nieuwe vondst’ em Ned. Theol. Tijdschr. 33 (1979),
secção sobre ‘bronnen en literatuur’, 163-170. 27-51.
portanto, alguma razão quando fala de evan- categorias as fontes que nos dão alguma com-
gelhos escritos por inspiração, o problema é preensão do aparecimento do cristianismo:
que, na sua forma pura, eles já não estão (ain- a. as fontes bíblicas;
da não estão) disponíveis. Eles estiveram na b. a literatura paleocristã;
base dos evangelhos que conhecemos e estes c. os textos recentemente descobertos;
conservam claramente discernível algo da ins- d. os escritos geralmente designados por apó-
piração dos proto-evangelhos, mas acrescen- crifos que não foram considerados na canoni-
tada com histórias que circulavam no seu tem- zação (= integração no cânon 158 do Novo Tes-
po e colorida por concepções pessoais. tamento)
A isto junta-se uma dificuldade adicional: os
mais antigos textos literais em que as nossas Começando pelos últimos: a palavra apócrifo
traduções da Bíblia se baseiam datam do sé- significa, na realidade, ‘oculto’, ‘secreto’,
culo IV. 156 No período intermédio de três sé- obscuro’. Há muitíssimos textos dos primei-
culos, esses escritos foram copiados com fre- ros séculos da nossa era que dão notícias so-
quência, naturalmente, com os erros que o bre Jesus, os seus discípulos e os seguidores
processo necessariamente introduz e também posteriores. Por vezes, esses escritos chega-
com alterações e, frequentemente, com adap- ram-nos apenas de forma fragmentária na lite-
tações em sentido ortodoxo.157 Para não falar ratura dos Padres da Igreja (teólogos paleo-
dos erros de tradução. cristãos). É o caso, por exemplo, do
Tendo tudo isto em conta, é verdadeiramente Evangelho dos Ebionitas, do Evangelho dos
um milagre divino que os evangelhos, tal co- Nazarenos, do Evangelho dos Hebreus e do
mo os conhecemos, ainda emanem tanta força Evangelho dos Egípcios. Não é inteiramente
espiritual. Mas devemos usá-los com a devida claro se estes evangelhos se perderam por
circunspecção. acidente ou se foram destruídos devido ao seu
conteúdo não concordante com o ensinamento
clerical posterior. Alguns apócrifos, tal como
Os escritos secretos o Evangelho de Pedro, de cuja existência
sabíamos pela literatura cristã, como, por
Essa circunspecção é-nos também recordada exemplo, a História da Igreja de Eusébio (c.
por um certo número de descobertas recentes. 260-340), foram (parcialmente) redescobertos
Nas últimas décadas, foram descobertos ou nos últimos séculos. Além deste evangelho
escavados escritos cada vez mais antigos, que muito antigo, existe ainda um Evangelho de
frequentemente se pensavam perdidos. De Nicodemus. 159 E havia ainda em circulação,
modo grosseiro, podemos dividir em quatro como vimos, muitas histórias do nascimento
de Jesus, tais como O nascimento de Maria
ou o Proto-Evangelho de Tiago, o Evangelho
156
Isto não significa que não existam textos mais anti- de Pseudo-Mateus e alguns outros. Neste
gos. Embora os escritos originais se tenham perdido, último caso, essas histórias aparecem quanse
são conhecidos muitos papiros do século III e mesmo sempre como uma espécie de histórias
alguns (fragmentos) do século II, mas devido ao seu
carácter ‘desordenado’ quase não são usados nas tradu- folclóricas maravilhosas sobre os pais e a
ções bíblicas. Algus pergaminhos dos séculos IV e V infância de Jesus, que não são propriamente
oferecem um texto de confiança, sobretudo o Codex Si- edificantes. 160 Como se mostrou
naiticus e o Codex Vaticanus. Sobre questões compli- anteriormente, ao longo do tempo elas
cadas como o estabelecimento de um texto considerado inspiraram os artistas plásticos.
de confiança para servir de base a uma boa tradução bí-
blica, ver sobretudo Kurt Aland e Barbara Aland, O
158
Texto do Novo Testamento. (editora: Fonte Editorial). Literalmente, régua, directriz. Também o Antigo
Ver também J. J. Thierry, Korte geschiedenis van de Testamento tem uma canonização que foi completada
tekst van het Nieuwe Testament e L. B. Schelhaas, ‘De no século I d.C. Ver J. L. Koole, Het beslissende
overlevering van de tekst van het Nieuwe Testament’ woord.
159
em H. Baarlink (coord.), Inleiding tot het Nieuwe Uma grande revisão da literatura apócrifa foi feita
Testament, 56-73. por W. Schneemelcher (e E. Hennecke), Neutestament-
157
No seu Novum Testamentum Graece, o estudioso liche Apokryphen I e II.
160
Eberhard Nestlé dá muitíssimos exemplos de Parte dessas histórias aparecem em J. Slavenburg,
correcções tanto involuntárias como voluntárias. Een ander testament, 15-37.
Uma parte importante dos escritos apócrifos é No meio de alguns achados menores, desta-
constituída por diversos Actos. No Novo Tes- cam-se particularmente: a de Nag Hammadi,
tamento, conhecemos apenas os Actos dos no Egipto, em 1945 163 e a dos arredores de
Apóstolos. Na literatura apócrifa, eles são Qumran em 1947 (e anos seguintes). A pri-
completados por uma descrição dos actos de meira é geralmente descrita como ‘uma bi-
Pedro, Paulo, João, Tomé e André. Esses es- blioteca gnóstica’, a segunda é designada
critos são frequentemente tão folclóricos que, principalmente ‘manuscritos do Mar Mor-
na realidade, nunca foram um perigo real para to’. 164 Quanto a estes últimos, a totalidade dos
a igreja, e provavelmente por isso, conserva- rolos só recentemente foi divulgada; segundo
ram-se, embora por vezes de forma fragmen- alguns investigadores, a igreja teria posto obs-
tária. São histórias de cunho fortemente ascé- táculos, porque os rolos teriam coisas desa-
tico, onde se conta a missionação do apóstolo gradáveis para essa instituição. 165 Pois, àparte
respectivo. Este prega geralmente a abstinên- alguns textos antigo testamentários, encon-
cia como caminho para a salvação e converte tram-se nesse tesouro alguns rolos que tratam
muitas pessoas. Entre esses convertidos, há sobre um grupo religioso que só dificilmente
principalmente muitas mulheres (às vezes são não será o dos Essénios. Já em 1956, John Al-
maioritárias) que depois negam espontanea- legro, que esteve estreitamente implicado na
mente os seus favores aos seus maridos. Pica- investigação dos manuscritos do Mar Morto,
dos por insubordinação, eles resistem o que causou grande perturbação ao afirmar na rá-
frequentemente leva ao martírio do apóstolo dio, à luz dos novos achados, que a origem de
pregador. alguns rituais e concepções cristãos se encon-
Devemos ter em atenção que o estado em que trava cem anos mais cedo entre os Essé-
estes manuscritos se encontram já não é o es- nios. 166
tado original. Neste sentido, não há pratica- Uma afirmação como esta é extremamente
mente nenhum escrito em que não tenham si- chocante para aqueles que acreditam na ex-
do feitas interpolações e cortes posteriores. clusividade do cristianismo. Mas na nossa
Frequentemente, vê-se na construção resultan- época é cada vez maior a noção de que se en-
te que várias lendas foram entretecidas. Os contram no cristianismo muitos elementos
autores de tais escritos não se limitavam a que também aparecem noutras religiões. 167 Se
usar múltiplas fontes, também as redigiam. compararmos cuidadosamente as palavras de
Seria incorrecto considerar tudo isto desprovi- Jesus com as muitas sabedorias que já tinham
do de interesse. É precisamente devido ao seu sido escritas antes da sua época, por exemplo,
carácter frequentemente composto que, por nos escritos indianos antigos, encontramos
trás da história colorida, se conseguem fazer
descobertas notáveis. Estou a pensar, por 163
Um relato detalhado dos escritos achados pode ser
exemplo, numa esplêndida, e aparentemente visto em J. Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca
intercalada, passagem dos Actos de João 161 e de Nag Hammadi I e II. Estas edições contêm também
nos maravilhosamente belos hinos dos Actos uma tradução completa.
164
de Tomé. 162 Quanto mais conhecimento ad- Ver nota 28.
165
Ver M. Baigent e R. Leigh, The Dead Sea Scrolls
quirimos das fontes à nossa disposição, inclu- Deception. Em 1992, a editora Brill, de Leiden, adqui-
sivamente das que foram descobertas recente- riu os direitos para registar em micro-ficha toda a obra.
mente, tanto mais clara se torna a imagem que Ver J. Slavenburg, ‘Het mysterie van de Essenen’, em
temos do cristianismo primitivo. Jonas 17, 17 de Abril de 1992, 6-7.
166
Por causa disso, houve quem chamasse a Allegro
Allegro non moderato (Allegro não moderado).
167
Comparações entre, por exemplo, o budismo e o
cristianismo foram já feitas por Adolf Hilgenfeld em
161
Essa passagem aparece na íntegra em J. Slavenburg, Die Ketzergeschichte des Urchristentums; R. Seydel,
Een ander testament, 123-129. Das Evangelium von Jesu in seinem Verhältnissen zu
162
O texto holandês completo dos Actos de Tomé foi Buddha-sage und Buddha-lehre; G. A. van den Berg
editado por A. F. J. Klijn, Apokriefe II. O hino do ma- van Eysinga, Indische Einflüsse auf evangelischen Er-
trimónio encontra-se também em J. Slavenburg, De ge- zählungen; e Christian Baur em Die christliche Gnosis
heime woorden, 65-66; e a tradução comentada do oder die christliche Religions-Philosophie in ihrer ges-
‘Cântico da Pérola’, está em J. Slavenburg, Gnosis, 72- chichtliche Entwicklung. Ver também M. Messing, Met
84. Boeddha onder de vijgeboom.
muitas concordâncias notáveis. O mesmo po- que dava às suas palavras um conteúdo e uma
de ser dito de uma comparação com os ensi- profunda força tão incríveis.
namentos de Buda, e com os de um Heráclito,
de um Platão ou dos estóicos. Os usos, rituais
e símbolos cristãos mostram semelhanças si- Os evangelhos gnósticos
gnificativas com elementos das religiões dos
mistérios, por exemplo, e também de outras A descoberta (em 1945) em Nag Hammadi no
religiões. A estrutura da igreja cristã é, por Egipto de uma jarra com 52 manuscritos mui-
seu lado, uma cópia da estrutura romana de to antigos nunca teve a atenção mundial dada
poder; poderíamos continuar com isto durante ao achado das margens do Mar Morto. E no
mais algumas páginas. 168 entanto, esta descoberta é infinitamente mais
No que diz respeito ao conteúdo dos ensina- importante do que o achado de Qumran para
mentos de Jesus, seria muito espantoso se eles uma melhor compreensão das palavras e dos
se afastassem fortemente das antiquíssimas actos de Jesus e para um melhor conhecimen-
sabedorias que já estavam presentes no mun- to do cristianismo primitivo. Todos os textos
do. Já no século passado, Blavatsky notara encontrados estão escritos em língua copta,
que tudo remonta a uma e a mesma fonte e mas rapidamente tornou-se claro que se ba-
portanto, que nada pode diferir em essên- seavam em originais gregos. Descobriu-se
cia. 169 O cristianismo não é, portanto, assim com rapidez semelhante que um grande nú-
tão único. Muitos cristãos não compreende- mero desses escritos era gnóstico. Só por cau-
ram isto; o seu falso sentimento de superiori- sa disso, o achado já seria suficientemente im-
dade trouxe à história mundial um sofrimento portante, porque anteriormente, salvo alguns
inominável. textos achados nos últimos séculos, se tinha
A maior parte do que Jesus disse não era ver- de recorrer exclusivamente às indicações dos
dadeiramente novo; a sua intenção era, po- Padres da Igreja. E esses Padres da Igreja
rém, tão penetrante que teve de abrir o seu ca- eram oponentes da gnose, portanto, os seus
minho. Não foi apenas a força das suas pala- testemunhos não são, com certeza, a fonte
vras, foi uma manifestação imensamente dife- mais objectiva.
rente de forças que teve uma grande influên- Ora pode-se cair na tentação – e isso acontece
cia nesta parte do mundo. Para além da sabe- com muita regularidade – de considerar a
doria, que já estava presente em profusão no gnose, o gnosticismo e os gnósticos como um
mundo antigo, Jesus trouxe para perto o fenómeno àparte. Se se investigar dentro des-
Amor, como que o tornou visível. Era isso se quadro referencial as fontes recentemente
adquiridas, está-se a trabalhar à meneira de
um biólogo que pescasse com uma pinça um
168
Foram já feitas muitas comparações de conteúdo, insecto de um herbário e o investigasse e de-
usos e símbolos entre o cristianismo e outras culturas. terminasse por todos os lados. Dessa maneira,
Em primeiro lugar, estou a pensar nos escritos de H. P.
Blavatsky, sobretudo na Isis Unveiled (Ísis sem Véu na
descobre-se pouco sobre o ambiente de vida
edição em português), New York, 1877, e em Levi H. do insecto e sobre as suas interacções com es-
Dowling, Het Aquarius Evangelie van Jesus de se ambiente.
Christus. Mais dentro dos limites da ciência empírica, A Gnose não é cristã, nem antiga, grega, ro-
encontram-se H. Bakels, Het instinct der ons- mana, judaica ou seja o que for. A Gnose é
terfelijkheid; Th. P. Van Baaren, Doolhof der Goden
(pág. 200: ‘também o cristianismo é em certa medida
universal. A palavra Gnose significa: conheci-
uma religião sincrética...’); G. Specher, Maar doden mento do Todo. Entendendo por Todo, quer
kunnen zij hem niet; op zoek naar de historische Jezus, as coisas visíveis quer as coisas invisíveis, os
(aqui encontra-se, entre outras, uma comparação entre campos de força, as influências, que, embora
a epopeia de Gilgamesh e os evangelhos); J. M. Al- invisíveis, fazem valer a sua influência de
legro, The sacred mushroom and the cross, (o cristia-
nismo teria a sua origem num culto do cogumelo muito
longo alcance em tudo o que vive, e isso é, na
espalhado no oriente, cuja ‘droga’ teria efeitos alu- realidade, tudo, pois não existe matéria morte.
cinantes...); M. Freedom Long, What Jesus Tought in Esse conhecimento, essa gnose, e, portanto,
Secret, (entre outras coisas, com paralelismos entre os de todas as épocas e de todas as culturas. Que
hieróglifos egípcios e as parábolas de Jesus). se coloque com frequência essa gnose no ho-
169
Ver J. Slavenburg, H. P. Blavatsky.
rizonte temporal dos primeiros séculos da são mais esotéricos do que os que se encon-
nossa era – e por isso se chame malignamente tram na Bíblia. Rapidamente, começou-se a
‘neo-gnósticos’ a correntes modernas vaga- considerar isto perigoso, e estes escritos fo-
mente semelhantes – vem do facto de o nosso ram rejeitados e declarados heréticos pelos
conhecimento desta forma de gnose ter sido poderosos em ascensão na jovem igreja. E
moldado durante séculos pelos escritos dos quando o cristianismo teve a infelicidade de
Padres da Igreja. Na realidade, o gnosticismo se tornar religião oficial, os dirigentes da igre-
é uma ampla corrente de compreensão que ja passaram a dispôr também de poderes polí-
atravessa toda a história da humanidade. Ela é ticos e militares para lidar radicalmente com
a mesma coisa que saber interior. Isto era uma quem pensasse de maneira diferente e com as
das coisas por que os Padres da Igreja se pu- suas exteriorozações espirituais. Mas isso só
seram tão contra ela: autoridade de ensina- aconteceu vários séculos depois da época em
mento, dogma, pequenos saberes e leis que estamos.
exteriores eram totalmente destituídos de
significado para os homens que tinham a Uma categoria diferente consiste naquilo que
gnose. É de propósito que falo aqui de eu designaria conjuntamente por ‘escritos pa-
homens que têm gnose e não de gnósticos. A leocristãos’. A literatura paleocristã consiste
palavra gnósticos foi quase com certeza em tratados dos Padres da Igreja dos séculos
colocada por outros como etiqueta 170, tal II e III, sobretudo os de Ireneu de Lyon,
como a denominação cristãos não provém de Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano
Jesus e a expressão perfecti (parfaits, e Hipólito de Roma. Consiste igualmente em
perfeitos) não vem dos cátaros, vem dos seus escritos dos chamados apologetas, como
opositores da inquisição. Justino e Atenágoras. E há ainda cartas de
O que Jesus ensinava a partir do saber interior Inácio, Policarpo e Clemente de Roma,
é universal, e, nesse sentido, deve ser conside- fragmentos soltos e tratados como o Pastor de
rado gnóstico, se se lhe quiser dar um nome. Hermas e o Didaché; chamou-se a este
Em todo o caso, esse nome ainda não foi tão conjunto, a que pertencem mais alguns
conspurcado como o de cristão. Ora ao julga- escritos adicionais, Pais Apostólicos. 171
rem-se os escritos desenterrados em Nag Em essência, isto não é mais do que um pu-
Hammadi pelo seu valor intrínseco, formam- nhado da imensa quantidade de escritos da
se imagens que são significativamente con- cristandade primitiva, muitos dos quais se
gruentes com textos que conhecemos da Bí- perderam. Alguns desses escritos tiveram du-
blia, mas também com escritos apócrifos e rante muito tempo um estatuto ‘oficial’ na jo-
com outras fontes religiosas e filosóficas. Os vem igreja e num ou noutro caso foram mes-
textos bíblicos adquirem assim uma dimensão mo equiparados aos evangelhos canónicos.
diferente, mais profunda e surpreendente. Eles No Codex Sinaiticus, um dos manuscritos bí-
ensinam-nos tudo sobre o Cristo em nós mes- blicos mais antigos e de maior confiança, es-
mos; e essa consciência-Cristo esteve sempre tão incluídas partes do Pastor de Hermas en-
presente em todos os séculos, como veremos tre os evangelhos e as cartas.
neste livro. Além disso, quase todos os escritos que foram
Os chamados ‘evangelhos gnósticos’, tais co- reunidos sob o nome de Pais Apostólicos
mo o Evangelho de Maria (Madalena), o mantiveram até hoje uma certa autoridade na
Evangelho de Filipe, o Evangelho da Verda-
de, e escritos como o Livro Secreto de João, o 171
Basilius Steidle distingue no seu estudo De Kerkva-
Livro Secreto de Tiago, Diálogo do Salvador ders na época anterior ao concílio de Niceia: os pais
e o Apocalipse de Tiago, dão-nos informação apostólicos (Clemente de Roma, Inácio, Policarpo e
surpreendentemente vasta sobre os ensi- Papias), os pais gregos da igreja (entre outros, Justino,
namentos mais espirituais de Jesus. Esses en- Taciano, Ireneu, Clemente, Orígenes) e os pais latinos
sinamentos vão frequentemente mais longe e da igreja (entre outros, Tertuliano e Cipriano); depois
de Niceia, há ainda Padres da Igreja alexandrinos, an-
tioquenhos, capadócios, sírico-palestininos, sírios, ar-
170
Ver F. Wisse, ‘Prolegomena to the study of the New ménios, latinos e gregos. Sobre a noção de ‘Pais Apos-
Testament and Gnosis’, em A. H. B. Loogan e A. J. M. tólicos’ ver também a introdução de A. F. J. Klijn,
Wedderburn, The NewTtestament and Gnosis, 138-143. Apostolische Vaders I.
igreja. O mesmo não se pode dizer, por exem- de evangelhos numa história sem descontinui-
plo, de Orígenes, cuja autoridade na jovem dades chamada Diatessaron. 173 Os teólogos
igreja foi muito grande, mas cujos ensinamen- chamam harmonia evangélica 174 a este tipo
tos foram posterior e postumamente condena- de escrito, que foi muito popular durante a
dos devido aos seus elementos heréticos Idade Média antiga na missionação das re-
(gnósticos). giões germânicas. Pregadores declarados san-
tos, como Bonifácio e Willibrordus usaram
Tem pouco sentido no âmbito desta obra tra- estas harmonias. Tinha-se constatado que ter
tar detalhadamente cada um dos escritos. de anunciar ao mesmo tempo quatro ‘boas no-
Através da bibliografia citada nas notas cor- vas’ por vezes contraditórias não facilitava a
respondentes, cada leitor poderá seguir a pista cristianização.
do que lhe interessa mais especialmente. Na- No ano de 1740, um certo Muratori descobriu
turalmente que ao longo deste livro voltarão a na Bibliotheca Ambrosiana, em Milão, uma
aparecer, e por vezes com citações, muitos lista de escritos do Novo Testamento datada
dos escritos aqui apenas referidos de passa- do século VIII. Um estudo mais detalhado
gem, na prossecução do nosso intuito de ilus- mostrou que ela deve ter surgido cerca de 200
trar determinados passos do desenvolvimento depois de Cristo. O documento conta que Lu-
do cristianismo. cas, o autor do terceiro evangelho, foi incitado
a isso por Paulo. Segundo o autor do docu-
mento, a que se chama Canon Muratori, Pau-
O cânon do Novo Testamento lo, tal como diz João no Apocalipse, escreveu
sete cartas: aos coríntios, aos efésios, aos fili-
O Novo Testamento é geralmente considerado penses, aos colossenses, aos tessalonicenses,
a fonte de autoridade por excelência do cris- aos gálatas e aos romanos. Ele menciona ain-
tianismo. Por isso, é certo que causará espanto da mais algumas cartas, as segundas epístolas
a muita gente saber que a lista de escritos que aos coríntios e aos tessalonicenses, duas car-
compõem o Novo Testamento foi publicada tas a Timóteo, e cartas a Filemon e Tito. Se-
pela primeira vez com a forma que lhe conhe- gundo o autor do documento, as cartas de
cemos apenas em 367 depois de Cristo. Cerca Paulo aos laodicenses e aos alexandrinos são
de 150 d.C., Marcião, de que voltaremos a falsas. A Carta aos Hebreus não é menciona-
falar, tomou as cartas de Paulo como ponto da, e das cartas católicas 175, apenas o são a
central da sua prédica e juntou-lhes o carta de Judas e duas cartas de João. Ao Ca-
Evangelho de Lucas. Quanto ao Antigo testa- non Muratori pertencem também o Evangelho
mento, rejeitou-o totalmente. Por volta de de João, escritos como a Sabedoria de Salo-
200, vemos os quatro evangelhos bíblicos, mão, e, ao lado do Apocalipse de João tam-
inicialmente destinados a um pequeno grupo bém um Apocalipse de Pedro. O Pastor de
ou comunidade, serem aceites cada vez mais Hermas que, como vimos, por vezes fazia
generalizadamente como a fonte mais impor- parte do cânon em formação, deve, de facto,
tante 172, aceitando-se ao mesmo tempo as di- ser lido, segundo o autor, mas não ‘até ao fim
ferenças, por vezes mesmo contradições, que dos tempos’. Muratori encontrou o manuscri-
existem entre eles. Alguns decénios antes, Ta- to já danificado, já sem o princípio e o fim e
ciano tinha solucionado este problema em como a primeira frase legível era: ‘... o tercei-
Edessa, cidade síria onde o apóstolo Tomé era ro evangelho de Lucas...’, aceitou-se sempre
muito respeitado, fundindo um certo número que na parte do texto já desaparecida estariam

173
Ver G. Quispel, Het Evangelie van Thomas en de
172
Ireneu defendeu o número total de quatro evange- Nederlanden.
174
lhos com a observação de que também existiam quatro Ver Tj, Baarda, Vier = Een.
175
pontos cardiais (Adv. Haer. III.11.8). Ver também O. As cartas católicas são as sete cartas do Novo Tes-
Cullmann, ‘Die Pluralität der Evangelien als theologi- tamento que têm o nome de remetente mas não o do
sches Problem im Altertum’ em Vorträge und Aufsätze, destinatário. Como não são dirigidas a uma comunida-
1925-1962, 548-565, sobretudo, 552 e seg. Ver tam- de em particular, chamam-se ‘cartas católicas’ (= ge-
bém Rosemary Radford Ruether em R. Bons-Storm e rais). São elas: Tiago; 1 e 2 Pedro; 1, 2 e 3 João; Ju-
outros (coord.), Zij waait waarheen zij wil, 13-25. das.
mencionados como sendo os primeiros os 3. Sobre magos, profetas e
dois evangelhos de Marcos e Mateus; isto não
é, porém, certo, sendo no entanto provável. um balneário em Éfeso
O Apocalipse de Pedro não ficou no Novo
Testamento e pertence hoje ao apócrifos. Simão Mago
Quanto ao Apocalipse de João, o seu destino
era incerto. Desde muito cedo que parecem ter existido
De tudo isto pode constatar-se que existe toda diferenças de opinião sobre diversos artigos
uma história da formação do Novo Testamen- de fé. Elas são referidas já nas cartas de Paulo
to longa de séculos, que, na realidade, só ter- e nos Actos dos Apóstolos. Neste último escri-
minou definitivamente no século IV, embora to, encontramos uma estranha história contra
o núcleo do Novo testamento já estivesse bas- um certo Simão Mago que viajava em compa-
tante fixado no fim do século II. nhia de uma mulher, Helena. Os seus seguido-
Os critérios usados foram sobretudo que os res veneravam-no como a ‘grande força de
escritos escolhidos estivessem atribuídos a Deus’ Segundo os Actos, o apóstolo Filipe en-
um apóstolo (ou a um outro autor com autori- contra-o na Samaria. Sob a impressão da for-
dade) e fossem católicos (generalizados), isto ça apostólica, Simão teria tentado comprá-lo.
é, admitidos em todas as igrejas. Este acto foi eternizado na história com o no-
Já então era certo que Marcos e Lucas não me de ‘simonia’, que significa a compra (e
eram apóstolos e também não tinham perten- venda) de cargos eclesiásticos; um uso que te-
cido aos discípulos directos de Jesus. Pensou- ve a sua maior expansão na Idade Média.
se durante muito tempo o contrário de Mateus Justino Mártir dá-nos sobre Simão a notícia
e João. Era, portanto, necessário um factor de de que ele era visto como ‘o primeiro
maior peso: o grau de inspiração. Na atribui- Deus’. 177 Mas ser Deus e ao mesmo tempo
ção de inspiração a alguns textos e na negação mostrar desagrado pela força de outros (dos
dessa inspiração a outros, partiu-se cada vez apóstolos) é auto-contraditório. Ou Lucas, o
mais do princípio de que a própria igreja era autor dos Actos, se estava a referir a outro, ou
inspirada pelo Espírito Santo e, desse modo, a história foi adaptada às concepções cristãs
podia também julgar sobre o carácter funda- posteriores, tal como aconteceu com toda a
mental de diversos escritos. 176 evidência na colorida lenda de Pedro e Simão
No próximo capítulo veremos que estes crité- que encontramos nos Pseudo-clementinos e
rios são bastante contestáveis; os evangelhos no apócrifo Actos de Pedro, entre outros.178
não foram escritos por apóstolos e aquilo que Há ainda outras fontes onde podemos ir bus-
a si mesmo se chamava ‘igreja’ não era mais car conhecimento sobre Simão, tais como os
do que uma das muitas correntes do cristianis- Padres da Igreja Ireneu e Hipólito. 179
mo primitivo. O cânon do Novo Testamento é Segundo Hipólito, Simão seria o autor do Li-
mais uma reacção às correntes espirituais que vro da grande revelação, uma obra que daria
não faziam a inspiração depender de um texto testemunho de uma visão profunda. Na base
e que não desejavam crer levadas pela autori- de tudo está uma força ilimitada, uma em tu-
dade de um bispo, experimentando antes o do, chamada Silêncio. Esse ser absoluto, essa
Cristo no seu próprio coração. E essa expe- Força ilimitada, torna-se consciente de si pró-
riência torna as regras exteriores supérfluas. prio. A consciência ‘exterioriza-se a si mesma
a partir de si mesma, revelando a si mesma os

177
Justino, Apologie I, 26,1-3.
176 178
Rosemary Radford Ruether afirma no seu artigo an- Não há tradução portuguesa dos Pseudo-
teriormente citado ‘Het feminisme en het gezag van de clementinos. Encontra-se parte deles em W.
canon’ que os compiladores do canon se esforçaram Schneemelcher (e E. Hannecke), Neutestamentliche
conscientemente por limitar o papel da mulher: ‘Selec- Apokryphen II.
cionaram-se determinados escritos do período sub- Há uma tradução portuguesa dos Actos de Pedro e dos
apostólico que declaravam aplicáveis à comunidade Doze apóstolos em A Biblioteca de Nag Hammadi,
cristã normas sociais patriarcais e eliminou-se uma cor- Lisboa, ed. Ésquilo
179
rente radical alternativa que defendia que essa divisão Também Tertuliano e Epifânio, e ainda a Epistula
hierárquica era abolida pelo baptismo’ (21). Apostolorum, fazem referências a Simão.
seus próprios pensamentos’. 180 Do Silêncio mem enquanto Deus. Tal como Jesus afirmou
emana, pois, a Consciência (noûs em grego), a um dos seus discípulos:
de onde surge o Pensamento (epínoia em gre-
go). Numa forma um pouco modificada, reen- É assim que acontece com (o lugar d)a Verdade:
contraremos mais tarde estes pensamentos ba- Viste algo desse lugar
e tornaste-te igual a ele.
silares no grande místico cristão Valentino Viste o Espírito
(ca. 150). 181 e tornaste-te Espírito.
Silêncio, Consciência e Pensamento são, em Viste Cristo
essência, um e indiviso, mas ao mesmo tem- e tornaste-te Cristo.
po, são também três e dois. Pois a consciência Viste o Pai
e tornaste-te Pai. 182
e o Pensamento formam em conjunto uma
unidade andrógina (=masculino-feminino),
Simão estava consciente da sua divindade.
um ‘par’. Das oposições aparentes que se uni-
Embora não cristão, era um Cristo. Tinha-o
ficaram em si mesmas surge uma inter-acção,
conseguido com um processo de aprendiza-
um campo de força, a que poderíamos chamar
gem que durou muitas vidas. Por isso, podia
criação.
enfeitiçar, era um mago. Pois magia significa
Em essência, isto é uma forma muito pura de
apenas a capacidade de poder dominar e dis-
conhecimento, de gnose, que se harmoniza
pôr de forças divinas. Na antiguidade isso não
completamente com as antiquíssimas especu-
era novidade; basta pensar no contemporâneo
lações orientais sobre o Ser. Os dois pólos
de Simão, Apolónio de Tiana, de quem se diz
(comparar com os pólos norte e sul, que fa-
que podia acalmar tempestades e amansar ma-
zem ambos parte da mesma terra), a dualida-
res revoltos. 183 Também na nossa época isso
de, é apenas aparente; eles existem como que
não é novidade; basta pensar nas materializa-
para se excitarem, se accionarem, mutuamen-
ções e nos milagres de, entre outros, Sai Baba
te. Em muitos sistemas gnósticos de sabedoria
na Índia. 184 Simão Mago tinha em si o saber
posteriores, considerou-se cada vez mais o
profundo.
deus criador (frequentemente identificado
com Jahveh) como um produto de um ‘anjo
caído’; em muitas especulações místicas, o
próprio Lúcifer é o anjo caído e em algumas
Helena
correntes cristãs, Satan desempenha esse pa-
pel. Todas essas especulações remontam, po- O mago Simão calcorreou a Palestina e os
rém, em essência à forma primordial, que é a países fronteiros com uma mulher, Helena.
de uma absoluta unidade. A apreciação nega- Segundo Justino Mártir e os Padres da Igreja
tiva destas divindades ‘caídas’ provém da paleo-cristãos, Simão tinha-a resgatado num
crescente incompreensão de que a acção e a bordel na cidade portuária de Tiro. Segundo
reacção são necessárias também na matéria Ireneu, Helena era o ‘Primeiro Pensamento’
(sobretudo na matéria) para levar Deus à (epínoia, em algumas fontes também chama-
Consciência de si mesmo. A criação é inclusi- do énnoia), portanto, a manifestação de Deus.
va. Esta Mãe Universal, ‘por quem Ele no princí-
Se o não cristão Simão Mago escreveu esta pio teve no pensamento criar os anjos e os ar-
escritura por sua própria mão, então isso dá canjos’ 185, desceu, criando, às regiões inferio-
testemunho de uma profunda compreensão da res do céu e, prossegue o mito, foi feita prisio-
essência das coisas e do papel que o homem neira pelos anjos e arcanjos ciumentos que ela
desempenha na terra; o homem enquanto par-
te dessa força incognoscível. Em suma, o ho- 182
EvFlp. 36.
183
Ver G. R. S. Mead, Apollonius of Tyana.
184
Sobre Sai Baba, ver entre outros, S. H. Sandweiss,
180
Hipólito, Refutatio omnium haeresium (daqui em Sai Baba, de Heilige... en de psychiater; H. Murphet,
diante Refutatio) VI 18,6. Sai Baba, avatar; J. S. Hislop, Mijn Baba en ik. Para-
181
Para melhor compreensão destas especulações rela- mahansa Yogananda descreve na sua Autobiografievan
tivas à divisão das forças divinas, à emanação, à cria- een yogi muitos ‘santos’ que fazem os mais variados
ção e ao engendramento, ver, entre outros, J. Slaven- milagres.
185
burg, De geheime woorden, 45. Ireneu, Adversus Haereses (Adv. Haer.) I.23,2.
própria tinha criado e envolta em carne huma- sus, já uma divisão dos espíritos. Num diálo-
na. E assim, ela migrava através dos séculos go com Pedro, Simão diz:
de corpo feminino em corpo feminino, supor-
tando em cada incarnação novas formas de ul- Ficarás em todos os aspectos mudo de espanto e terás
traje. Os poderes (os anjos e os seus), que ti- vontade de tapar os ouvidos para não seres manchado
pelo sacrilégio, ou de fugir, simplesmente porque não
nham perdido o conhecimento do Pai, tenta- sabes o que hás-de contrapôr. E o povo estúpido acla-
ram um a um roubar-lhe essa gnose, que nela mar-te-á. Eles estão contigo porque lhes dizes o que
ainda estava presente, com o que luta e guer- lhes é familiar. Mas a mim hão-de amaldiçoar-me por-
ras afligiram os povos. Ela apareceu, por que eu ensino algo renovador e nunca ouvido. 188
exemplo, como Helena, causadora da guerra
de Tróia. Simão representa aqui o princípio divino au-
Por fim, acabou num bordel, de onde foi res- têntico, o saber interior, Pedro, o pensamento
gatada por Simão; isso significa que a sua di- cristão tornado uma doutrina. Pedro socorre-
vindade e a de Simão se voltaram a unificar se do Cristo transmitido exteriormente, Simão
em pleno esplendor. do Cristo em si mesmo. Ele desmonta a histó-
Esta história de libertação parece-se fortemen- ria de Pedro com a observação de que ‘quem
te com as muitas imagens mitológicas que co- tem um Senhor não pode ser um Deus’, coisa
nhecemos dos chamados escritos gnósticos. tão impossível como um Deus nascer. 189 Por
Neles, a metade feminina de Deus é frequen- isso, um autor cristão faz Simão, que pairava
temente chamada Sabedoria ou Sophía, como no ar, estatelar-se no chão por obra de Pe-
vimos anteriormente. É bastante notável que dro 190; um acto que, entre outros, está repre-
nos Pseudo-clementinos, Helena seja por ve- sentado no portal da caterdral de Autun. E que
zes apelidada de Sophía. 186 é significativo da história posterior do cristia-
Na mística cristã, tal como a reencontramos, nismo.
por exemplo, em Jacob Böhme no século
XVII, o Cristo ressuscitado desposa Sophía e Segundo Pseudo-Clemente, Simão era discí-
ambos ascendem juntos ao Pai. pulo de Dositeu, contemporâneo e conterrâ-
Num escrito achado em Nag Hammadi, o neo de Simão, e ambos eram discípulos de
Tratado sobre a alma, reencontramos o mes- João Baptista. 191 Esse Dositeu teria publicado
mo mito: a alma tornada ignorante vagueia um profundo hino, as Três Estelas de Seth192
pela terra e prostitui-se (na matéria) até que e ter-se-ia apresentado como o Messias há
volta a recordar-se da sua proveniência divi- muito prometido, o ‘Cristo previsto’. 193 Se-
na. Segue-se depois um matrimónio santo, a gundo os seus seguidores, ele teria recebido a
unificação total, a redenção. Muito curiosa- vida eterna e não teria morrido.
mente, também este texto fala de Helena. 187 Era o que ensinava também, em sentido figu-
Os Padres da Igreja cristãos não rado, Menandro, outro discípulo de Simão,
compreenderam que neste mito, tão oriundo da Samaria. Segundo estes não cris-
plasticamente representado pelo par redimido tãos, o homem participaria na vida eterna se
Simão e Helena, estava esboçado o núcleo da recebesse a ressurreição durante esta vida. 194
existência na terra: um fragmento da história É aqui notável o paralelismo com os ensina-
da humanidade expresso poeticamente. mentos esotéricos de Jesus, que ainda ressoa-
Vemos aqui, no século I da nossa era, algu- vam no Evangelho de Filipe, onde lemos:
mas dezenas de anos depois da morte de Je-

188
Salmos. Clemente, Homiliae 3,37.
186 189
Salmos. Clemens, Homiliae 2.25,2, Recognitiones Actos de Pedro, 23.
190
2.12,2. Actos de Pedro, 32.
187 191
A Exposição sobre a Alma, CNH II.6, está traduzida Salmos Clemente, Homiliae 2.2 e Recognitiones 2.8
para português em Biblioteca de Nag Hammadi vol. II. e 11.
192
Este nome tem parentesco etimológico com helios, sol; J. Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de
o nome Helena é traduzido por ‘archote’ e Nag Hammadi II.
193
‘esplendorosa’. Ver também Jarl Fossum, ‘Helena’ em Orígenes, Com. Jo 13,27 (comentários sobre João
Reallexikon für Antieke und Christentum, 107, 338- 4:25).
194
355, Stuttgart 1987. Justino, Apol. 1,26:1-4; Ireneu, Adv. Haer. I.23,5.
Aqueles que dizem:
‘Primeiro morre-se e depois ressuscita-se’ ... Assim como o Senhor não fez nada sem o Pai, por-
enganam-se. que estava unido a ele – e isso no que diz respeito ao
Pois se não se adquirir a ressureição durante esta vida que ele mesmo fez e ao que ele fez por intermédio dos
não se adquirirá nada depois de morrer. 195 apóstolos – assim também não deveis fazer nada sem o
bispo e os anciãos... Isso com o bispo como presidente
em lugar de Deus e com os anciãos em lugar do conse-
Clemente de Roma, a autoridade lho dos apóstolos... 199

e os profetas Numa outra carta, ele compara o bispo

Cerca do ano 96 depois de Cristo, o bispo de À imagem do Pai, e os anciãos à imagem do conselho
Roma escreveu em nome da sua comunidade de Deus e ao conselho dos apóstolos. 200
uma carta à comunidade de Corinto, onde ti-
nham surgido alguns conflitos relativos à au- Contudo, na mesma época, surge numa parte
toridade nessa comunidade. O evento mostra totalmente diferente do Império Romano –
que ‘Roma’ já tinha um certo estatuto dentro provavelmente na Síria – uma espécie de ‘ma-
da cristandade; algo que mais trade cresceria nual’ em que ainda não é questão de uma au-
até se tornar na sede da cristandade ocidental. toridade firme. O que é notável nesse escrito,
Clemente conhece bem os romanos, como se o Didaché ou O ensino dos doze apóstolos 201,
vê pela sua carta. Ele sabe bem o que se há-de é o grande papel que os profetas continuam a
fazer na crise de autoridade em Corinto e desempenhar na jovem igreja. Paulo, e tam-
prescreve-lhes uma receita que se parece terri- bém os Actos, informam-nos sobre as funções
velmente com a estrutura de poder político e dos profetas. É em profetas e mestres que
militar do Império Romano. Escreve ele: Paulo e Barnabé delegam na sua primeira via-
gem; noutra viagem, Paulo leva profetas con-
... Irmãos, lutemos, por isso, com todas as forças sob as sigo. Na primeira carta aos coríntios, mencio-
suas prescrições imaculadas. Os lutadores devem ter na-os conjuntamente com os apóstolos e os
em atenção o seu capitão; quão ordenadamente, quão
mestres. Diz ele que
voluntariamente, quão disciplinadamente eles desem-
penham a sua missão. Nem todos são capitães, coman-
dantes de mil, cem ou cinquenta homens, mas cada um Deus deu proeminência a alguns na comunidade, pri-
no seu próprio posto cumpre as ordens do seu rei e so- meiro aos apóstolos, segundo aos profetas, e terceiro
berano... 196 aos mestres. 202
Os apóstolos pregaram-nos a boa nova por incumbên-
cia do Senhor, Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cris- Um bom meio século depois, vemos que o
to vem de Deus e os apóstolos são enviados por Cristo. Didaché ainda fala de profetas designados
Tudo isto aconteceu de maneira ordenada com base na
pelo Espírito, coexistindo com curas e
vontade de Deus... 197
Também os apóstolos sabiam por nosso Senhor Jesus diáconos escolhidos pela comunidade que têm
Cristo que haveria luta por causa das funções episco- um estatuto claramente inferior. 203 Uma
pais... Pois para nós não será pecado ligeiro depôr das diferença notável em relação às concepções
funções episcopais aqueles que fizeram irrepreensível e soldadescas do romano Clemente.
santamente os sacrifícios. 198
199
Faz pensar num refrão que antigamente canta- Magn. VII.1 e VI.1, op. cit. Apostolische Vaders I,
89-90.
rolávamos depois da Escola: 200
Thrall. III.1, Apostolische Vaders I, 94.
201
O Didaché está traduzido para português em
Um, dois, no tapete
Didaché, Edição Bilingue. Tradução do original por
senão a mestra zanga-se.
Manuel Luís Marques; estudo enotas de Isidro Pereira
Lamelas. Lisboa. Alcalá, Faculdade de Teologia
O bispo Inácio ensina alguns anos mais tarde:
Universidade Católica Portuguesa. 2004.
202
1 Co. 12:28.
195 203
EvFlp. 71. ‘Não se deve julgar ou pôr à prova nenhum profeta
196
1 Clemens, 37,1-3. A. F. J. Klijn, Apostolische que fale no Espírito, porque todos os pecados serão
Vaders I, 183. perdoados, mas esse pecado não será perdoado’
197
1 Clemens, 42,1-2; Apostolische Vaders 186. (Didaché, XI, 7; op. cit. Klijn, Apostolische Vaders I,
198
1 Clemens, 44,1-4; Apostolische Vaders 187. 252). Comp. EvT. 44.
O papel livre dos profetas, que falavam a par- pressões do espírito. Para se saudarem, abra-
tir do Espírito, manteve-se durante muito tem- çavam-se uns aos outros, o chamado beijo da
po, mas, por fim, o cargo acabou por ficar de- paz, e despediam-se da mesma forma. Em al-
masiado fora da ordem. Ireneu insulta um cer- gumas regiões, sobretudo no oriente, esta tra-
to Marco, cognominado ‘o mago’, porque en- dição conservou-se muito tempo. É notável
corajava mulheres a profetizarem. 204Esse que uns bons mil anos mais tarde voltamos a
Marco, que viveu no século II, não gostava de encontrar estes costumes nos Cátaros do sul
regras e de autoridade, que matavam o amor, de França. Na igreja geral (= católica) roma-
a inspiração e o saber interior. Ele reconhecia na, estes usos tinham sido abandonados sécu-
que sobretudo a mulher trazia em si esse saber los antes.
profundo e encorajava-a a expressá-lo. E ao
fazê-lo, encontrava-se ainda na tradição pa-
leo-cristã. Uma fuga do balneário
Como as comunidades cristãs estavam espa- O pai da igreja Ireneu, que voltaremos a en-
lhadas por todo o imenso Império Romano, contrar detalhadamente num capítulo poste-
não se pode falar de uma história comum nos rior, descreve numa das cinco partes do seu li-
primeiros séculos. A vivência religiosa, e so- vro contra os herejes, que havia pessoas que
bretudo a estrutura, podiam diferir fortemente tinham ouvido dizer pelo respeitável Policar-
de comunidade para comunidade. Só no sécu- po 205 que João, o apóstolo, teria querido
lo actual é que o significado do cristianismo tomar um banho em Éfeso. Porém, quando se
judaico, sobretudo o da Síria, se tornou claro. apercebeu que um certo Kerinthos se
O centro da cristandade deslocou-se cada vez encontrava no balneário, retrocedeu
mais para ocidente e virou-se cada vez mais rapidamente sobre os seus próprios passos.
para ‘pagãos’ convertidos ou a converter em Segundo a nossa história contada em mais do
detrimento dos judeus, que não se mostravam que segunda mão, teria exclamado ao fazê-lo:
grandemente receptivos à nova boa mensa- ‘Fujamos, para que o balneário não caia; pois
gem. A comunidade de Jerusalém, inicialmen- Kerinthos, o inimigo da verdade, está lá
te a mais central, sofreu cada vez mais de au- dentro.’ 206
toridade e praticamente desapareceu da vista Segundo este pai da igreja, João teria escrito o
até às vésperas da revolta judaica contra os seu evangelho contra Kerinthos 207, enquanto
romanos em 66 depois de Cristo, quando outros afirmam justamente que essa obra teria
membros seus partiram para Pella, na Trans- sido escrita por Kerinthos. 208 O bispo Dioní-
jordânia. Distinguiam-se claramente dos cris- sio chega a atribuir o Apocalipse (o Apocali-
tãos ‘pagãos’, porque continuavam a ter gran- pse de João) a Kerinthos, porque esta obra te-
de respeito pela lei judaica, negavam o nasci- ria falta de sentido e coerência 209; uma ilustra-
mento de Jesus da virgem Maria e rejeitavam ção clara do facto de que a admiração pelos
a autoridade de Paulo. Estes Ebionitas e Na- ‘escritos inspirados’ posteriormente incluídos
zarenos (e outros agrupamentos) conservavam na Bíblia nem sempre foi assim tão grande.
tradições próprias de escritos apostólicos que, Espicaçados por todas estas observações, fica-
lamentavelmente, se perderam em grande par- mos curiosos em saber quem foi este blasfe-
te. mador Kerinthos e quais foram os ensinamen-

Tanto entre os cristãos judeus como entre os 205


Policarpo era bispo de Esmirna. Foi martirizado cer-
cristãos latinos, havia reuniões que eram en- ca de 170. Ver o Martyrium Polycarpi (O Martírio de
cerradas com uma refeição comunitária, onde Policarpo), traduzido em holandês nos Apostolische
era expressado o agradecimento (eucaristia). Vaders I, 123-133.
206
Havia leitura das escrituras (com livre escolha Adv. Haer. III.3,4. Ver também Eusébio de Cesa-
de entre a literatura disponível, porque ainda reia, Historia Ecclesiastica (Ecclesiasticae Historiae)
(daqui em diante abreviada como H. E.) III.28,6 e
não havia cânon), havia orações e livres ex- IV.14,6.
207
Adv. Haer. III.11,1.
208
K. Rudolph, Die Gnosis, 320.
204 209
Ad. Haer. I.13. H. E. VII.25,1-2.
tos que transmitiu. E depois vemos com al-
gum espanto, que este homem apelidado de Este relato do diálogo entre o anjo e Maria
hereje ainda tinha uma compreensão muito não implica automaticamente que Maria fica-
pura da essência do Cristo. rá grávida de maneira sobrenatural; apenas
Ele ensinava que Jesus era um filho natural do nos diz que a concepção será acompanhada
pai José e da mãe Maria e que era um filho pela aparição de forças muito altas, porque
dos homens como nós. Claro que tinha em si quem vai nascer é santificado.
muito mais sabedoria e compreensão. No bap-
tismo no Jordão, o Cristo desceu no homem Em Mateus, um anjo aparece a José. A sua
Jesus de Nazaré; o Cristo, que em Jesus for- versão da história é a seguinte:
mava a ligação com o ‘Pai Desconhecido’.
Foi também o homem Jesus quem sofreu na Quando Maria se tornou noiva de José, verificou-se
cruz. Cristo não podia sofrer porque era uma que, antes de irem viver juntos, Maria estava grávida
do Espírito Santo. Como José, o seu marido, era justo e
pura força espiritual. Pela transformação de não a queria comprometer, pensou separar-se dela em
Jesus, o reino de Cristo seria um reino nesta silêncio. Enquanto pensava nisso, apareceu-lhe num
terra e sobre esta terra. 210 sonho um anjo do Senhor que lhe disse: ‘José, filho de
É notável que este Kerinthos tivesse sido con- David, não receies tomar Maria por tua esposa; a
siderado hereje por estes pensamentos, que criança no seu seio é do Espírito Santo...’ 213
testemunhavam de uma compreensão muito
pura do que se tinha passado apenas um sécu- O que é muito estranho é que José, enquanto
lo antes. Num escrito da primeira metade do ‘filho de David’, não seja o pai natural. Tanto
século II, a Epistula Apostolorum (a Carta Lucas como Mateus invocam uma extensíssi-
dos Apóstolos), ele é mesmo pintado como ma lista genealógica para demonstrar que Je-
uma espécie de anti-apóstolo, que se dedicava sus é descendente de David, pelo lado pater-
a desviar os cristãos da sua fé. 211A sensação no. O que faz o autor do Evangelho de Filipe
que dá é que no fim do século I já existiam exclamar:
grandes diferenças de compreensão entre os
Alguns dizem:
cristãos e que muitos já não compreendiam o ‘Maria foi fertilizada pelo Espírito Santo’.
verdadeiro sentido e conteúdo da vinda do Erram.
Cristo à terra. Não sabem o que dizem...
O Senhor não teria dito:
Um exemplo claro da mudança de concepções ‘O meu pai que está no céu’
Se não tivesse também outro pai;
é formado pelo princípio, mais tarde erigido Teria dito simplesmente ‘o meu pai’. 214
em dogma, da virgindade de Maria, a mãe de
Jesus. Como vimos acima, o ‘hereje’ Kerin- A virgindade é encarada neste escrito de for-
thos ainda ensinava que o menino Jesus de ma simbólica, espiritual. O pai celeste de Je-
Nazaré nascera da relação amorosa entre o sus uniu-se com o Espírito Santo virginal e
seu pai natural José e a sua mãe Maria. este produziu o Cristo. O Cristo desceu em
Algumas dezenas de anos depois, dois autores Jesus durante o baptismo no Jordão.
de evangelhos chegavam a outra conclusão. Uta Ranke-Heinemann indica no seu livro
Lucas, o mais ‘histórico’, conta que ouviu di- Eunucos para o reino dos céus 215 que o
zer que o anjo Gabriel teria aparecido a Maria nascimento virginal, tal como descrito pelos
e anunciado que ela ficaria grávida. evangelistas Mateus e Lucas, usa uma
linguagem figurada, como tantas outras coisas
Porém, Maria disse ao anjo: ‘Como é que isso aconte-
cerá, se não tenho relações com um homem?’
no Novo Testamento. Mateus está-se a referir
A isto, respondeu o anjo: ‘O Espírito Santo virá sobre a Isaías 7:14 onde se lê:
ti e a força do Altíssimo cobrir-te-á; por isso, aquele
que vier ao mundo será chamado santo, filho de
Deus.’ 212
213
Mt. 1:18-20.
210 214
Adv. Haer. I.26,1; H. E. III.28. EvFlp. 14
211 215
Epistula Apostolorum 7 (18). Uta Ranke-Heinemann, Eunuchen voor het hemel-
212
Lc. 1:34-35. rijk, 27-28.
Vede, a jovem está grávida e trará ao mundo um filho e
dar-lhe-eis o nome de Emmanuel. ‘Não temas, José, filho de David, pois encontraste gra-
ça junto a Deus e, vê, engendrarás um filho e chamar-
Em Mateus, lê-se virgem em vez de jovem. lhe-ás Jesus-Maria... 221
Na Septuaginta (a tradução grega da Bíblia Quando José acordou do seu sonho, fez o que o anjo
lhe tinha ordenado e foi até Maria, que lhe estava pro-
judaica feita no século III antes de Cristo), a metida, e ela recebeu o Senhor no seu seio. 222
palavra almah, que significa ‘jovem mulher’,
está traduzida por parthénos, virgem (a pala- Como em tempos posteriores a pureza espiri-
vra hebraica para virgem é bethulah). 216 tual deixou de poder ser compreendida; como
Também no apócrifo Evangelho de Nicode- deixou de se compreender que Maria era uma
mus, o nascimento virginal é negado. Quando mulher muito pura e superior que abrigava em
Jesus está perante Pilatos, há testemunhas que si um saber do que ia acontecer – guardado no
declaram com grande convicção: seu coração – e se preparava para isso; aca-
bou-se por se limitar essa pureza a uma pure-
Negamos que ele seja filho da concupiscência. Pelo
contrário: sabemos que José era casado com Maria e
za corporal aparente (negando com isso a se-
que ele não nasceu da concupiscência. 217 xualidade enquanto dádiva de Deus) e elevou-
se isto a dogma. Quem não o subscrevesse era
Também Paulo, referindo-se a Jesus, fala da- declarado herético. Calhou a Kerinthos esta
quele que ‘segundo a carne nasceu da geração honra duvidosa. Lamentavelmente, muitos
de David’ 218, declarando numa outra carta que outros se lhe seguiriam ao longo da história.
Jesus ‘nasceu de uma mulher’ 219, isto é, não
de uma virgem.
No princípio deste século, um certo G. J. 4. O vibrante século II
Ouseley, um padre inglês, surpreendeu o
mundo teológico com um evangelho que, tal O longo caminho da alma
como o contestado (pseudo) Evangelho essé-
nico da Paz, teria acabado no Oriente por in- Ao mesmo tempo que no fim do capítulo an-
termédio dos Nestorianos. Esse padre tê-lo-ia terior vimos que havia correntes no cristianis-
traduzido de aramaico para inglês num mos- mo que, de ‘Mateus’ na mão, incitavam a uma
teiro budista do Tibete. O texto mostra muitas certa valorização negativa da sexualidade (de
concordâncias com os evangelhos bíblicos. uma coisa dessas Jesus nunca poderia ter nas-
Diferencia-se deles sobretudo pela grande cido), descobrimos por entre as regras dos
atenção que é dada aos animais e por pregar Padres da Igreja também correntes que não
insistentemente o vegetarianismo. Mas há desligavam a sexualidade da vida diária e do
inúmeras diferenças subtis. Também no que curso de desenvolvimento do homem. Um
diz respeito à concepção de Jesus. belo exemplo delas é Carpócrates. Este cristão
No Evangelho da Vida Perfeita é dito que esclarecido trabalhou no reinado do
Maria, depois da anunciação, disse ao anjo: imperador Adriano (117-138 d.C.) na Ásia
Menor, mas seria oriundo do Egipto
‘Como é que isso acontecerá, visto que não conheço
homem?’ E o anjo respondeu: ‘O Espírito Santo virá
(Alexandria). 223
sobre José, o teu noivo, e a força do Altíssimo cobrir- Tal como Kerinthos, Carpócrates ainda tinha
te-á a ti, Maria...’ 220 uma compreensão muito pura do ‘mistério Je-
sus’. Também ele o via como um filho natural
O anjo aparece a José num sonho com as pa- de José. Mas ainda mais do que Kerinthos, ele
lavras: reconhecia o contexto cósmico. Enquanto que
quase todas as almas precisam de muitas vi-
216
Ver, entre outros, S. Ben-Chorin, ...en schiep haar
das para alcançar a harmonia perfeita, para al-
naar zijn beeld, 27-28 e D. Cupitt e P. Armstrong, Who cançar a redenção, a alma de Jesus era uma
was Jesus?, 46.
217
Klijn, Apokriefen I, 61-62.
218 221
Rm. 1:3. Evangelie van het volkomen leven 2:10.
219 222
Ga. 4:4. Evangelie van het volkomen leven 2:12.
220 223
Evangelie van het volkomen leven 2:6 Clemente de Alexandria, Stromateis III.5.2.
alma muito forte e pura que ainda estava to- próprio num Jesus. 226 Uma profunda concep-
talmente impregnada da sua origem, do seu ção que, como vimos anteriormente, também
lar: o mundo divino do Deus incriado. Dele se encontra no Evangelho de Filipe, onde le-
recebia as forças que o tornavam capaz de mos:
atravessar as esferas das potestades sem que
estas lhe adiram. 224 Se alguém mergulhar na água
Na antiguidade, o curso de desenvolvimento e voltar a emergir sem nada ter recebido
e disser: ‘sou cristão’,
do homem era frequentemente simbolizado recebe esse nome de empréstimo.
por uma viagem pelas esferas, muitas vezes Mas se receber o Espírito Santo,
ligadas a um determinado planeta. Em cada adquire esse nome de presente.
esfera, a alma humana em descida revestia-se Não se exige um presente de quem o recebeu,
com o poder que estava fortemente ligado a mas o que foi adquirido de empréstimo
é exigido de volta... 227
essa esfera. Uma forte influência de Marte da- De quem não os receber efectivamente
va paixão e coragem na luta, uma forte in- (ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo),
fluência de Marte causava uma forte sensibili- até o nome lhe será retirado.
dade e emoções por vezes ilimitadas, etc. A Eles são recebidos na unção da plenitude
missão da alma humana nessa vida terrestre e na força da cruz
que os nossos apóstolos chamavam ‘a direita e a es-
era desfazer-se dessas influências; não lhe querda’.
dando qualquer oportunidade de lhes sentir os Tal pessoa já não é um cristão
efeitos (a apátheia dos Estóicos) ou, simples- é um Cristo. 228
mente, vencendo-as (por transformação). Nes-
se caso, o homem conhecia as senhas (simbó- O pai da igreja Ireneu de Lyon, que achava
licas) necessárias para empreender a viagem estas concepções uma grande blasfémia, cita
para o alto depois da morte. À ‘porta’ de cada um escrito de Carpócrates (ou de um dos seus
esfera, guardiães simbólicos verificavam os seguidores imediatos) onde se revela o
avanços conseguidos e, ou retinham a alma sentido da reencarnação e do carma.
cativa, após o que lhe era dada nova oportuni-
dade num corpo novo, ou eram obrigados a Nas suas transmigrações por diferentes corpos, as al-
deixar passar a alma para a próxima esfera. 225 mas passam por todas as formas de vida e realizam to-
da a espécie de acções, a menos que uma alma, ao che-
Segundo Carpócrates, a alma de Jesus tinha gar a um corpo, tenha realizado de repente todas as ac-
atravessado conscientemente todas as esferas ções... Antes de abandonar o mundo, as almas têm de
e chegado assim a uma maturação completa e ter realizado e deixado para trás todas as formas de rea-
a uma liberdade total. Por essa liberdade inte- lização de vida; nada pode restar que elas tenham de
rior, pôde elevar-se acima das leis (judaicas) realizar; pois nesse caso, seriam de novo enviadas para
outro corpo, porque continuava a haver algo que falta-
exteriores e receber também as forças para va à sua liberdade. 229
vencer, transformar, a dor que os homens ex-
perimentavam como uma correcção. Este Carpócrates, que estava convencido de
É notável que ele ensinasse que todos os ho- que Jesus tinha anunciado ensinamentos eso-
mens eram capazes de vencer essas potências téricos aos seus discípulos íntimos e apóstolos
(que dominam as esferas), desde que seguis- e que estes, por sua vez, os deviam transmitir
sem efectivamente o caminho que Jesus per- àqueles que pudessem estar abertos a eles,
correu primeiro. Este grande instrutor afirma- que estivessem maduros para eles 230, afirma
va que é dado a cada homem tornar-se ele que o ensinamento de Jesus engloba este pano
de fundo mais profundo da reeencarnação e
224
Ad. Haer. I.25,2. do carma:
225
Encontramos estas especulações num sem número
de sistemas filosóficos e religiosos. A ideia de reencar-
226
nação e carma que lhes está subjacente era muito co- Adv. Haer. I.25,1.
227
nhecida no oriente. Mas chama a atenção encontrarmos EvFlp. 49.
228
paralelismos na mística judaica da merkavah, nos ensi- EvFlp. 55.
229
namentos de Hermes Trismegistos e na gnose cristã. Adv. Haer. I.25,4.
230
Pode obter-se uma ideia mais clara sobre tudo isto em Ver os fundamentos dos ensinamentos esotéricos de
J. Slavenburg, De geheime woorden, 105-118 e Gnosis, Jesus em J. Slavenburg, De verborgen leringen van Je-
49-56. zus, 11-29.
neira igual todas as estrelas. E o sol, que é a causa do
Quando fores com o teu opositor às autoridades, esfor- dia e o pai da luz, foi derramado por Deus de igual ma-
ça-te no caminho por te libertares dele; senão ele pode neira sobre todos os que podem ver, sem que se fizesse
levar-te perante o juiz, o juiz entregar-te-á ao oficial de diferença entre ricos e pobres, súbditos e senhores,
justiça e o oficial de justiça lançar-te-á na prisão. simples e sábios, homens e mulheres, livres e escra-
Digo-te: não escaparás de lá antes de teres pago o últi- vos...
mo centavo. 231 O sol faz crescer alimentos comunitários para todos os
seres; a mesma justiça é oferecida a todos sob as mes-
mas condições...
Nisso, o homem deve libertar-se da camisa de Para todos em conjunto, ele criou a videira, que nem o
forças do bem e do mal. O bem e o mal são pardal nem o ladrão rejeitam, e também o trigo e os ou-
noções humanas; nada é mau por natureza. O tros frutos. Mas a feitura de leis e o abandono do direi-
homem deve substituir as leis exteriores pelo to natural da comunidade e da igualdade provocou o
saber interior. Para o desenvolvimento em si roubo de alimentos e de frutos. Entretanto, Deus, ao fa-
zer tudo comunitariamente para o homem, e ao juntar
mesmo desse processo, que conduz à liberda- comunitariamente o feminino e o masculino, e ao pren-
de interior, as palavras-chave são ‘fé’ e der de igual maneira todos os animais uns aos outros,
‘amor’. fez conhecer a justiça como comunidade com igualda-
de. 234
É claro que este Carpócrates ainda se encon-
trava plenamente na tradição do saber antigo. Os verdadeiros cristãos devem, portanto, ter
Vemos que aqui não há qualquer estreitamen- tudo em comum, afirmava este espírito preco-
to, dogmatização, autoridade doutrinária, há cemente amadurecido. A posse torna o ho-
antes uma grande espiritualidade e um saber mem egoísta e maligno e é fonte de guerra de
libertador. Ao mesmo tempo que vemos mui- muitas outras misérias. Ainda mais notáveis
tos cristãos voltarem-se contra a filosofia ‘pa- do que as suas concepções sobre a posse de
gã’ (grega) e contra tudo o que aos seus olhos coisas materiais são as suas reflexões sobre a
não era ‘cristão’ 232, vemos neste homem uma sexualidade, que ele inclui no mesmo ideal de
profunda compreensão da interdependência comunidade. Ele partia do princípio de que o
das coisas, o que o impede de considerar o desejo sexual foi querido por Deus, sobretudo
cristianismo uma exclusividade. O já citado com o objectivo de conservação da espécie.
pai da igreja Ireneu escreve com horror que
nos círculos de Carpócrates, ao lado de ima- Aqueles que se tornaram assim, negam, porém, a sua
origem, o relacionamento unificadora. Diz-se ‘quem
gens de Jesus, se encontravam também repre- casa com uma mulher tem-na para si’, enquanto que
sentações de Pitágoras, Platão, Aristóteles e qualquer outro poderia ter relações com ela, tal como
outros. 233 acontece com os restantes seres vivos...
Por isso, devemos considerar as palavras do legislador
Este Carpócrates tinha um filho, Epifânio. O ‘não desejarás’ como algo de ridículo. E ainda mais ri-
dículo é o acrescento ‘algo que é do teu próximo’. Pois
jovem morreu com 17 anos, mas arranjou ma- o mesmo legislador, que deu o desejo aos homens para
neira de nos deixar da sua juventude um escri- que este mantivesse os nascimentos, viria agora orde-
to extremamente adulto com o título Sobre a nar aos homens que eliminassem esse desejo, embora
justiça. Embora o próprio escrito se tenha per- não o tivesse retirado a nenhum animal. E ainda mais
dido, ou, como quase todos os escritos não bí- ridículo teria sido se tivesse realmente dito ‘(não dese-
jarás) a mulher do teu próximo’, pois então ordenaria
blicos, tenha sido destruído pela igreja (sobre- que se transformasse em posse privada o que é posse
tudo no século IV), encontramos pessagens comunitária. 235
dele em Clemente de Alexandria. Este cita:
O precocemente falecido Epifânio viveu nu-
A justiça de Deus é uma comunidade em igualdade. ma época em que se manifestou cada vez
Pois o céu, que forma uma abóbada igual em todas as
direcções, rodeia toda a terra e a noite mostra de ma-
mais o campo de tensão entre cristãos que
aceitavam a matéria como uma forma em que
231 se manifestavam – sem nela se perderem – e
Lc. 12:58-59. Ver também Mt. 5:25-26.
232
Ver, por exemplo, a exclamação de Tertuliano na outros que escolhiam a ascese como caminho
De praescriptio Haereticorum (de aqui em diante cha-
mada De Praes.) 7.9: ‘O que é que Atenas tem a ver
234
com Jerusalém?’ Stromateis, II.20,113-114.
233 235
Adv. Haer. I.25,6. Stromateis, III.8,2;9,3.
para imitar Jesus. Podemos reconhecer clara- Cirene, que tinha sido pressionado para carre-
mente esse campo de tensão nos ensinamen- gar a cruz. 239
tos de Basilides e dos seus seguidores. Esta (suposta) especulação está longe de care-
cer de importância, porque segundo os relatos
Basilides actuou como instrutor em Alexan- dos Padres da Igreja existiram nos primeiros
dria por volta de 132-135 depois de Cristo. séculos pessoas que faziam afirmações seme-
Lamentavelmente, não se conservaram dele lhantes e são conhecidos escritos que também
quaisquer escritos; apenas citações de alguns apontam nesta direcção. A maior parte deles é
Padres da Igreja. E estes contradizem-se designada por docetista (de dokéo = aparên-
bastante entre si. Segundo o seu conterrâneo cia), porque se baseiam num Cristo-aparente
mais tardio Clemente, Basilides teria sido que teria sofrido na cruz. O verdadeiro Cristo
ensinado por Glaucias (o intérprete de Pedro) teria estado livre de sofrimento.
e estaria por isso de posse da tradição O que é claro é que essas pessoas começavam
apostólica 236, enquanto que um ainda mais a perder a noção da relação entre o homem Je-
tardio (anti)bispo de Roma, Hipólito, que tem sus de Nazaré e a Força de Cristo pré-existen-
em seu nome algumas obras cortantes contra te. O homem Jesus de Nazaré sofrera na cruz.
os herejes, comunica que Basilides, e o seu Mas se se identifica esse homem com Cristo,
filho Isidoro, afirmavam ter recebido ou com Deus, as coisas complicam-se. Cristo
ensinamentos secretos de Matias, o apóstolo não pode ser (fisicamente) crucificado. O Es-
que mais tarde foi nomeado sucessor do pírito não pode ser crucificado; por enorme
suicida Judas. 237 Neste Hipólito de Roma que seja o esforço de alguns que alguns fazem
encontramos uma descrição detalhada das para que esse seja o caso. Mas os homens cru-
concepções de Basilides sobre os ciclos cificam-se a si mesmos, como Jesus expres-
cósmicos, nas quais chama a atenção que essa sou uma vez:
profunda explicação decorre em imagens que
fazem pensar na maneira de pensar oriental Quem blasfema contra o Pai será perdoado;
mais do que na ocidental. Pois na visão de e qum blasfema contra o Filho será perdoado;
Basilides, o Deus não existente produz um mas quem blasfema contra o Espírito Santo
não será perdoado
ovo mundial, a partir do qual tudo foi feito nem na terra nem no céu. 240
Ser. 238
À medida que se perdia a noção de que o ho-
Em Ireneu de Lyon encontramos outras ênfa- mem Jesus de Nazaré fora iluminado pela
ses dos ensinamentos de Basilides que, por consciência-Cristo divina, ia-se tendo cada
vezes, se afastam bastante do que Hipólito e vez mais dificuldades com a história da cruci-
Clemente relatam sobre eles. Segundo este pai ficação.
da igreja retirado para França, Basilides afir- É naturalmente possível que os Padres da
mava que do Pai incriado emanou a Consciên- Igreja que transmitem estas expressões – ou
cia, e dessa Consciência emanou o Lógos, a autores posteriores de outros escritos cristãos
Palavra. Na descrição do padrão cósmico, ele do mesmo género – lhes dessem uma forma
chega a 365 céus, de onde teriam defluído os concordante com a sua própria
365 dias. incompreensão. Pois, enquanto que em Ireneu
O Pai enviou à terra o seu Filho primogénito encontramos esta história, vemos Hipólito
Consciência, chamado Cristo, para inverter a relatar que Basilides era de opinião de que o
degeneração do homem. que tinha sofrido na cruz era a parte corporal
Segundo Ireneu, Basilides teria então chegado de Jesus. 241 E em Clemente lemos que
à notável tese de que esta Consciência, este Basilides e os seus discípulos celebravam
Cristo, não podia ter sofrido na cruz; em seu plenamente a festa do baptismo (no Jordão) e
lugar teria passado pelo sofrimento Simão de o faziam a 6 de Janeiro (Epifania). Mas

236 239
Stromateis, VII.17. Adv. Haer. I.24,4.
237 240
Refutatio, VII.20,1. EvT. 44.
238 241
Refutatio, VII.21-26. Refutatio, VII.27,10.
também comemoravam o sofrimento de Je- der o teu auto-domínio. Uma alma que se debate assim
sus! 242 fica dividida e perde a esperança. 247
Tal como Carpócrates, Basilides parte do ci-
clo da reencarnação e do facto de que toda a Segundo Clemente, o filho de Basilides, Isi-
alma que pecou numa vida anterior sofrerá doro, concordava com isto e juntava o conse-
castigo por isso; lho:

... os eleitos de uma maneira honrosa pelo martírio, Num tal caso, une-te a uma mulher livre (algumas tra-
mas os outros de maneira a que o castigo que lhe cor- duções dizem ‘por que se pode lutar’, outras ‘amiga de
responde o purifique. 243 discussões’), para que não sejas retirado da graça de
Deus. E depois de teres apagado o fogo pelo derrama-
mento da semente, ora com uma boa consciência. Mas
O que é notável nesta passagem é que Cle- se a tua oração de graças se transformar numa prece
mente refuta esta tese no que diz respeito ao não para fazer o bem mas simplesmente para não cair,
martírio mas não no que se refere à reencarna- então é melhor casares-te.
ção. Na época de Clemente (cerca de 200 Mesmo que seja um homem jovem, pobre ou fraco que
não se queira casar devido a considerações racionais,
d.C.) ela era ainda um dado geralmente aceite não precisa de se separar dos seus irmãos. Ele dirá:
em determinadas partes da cristandade. ‘Entrei no santuário e nada me pode acontecer.’ E se
não estiver seguro do que faz pedirá: ‘Irmão, impõe-me
Em relação ao campo de tensão entre liberda- as mãos para que eu não peque.’ E então receberá auxí-
de e ascese anteriormente referido, no qual lio interior e exterior. Ele terá vontade apenas de fazer
o bem e consegui-lo-á. Não poucas vezes confessamos
aparecia repetidamente a pergunta que os dis- com a boca que não queremos pecar, mas trazemos o
cípulos fizeram a Jesus: pecado connosco nos nossos pensamentos. Tais pes-
soas não pecam por respeito, não, não pecam para não
Não é melhor casar? 244 sofrerem castigo. Mas pertence à existência humana o
que é necessário e o que é natural; e também o que é
e sobre a qual já Paulo dizia: apenas natural. Necessário e natural é que nos vista-
mos; natural mas não forçosamente necessário é a rela-
ção sexual. 248
É melhor casar do que arder de desejo 245

A sexualidade em si (ainda) não é vista como


dão testemunho Basilides e os seus discípulos
má. Mas podia-se passar sem ela. Uma liga-
quando tentam explicar a história de Jesus so-
ção matrimonial provoca, além de ligações
bre os eunucos 246:
morais, também ligações práticas que fazem
Quando os apóstolos perguntaram se era melhor não
com que se dê menor dedicação ao crescimen-
casar, o Senhor respondeu: ‘Nem todos compreendem to espiritual. Mais tarde usaram-se estas ra-
estas palavras. Há diferentes (espécies de) eunucos: al- zões na igreja católica romana para instituir o
guns são de nascimento, outros são-no por obrigação.’ celibato: em primeiro lugar por razões de or-
... Alguns (homens) têm desde o nascimento uma aver- dem prática. Mais à frente neste capítulo, vol-
são natural à mulher; fazem bem em seguir essa incli-
nação e não casar. São os eunucos de nascimento.
tarei ao aparecimento da ascese e à rigorosa
Há-os também que o são por obrigação; são ascetas ac- prática que dela fizeram os encratitas.
tores que compensam o seu auto-domínio com a noto-
riedade que ganham com ele. São eunucos por obriga- Isidoro, que escreveu uma obra abrangente
ção, não são eunucos por reflexão espiritual. sobre ética, de que lamentavelmente conhece-
Porém, os que se fizeram eunucos por causa do Reino
fizeram-no por causa dos inconvenientes que o casa-
mos apenas alguns fragmentos contidos na li-
mento traz consigo: receiam as actuações que cuidar da teratura dos Padres da Igreja, dá uma grande
manutenção (da família) traz consigo. ênfase à auto-responsabilidade do homem. O
Por ‘é melhor casar do que arder (de desejo)’ o apósto- conhecimento das inter-relações cósmicas e
lo queria dizer: não lances a tua alma no fogo se encon- do caminho que a alma segue para se encarnar
tras resistência dia e noite e estás sempre a recear per-
não exonera de modo algum o homem da sua
auto-actividade, afirma este mestre cristão:
242
Stromateis, I.21,146.
243
Stromateis, IV.12,83.
244 247
Mt. 19:10. Stromateis, III.1,1-2.
245 248
1 Cor. 7:9. Isidores, Over Ethiek, citado em Stromateis III.1,2-
246
Mt. 19:11-12. 3.
antigo com profundos trabalhos realizados em
Com efeito, se desses a alguém uma prova de que a al- Alexandria. E alguns decénios mais tarde, a
ma não é simples e que as paixões pelas coisas meno- mesma Alexandria seria o cadinho onde se
res surgem pela pressão dos apegos (dessa mesma al-
ma), isso daria ao homem mau ocasião mais do que
formou uma das mais importantes correntes
fortuita para dizer: fui obrigado, fui arrastado, fi-lo filosófico(-religiosas) de todos os tempos, o
contra a minha vontade, fi-lo sem o querer fazer; em- neo-platonismo.
bora fosse ele o guia do desejo do mal e não tivesse lu- E contudo, Alexandria não se tornaria o lugar
tado contra a pressão dos apegos. mais importante da cristandade; e Jerusalém,
Devemos antes constatar que, devido a que a faculdade
racional se tornou mais forte em nós, temos poder so-
a cidade capital do país onde tudo tinha come-
bre a criação inferior em nós mesmos. 249 çado e onde Jesus foi julgado e crucificado,
também não. Sê-lo-ia Roma, a capital do
Talvez ele estivesse aqui a reagir a críticas de imenso Império Romano.
cristãos mais legalistas que frequentemente e É verdade que o bispo de Roma ainda não ti-
sem qualquer razão censuravam a outros cris- nha o primado de toda a cristandade, isso
tãos, que ainda possuíam gnose, uma atitude aconteceu em data muito posterior, mas ‘Ro-
de vida fácil. A fé era cada vez mais mutilada ma’ tinha alguma coisa a dizer, como se vê
em autoridade, o que fazia a espiritualidade pela autoridade do bispo Clemente que não
criativa ficar cada vez mais em maus lençóis. desdenhou imiscuir-se numa disputa local da
O seu pai, Basilides, reconheceu isto muito distante Corinto. A cidade eterna tinha ganho
bem ao afirmar que acreditar apenas pela au- parte desse estatuto devido a histórias insis-
toridade empobrece o homem. Todos podem, tentes sobre o martírio que tanto Pedro como
ensinava ele, conhecer Deus naturalmente pe- Paulo aí teriam sofrido. Mas penso que o fac-
la fé. 250 A parte mais sublime da fé é a intui- to de Roma ser o centro do poder político do
ção, um verdadeiro reino, algo que é digno de Império – era lá que as coisas aconteciam, era
ser uno com o criador. lá que as decisões eram tomadas – contribuíu
também mais ou menos subrepticiamente para
A fé é riqueza, não autoridade. o papel bastante proeminente que essa comu-
É a causa, a natureza, a fonte; nidade desempenhava na cristandade do sécu-
é de uma beleza indefinível lo II.
e de uma criação inalcançada. 251
Quando se lê em Ireneu que uma certa Marce-
lina transmitia em Roma o ensinamento de
Carpócrates ‘sob Aniceto’ 253, ela é apenas
Há muitos caminhos que vão dar uma dos muitos que, nessa época, estavam es-
a Roma piritualmente activos nessa cidade cosmopoli-
ta. Na lista de papas pode ver-se que Aniceto
Basilides e Isidoro tinham a sua escola na ci- foi bispo de Roma (o papado como o conhe-
dade egípcia de Alexandria. Era a cidade onde cemos posteriormente ainda não existia) de
se reuniam grupos de pessoas para adorar 155 a 166 d.C.. Sucedeu a Pio Confessor, que
Hermes Trismegistos, cujas revelações consti- tinha desempenhado o cargo desde 140 d.C.
tuíam inspiração para uma organização tal da Esse Pio Confessor fora escolhido com base
vida que era possível ser-se iniciado nos san- nos seus méritos na revolta dos cristãos contra
tos mistérios do eterno e imutável conheci- intoleráveis intromissões dos romanos. Outro
mento da verdade. 252 candidato ao bispado tinha sido então o místi-
Grandes mestres cristãos, como Valentino, co Valentino.
Clemente e Orígenes assombrariam o mundo Durante o mandato deste Pio, que tinha um ir-
mão, Hermas, geralmente considerado o autor
249
Stromateis II.20,113-114. de um escrito apocalíptico chamado Pastor,
250
Fé no sentido de ‘confiança’. A palavra grega pistis estiveram em Roma não só o já mencionado
dá plenamente espaço para esta tradução. A palavra ho- Valentino, mas também Marcião – que, pro-
landesa ‘geloof’ (= fé) tem um significado algo menos
lato. vavelmente ao mesmo tempo que Valentino,
251
Stromateis V.1,3.
252
Sobre Hermes Trismegistos, ver pág. 113 e seguin-
253
tes. Adv. Haer. I.25,6.
foi expulso da igreja por este Pio 254 – conjun- vezes de modo muito indirecto) teria, por
tamente com Justino Mártir. Três homens de ignorância, feito surgir o caos, ao qual foi
peso, cada um com o seu passado. A colorida atribuído um regente, o demiurgo. É também
história destes três homens, que casualmente notável que até mais ou menos esta época, a
estiveram mais ou menos ao mesmo tempo época em que Marcião, Valentino e Justino
em Roma, pode ver-se como era variado o viveram em Roma, esse demiurgo quase nun-
pensamento cristão sobre determinados assun- ca foi identificado com o Deus do Antigo
tos. Não havia ainda, de modo algum, uma Testamento, Jahveh. Depois desta época, po-
doutrina fixada por escrito. rém, essa identificação tornar-se-á constante.
A crença num Deus estranho, que é estranho à
Marcião nasceu por volta de 85 em Sinope, no criação e a tudo o que provém dela, portanto
Mar Negro, filho de um bispo. Na sua quali- também ao homem (!), é um ponto central do
dade de armador, era bastante abastado, como pensamento de Marcião. Não é sem razão que
se vê pela grande soma em dinheiro que ofe- Adolf von Harnack deu ao seu cativante estu-
receu à comunidade cristã de Roma, cidade do sobre Marcião o subtítulo de Das Evange-
onde se estabeleceu. Esta oferta foi-lhe devol- lium vom fremden Gott. Ora esse Deus estra-
vida mais tarde, quando foi expulso da igreja nho era o Pai de Jesus Cristo.
em 144 devido a ideias desviantes.
Depois de Simão Mago, Marcião era conside- À pergunta sobre de que é que Crito nos libertou – dos
rado o maior arqui-herege e designações co- demónios, da morte, do pecado, da carne – Marcião dá
uma resposta radical: libertou-nos do mundo e do seu
mo ‘trombeta do diabo’, ‘fera devoradora’ e deus, para fazer de nós filhos de um Deus novo e estra-
‘boca cheia de impiedade’ encontram-se na nho. 256
boca dos seus oponentes. Segundo Hans
Jonas foi o desafio representado por Marcião, Uma vez que quer esse Deus estranho quer o
muito mais do que o pensamento gnóstico, seu filho Cristo não têm qualquer relação com
que levou ao credo ortodoxo. 255 os homens, a salvação desenrola-se, não como
uma espécie de ‘Wiedergutmachung’, como
O que havia de tão desviante em Marcião? O pode acontecer nas especulações gnósticas,
que é notável é o seu firme dualismo. Para mas por pura bondade. Neste sentido,
ele, o Deus bom, incognoscível, que ele desi- Marcião fala de uma ‘graça livremente conce-
gna por ‘Deus estranho’, está completamente dida’.
separado do Deus criador, do demiurgo, a que Partindo deste ponto de vista, ele ensina que o
ele chama deus justo. homem, no caminho que tem de seguir para
Não há qualquer interacção entre o Deus es- ser salvo, para poder alcançar esse Deus estra-
tranho, o Deus do evangelho, e o deus criador, nho, tem de negar tudo o que vem do deus
o deus da lei. criador, o que na prática significa uma ascese
Isto é notável, porque em praticamente todas rigorosa. Ou, tal como Clemente expressou:
as especulações gnósticas, o deus criador, o
demiurgo, é considerado um derivado (lon- Como acto de oposição ao demiurgo, Marcião condena
gínquo) do Deus desconhecido. Na maioria o uso das coisas que são deste mundo. 257
dos casos, diz-se simbolicamente que na peri-
feria exterior do pleroma (a plenitude divina) Na prática de todos os dias, isso vinha a dar
uma força provinda dele e através dele (por num múltiplo jejum, na abjuração do uso de
carne e de vinho e na abstinência sexual. Esta
254 última sobretudo para não engendrar descen-
Ver, entre outros, G. Quispel, ‘De vrouw in de Gno-
sis’ em G. Quispel (coord.), Gnosis, 79. Nem todas as dentes que se veriam cativos no mundo do de-
fontes são concordantes sobre este ponto. Existe um miurgo. Uma concepção que encontraremos
grande consenso sobre a expulsão de Marcião; é incer- mais tarde bem viva nos maniqueus. Jonas
to se esse foi também o caso de Valentino, pois apenas notou que
Tertuliano o afirma. O que é certo é que Valentino foi
considerado um herege, cujas ideias desviantes eram
256
consideradas perigosas por alguns (por exemplo, Ire- A. von Harnack, Marcion, Das Evangelium vom
neu). fremden Gott, 31.
255 257
Hans Jonas, The Gnostic Religion, 137. Stromateis, III.4,25
Testamento. Mas a sua fixação não ocorreria,
neste sentido, a ascese é uma questão, não de ética, como já afirmei anteriormente, antes do sécu-
mas de metafísica. 258 lo IV.
Tendo em mente o dualismo e o docetismo,
Não espanta que, com este absoluto desprezo foi formulada uma prudente profissão de fé
pelo que é material, Jesus fosse aos olhos de (credo) que, porém, também ela só no século
Marcião um ser ‘sobrenatural’ que nunca vi- IV foi sancionada e se tornou geral.
veu num corpo constituído por matéria. Por
essa razão, Marcião provavelmente retirou do O que escapou a muitos teólogos e a outros
evangelho o relato do nascimento. Além dis- investigadores foi que Marcião, visto por qua-
so, o evangelho de Marcião era de uma gran- se todos como hereje e por muitos, errada-
de simplicidade. As escrituras do Antigo Tes- mente, também como gnóstico, com o seu for-
tamento foram por ele simplesmente rejeita- te dualismo, deu à igreja algo que a viria a
das, porque não acreditava em explicações distinguir das correntes espirituais e que, até
alegóricas. Retirando essas explicações alegó- aos dias de hoje, tem constituído uma linha de
ricas, não se descortinava nada que tivesse al- separação clara entre a igreja (quer a católica
guma relação com Jesus; e era a figura de Je- quer as igrejas da reforma) e os movimentos
sus Cristo que devia ocupar o centro. O único de orientação religioso-espiritual: a negação
apóstolo que, aos seus olhos, tinha compreen- do Deus imanente. Em essência, a igreja ainda
dido bem Jesus, era Paulo. Além do Evange- usa o conceito de ‘Deus estranho’, pois, se-
lho segundo Lucas, Marcião reconhecia como gundo a teologia corrente, Deus não é cognos-
Escrituras Sagradas apenas dez cartas de Pau- cível em nós mesmos, é uma potência fora de
lo e isso apenas após uma ‘correcção’ radical nós. Deus é visto como ‘o outro’, como o
em que se apagavam todos os elementos ju- ‘Vós’, um Deus pessoal com que o homem se
daicos. pode relacionar. Mas é uma relação que é
Tudo isto acabou por ser demais para a comu- sempre sustentada pela graça de Deus. Os
nidade cristã de Roma. Tais declarações não cristãos espirituais, pelo contrário, sentiram
se enquadravam no pensamento linear de Pio sempre ao longo dos séculos que Deus é da
Confessor e de muitos outros membros da co- mesma essência que o homem. Que deus está
munidade. Marcião foi expulso da igreja. em tudo. Que Deus faz parte da unidade de
todas as coisas, é a unidade! Deus está presen-
Mais do que outros até então, Marcião esti- te em cada homem. Deus é o núcleo mais pro-
mulou a cristandade aterrorizada a uma for- fundo do homem. Conhecendo-se a si mesmo,
mulação mais rígida das verdades da fé. Tinha o homem aprende a conhecer Deus. Foi isto
de ser erguida uma barragem contra quatro que Jesus afirmou repetidamente. Lia-se já no
‘heresias’ confessadas por Marcião. Primeiro, Evangelho segundo Tomé:
o seu forte dualismo, a sua doutrina dos dois
deuses. Depois, o seu docetismo, a sua ideia Jesus disse:
da corporalidade aparente de Jesus. O seu as- ‘Quem (pensa) conhecer o Todo
cetismo foi-lhe um pouco menos criticado, mas não a si mesmo
pois como já vimos, este estava-se a tornar está totalmente em pobreza’. 259
uma corrente subterrânea mais ou menos re-
gular no cristianismo do século II. Para termi- No Livro de Tomé o Batalhador, jesus tem
nar, atacaram-no por causa da interpretação uma longa e penetrante conversa com Tomé e
da boa nova. A rejeição do Antigo Testamen- diz-lhe:
to não pôde encontrar misericórdia aos olhos
Quem não se conheceu a si mesmo, não conheceu na-
da jovem igreja e o seu evangelho foi consi- da. Mas quem se conheceu a si mesmo adquiriu tam-
derado demasiado limitado. Este último pon- bém conhecimento sobre as profundezas do Todo. 260
to, sobretudo, foi um sinal para a formação de
um cânone, de uma lista de escrituras ‘inspi- 259
radas’, que, em conjunto, formariam o Novo EvT. 67.
260
Het Boek van Thomas, CNH II,7, trad. de J.
Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de Nag
258
The Gnostic Religion, 144. Hammadi I, 219.
imperador ou o próprio imperador. Quando
E no Livro Maniqueu de Salmos Jesus diz: muito, podiam ser leais à autoridade imperial.
Como foi dito, as perseguições tinham lugar
Bem-aventurados os que conhecem a sua própria al- sobretudo a nível regional. Só algumas vezes
ma. 261 foi questão de perseguições dirigidas pelo po-
der central, como aconteceu sob os imperado-
É portanto bastante paradoxal que o hereje res Décio (249-251) e Diocleciano (284-305),
Marcião, que foi expulso da igreja por causa e de que resultaram queimas maciças de li-
das suas concepções dualistas, tenha, em es- vros. Mesmo a perseguição de Nero, sobre
sência, fortalecido o dualismo no jovem cris- que Tácito nos informa 263, foi limitada à cida-
tianismo. Algo que deixou rastos profundos de de Roma e aos seus arredores imediatos.
até aos nossos dias. Plínio, que no princípio do século II era go-
vernador da Bitínia, na Ásia Menor, pergun-
tou numa carta ao imperador Trajano como é
Sobre um mártir e um místico que havia de lidar com os cristãos. A resposta
do imperador foi interessante:
Justino Mártir foi o principal apologeta. Este
termo vem de apologia: escrito defensivo. Os Caro Secundus, agiste de maneira correcta na investi-
cristãos eram regularmente perseguidos; pri- gação judicial relativa àqueles que foram trazidos pe-
rante ti como cristãos. Com efeito, é impossível estabe-
meiro pelos judeus, de que resultaram sobre-
lecer aqui regras de validade geral. Não se deve procu-
tudo os martírios de Tiago, irmão de Jesus, e rá-los; mas se forem trazidos e a sua culpa demonstra-
de certeza também de Estêvão, o primeiro da, devem ser castigados, com a ressalva de que os
mártir cristão, mais tarde pelos romanos. Es- que negam ser cristãos e o demonstram por actos – o
tas perseguições eram quase sempre locais e que significa orar aos nossos deuses – devem ser tidos
em consideração para o perdão devido ao seu arrepen-
de modo algum contínuas. A principal censu-
dimento, mesmo que o seu passado continue a ser sus-
ra dos romanos contra os cristãos era estes co- peito. Em nenhum caso se deve dar seguimento a de-
locarem-se fora da sociedade por não partici- núncias anónimas por escrito. Pois isso constituiria um
parem no culto aos deuses romanos nem, na precedente péssimo e é indigno da nossa época. 264
maior parte das vezes, nos jogos sangren-
tos. 262 O que é irónico é que eles lá foram fre- Assim, por volta da primeira viragem do sé-
quentemente sacrificados às feras. A substi- culo, vemos cristãos bem instruídos compo-
tuição do serviço e do sacrifício aos deuses rem escritos defensivos (apologias) para mos-
pelo serviço ao imperador na qualidade de go- trar que eram cidadãos leais, que não eram
vernante divino e de pontifex maximus, su- culpados de comer crianças –como os roma-
mo-sacerdote, significou para a maior parte nos acreditavam – e de cometer orgias sexuais
dos cristãos um grande dilema. Eles tinham maciças – de que eram por vezes acusados – e
um Deus, aos seus olhos o único Deus verda- que eram pelo contrário muito pacíficos e
deiro, portanto não podiam adorar o deus do mansos. A Carta a Diogneto 265, que é geral-
mente atribuída a Justino, e as apologias do
próprio mártir, são bons exemplos desses es-
261
Evangelho de Tomé, XIII. Utilizamos a tradução critos defensivos.
que figura em Schneemelcher I, 322.
262
Peter Lampe e Ulrich Luz afirmam no seu estudo Justino nasceu cerca de 105 d.C. na Samaria.
‘Nachpaulinisches Christentum und pagane Gesell- Não era de ascendência judaica, os seus pais
schaft’ em Jürgen Becker e outros, Die Anfänge des tinham-se estabelecido aí durante o reinado de
Christentums (201) que, com o seu comportamento al-
tivo, os cristãos evocavam frequentemente atritos com Tito (79-81 d.C.). Justino estudou filosofia e
o mundo que os rodeava, que eles apodavam de irre-
freado, bêbedo, mau, ignorante, erróneo e escandaloso;
263
‘com isso, era mostrado com intensidade viviam Tacitus, Annales 15,44.
264
melhor do que os que os rodeavam do ponto de vista Plinius, Epistulae 10,97. A tradução é de G. J. M.
moral. Será, então, de espantar que os pagãos se Bartelink, Het vroege christendom en de antieke cul-
sentissem "odiados" quando confrontados com esta tuur, 152.
265
atitude? Aan Diognetus, em A. F. J. Klijn, Apostolische
’ Vaders II, 83-113.
sentiu-se inicialmente muito atraído pela filo- tão livres de castigo. Por um lado, ele deixa
sofia dos estóicos, depois mais pela de Aristó- ainda a porta aberta à transmigração das al-
teles, mais tarde ainda pela de Pitágoras. Com mas – referindo-se sobre isso a Pitágoras e
a passagem do tempo, acabou por pensar que Empédocles, ambos convencidos da reencar-
tudo se encontrava em Platão... até ter sido nação 271 – por outro lado, Justino parte do
agarrado pelos cristãos. A sua conversão deu- princípio de que ‘voltaremos a adquirir os
se por volta de 130 d.C., provavelmente na ci- nossos corpos mortos e lançados à terra’. 272
dade de Éfeso. Durante anos viajou como pro- Este último ponto de vista ganhou cada vez
fessor, mas cerca de 140 fixou-se em Roma. mais terreno na jovem igreja. Esta concepção
Nessa cidade morreu foi martirizado pela es- talvez se enraíze na crença farisaica da ressur-
pada em 166, como se pode ler numa acta de reição do corpo. 273 Depois da morte, as almas
martírio de confiança. 266 ficam chegam a uma espécie de sala de espera
Em oposição a Marcião, a quem se opõe ar- que pode variar entre o fogo devorador (o in-
dentemente, Justino vê o Deus transcendente ferno) e a bem-aventurança (o céu), onde fi-
também como criador, como Pai, do universo; cam até ao dia do juízo, quando o Cristo re-
embora a designação de Pai não queira dizer gressado separará definitivamente os bons dos
que Deus seja designável. maus no juízo final.

Pois o Pai e Senhor inominável do universo nunca se A primeira apologia de Justino dá informação
dirigiu a nenhum lugar, ele não anda, não dorme, per- valiosa a respeito da liturgia. No Didaché (ou
manece no seu próprio lugar, seja ele onde for. No pró-
prio instante, Ele vê e ouve tudo, embora não tenha
O ensinamento dos doze apóstolos) vemos de-
olhos nem ouvidos. O seu poder é indescritivelmente senrolar-se a eucaristia do seguinte modo: pri-
grande. Ele sabe tudo e nada escapa à sua percepção. meiro, há a bênção do pão e do vinho, depois
Não está limitado a um lugarzinho no vasto universo, a comunhão, depois a acção e graças (= euca-
pois já existia antes de o mundo ser criado. 267 ristia), após o que tem lugar uma refeição co-
munitária.
Justino reconhece a pré-existência de Cristo Um bom século e meio depois, vemos em
ao escrever na sua segunda Apologia: Justino que a refeição comunitária tinha sido
abolida. As reuniões começam com um servi-
O seu Filho, o único que pode ser chamado Filho na
acepção própria da palavra, o Lógos que tinha sido en-
ço verbal, em que um leitor lê passagens do
gendrado e estava com Ele antes das criaturas, quando evangelho ou recita palavras dos profetas (não
Ele criou e ordenou tudo no princípio, é chamado Cris- os profetas do Antigo Testamento, mas pes-
to porque foi ungido e Deus ordenou tudo através soas que falam a partir do Espírito), após o
Dele. 268 que quem dirige o serviço faz um sermão de
palavras edificantes (quase sempre respeitante
Encontramos em Justino também tratados so- à ética dos cristãos). Segue-se uma oração co-
bre a alma humana. Ele parte do princípio de munitária e depois a celebração da eucaristia:
que ‘as almas continuam sujeitas à percepção a acção de graças sobre o pão e o vinho. Se-
depois da morte’ 269, no que supõe que sobre- gue-se ainda uma comunhão e, para terminar,
tudo ‘as almas dos injustos possuem cons- dádivas materiais (usadas para manutenção
ciência depois da morte e podem assim ser dos necessitados).
castigadas’ 270; as almas dos homens bons es- A refeição comunitária de amor, o Agápē, ti-
266
nha já então terminado.
Ver ‘Het martelaarschap van de heilige Justinus,
Chariton, Charito, Euelpistus, Hierax, Paeon, Liberia-
271
nus, en hun gemeente’ em J. M. Bremmer e J. den Apol. I.18,3.
272
Boeft, Martelaren van de oude kerk, 27-32. Apol. I.18,6.
267 273
Justinus, Dialoog met Trypho 127. O texto holandês Rudolf Bultmann afirma na Das Urchristentum im
deste e de outros fragmentos dos escritos de Justino Rahmen der antike Religionen (42) que as concepções
que se seguirão foi retirado de G. J. M. Bartelink, Twee sobre a imortalidade da alma não se encontram no An-
apologeten uit het vroege christendom; Justinus en tigo Testamento e se introduziram mais tarde no judaís-
Athenagoras. mo helenístico por via dos gregos e que as concepções
268
Apol. II.6,3. do judaísmo palestino sobre a ressurreição da carne
269
Apol. I.18,3. provêm da religião iraniana; essas concepções apare-
270
Apol. I.20,4. cem apenas esporadicamente no Antigo Testamento.
racional do que Jesus teria dito e querido
De um carácter totalmente diferente do de dizer, recorrendo-se sobretudo às cartas de
Justino é o egípcio Valentino, que nasceu cer- Paulo transformadas em escrituras.
ca de 100 depois de Cristo e teve uma educa- E era exactamente desta íntima experiência de
ção filosófica em Alexandria. É praticamente Cristo que o ser do místico Valentino estava
certo que ele tomou aí conhecimento das re- impregnado. Ainda muito jovem, contemplou
velações do três vezes grande Hermes (Tris- Cristo numa visão extraordinária. Numa me-
megistos) que estão impregnadas do mesmo ditação, Cristo apareceu-lhe como um recém-
saber universal. Sabemos pouco da sua juven- nascido. E à pergunta de Valentino de quem
tude, mas foi cristão desde cedo. Por volta de era ele, respondeu:
140 d.C. partiu para Roma, onde quase foi
eleito bispo, tendo sido ultrapassado por Pio Sou o Lógos (a Palavra). 276
Confessor 274, que se tinha revelado muito fir-
me na defesa do cristianismo contra os roma- Isto tocou profundamente Valentino. Mais
nos. A acreditar em Tertuliano, foi este Pio tarde escreveria numa carta:
que expulsou da igreja Valentino, conjunta-
mente com Marcião, por heresia. Qual era a Apenas um é bom. O seu acto voluntário de falar é a
manifestação do Filho. E apenas por Ele pode o cora-
‘heresia’ de Valentino? ção purificar-se pois todos os maus espíritos sáo expul-
O professor holandês Gilles Quispel vê aqui o sos do coração. São, com efeito, os maus espíritos que
ponto de viragem na luta pela direcção a dar à nele habitam que não permitem a sua purificação; pra-
igreja. O saber interior, a gnose, perdeu aqui ticamente todos fazem nele as suas próprias acções e se
definitivamente face à reacção, à ortodoxia, conspurcam de todas as maneiras com desejos impuros.
Parece acontecer com o coração mais ou menos o mes-
da igreja que e chamava a si mesma católica mo que a uma estalagem. Esta está com efeito (por
(geral): causa dos animais que lá estão alojados – JS) cheia de
arreios e de chão revolvido, e frequentemente está
A igreja romana tornou-se por reacção católica e auto- cheia de esterco, porque os que lá se alojam está lá de
ritária. 275 maneira descuidada e não têm a mínima preocupação
com o lugar, que é propriedade de outro. Acontece o
Se isto é assim, tem de haver uma causa pro- mesmo com o coração: até que alguém se preocupe
com ele, ele é, na sua impureza, morada de muitos
funda para o facto. Não podemos ver estes demónios. Mas quando visita o coração, o Pai, que é o
acontecimentos senão como consequência de único bom, santifica-o e enche-o de luz. O dono de tal
um processo que já estava em marcha ante- coração é chamado bendito, porque verá Deus. 277
riormente. Tinha de haver já na jovem cristan-
dade uma corrente importante que já não con- Valentino pregava que o homem era imortal
fiava (só) na experiência espiritual interior e por natureza, porque a sua parte espiritual es-
que queria formular a fé em regras e leis, co- tava ligada ao espírito de Deus. Mas isto não
mo era usual também no judaísmo; que queria era válido para todos os homens, afirmava
limitar a liberdade por meio de uma au- Valentino. Havia hílicos, homens materiais,
toridade (central), tal como já se prefigurava que estavam tão ocupados com a matéria e se
no já referido Clemente de roma na sua carta faziam tão dependentes dela e esperavam tan-
aos coríntios, cerca de 96 depois de Cristo. E, to dos seus valores que não eram aptos para a
nessa época, Pio era um expoente deste grupo. vivência de uma vida espiritual. Estes ho-
Já não se tratava pura e simplesmente da mens, afirmava o místico, viviam na realidade
centelha no interior de cada homem que se ao nível dos animais. Deixavam-se sobretudo
inflamava pela ressurreição do ser de Cristo guiar pelos seus impulsos. Ao lado dos
no próprio coração e assim abria uma grande hílicos, havia os psíquicos, os homens-alma.
fonte de amor, tratava-se de uma explicação Esses homens procuravam seriamente a
revelação da fé cristã, mas ainda não tinham a
gnose que lhes permitiria passar além da fé.
274
Os cristãos que não sobreviviam a julgamentos, per- Vivenciavam ainda tudo ao nível da alma,
seguições, interrogatórios e/ou martírios eram honrados
como mártires; os que sobreviviam como confessores.
275 276
G. Quispel, ‘Gnosis als ervaring’ em M. Messing Refutatio VI.42,2-3.
277
(coord.), Religie als levende ervaring, 150. Stromateis IV.20,114.
com todas as emoções e afeições ... Esta é a boa nova
correspondentes. Eram os católicos fiéis Daquele que procuravam,
que, devido à compaixão do Pai,
frequentadores da igreja que tentavam viver foi revelada aos perfeitos:
segundo as prescrições dos dirigentes das suas o mistério oculto,
comunidades. E havia ainda os pneumáticos, Jesus, o Cristo,
os homens de espírito. Esses homens, em através de quem Ele derramou a sua Luz
quem a gnose se tinha instalado, já não sobre aqueles que, devido ao esquecimento,
se encontravam na escuridão.
vivenciavam as verdades eternas apenas ao Ele iluminou-os
nível emocional, tinham-se tornado unos com e mostrou(-lhes) um caminho
a verdade divina, que vibrava no seu próprio e esse caminho é a verdade
ser. Por isso, retirar-se do mundo não era que lhes ensinou.
necessário. Se vós, diz aos seus ouvintes este
Eles eram ignorantes a respeito do Pai
mestre cristão num serviço comunitário, pois não O viam
e isso foi razão para medo
dissolverdes o mundo sem vos dissolverdes a vós mes- e confusão e incerteza
mos, sereis senhores e mestres de toda a criação e da e dúvida e desunião.
corruptibilidade. 278 Por causa disto, muitas ilusões e falsas concepções
ganharam poder sobre eles
Portanto, uma concepção totalmente diferente como se eles estivessem mergulhados em sono (pro-
da do seu contemporâneo Marcião, que colo- fundo)
extraviados em sonhos malignos:
cava Deus fora de si mesmo e via o mundo ou estavam em fuga para algum lado,
material como um produto mau que devia ser ou perseguiam outros
desprezado. O seu ascetismo, que daí decor- e regressavam esgotados,
ria, é diametralmente oposto à atitude de vida ou golpeavam
de Valentino, que pugnava precisamente por ou suportavam golpes,
ou precipitavam-se de grandes alturas
estar no meio do mundo, mas sem estar de- ou eram atirados ao ar
pendente das suas ilusões. Ele diz sobre isso sem terem asas,
literalmente: ou então (parecia que) alguém os tomava de ponta
embora não se visse qualquer perseguidor,
Quem, no mundo, não amou uma mulher e não viveu ou eles mesmos abatiam o seu próximo,
uma união com ela está longe da verdade e também pois eis que estavam manchados com o seu sangue.
não poderá alcançar a verdade. Mas quem é do mundo Mas no momento em que os que passaram por tudo isto
e tem relações corporais também não chegará à verda- acordaram, nada viram
de, porque a sua vida sexual consiste em pura concu- pois todas as confusões em que se encontraram
piscência. 279 eram (na realidade) nada (irrealidade).
Acontece exactamente o mesmo com aqueles
que se desfizeram da ignorância como do sono,
Valentino era um homem iluminado. O puro que não consideram real,
saber fervilhava nele e ele transmitia-o ao seu e também não consideram reais
próximo. É um dos poucos cristãos que no sé- os acontecimentos que nele estavam,
culo II ainda tinha uma compreensão essen- pelo contrário, abandonam-nos na noite
cial da relação entre Deus, o cosmos e o ho- como um (mundo de) sonho.
Eles consideram o conhecimento do Pai
mem e da essência de Jesus, o Cristo. Julga- como a luz da manhã.
mentos e condenações eram por ele deixados Assim, todos agiram como se dormissem
aos pequenos de espírito. Na sua mensagem enquanto eram ignorantes,
expressa-se um amor e uma mansidão infini- e ao ‘alcançarem o conhecimento’
tos. foi como se acordassem.
Feliz do homem que regressará
Numa esplendorosa e profunda meditação, e acordará
cujo texto só foi descoberto neste século por- e abençoado é aquele
que a igreja aguerrida achou necessário ani- que abriu os olhos dos cegos... 280
quilar este ‘desvio’, lemos:

278 280
Stromateis IV.13,89. Evangelho da Verdade, CNH 1,3.Biblioteca de Nag
279
Adv. Haer. I.6,4. Hammadi I.
Valentino, o místico, que na sua juventude co- Em contraposição ao movimento de Marcos,
nheceu a profunda metafísica da da escola de de que se deixa de ouvir falar, os montanistas,
Hermes Trismegistos, que enriqueceu a cris- assim chamados por referência a Montano,
tandade em Alexandria e depois em Roma tiveram uma expansão muito maior e exer-
com as suas cativantes imagens que emana- ceram sobre muitos cristãos uma forte e es-
vam do seu profundo saber interior; esse Va- plendorosa influência. A convicção com que
lentino, em quem a gnose ainda estva presente Montano anunciava que os tempos do fim ti-
de modo tão inspirador e que por isso se tor- nham começado e o regresso de Cristo se da-
nou um perigo para a igreja que se organizava ria no futuro próximo – Montano seria o últi-
cada vez mais rigidamente; esse Valentino, mo representante directo de Deus na terra an-
que foi riscado da história oficial cristã, mas tes desse regresso – satisfazia aparentemente
que ressuscitou de novo neste século, ocupa uma necessidade profundamente sentida de
neste livro um lugar honroso na história da muitos cristãos, que se juntaram ao movimen-
cultura cristã. to. O mais famoso é o perspicaz pai da igreja
Tertuliano.
O facto de Jesus não ter chegado na data esta-
Falar a partir do Espírito e despe- belecida foi atribuído ao comportamento ain-
dida da carne da imperfeito dos seguidores. Montano e as
duas senhoras profetizaram que a ascese devia
Valentino e Marcião foram considerados he- tornar-se mais severa. Os dias de jejum foram
reges. A mesma sorte teve Montano. Este an- aumentados e os viúvos e as viúvas tiveram
tigo sacerdote pagão da Frígia (Ásia Menor) de desistir de um segundo casamento.
começou, depois do seu baptismo cristão, a Não serviu de nada. O movimento, que tinha
falar em línguas (glossolalia). Afirmava falar surgido na segunda metade do século II, exau-
através do Espírito. Ao mesmo tempo, decla- riu-se lentamente no século III, embora no sé-
rava ser o paracleto (consolador) de que Jesus culo VI ainda houvessem grupos de montanis-
tinha falado, numa referência ao Evangelho tas, sobretudo na Ásia Menor.
segundo João. Depois dele, muitos outros rei-
vindicariam esse título (entre eles Mani). A incerteza que os activistas do trio provoca-
Havia duas mulheres que se lhe tinham junto, ram com as suas afirmações divinas proferi-
Priscila e Maximila. Também elas afirmavam das em êxtase com desactivação da consciên-
profetizar pelo Espírito. 281 cia normal, levou os opositores a formular a
No século II, a ‘profissão’ de profeta desem- convicção (segura) de que as revelações te-
penhava ainda uma função, apesar da crescen- riam acabado com a época apostólica (diga-
te oposição de cristãos conservadores. Para mos, com a morte do último apóstolo). Esta
aqueles que desejavam formular e enquadrar a ideia tornou-se geral no século III.
fé em regras, não havia qualquer necessidade Um antigo aluno de Justino, Taciano, ensina-
de novas revelações. va também uma ascese severa. Como vimos,
É notável que a mulher, que na igreja em este cristão da Ásia Menor escreveu uma har-
crescimento era cada vez mais empurrada pa- monização evangélica, chamada diatessaron,
ra segundo plano, dava frequentemente mos- baseada nos quatro evangelhos do Novo Tes-
tras de notáveis dons proféticos. Já vimos que tamento que ele fundiu numa fluente história
Marcos, chamado o ‘mago’, encorajava as única. 282 Aparte este diatessaron e um escrito
mulheres da sua comunidade a profetizarem, intitulado Aos gregos 283 formulado de modo
porque elas estariam mais perto do saber inte- bastante cortante e grosseiro, Taciano é co-
rior do que os homens, devido à sua intuição nhecido sobretudo como o grande propagan-
fortemente desenvolvida.
282
O Prof. Quispel mostrou que este diatessaron está
na base de muitas harmonizações evangélicas que os
missionários anglo-saxões e frísios usaram para
281
Sobre o substrato apocalíptico, ver Karlmann Bey- converter os germanos pagãos da Holanda; G. Quispel,
schlag, Die verborgene Überlieferung von Christus, Het Evangelie van Thomas en de Nederlanden.
283
171-178. Taciano, Oratio ad Graecos.
dista da encrateia, uma forma de ascese rigo- mas o que sair pela vossa boca – isso far-vos-á impu-
rosa. 284 ros. 288
A holandesa Annine Mantz-van der Meer,
mostrou na sua cativante dissertação Op zoek Quanto ao casamento, Jesus é extremamente
naar loutering, na minha opinião de forma positivo. Em Een ander testament, mostrei
convincente, que na vida e nos ensinamentos que o próprio Jesus era casado. 289 É conheci-
de Jesus não se encontra qualquer base para a do que pelo menos um dos seus irmãos era
ascese. Embora fosse pobre por não se aferrar também casado e teve filhos que também ca-
às posses – e ensinasse os seus discípulos a saram. Pois lemos em Eusébio que o impera-
não se tornarem escravos da matéria – Jesus dor Domaciano mandou procurar por volta do
não ensinou a desprezar a matéria. ano 90 d.C. os parentes de Jesus e deu com
Na mais antiga comunidade cristã, a de Jeru- dois netos do seu irmão Judas. O imperador
salém, praticava-se isso por uma comunidade ficou estupefacto ao saber que eles não se ba-
de bens. À luz das passagens dos Actos 285 que nhavam em riquezas e que possuíam apenas
se referem a isto, Annine conclui por meio de ‘trinta e nove medidas de terreno’ que, depois
um exame detalhado das fontes: de deduzidos os impostos, davam à justa para
viverem.
Os membros da comunidade primordial de Jerusalém
continuavam proprietários de bens (imóveis), tais como Depois, como prova de que trabalhavam, mostraram os
terras e casas. Quando a necessidade batia à porta de calos das mãos que se tinham formado pelo trabalho
alguém da comunidade, vendia-se um bocado de terra, contínuo. Interrogados sobre Cristo e o seu reino, como
no caso de Barnabé, um acre. Era necessário dinheiro é que ele era, e onde e quando se manifestaria, respon-
comprar alimentos e outros artigos de primeira necessi- deram que não era do mundo nem terrestre e que era
dade para a comunidade de Jerusalém, também chama- celeste e angelical...
da ‘os pobres’. 286 Domiciano nada tinha contra isto e deixou-os ir livre-
mente, embora os desprezasse como pessoas sim-
ples... 290
Também no que diz respeito à comida e à be-
bida (vinho), não se detecta qualquer forma
Também é conhecido que muitos apóstolos
de ascese na mensagem bíblica, tão alegre so-
eram casados. Clemente de Alexandria comu-
bre este ponto. Jesus é mesmo pintado num
nica-nos que
dos evangelhos como um ‘comilão e beber-
rão’ 287 e ensinava os seus discípulos a não se Pedro e Filipe geraram filhos e Filipe deu as suas filhas
deterem demasiado tempo no que lhes pu- em casamento. E Paulo não desdenhou dirigir-se em
nham à frente: carta à sua mulher... 291

Quando fordes para um país Não assim Taciano, que chama ‘prostituição’
e viajardes pelas terras ao casamento. Esta
e vos receberem:
comei o que vos puserem à frente...
Pois o que entrar pela vossa boca não vos fará impuros, comunidade na corrupção, que desfaz a ligação com
Deus, 292

284
Esta corrente teve uma grande influência sobretudo segundo a sua própria expressão, testemunha-
no cristianismo aramaico e siríaco. Ver, entre outros, va de uma falta de auto-domínio que nos pu-
Peter Brown, Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e nha à mercê de Satan.
a renúncia sexual no início do cristianismo.
285
Act. 2:44-45; 4:34. Segundo os encratitas, a relação sexual era
286
A. Mantz-van der Meer, Op zoek naar loutering, 81. causa e consequência da queda do homem no
287
Mt. 11:19. A tradução do grego oinopotes por ‘be- paraíso. Porém, vivendo virginalmente, o ho-
bedor de vinho’ (traduções da NBG e de Willibrord) é mem tornava-se igual a um anjo, o que abria o
demasiado fraca; na ‘Edição Revista’ da tradução de caminho para um regresso à situação paradi-
Willibrord, é usada a palavra ‘beberrão’. A afirmação
expressa nalguns círculos espirituais deste século de
288
que Jesus não beberia vinho e tomaria apenas sumo de EvT. 14.
289
uva não fermentado é, no máximo, ‘wishfull thinking’; J. Slavenburg, Een ander testament, 74.
290
tanto as fontes bíblicas, como as apócrifas e as gnósti- Eusébio, E. H. III.20,1-5.
291
cas, mesmo os escritos de tendência mais ascética, são Stromateis, III.6,52-53.
292
destituídas de qualquer indicação nesse sentido. Stromateis, III.12,81.
síaca de antes do pecado original. Isto signifi- de se estar abandonado que afectava outros
caria o restabelecimentoda unidade original para além dos cristãos. E. R. Dodds descre-
do homem. As relações exuais, pelo contrário, veu de modo muito penetrante este estado em
poriam o homem sob o regime da morte e tor- Pagan and Christian in an Age of Anxiety.296
ná-lo-iam mortal. E como se desconfiava da matéria e se sentia
uma grande nostalgia do mundo espiritual,
A encrateia era uma forma extrema de asce- onde o homem tinha deixado as suas raízes,
tismo. Mas, sob formas mais leves, encontra- era-se frequentemente negativo em relação às
mos a ascese já entre os primeiros cristãos. coisas do mundo, à matéria; e também negati-
Depois da descoberta dos manuscritos do Mar vo em relação ao corpo. Em muitas especula-
Morto, em Qumran, 1947, opinou-se que isso ções, estes eram produto do desu criador, do
seria uma herança provinda dos Essénios. demiurgo. A centelha divina, que devia ser li-
Mas não devemos perder de vista que apenas bertada, pertencia ao pleroma (plenitude) do
o núcleo mais interior dos Essénios, que habi- desconhecido, do Deus transcendente, e esta-
tava o mosteiro de Qumran (e provavelmente va nele.
também outros mosteiros), vivia de modo ce- Também havia muitos que estavam convenci-
libatário. Fílon diz de uma comunidade de ir- dos de seguir o caminho correcto imitando Je-
mãs essénias, as terapeutas egípcias, que con- sus, que, segundo eles, tinha sido pobre e sol-
sistia num número igual de homens e mulhe- teiro. Não é impensável que, junto a isto, ti-
res que viviam numa espécie de mosteiro du- vesse havido também uma tradição vegetaria-
plo. 293 Havia também Essénios casados em na. 297 É praticamente certo que os Essénios
praticamente todas as cidades e aldeias de al- não comiam carne e sobre Jesus não se conhe-
guma importância. 294 Se juntarmos a isso o cem dados de confiança que permitam afirmar
facto de Jesus não pregar qualquer ascese, es- se comia carne ou não (peixe sim). Neste sé-
ta tese deixa de ser sustentável. culo foi descoberto um manuscrito, o Evange-
Relacionou-se também muito a ascese com a lho da vida perfeita, que em parte se desen-
gnose. 295 E realmente, um certo número de volve paralelamente aos evangelhos nossos
escritos gnósticos, tal como encontrados em conhecidos, mas onde é posta uma forte ênfa-
Nag Hammadi em 1945, tem um sabor ascéti- se no vegetarianismo e no amor aos ani-
co. O ascetismo era popular em alguns agru- mais. 298 Nesse belo evangelho, não se foge à
pamentos; mas não em toda a parte nem em sexualidade, mais fortemente ainda, ele refe-
todos os movimentos com a designação de re, como vimos, a relação entre José e Maria
gnósticos. Vimos exemplos disto em Carpó- de onde Jesus nasceu.
crates e também, de certeza, em Valentino. Todos estes temas foram afastados com de-
Muitos homens dos primeiros séculos da nos- masiada facilidade em séculos posteriores.
sa era sentiam-se como que ‘atirados ao mun-
do’. Sentiam uma espécie de estranheza em
296
relação a este mundo. Isso é muito explicável E. R. Dodds, Pagan and Christian in an Age of An-
a partir do esquema do último capítulo deste xiety.
297
Faltam dados de confiança sobre isto. Clemente de
livro. Cada vez mais separados da consciência Alexandria conta que o apóstolo Mateus não comia
espiritual, de que sentiam uma forte nostalgia, carne, alimentando-se de sementes, frutos secos e legu-
ainda não estavam integrados de maneira sufi- mes. (Paidagogos 2). É frequente relacionar-se o con-
cientemente forte na matéria terrestre para a sumo de carne com o sacrifício de animais, que, como
reconhecerem como uma forma onde se ex- é sabido, foi rejeitado pelos cristãos. Orígenes acredita
que ‘os sacrifícios de animais foram inventados por
pressar plenamente. Isso dava um sentimento pessoas que procuravam pretextos para comer carne’
(De sacrifice 7). Com o crescimento do movimento as-
cético no cristianismo, aumenta também a condenação
293
Fílon de Alexandria, De vita contemplativa, citado do consumo de carne. Crisóstomo chega a chamar-lhe
por Nahum Glatzer (coord.), The Essential Philo, 311- ‘poluição’ (Homiliae in Matthaeum 69). Sobre esta
330. questão, ver também Steven Rosen, Food for the Spirit,
294
Ver J. Slavenburg, Een ander testament, 50. sobretudo 18-29.
295 298
No seu livro Eunuchen voor het hemelrijk, Uta Ran- Ver J. Slavenburg, Een ander testament, 52. Tam-
ke-Heinemann chega ao ponto de identificar ascetismo bém o Evangelho dos Ebionitas transpira uma tradição
e gnose. vegetariana.
ça que os que a martirizavam por turnos de manhã até à
noite de todas as maneiras fraquejaram e desistiram e
admitiram mesmo que estavam derrotados porque já
5. A reacção não sabiam o que haviam de lhe fazer. Espantavam-se
por ela ainda viver apesar de o seu corpo estar quebra-
O bispo de Lyon do e cheio de feridas e testemunhavam que uma única
espécie de tortura era suficiente para acabar com a vida
de uma pessoa, quanto mais as muitas variações aplica-
Nos capítulos anteriores demos regularmente das... Sanctus também suportou extraordinariamente e
atenção, embora de modo fugaz, aos escritos com força sobre-humana todas as torturas que lhe fize-
do pai da igreja Ireneu de Lyon (c. 140-202). ram... Os sem lei esperavam graças à continuidade e à
intensidade dos sofrimentos infligidos ouvir da sua bo-
Ao contrário do que o seu nome faz supôr, es- ca coisas desadequadas... mas a todas as perguntas, ele
te cristão piedoso é originário, não de Lyon, respondeu em latim ‘Sou cristão...’ Isso incitou o go-
mas da Ásia Menor. Daqui, mudou-se para a vernador e os torturadores a tentarem algumas torturas
Gália Oriental (França) onde se tornou presbí- extra e quando não souberam o que haviam de lhe fazer
tero (padre) e suportou com a sua comunidade mais, ataram aos seus mebros mais fracos placas de co-
bre ao rubro. E embora se queimasse, ele permaneceu
as intensas perseguições aos cristãos de Lug- recto e indomável e manteve-se firmemente na sua
dunum (Lyon) e Vienna (Vienne). Embora confissão... Quando alguns dias depois os sem lei vol-
não tivesse passado pelo pior, porque viajou taram a torturar o mártir, estavam convencidos, dados
para Roma a seguir às primeiras os inchaços e as inflamações do seu corpo, que o con-
manifestações de fúria da população local 299 e seguiriam vergar aplicando as mesmas técnicas...
Maturus e Sanctus voltaram a suportar no anfiteatro to-
às prisões subsequentes, a martirização e a da uma escala de torturas, como se anteriormente não
execução de quase cinquenta cristãos, entre os tivessem sofrido nada... O público exigia sobretudo a
quais o bispo, foi um duro golpe para ele. cadeira de ferro. Quando se sentaram nela, o seu corpo
Tal como dissémos ao falar de Justino Mártir, foi assado, o que encheu os espectadores de cheiro a
as perseguições aos cristãos surgiam espalha- esturro... Blandina foi pendurada a um pau e feita isco
para as feras que foram soltas... Mas como nenhum dos
das pelo Império Romano. Salvo algumas ex- animais lhe tocou, tiraram-na do pau e voltaram a levá-
cepções, sobretudo no período entre 250 e la para a prisão onde ficou de reserva para outra luta...
305 d.C., elas foram lideradas por No último dia das lutas de gladiadores, Blandina foi
governantes regionais e não pelo poder trazida de novo, juntamente com Ponticus, um jovem
central de Roma. 300 Aos visados pouco de cerca de quinze anos... Expuseram-nos a todos os
horrores e fizeram-nos passar por um ciclo completo de
importava a diferença. Que elas assumiam às torturas, ao mesmo tempo que tentavam repetidamente,
vezes crueldade inaudita pode ver-se nos mas sem sucesso, obrigá-los a jurar (sobre as imagens
relatos da mencionada perseguição de Lyon e dos deuses). Pois inflamado pela sua irmã em Cristo,
arredores: de modo que os pagãos viam que era ela que o incitava
e encorajava, Ponticus suportou dignamente todas as
... Primeiro, suportaram firmemente (os mártires) o que torturas, após o que entregou o espírito.
a grande massa lhes lançou em profusão: foram despo- A última vítima foi a bem-aventurada Blandina... De-
jados, batidos, arrastados, roubados, apedrejados, fe- pois das chicotadas, depois das feras, depois das assa-
chados e tiveram de suportar tudo o que uma massa po- duras, foi envolvida numa rede e atirada a um touro.
pular em frenesim costuma fazer aos que considera Depois de ter sido algum tempo lançada ao ar pelo ani-
seus adversários e inimigos. Depois, foram levados pa- mal sem se aperceber do que lhe estava a acontecer
ra o forum onde foram interrogados pelo tribuno e pe- graças à esperança com que se agarrava à sua fé e à sua
las autoridades da cidade em presença de toda a massa. relação com Cristo, foi igualmente vitimada. Até os pa-
Depois de terem confessado a sua fé, foram fechados gãos reconheceram que nunca nenhuma mulher tinha
na prisão à espera da vinda do governador provincial. sofrido tanto e tão brutalmente entre eles. 301
Quando foram levados à sua presença, este virou-se
contra nós com toda a crueldade... De um modo que ul- Na horrível perseguição descrita acima perdeu
trapassa tudo, a massa, o governador e os soldados lan- também a vida o bispo de Lyon, Pothinus, e
çaram-se com toda a fúria sobre Sanctus... e sobre Ireneu foi eleito para lhe suceder. Tudo isto
Blandina... Mas Blandina estava preenchida de tal for-
teve lugar cerca de 177 depois de Cristo.
299
Ver W. H. C. Frend, Martyrdom and Persecution in
the Early Church, 5.
300 301
Na igreja paleo-cristã, contavam-se quase sempre Carta sobre a perseguição em Lyon‘Brief over de
dez perseguições ‘centrais’. Ver G. J. D. Aalders, Van vervolging in Lyon’, op. cit. J. N. Bremmer e J. den
huisgemeente tot wereldkerk, sobretudo 23 e seg. Boeft, Martelaren van de oude kerk, 32-51.
O novo bispo satisfez de modo bastante am- A verdade teria sido transmitida, não por escrito mas
plo o pedido de um amigo para que o esclare- por meio da palavra viva... 306
cesse sobre os ‘ensinamentos’ de Valentino e
dos seus seguidores: o pedido desembocou Isso constatava-se também nas diferentes in-
em cinco livros sobre as ‘heresias’ que, aos terpretações das mesmas expressões de Jesus.
olhos deste pastor de almas, tinham aparecido Assim, no quinto livro das suas Refutações
nos primeiros séculos. Até ao achado de Nag dos herejes, o pai da igreja trata da concepção
Hammadi, esses livros, chamados Desmasca- de muitos cristãos espirituais do seu tempo
ramento e refutação da falsamente chamada que viviam na sua época, segundo a qual
gnose (quase sempre designados pelo título Deus não seria um Deus pessoal e muito me-
latino abreviado Adversus Haereses), eram a nos seria um Deus castigador (ou recompen-
fonte mais importante da investigação sobre a sante).
gnose. Mas o próprio título faz já supôr que
Por isso, arranjam um Pai diferente, que não cuida ou
este dignitário cristão não estava primaria- provê das coisas que nos dizem respeito, sim, que con-
mente a publicar um relatório objectivo; a sua corda mesmo com todos os pecados. Com efeito, se o
intenção era ‘não só trazer à luz essas bestas, Pai não condena, ou as coisas não o afectam ou concor-
mas também feri-las por todos os lados’.302 da com tudo o que acontece; se ele não mantém uma
Linguagem cristã decidida. direcção, todas as pessoas seriam iguais e esperar-se-ia
que se encontrassem todas nas mesma posição.
Ireneu partia do princípio de que fora da igre- Também a vinda de Cristo seria, se ele não condena,
ja não havia salvação, um ponto de vista que, desnecessária; sim, mesmo contraditória. Ele veio com
lamentavelmente, é ainda hoje sustentado por efeito lançar o homem contra o seu pai e a filha contra
muitos mestres religiosos. Ao mesmo tempo, a sua mãe e a neta contra a avó 307; e se dois estiverem
invocava no que diz respeito à autoridade da no mesmo leito, para levar um e abandonar o outro 308;
e se dois estiverem no moinho a moer, levar um
igreja, que devia seguir ‘Roma’ 303, a tradição consigo e deixar o outro 309; e para no fim ordenar aos
apostólica. Nos capítulos anteriores pudémos ceifeiros que recolham primeiro as ervas daninhas e as
ver que isto é contestável de todas as manei- enfeixem e queimem num fogo inextinguível, mas
ras. Aliás, muitos cristãos espirituais, que re- juntem o trigo no celeiro 310; e para chamar os cordeiros
jeitavam a autoridade precisamente porque es- ao reino preparado e enviar por seu lado os bodes ao
fogo eterno que o seu Pai preparou 311, 312.
ta não se coadunava com a essência profunda
da mensagem de Jesus – puro amor – tinham
Encontramos a parábola do homem que se le-
nessa época recebido ensinamentos de discí-
vanta contra o seu pai não apenas em Mateus,
pulos de sucessores dos apóstolos.
mas também, numa formulação algo diferen-
Se, segundo Ireneu, a autoridade repousava na
te, no Evangelho de Tomé:
tradição apostólica, a doutrina repousava na
tradição escrita. Mas nos escritos que encon- Jesus disse:
travam graça aos olhos do pai da igreja. E es- ‘Talvez os homens pensem que eu vim
ses eram, em primeiro lugar, os quatro evan- para trazer a paz ao mundo
gelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João).304 e não saibam que eu vim
Pois, assim testemunhava: para trazer a divisão à terra:
fogo, espada e guerra.
Pois haverão cinco numa casa,
Não pode ser que hajam mais, nem menos, evangelhos três estarão contra dois e dois contra três;
do que estes quatro. Como há quatro pontos cardeais... o pai contra o filho e o filho contra o pai,
é de esperar que a igreja tenha também quatro colu- e estarão como indivíduos’. 313
nas. 305

Mas, lamenta-se, segundo os herejes


306
Adv. Haer. III.2,1.
307
Ver Mt. 10:35 e EvT. 16.
308
Ver Lc. 17:34; EvT. 61.
302 309
Adv. Haer. I.39,4. Ver Lc. 17:35.
303 310
Adv. Haer. III.3,2. Ver Mt. 13:30; 3:12.
304 311
Mas também, por exemplo, o Pastor de Hermas; ver Ver Mt. 25:33-41.
312
Adv. Haer. IV.20,2. Adv. Haer. V.26,2-27,1.
305 313
Adv. Haer. III.11,8. EvT 16.
Os cristãos espirituais tomavam esta passa- anjos caídos, os ateus, os injustos, os fora da lei e os
gem como a luta que o homem tem de travar blasfemos entre os homens, e rodeando de magnificên-
cia eterna... os justos, os puros e aqueles que guarda-
no seu interior para chegar à inteireza, à uni- ram os seus mandamentos e perseveraram por ele em
dade. amor. 316

Jesus confrontou o homem com a sua divisão, quando O credo num Deus todo-poderoso, criador do
eles talvez pensassem que ainda estavam bastante
completos. Ele semeia a dúvida, a divisão. E só quando
céu e da terra, e a concepção construída
nós pudermos reconhecer plenamente essa divisão, posteriormente do nascimento de uma virgem
quando tivermos unido em nós o filho e o pai, é que e da ressurreição na carne – pois
poderemos estar como indivíduos. Unos com tudo em
nós e fora de nós. 314 como poderia corromper-se a carne que é alimentada
pelo corpo e pelo sangue do Senhor? 317 –
Também a passagem sobre os dois no mesmo
leito tem paralelo em Tomé: estão já promovidos a verdades da fé cristã. 318
O homem, enquanto composição de corpo, al-
Jesus disse: ma e espírito, mantém-se ainda plenamente de
‘Dois repousarão num leito; pé. 319 E quanto ao desprezo do corpo, como
um morrerá, o outro viverá.’
Salomé disse:
nalgumas correntes ascéticas, nada há dele no
‘Quem és, homem? pai da igreja. Tal como Paulo, Ireneu conside-
Tomaste lugar no meu leito ra o corpo um templo do espírito. 320
e comeste à minha mesa.’
Jesus disse-lhe: A maior parte dos estudiosos da Bíblia viram
‘Sou aquele que é do indiviso;
foram-me dadas as coisas do meu Pai.’
em Ireneu o primeiro teólogo cristão de esta-
Salomé disse-lhe: ‘Sou tua discípula.’ tura. Incitado pelas concepções gnósticas de
Jesus disse-lhe: alguns místicos paleo-cristãos – sobretudo as
‘Por isso te digo, de Valentino e dos seus seguidores – o adver-
se alguém for um estará cheio de luz, sário dos herejes formulou uma doutrina ecle-
mas se estiver dividido
estará cheio de trevas.’ 315
siástica que deveria acabar com o dualismo
aparente dos gnósticos. No processo, as coisas
Não é Deus que castiga, lemos nesta passa- metafísicas foram materializadas. A experiên-
gem, é o próprio homem que se separa da luz. cia de um Deus desconhecido, totalmente
Isto era claramente demais para o nosso bom transcendente, que só é cognoscível através da
Ireneu. Encontramos nele já um grande núme- fusão com o Deus imanente do homem que se
ro de enquadramentos. Os fundamentos da or- esforça pela redenção, foi substituída pelo
todoxia posterior encontram-se já claramente Deus bíblico do Antigo Testamento. Tornou-
nos seus escritos. se assim um Deus pessoal que podia castigar
e condenar, um Deus reconduzido ao nível da
A igreja... recebeu dos apóstolos e dos seus discípulos compreensão humana. Muitos textos dos es-
a fé num Deus, Pai todo-poderoso, que criou o céu e a critos aceites por Ireneu, tais como os quatro
terra e os mares e tudo o que deles faz parte; e num evangelhos do Novo Testamento e as cartas
Cristo Jesus, o filho de Deus, que se tornou carne por de Paulo (naturalmente também as de pseudo-
nós; e no Espírito Santo, que pela boca dos profetas
anunciou a salvação e o futuro: tanto o nascimento de
Paulo), foram explicados neste sentido.
uma virgem, como a paixão, a ressurreição da morte, a O pensamento de Ireneu estava incorporado
ascenção na carne do amado Cristo Jesus aos céus, e o no pensamento potestático da igreja em for-
seu aparecimento a partir do céu na magnificência do mação, onde a fé por autoridade acabou por
Pai, para pôr tudo de novo sob uma cabeça e fazer res- tomar um lugar central. Isso aconteceu em
suscitar de novo toda a carne de toda a humanidade,
para que todo o joelho se dobre ante Cristo Jesus, 316
nosso Senhor e Deus e Salvador e Rei e toda a língua o Adv. Haer. I.10,1.
317
glorifique e ele profira uma sentença justa sobre todos: Adv. Haer. IV.18,5.
318
enviando para o fogo eterno os espíritos da maldade, os Sobre isto, ver, entre outros, Frances Young, The
Making of the Creeds, em R. M. Grant, Jesus after the
Gospels, 101-103.
314 319
J. Slavenburg, Een ander testament, 116. Adv. Haer. V.6,1.
315 320
EvT. 61. 1 Cor. 3:17; Adv. Haer. V.6,2.
grande parte à custa da experiência espiritual reito. Cerca do ano 193, este homem de edu-
que podia conduzir à liberdade pessoal e a cação pagã, foi baptizado como cristão. Com
uma redenção a partir do interior. grande paixão, lançou-se nos livros bíblicos,
no Pastor de Hermas e nos escritos de, entre
outros, Justino, Taciano e Ireneu. Além disso,
Mensagem de África ele mesmo escreveu um impressionante Apo-
logeticum em defesa dos cristãos contra os ro-
Tertuliano ataca com ainda mais severidade manos. Do ponto de vista literário, Tertuliano
do que Ireneu os supostos hereges. O que é foi muito produtivo. Foram conservadas ou
tanto mais irónico quanto este homem apaixo- reencontradas 31 obras da sua autoria; é difí-
nado entrou ele próprio num agrupamento cil de avaliar quantas se terão perdido. Escre-
considerado herético, os montanistas, numa veu, entre outros, diversos livros sobre a al-
fase tardia da sua vida. Igualmente irónico é ma, sobre a carne de Cristo e a ressurreição da
que as mulheres desempenhavam papéis mui- carne, sobre o baptismo, a penitência e a peni-
to proeminentes nesse movimento, as mulhe- tência, sobre os jogos públicos e aos mártires,
res que Tertuliano, quando era mais jovem dois livros sobre o embelezamento da mulher,
costumava desconsiderar de maneira muito duas cartas à sua própria mulher e ainda escri-
presunçosa. Para este apaixonado pai da igre- tos polémicos contra os pagãos, contra os ju-
ja, as mulheres eram filhas de Eva e, portanto, deus, contra os hereges e, com maior refina-
a mais fácil ocasião de pecar. Ele escreveu: mento, um escrito aparte contra Valentino e
cinco contra Marcião.
A condenação divina subsiste ainda, mesmo nos nossos É notável a grande intransigência com que es-
dias, no vosso sexo e portanto, não pode deixar de te combativo norte africano trabalha. Se no
acontecer que a vossa culpa subsista. Vocês são a porta seu escrito contra os pagãos (Ad Nationes) já
que dá entrada ao diabo, vocês quebraram o selo da ár-
mostra não querer nada da cultura, e sobretu-
vore, vocês negaram o primeiro mandamento divino e
arrastaram-no também a ele (ao homem), a quem o dia- do, da filosofia, greco-romana, no seu escrito
bo tinha medo de atacar. Vocês aniquilaram de uma De Praescriptione Haereticorum (as reservas
maneira demasiado fácil a imagem de Deus (o homem) de princípio contra os hereges), ele chega à
e devido à vossa desobediência, que significa a morte, dramática exclamação:
até o filho de Deus teve de morrer. 321
Que tem Atenas a ver com Jerusalém e a Academia a
O repúdio do feminino, mas ao mesmo tempo ver com a igreja? E que têm os hereges a ver com os
uma grande força de atracção em relação a cristãos? 323
ele, aparece com cada vez maior frequência
no cristianismo enclausurado, por exemplo, Naturalmente, esta exclamação não existe iso-
em Agostinho e Jerónimo. Numa das duas ladamente e é talvez mais compreensível se
epístolas muito longas que dirigiu à sua mu- recordarmos que, sobretudo no século II, cris-
lher, Tertuliano admoesta-a a que não se case tãos desenvolvidos, como os apologetas, ten-
de novo, caso ele morra primeiro: taram explicar o cristianismo numa linguagem
conceptual filosófica; isso para fazer com-
Sobretudo, não deves pensar que te dou este conselho preender os romanos desenvolvidos que o
de permaneceres viúva... para me assegurar da integri- cristianismo não era tão bizarro como muitos
dade do teu corpo, pois, com efeito, no além não esta-
acreditavam e que se encontravam nele inú-
remos mais sujeitos a nenhum dos nossos prazeres in-
decentes: Deus não promete aos seus essas coisas feias meros elementos que tinham o seu equivalen-
e sem valor. 322 te na filosofia grega.
Na sua condenação dos hereges, Tertuliano
Quintus Septimius Florens Tertullianus nas- faz apelo ao conceito jurídico romano de
ceu em Cartago, no norte de África, por volta praescriptio (reserva jurídica). Como a igreja
de 155 d.C., filho de um centurio proconsula- geral seria a única herdeira legal de Cristo e
ris (oficial). Estudou gramática, retórica e di- dos apóstolos, o mesmo não poderia acontecer

321
De cultu feminarum, I.1,2.
322 323
Ad Uxorem, I.1. De Praes. 7.9.
com os hereges e estes não deviam escudar-se Jerónimo afirma que Tertuliano foi padre 330,
em revelações da Sagrada Escritura. 324 mas isso não é totalmente certo. Como já dis-
Daqui se constata já que este homem militan- sémos, numa fase tardia da sua vida, aderiu à
te, como hoje diríamos, ‘era recto no ensina- seita dos montanistas. Morreu em idade muito
mento’. E isso ilustra que no início do século avançada (em qualquer caso, depois de 220,
III já se podia falar de ‘ensinamento’. A sepa- ano em surgiram os seus últimos escritos). Es-
ração dos espíritos já se tinha dado em grande te homem infeliz lutou toda a sua vida e com
medida. Isso expressa-se muito claramente o passar dos anos tornou-se cada vez mais in-
nas concepções de Tertuliano sobre o espírito, flexível e intolerante. O amor tinha de ceder
a alma e o corpo. ante o poder. E a partir desta atitude espiri-
O espírito e a alma não estão separados, são tual, podemos imaginar o seu horror aos cris-
unos. 325 E essa alma é material. É dada pelos tãos – que felizmente nessa época ainda eram
pais aos filhos e aparece ao mesmo tempo que em grande número – que não só tinham a pa-
o corpo. Depois da morte, as almas (excepto lavra ‘amor’ na boca, mas também viviam de
as dos mártires) vão para o mundo inferior pa- acordo com ela.
ra aí esperarem a ressurreição na carne duran-
te o juízo final.326 Nem todos estavam con- Não quero deixar de dar uma descrição do caminho de
vencidos disto. vida dos hereges: que frívolo, que mundano, que pura-
mente humano – no pior sentido da palavra – ele é, sem
seriedade, sem autoridade, sem disciplina, exactamente
Mas perguntam – preleciona o pai da igreja – como é como a sua fé! Para começar, não é certo quem é ou-
que é possível que a matéria que se decompôs seja res- vinte ou crente: todos têm acesso em pé de igualdade;
tabelecida? escutam como iguais; rezam como iguais; e mesmo que
pagãos batam à porta lançam o santo aos cães e as pé-
A resposta parece simples: rolas aos porcos... mas também não são pérolas verda-
deiras.
Examina o que foste antes de existires. Nada. Pois se Quando rejeitam a disciplina, chamam a isso simplici-
tivesses sido alguma coisa, lembrar-te-ias. Mas se não dade...
foste nada antes de existires e se te tornas em nada de- Partilham o beijo da paz com que quer que se apresen-
pois de deixares de existir, porque é que não poderias te, pois não lhes importa, quando se reúnem para atacar
voltar outra vez a surgir do nada através do mesmo a cidadela da verdade única, que haja entre eles gente
criador que te chamou à existência a partir do nada? 327 que pense de maneira diferente sobre determinados as-
suntos.
É mais que claro que Tertuliano não queria Todos são exagerados, todos prometem gnose...
Quão atrevidas são até as mulheres entre os hereges!
nada com a ideia da reincarnação. Sobre este Têm o despudor de ensinar, de debater, de exorcizar,
ponto, ele ataca fortemente Carpócrates, entre de fazer curas e talvez até de baptizar!
outros. 328 A alma que aparece no momento da Também as ordenações são feitas de uma maneira des-
concepção migra apenas uma vez: para o mes- cuidada, de modo caprichoso e mutável. Num dado
mo corpo na ressurreição do fim dos tempos. momento confirmam noviços no ofício, no momento
seguinte pessoas que desempenham um cargo na socie-
dade...
Todas as explicações aceitáveis desembocam no facto Em parte alguma é tão fácil a promoção do que no
de que, quando as almas humanas regressam aos cor- campo dos rebeldes. Pois o mero facto de se estar pre-
pos, são chamadas de volta aos mesmos corpos; o que sente já significa para eles um serviço importante. E as-
implica que voltam a tornar-se no que foram. Pois se sim, hoje é um bispo, amanhã outro; o diácono de hoje
não forem o que foram – revestidas com um corpo hu- é o leitor de amanhã; o padre de hoje é amanhã laico;
mano e não qualquer um, mas o mesmo corpo humano pois até aos laicos permitem assumir funções sacerdo-
– já não serão o que são. 329 tais! 331

Esta rica e plena vida comunitária tornou-se


uma excepção na igreja do século III.
324
De Praes. 21.
325
De Anima, 10.1-11.6.
326
Ver J. H. Waszink, Die Seele ist ein Hauch, Zü-
rich/München, 1986.
327
Apologeticum, 48.5.
328 330
De Anima, 35.1. De vir. ill. 53.
329 331
Apologeticum, 48.2. De Praes. 41.
O anti-bispo de Roma anteriormente ao Livro da Grande Manifesta-
ção, de Simão Mago, que é citado por Hipóli-
Além de Justino, Ireneu e Tertuliano, houve to. Também lá se encontra um esplêndido hi-
outros Padres da Igreja que consideraram no de Valentino a que foi dado o título de
fazer parte das suas funções advertir as suas ‘Colheita’. Hipólito escreve sobre ele:
comunidades de fé católica contra as manhas
Valentino supunha... que o Pai do universo, a que tam-
das outras correntes e dos ‘gnósticos’. O bém Platão se referia, era a Profundidade e o Silêncio
bispo Epifânio de Salamis (315-403 d.C.) de todos os eões... De forma resumida, Valentino refe-
compôs mesmo uma ‘caixa de medicamentos’ riu-se-lhe num salmo, onde expressou, começando por
(panarion) onde se encontravam os remédios baixo e não por cima como Platão, o seguinte:
para reagir às mordeduras de serpente dos
Vejo em espírito que tudo se relaciona,
herejes. compreendo em espírito que tudo é abarcado:
Um século antes, viveu Hipólito de Roma (fa- que a carne depende da alma,
lecido em 236). Parece ter sido uma figura e a alma depende do ar (do Espírito)
bastante controversa, pois sabemos sobre ele e o ar depende do éter (do Reino do Espírito),
que, por causa das suas concepções sobre a Da Profundidade provêm frutos
e do Seio nasce o Filho. 334
disciplina da penitência e também sobre a
trindade, foi bispo em Roma de uma anti-co-
O pai da igreja explica o hino, ou salmo, co-
munidade própria. Em 235, foi mesmo banido
mo ele lhe chama, da seguinte maneira:
com os seus seguidores para a Sardenha, o
que fez o cisma terminar. Ele entende por ‘carne’ a matéria, que é dependente da
O anti-bispo Hipólito fez ver a luz a dez livros alma do demiurgo (do criador do mundo). E a ‘alma
contra as heresias, com o título Refutatio om- depende do ar’ quer dizer que o demiurgo depende do
nium haeresium (refutação de todas as here- Espírito da Plenitude extrema. E o ‘ar é levado pelo
sias), em que são tratados nada menos de trin- éter’ quer dizer que a Sabedoria exterior depende da
Sabedoria interior que se encontra dentro dos limites da
ta e três sistemas gnósticos. Durante muito Plenitude. E ‘da profundidade provêm frutos’ (quer di-
tempo, apenas o primeiro livro foi conhecido. zer): a emanação total dos eões a partir do Pai. 335
Só em 1842 foram descobertos num mosteiro
do Monte Athos os livros quatro a dez; o se- Além desta informação sobre Valentino, que
gundo e o terceiro livros continuam por reen- não se encontra em mais parte nenhuma, há
contrar. ainda o tocante hino nassénico, que é transcri-
Inicialmente atribuiu-se esta obra a Orígenes, to por Hipólito do seguinte modo:
depois houve a convicção geral de que se tra-
tava de uma obra de Hipólito e nos últimos E Jesus disse: ‘Pai, vê como a alma,
tempos, vários investigadores levantaram de acossada pelo Mal,
novo algumas dúvidas sobre isso. 332 Mais im- longe do teu alento,
vagueia esterilmente sobre a terra.
portante do que esta questão é o conteúdo da Ela tenta fugir ao amargo caos,
obra. E chama imediatamente a atenção que mas não sabe como elevar-se acima dele.
Hipólito, ou seja lá quem for o autor, não con-
sidera a ‘heresia da gnose’ como um fenóme- Por isso, Pai, envia-me lá.
no de origem cristã e é de opinião que ela tem Descerei com selos
e percorrerei todos os céus.
as suas raízes no paganismo grego. Mas isso Revelarei todos os mistérios
não torna mais amigável a sua atitude perante e tornarei visíveis as figuras dos deuses.
ela: a filosofia grega foi mal utilizada pelo Darei a conhecer o que está oculto
‘infinito entusiasmo desses herejes’. 333 do caminho santo
O que é uma felicidade é que, com a desco- e despertarei a gnose’. 336
berta do século passado, passámos a ter ao
nosso alcance alguns textos que não nos fo- O autor deste hino, que Hipólito designa por
ram transmitidos de outro modo. Já me referi ‘tolo e disparatado’ 337, tinha ainda em si o sa-

334
Refutatio VI.35,5-7.
332 335
Ver Kurt Rudolph, Die Gnosis, 17. Refutatio VI.35,8.
333 336
Die Gnosis, 18. Refutatio V.10,2.
ber profundo do Cristo pré-existente que se carta que Ptolomeu escreveu à ‘sua irmã’ Flo-
manifestou em Jesus. Essa gnose (conheci- ra são explicados qual o objectivo da lei e as
mento, compreensão) já não se encontrava em diversas opiniões sobre ele. As leis, tal como
grande parte dos cristãos do século III, de que consignadas nos primeiros cinco livros do
Hipólito – ele mesmo um rebelde contra a or- Antigo Testamento, são divididas por Ptolo-
dem clerical dominante – era um representan- meu em três partes: a lei de Deus, os acres-
te. centos de Moisés (por exemplo, sobre a carta
de divórcio) e os mandamentos dos anciãos.
A lei de Deus é por sua vez dividida em três:
Mais perseguidores de herejes a lei propriamente dita – os dez mandamentos
– que foram cumpridos por Jesus; as leis de
Que apesar de toda a oposição dos poderosos significado simbólico, que os judeus tomaram
da jovem igreja e da formulação cada vez à letra (tais como o jejum, a circuncisão, o sá-
mais rígida de uma doutrina autoritária, ainda bado, o sacrifício de animais, etc.) e as leis li-
havia uma grande pluralidade vê-se na já refe- gadas ligadas à injustiça, tais como a lei ‘olho
rida ‘caixa de medicamentos’ do arcebispo de por olho, dente por dente’. O fecho desta carta
Chipre, Epifânio de Salamis. No seu Pana- é notável. Depois de ter exposto num estilo
rion, escrito por volta de 375 d.C., são men- tranquilo e claro a sua visão, o cristão tornado
cionadas oitenta heresias. 338 hereje estimula Flora a que continue a investi-
Devemos ter em atenção que estee autor clas- gar tendo por ponto central não o dogma e a
sifica como pré-cristãs vinte destas heresias, doutrina autoritária mas os ensinamentos do
que ele copiou bastante de pessoas proemi- próprio Jesus recebidos através da tradição
nentes neste campo que viveram anterior- apostólica.
mente – como Justino, Ireneu e Hipólito – e
Depois, se Deus quiser, aprenderás sobre o início e o
que os seus testemunhos não são considerados
surgimento de tudo a darás valor ao fazê-lo à tradição
muito fiáveis pela maior parte dos investiga- apostólica, que também nós recebemos em sucessão. E
dores. Principalmente a sua colorida descrição além de tudo isto, aprenderás a pôr à prova todas as
de uma seita a que teria aderido na juventude afirmações à luz dos ensinamentos do nosso Salva-
e que se teria dedicado bastante a bizarros ri- dor. 341
tuais com acentuado carácter sexual é olhada
com desconfiança por alguns e posta na conta Um mero decénio antes de ser escrita esta ci-
do perverso cérebro do próprio arcebispo. 339 tação, incorporada na caixa de medicamentos
Apesar destas críticas às qualidades literárias contra as mordeduras de serpente herejes, o
deste arcebispo, aplica-se a ele o mesmo qu a colega de Epifânio Atanásio, bispo de Ale-
Hipólito: graças a ele, os textos que ele co- xandria, escreveu uma Carta Pascal. Lemos
piou escaparam ao esquecimento e ao instinto nessa carta entre outras coisas:
destruidor da igreja.
Como alguns tomaram sobre si ‘pôr em ordem’ os cha-
Um belo exemplo disso, é a carta que Ptolo-
mados livros apócrifos e pô-los entre os livros inspira-
meu escreveu a Flora. Conjuntamente com dos por Deus, de cuja verdade estamos certos, porque
Herakleon, Ptolomeu tinha-se tornado o líder desde o princípio foram testemunhas oculares e anun-
da chamada ‘escola ocidental’ de Valentino. ciadores da palavra que os transmitiram aos pais, pare-
Com efeito, os discípulos posteriores deste ceu-me bem, incitado pelos meus irmãos e tal como
aprendi desde o princípio, dizer-vos quais os livros que
místico tinham-se dividido numa escola
pertencem ao Cânon, que nos foram transmitidos e que
‘oriental’, centrada em Alexandria, e numa acreditamos que são divinos, com o objectivo de que
escola ‘ocidental’, centrada em Roma. 340 Na quem cair em pecado possa corrigir quem os levou ao
erro e de que quem permanecer firme no puro ensina-
337
Refutatio V.10,1.
338
Ver P. R. Amidon, The Panarion of St. Epiphanius, du corps de Jésus’, em B. Layton (coord.) The Redisco-
Bishop of Salamis. Selected Passages, New York/Ox- very of Gnostocism I, 391-403.
341
ford 1990. ‘Carta de Ptolomeu a Flora em Epiphanius, Pa-
339
Rudolph, Die Gnosis, 257. narion XXXIII(33).7,9. Ver também B. Layton, The
340
Ver J. D. Kaestli, ‘Valentinisme Italien et Valenti- Gnostic Scriptures, 314 e W. Foerster, Die Gnosis
nisme Oriental: leurs divergences à propos de la nature (Zeugnisse der Kirchenväter) I, 213.
mento possa voltar a sentir alegria ao ser lembrado des- ‘Aquele que não conhece o aperfeiçoamento
tas coisas. 342 não conhece nada.
Quem não está nas trevas
Segue-se, pela primeira vez na história cristã, não será capaz de ver a luz.
Quem não compreende como é que o fogo surgiu,
uma lista de livros bíblicos – considerados de queimar-se-á nele,
inspiração divina e de autoridade reconhecida porque não conhece a sua raiz.
– que coincide exactamente com o nosso No- Quem não compreende primeiro a água
vo Testamento. Atanásio prossegue: não conhecerá nada.
Que significa então para ele
Estas são as fontes da salvação, para que os que têm se- ter-lhe recebido o baptismo?
de possam ser saciados com as suas palavras. Só nestes Quem não compreende
livros é anunciada a doutrina da divindade. Que nin- de onde vem o vento que sopra
guém lhes acrescente ou retire nada. 343 será arrastado por ele.
Quem não compreende como é que apareceu
o corpo que carrega
A carta é clara. E assim o sentiram os monges morrerá com ele.
do mosteiro pacomiano de Tabannisi. O seu E como é que alguém que não conhece o Pai
abade, Teodoro, tinha sido encarregado de quer conhecer o Filho?
traduzir a 39ª Carta Pascal para a língua local, E para quem não conhece a raiz de todas as coisas,
estas permanecer-lhe-ão ocultas.
o copta, e de a difundir. Constata-se, pois, que E quem não aprende a conhecer a raiz do mal,
por volta de 367 depois de Cristo ainda eram não lhe é estranho.
precisas listas dos livros que podiam ser lidos Quem não compreende como veio
e necessário banir livros apócrifos. Alguns também não compreenderá como irá,
monges, que no seu caminho que devia con- e quem não é estranho a este mundo,
morrerá e será humilhado.’ 346
duzir à santidade encontravam apoio na leitu-
ra de textos que não estavam na Carta Pascal, Os seus discípulos disseram-lhe: ‘O que é que podemos
tais como o Evangelho de Tomé e o Evange- fazer para ter a certeza de que a nossa obra será perfei-
lho de Filipe, ou o Livro Secreto de Tiago ou ta?’
o Tratado sobre a alma, tomou conselho. O Senhor respondeu-lhes: ‘Estai preparados face a tu-
do. Abençoado é o homem que encontrou a chave para
Agora que a repressão aumentava e se podiam este conhecimento e entabulou a luta consigo mes-
encontrar na biblioteca obras que não perten- mo.’ 347
ciam ao cânon, o perigo de excomunhão, e
portanto de afastamento do mosteiro, tinha O Salvador disse: ‘Disse-nos “preenchei-vos” para que
aumentado. Os escritos foram retirados ocul- não falheis. Pois os que falharem não poderão ser sal-
vos. Pois é bom ser preenchido e mau falhar. Como, in-
tamente do mosteiro e colocados cuidadosa- versamente, também é bom ter noção da sua falha e
mente num cântaro. O cântaro foi enterrado mau julgar-se preenchido sem o estar. Pois se o preen-
no sopé de um monte, não longe do mosteiro. chimento não aumentar e a falha não diminuir, a falha
E levaria quase mil e seiscentos anos até vol- será preenchida, mas o preenchimento não conduzirá à
tar a ser desenterrado. Foi em 1945. O lugar perfeição. Por isso falhareis enquanto for possível ser-
des preenchidos e preencher-vos-eis enquanto for pos-
do achado é Nag Hammadi. 344 Ante os inves- sível falhardes, a fim de colaborar para vossa vanta-
tigadores estupefactos desenrolaram-se textos gem.
como: Preenchei-vos, pois, com o Espírito!
Mas diminuí em raciocínio intelectual.
Estas são as palavras que o Jesus vivo disse... 345 Porque a razão é alma, também ela é psíquica.’ 348

Os nomes que são dados às coisas terrestres


são muito enganadores,
342
Athanasius, 39e Paasbrief (367 DC), citada parcial- porque tiram o seu significado das coisas perecíveis
mente em T. Churton, Geschiedenis van de Gnosis, 5. e são usados para coisas perecíveis.
343
Op. cit. Churton, 5. Quem ouve ‘deus’,
344
Continua a discutir-se a proveniência dos escritos não pensa no imperecível,
do cântaro. A hipótese geral é a que aqui esboçamos,
346
mas nem todos a aceitam. Ver, por exemplo, C. Do Diálogo do Salvador, CNH III,5.
347
Scholten, ‘Die Nag Hammadi-Texte als Buchbesitz der Diálogo do Salvador, ver acima. A última frase é
Pachomianer’ em Jahrbuch für Antike und Christen- desviante.
348
tum, jg. 31, 1988, 144-172. Livro secreto de Tiago, Biblioteca de Nag
345
Palavras de abertura do Evangelho de Tomé. Hammadi.
pensa no perecível.
O memso acontece com ‘pai’ e ‘filho’ Por isso se vê aqui (na terra) tudo
e ‘espírito santo’ e com ‘vida’ e ‘luz’ menos a si mesmo,
e com ‘ressurreição’ e ‘comunidade’ e tudo o mais. mas lá (no lugar da Verdade)
Já não se pensa no imperecível, vê-se a si mesmo
pensa-se (apenas) no perecível, e o que se vê
a menos que se tenha conhecido o imperecível. é aquilo em que se torna. 350

Mas os homens mortais, Quando se deita uma pérola à lama


que estão neste mundo o seu valor não diminui.
são vítimas de muitos erros. E o seu valor não aumenta
Se estivesse no eão (= eternidade) se for esfregada com bálsamo.
nunca seriam usados nomes no mundo Aos olhos do seu dono, o seu valor mantém-se.
e também nunca seriam confundidos com coisas terres-
tres. Acontece o mesmo com os filhos de Deus:
Elas acabam no eão. seja onde for que estejam,
aos olhos do Pai
Há um único nome que não é pronunciado no mundo: mantêm sempre o seu valor! 351
é o nome que o Pai deu ao Filho.
Esse nome está acima de todos os nomes. Um burro que fazia girar uma mó
É o nome do Pai. andou cem milhas.
Quando foi solto
Pois o Filho não se poderia tornar no Pai reparou que ainda estava no mesmo sítio.
se não se revestisse com o nome do Pai.
Quem tem esse nome Há homens que fazem muitas viagens
conhece-o sem se aproximarem de lugar algum.
mas não o pronuncia. Quando a noite os surpreende
Mas quem não o tem não viram ainda cidade ou aldeia,
não o conhece. nem criatura ou qualquer outra coisa da natureza,
nem potestade ou anjo.
Por isso, a Verdade criou nomes no mundo Os infelizes esforçaram-se para nada. 352
porque aqui é impossível
conhecer a Verdade sem nomes. Jesus gostava de Maria Madalena
A Verdade é simples. de uma maneira diferente da dos outros discípulos
Mas por amor a nós tornou-se múltipla, e beijava-a frequentemente.
para, no seu amor, Os restantes discípulos viam como ele gostava de Ma-
através dessa multiplicidade ria
nos levar a um nome. 349 e perguntaram-lhe:
‘Porque é que gostas mais dela
Não é possível a ninguém do que de nós todos?’
ver algo das coisas O Senhor respondeu-lhes com as palavras:
que verdadeiramente existem ‘Porque é que eu não gosto de vocês
sem se ter tornado igual a elas. como gosto dela?
Bem, quando um cego
Não é o que se passa com o homem neste mundo: e alguém que vê
ele vê o sol estão juntos na escuridão
sem ser o sol, não há diferença entre eles.
e vê o céu Mas quando surge a luz,
e a terra o que vê verá a luz
e todas as outras coisas e o cego permanecerá na escuridão.’ 353
sem ser essas coisas.
Estes, e muitíssimos outros textos, tinham-se
Mas é o que se passa no lugar da Verdade.
Vê-se algo desse lugar
tornado tão perigosos para a instituição igreja
e é-se igual a ele. que tiveram de ser destruídos. Pois, afirma
Vê-se o Espirito Atanásio, ao ler estes escritos
e é-se o Espírito.
Vê-se Cristo
e é-se Cristo.
Vê-se o Pai 350
EvFlp. 36.
e é-se o Pai. 351
EvFlp. 39.
352
EvFlp. 43.
349 353
EvFlp. 10. EvFlp. 46.
... alguns simples seriam roubados da sua simplicidade nesta metrópole. 359 Seja como for, encontrou
e pureza de espírito pelas artimanhas de certas pes- certamente um solo fértil, pois no século II
soas... 354
vemos aparecerem grandes mestres como Ba-
silides e Valentino.
Infelizmente, já não se notava muito essa tão
Neste cadinho de gregos, romanos, coptas, ju-
louvada simplicidade e pureza no cristianismo
deus e cristãos floresceu no século II uma co-
clerical desse século IV de Atanásio. Concí-
munidade em que Hermes Trismegistos foi
lios e cismas sucediam-se a bom ritmo. Mas
honrado como um homem divinizado. 360
não punhamos o carro à frente dos bois e diri-
jamos primeiro o olhar para o país que está Chamavam-lhe Trismegistos, o que significa três vezes
sempre a aparecer na história cultural primiti- supremo, porque foi o maior filósofo, o maior sacerdo-
va: o Egipto. te e o maior rei. Como diz Platão, os egípcios costuma-
vam escolher os seus sacerdotes de entre a casta dos fi-
lósofos e os seus reis de entre a dos sacerdotes...

6. O cadinho egípcio escreveu Marsilio Ficino uns bons mil e du-


zentos anos depois. 361
O três vezes grande Hermes Embora inicialmente o modelo de Hermes
fosse o deus egípcio da sabedoria, Thot, mais
Como já se disse, no princípio da nossa era, a tarde tem lugar uma ligação ao deus grego
cidade cosmopolita de Alexandria consistia Hermes, o mensageiro alado dos deuses. Nas
em cinco bairros, dos quais dois eram habita- sociedades herméticas da Alexandria dos pri-
dos por judeus. Fílon estimava num milhão o meiros séculos, ‘seguir o caminho de Hermes’
seu número em todo o Egipto. 355 A convivên- queria dizer simplesmente seguir a senda da
cia com os gregos e com os habitantes origi- iniciação. Purifica o teu corpo, purifica a tua
nais, os egípcios, não era sempre harmoniosa. alma e vai até ao núcleo, até ao Espírito. Tudo
Às vezes surgiam fortes rixas. Na mesma épo- está em perfeita harmonia entre si, aprendiam
ca em que o grande pensador Fílon de Ale- os iniciandos: Deus, o cosmos e o homem es-
xandria tentava lançar uma ponte entre a fé tão indissociavelmente ligados entre si, for-
dos antepassados e a filosofia helénica tive- mam um todo e como que se interpenetram
ram lugar vários banhos de sangue. 356 entre si. Isto implica que, nestes ensinamen-
Não se sabe exactamente por que caminhos o tos, o homem não era considerado pecador ou
cristianismo se estabeleceu em Alexandria. mau.
Segundo Eusébio, Marcos, evangelista e dis-
cípulo de Pedro, teria fundado aí a primeira
comunidade; opinião que os investigadores 359
G. Quispel, A Mulher e a Gnose‘’, em G. Quispel
actuais põem fortemente em dúvida. 357 O in- (coord.), Gnosis, 77. C. W. Griggs é mais prudente na
vestigador alemão Walter Bauer afirmou que sua dissertação The History of Christianity in Egypt to
foram os gnósticos os primeiros a anunciar o 451 A. D.: ‘Christianity was taken to Egypt by the mid-
cristianismo em Alexandria 358 e uma outra dle of the first century, an inexplicable silence in Chris-
tian sources concerning the leaders of the movement
tradição defende que um certo Barnabé de Je- and the development of the church over the next 150
rusalém foi o primeiro a anunciar o evangelho years is probably unique in the history of Christianity.’
Ver também sobretudo R. van den Broek, ‘Juden und
Christen in Alexandrien im 2. und 3. Jahrhundert’, em
354
Da 39ª Carta Pascal, op. cit. Churton, 5. J. van Amersfoort e J. van Oort (coord.), Juden und
355
Fílon de Alexandria, In Flaccum, 6. Christen in der Antike, 101-116.
356 360
Michael Walsh, na sua De wortels van het christen- Ver Roelof van den Broek, ‘Hermes en zijn ge-
dom, 147, fala mesmo de uma ‘guerra civil não solu- meente te Alexandrië’, em G. Quispel (coord.), De
cionada’. Ver também, entre outros, G. J. D. Aalders, Hermetische gnosis in de loop der eeuwen.
361
Synagogen, kerk en staat in de eerste vij eeuwen, 18-25 Marsilio Ficino, Opera, op. cit. Marcel Messing no
e Pieter Willem van der Horst, ‘Het heidense antisemi- prólogo de J. Slavenburg, Gnosis, 10. Por incumbência
tisme in de Oudheid’, em De onbekende God, 137-148. de Cosimo de Medici, este Marsilio Ficino traduziu em
357
H. E. II.16.1. Ver também H. Chadwick, The early Florença no fim do século XV o Corpus Hermeticum,
church, 64. então desconhecido na Europa. Eram contudo conheci-
358
W. Bauer, Rechtgläubigkeit und Ketzerei im ältesten dos na Idade Média os textos herméticos de Asclépio e
Christentum, 49-64. algumas obras herméticas alquímicas e astrológicas.
Ó Asclépio , o homem é uma grande maravilha,
‘Beijemo-nos em amor, ó meu filho. Alegra-te por isso.
362 Está a vir até nós a força que é luz.’
exclama o revelador Hermes.
O homem enquanto ser criado e simultanea- ‘Vejo, sim, vejo profundezas indicíveis.’
‘Como é que hei-de dizer, ó meu filho, começámos no
mente ele próprio criador. Nenhuma negação momento que [...] vemos os lugares. Como é que te
do mundo e nenhum ascetismo, viver em pu- hei-de falar do Todo? Sou consciência.’
reza e assim encarar o que se apresenta no ca- ‘Vejo também outra consciência que faz a alma mover-
minho da vida. É notável, por exemplo, a va- se.
lorização positiva da sexualidade. Vejo aquele que me move por um êxtase sagrado.
Dás-me força!
Vejo-me a mim próprio!
Se queres contemplar realmente este mistério, olha en- Quero falar!
tão para a sua maravilhosa imagem, a relação que tem O medo impede-me.
lugar entre o homem e a mulher. Quando ela atinge o Encontrei a origem do poder que está acima de todos
auge, a semente aparece. Nesse momento, a mulher re- os poderes e que não tem qualquer origem.
cebe a força do homem e, por seu lado, o homem rece- Vejo uma fonte que borbulha de vida.’
be a força da mulher, porque a semente causa isso. A ‘Disse, ó meu filho, que sou consciência.’
relação desenrola-se ocultamente por esta razão: para ‘Contemplei. É impossível pôr isto em palavras.’ 365
que os dois sexos não sejam escandalosos aos olhos
dos muitos que não conhecem esta experiência. 363
Foi também reencontrada no cântaro de Nag
Este texto chamado Asclépio , que já era co- Hammadi uma oração de graças mais comum
nhecido numa tradução latina, foi encontrado que a comunidade recitava durante as suas
no cântaro de Nag Hammadi, entre textos reuniões comunitárias – reuniões em que se
cristãos como o Evangelho de Tomé e o Livro cantava e se consumia uma refeição sacral
Secreto de Tiago. No mesmo achado, algo do conjunta e onde se compartia o beijo santo: 366
véu que cobre o caminho de iniciação hermé-
‘Damos-te graças!
tico é levantado num escrito de revelação em A nossa alma e (o nosso) coração lançam-se para ti,
que Hermes acompanha um discípulo na sen- ó nome intocado,
da da experiência mística. Numa profunda que és honrado com o nome de ‘Deus’
meditação, Hermes ora: e louvado com o nome de ‘Pai’,
pois até todos e até ao Todo,
Senhor, concede-nos a verdade nesta imagem; a bondade, a afeição e o amor paternos
faz com que pela força espiritual vejamos a forma da e todo o saber que é doce e simples
imagem onde não há defeito. que nos concede consciência, compreensão e gnose:
Recebe de nós pelo nosso louvor uma impressão do consciência para que te possamos abarcar,
pleroma e reconhece o espírito que trabalha em nós. compreensão para que te possamos explicar,
Pois através de ti, o Todo adquiriu alma. gnose para que te possamos conhecer.
Pois de ti, o não engendrado, surgiu o engendrado. Alegramo-nos
O nascimento do auto-engendrado foi realizado por ti, porque somos iluminados pela tua gnose.
engendrador de todos os seres engendrados que exis- Alegramo-nos
tem. porque te deste a conhecer a nós.
Recebe de nós as oferendas espirituais que elevamos Alegramo-nos
até ti com todo o nosso coração, com toda a nossa alma porque pela tua gnose
e com toda a nossa força. nos tornaste divinos ainda (no) corpo.
Salva o que está em nós e concede-nos sabedoria imor-
tal. 364 O agradecimento do homem
que vem até ti tem esta causa:
termos-te conhecido.
Desencadeia-se então como que um diálogo
balbuciante em que ambos tentam pôr em pa- Conhecemos-te,
lavras a experiência que cabe a cada um. ó luz que trazes compreensão,
ó vida da vida.
Conhecemos-te,
362 ó seio materno de toda a semente.
Asclépio 6.
363 Conhecemos-te,
Asclépio 21, CNH VI.8, J. Slavenburg/W. G. Glau-
demans, Biblioteca de Nag Hammadi I, 414.
364 365
Verhandeling over de achtste en de negende Hemel- Ibidem.
366
sfeer, J. Slavenburg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de Ver R. van den Broek e G. Quispel, Corpus Herme-
Nag Hammadi I, 414. ticum 25-26.
ó seio materno, prenhe da natureza do Pai.
Clemente teve um mestre ilustre, Panteno,
Assim honrámos a tua bondade.
que
Só há uma guarda que exigimos de ti:
sermos guardados na gnose. Saltitando de flor em flor, como uma abelha da Sicília,
E há uma protecção que desejamos: nos campos dos profetas e dos apóstolos, despertava na
não tropeçarmos numa vida como esta.’ alma dos seus ouvintes uma pura gnose. 370

Depois de dizerem estas coisas numa oração, abraça- Quando encontrou este mestre, escreve Cle-
ram-se uns aos outros e consumiram a sua refeição sa- mente, ‘deixei de procurar’ 371.
grada, onde não há sangue. 367
Ora este Panteno era o chefe da ‘academia’,
ou escola de catecúmenos, de Alexandria. Eu-
Havendo um tal clima espiritual, não é de es-
sébio escreve sobre ele:
pantar que cristãos iluminados como
Basilides e Valentino, contra a corrente Panteno era um homem muito famoso, por causa da
maioritário do cristianismo romano de então, sua erudição... Vinha da escola filosófica dos chama-
tivessem um olhar muito positivo para o dos estóicos. Diz-se dele que tinha um entusiasmo tão
‘fenómeno homem’, defendessem uma atitude caloroso pela palavra de Deus que foi chamado para
muito mais livre em relação, por exemplo, à pregar o evangelho aods povos do Oriente e viajou até
à Índia... onde encontrou pessoas que já tinham conhe-
sexualidade do que a maior parte dos outros cimento de Cristo porque, antes de ele chegar, já ti-
mestres cristãos, e mesmo que estivessem nham entrado em contacto com o Evangelho de Ma-
como que impregnados de experiência teus. Bartolomeu, um dos apóstolos, teria pregado aí e
mística. ter-lhes-ia deixado a obra de Mateus escrita em hebrai-
co... Por causa destes inúmeros méritos, Panteno tor-
nou-se presidente da escola de catecúmenos em Ale-
xandria, onde revelou, tanto oralmente como por escri-
Um amável Alexandrino to, os tesouros da doutrina de Deus. 372

Clemente de Alexandria e Orígenes, tal como Não temos conhecimento de qualquer patri-
Ireneu e Hipólito, são contados entre os mónio escrito vindo de Panteno. 373 Temo-lo
‘Padres da Igreja’. O clima alexandrino era, do seu discípulo Clemente que foi o primeiro
porém, um solo fértil para o modelo de cristão – provavelmente no seguimento do seu
harmonia, ao contrário do pensamento mestre – a referir Buda nos seus escritos. 374
polarizado romano. O investigador bíblico A organização dos trabalhos na escola da ca-
alemão Adolf von Harnack escreveu sobre tecúmenos, onde Clemente em breve sucedeu
Clemente: ao seu mestre como presidente, concordava
com a educação dada nas academias de filoso-
A tradição da igreja era algo de estranho para ele, tanto fia não cristã. Os alunos eram primeiro ins-
na sua totalidade, como nos seus detalhes. 368 truídos em gramática, depois em retórica e
geometria, e mais tarde em música e astrono-
E, ao contrário de Tertuliano (‘o que é que mia. Só quando os antigos filósofos tinham si-
Atenas tem a ver com Jerusalém?’) e mais tar- do cuidadosamente estudados é que era per-
de de Jerónimo (‘o que é que Cícero tem a ver mitido lançar o olhar sobre os escritos preco-
com Paulo?’), há em Clemente um olho aber- ces do cristianismo.
to para o imenso valor da filosofia clássica. O
professor Bartelink, de Nijmegen, afirma
mesmo que Clemente introduziu no cristianis-
mo o conceito estóico de apátheia. 369 370
Stromateis, I.1,11.
371
Ibidem.
372
H. E. V.3,17.
367 373
Dankgebed, CNH VI.7, J. Slavenburg/W. G. Glau- Clemente afirma que Panteno não deixou escritos.
demans, Biblioteca de Nag Hammadi I, 408-409. H. I. Marrou, em A Diognète, 266 ss., opina que Pante-
368
A. von Harnack, Lehrbuch der Dogmengeschichte no pode ter sido o autor desta carta. Sobre Panteno, ver
(3 tomos) I, 642. também , entre outros, U. Neymeyr, Die Christliche
369
G. J. M. Bartelink, Het vroege christendom en de Lehrer in zweiten Jahrhundert, 40-45.
374
antieke cultuur, 95. Stromateis, I.15,71.
Para Clemente, a filosofia preparava do ho- contra os gnósticos de orientação ascética. É
mem ‘que se tornava perfeito em Cristo’. 375 O um apoiante do casamento 380 – já vimos ante-
aprofundamento no conhecimento interior riormente que ele refere que Paulo, e também
conduziria ao conhecimento interior, à gnose. outros apóstolos, eram casados – mas mostra
uma atitude muito prudente relativamente à
O reconhecimento da sua ignorância é a primeira lição sexualidade.
para quem age segundo a sua consciência. Quem é
ignorante procura, e depois de ter procurado, encontra Tal como para o camponês, só é permitido aos casados
o mestre , e depois de o ter encontrado, acredira nele, e semearem quando o tempo é próprio para isso. 381
acreditando, tem esperança. E a partir do momento em
que começa a amar, identifica-se com o amado e deseja
ardentemente ser ele mesmo aquilo que antes amou. 376 Não admira, por isso, que as concepções li-
bertinárias sobre este tema fossem violenta-
Clemente fala aqui da fé, da esperança, do mente contestadas por Clemente, tal como por
amor e do conhecimento. E ao fazê-lo apoia- Carpócrates e seus seguidores. Para ele, a pa-
se no pensamento dos seguidores do seu ilus- lavra de ordem é auto-domínio:
tre concidadão de meio século antes, Valenti-
no. Pois no Evangelho de Filipe lê-se: Não devemos viver segundo os nossos desejos, deve-
mos querer apenas as coisas que são necessárias. Com
efeito, somos filhos, não do desejo, mas da vontade.
A agricultura no mundo Mesmo os que casam tendo em vista ter filhos devem
precisa de quatro forças (elementos): ter o auto-domínio em atenção, para que não desejem a
porque a colheita é trazida para os celeiros sua própria mulher, a quem devem amar; e assim en-
graças à água, à terra, ao vento e à luz. gendrem filhos com uma vontade virtuosa e modera-
A agricultura de Deus também conhece quatro forças: da. 382
fé, esperança, amor e gnose.
A nossa terra é a fé em que nos enraizamos;
a agua é a esperança com que nos alimentamos; Mas segundo Clemente, o auto-domínio não
o vento é o amor que nos faz crescer; se devia limitar à sexualidade:
e a luz é a gnose que nos faz amadurecer. 377
Pois é apropriado não pensar aqui apenas no prazer do
O amável alexandrino tinha a noção de que amor, mas também em todas as outras coisas... O auto-
este conhecimento, esta gnose, não era acessí- domínio é: dar pouco valor ao dinheiro e a outras ri-
quezas e posses; desprezar a comédia; dominar a lín-
vel a todos. Mas, afirmava ele, o Senhor gua; e, por meio da consciência, dominar as coisas
más. 383
não revelou a muitos o que não era para muitos; apenas
aos indivíduos de quem sabia que eram capazes de as-
similar e de receber. Pois... àquele que compreende o
Clemente era um homem de grande coração e
oculto, o oculto será revelado. Aquele que é capaz de não um dirigente fanático. Embora pregasse o
receber o que é transmitido veladamente, verá a verda- auto-domínio, também em relação às posses,
de revelada nesses véus; e o que está oculto para mui- isso não queria dizer que a posse fosse pecado
tos será revelado a esses poucos... em si mesma. Num tratado intitulado Que ri-
Os mistérios são transmitidos numa forma misteriosa,
porque se adaptam apenas aos lábios do mestre e do
co será salvo?, ele afirma que não são as pos-
iniciado, ou melhor dito: não aos seus lábios, mas à sua ses que são desprezíveis, são as paixões que
consciência. 378 lhes estão associadas. Segundo ele, esse é o
sentido mais profundo e espiritual da parábola
Um grande apreço pela gnose. Sem conheci- de Jesus sobre o jovem rico.
mento não há fé. Mas nem todas as formas
são igualmente estimadas por Clemente. Ele é
um adversário da enkráteia 379 e revolta-se
380
No Paidagogos, ele elogia o casamento ‘como mui-
to valioso, porque é também um laço religioso entre as
375
Stromateis, I.5,28. almas. Aqueles que partilham a vida em comunhão, re-
376
Stromateis, V.3,17. cebem também uma graça comum e uma salvação co-
377
EvFlp. 81. mum’ (I.4,10).
378 381
Stromateis, I.1,13. Paidagogos, II.10,102.
379 382
Stromateis, III.63,1. Opõe-se também a Cassiano, Stromateis, III.7,58; ver também Stromateis,
que na De Eunouchia defende uma abstinência VI.100,1-3.
383
rigorosa (Stromateis, III.92,2-93,1). Stromateis, III.7,59.
Não se devem rejeitar as posses que podem ser úteis ao uma interpretação demasiado literal de pala-
próximo. Com efeito, as posses são coisas que existem vras de Jesus transmitidas por Mateus sobre
para se possuírem. E os bens existem para poder servir.
São preparados por Deus para os homens utilizarem...
pessoas que se tinham tornado a si mesmas
De modo que não são tanto as posses que devem ser em eunucos 385, que fez o jovem mestre cas-
afastadas, mas as afecções da alma que não deixam es- trar-se a si mesmo? Eusébio, que tinha uma
paço a uma melhor utilização das posses; pois quem se grande admiração por Orígenes, diz que foi
tornou excelente e bom é também capaz de utilizar de um ‘acto irreflectido’. 386 O seu bispo Demé-
maneira excelente esses bens. 384
trio foi a princípio entusiasta; mas alguns de-
cénios mais tarde, quando se tinham levanta-
Clemente, que se tornou discípulo de Panteno do entre os dois dificuldades inultrapassáveis,
por volta de 180 d.C. e lhe sucedeu não muito criticou duramente o acto.
tempo depois como dirigente da escola, ocu- Perante a história acima, é-se rapidamente
pou esse posto quase vinte anos. No ano de tentado a ver Orígenes como uma espécie de
202 foi obrigado a fugir de Alexandria devido psicopata ou, pelo menos, como um excêntri-
a uma feroz perseguição aos cristãos. Morreu co fanático. Mas essa imagem não correspon-
cerca de 215. Mais tarde, foi declarado santo; de à realidade. Orígenes não era um instiga-
até que alguém do mesmo nome, o papa Cle- dor e era um homem muito tolerante. Embora
mente VIII, que era nitidamente menos amá- vivesse muito sobriamente, não obrigava nin-
vel e mandou queimar publicamente o erudito guém a seguir o seu estilo de vida.
gnóstico Giordano Bruno em 1600, o retirou
do calendário. O objectivo é que a alma, distinguindo a causa e a na-
tureza das coisas, compreenda que a vaidade tem de ser
abandonada e que se tem de apressar em direcção às
Um eunuco para o Reino coisas eternas e duradoiras: a física ensina que todas as
coisas visíveis são quebráveis e frágeis. Quando com-
preende isto, aquele que se consagrou à sabedoria des-
Durante as mesmas perseguições em Alexan- prezará e considerará indigno o visível e, tomando dis-
dria no ano 202 que fizeram Clemente decidir tância, por assim dizer, de todo o mundo, voltar-se-á
para as coisas invisíveis e eternas. Estas são ensinadas
abandonar a cidade, foi cortada a cabeça a um
de maneira espiritual pelas imagens, retiradas do amor,
certo Leónidas, um ardente cristão. Este Leó- do Cântico dos Cânticos. Assim, a alma, depois de ser
nidas era pai de sete filhos. E nada impediria purificada na sua moral e de estar avançada na distin-
que um desses filhos, que desejava intensa- ção das coisas naturais, é capaz de abordar as realida-
mente tomar parte no martírio, fosse executa- des contemplativas e místicas, e eleva-se até à contem-
plação da divindade por um amor puro e espiritual. 387
do de maneira semelhante, se a sua mãe não
tivesse tido a presença de espírito suficiente
para lhe esconder as roupas. Face a isto, não Cada homem tem nisto, afirma Orígenes, a
pôde sair para se entregar às autoridades. O sua própria responsabilidade pessoal. E não
que impediu uma morte prematura deste jo- há dois homens que estejam no mesmo está-
vem genial, que se chamava Orígenes. dio de desenvolvimento. Tal como o seu céle-
Apesar da pouca idade de dezóito anos que bre concidadão, Valentino, Orígenes distingue
Orígenes contava, o então bispo de Alexan- grosseiramente três fases de desenvolvimen-
dria, Demétrio, pediu-lhe que sucedesse ao re- to 388 que são responsáveis pelo modo como se
fugiado Clemente como dirigente da escola de lê os evangelhos e se lida com eles.
catecúmenos; escola onde o próprio Orígenes
tinha sido educado. 385
Mt. 19:12.
Os seus inspirados ensinamentos provocaram 386
H. E. 6.8,2.
um grande aumento de alunos e ouvintes, en- 387
Com. in Cant. Prol., op. cit. M. Rutten, Om mijn
tre os quais muitas mulheres. Seria apenas pa- oorsprong vechtend, 145.
388
ra evitar eventuais calúnias sobre o assunto; Sobre isto ver, entre outros, G. Quispel, ‘Origen and
seria a sua tendência para a ascese – dormia the Valentinian Gnosis’, em Vigiliae Christianae 28
(1974), 29-42 e R. van de Broek, ‘Jewish and Platonic
sempre no chão, andou sem calçado durante Speculations in Early Alexandrian Theology: Eugnos-
anos e abstinha-se de beber vinho –; ou seria tus, Philo, Valentinus, and Origen’, em B. A. Pearson
& J. E. Goehring, The Roots of Egyptian Christianity,
384
Quis dives salvetur?, 14.1-4. 190-204.
Orígenes distingue a interpretação literal-so- O Lógos, a palavra, ainda tem em Orígenes o
mática da moral-psíquica e da místico-pneu- carácter supremo que vem até nós do prólogo
mática. 389 Na interpretação literal, parte-se de do Evangelho de João.
uma simples crença e de uma percepção estri-
tamente literal (= material) dos textos. Na in- Orígenes conhece o silêncio que desce sobre a alma
terpretação moral-psíquica pondera-se e pesa- quando a palavra divina entra nela; ele descreve a ale-
gria serena que impera no coração assim que a sabedo-
se e tenta-se pôr as coisas numa perspectiva ria e o amor divinos aparecem. Conhece o abraço divi-
mais vasta. Para o fazer, o conhecimento dos no da palavra à alma e expressa o desejo de que tam-
clássicos é um factor importante. Tal como o bém a sua alma seja tomada nos braços pelo amante di-
seu mestre Clemente, Orígenes vê a filosofia vino, que também a sua alma inspire o aroma da pala-
como uma ‘propedeuse’ 390 do cristianismo. vra divina. Orígenes fala da grande felicidade que im-
plica poder levar no coração o hóspede divino, a eterna
No nosso aparato conceptual actual, chama- palavra divina, fala do sentimento de abandono que
ríamos a isto a abrodagem ‘mental’. Mas nes- surge quando de repente o amante deixa a alma só, fala
ta fase há ainda uma certa distância. Só na ter- da felicidade da alma quando participa de novo na pre-
ceira fase, a fase místico-pneumática, é que se sença do Lógos. A palavra tem comunhão com a alma,
pode falar de uma ligação entre o ‘exterior’ e torna-se um espírito com ela, para que ela veja como a
imagem de Deus é renovada dia a dia em si mesma. Ela
o ‘interior’. É a fase da gnose. Do saber inte- percorre as abóbadas da alma, repousa na alma, profun-
rior. É experimentar com todo o ser a divinda- damente no solo do coração, da inteligência, e entra ne-
de de tudo e de todos e em tudo e todos.391 la. Orígenes fala da visita que a palavra divina faz à al-
Nesta fase, citações literais das escrituras são ma e dos seus beijos, isto é, da revelação imediata dos
transformadas para o nível das alegorias. seus segredos. 393
Mais tardefar-se-ia oposição principalmente à
explicação alegórica de fragmentos da Bíblia A mística do amor que se expressa aqui e que
feita por Orígenes. em Orígenes tem o seu ponto alto no Comen-
Com efeito, este pensador e místico escreveu tário ao Cântico dos Cânticos, mostra seme-
bastantes comentários sobre diversos livros da lhanças notáveis com a poesia de místicos
Bíblia; muitos deles lamentavelmente não posteriores; no coro dos Padres da Igreja isto
conservados. Na sua vida de trabalho, ele pa- é praticamente único.
rece ter escrito uns seis mil tratados de varia-
A alma é impelida pelo amor celeste e pelo desejo
das naturezas, entre os quais, para além dos quando, vendo o belo esplendor da palavra, se enamora
comentários já referidos, um exapla, ou resti- da sua esplendorosa figura e recebe assim a seta e a fe-
tuição do Antigo Testamento em (pelo me- rida do amor. Esse Lógos é, com efeito, imagem e re-
nos) seis versões diferentes: além da hebraica, flexo do Deus invisível, do primogénito de toda a cria-
diversas traduções gregas (entre as quais a ção, em quem tudo foi criado, visível ou invisível, quer
no céu quer na terra. Quando é capaz de adivinhar e de
Septuaginta). Também escreveu tratados so- ter uma noção da beleza e da magnificência de tudo o
bre o martírio, sobre a oração, sobre o princí- que foi criado nele, um espírito veloz é chocado pelo
pio fundamental da fé, e muitos outros.392 esplendor das coisas e pela glória da sua majestade. E
Grangeou-lhe muito prestígio o seu escrito como que trespassado por ema sete excelente, recebe
polémico contra Celso, que tinha tentado dele uma ferida benfazeja e arde num fogo bem-aven-
turado por ele. 394
meio século antes ridicularizar o cristianismo.
Esta não é a sua obra mais profunda.
Orígenes vê o homem como um microcosmo
no macrocosmo, uma concepção que encon-
tramos também no já referido hermetismo.
Ele exclama:
389
Terminologia de Walter Nigg em Tragiek en triomf Compreendei, pois, que sois um segundo mundo em
van het geweten, 43. pequeno, que o sol, a lua e as estrelas estão dentro de
390
Bartelink, Het vroege christendom, 109. vós. 395
391
De principiis, 3.6,9.
392
Ver, entre outras, as edições das beneditinas de
Bonheiden; Origenes (3 vol.) e a sua tradução holande-
393
sa de Aanmoediging tot het martelaarschap. Ver tam- Rutten 179.
394
bém o fascinante estudo de Robert Sträuli, Origenes Com. in Cant. Prol., op. cit. Rutten 186.
395
der Diamantene. Op. cit. Nigg, Tragiek, 48.
Todas as almas humanas, ensina Orígenes, ça, incomparável com as dádivas santas e benfazejas
não serão apenas salvas por uma contínua pu- do Deus do universo. 397
rificação no caminho da consumação de corpo
em corpo; elas tornar-se-ão anjos. Mesmo a Orígenes fazia uma distinção clara entre espí-
alma de Satan regressará a Deus. Foi sobretu- rito, alma e matéria. 398 No quinto concílio
do esta concepção suave que a igreja em for- ecuménico, que teve lugar em Constantinopla
mação, que gostava de ver Deus como um bi- no ano de 553, um certo número de concep-
cho papão que metia medo, como meio de ções de Orígenes, entre outras, a da pré-exis-
manter as pessoas no caminho certo e de as tência da alma 399, foi condenada como
tornar dependentes da sua própria instituição ‘desvio doutrinário’.
– a igreja – não quis seguir. Ainda em vida de
Orígenes, os bispos opuseram-se entre si so-
bre este ponto em concílios locais. O seu ante- Um carregador e um eremita
rior benfeitor, tornado entretanto adversário, o
bispo Demétrio de Alexandria, procurou e en- Houve um momento na vida do ainda jovem
controu nessas lutas o apoio (circunstancial) Orígenes em que ele, na suposição tertuliana
do bispo de Roma, que se uniu a ele contra al- de que Atenas não tinha nada a ver com Jeru-
guns bispos palestinos que apoiavam Oríge- salém, vendeu a sua biblioteca ‘mundana’.
nes neste ponto. Que esses bispos tivessem Como vimos, rapidamente abandonou estas
consagrado Orígenes como sacerdote foi tal- ideias. Talvez não seja estranho a este curso
vez um espinho ainda maior na carne do seu das coisas o facto de Orígenes, discípulo pró-
próprio bispo, Demétrio, que excomungou o ximo de Clemente de Alexandria, foi mais
genial pai da igreja e o fez estabelecer-se a tarde também discípulo do lendário carrega-
partir desse momento, 231 d.C.., em Cesareia, dor Ammonius Saccas. Outro discípulo bri-
na Palestina. lhante deste alexandrino excepcional foi Ploti-
Depois da sua morte, a crítica ao profundo
misticismo de Orígenes não parou. O já refe-
397
rido Epifânio foi arrasador na sua condenação Orígenes, De Oratione 17.1, op. cit, G. J. D. Aal-
e Pacómio, fundador dos primeiros mosteiros, ders, Het Gebed, 66.
398
Ver um conjunto de citações da sua obra reunidas
chamou-lhe mesmo ‘conversa de doidos’. sobre esta matéria, por exemplo, em Hans Urs von Bal-
thasar, Origenes: Geist und Feuer.
Com a sua filosofia religiosa, Orígenes elevou-se a 399
R. Kranenborg afirma com razão em Reïncarnatie
uma altura onde os cristãos vulgares não o podiam se- en christelijk geloof, 101-105, que o ensinamento da
guir. O seu ideal pneumático era destinado apenas a pré-existência da almaé diferente do de reincarnação.
uma pequena elite. Aquilo a que ele chamava gnose Ele resume assim o assunto:
cristã era possível para ele, mas para os outros não. A ‘No princípio, Deus criou seres espirituais-racionais
Igreja assustou-se completamente com este sistema que que possuíam uma vontade livre. Por uma razão ou por
terminava na salvação de todas as almas e que estava outra, esses seres desviaram-se de Deus. Desse modo,
sempre a roçar perigosamente a heresia. Ainda mais do esses seres tornaram-se anjos ou demónios, ou então
que com o seu ensinamento sobre o restabelecimento almas que deveriam unir-se a um corpo humano. Em
de todas as coisas, Orígenes ultrapassou as doutrinas cada homem abriga-se assim uma alma que já existia
clericais com as suas concepções platónicas àcerca da antes de ele nascer. Depois da morte do homem, a alma
pré-existência da alma e com a sua outra concepção so- vai para as esferas superiores, ou céus, onde passa por
bre o conhecimento do divino como uma recordação, um processo de purificação. Ela pode renascer um
sem-número de vezes em diferentes esferas, mas nunca
afirma Walter Nigg no seu trabalho Tragiek na mesma esfera. E mantém sempre a sua própria iden-
en triomf van het geweten. 396 Outra tidade. Um dia, depois de ter vivido muitas vezes, ela
regressa a Deus. Também os demónios, que seguem o
concepção de Orígenes com influência seu próprio caminho por esferas negativas, ou infernos,
platónica certa é a de que regressarão um dia a Deus.’ (103).
No seu Comentário a Mateus (Com. Mt.), Orígenes
tudo o que é material e corporal, seja o que for, não afirma que o ensinamento da reincarnação ‘é estranho à
tem mais valor do que uma sombra infirme e sem for- igreja de Deus, não foi transmitido pelos Apóstolos e
não se encontra em lado algum das escrituras’. Sobre
isto ver também o esclarecimento de Hermann J. Vogt
em Der Kommentar zum Evangelium nach Mattäeus,
396
Nigg, Tragiek, 50. Adaptei a ortografia. 280-282.
no (205-270), que é quase unanimente visto Sem verdadeira firmeza de carácter, o nome de Deus é
como o fundador do sistema neo-platónico. 400 apenas uma palavra vazia. 402
O sistema neo-platónico tenta reconduzir tudo
a uma única unidade e considera o Uno o A partir desta óptica, ele opôs-se a outros
princípio superior. O segundo princípio é o gnósticos libertinísticos, pois via um grande
Espírito, o terceiro a Alma (universal). A ma- perigo no enfraquecimento, ou na perversão,
téria é o que está mais afastado do Uno; na das regras éticas. A vida devia estar sempre
realidade, ela é o não-ser. Plotino vê o mundo ao serviço do esforço pela unificação total co-
perceptível sensorialmente como um ser ani- mo o Uno. É esse o teor do seu escrito Contra
mado; as estrelas são deuses. As almas afun- os gnósticos. 403
daram-se na matéria devido a uma queda, mas Havia, porém, muitos gnósticos entre os discí-
são imortais, porque podem voltar a elevar-se pulos de Plotino. Afinal de contas, havia mais
da matéria e alcançar o objectivo: a unificação a uni-los que a separá-los. Imagens e concei-
com o Uno. tos gnósticos foram utilizados por Plotino co-
Segundo Plotino, o Uno está acima de todos mo algo de evidente. 404
os opostos e é perfeito em si mesmo. Nada As concepções de Plotino e dos seus seguido-
tem a ver com a criação, porque ‘trabalhar’ e res tiveram uma influência imensa no desen-
‘desejar’ lhe são estranhos, pois ele é o repou- volvimento do pensamento ocidental, não só
so eterno. Na sua hiper-plenitude, ele como de filósofos profanos, como no interior do
que transborda e produz noûs(= consciência). cristianismo, tal como em Agostinho.
A Consciência é a totalidade de todas as
Ideias. A alma do mundo emana, por sua vez, No cadinho egípcio, com o seu rico passado e
da Consciência, e está voltada, por um lado, forte tradição religiosa, séculos e séculos an-
para o nous, onde vê contemplativamente as tes do princípio da nossa era; onde o espírito
Ideias, e por outro, para a matéria que emana de Fílon pairava ainda sobre as salas de aula
dela (que pode ser designada como limite in- de Alexandria; onde a consciência cósmica de
ferior do Ser), onde estabelece as formas fun- Hermes Trismegistos encontrava eco no cora-
damentais e está, portanto, activa criadora- ção de Valentino e no Espírito de Orígenes;
mente. A alma do mundo está representada onde os cristãos espirituais e ‘legais’, cada um
em todas as almas. Através de um aprofunda- a partir do seu estado de consciência, tenta-
mento filosófico, a alma individual pode tor- vam encontrar o Espírito de Cristo em reu-
nar-se consciente da totalidade (alma do mun- niões comuns; onde ainda havia respeito para
do) e elevar-se ao puro mundo das Ideias a rica tradição grega e helenística e onde pôde
(noûs); impregnada dele, ela pode chegar à surgir um diálogo com o rico mundo de ideias
contemplação do Uno absoluto. do neo-platonismo; nesse Egipto dos primei-
Plotino não queria saber de qualquer separa- ros séculos da nossa era produziu-se ainda ou-
ção essencial entre o princípio extremo, o tro fenómeno: o ideal monástico.
Uno, e um deus criador inferior (demiurgo), A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto
tal como era corrente em alguns círculos e a escavação dos restos de um mosteiro ao pé
gnósticos. de Qumran em 1947 demonstraram que exis-
Plotino era uma pessoa de grande formação tiram comunidades monásticas na antiga Pa-
ética. Considerava característico da atitude de lestina: as dos Essénios. O mosteiro ao pé de
vida filosófica na sua escola ‘a simplicidade Qumran foi, porém, destruído durante a Guer-
de carácter e a pureza do pensamento’. 401 ra Judaica, por volta de 67 depois de Cristo.
Nunca foi reconstruído.

400
K. H. E. de Jong atribui a ‘invenção’ do neo-plato-
402
nismo não a Plotino mas a Saccas. No seu escrito Ploti- Plotino, Enéadas II.9 (33) 15, 38-40.
403
nus of Ammonius Saccas ele mostra que um grande nú- Ver Th. G. Sinnige, Plotinos: Over Schouwing &
mero de expressões e pensamentos que aparecem em Tegen de Gnostici, 39. O nome do escrito que Sinnige
Plotino também são usados por Orígenes. Segundo ele, traduziu para holandês provém não de Plotino, mas do
isso justifica a conclusão de que muito desse material seu discípulo Porfírio.
404
provém da fonte comum: Ammonius Saccas. Ver Th. G. Sinnige, ‘Plotinos en de Gnosis’, em G.
401
Plotino, Enéadas II.9 (33) 14, 38-42. Quispel (coord.), Gnosis, 105.
Como já vimos, a ascese era uma prática cismo na sua descrição dos objectivos do ascetismo de
muito comum. A escolha do isolamento para António. 408
chegar a uma forma de contemplação também
já aparecera antes. Mas o ideal de se retirar António foi o precursor de uma longa série.
para o deserto ganhou uma nova dimensão Bamber Gascoigne esboça não sem algum hu-
com a proposta da imitação da luta contra o mor o efeito irradiante de tais acções:
diabo que Jesus teria travado no deserto. 405
Podia-se pensar que António e os seus seguidores já es-
Em Een ander testament escrevi sobre isso: tavam suficientemente desconfortáveis nos seus bura-
cos, mas em breve foram ultrapassados por outros.
Depois do baptismo, Jesus retirou-se para o deserto. Monges da Síria decidiram viver no alto de colunas: os
Num retiro interior de quarenta dias, Jesus harmoni- famosos estilitas. O primeiro, São Simeão, passou os
zou-se com o Cristo. Foi necessária uma imensa luta últimos vinte anos da sua vida no alto de uma coluna
interior para aceitar na sua totalidade aquilo para que se de 15 metros, sem nada a não ser uma balaustrada para
tinha preparado; para o deixar unificar-se perfeitamente o impedir de cair. A sua fama era tão grande que vi-
com o seu próprio ser. Jesus não lutou contra um Satan nham visitá-lo pessoas de tão longe como a costa atlân-
exterior a si. Jesus lutou uma luta dentro de si mes- tica, da Espanha e até da Inglaterra. Todas as tardes
mo. 406 costumava reunir-se uma multidão na base da coluna.
As pessoas gritavam para o alto os seus problemas, os
Mas os monges viam o diabo como um poder seus medos, as suas preocupações e o santo guinchava
maligno exterior a eles. O já mencionado Ata- o seu conselho para baixo. Era o primeiro ‘ombuds-
man’. Em breve havia gente em cima de colunas por
násio escreveu sobre António, declarado san- todo o deserto sírio. Até a ascese pode tornar-se mo-
to: da. 409

O inimigo costumava insinuar pensamentos pestilentos, O ideal monástico encontrou grande eco tam-
mas António expulsava-os sempre com as suas ora-
ções. O diabo, ordinário, ousava aparecer à noite como
bém no Egipto, sobretudo entre a população
mulher. Era como se diabos atravessassem as quatro do interior acabada de cristianizar, que se tor-
paredes da pequena cela e irrompessem como feras e nou ‘monja’ (de monachoi, vinda de monè =
répteis. De repente, todo o quarto estava cheio de es- lugar de estadia) em grande número. Por volta
pectros de leões, ursos, leopardos, touros, cobras e ví- do ano 323, Pacómio uniu um certo número
boras, escorpiões e lobos. António dizia: ‘imitares a fi-
gura das feras é uma prova da tua impotência.’ 407
desses monges num koinóbion, numa comuni-
dade monástica, não longe de Tebas, perto do
Esta descrição do bispo de Alexandria, tão es- Nilo. Seguiram-se acordos sobre horas de ora-
plendidamente representada por muitos artis- ção obrigatórias, uma detalhada divisão do dia
tas, ilustra o facto de que a igreja ‘oficial’ ti- e uma obediência incondicional à direcção.
nha poucas dificuldades com tais formas de Foi o princípio de um desenvolvimento que
ascese rigorosa e de rejeição do mundo. A teve o seu ponto alto na Idade Média.
biografia de António, a Vita Antonii, é um dos
primeiros exemplos de biografia romântica ou
hagiografia (descrições de santos), a que mui- As pedras de construção de uma
tos outros se seguiriam no decurso da história. igreja
Nessas obras tratava-se mais de acentuar a
santidade da pessoa do que de fazer um relato Do que foi dito nos capítulos precedentes, tor-
historicamente fiel dos seus actos. Neste caso na-se claro que não houve unidade de pensa-
concreto, Bartelink comenta secamente: mento, sensibilidade e acção nos primeiros sé-
culos do cristianismo. A igreja posterior fez
Embora o iletrado ancião copta fosse completamente parecer que teria havido uma transmissão
estranho à filosofia grega, isso não impediu o seu bió-
apostólica ininterrupta na qual, com o decor-
grafo de incorporar algumas noções oriundas do estoi-
rer do tempo, o puro ensinamento foi macula-
do pela heresia. Esta concepção é incorrec-
405
Mc. 1:13.
406
Een ander testament, 61.
407
Atanásio, Vita Antonii, op.cit. R. T. Meyer e R. C.
408
C. de Savornin Lohman em B. Gascoigne, De Christe- Bartelink, Het vroege christendom, 97.
409
nen, 12 Gascoigne, De Christenen, 50.
ta. 410 O ‘pagão’ Celso, a que Orígenes se Mas muitos cristãos experimentavam o Espí-
opôs, já tinha notado que o cristianismo con- rito de Cristo na sua psique, no seu ‘corpo
sistia em muitas seitas separadas que, fre- emocional’. Não sabemos isso apenas pelas
quentemente, já nada tinham em comum para experiências na nossa consciência do século
além do nome de cristã. 411 XX e pela psicologia moderna, também pes-
As várias comunidades cristãs estavam muito soas como Valentino e Orígenes escreveram
espalhadas por todo o Império Romano e tam- sobre isso. Nos cristãos ‘psíquicos’, a expe-
bém fora dele. As diferenças culturais desem- riência de Cristo libertava muita coisa na sua
penhavam um papel importante 412, como vi- vivência emocional. Isso levou alguns a esco-
mos, por exemplo, em Alexandria. Mas penso lherem voluntariamente o martírio ou a fica-
que a causa principal das grandes diferenças rem profundamente emocionados com as ima-
era a liberdade de esxperiência, posteriormen- gens evocadas, por exemplo, pela morte de
te declarada ilegal. Quanto mais pneumatica- Jesus na cruz, ou a tornarem-se agressivos
mente, quanto mais espiritualmente, o Espíri- quando outros afirmavam coisas com que não
to de Cristo fosse experimentado na própria estavam de acordo e que consideravam uma
vida, tanto maiores eram as diferenças psíqui- profanação do seu ‘santo’ sentimento. Isto é
cas individuais. Pois para o homem espiritual- muito concreto. Para a minha sensibilidade,
mente adulto, essas diferenças são pratica- os Padres da Igreja foram demasiadamente
mente irrelevantes. Tertuliano, na sua tirada descritos em círculos anti-clericais como um
contra a liberdade de espírito citada acima na bando de fanáticos sequiosos de poder. Mas a
página 61 dá disto uma esplêndida ilustração. sua indignação era frequentemente muito pro-
Para muitos, a acção de Cristo na própria funda e sincera, e também muito
consciência era uma vivência tão rica que dis- compreensível, dado o seu nível de
cussões e controvérsias sobre regras de fé consciência.
eram sentidas como pobreza. Para o ‘pneumá- A palavra emoção tem a mesma raiz latina de
tico’, isso era uma estação já passada. ‘mover’. Daí que falemos frequentemente de
À medida que o cristianismo se espalhava alguém ‘comovido’ quando esse alguém é to-
apesar da repressão, e à medida que a radia- cado emocionalmente. As emoções são movi-
ção de Cristo enfraquecia no plano psíquico, mentos que procuram repouso. Algumas pes-
apareciam cada vez mais pessoas que exigiam soas estão espiritualmente tão desenvolvidas
uma estrutura. É certo que haviam ainda mui- que podem introduzir-se nas emoções para
tos espíritos grandes – passámos em revista verem de onde vêm e o que elas têm a dizer à
vários deles nos capítulos anteriores – que pessoa que as tem. Entram assim em contacto
ainda experimentavam em si o Espírito de com os estratos profundos da sensibilidade;
Cristo numa medida tão grande que instruíam pois emoção e sensibilidade são duas coisas
e animavam os outros em perfeito amor, sem diferentes. Nesses estratos profundos da sen-
qualquer constrangimento. Para esses homans sibilidade, encontrarão, após uma inquietação
e para os seus seguidores não eram necessá- inicial, o repouso. Encontrarão então o equilí-
rias regras, leis ou dogmas, porque a assimila- brio em que, tal como expressa Jesus no
ção do Espírito de Cristo na sua própria cons- Evangelho dos Hebreus, podem ser reis do
ciência espiritual e a fusão que se lhe seguia seu próprio ser.
era para eles uma consumação. Não tinham
qualquer necessidade de um ensinamento. Quem procura não achará repouso
até que encontre.
Tendo encontrado,
410
Sobre isto, ver por exemplo, P. Stockmeier, ‘Das maravilhar-se-á
Schisma-Spaltung und die Einheid in der Kirchenge- e estando maravilhado
schichte’, em P. Stockmeier (coord.), Konflikt in der será rei
Kirche, 81. e sendo rei
411
Orígenes, Contra Celsum, 3.10-12. Também E. R. encontrará repouso. 413
Dodds fala no seu Pagan and Christian in an Age of
Anxiety de ‘no authoritative Christian creed nor any
fixed canon of Christian scripture’ (103-104).
412 413
Sobre isto, ver também por exemplo, J. Tigcheler, Fragmento do Evangelho dos Hebreus (citado em
Gemeenschappen in het Nieuwe Testament. Stromateis V.14, 96).
Embora o cânon ainda não esteja estabeleci-
Mas muitas pessoas procuram esse repouso, do, vemos no fim do século II já um certo
essa certeza serena, fora de si mesmas, embo- consenso sobre quais os escritos importantes:
ra a maior parte das vezes o façam incons- os quatro evangelhos do Novo Testamento, os
cientemente. Erigindo regras, criando uma Actos e as cartas de Paulo.
confissão de fé, determinando que escritos são E já há uma espécie de profissão de fé, embo-
santos e que escritos não o são, sabendo quem ra ela ainda não seja válida enquanto tal para
é o chefe, quem é o subordinado e quem tem toda a igreja. 416
qual tarefa, essas pessoas criam para si uma Não nos podemos esquecer de que estamos a
tranquilidade (aparente) e uma certeza (ilusó- falar apenas daquela parte do cristianismo
ria). É, porém, uma tranquilidade que é posta que, por assim dizer, ficou sob a luz dos holo-
fora de si mesmos. A responsabilidade é as- fotes. É a forma de cristianismo que se deslo-
sim afastada para o exterior. Isso é seguro, é cou cada vez mais para ocidente. No oriente
familiar, parece certo. Pode até ser posto ao vivia uma cristianismo totalmente diferente,
serviço de grandes ideiais, de uma religião. que só neste século começou a despertar cada
No nosso século, Maslow escreveria sobre is- vez mais interesse: o cristianismo judaico e sí-
to: rio. 417 Grupos como os Ebionitas, os Nazare-
nos, os Elkesaítas, os Messalianos, e outros
Quando se contempla detalhadamente a história interna quase que se subtraem à nossa percepção. Pe-
da maior parte das religiões mundiais, vê-se que todas lo que os Padres da Igreja escreveram,
mostram muito rapidamente a tendência de se dividi-
rem numa ala esqurda e numa ala direita, isto é, nos
sabemos que possuíam escritos muito antigos,
toppers, nos místicos, nos transcendentes e nos homens como um Evangelho de Mateus, composto em
pessoalmente religiosos, por um lado, e por outro, na- aramaico (ou em hebraico), e também um
queles que concretizam os símbolos e as metáforas reli- Evangelho dos Ebionitas, um Evangelho dos
giosas, que preferem adorar pedaços de madeira àquilo Nazarenos, e um Evangelho dos Hebreus.
que eles representam, que compreendem literalmente
as fórmulas verbais e assim esquecem o significado
Ireneu inclui-os entre os hereges 418 e em con-
original dessas palavras e, talvez mais importante, con- sequência dessa atitude esses escritos
sideram a organização, a igreja, como fundamental e originais foram mais tarde destruídos.
mais importante do que o profeta e as suas revelações Havia ainda partes do mundo que não esta-
originais. 414 vam sob domínio romano. Formas de cristia-
nismo que floresceram nessas regiões eram
Nas suas tabelas cronológicas, Schmidt põe a quase desconhecidas das restantes comunida-
igreja católica primitiva a começar cerca do des cristãs, sobretudo das do ocidente. Um
ano 200 depois de Cristo. 415 Por volta dessa exemplo gritante desta situação é a cidade-es-
época, vemos efectivamente que um certo nú- tado de Edessa, onde o apóstolo Tomé era
mero de processos, tal como relatado acima, adorado 419 e onde trabalhou o grande astrólo-
estão mais ou menos condensados. go e mestre cristão Bardesanes. 420 O primeiro
Nesse momento, há uma certa estrutura cleri-
cal. Vemos que o bispo Clemente de Roma,
416
por volta do ano 100, dá já uma directriz onde Segundo Tertuliano, os convertidos deviam respon-
os funcionários, os bispos, são postos acima der afirmativamente às seguintes perguntas:
‘Crês em Deus, o Pai Todo-Poderoso? Crês em Jesus
dos mestres e dos profetas. Cristo, o filho de Deus, que nasceu da virgem Maria
pelo Espírito Santo, foi crucificado sob Pôncio Pilatos,
morreu e foi enterrado, e ressuscitou dos mortos ao ter-
Ver também o logion 2 do Evangelho de Tomé, onde se ceiro dia, e subiu ao céu, e está sentado à direita do Pai,
lê: e regressará para julgar os vivos e os mortos? Crês no
‘Jesus disse: Espírito Santo, na santa Igreja e na ressurreição da car-
“Que aquele que procura não pare de procurar ne?’ (H. Chadwick e G. Evans, Atlas van het Christen-
até que encontre dom, 24).
417
e quando encontrar inquietar-se-á Ver entre outros, G. Quispel, Makarius, das Tho-
e estando inquieto maravilhar-se-á masevangelium und das Lied von der Perle.
418
e reinará sobre o Todo.”’ Adv. Haer. I.26,2.
414 419
Abraham H. Maslow, Religions, values, and Peak- Ver A. F. J. Klijn, Edessa, de stad van de apostel
Experiences.. Thomas.
415 420
K. D. Schmidt, Tabellen zur Kirchengeschichte, 16. Ver H. J. W. Drijvers, Bardaisan of Edessa.
historiador da igreja cristã, Eusébio, afirma ano, o imperador converteu-se ao cristianis-
mesmo ter encontrado nos arquivos desta ci- mo. 422
dade correspondência entre o rei Abgar de Na história do cristianismo, isto era algo de
Edessa e Jesus. 421 inteiramente novo. De religião perseguida, o
cristianismo tornava-se de um dia para o outro
Em conclusão, podemos afirmar que se for- uma religião permitida. Os cristãos podiam li-
maram cada vez mais pedras de construção teralmente sair dos seus esconderijos e cata-
para a edificação de uma igreja central. A sua cumbas e reunir-se nas magníficas basílicas
concretização pôde ter lugar quando o cristia- que se ergueram durante o governo deste prín-
nismo foi permitido sob o imperador Constan- cipe.
tino, e quando, posteriormente, foi tornado re- A igreja gloriosa triunfava.
ligião de estado. Isto marcou o princípio e um Ou pelo menos é assim que as coisas são ge-
fim. Uma vitória e uma derrota. Mas sobre is- ralmente vistas. Mas a realidade era outra.
so falaremos nos capítulos seguintes. O cristianismo estava desesperadamente divi-
dido. Muitos grupos rivais travavam entre si
lutas de vida ou de morte. E isto não só em
7. O fim de um princípio e o sentido figurado, pois sobretudo no Norte de
África os cristãos corriam perigo de vida.
princípio de um fim Existiam aí autênticos bandos de rufiões, cir-
cumcelliones 423, que os esfaqueavam com to-
O sonho de Constantino do o prazer e que preferiam ser eles a bater a
voltar a outra face quando uma era esbofetea-
Foi numa tarde do ano 312 que o imperador da.
romano Constantino viu um sinal no céu. O Estes bandos de rufiões consistiam em segui-
sinal tinha a forma de uma cruz. Por baixo, dores de um certo Donato. Este tinha sido es-
estava em letras luminosas: colhido para bispo por cristãos direitistas re-
voltados contra o bispo original Ceciliano,
In hoc signo vinces (por este sinal vencerás) que, em 311, tinha sido consagrado bispo em
Cartago. O que, aos olhos dos donatistas, ti-
Constantino, que estava na véspera de uma nha sido algo de muito mau. Pois um dos bis-
importante batalha contra o seu rival Maxên- pos que tinham confirmado no seu ministério
cio, reflectiu longamente sobre o que viu, mas o manso Ceciliano não tinha resistido à opres-
não chegou a nenhuma conclusão. Até que na são que sobre ele se tinham exercido durante
noite que se seguiu à visão teve um sonho ex- as perseguições de Diocleciano: tinha entre-
cepcional. Nesse sonho, apareceu-lhe um gue os livros santos aos perseguidores que os
Cristo radiante que lhe disse para levar consi- abandonaram imediatamente ao fogo. Com
go o sinal que vira nesse dia para a batalha esse acto, o fraco não só se tinha tornado indi-
que se avizinhava. gno, como tornava indigno todos os que fos-
Os escudos foram apressadamente providos sem consagrados por ele. Segundo este anti-
de cruzes e na Pons Milvius, às portas de Ro- bispo, a exclusão devia tornar-se a regra na
ma, Constantino conseguiu uma estrondosa cristandade e ser obrigatória.
vitória sob o seu rival, que morreu na batalha.
Constantino assentou com essa batalha o do-
mínio exclusivo do imenso Império Romano. 422
O primeiro a relatar estes factos foi Lactâncio, o fu-
E, contam os contemporâneos, nesse mesmo turo mestre do filho de Constantino: De mortibus per-
secutorum 44.5. N.R.C: Lactâncio, Sobre a Morte dos
Perseguidores [séc. IV], tradução em português: José
421
H. E. I.13,5. O conteúdo dessa correspondência en- Pereira da Silva. Ver também Robin Lane Fox, De
contra-se a seguir em I.13,6 e seguintes. N.R.C: Há droom van Konstantijn, 582-632.
uma tradução portuguesa em Cartas do Senhor, de L.
423
P. Baçan. Esta correspondência foi aceite como Ver H. W. Pleket, ‘De circumcelliones: “Primitive
autêntica em algumas igrejas orientais ortodoxas, mas Rebels” in de late keizertijd in Noored Afrika’, em L.
não no ocidente. Foi excluída do cânon pelo Decretium G. Jansma e P. G. G. M. Schulten, Religieuze bewegin-
Gelasianum, atribuído ao papa Gelásio I (492-496). gen, 67-87.
defendeu que o próprio Pai tinha sofrido no Gólgota;
Tais discussões não eram novas. Havia Deus desaparecia assim totalmente atrás da aparição de
Cristo (‘patripassianismo’). Mas então punha-se a
muitos pontos de discórdia na igreja dividida questão do que é que restava da diferença entre o Pai e
que, nesse sentido, ainda não podia de o Filho.
maneira nenhuma ser chamada católica (= A igreja conseguiu melhor calar estes opositores do
geral 424). Mesmo numa obra concisa como o que estabelecer uma verdadeira confissão bíblica. Con-
manual para os estudantes de teologia e tra Paulo de Samosata ela defendeu a identidade essen-
cial de Deus e Cristo, contra Sabélio, a diferença entre
história da igreja, História da Igreja, há ambos. 425
páginas inteiras cheias de vívidas discussões
entre os diversos funcionários da igreja Grandes divisões, portanto, entre os membros
antiga. Por exemplo, sobre a doutrina do do cristianismo antigo de trezentos anos. Mas
Lógos, lê-se aí: com a conversão de Constantino, algo tinha
mudado. Agora que o estado se começava a
Entretanto, graças aos apologetas, a Tertuliano e a Orí-
genes, o conceito de Lógos encontrava-se no centro da
ocupar do cristianismo de outra forma que
reflexão teológica. Mas continuava a ressoar o seu sen- não assassinar de vez em quando algumas
tido pagão relativamente a um ser intermédio semi-di- centenas de cristãos por se recusarem a adorar
vino. Alguns, precisamente porque queriam confessar os deuses romanos, o efeito era duplo: o esta-
Jesus como Cristo, não podiam aceitar isto. do tinha, na antiquíssima tradição da Pax Ro-
Queriam evitar o uso do conceito de Lógos. Pois se Je-
sus era o aparecimento do Lógos, não podia ao mesmo
mana, todo o interesse em que houvesse tran-
tempo ser o aparecimento do verdadeiro Deus ou então quilidade e unidade entre os membros; e os
tinham de existir dois deuses. A Bíblia não ensinava tal cristãos estavam menos limitados na sua li-
coisa. Eles estavam convencidos de que apenas Deus berdade de movimentos. Funcionários, qu an-
imperava; Tertuliano rejeitou-os, por isso, como “mo- tes balançavam na fronteira entre a vida e o
narquianos”. Alguns referiam-se a Cristo como a um
homem vulgar, no qual a força divina habitava como
martírio, tornavam-se agora membros respei-
num templo. De maneira excepcional, o Espírito tinha- tados da sociedade que antes os perseguia. E
o provido de força e de sabedoria. Podia-se considerá- agora que a unidade no interior do cristianis-
lo ‘Filho de Deus’ por adopção. Este ‘monarquianismo mo ameaçava tornar-se uma questão de esta-
dinamista’ (dýnamis = força) ou ‘adopcionista’ foi de- do, esses homens não eram apenas servidores
fendido em Roma cerca de 190 e condenado pelo bispo
Victor. Por causa de uma doutrina semelhante, o Bispo
da igreja, eram também uma espécie de ‘mi-
de Antióquia, Paulo de Samosata, foi deposto em 268. nistros’ do império. Grandes viagens a lugares
Ele considerava que a ligação entre Deus e Jesus se ba- longínquos, para participar num concílio, por
seava essencialmente na vontade; apesar de todas as exemplo, já não eram um assalto à caixa da
tentações e lutas, essa ligação tinha-se mantido. A ins- comunidade cristã, eram pagas pelo estado.
piração de Jesus era a forma superior da inspiração dos
profetas. Surgia necessariamente a questão do que res-
Mas estes transportes grátis não foram o in-
tava da diferença entre o Senhor e todos os outros ho- centivo do primeiro concílio ecuménico que
mens, eventualmente crentes. foi convocado na cristandade, o concílio de
Mais perto da Bíblia parecia permanecer Sabélio, que Niceia, um lugar nas vizinhanças de Bizâncio,
trabalhou em Roma por volta de 220. Segundo Ele, Je- a cidade que alguns anos mais tarde seria cris-
sus era o aparecimento do próprio Deus único. Pai, Fi-
lho e Espírito eram três designações, energias, ‘másca-
mada em Constantinopla (cidade de Constan-
ras’, do único ser divino que se tinha manifestado su- tino). Como vimos, no passado tiveram lugar
cessivamente dessa forma. Eram formas de apareci- concílios, mas eram, quando muito, regionais.
mento (‘modi’) atrás das quais o divino parecia adqui- Agora, porém, um ano depois de ter assegura-
rir algo de impessoal. Embora Sabélio pudesse confes- do o seu governo exclusivo derrotando o seu
sar que ‘Deus estava em Cristo’, a igreja acabou por re-
jeitar este ‘monarquianismo modalista’. Também se
último rival Licínio, o imperador tomou a ini-
ciativa de convocar uma grande reunião geral
424
de bispos a fim de encontrar solução para um
Nota do RC: O termo “católico” deriva do termo grande número de problemas.
grego “katholikós”, combinação ddos termos: “kata” –
concernente – e “holos” – totalidade; por conseqüência,
“concernente à totalidade” ou “integral, abrangente”. A causa directa da convocação de um concílio
De acordo com o Dicionário Oxford de Etimologia, o geral não foi a discussão entre Donato e os
termo católico surge de uma palavra grego cujo
significado é “relativo à totalidade” ou mais
425
simplesmente, “geral ou universal” O. J. de Jong, Geschiedenis der Kerk, 47-48.
seus opositores – que achavam os pontos de des e ‘filosofices inúteis’; solucionar isso pa-
vista deste bispo bastante duros e severos – recia-lhe uma ninharia ao lado da aborrecida
foi uma outra disputa, entre Ário e Alexandre. questão dos donatistas, que nunca mais deixa-
Ário era um padre alexandrino que, na boa va de zumbir aos ouvidos.
tradição dessa cidade, tinha tido uma sólida Na sua grande ingenuidade, sem o impecilho
educação filosófica. E esse Ário ia um passo de centenas de anos de cristianismo teológico,
mais longe do que Orígenes tinha ido no seu escreveu cartas de admoestação a Alexandre e
tempo nas suas concepções sobre a natureza a Ário com ordem imperial para se reconcilia-
de Jesus. Orígenes tinha afirmado que Deus e rem:
o Filho não eram idênticos, embora ambos es-
tivessem impregnados da mesma essência. Perdoai-vos, pois, mutuamente tanto a indecisão da
Aos seus olhos, o Pai era o Deus autêntico e questão como a inconveniência de a querer resolver...
Fazei com que possa voltar a ter dias tranquilos e noi-
Cristo era um homem-Deus. O nome de Cris- tes despreocupadas e para que me sejam mantidas a
to não estava reservado apenas a Jesus de Na- alegria da pura luz e a felicidade de uma vida tranqui-
zaré porque la. 427

sabemos que Cristo veio à terra e vemos ao mesmo A carta não surtiu o efeito desejado. Com a
tempo que, por ele, muitos Cristos surgiram neste mun- ajuda das intrigas do portador da carta impe-
do. 426
rial, o bispo espanhol Hosius, o caso agravou-
-se nitidamente. Irritado com a maneira como
Ário partia de um Deus incriado, eterno e de
as coisas evoluíam, o imperador decidiu con-
um Filho criado. Enquanto que Orígenes pos-
vocar um concílio para fazer desaparecer a
tulava que não houve tempo em que o Lógos
questão de uma vez por todas da face da terra.
(o Cristo pré-existente) não existia, Ário afir-
Acessoriamente, poderiam também ser discu-
mava que houve um tempo em que o Lógos
tidas e solucionadas algumas outras questões
não existia, porque Deus estava tão acima do
e assuntos de fé que se arrastavam cronica-
cosmos que o Lógos criador não podia de ma-
mente.
neira nenhuma serr igualado a ele. Enquanto
E assim aconteceu.
criatura, Jesus, por muito elevado que fosse,
era de uma natureza diferente da de Deus e
era-lhe subordinado.
Ora Ário tinha um bispo que se chamava Ale-
Niceia, 325
xandre. E este partia do princípio de que o Pai
e o Filho eram da mesma essência. Jesus não Em Junho do ano 325 depois de Cristo reu-
era uma criatura, porque senão, aos olhos des- niu-se o primeiro concílio ecuménico. Mais
te Alexandre, ele nunca se poderia ter unido de 250 bispos e uma multidão de presbíteros e
ao Pai. E como pensava que tinha razão nisto, diáconos de todas as partes do império reflec-
excomungou e baniu, com o auxílio de um tiram juntos sobre um grande número de as-
concílio reunido em Alexandria, o herege suntos de fé. Mas uma coisa foi clara desde o
Ário. Mas pouco efeito surtiu. O último tinha princípio. O homem que um dia tinha dito do
amigos bastante poderosos, entre os quais Eu- cargo de bispo
sébio, bispo de Nicomédia, e um outro Eusé-
a única diferença é que tu exerces o cargo dentro da
bio, bispo de Cesareia (o historiador da igre-
Igreja, enquanto que eu fui designado por Deus como
ja). Rapidamente, Ário regressou sobre os bispo dos que estão fora da Igreja 428,
seus passos e ficou onde sempre estivera: em
Alexandria, onde o seu oponente continuava a esse homem, o imperador, era quem acabava
empunhar o ceptro episcopal. por decidir. A igreja e o estado já não estavam
Constantino, já foi dito, não queria inquieta-
ção no seu império. E diferenças sobre igual- 427
Carta de Constantino a Alexandre e Ário (parcial-
dade ou desigualdade de essência eram consi- mente) transcrita em François Roget, Van Nicea tot Bo-
deradas por este imperador grandes frivolida- nifatius, 21-22 e G. J. Aalders, De grote vergissing,
114.
428
Eusébio, De Vita Constantini, op. cit. G. J. D. Aal-
426
Orígenes, op. cit. W. Nigg, Tragiek, 48. ders, De grote vergissing, 127-128.
separados, embora isso ainda não fosse oficial cessário encontrar repetidamente resposta a
e apenas acontecesse na prática. E essa não determinadas concepções a fim de minimizar
separação teve o seu preço, como se constata- a possibilidade de infiltração de ideias dife-
rá com o decurso posterior da história. rentes e heréticas.

A primeira tarefa do concílio foi, como dissé- Cremos num único Deus, o Pai todo poderoso, Criador
mos, encontrar uma saída para a controvérsia de tudo o que é visível e invisível, e num único Senhor,
Jesus Cristo, o filho de Deus, que, como Filho unigéni-
entre Ário e Alexandre. Por proposta do pró- to, nasceu do Pai, isto é, da essência do Pai, Deus de
prio Constantino, praticamente todos concor- Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
daram com a declaração de que ‘o Filho é da nascido, não criado, uno em essência com o Pai, por
mesma essência que o Pai’, a chamada doutri- quem tudo foi criado no céu e na terra, que por amor a
na do homoousius. Condenaram-se assim as nós, homens, e por amor à nossa salvação, desceu e
tornou-se carne e homem, que padeceu e ressuscitou ao
concepções de Ário. terceiro dia, subiu ao céu e regressará para julgar os vi-
Isso mesmo se constatou imediatamente na vos e os mortos, e no Espírito Santo. Porém, quem dis-
profissão de fé então composta e aceite. Esse ser: ‘houve um tempo em que ele não existiu’ e ‘Ele
credo devia pôr termo às diversas formas de não existia antes de ser engendrado’ e ‘Ele foi criado
confissão que eram usadas nas várias comuni- do nada’ e quem afirmar que o Filho de Deus foi criado
de uma essência ou é incontante ou mutável, rejeita a
dades. Tornado ligeiramente mais incisivo igreja católica.
num concílio posterior em Constantinopla
(381), esta profissão de fé tornou-se válida em Como dissémos, este texto foi tornado mais
toda a igreja. incisivo no segundo concílio ecuménico de
Embora no passado os bispos de Roma se te- Constantinopla:
nham frequentemente arvorado em líderes
(oficiosos) da igreja 429, foi decidido em Ni- Creio num único Deus, o Pai todo poderoso, Criador
ceia que os patriarcas de Alexandria, Antió- do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisí-
quia, Jerusalém e Roma tinham o mesmo es- veis.
tatuto e exerciam uma função primacial no in- (Isto é claramente dirigido contra algumas concepções
gnósticas onde era questão de um Deus não nascido e
terior da hierarquia clerical. 430 Uma vez que desconhecido, uma força primordial, que na sua hiper-
apenas cinco anos mais tarde, em 330, Cons- plenitude, gera emanações. Uma dessas emanações in-
tantinopla foi consagrada oficialmente como voca em ignorância o caos, que é levado à ordem,
‘cidade cristã’ por Constantino, faltava um Kósmos, por um demiurgo, criador do céu e da terra.)
nome na lista; mas isso seria corrigido. E num único Senhor Jesus Cristo, o filho unigénito de
Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos, Deus
Por fim, concordou-se numa data comum para de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verda-
a Páscoa, para pôr fim às diferentes datas que deiro, nascido, não criado, da mesma essência do Pai
eram usadas nas várias comunidades. e por quem todas as coisas foram feitas;
Na profissão de fé formulada, que o crente de- (Vemos aqui claramente integrado o dogma do
via recitar no baptismo, nota-se claramente homoosius
que por nós homens e por nossa salvação desceu do
que ela é uma espécie de culminação de for- céu e se tornou carne pelo Espírito Santo da virgem
mas anteriores e mais simples. 431 Mas foi ne- Maria, e se tornou homem;
(O nascimento virginal tornou-se dogma e a porta fe-
429
Já por volta de 220, o bispo Calisto I de Roma invo- chou-se para aqueles que ainda tinham noção da virgin-
ca Mateus 16:18 para reclamar, enquanto sucessor de dade simbólica de Maria, que foi substituída por uma
Pedro, o primado para Roma. Tanto Tertuliano como virgindade material).
Orígenes se opuseram a tal coisa. que foi crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, pade-
430
Sobre o primado destes bispos, ver, entre outros, ceu e foi enterrado, que segundo a Escritura ressusci-
Adolf von Harnack, Entstehung und Entwicklung der tou ao terceiro dia e subiu ao céu e está sentado à di-
Kirchenverfassung uns des Kirchenrechts in den zwei reita do Pai e regressará em magnificência para julgar
ersten Jahrhunderten (II, 26). os vivos e os mortos; cujo Reino não terá fim.
431
O Romanum, uma confissão baptismal romana, data
provavelmente do século II. O seu texto é: ‘Creio em vos e os mortos, e no Espírito Santo, na única santa
Deus, o Pai todo-poderoso, e em Jesus Cristo, seu Filho Igreja, no perdão dos pecados e na ressurreição do cor-
unigénito que nasceu do Espírito Santo e da virgem po. Amen.’ Um grande número de textos (originais) re-
Maria, foi crucificado e enterrado sob Pôncio Pilatos, lativos ao baptismo pode ser consultado em Heinrich
ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, subiu ao céu e Kraft, Texte zur Geschichte der Taufe besonders der
está sentado à direita do Pai de onde virá julgar os vi- Kindertaufe in der alten Kirche.
(Aqui luta-se contra o docetismo. Também a ressurrei- contrava um verdadeiro aliado em Constanti-
ção, tal como o símbolo do nascimento virginal, foi no. Em 326, um ano depois do concílio de Ni-
materializada).
E no Senhor, no Espírito Santo, que torna vivo, que
ceia, o príncipe emitiu um duro édito dirigido
emana do Pai e do Filho, e que em conjunto com o Pai aos ‘Novacianos, Valentinianos, Marcionitas,
e o Filho é adorado e honrado; e que falou através dos Paulianos, Catafrígios e, em suma, a todos os
profetas. que formam seitas em reuniões privadas’.
(Os pensamentos formados anteriormente sobre a trin- ‘Porque é que’, interrogava-se o príncipe, ‘ha-
dade, são aqui resumidos numa fórmula. Além disso, e
do Filho (filioque) é um acrescento ocidental posterior.
vemos de tolerar por mais tempo os seus deli-
Mais tarde, isto seria um dos mais fortes pontos (exte- tos?A nossa longa tolerância faz com que os
riores) de diferença entre os cristianismos oriental e sadios como que sejam infectados por uma
ocidental, que acabou por conduzir ao seu cisma defi- doença contagiosa, Porque é que não havemos
nitivo em 1054). de cortar pela raiz um tão grande mal?’
E numa única Igreja, santa, geral e apostólica.
(Apenas uma igreja é boa e sem essa igreja não há sal-
O classicista Aalders, que entre outras coisas,
vação possível). descreve este édito no seu estudo de grote
Confesso um baptismo para perdão dos pecados e es- vergissing, afirma que, para Constantino, o
pero a ressurreição dos mortos e a vida do século futu- crime estava, não nos ensinamentos destes
ro. grupos heréticos – Constantino mal tinha co-
(Também a ressurreição originalmente espiritual res-
surreição da essência de Cristo no próprio homem é
nhecimento deles – mas no facto de eles se or-
aqui materializada, e o Reino, de que Jesus dizia que ganizarem fora do âmbito cultual da Igreja; e
estava espalhado sobre a terra mas que os homens (ain- por isso, serem perigosos para o estado. 433
da) não o viam, esse Reino é transposto para um lugar Os Padres da Igreja consideravam as ideias
longínquo e para um futuro brumoso). desviantes um perigo para o instituto igreja
Amen. 432
em formação, o imperador via-as como um
perigo para o estado. A primeira aliança
A formulação de uma tal confissão deixava
monstruosa tornava-se assim um facto. E
pouco espaço para concepções diferentes; e
enquanto que anteriormente a luta era travada
essa era a intenção. Se até então a parte auto-
essencialmente com a pena e a palavra –
ritária da igreja se tinha oposto às ideias ‘he-
àparte uma ou outra excomunhão feita por
reges’, agora que o cristianismo estava tão in-
este ou aquele bispo, imediatamente negada
timamente entretecido com o estado, ela en-
por um ou mais dos seus colegas de ofício –
agora a luta tomava um carácter muito mais
432
Na sua forma latina, o texto da confissão é o seguin- lúgubre. Pois com a efectivação da ligação
te: entre a igreja e o estado – meio século mais
Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem tarde o cristianismo tornar-se-ia religião de
coeli et terrae, visibilium omnium, et invisibilium. Et
in unum Dominum Jesum Christum, Filium Dei unige- estado e assim a única religião permitida no
nitum. Et ex Patre natum ante omnia saecula. Deum de Império Romano – a igreja adquiriu os
Deo, lumen de lumine, Deum verum de Deo vero. Ge- poderes militares e policiais para intervir
nitum, non factum, consubstantialem Patri: per quem fisicamente. No decurso da história, isso
omnia facta sunt. Qui propter nos homines, et proptem levou não só a muitas execuções horrorosas,
nostram salutem descendit de coelis. Et incarnatus est
de Spiritu Sancto ex Maria Virgine: et homo factus est. mas também à destruição de literatura
Cruxifixus etiam pro nobis:sub Pontio Pilato passus, et extremamente valiosa. Neste sentido, o ca-
sepultus est. Et resurrexit tertia die, secundum Scriptu- pítulo ‘Constantino’ representa o encerramen-
ras. Et ascendit in coelum: sedet ad dexteram Patris. Et to de um período; mas ao mesmo tempo o iní-
iterum venturus est cum gloria iudicare vivos et mor- cio de um cristianismo político. De um cris-
tuos: cuius regni non erit finis. Et in Spiritum Sanctum,
Dominum, et vivificantem: qui ex Patre, Filioque pro- tianismo que já tinha tão poucos pontos de
cedit. Qui cum patre, et Filio simul adoratur, et conglo- contacto com os ensinamentos intrínsecos de
rificatur: qui locutus est per Prophetas. Et unam sanc- Jesus de Nazaré que podemos mesmo falar de
tam, Catholicam et Apostolicam Ecclesiam. Confiteor um fim.
unum baptisma in remissionem paccatorum. Et expecto
resurrectionem mortuorum. Et vitam venturi saeculi.
Amen.
O texto aqui apresentado é o Niceno-Constantinopoli-
tano de 381 (inclui o acrescento filioque, válido desde
433
809). G. J. D. Aalders, De grote vergissing, 141-142.
O espantoso Atanásio revoltoso, os Milicianos. Naturalmente que is-
to deu a Constantino todas as razões para or-
Se o primeiro imperador cristão tinha a ilusão denar um inquérito oficial. Mas o jovem bispo
de que o concílio por ele arranjado poria fim a não esperou passivamente por ele e começou
todas as dificuldades, então não conhecia ain- a procurar a pressuposta vítima; e encontrou
da suficientemente bem os cristãos e estava num mosteiro qualquer o ‘assassinado’, vivo
enganado. A controvérsia sobre Ário, que vol- e de boa saúde cuidadosamente escondido
tou a ser banido por esse concílio, continuou a pelo partido oposto.
dar que falar, sobretudo porque houve alguns Esta actuação enérgica é típica do carácter
membros do sínodo que apoiaram abertamen- obstinado de Atanásio, que foi diversas vezes
te Ário. Menos de um ano depois do concílio, banido durante o seu ministério mas que con-
Constantino, depois de um encontro pessoal seguiu sempre voltar à sua cidade natal de
com Ário, escreveu uma carta ao seu rival Alexandria.
Alexandre ordenando-lhe que voltasse a in- Não foi pela Carta Pascal de 387, e também
corporar Ário na comunidade, porque Ário, não pela biografia romanceada de António,
juntamente com os seus seguidores, se teria eremita do deserto, a Vita Antonii, que Ataná-
posto praticamente de acordo com a formula- sio ficou mais conhecido, foi pela sua teimosa
ção homo-ousios do concílio. luta contra Ário e os seus seguidores, os aria-
O velho Alexandre, felizmente para ele, não nos. Atanásio via na opinião dos Arianos so-
foi obrigado a cumprir este ‘pedido’ imperial, bre a desigualdade essencial do Pai e do Fi-
porque morreu entretanto. lho, de Deus e de Cristo, um grande perigo.
Os problemas pareciam solucionados. Ário já Embora inicialmente fosse apoiado nisso pe-
estava por assim dizer de mala aviada, quando las declarações de ‘Niceia’, o facto é que, en-
se tornou claro que o sucessor de Alexandre, tretanto, as concepções gozavam de uma
Atanásio, seu homem de confiança, pura e grande popularidade numa grande parte do
simplesmente se recusava a aceitar Ário na Império Romano, sobretudo no oriente. O
sua diocese. Está fora do âmbito deste livro comportamento hesitante, primeiro de Cons-
dar uma perspectiva cronológica detalhada de tantino, e depois do seu filho do mesmo no-
todos os passos em frente e atrás, que quase me, e os muitos sínodos regionais em que se
tiveram o carácter de uma farsa. Afinal, trata- tentou contornar e desdizer as decisões de Ni-
-se do conteúdo e não tanto das circunstâncias ceia, favoreceram certamente esta expansão.
à sua volta. E com o aparecimento de Ataná- Na luta clerical, que em essência se tinha tor-
sio como bispo de Alexandria era um novo nado também uma luta política, não se poupa-
capítulo da rica história do cristianismo primi- vam meios para alcançar os fins pretendidos.
tivo que começava. Foi o que descobriu o bispo de Colónia, Eu-
Atanásio estava na casa dos trinta quando lhe frates, quando, encontrando-se em Antióquia
coube em sorte suceder ao seu idoso mestre para um concílio, foi acordado a meio da noi-
Alexandre. Trata-se do mesmo Atanásio que te pelos gemidos inauditos de uma mulher
escreveu em 387 a Carta Pascal que muito nua que opositores arianos tinham contratado
provavelmente – e com toda a certeza incons- e largado no seu quarto. Entretanto, a gritaria
cientemente – provocou o enterramento da da mulher nada tinha a ver com alguma
Biblioteca de Nag Hammadi. Este bispo opinião sobre o fundo político-cristão da
aguerrido não só teve uma vida longa como questão, era apenas o desapontamento de
um episcopado anormalmente comprido. 434 entre os lençóis estar, em vez de um jovem
A sua assunção de funções não aconteceu em atraente, um ancião esquelético. Ao irmão de
circunstâncias cor de rosa. Não só lhe foi le- ofício deste idoso bispo, um certo Estêvão,
gado, à morte do seu antecessor, o affaire que foi responsável por esta intriga, nada mais
Ário, como, pouco tempo depois, foi acusado restou do que retirar-se.
de assassínio por membros de um movimento No plano dogmático, punha-se cada vez com
mais acuidade a questão das relações exactas
entre o Pai e o Filho. Ao lado do Homoousios,
434
Ver, entre outros, Benedictinessen de Bonheide, De a igualdade de essência, formulada em Niceia,
Heilige Athanasius.
apareceu o termo Homoiousios, um termo que fes, desgraçados, abominados por Deus e os
implicava que o Cristo não era da mesma seus ensinamentos designados por disparate,
essência do Pai, mas de uma essência pa- loucura e invenções do diabo.439
recida. Já foi lançado o ridículo sobre o facto Infelizmente, este tipo de linguagem
de se ter lutado muitos séculos por causa da testemunha que até mesmo o princípio mais
diferença daquele simples i; mas isso é natu- santo foi completamente materializado e não
ralmente, uma simplificação da questão (e fazia reconhecer a força do amor, que é
também uma sua relativização). As diferenças precisamente o núcleo essencial do objecto
eram maiores, porque também entre os aria- defendido, independentemente de ser da
nos não havia unidade de opinião. Algumas mesma essência ou não. O cristianismo tinha-
correntes dentro do arianismo estavam muito se tornado extremamente exotérico, material e
perto das formulações de Niceia, outras, co- exterior.
mo, por exemplo, a do conselheiro imperial Atanásio, que tinha lido muito, sabia que no
Aécio, viam o Filho muito mais como homem passado também tinha havido grupos que ti-
do que como Deus. Na já mencionada Antió- nham sido marcados como heréticos por ante-
quia, onde o bispo de Colónia passou por tão cessores seus. Mas ele via nos arianos um pe-
traumatisante experiência, havia serviços reli- rigo muito maior, porque, ao contrário dos
giosos separados para os católicos e para os gnósticos, que tinham a sua própria termino-
arianos. logia e os seus próprios escritos, os arianos
socorriam-se da mesma Escritura que Ataná-
Mas quando os católicos iam à igreja com os arianos, sio confessava. O que era dilacerante nesta fu-
tentava-se no serviço dar a conhecer abertamente a sua nesta discussão era precisamente que a Escri-
cor. Cantasse a comunidade ariana o Gloria à sua ma-
neira: ‘Glória ao Pai pelo Filho no Espírito Santo’, os
tura não dava critérios de distinção, por muito
católicos davam logo a conhecer a sua visão ortodoxa que ambos os lados tentassem arranjar ditos
cantando alto: ‘Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito de Jesus, e também de Paulo, em seu apoio.
Santo’ Chama a atenção que, mais tarde, se tenha in-
serido no Novo Testamento uma passagem
escreve Aalders no seu fascinante estudo so- sobre a trindade que nunca esteve no texto
bre esta época. 435 original. 440 Atanásio defende inteligentemente
Da autoria de Atanásio são conhecidas algu- esta concepção tornada dogma:
mas cortantes obras de refutação dos arianos,
que têm erradamente o nome de Orationes Se a Palavra não estivesse eternamente com o Pai, a
(discursos), visto que nunca foram proferidas trindade também não seria eterna. Pois assim teria exis-
oralmente. tido primeiro uma unidade que se teria tornado numa
trindade por um acrescento posterior. Segundo eles (os
arianos – JS), com a passagem do tempo, o conheci-
É claro que as seitas que se afastaram da verdade con- mento, que temos de Deus, teria aumentado. Mas como
ceberam, cada uma para si, uma espécie de ilusão, e a o Filho não proviria da essência do próprio Pai e teria
sua impiedade há muito que é evidente a toda a gente. surgido do nada, a trindade também teria surgido do
Pois o facto de se terem afastado de nós 436 indica já, tal nada e teria assim havido um tempo em que não teria
como escreve o bem-aventurado João, que essas pes- havido trindade, teria havido apenas unidade. E assim a
soas não pertenciam aos nossos, nem pertencem. To- trindade seria ora incompleta ora completa: incompleta
mam o diabo por aliado porque, segundo as palavras do antes do aparecimento do Filho e completa depois do
Salvador, não se juntam a nós. 437 A sua intenção é seu aparecimento... 441
manter os homens adormecidos para semearem o seu
próprio veneno de corrupção entre a boa semente... 438
O arcebispo alexandrino pensava também ter
São estas as palavras iniciais das Orationes. resposta à crítica de que, quando se aceitava o
No decurso das cem páginas seguintes é não princípio da trindade em essência se adora-
só dada atenção às diferenças de ensinamento
como qualificados os arianos de imbecis, pati- 439
Ver C. J. de Vogel, Athanasius, aartsbischop van
Alexandrië, 328-373: Redevoeringen tegen de Arianen,
435
G. J. D. Aalders, Julianus de Afvallige, 26. xvi, xvii.
436 440
Ver Jo. 2:19. 1 Jo. 5:7b-8a, a chamada Comma Johanneum. Ver,
437
Ver Lc. 11:23. entre outros, J. Verburg, Canon of Credo, 17.
438 441
Atanásio, Orationes I.1. Atanásio, Orationes I.17,2.
vam três divindades e se afastava do mono- O tempo dos mártires, tão glorificado na carta
teísmo: de Hilário, estava menos afastado do que pen-
sava o honorável bispo. O seu desejo pareceu
Tomámos por ponto de partida, não a imagem de três em boa medida tornar-se realidade quando Ju-
sóis, mas a imagem do sol e dos seus raios; uma luz liano Apóstata subiu ao trono imperial. Pelo
que emana do sol e se dá a conhecer em raios. Confes-
samos, pois, uma origem, e declaramos que o Lógos
menos, foi o que muitos cristãos fizeram crer.
criador não tem outra forma de divindade que não seja Depois da sua morte, O bispo Gregório de
a do Deus único; pois Ele provém de Si mesmo. Antes Naziança descreveu-o assim numa espécie de
se poderia acusar os arianos de politeísmo, sim, mesmo pseudo elogio fúnebre:
de ateísmo, pois falam vãmente do Filho como se ele
fosse uma criatura e, portanto, estivesse fora do Pai; e Povos, escutai! Escutai atentamente, vós, habitantes do
do Espírito como se proviesse do não existente. 442 mundo! Deste lugar, faço soar como que do alto de
uma montanha, um grito perturbador. Escutai, nações,
Hilário, bispo de Poitiers, também ele banido, escutai, vós que existis hoje e que vireis amanhã! An-
foi um temível aliado de Atanásio, que escre- jos, potestades e forças, escutai! O esmagamento do ti-
veu no exílio uma vasta obra sobre a trindade, rano é obra vossa. O dragão, o apóstata, o grande génio
atemorizador, o inimigo do género humano que espa-
De Trinitate. Mais ainda do que Atanásio, ele lhou horror por todo o lado, que proferiu maldições
via, ao lado dos arianos, um segundo grande contra o céu, aquele cujo coração era mais imundo do
perigo para a igreja: o estado. Numa carta que a sua suja boca, caíu! Céus e terra, prestai ouvidos
emocianada, ele apela aos seus colegas para à nova da queda do perseguidor! 444
se entregarem menos ao poder temporal:
Também aqui, a realidade era mais complexa
Temos de chorar por causa da miséria da nossa geração do que esta linguagem cristã militante faz su-
e lamentar as ideias loucas desta época em que se pen- pôr. Juliano, que tinha perdido a mãe ainda
sa que se encontra nos meios humanos um auxílio para muito jovem, tinha cinco anos quando, duran-
Deus e em que se afadigam em usar os meios do pode-
rio terrestre para a defesa da igreja. Pergunto-vos, a
te uma revolta, grande parte da sua família,
vós, bispos, e a vós que pensais ser bispos, a que eleito- entre os quais o pai e o irmãos mais velho, foi
rado foram os apóstolos buscar o poder de pregar os assassinada, não sem responsabilidade do seu
evangelhos. Que pessoas poderosas os apoiavam quan- sobrinho, o imperador cristão Constantino. O
do anunciavam o Cristo e faziam tantos povos passar acontecimento deixou uma marca indelével
do serviço aos ídolos ao serviço do verdadeiro Deus?
Estavam investidos de alguma autoridade recebida da
no jovem Juliano. Durante a sua educação,
corte quando entoavam o hino de louvor ao Senhor nas quase sempre em retiro por instigação de
mais profundas masmorras, acorrentados e açoitados Constantino, o jovem ficou nos seus estudos
pelo chicote? Paulo reunia a sua comunidade para Cris- sob influência da literatura pagã. Começou a
to por força de decretos reais? surgir nele uma tendência para o misticismo.
... Mas agora, ai, são eleições terrestres que ordenam
que se tenha a fé vinda de Deus, e Cristo perdeu clara-
Isso era algo que ele não pôde encontrar no
mente toda a força desde que o seu nome encontrou cristianismo daquela época. As disputas indi-
amigos ambiciosos. A Igreja espalha inquietação com viduais, as rivalidades, as discussões teológi-
desterros, lançando em prisões; ela obriga à fé, esta cas quase incompreensíveis conduzidas com
Igreja em que se acreditou apesar do desterro e da pri- uma intensidade invulgar, tudo isso atraíu me-
são. Ela depende dos cargos e dos saldos bancários dos
seus membros... 443
nos juliano do que a absoluta honestidade e
verdade do Sol Invencível, do Sol Invictus. E
Esta nostalgia do tempo apostólico e do perío- no que diz respeito ao misticismo, o cristia-
do imediatamente subsequente, tornar-se-ia nismo era inferior aos profundos mistérios de
cada vez mais uma ilusão. Elêusis e ao caminho de iniciação de Mitra.
Em Éfeso, o entretanto mais do que adoles-
cente Juliano, seguiu lições do neo-platonista
O apóstata Juliano Máximo, que praticava intensamente o lado
mágico-oculto da filosofia. Outro neo-plato-
nista, um certo Eusébio, cujas lições Juliano
tinha seguido em Pérgamo, falou-lhe de uma
442
Atanásio, Orationes III.15.
443
Hilário de Poitiers, De Trinitate, op. cit. F. Roget,
444
51-52. Gregório de Nisa, Orationes, op. cit. F. Roget, 57.
reunião no templo de Hecate, organizada por tentado seguir o exemplo do seu anterior cole-
Máximo. ga Marco Aurélio, isto é, governar como um
‘filósofo no trono’. O seu governo durou de-
A seu convite, sentámo-nos todos e ele queimou um masiado pouco tempo para se poder fazer um
grão de incenso e recitou para si um hino qualquer. Te- juízo equilibrado sobre ele. Em todo o caso, a
ve tanto sucesso nesta sua demonstração que a estátua
da deusa primeiro sorriu e depois pareceu rir alto. To-
igreja podia voltar a respirar aliviada.
dos estávamos embasbacados com o que tínhamos vis-
to, mas ele disse: que ninguém se inquiete. Daqui a Dez anos depois da morte de Juliano, soou
pouco, os archotes que a deusa tem na mão vão-se in- também a última hora para Atanásio, o quase
flamar. Mal ele tinha acabado de falar, os archotes lendário arcebispo de Alexandria que viveu
acenderam-se... 445
uma vida combativa em que esteve desterrado
pelo menos cinco vezes. Em todo esse tempo,
Um dos seus primeiros decretos depois de se
a controvérsia dogmática sobre a essência de
tornar imperador consistiu em permitir de no-
Cristo e sobre a trindade continuou. Depois da
vo as antigas religiões, na reabertura dos tem-
morte de Atanásio, foram principalmente o já
plos pagãos, na reentrega de bens confiscados
mencionado e inflamado correspondente, Gre-
e no restabelecimento dos privilégios que ti-
gório de Naziança, um outro Gregório, prove-
nham sido retirados aos anteriores sacerdotes
niente de Nissa e o irmão deste último, Basí-
e guardiães templários pelos seus antecessores
lio, bispo de Cesareia, que mantiveram viva a
imperiais. A igreja cristã recalcitrou e não
discussão. Como vinham todos da mesma re-
apenas devido a indignação moral, também
gião, a Capadócia (na actual Turquia), entra-
por perder determinados privilégios e subsí-
ram na história com a designação de Padres
dios. Em essência, a orientação do jovem im-
da Igreja Capadócios. Gregório de Nissa era
perador era para uma liberdade religiosa ge-
o mais brilhante dos três. 448 Ele próprio tinha
ral; e as poucas perseguições a cristãos que
uma grande consideração pelo irmão, que en-
surgiram não foram instigadas de cima, eram
trou na histório como Basílio, o Grande, entre
resultado de vinganças das populações locais,
outras razões por causa das regras de vida que
como, por exemplo, o assassinato do odiado
estabeleceu para os monges e que foram sem-
bispo Gregório de Alexandria. 446
pre uma referência no oriente. Ambos se opu-
As opiniões do imperador sobre liberdade re-
nham às concepções arianas.
ligiosa implicavam também que todos os bis-
pos desterrados pelo seu sobrinho Esta doença (do arianismo – JS) dominou os homens
Constantino podiam voltar às suas origens, que serviam a criatura em vez do Criador, de modo
pois aos olhos de Juliano a distinção entre que, até com a ajuda dos imperadores da altura, o erro
orientações de fé provinha do maligno. O imperou e todos os poderosos superiores lutaram até
historiador seu contemporâneo Amânio por tal espécie de doença. E quando faltava pouco para
que todos os homens ficassem do lado da opinião do-
sugeriu que Juliano minante, o grande Basílio foi engendrado por Deus, tal
como Elias no tempo de Achab. Ele voltou a elevar o
não precisava temer um povo cristão unânime, porque sacerdócio, que estava totalmente desvalorizado. E tal
sabia por experiência que não havia feras tão agressi- como a uma lâmpada que se tinha apagado, ele fez rea-
vas em relação aos homens como os cristãos uns em re- cender-se, pela graça interior, a palavra da fé. 449
lação aos outros. 447
Na sua Oratio Cathechetica, Gregório de Nis-
Dois anos mais tarde, em 363, o ainda jovem sa dirige-se antes de mais aos catequistas. Es-
imperador sucumbiu a uma ferida mortal no tes catequistas cuidavam do ensino aos cha-
fígado sofrida numa batalha na Ásia. Este mados catecúmenos; ou seja, àqueles que que-
príncipe tão vilipendiado pelos cristãos tinha riam ser baptizados como cristãos. Naquela
445
G. J. D. Aalders, Julianus de Afvallige, 50.
446 448
Este bispo tinha-se apresentado como candidato à Ver, entre outros, W. C. van Unnik na sua introdu-
sede vacante libertada pelo tantas vezes desterrado Ata- ção a Gregório de Nissa, Oratio Cathechetica, 9.
449
násio, um bispo invulgarmente amado pelo povo. Gre- Gregório de Nissa, Enconium in Basilium fratrem
gório parece ter sido inexcedível em criar inimigos, 10. Ver também Bonheiden, De heilige Basilius de
tanto entre os cristão como entre os não cristãos. Grote e G. Tilleman, Basilius van Caesarea: Over de
447
G. J. D. Aalders, Julianus de Afvallige, 96. Heilige Geest.
época, o baptismo era ainda exclusivamente influência, e com toda a certeza também no
um baptismo de adultos; só uma profunda ex- segundo concílio ecuménico, o de
periência da vida podia ajudar a sondar o mis- Constantinopla, no ano 381.
tério (termo muito usado por Gregório) do re-
nascimento. Uma instrução intensiva era sem-
pre o prelúdio do baptismo. A Oratio deixa- 8. A luta sobre a natureza de
nos também a impressão clara de que essa
formação era necessária para muitos, porque
Jesus
as pessoas tinham claramente dificuldades
com um certo número de conceitos; sobretudo
Constantinopla, 381
com a reencarnação. Objecções a essa ideia,
para muitos disparatada, estavam na ordem do Em 313, o imperador Constantino tinha deter-
dia. Nessa época, parecem ter tido lugar ace- minado no Édito de Milão que o cristianismo
sas polémicas nesses ‘cursos cristãos’; nem era uma religião reconhecida (e, portanto, per-
todos os catecúmenos eram como esponjas mitida). Quase setenta anos mais tarde, em
que absorviam as palavras dos seus instruto- 380, o cristianismo foi declarado oficialmente
res. Havia quem se questionasse abertamente religião do estado pelo chamado Édito dos
sobre qual seria o sentido de Três Imperadores. Um estatuto que a igreja
católica não deixaria de exigir durante muitos
o divino desceu a um estado de humilhação... ou por e muitos séculos.
que é que Deus, o infinito, insondável e inexprimível, Um dos três imperadores que assinaram o édi-
que estava acima de toda a glória e majestade, se havia to era Teodósio, um general espanhol que ti-
de misturar com a conspurcação da natureza huma-
na. 450
nha sido nomeado pelo imperador da parte
ocidental, Graciano, para seu colega no orien-
Gregório respondia: te. Esse Teodósio era uma figura poderosa
que queria meter ordem na cristandade dividi-
Ora como o amor pela humanidade é a característica da. Promulgou um decreto em que ordenava a
específica da natureza divina, têm aqui a resposta que todos os cristãos que respeitassem o Credo de
procuram; têm aqui o sentido da vinda de Deus entre os Niceia ‘dado aos romanos pelo apóstolo Pe-
homens. Pois na sua fraqueza, a nossa natureza precisa- dro e actualmente confessado por Dâmaso de
va de um curador; no seu estado caído, o homem tinha
necessidade de alguém que o voltasse a erguer; aquele
Roma e Pedro de Alexandria’. 453 Com isto, o
que tinha perdido a vida em pecado, tinha necessidade bispo de Roma ficou numa posição de prima-
de alguém que lhe voltasse a dar a vida; aquele que ti- zia em relação aos outros, o que foi contesta-
nha participado no bem ante sde este lhe ter escapado, do pelo próprio bispo de então, o já mencio-
precisava de alguém que o reconduzisse de novo ao nado Dâmaso, por uma série de razões diver-
bem; aquele que estava rodeado de trevastinha sauda-
des da presença da luz; o cativo ansiava pelo redentor,
gentes, entre as quais porque a decisão não ti-
o prisioneiro pelo auxiliador; aquele que estava ligado nha sido tomada num concílio geral.
pelo jugo da escravidão ansiava pelo libertador. 451 A promoção de religião aceite a religião de
estado teve o triste efeito colateral de que, não
Reconhece-se ainda nestas palavras um eco muito tempo depois, foram incendiadas as pri-
longínquo de Orígenes. Segundo Adolf von meiras sinagogas. Depois do terrível holo-
Harnack, a teologia origenista-capadócia tor- causto da nossa época, foi de novo dada aten-
nou-se a base daquilo que mais tarde seria a ção aos oito sermões profundamente anti-ju-
teologia ortodoxa. 452 Talvez com isso ele sub- daicos proferidos pelo arcebispo de Constanti-
estimasse um pouco Padres da Igreja nopla, João Crisóstomo (= boca de ouro), nos
posteriores, como Agostinho. Seja como for, anos 386 e 387, e onde os judeus eram cha-
o trio capadócio exerceu uma grande mados ‘carnais’, ‘luxuriosos’ e ‘malditos’; pa-
lavras retomadas com entusiasmo por Adolf
450
Hitler no seu jornal anti-semita Der Stür-
Gregório de Nissa, Oratio Cathechetica XIV.62.
451
Gregório de Nissa, Oratio Cathechetica XIV.63.
452
A. von Harnack, Die Mission und Ausbreitung des
453
Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, vol. II, Codex Theodosianus XVI.i,2 (T. Mommsen, P. M.
745. Meyer et al., 833).
mer. 454 Mas também esplêndidas esculturas tros bispos. Foi o primeiro a fazer-se chamar
clássicas tiveram de pagar a factura e muitos papa. 459 Numa carta a um colega espanhol, o
templos e outros lugares sagrados pagãos fo- bispo argumenta como segue:
ram destruídos, frequentemente por instigação
de dirigentes da igreja. 455 No ano de 391, uma Levamos o fardo de todos os que sofreram alguma
multidão delirante espicaçada pelo bispo Teó- opressão, ou melhor dito, em nós leva-o o santo após-
tolo Pedro, que nos guarda e protege como seu
filo, destruíu o Serapeîon, o templo de Será- herdeiro... em todas os assuntos do seu governo. 460
pis, em Alexandria. Esse complexo abrigava
grande parte da biblioteca mais abrangente da Em conjunção com o chamado texto de Pe-
antiguidade. Essa biblioteca de fama mundial, tra 461, isto parece uma argumentação definiti-
com dezenas de milhares de tesouros insubsti- va a favor da supremacia dos bispos de Roma.
tuíveis, perdeu-se nesse acontecimento.456
Frequentemente, no lugar onde tinham estado Teodósio considerava o concílio necessário
templos ou outros santuários pagãos ergue- sobretudo para pôr fim à ‘heresia’ dos aria-
ram-se magníficas igrejas. De uma época pro- nos. Com mais alarde de poder do que o usa-
vavelmente posterior é o refrão que se aplica do no seu tempo por Constantino, o impera-
aqui perfeitamente: dor sublinhou a sua decisão de desterrar todos
os que não confirmassem o Credo que lhes
Quando as igrejas eram de madeira,
os corações eram de ouro,
era proposto. Com isto terminava em grande
mas agora que as igrejas são de ouro parte o papel do arianismo, embora séculos
os corações são de madeira. 457 mais tarde ele levasse ainda uma existência
teimosa entre os Godos e em muitos outros
Tal como o seu longínquo predecessor, Cons- povos germânicos, e também em algumas par-
tantino, também Teodósio via num concílio tes da Ásia.
geral a oportunidade por excelência para pôr Naturalmente que também neste concílio não
em ordem uma série de assuntos. E que me- se conseguiu achar nenhuma solução definiti-
lhor sítio para reunir esse concílio senão a es- va. Onde a liberdade de espírito é limitada e é
plendorosa cidade que tomava um lugar cada proibida a vivência de uma fé à maneira pró-
vez mais importante no Império, Constantino- pria de cada um, onde todos se têm de confor-
pla? Se no concílio de Niceia os patriarcas de mar com regras forjadas pela autoridade cen-
Alexandria, Antióquia, Jerusalém e Roma es- tral, não se pode falar de uma verdadeira uni-
tavam em pé de igualdade, agora Roma estava dade. E ao tirar esta conclusão, deixo de lado
investida na função primacial, com Constanti- o factor poder, que também desempenhou um
nopla como uma segunda quase igual. O que papel muito importante. Isso ficou patente de
chama a atenção é que o próprio bispo de Ro- modo gritante no mesmo concílio quando
ma não esteve de todo presente no concílio458; Teodósio propôs o já citado Gregório de Na-
tal como não esteve presente nenhum bispo da ziança para patriarca de Constantinopla. De-
região a oeste do Adriático. Além disso, o su- pois de esta escolha estar decidida, constatou-
cessor de Dâmaso, Siríaco, tinha uma atitude se que ela era inaceitável para os bispos do
muito menos formal e não lhe desagradava ser Egipto e da Macedónia, entretanto chegados
considerado como dirigente de todos os ou- ao concílio. Gregório não perdeu a compostu-
ra e retirou-se. Em seu lugar, os prelados da
454
H. Jansen, Christelijk theologie na Auschwitz I, 68-
459
69. Ver também D. J. D. Aalders, Synagoge, kerk en O nome papa foi usado por seguidores de vários bis-
staat in de eerste vijf eeuwen, 56-63. pos para designar o dirigente da sua igreja como uma
455
Rodolfo Lanciani descreve, com base em esculturas espécie de pai espiritual. O bispo de Alexandria, por
antigas destroçadas e em templos destruídos achados exemplo, era chamado tanto patriarca como ‘papa’.
nos séculos XIX e XX, o ‘terrorismo cristão’ que os Com a função primacial de Roma, o seu bispo, suposto
causou, em La distruzione di Roma antica. sucessor de Pedro, tomou efectivamente nas suas mãos
456
Ver, entre outros, R. van den Broek, Bibliotheken en a liderança espiritual.
460
geleerde in de Oudheid, 5. Retirado de J. N. Bakhuizen van den Brink, ‘De vre-
457
Ver J. S. Postma, Cultuurgeschiedenis en christen- de der kerk’ em: Cultuurgeschiedenis van het Christen-
dom, 51. dom, parte I, 469.
458 461
Foi representado pelo metropolita de Tessalónica. Mt. 16:18.
igreja reunidos escolheram uma pessoa que Para varrer esta questão da face da terra, o he-
nem sequer era baptizada! sitante imperador Teodósio II voltou a convo-
Mesmo tendo a ortodoxia vencido o arianis- car um concílio geral, desta vez em Éfeso. Na
mo, continuaram a existir diferenças de opi- realidade, este terceiro concílio ecuménico
nião sobre a natureza de Jesus; qual era preci- deveria estar nos livros de história como con-
samente a relação em que se encontrava a sua cílio nº 3 e 3a. O que é que aconteceu?
humanidade face à sua divindade ou vice-ver- Cirilo de Alexandria chegou em primeiro lu-
sa? gar com a sua comitiva de mais de duzentos
Em 428 foi nomeado patriarca de Constanti- bispos e quis começar imediatamente, embora
nopla um certo Nestor. Esse Nestor começou a delegação do seu colega de Antióquia, diri-
imediatamente o seu mandato com a afirma- gida pelo bispo João, ainda estivesse a cami-
ção, chocante para muitos, de que se tinha de nho devido a atrasos sofridos na viagem. Ape-
parar de chamar mãe de Deus (Theotókos) à sar dos protestos de Nestor, o concílio foi
virgem Maria. Esta afirmação sensacional aberto e Nestor destituído do seu cargo e con-
ocorreu-lhe, não por se ter apercebido de que denado ‘por se desviar fortemente da fé apos-
Deus não podia ter mãe (nem pai), mas devi- tólica e evangélica e estar doente devido a
do à sua concepção da natureza de Cristo. O inúmeras blasfémias sui generis’. 464 Quando
bispo estava preparado para chamar chegou com o seu séquito, João pouco mais
Christotókos (= mãe de Cristo) a Maria. 462 pôde fazer do que arranjar um contra-concílio,
A incompreensão está bem patente neste facto e esse concílio apressou-se a expulsar Cirilo
de que, uns bons quatrocentos anos depois da do seu cargo. As tentativas de terceiros para
sua existência, Maria já não pudesse ser vista reconciliar os dois concílios goraram-se e
como a mãe desse Jesus; e que esse simples Teodósio, que não tinha estado presente, reco-
facto já não fosse em si suficiente para preen- nheceu os dois concílios, o que fez com que
cher muitos corações de respeito por essa tanto Nestor como Cirilo ficassem destituídos.
grande mulher. Apesar de se ter retirado para um mosteiro,
Nestor foi mais tarde desterrado; com o apoio
de Roma, Cirilo manteve-se na sé de Alexan-
Éfeso, 431 dria.
Tudo isto significa, naturalmente, que a luta a
Inicialmente, Nestor permitia-se bastante jun- propósito do estabelecimento da natureza de
to do imperador. Chegou a propôr a este Teo- Cristo continuou em grande. 465
dósio II: No concílio de Constantinopla, foi condenada
a doutrina de Apolinário de Laodiceia, de que
Dá-me uma terra limpa de herejes e eu dou-te o céu em Cristo nunca podia ter sido inteiramente ho-
recompensa. 463 mem, porque senão também teria sido peca-
dor; Apolinário achava impossível que algo
Mas em breve ficou em dificuldades, entre perfeito e algo imperfeito pudessem unir-se.
outras coisas devido às suas concepções des- No concílio de Éfeso, Nestor foi condenado
viantes sobre Maria. E sobretudo, também por pensar que o Lógos divino esteve sempre
porque Cirilo, bispo de Alexandria, foi pedir presente em Jesus, mesmo antes e durante o
ao bispo de Roma para expulsar Nestor do seu seu nascimento. Esse Lógos permaneceu, po-
cargo. As razões do pedido eram um conflito rém, autónomo, tal como o fez também a hu-
mais profundo. A ‘escola de Antióquia’, de manidade de Jesus. Eram unos, não em essên-
onde provinha Nestor, e a ‘escola de Alexan- cia, mas em vontade. Pois na vida terrestre de
dria’, de que Cirilo era então o porta-voz, di-
feriam bastante no que diz respeito à natureza 464
Citado em J. Pelikan, The Christian tradition, 261.
465
de Jesus. Alexandria acentuava fortemente a Karlmann Beyschlag conclui na sua Grundriss der
sua divindade, Antióquia a sua humanidade. Dogmengeschichte, volume II, parte 1, 82: ‘O dogma
de Éfeso consiste numa interpretação cirílica militante
dos símbolos de Niceia que o opositor procurava assim
462
Ver entre outros A. Stol, Nestorianen, 32. banir como monstruosidade samosática sem excluir
463
Retirado de S. Runcinam, De Goddelijke Keizers, claramente a nuance apolinárica da sua própria
32. posição.’
Jesus, ambos como que cresceram cada vez gação da sua dominante esposa 466, mantinha
mais em direcção a tornarem-se uma unidade. firmemente as rédeas nas mãos.
Nestor ilustrava isto com alguns exemplos: os No concílio tomou-se uma decisão sobre a
milagres de Jesus tornavam claro que o Lógos questão da natureza de Jesus Cristo. Aceitou-
divino estava activo, mas o desgosto e o sofri- se um compromisso em que Cristo tinha duas
mento de Jesus tinham a ver com a sua huma- naturezas:
nidade.
Um ancião abade de Constantinopla, um certo Segundo os santos pais, aprendemos todos sem discor-
Eutiques, agudizou a doutrina de Alexandria dância a confissão de um único Filho, nosso Senhor Je-
sus Cristo, que é perfeito na sua divindade, perfeito
afirmando que o corpo humano de Cristo era também na sua humanidade, simultaneamente Deus
tão divino que diferia claramente do nosso. E verdadeiro e homem verdadeiro, consistindo numa al-
esta opinião foi, naturalmente, apoiada de to- ma racional e num corpo, uno em essência com o Pai
do o coração pelo bispo de Alexandria, mas segundo a sua Divindade e ao mesmo tempo uno em
foi rejeitada pelo de Roma, onde a sé episco- essência connosco segundo a sua humanidade, igual a
nós em todas as coisas, excepto no pecado. Reconhece-
pal tinha entretanto sido ocupada por Leão I mos que, segundo a sua divindade, ele foi gerado a par-
(o Grande). Num concílio convocado à pres- tir do Pai antes de todos os tempos, nos últimos dias,
sa, mais uma vez para Éfeso, e em que Roma porém, para nossa redenção, surgiu também a partir da
não esteve representada, o bispo de Alexan- Virgem Maria, a Mãe de Deus, segundo a sua humani-
dria apareceu com uma guarda pessoal de dade: confessamos um único Cristo, Filho, Senhor,
Unigénito, que foi conhecido em duas naturezas, não
monges orientais, a qual estava preparada pa- misturadas e não modificadas, indivisas e inseparadas.
ra, no caso de as decisões ameaçarem não se- Na reunião, a distinção entre as duas naturezas não foi
rem favoráveis, a espancar cuidadosamente os de modo algum abolida, antes foi conservado o que é
seus opositores. próprio de cada natureza, ambas reunidas numa única
É escusado dizer que este ‘sínodo de ladrões’, pessoa e numa só hipóstase. 467
como lhe chamou Leão I, também não encon-
trou qualquer solução. Só quando, não muito Uma vez que grande parte desta formulação
tempo depois, o fraco e indeciso imperador vinha da mão de Leão I, Roma não teve difi-
Teodósio II morreu é que o caminho ficou li- culdade em concordar com ela. Não se passou
vre para uma tentativa séria de harmonizar os o mesmo com a decisão de dar na prática ao
dois campos. bispado de Constantinopla os mesmos direitos
do de Roma, apesar de ser atribuída a Roma,
pelo menos no papel, a posição mais impor-
Calcedónia, 451 tante. Esse parágrafo não foi assinado pelos
enviados romanos. Questões como esta, junta-
mente com alguns detalhes doutrinários, fo-
Entre o primeiro concílio ecuménico em Ni- ram as percursoras do grande cisma de 1054,
ceia e o quarto em Calcedónia passaram-se quando houve uma separação definitiva, ainda
126 anos, entre o de Constantinopla e o de existente, entre os cristianismos oriental e oci-
Calcedónia setenta anos exactos e entre o pe- dental.
núltimo em Éfeso e o de Calcedónia apenas Houve dissidências na sequência do concílio
vinte anos. Apesar da resistência do Papa de Calcedónia. Os alexandrinos mantinham-se
Leão, Calcedónia foi escolhida para sede do firmes no monofisismo, a doutrina de que
sínodo porque pela sua proximidade a Cons- Cristo tinha apenas uma natureza, e separa-
tantinopla era um lugar fácil de controlar pelo ram-se, dando assim existência efectiva à
imperador. A escolha do lugar teve também Igreja Copta no Egipto. Mas também na Etió-
os seus efeitos nos participantes; mais de 600
delegados do Oriente estiveram presentes,
contra apenas alguns enviados do Papa Leão 466
Teodósio II tinha uma irmã, Pulquéria, que se irrita-
I, com um diácono perdido vindo do Norte de va bastante com o comportamento hesitante do seu ir-
África pelo meio. Actuava como presidente mão. Quando ele morreu, nomeou imperador um certo
um representante do imperador que, sob insti- Marcânio e, de passagem, casou-se com ele.
467
Apresentado em J. N. Bakhuizen van den Brink,
‘Hoofdzaken uit de leer der kerk’, em Cultuurgeschie-
denis van het christendom, 499.
pia, na Síria e sobretudo na Arménia, surgi- Depois do concílio de Calcedónia em 451, ti-
ram igrejas monofisitas separadas. 468 veram lugar mais três concílios ecuménicos:
Numa tentativa de restabelecer a unidade dois em Constantinopla, em 553 e em 681, e o
(aparente), os imperadores fizeram bastantes último na mesma cidade em que o primeiro
concessões aos monofisitas e como estes se ocorreu: Niceia, em 787. Estes concílios são
desviavam dos acordos de Calcedónia, Roma considerados um pouco menos importantes
cortou durante algum tempo (de 484 a 519) os que os quatro primeiros para a formação de
laços com Constantinopla. uma doutrina cristã; o último esteve em gran-
Embora fosse afirmado mais uma vez em Cal- de parte sob o signo da luta dos ícones no Im-
cedónia que os ensinamentos de Nestor eram pério Bizantino. A fé estava em grande parte
ensinamentos erróneos, isso não significou encarcerada e povos inteiros tinham entretan-
que esses ensinamentos erróneos fossem ex- to sido declarados heréticos por rejeitarem de-
tirpados, não obstante as ferozes tentativas terminadas opiniões; ou por não as aceitarem
dos ortodoxos que, sempre que possível, per- como universalmente válidas; ou simplesmen-
seguiam os nestorianos e destruíam as suas te por seguirem os seus líderes ‘espirituais’.
escrituras. Sob esta pressão, os seguidores de Pois, em essência, as discussões sobre o
Nestor fugiram para a Pérsia, onde encontra- homoousios e o homoiousios ou sobre se o
ram abrigo. Após o assassinato de alguns pa- Espírito Santo seria igual a Deus e a Cristo ou
dres católicos na Pérsia, a confissão de fé nes- lhes estaria subordinado passavam ao lado da
toriana foi reconhecida num sínodo da igreja esmagadora maioria dos cristãos. Estes con-
síria oriental em 484 como válida para todos fessavam a sua fé à sua própria maneira, em
os cristãos. A igreja católica foi condenada formas que frequentemente ainda estavam
como herege e o celibato dos padres e dos bis- misturadas com vestígios pagãos da antigui-
pos foi abolido. dade anterior.
Isto foi o início de um enorme florescimento. Embora a própria igreja estivesse em grande
Por volta do ano 1000, a área de expansão da parte fundada sobre os alicerces dessa antigui-
fé dos nestorianos era maior do que a das dade anterior – sobretudo, naturalmente, sobre
igrejas oriental e ocidental reunidas. Esse flo- os do judaísmo – à medida que foi crescendo
rescimento ocorreu graças também a uma or- ela foi-se tornando, como vimos, cada vez
ganização perfeita. Em cada diocese havia, mais intolerante para com os seus progenito-
além da casa do bispo, uma escola, uma bi- res. Um exemplo marcante, e ao mesmo tem-
blioteca e um hospital. A difusão do ensino e po gritante, deste facto foi o encerramento da
da medicina fazia parte da sua missão. Os Academia Platónica pelo imperador Justinia-
vestígios desta grande igreja cristã encontram- no (527-565). Essa escola de sabedoria tinha
se até à China, ao Tibete, à Mongólia, à Man- funcionado durante quase mil anos. A sua in-
chúria e à Sibéria. fluência sobre o pensamento humano só difi-
Não é impensável que uma investigação mais cilmente pode ser sobre-estimado. Mas num
detalhada faça aparecer nesses países escritu- estado cristão não há lugar para filosofias pa-
ras cristãs muito antigas. Os nestorianos ti- gãs, pensava Justiniano, um imperador que,
nham um grande amor à literatura. E era pre- conformemente à tradição desenvolvida no
cisamente essa literatura que tinha de ser sal- Oriente, se achava responsável não só pelo
va do instinto destruidor dos seus irmãos orto- bem do estado, mas também pelas venturas e
doxos. Tomando os caminhos do oriente, desventuras da igreja. Uma espécie de droit
muitas escrituras importantes puderam ser divin avant la lettre, em que príncipes munda-
conservadas e não é impensável que num fu- nos se apresentavam como eleitos por Deus
turo não muito distante o Oriente descubra es- para governarem na terra em seu lugar.
crituras que nos possam dar uma melhor com-
preensão das raízes do nosso próprio cristia- Pela vontade de Deus governamos um império que nos
nismo ocidental. foi dado pela sua Majestade Divina... Só Deus e o im-

468
Ver entre outros W. H. C. Frend, The Rise of the
Monofysite Movement.
perador que segue Deus podem governar legitimamen- tamos que...’, mas no de ‘Quem não acreditar
te o mundo. 469 que... e disser que... seja maldito (anáthema)’.
Com o que a perspectiva não era só a do fogo
Com estas declarações, Justiniano varreu as do inferno, era também a da perseguição pe-
concepções do Papa Gelásio I. Imediatamente nal. Da bekennende Kirche (igreja confessio-
após ter aceite as suas funções em 492, o bis- nal) dos inícios cristãos surgiu uma igreja
po de Roma afastou o costume de pedir auto- amaldiçoante, diz Karlmann Beyschlag no seu
rização para isso ao imperador. Numa discus- estudo dos dogmas. 470 É um sinal do pensa-
são escrita algo irritada, Gelásio afirmou ro- mento dual. Quando o contacto com a parte
tunda e claramente que o mundo era regido espiritual diminui, projecta-se mais na maté-
por dois poderes, a autoridade papal e a auto- ria, com o que até o espiritual é materializado.
ridade imperial; aquilo a que se chamaria Poder-se-ia dizer que o espírito, a cujo propó-
mais tarde teoria das duas espadas. Destes sito os prelados da igreja tão agitadamente se
dois poderes, a autoridade papal é a superior, reuniam e sobre o qual tão apaixonadamente
porque os padres são responsáveis em primei- especulavam, estava cada vez mais cativo na
ro lugar perante Deus e só em segundo lugar matéria.
perante a autoridade mundana. O imperador
devia obedecer em primeiro lugar àqueles que
realizavam os mistérios sagrados. Uma história criminosa do cris-
Estas declarações foram claramente longe de-
mais para os imperadores bizantinos, pois eles
tianismo
consideravam-se os substitutos de Deus na
terra. Em 1986 apareceu a primeira parte da Krimi-
Este pensamento não era novo na história da nalgeschichte des Christentums 471 do investi-
humanidade. Também os faraós eram reis- gador alemão Karlheinz Deschner, de que se
deuses. Em minha opinião só há a diferença venderam em três anos cerca de 50000 exem-
de que na época dos divinos faraós, o divino plares. Já se sabia por obras anteriores que es-
podia exercer melhor a sua influência, porque te Karlheinz não tinha grande simpatia pela
estes príncipes egípcios ainda estavam em igreja. 472 Na sua Kriminalgeschichte em dois
grande parte ligados à consciência universal volumes, Deschner põe à luz a atitude intole-
(ver esquema na pág. 254). No período de que rante da igreja em relação a outras correntes
estamos agora a falar, por volta do século VI de pensamento: judeus, pagãos e hereges. É
depois de Cristo, o homem vivia, salvo algu- uma história triste, mesmo negra aqui e ali.
mas excepções, numa consciência mais sepa- Os livros formam um contraponto a muitas
rada. Jesus tinha apelado à reunião dos opos- obras cristãs onde é traçado, praticamente sem
tos e a que se fizesse da duplicidade uma uni- crítica, um esplendoroso caminho ao longo de
dade, mas o que vemos é que a consciência do monumentos grandiosos e pavimentado por
homem ocidental do século VI estava tão pou- homens santos. A indignação de Deschner, e
co amadurecida para isso, se podia abrir tão de outros, é compreensível (mas também,
pouco a isso, que o que se manifestou flagran- com frequência, pessoal). No preciso momen-
temente foi precisamente a duplicidade. Não é to em que a fé cristã está cheia de pretensões
sem razão que exteriorizações do saber intui- e se reclama transmissora dos ensinamentos
tivo onde ainda se reconhece uma parte da de Jesus de Nazaré, em suma, herdeira de
enorme energia de Cristo, tais como a expe-
470
riência de Orígenes da alma pré-existente, fo- K. Beyschlag, Grundriss der Dogmengeschichte, II,
ram declaradas heréricas no segundo concílio 1, 185.
471
Karlheinz Deschner, Kriminalgeschichte des Chris-
de Constantinopla em 553. É notável que nes- tentums, editado também em espanhol, Historia
se concílio, convocado por Justiniano, os tre- Criminal de Cristianismo: La Época Patrística (9
ze cânones aprovados fossem formulados, não vol.).
472
já no estilo de ‘Acreditamos que...’ ou ‘Acei- Foi em 1970 que isso se tornou evidente com a obra
Warum ich aus der Kirche ausgetreten bin. Outras
obras conhecidas são Abermahl krähte der Hahn, Kir-
469
Extraído do Codex Justinianus, op. Cit. S. Run- che des Un-Heils; Der gefälschte Glaube e Das Kreutz
ciman, De Goddelijke Keizers, 38 mit der Kirche.
Cristo, vemos o assassínio e a morte, a intriga bárbaras. Em 476, o último imperador roma-
e o poderio, a mesquinhez e a inveja, a violên- no, Rómulo Augústulo (cujo nome aludia
cia e a opressão, no seu ponto mais alto. Mas quer ao fundador de Roma quer ao primeiro
como se tinha feito Cristo subir ao céu e co- imperador romano), foi formalmente deposto.
meçado a adorá-lo fora do homem, era difícil O vazio de poder foi preenchido uma boa dé-
que as coisas pudessem ter sido de outro mo- cada depois pelo rei godo Teodorico, que es-
do. Sem a experiência do ser de Cristo no pró- colheu Ravena para capital e lá fez erigir, para
prio homem, este está (temporariamente) se- além de um palácio real, também um equiva-
parado da sua própria origem divina. Essa se- lente ariano da esplêndida capela baptismal
paração tem de ser abolida pelo próprio ho- ortodoxa. Como os godos, tal como a genera-
mem. É dado ao homem voltar a restabelecer lidade das tribos germânicas, tinham entrado
o contacto com a sua consciência espiritual. em contacto com o cristianismo por via do
Por sua própria vontade livre. arianismo, este facto não deixou de provocar
tensões. Ainda que ariano, Teodorico foi sufi-
Essa vontade esteve em discussão no terceiro cientemente sábio para tomar ao seu serviço
concílio geral de Constantinopla em 681. De- um certo número de cristãos ortodoxos de for-
pois de Calcedónia, a teologia esforçava-se mação erudita, de que são exemplos Boécio e
cada vez mais para descrever a natureza de Cassiodoro. Estes filósofos tinham os olhos
Cristo. Expressões como uma só energia divi- abertos para a rica herança da cultura grega,
no-humana, posteriormente retrabalhada na sobretudo para a filosofia. Assim, numa tra-
formulação de que Cristo tinha uma só vonta- dução de boécio, as obras de Aristóteles vol-
de, minaram os fundamentos assentes em Cal- taram a ser conhecidas no ocidente, onde
cedónia. O imperador que a si mesmo se cha- exerceriam uma grande influência no pensa-
mava divino impôs esta concepção, em con- mento cristão medieval.
junto com o patriarca de Constantinopla, por
meios que não excluíram o uso da violência. No mesmo ano em que Roma foi saqueda, um
Quando se mostrou menos obediente que o certo Honorato estabeleceu-se numa ilha inós-
seu antecessor e não cedeu a esta imposição, o pita da costa sul de França. Muitos monges se
papa Martinho foi preso em Roma, levado de lhe juntaram nesse local de Lérins, para ora-
qualquer maneira para Constantinopla, atirado rem e trabalharem em isolamento e condições
para uma masmorra, apresentado a tribunal e primitivas. Esta comunidade monacal, a mais
condenado à morte. No fim, esta sentença foi antiga da Europa, ainda existe. E há uma his-
comutada em desterro, tendo o príncipe da tória segundo a qual S. Patrício, o santo irlan-
igreja sucumbido às privações sofridas.473 dês de uma época posterior, teria encontrado
Também o erudito monge Máximo foi casti- Honarato em Lérins antes de ter decidido ir
gado devido à sua ‘inflexibilidade’. espalhar a fé na Irlanda. Aí, nessa parte mais
Só a ascensão do islão fez Constantinopla mu- ocidental da Europa, ele teria estabelecido a
dar de orientação e procurar de novo a aproxi- mais oriental das formas de monaquismo.474
mação com Roma. O papa Ágato ficou assim Mas Marga Schipper afirma no seu estudo
fortalecido na sua luta contra a doutrina da Dienaren van God que no primeiro século de-
única vontade (monoteletismo). O concílio de pois de S. Patrício a comunidade religiosa não
Constantinopla de 681 seguiu-o e estabeleceu estava ligada a mosteiros e que a organização
que Cristo tinha tanto uma vontade divina co- eclesiástica formada por S. Patrício não era
mo uma vontade humana. monástica. 475 Mas um século mais tarde o
quadro é completamente diferente. Já não é o
Entretanto, há muito que Roma deixara de ser bispo, é o abade, quem tem a liderança espiri-
um centro mundial de poder. Em 410, a cida- tual. A vida monástica caracterizava-se por
de foi pilhada pelos Visigodos, um dos povos uma forte ascese e por uma disciplina férrea;
em movimento durante o que ficou conhecido sobretudo no que dizia respeito a infracções
dentro dos limites do império por invasões sexuais.
473 474
Ver J. N. D. Kelly, The Oxford Dictionary of Popes, B. Gascoigne, De Christenen, 61.
475
74. Marga Schipper, Dienaren van God, 21.
o primeiro arcebispo de Cantuária. Ao mesmo
Um jovem que se apresente à comunhão, embora tenha tempo, os clérigos de ordens menores foram
pecado com um animal, fará penitência durante cem encorajados a casarem-se para que pudesse ter
dias a pão e água...
Aquele que sofreu um derramamento de semente en-
lugar uma fusão harmoniosa com a população
quanto dormia na igreja, fará penitência três dias. 476 local. Em concordância com o Codex Justi-
nianum, o código civil promulgado por Justi-
Além de fazerem penitência, os monges ocu- niano, o celibato era obrigatório apenas para
pavam-se também em ciência e em copiar e os bispos.
iluminar textos cristãos. E em missionação. Era inevitável que estas duas correntes, os
Apesar de para a maior parte das ordens mo- monges irlandeses muito viajados – mas inter-
násticas ser válida, com certeza a partir do sé- namente com uma vida severa – e os cristãos
culo VII, a stabilitas loci, a obrigação de per- surgidos por importação romana, se chocas-
manecer sempre dentro dos muros do mostei- sem. Num sínodo em Whitby, em 664, convo-
ro, no monaquismo irlandês desenvolveu-se cado para solucionar uma divergência no cál-
fortemente a peregrinatio, a regra de em- culo da data da Páscoa que se vinha a arrastar,
preender viagens de missionação. Por aqui se a variante romana da fé cristã foi aceite como
constata que nem todos os mosteiros tinham tendo validade geral. Mas isso não diminuíu o
as mesmas regras. Já vimos anteriormente, ao empenho na missionação. A cristianização
falarmos de Pacómio, que as regras monásti- das nossas regiões foi em grande parte obra
cas que ele fez para os monges egípcios ti- de pregadores anglo-saxões (entre os quais
nham a prescrição de horas certas para as ora- Willibrord e Bonifácio).
ções e sobretudo a obediência à chefia como o
mais importante. Basílio, o Grande, um dos Por muito que o Império Romano (do Ociden-
três capadócios, dava como regra o trabalho te) tenha soçobrado definitivamente, uma par-
manual comunitário entre as horas certas para te da sua estrutura de poder foi conservada
a oração e para o culto. No ocidente, as regras pelos cristãos de modo mais ou menos tran-
para a vida comunitária foram feitas por quilo. Na maior parte das antigas capitais pro-
Agostinho. 477 Mas na prática cristã desse tem- vinciais romanas havia sés episcopais, cujos
po, essas regras foram rapidamente suplanta- bispos assumiram parcialmente o governo. Os
das pelas regras estabelecidas por Bento de dirigentes eclesiásticos puderam assim tornar-
Nursia, cujos pontos centrais eram a obediên- se dirigentes mundanos. Este fenómeno foi
cia (ao abade), a pobreza (ausência de posses) mais visível na própria Itália onde, sobretudo
e a castidade (celibato). 478 Estas regras foram durante o papado de Gregório, o Grande, os
apaixonadamente sustentadas por Gregório, o domínios eclesiásticos se expandiram notavel-
primeiro monge a ocupar o trono episcopal de mente, formando a base para o futuro estado
Roma. Ficou conhecido nos anais por papa papal. Os papas posteriores invocariam uma
Gregório, o Grande (590-604); o seu nome es- decisão, que lhes era favorável, do imperador
tá também ligado ao gregoriano, uma forma Constantino relativa aos direitos imperiais so-
de canto clerical a uma voz em ritmo livre. bre uma grande parte da Itália, a chamada Do-
Pelo seu trabalho, o cristianismo, na sua va- natio Constantini. Durante o renascimento,
riante romana, expandiu-se fortemente na Eu- este documento foi desmascarado como uma
ropa. Enviou, por exemplo, quarenta monges clara falsificação do século VIII, mas que ti-
a Inglaterra para anunciarem o evangelho, o nha constituído uma poderosa arma na luta
seu chefe, um certo Agostinho, é considerado pela hegemonia entre diversos imperadores e
reis e os papas.
476
Op. cit. B. Gascoigne, De Christenen, 62-63. Um homónimo do primeiro monge no trono
477
Agostinho lançou o impulso por meio de uma carta, episcopal, Gregório VII (papa entre 1073 e
mas a regra foi feita por um dos seus discípulos. Ver, 1085) juntava às prerrogativas mundanas da-
entre outros, J. Pelikan, Jezus door de eeuwen heen, das ao papa por esta donatio mais algumas
130.
478
Sobre o papel da peregrinatio na vida monacal e a prerrogativas eclesiásticas:
sua proibição por Bento de Nuria, ver os
esclarecedores capítulos 4.5 e 4.6 de A. E. G. Mantz- A igreja de Roma foi fundada apenas por Deus.
van der Meer, Op zoek naar loutering, 153-161. Só o papa pode usar as insígnias imperiais.
Os príncipes apenas podem beijar os pés dos papas. rante séculos, vieram à superfície. Há muito
Ninguém pode revogar uma sentença proferida por um que o oriente e o ocidente tinham deixado de
papa.
O papa não pode ser julgado por ninguém.
se compreender. As controvérsias, tal como a
A igreja de Roma nunca se transviou; e nunca se trans- divergência sobre o filioque (a intercalação no
viará em toda a eternidade, segundo o testemunho das credo ocidental que dizia que o Espírito Santo
Escrituras. 479 emanava do Filho), que se tornaram tão claras
no meio do século XI, foram apenas prelúdios
Tem de se dizer que o papado bem podia fa- da cisão definitiva em 1054, o Grande Cisma.
zer apelo a alguma autoridade dado o estado Só na nossa época é que a igreja começa de
abominável a que o século tinha chegado. Um algum modo a ter olhos para os valores nas
profuso relato desse estado encontra-se no li- igrejas orotodoxas russa e grega. Só em 1965
vro de Peter de Rosa Stadhouders van Chris- é que as excomunhões recíprocas lançadas em
tus. 1054 foram revogadas.
Para começar, é útil estudar a lista dos papas à volta do
ano 880. No século e meio subsequente houveram trin-
ta e cinco papas que reinaram em média quatro anos. Um profeta coxo e uma religião
Em períodos anteriores do pontificado, os papas suce- mundial
deram-se a ritmos semelhantes a este, o que se explica
pelo facto de esses papas serem escolhidos exactamen-
te porque eram anciãos e fracos. Mas nos séculos IX e Antes de, no próximo capítulo, encerrarmos a
X houve muitos papas com vinte e poucos anos e che- antiguidade com uma breve descrição da pes-
garam mesmo a haver alguns com menos de vinte anos. soa, da vida e do pensamento de Jerónimo,
Alguns papas reinaram apenas vinte dias, ou um mês, Ambrósio e Agostinho, três Padres da Igreja
ou três meses. Seis papas foram depostos, alguns ou-
que ficaram famosos, quero, até para melhor
tros foram envenenados. Na realidade, é impossível es-
tabelecer com certeza quantos papas e antipapas houve compreensão deles, dar atenção aos
neste período, pois ainda não existia um método de maniqueus.
eleição fixo e o número de pretendentes era por vezes Estes eram seguidores do grande profeta Ma-
grande. ni. Seguidores no sentido mais amplo da pala-
A circunstância de um papa desaparecer de repente po-
vra, porque Mani morreu cerca de 276 depois
dia ter várias causas. Teria sido degolado e deitado ao
Tibre? Tê-lo-iam atirado para uma masmorra qualquer de Cristo e o movimento ainda estava activo
e estrangulado? Estaria a cozer a ressaca num bordel muitos séculos depois. Nop século VIII, o
qualquer? Ter-lhe-iam cortado as orelhas e o nariz, co- maniqueísmo ainda era a religião de estado do
mo aconteceu a Estêvão VIII em 930 de modo a que – Turquestão.
compreensivelmente – nunca mais apareceu em públi-
Mani, de quem se sabe que era coxo 481, estava
co? Ou teria simplesmente ido embora, como fez Bento
V, que em 964, após desonrar uma jovem partiu ime- convencido de que era o último profeta, o Pa-
diatamente para Constantinopla com o todo o tesouro racleto (consolador, auxiliador, redentor). O
de S. Pedro? 480 grande vidente persa Zaratustra, enraizado no
país onde Mani trabalhava, Buda, cuja irradia-
No oriente, apesar de intensos conflitos inter- ção era muito grande sobretudo no oriente, e
nos – como a luta dos ícones – a autoridade Jesus Cristo, que trouxe a sabedoria divina
mundana estava fortemente entretecida com a universal ao ocidente, tinham-no precedido.
autoridade da igreja. O imperador oficiava. Isso dava uma base ampla ao movimento. E
Um papado ocidental fraco não era, pois, uma talvez seja exactamente por isso que a ‘doutri-
ameaça para o oriente. Roma podia teorica- na’ se espalhou numa vastidão comparável à
mente oficiar, na prática tinha perdido toda a do cristianismo. 482 Tanto no oriente como no
importância. Mas quando o papado se come-
çou a reperfilar no século XI e a sua influên- 481
cia começou a expandir-se, muitos conflitos, F. Decret, Mani et la tradition manichéenne.
482
Ver, entre outros, G. Quispel, Gnosis als Weltreli-
que por vezes tinham estado adormecidos du- gion. J. van Oort afirma que ‘o maniqueísmo se apre-
sentava como uma religião cristã’ (J. van Oort, ‘Her-
mes en Augustinus’ em G. Quispel (coord.), De Her-
479
Estas prerrogativas são frequentemente designadas metische Gnosis in de loop der eeuwen, 291). ‘No ma-
conjuntamente pelo nome de Dictatus Papae. niqueísmo... a figura de Jesus teve sempre um lugar em
480
Peter de Rosa, Vicars of Christ 64-65. todo o lado e não marginalmente’ (J. van Oort, ‘Mani-
ocidente era fácil aderir às revelações do pro- Confiamos plenamente no novo reino da luz
feta Mani a partir das suas próprias tradições e naqueles que nele permanecem.
Aoenas lhes pedimos que nos enviem
primordiais. a força da misericórdia;
No Livro de Salmos Maniqueu encontramos que nos guardem e protejam
esplêndidos hinos cristãos onde o elemento e velem por nós continuamente!
redentor-redimido é poeticamente representa- Com todo o nosso coração pedimos a todos os santos:
do, tal como nesta meditação: satisfazei em breve o nosso desejo e perfeição e verda-
de.
Libertai-nos
Vem a mim, para que estejamos livres de todo o infortúnio
meu parente, e todos os pecados se dissolvam.
minha Luz, Respeitosamente adoramos o puro e magnífico Vento
meu guia. (Espírito Santo),
Desde que parti das trevas de quem, no princípio, a sabedoria
que me deram água a beber. veio até à consciência
Vou curvado sob um fardo que não é meu. daqueles que se elevaram à luz;
Estou no meio de inimigos, que se move nos palácios de luz
de feras que me rodeiam. dos quatro Elementos
O fardo que carrego é o das potestades e dos tronos. e neles permanece
Eles ardiam em inveja, voltaram-se contra mim, eternamente livre como ela é.
a matéria e os seus filhos dividiram-me entre eles, Pureza, Luz, Grande Força, Sabedoria,
queimaram-me no seu fogo, Louvamos agora com todo o nosso coração
deram-me uma aparência amarga. o pai misericordioso,
Os estranhos com que me misturei o Filho da Luz,
não me conheciam, a pura Força do Vento (Espírito),
provaram a minha doçura, e também o brilho perfeito da Lei (eterna).
desejaram reter-me com eles. A todas as luzes juntas,
Eu era vida para eles, a todos os Budas,
mas eles eram morte para mim. a cada um de vós pedimos:
Vou curvado sob o seu fardo, recebei com compaixão a nossa prece;
mas eles abrigavam-se em mim concedei-nos libertação das tribulações,
como num manto. que é o objectivo da redenção,
Eu estou em tudo, e fazei-nos alcançar em breve o eterno reino da luz. 484
sustento o céu,
sou o fundamento,
apoio a terra. Num dos textos encontrados neste século apa-
Sou a Luz que brilha rece um diálogo entre Jesus e uma criança em
e dá alegria a todas as almas. que Jesus dá explicações sobre Zaratustra e
Sou a vida do mundo, sobre Buda. 485 Noutros textos encontram-se
sou a seiva que está em todas as árvores.
Sou a água doce,
regularmente conceitos como Nirvana, dhar-
que está debaixo dos filhos da matéria. ma e maitreya.
Suportei todas estas coisas
até ter cumprido a vontade do meu Pai... 483 O maniqueísmo usava uma linguagem mitoló-
gica para descrever as imagens arquetípicas
O carácter universal, e não apenas cristão, do referentes ao aparecimento do cosmos e do
maniqueísmo, vê-se claramente no hino se- homem, contendo quer paralelos quer diferen-
guinte, de que cito uma parte: ças em relação à maior parte das restantes es-
peculações gnóstica sobre esse tema.
É notável, e desvia-se um pouco da maior par-
cheisme: Nieuwe ontdekkingen, Nieuwe visies’ em te dos ‘sistemas’ gnósticos dos primeiros sé-
Ned. Theol. Tijdschrift 47, jan. 1993, 24). Também o culos, que Mani parta de dois reinos separa-
Códice Maniqueu de Colónia, achado neste século (L. dos, o Reino da Luz e o Reino das Trevas,
Koenen e C. Römer, vai nessa direcção. Pelo contrário,
Alexander Böhlig afirma em Die Gnosis: Der
484
Manichäismus que o maniqueísmo não pode ser Parte de um canto de louvor geral do rolo de hinos
interpretado apenas como cristianismo a que se teriam chinês, 143-147, traduzido por E. Waldschmidt e W.
junto elementos do budismo. Lenz, Dogmatik aus chinesische und iranischen Tex-
483
Salmo maniqueu 246:54,8-55,11 do Manicheese ten, 486-488.
485
Psalmboek, incluído em C. R. C. Allberry, Manichean Ver o texto deste diálogo em A. Böehlig, Die Gno-
Manuscripts in the Chester Beatty Collection. sis, III: Der Manichäismus, 260-262.
que existiriam independentemente um do ou- éticas. Estavam obrigados a prover às necessi-
tro, logo desde antes do princípio de tudo. E dades dos electi, para o que estavam dispensa-
essa separação continuaria a existir mesmo dos da proibição do trabalho manual ou do
depois do fim dos tempos. Depois de toda a trabalho no campo. Podiam também casar e
luz voltar a ser reunida no Reino da Luz, res- ter filhos e, eventualmente, comer carne e be-
tará das trevas apenas um bolos, uma bola; o ber vinho. Deviam contudo estar conscientes
mal será então comprimido e tornado impo- da sua fé e regular a sua vida de acordo com
tente. os ritos da igreja. Haviam ainda as proibições
de matar, de mentir, de cometer luxúria, de se
O maniqueísmo tinha uma organização cleri- ocupar com feitiçaria, e muitas outras. De-
cal com bispos e sacerdotes. Esses sacerdotes viam também jejuar, dar esmolas e orar em
pertenciam sem excepção aos ‘electi’ (elei- dias determinados (entre os quais todos os do-
tos), mas além dos sacerdotes havia outros mingos.
‘electi’, entre os quais mulheres; estas últimas Podia-se ir voluntariamente mais longe, por
não podiam porém ser sacerdotes. Todos eles exemplo, mantendo-se casto no casamento e
formavam a espinha dorsal espiritual de uma não comendo carne nem bebendo vinho, isto
religião voltada para a libertação das almas de é, aproximando-se tanto quanto possível do
luz. Isso tinha consequências de grande alcan- ideal do electus. A consequência desse com-
ce para a ética de todos os dias. Pois, como o portamento seria que numa próxima incarna-
cosmos era visto como a criação do Espírito ção, a alma deixaria de poder descer a um ní-
Vivo, uma criação do reino da luz, e se viam vel espiritual inferior. Pois aqui atingimos o
centelhas de luz não apenas no homem mas núcleo da ética: só a alma do eleito, desde que
também em plantas e animais, eram válidas tivesse vivido como se esperava dele, podia
determinadas regras para não se cair em inú- entrar imediatamente no pleroma. As almas
meras armadilhas que poderiam atrasar ou im- dos grandes pecadores corriam o risco de não
pedir a libertação da luz. ser redimidas; e todos os que se moviam entre
Os eleitos eram vegetarianos, não faziam tra- estes dois extremos alcançavam diversos está-
balho manual e não trabalhavam no campo, dios nos céus cósmicos.
andavam desarmados e não tinham relações
sexuais; com efeito, a reprodução tinha o efei- O maniqueísmo exerceu uma grande influên-
to contrário ao fim em vista: a luz dividir-se- cia até à Idade Média, mas foi praticamente
ia assim ainda mais; a abstinência total era extinto devido a um sem número de persegui-
vista como a melhor maneira de alcançar a li- ções, entre as quais não ocuparam o último lu-
bertação total e assim de apressar a vinda dos gar as movidas pelos potentados cristãos que,
tempos finais, com a separação definitiva en- para simplificar, incluíam esta religião entre
tre a luz e as trevas. Os outros mandamentos as ‘heresias cristãs’. No próximo capítulo, tra-
serviam para evitar todo e qualquer dano à na- taremos de um desses poderosos, que foi ma-
tureza, fosse de que maneira fosse. O electus niqueu na sua juventude.
andava assim de olhos no chão evitando cui-
dadosamente pisar plantas, algo que encontra-
remos mais tarde entre os cátaros. A refeição 9. A luta sexual de três san-
vegetariana era permitida apenas uma vez por
dia e havia muitos períodos de jejum. Em su-
tos Padres da Igreja
ma, os electi mantinham os três ‘selos da bo-
ca, da mão e do ventre, como se pode ler em Um monge entre mulheres
Agostinho (o da boca servia para proteger de
mentiras, embustes e má língua). Não é possível encerrar o capítulo sobre a an-
Nem todos podiam ou queriam cumprir estes tiguidade sem um exame mais detalhado de
mandamentos. Fora do ‘núcleo duro’ existia três Padres da Igreja que exerceram uma
uma grande multidão de ‘ouvintes’ (audito- grande influência sobre o pensamento cristão
res), que estavam, porém, sobretudo moral- ocidental, os ‘santos’ Jerónimo, Ambrósio e
mente, sujeitos a um grande número de regras Agostinho.
Na igreja católica há o costume de declarar Jerónimo (342-420) sentia-se um santo. Isso
determinadas pessoas primeiro beatas e de- vê-se nas suas muitas cartas e na auto-biogra-
pois santas. Normalmente, este processo é fia que juntou enquanto último livro a uma
precedido de uma intensa investigação, com obra sobre autores cristãos. 490 E ficou santo,
muitas declarações testemunhais. Na antigui- apesar do seu ‘mau carácter’ 491, da ‘pequenez
dade e na idade média era costume dedicar de um temperamento vingativo’ 492 e do ‘sar-
uma ‘biografia de santo’ 486 ao aspirante a san- casmo agressivo’ 493, com que tentou denegrir
to, antes de ter lugar a declaração de santida- os seus opositores.
de. Jerónimo nasceu na Dalmácia. Estudou retóri-
Segundo o dicionário 487, a palavra ‘santo’ si- ca em Roma. Nessa cidade foi baptizado, no
gnifica: sem pecado, puro, perfeito. Encontra- mesmo ano em que Dâmaso foi escolhido pa-
se nessa palavra a palavra são. A Woorden- ra bispo por uma maioria da comunidade. Não
lijst van het Rooms-Katholicisme diz em san- se sabe se Jerónimo tomou parte no banho de
to: ‘espiritualmente perfeito’, acrescentando: sangue que os partidários de Dâmaso provo-
‘no que diz respeito ao serviço de Deus’.488 caram entre os seguidores do anti-papa Ursi-
Poder-se-ia perguntar se alguém pode ser es- no, 137 dos quais perderam a vida na basíli-
piritualmente perfeito no que diz respeito ao ca. 494 O que sabemos é que após este episódio
serviço a Deus e um canalha em relação ao está de volta a Trier, a cidade onde o desterra-
resto. A vertente protestante desse dicionário do Atanásio lançou as primeiras sementes do
tem uma definiçãoalgo mais prudente: ‘a pa- monaquismo ocidental. É possível que a leitu-
lavra bíblica significa, não perfeito ou sem ra da Vita Antonii, da autoria desse mesmo
pecado, mas àparte, separado para um deter- Atanásio, tenha posto o jovem na via do ideal
minado fim ou função... No NT há fiéis que monástico. Após uma zaragata com alguns
são por vezes chamados santos, não porque amigos, parte para Antióquia. Aí perecem
fossem homens excepcionais, mas porque dois dos seus companheiros e ele próprio
preferiam uma maneira particular de viver, adoece gravemente. Num delírio febril, vê-se
querendo pôr-se aparte para o serviço a ante o trono de Deus, que lhe censura ele ‘ser
Deus’. 489 Mas apesar da definição algo mais mais um Cícero do que um cristão’. Foi o si-
ampla, também aqui está fortemente presente nal para um profundo estudo do hebraico, que
o pensamento dual. Se alguém se dedica sin- certamente lhe matou o tempo na sua existên-
ceramente ao serviço a Deus e escolhe, por- cia de eremita no deserto sírio. Mas apesar de
tanto, uma maneira particular (no sentido de repetidas vezes se ter vangloriado do seu as-
incomum) de viver, esse alguém santifica, sa- cetismo, a vida de eremita não parecia ser
na, com isso a sua vida. Uma vida que não é bem o ideal que Jerónimo tinha em vista.
perfeita, mas que pode ser aperfeiçoada. E is-
so nota-se no comportamento de vida de tal Ah, como era frequente, quando eu vivia no deserto
pessoa. Essa pessoa santifica-se a si mesma. inóspito e solitário queimado peolo sol ardente, como
era frequente eu imaginar a prazenteira vida de Roma!
Os santos não são declarados; são santos. Se Estava quase sempre sozinho, pois o meu coração esta-
esse é o caso dos três Padres da Igreja va cheio de amargura; os meus membros estavam meti-
declarados santos que são descritos neste dos numa crua veste de penitência, a minha pele era
capítulo ainda está por saber. negra como a de um etíope... Dia após dia chorava e
suspirava, e quando adormecia contra a minha vontade,
os meus ossos nus batiam contra o chão. Nada direi
sobre o que comia e bebia. Mesmo quando estão

486 490
A Vita Sancti Martini, a biografia de S. Martinho, Jerónimo, De viris illustribus. Ver também a biogra-
bispo de Tours, escrita em 397 por Sulpício Severo, foi fia de Jean Steinman, Sint Hieronymus.
491
um exemplo esplendoroso para muitos hagiógrafos. S. Ver Walter Tritsch, Christliches Geisteswelt, vol I
Martinho correspondeu durante muito tempo ao ideal (Die Väter der Kirche), 300.
492
cristão do apóstolo perfeito, que foi bispo e ao mesmo A. M. Malingrey e J. Fontaine, De oud-christelijke
tempo asceta e, naturalmente, mártir. literatuur, 196.
487 493
M. J. Koenen e J. B. Drewes, Verklarend hand- David Hugh Farmer, The Oxford Dictionary of
woordenboek der Nederlandse Taal (27 edição), 507. Saints, 224.
488 494
Woordenlijst van het Rooms-Katholicisme, 69. Ver entre outros W. H. C. Frend, The Early Church,
489
Woordenlijst van het Protestantisme, 74. 182.
doentes, os eremitas só bebem água fria, e uma utilizou toda a espécie de traduções antigas,
refeição cozinhada é considerada uma extravagância. E entre as quais a Hexapla de Orígenes, em cuja
então notei que, embora por medo do inferno me
tivesse condenado a este cativeiro onde escorpiões e
biblioteca de Cesareia permaneceu algum
animais selvagens eram os meus companheiros, era tempo.
repetidamente rodeado por grupos de bailarinas! O A tradução bíblica resultante deste trabalho fi-
meu rosto estava pálido do jejum, mas no meu corpo cou conhecida por Vulgata e continua a dis-
ardiam ainda as paixões do meu ser interior. O homem frutar de uma grande autoridade na igreja ca-
estava mais morto que vivo; apenas a sua
voluptuosidade continuava a ferver. 495
tólica. Mas levou quase um século até esta
Vulgata ser aceite geralmente e usada na litur-
Tínhamos já visto tais provações em António. gia; inicialmente, as pessoas apegavam-se
Um contemporâneo de Jerónimo, Evágrio do ainda muito às antigas traduções da Bíblia
Ponto, anotou numa espécie de diário todas as que, frequentemente, diferiam de comunidade
tentações que teve de combater na célula de para comunidade.
uma comunidade de eremitas:
Em Roma, Jerónimo entrou em contacto com
Contra o demónio da luxúria, na forma de uma mulher um grupo de senhoras romanas importantes
nua que avançava balançando as ancas e com todo o que tinham adquirido o hábito de cantarem
corpo a irradiar prazer sensual. (salmos) em conjunto e de se aprofundarem
Contra o pensamento de passar longos períodos na nos livros sagrados em casa de uma certa
companhia de uma mulher casada e de a procurar regu-
larmente numa esfera muito recatada, como se ela
Marcela. O grupo era constituído por viúvas e
fosse uma grande vantagem espiritual para nós. por mulheres solteiras, que viviam sozinhas e
Contra o pensamento que assume a forma de uma bela entre as quais havia algumas, como Asela,
mulher que tem connosco uma conversa séria enquanto que jejuavam com frequência, recitavam lon-
que nós queremos fazer com ela coisas pecadoras e es- gamente orações em retiro e dormiam no
candalosas.
Contra o diabo que me sussurra o pensamento de que
chão. Neste círculo, o jovem asceta, até pelo
deveria casar com uma mulher e devia gerar filhos em seu excelente conhecimento bíblico, era um
vez de dedicar aqui o meu tempo a passar fome e a conviva bem-vindo. Era-o também para uma
combater pensamentos sujos. 496 certa Paula, uma senhora de alta sociedade
que tinha quatro filhas e um filho. Paula se-
Estando em Constantinopla, onde seguiu li- guiria Jerónimo até Belém com a única filha
ções de Gregório de Naziança, Jerónimo foi que lhe restava, Eustóquio, e aí fundaria dois
chamado a Roma pelo já idoso papa Dâmaso, mosteiros, um para Jerónimo e outros monges
que precisava de um secretário. e outro para ela própria, sua filha e outras
Em 382, o ex-eremita instala-se na cidade freiras. Esta Paula deve ter tido uma profunda
cosmopolita. Mas dois anos depois, o seu pro- admiração por este antigo asceta do deserto.
tector papal perece. Dificuldades surgidas, a Uma das suas filhas morreu após um casa-
que voltaremos dentro em pouco, obrigam Je- mento feliz mas estéril com um amigo de in-
rónimo a deixar a cidade algum tempo depois. fância de Jerónimo, a filha mais nova morreu
Antes de morrer, Dâmaso tinha insistido nu- ainda muito jovem. A filha mais velha, Blesi-
ma boa tradução da Bíblia para latim e tinha la, enviuvou com menos de trinta anos. Pouco
encarregado Jerónimo de a fazer. Este fê-la depois, adoeceu gravemente, mas restabele-
em Belém, onde se estabeleceu em 386 após ceu-se. Jerónimo escreve sobre isto à sua ami-
algumas deambulações. O trabalho continuou ga Marcela:
até 405 e é uma tradução quer do Antigo quer
do Novo testamento feita com o objectivo de Assim vimos, cara Marcela, Blesila a tremer ininter-
‘defender a pura doutrina cristã de concep- ruptamente na cama durante cerca de trinta dias com
ções desviantes’. 497 Para a fazer, Jerónimo febre. Teve de aprender assim que os prazeres do
corpo, que um pouco mais tarde será comido pelos
vermes, têm de ser rejeitados... Cheirava um pouco a
495 indiferença e estava no túmulo do mundo envolta nas
Jerónimo, Epistulae, 22.
496 mortalhas da riqueza, mas Jesus rugiu de fúria e
Evrégio do Ponto, Antirrhetikos 2.32-49 op. cit. Pe-
interiormente perturbado exclamou: ‘Blesila, sai daí!’
ter Brown, Corpo e Sociedade, 291.
497 ... Antes a nossa viúva pintava-se cuidadosamente com
C. C. de Bruin, ‘A Bíblia na Idade Média’, em
uma certa angústia: passava o dia inteiro a ver o que
Cultura e Sociedade no Cristianismo, 670.
lhe estava mal... Antes, as criadas penteavam-lhe a ca- uma gota! Estava ali imóvel. Então lançou-se aos pés
beleira e a sua cabeça tonta ficava cheia de caracóis. de Cristo e como se o abraçasse, riu-se para ele: ‘Agora
Agora descuida a cabeça... antigamente, até a suavida- posso servir-te sem peias, Senhor, pois libertaste-me de
de de um colchão de penas lhe parecia dura e mal tamanho fardo’. 502
podia dormir em cima de uma pilha de almofadas.
Agora levanta-se cedo para rezar... Ajoelha-se no chão Não se pode negar a este Jerónimo um certo
de pedra e um rio de lágrimas lava-lhe o rosto
anteriormente sujo da pintura. 498
talento de escritor.

É duvidoso que esta última prática fosse mui-


to saudável, pois a sua recuparação foi de cur- O espancamento de Joviniano
ta duração. Talvez o programa de sobriedade
extrema a que o pai da igreja, mais tarde de- Já durante a sua estadia em Roma, Jerónimo
clarado santo, a submeteu fosse algo rigoroso criticava um certo Helvédio por este, inteira-
demais e os longos jejuns, dormir em corren- mente no estilo do Novo Testamento, falar
tes de ar e a oração quase contínua fossem de- dos irmãos e das irmãs de Jesus. 503 Segundo
mais para a frágil jovem. 499 Jerónimo, ele ia longe demais porque
Jerónimo escreve à mãe, que, dominada pelo
desgosto, teve de ser retirada durante o fune- Até ao nascimento do Salvador, Maria não teve rela-
ções com o seu marido e é certo que depois do nasci-
ral:
mento dele também não teve relações. 504
Não posso expressar sem suspiros o que vou dizer a se-
guir. Quando foste levada para casa depois de desmaia- É extremamente triste que esta opinião estrita-
res durante o funeral correu entre o povo o seguinte mente pessoal do monge declarado santo so-
murmúrio: ‘Quantas vezes não tínhamos nós já dito is- bre a virgindade eterna de Maria tenha in-
to? Lamenta a filha que faleceu por causa do jejum. La- fluenciado em grande medida a igreja até aos
menta-se porque não tem netos de um eventual segun-
dias de hoje. O bispo Bonósio que, tal como
do casamento da filha. Quanto é que ainda faltará para
aqueles monges execráveis serem expulsos da cidade, Helvídio, partia do princípio de que, depois
ou apedrejados, ou deitados ao Tibre? Transviaram esta do nascimento de Jesus, Maria teria tido uma
pobre mulher. 500 vida conjugal normal e teria tido filhos, foi o
primeiro a ser excomungado por ter essa opi-
Esta passagem segue-se à crítica de que o fa- nião.
nático monge punha a mulher triste porque ela Mais longe ainda ia Jovianiano, que punha em
se comportava de modo demasiado emocio- dúvida a virgindade de Maria no nascimento.
nal: Além disso, aos seus olhos, a virgindade não
era mais sublime que o casamento. E com is-
Perdoamos as lágrimas da mãe, mas pedimos so, pisava alguns calos do santo em vida reti-
comedimento no desgosto. Quando penso que és mãe
rado em Belém. A contestação deste ao here-
não te critico os queixumes, mas quando penso que és
cristã, e ainda por cima uma cristã que é freira, digo: ge Joviniano, que ‘devia ser esmagado’ 505, foi
estes nomes apagam o nome de mãe. 501 tão feroz que o genro de Paula, para proteger
o seu antigo amigo, não se poupou a esforços
Como ilustração usa o exemplo de uma mu- para recolher os exemplares dessa contestação
lher que perde os dois filhos quando ‘o cadá- que estavam em circulação; no que não teve
ver do marido ainda está quente’. sucesso.
O comportamento de Jerónimo era tanto mais
Todos pensariam que nestas circunstâncias ela feriria o embaraçoso quanto Joviniano também tinha
seu peito como louca, de cabelos desgrenhados e roupa sido asceta durante algum tempo, mas tinha
rasgada em sinal de luto. Mas não houve lágrimas, nem
parado com a ascese quando o assaltaram dú-
498
vidas sobre se alguém que se abstém de comi-
Jerónimo, Epistula 38, op. cit. J. J. Thierry, Vrouw-
en in de vroegchristelijk kerk, 72-73.
499 502
Ver, entre outros, E. Pagels, Adam, Eva en de slang, Ibidem, 76.
503
148. Mc. 6; Mat, 13.
500 504
Jerónimo, Epistula 39, op. cit. J. J. Thierry, Vrouw- Jerónimo, De perpetua virginitate B. Mariae adver-
en in de vroegchristelijk kerk, 76. sus Helvidium, 7.
501 505
Ibidem, 71. Jerónimo, Adversus Jovinianum 1.1.
da e de vinho é por definição melhor cristão Ambrósio (339-397), que encontrámos ante-
do que alguém que os sabe disfrutar de ma- riormente como sentenciador de Joviniano,
neira correcta e os agradece ao Criador. E em- nasceu em Trier. Em 374 trocou, oito dias de-
bora se conservasse celibatário, não punha o pois do seu baptismo cristão, o cargo de go-
celibato acima do casamento e não o conside- vernador da província de Emília-Ligúria pelo
rava nem melhor nem mais cristão do que a cargo de bispo de Milão, capital dessa provín-
virgindade tão entusiasticamente apregoada cia; um bispado que começou a ganhar di-
por Jerónimo. mensão quando os imperadores romanos se
Convencido da sua própria santidade, este úl- começaram a fixar cada vez mais em Milão.
timo não podia compreender que o seu oposi- Segundo o historiador da igreja Frend, Am-
tor fizesse uma escolha pessoal e ao mesmo brósio foi confrontado com quatro tarefas du-
tempo a relativizasse e não a impusesse aos rante o seu episcopado:
outros. Pois era isso o que Jerónimo queria. 1. a erradicação dos últimos restos do arianis-
mo no ocidente;
Para provar que a virgindade e o casamento são iguais 2. a colocação do direito da igreja acima do
devia casar-se; como não se casa e escolhe o nosso la- direito do estado;
do com o seu comportamento, não faz sentido que en-
tre em discussão connosco. 506
3. a circunscrição do poder da aristocracia pa-
gã;
Qualquer tolerância era estranha a Jerónimo. 4. a condenação das opiniões teológicas que
A concepção de que o homem entrava na pos- se opunham à sua visão ascética do cristianis-
se plena do Espírito pelo baptismo em Cristo mo. 509
e que nenhuma ascese podia aumentar essa Ambrósio ficou conhecido sobretudo pelo se-
posse, tal como dizia Joviniano 507, era rejeita- gundo ponto. Embora como vimos no
da como pura heresia devido à sua parcialida- capítulo anterior, houvesse uma teoria das
de, pelo menos no que dizia respeito à virgin- duas espadas, segundo Ambrósio, a espada da
dade. igreja devia ser algo mais afiada do que a
espada do estado. Isso pô-lo diversas vezes
O ponto de vista realista de Joviniano não ti- em conflito com o imperador, Teodósio.
nha qualquer hipótese. Ele tinha o azar de vi- Em 387, os habitantes de Antióquia conspur-
ver numa época em que três Padres da Igreja caram as estátuas do imperador em protesto
preferiam usar a repressão. Primeiro, o ex-as- contra a imposição de um aumento de impos-
ceta foi excomungado pelo papa Sirício, su- tos necessária para preparar uma grande cele-
cessor de Dâmaso. Mas o bispo de Milão, o bração do jubileu de dez anos de governação.
santo Ambrósio, achou necessário tratar do Embora a revolta tenha esmorecido por si por
assunto mais seriamente e chamou a atenção medo das consequências, a vingança do impe-
do imperador Teodósio para o caso. Este rador foi terrível; muitos cidadãos foram mor-
mandou espancar Joviniano com chicotes de tos, havendo inclusivamente crianças decapi-
chumbo e desterrou-o para uma ilha onde tadas e queimadas. A igreja não reagiu.
morreu dos ferimentos. Mesmo assim, Jeróni- Algum tempo depois, em Calínico, no Eufra-
mo não conseguiu conter o seu maldoso sar- tes, o povo foi incitado pelo bispo local a pôr
casmo e anunciou que o mártir não tinha expi- em prática o ódio aos judeus: a sinagoga local
rado o seu espírito em paz e que o tinha ‘re- foi pilhada e destruída. Além disso, na mesma
gurgitado entre carne de faisão e de porco’. 508 região, uma capela gnóstica valentiniana foi
arrasada por monges. Esta última foi deixada
como estava, mas a sinagoga, mandava Teo-
O poderoso bispo de Milão dósio, tinha de ser reconstruída, ao mesmo
tempo que o bispo era encarregado de punir
os culpados. Mas aí meteu-se Ambrósio na
contenda:
506
Jerónimo, Adversus Jovinianum 1.6.
507
Sobre isto, ver entre outros, H. A. van Bakel, Circa
Sacra, 136-157.
508 509
Jerónimo, Contra Vigilantium 1. W. H. C. Frend, The early church, 191.
Declaro que fui eu que incendiei a sinagoga, sim, que a Renuncias ao diabo e às suas obras?
mandei incendiar, para que não haja mais lugares onde
Cristo seja negado. 510 era acrescentada a pergunta:
O bispo chegou a interromper a missa em que Renuncias ao mundo e aos seus desejos? 515
o imperador participava e recusou-se a conti-
nuar enquanto o imperador não retirasse as Mas, por muito estranho que possa parecer,
suas ordens. Que a igreja concedia autoriza- para a posteridade Ambrósio ficou menos co-
ções para que fossem molestados judeus, pa- nhecido pelos feitos de armas descritos acima
gãos e hereges, mas não cristãos, descobriu e pelos seus escritos teológicos do que pela
Teodósio dolorosamente em 390. Em Tessa- influência que exerceu sobre um jovem que
lónica, um cocheiro muito popular entre o po- baptizou na manhã de Páscoa, 25 de Abril de
vo foi preso. 511 No levantamento que isso 387: Agostinho.
provocou, o governador da cidade foi morto.
Teodósio vingou-se refinadamente convidan-
do os partidários do cocheiro para uma apre- Os pecados juvenis de Agosti-
sentação espacial no circo local. Depois de te- nho de Hipona
rem entrado, as portas foram fechadas e os
cerca de sete mil homens, mulheres e crianças
foram impiedosamente abatidos pelas tropas Aurélio Agostinho tinha 32 anos quando foi
imperiais. O banho de sangue durou três ho- baptizado; para grande alegria de sua mãe,
ras. Ambrósio recusou ao imperador a santa Mónica, que já desesperara completamente
ceia enquanto ele não fez penitência pública em relação ao filho. Pois a vida do jovem
por este crime. 512 Inicialmente, o imperador Agostinho não tinha decorrido sem manchas
não se importou muito; deixou simplesmente até essa data, como ele próprio admite muito
de ir à igreja. Mas no fim capitulou e, despo- abertamente nas suas Confessiones (confis-
jado das suas vestes imperiais, pediu perdão sões). Na sua juventude, ele queria conquistar
por este crime na presença de uma grande um lugar na elite social do mundo romano
multidão. que tanto admirava, mas a sua origem em
Thagaste, no norte de África, fazia com que
No seu pensamento teológico, Ambrósio con- fosse visto como ‘provinciano’. Enquanto es-
cordava naturalmente com Jerónimo. Exigia tudava em Cartago, Agostinho começou a vi-
dos padres que não tivessem mais relações se- ver com uma rapariga que, devido a um erro
xuais com a mulher 513 e considerava a virgin- de cálculo, depressa ficou mãe de um filho,
dade a maior virtude cristã. Adeodato. Sentia necessidade de ‘fazer apor-
tar a sua juventude à praia do casamento’, es-
Esta virtude é de facto propriedade nossa. Ela falta aos creveria mais tarde. 516 Pois em Cartago tinha-
pagãos e não é praticada entre os povos naturais ainda se metido num ‘caldeirão fervente de amores
selvagens. Não se encontram em mais parte alguma se- desonrosos’;
res vivos onde esta virtude também ocorra. 514
e também no amor, onde queria ficar cativo, me perdi...
A renúncia ao material está bem alta no estan- e jubiloso enleei-me em ligações desgraçadas onde era
darte dos Padres da Igreja deste século IV. fustigado pelos ferros em brasa do ciúme, da descon-
fiança, do medo, da amargura e da iniquidade. 517
Depois de se perguntar durante o baptismo:
Nessa época, tinha então 19 anos, Agostinho
510
junta-se aos maniqueus, que estavam muito
Ambrósio, Epistula 40, op. cit. U. Ranke-Heine- activos sobretudo entre os estudantes de Car-
mann, 53.
511
Em 390 foi promulgada uma lei que punia com a
tago. Durante quase dez anos, foi ouvinte ma-
morte a ‘luxúria contra-natural’. Uma das primeiras ví- niqueu. Embora mais tarde venha a combater
timas dessa lei foi o cocheiro de Tessalónica.
512
Ver Ambrósio, Epistula 51.
513 515
Ambrósio, De officiis ministrorum I.50,248. Ambrósio, De sacramentis I.5.
514 516
Ambrósio, De virginitate I.3, op. cit. U. Ranke-Hei- Agostinho, Confessiones 2.2,3.
517
nemann, 51. Confessiones 3.1,1.
ardentemente este movimento 518, este período uma espécie de crise de identidade. Depois de
teve uma grande influência no seu pensamen- ter examinado sucessivamente os escritores
to posterior e na sua carreira na sociedade. antigos (Cícero), as concepções maniqueias, e
Quando chegou a Roma à procura de um em- a filosofia dos neo-platonistas, ele encontra,
prego que lhe agradasse, alojou-se em casa de com as pregações de Ambrósio e o ambiente
um maniqueu. E foram amigos maniqueus intelectual dos círculos que rodeavam este
que convenceram o prefeito da cidade de Ro- bispo, resposta a perguntas muito profundas e
ma, Símaco, a conceder a Agostinho a nomea- que até aí não tinham sido satisfeitas, nem se-
ção para professor de retórica da cidade de quer pelo cristianismo da sua juventude.
Milão. Dado o estatuto imperial da cidade, es- O teólogo Hans van Oort fala mesmo de uma
tas funções tinham algo de ‘ministério da pro- ‘conversão dupla’, pois
paganda’. 519 Agostinho assume as funções
mas não sem sacrificar a sua concubina. O neo-platonismo numa interpretação cristã significou
Quando a mãe Mónica o segue até Milão e lhe para Agostinho uma libertação intelectual, pois nele
Deus era descrito como um ser espiritual e o mal como
faz ver que um casamento ‘com um bom par- o não ser. 521
tido’ aumentaria nitidamente as suas possibili-
dades de promoção, e lhe apresenta mesmo As influências neo-platónicas permanecerão
uma candidata adequada, a mulher com quem claramente visíveis nas obras deste pai da
Agostinho partilhara quase 15 anos da sua vi- igreja. 522 Peter Brown diz que, no retiro da-
da foi mandada de volta ao norte de África quela casa isolada,
sem quaisquer escrúpulos. Mas como a noiva
achada por Mónica só daí a dois anos chega- Agostinho abandonou em alguns meses o casamento, o
ria à idade de casar e a mãe de Adeodato seu cargo e a esperança de segurança financeira e de
abandonara Milão deixando para trás o filho e renome social. 523
uma promessa solene de nunca mais se entre-
gar a outro homem, Agostinho consolou-se Nas Confessiones vemos uma história român-
com outra amante: tica da conversão do posterior doutor da igre-
ja. Num jardim, ele ouve uma voz infantil a
Mas eu, infeliz, não segui o exemplo dessa mulher. cantar tolle lege (toma e lê). E ao abrir a Bí-
Não podia suportar o adiamento de só daí a dois anos blia que casualmente estava no jardim, o olhar
ter como mulher a rapariga que tinha pedido em casa- cai-lhe na Carta aos Romanos, uma epístola
mento; e como eu não desejava assim tanto o casamen-
to e era mais um escravo da minha própria luxúria, to-
que também provocou um choque na vida do
mei outra. 520 monge agostinho Lutero.

Mas as coisas correriam de uma maneira mui- Comportemo-nos dignamente, como que à luz do dia, e
to diferente do que tinha pensado. No Outono abstenhamo-nos de comezainas e bebedeiras, de luxú-
rias e libertinagens, de discussões e invejas.
do ano 386, retira-se com a mãe, o irmão e al- Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não albergueis
guns amigos para uma villa nas vizinhanças mais desejos pecaminosos. 524
do Lago de Como, entre outras coisas para se
restabelecer de uma afecção de garganta e Muito se torna então claro a Agostinho.
pulmões que lhe dificultava a fala. O seu bió-
grafo Peter Brown especula que talvez se tra- Toda a escuridão da dúvida se sumiu... Tinhas-me con-
tasse de uma afecção nervosa subsequente aos vertido a Ti, de modo que nunca mais pedi uma mulher
meses espiritualmente muito tensos por que nem tive mais expectativas neste mundo,
tinha acabado de passar e onde tinha sofrido
como escreveria quinze anos mais tarde.525
518 De facto, depois da conversão ao cristianismo
Sobretudo em alguns tratados como De duabus ani-
mabus; Contra Fortunatum; Contra Adimantum; Con-
521
tra Epistulam Fundamenti; Contra Secundinum e Con- J. van Oort, Augustinus; facetten van leven en werk,
tra Felicem Manichaeum. O mais conhecido é o que 12.
522
escreveu contra o seu antigo mestre, Contra Faustum Ver entre outros o estudo de W. Aalders, Plato en
Manichaeum. het christendom.
519 523
Peter Brown, Augustinus of Hippo, 57. P. Brown, 99.
520 524
Confessiones 6.1,5. Rm. 13:13-14.
e do baptismo subsequente, a sua vida tornou- Chamam-lhe ‘pai da mística ocidental’, mas é também
se completamente diferente do que era antes. ‘pai da inquisição’, o primeiro na história da igreja a
justificar teoricamente o direito do estado a reprimir os
Durante a viagem de regresso ao norte de não-católicos. A sua concepção da história determinou
África, a sua mãe Mónica faleceu durante durante séculos o pensamento sobre o tempo. É sobre-
uma demora no porto de Roma. Regressado à tudo à sua acção que se atribui o prevalecimento do
sua cidade natal de Thagaste, realizou um pla- baptismo dos bébés no ocidente. Devido à sua influên-
no que já acalentara três anos antes num com- cia, e ao contrário do que aconteceu no Oriente, o sa-
cerdócio e o celibato ficaram – pelo menos em princí-
texto algo diferente: nessa altura tinha querido pio – indissociavelmente ligados. É responsável por
fundar com alguns amigos uma comunidade uma imagem do homem caracterizada por desconfiança
filosófica, o que tinha levantado a oposição em relação ao prazer sexual. A doutrina do pecado ori-
das mulheres desses aspirantes a monges. ginal transmitido por meio da relação sexual foi trazida
Agora não havia nada no caminho que impe- por ele do maniqueísmo para o cristianismo.
Também a doutrina da predestinação, que Calvino tra-
disse a fundação com alguns amigos de uma balharia mais tarde, provém dele. Essa doutrina partia
espécie de comunidade monacal onde se pu- do princípio de que Deus teria determinado já antes do
desse dedicar com todo o sossego a escrever. nascimento se cada homem seria bem-aventurado ou
Esse sossego foi mais curto que o previsto, não. 528
pois em 390 foi chamado para presbítero da
comunidade de Hipona e, cinco anos mais tar-
de, consagrado bispo dessa mesma coumnida- Sobre uma cidade de Deus
de. Ocuparia esse cargo quase trinta e cinco
anos. Quando, em 410, a cidade de Roma foi toma-
da e saqueada plas tropas de Alarico, o mundo
Agostinho deixou uma obra muito vasta e é natigo tremeu. Naturalmente que há muito
absolutamente impossível tratá-la aqui. O que que Roma já não era a Roma de César ou de
é possível, embora de forma muito breve, é Augusto. Os pontos focais do império tinham-
esboçar algumas das suas concepções que ti- se deslocado para Milão, Ravena e, sobretudo,
veram grande influência no pensamento cris- Constantinopla. Mas Roma continuava a ter
tão. Embora essa influência seja inegável, os aquele som mágico, aquele esplendor, diícil
autores diferem na sua opinião sobre ela. de pôr em palavras: Roma era um mito. A to-
mada da cidade foi portanto sentida como o
O que torna a vida de Agostinho tão perfeita e tão ver- desmoronamento do mundo antigo; desmoro-
dadeiramente exemplar: ele lutou a grande batalha não
namento que estava, aliás, a acontecer aos
apenas contra si mesmo, mas também contra todos os
da Igreja e do império de Roma. 526 poucos.
Rapidamente surgiram acusações que punham
O homem que fundiu numa unidade sistemática a ini- a culpa nos cristãos. Os antigos deuses roma-
mizade contra a sexualidade e a luxúria e o cristianis- nos estariam encolerizados por já não serem
mo foi o maior de todos os Padres da Igreja, o santo adorados. Alguns anos antes, Teodósio tinha
Agostinho († 430). O seu significado para a moral se-
ordenado que daí em diante o cristianismo se-
xual do cristianismo é incontroverso e de importância
fundamental na condenação da pílula por Paulo VI ria a única religião permitida no Império Ro-
(1968) e por João Paulo II (1981). Quem fala de inimi- mano, apesar da pressão da intelligentsia ro-
zade contra a sexualidade fala, portanto, de Agostinho. mana, entre outros, por exemplo, do já men-
Ele foi o pensador teológico que indicou o caminho cionado Símaco, que dizia com razão que vá-
não apenas para alguns séculos mas para mil e qui-
rios caminhos podiam conduzir ao mesmo
nhentos anos. A ética sexual cristã tem uma forma que
foi dada por ele. As declarações de Agostinho tiveram objectivo.529 Agostinho sentiu-se obrigado a
significado decisivo para os grandes teólogos da Idade produzir uma espécie de escrito de refutação
Média, como por exemplo, Tomás de Aquino († 1274), das acusações que punham as culpas da queda
e para o jansenismo, uma reanimação do pudor extre- nos cristãos. Levou treze anos a escrever essa
mo na França dos séculos XVII e XVIII. 527

528
Auke Jelsma em ‘De vele gezichten van Augusti-
nus’, uma recensão literária de P. Brown no jornal
525
Confessiones 8.12. Trouw, 25 de Julho de 1992.
526 529
Louis Bertrand, Augustinus, 6. Ver Het verzoekschrift van Symmachus aan de
527
U. Ranke-Heinemann, 66. keizer, publicado em J. Witzes, Ambrosius. Brieven.
obra: ao escrito de refutação propriamente di- cristãos pereceram, o pai da igreja responde
to (os primeiros dez livros), juntou um grande que o pai da igreja divide o bem e o mal de
número de tratados teológicos. Essa obra, De maneira justa e volta a equilibrar tudo no
Civitate Dei (A cidade – ou estado – de além. 532
Deus), teve grande influência no pensamento
e na acção ocidentais; era, por exemplo, o li- A fome mais extrema fez muitos cristãos perecerem
vro de cabeceira de Carlos Magno, e nos anos nestes ataques inimigos. Os que morreram de fome fo-
ram libertos das agruras desta vida e os que sobrevive-
oitenta, o presidente americano Ronald Rea- ram aprenderam assim a viver na escassez e a jejuar.
gan chamou à então União Soviética ‘o reino
do mal’, em analogia com a De Civitate Dei. Um grande número de doutrinas, que frequen-
Agostinho tentou demonstrar que o estado ro- temente são apresentadas, ou tinham sido
mano não era de modo algum tão magnífico apresentadas, em tratados à parte, aparece so-
como se supunha. Havia grande injustiça, há- bretudo nos 22 últimos livros da De Civitate
via inquietação contínua, havia grande impo- Dei. Entre elas, a que trata do pecado original
tência em garantir a felicidade dos súbditos. é de longe a mais importante. Agostinho es-
Chama-lhe mesmo ‘bando de ladrões’ e arrasa creve na De Civitate Dei:
os fundamentos morais do império. O império
não é uma criação dos deuses, é obra humana. Estávamos todos nesse único homem, quando éramos
E aqui chega ao núcleo do que quer dizer: na todos esse único que caiu em pecado por obra de uma
realidade, há dois impérios, um estado terre- mulher que tinha sido feita a partir dele antes do
no, tal como o Império Romano, um império pecado. 533
do diabo, um império de infiéis (‘que vivem
imitando o homem’), um império, portanto, Num dos seus sermões ao povo, que frequen-
também dos cristãos se estes viverem da mês- temente sobressaem pela sua esplêndida cons-
ma maneira que os seus predecessores pagãos, trução, por um estilo brilhante e por uma sim-
em resumo, Babilónia; e um estado de plicidade digna de admiração, ele repete esta
Deus. 530 A cidade (estado) de Deus é o reino tese:
do puro amor, da humildade, da luz; é a cida-
Pacámos num único e todos nascemos para a
de dos anjos e dos cristãos fiéis (‘que querem corrupção. O pecado é a causa de todas as nossas
viver imitando Deus’), em resumo, Jerusalém. desgraças. 534
É uma cidade que, na realidade, é não terres-
tre, mas a igreja é a sua representante e um Agostinho apoia-se aqui sobretudo numa pas-
seu antegosto. O pensamento de que fora da sagem da carta de Paulo aos Romanos:
igreja não há salvação possível (extra eccle-
siam nulla salus) já se encontra em Cipriano Por isso, assim como o pecado entrou no mundo por
(† 258), bispo de Cartago 531, mas é mais um homem, e com o pecado a morte, assim também a
acentuado por Agostinho. morte transmitiu-se a todos os homens, porque todos
pecaram. 535
Por um lado, é uma obra extremamente pro-
funda de um muito grande pensador, por ou-
Agostinho leu este texto não no grego original
tro lado, tem-se por vezes a impressão de que
mas numa tradução latina. E assim cometeu
algumas coisas são postas de lado com dema-
dois erros, um erro na tradução e um erro na
siada ligeireza. À queixa de que muitos ím-
explicação. Agostinho traduz ‘porque todos
pios sobreviveram à luta enquanto muitos
os homens pecaram’ por ‘por isso, todos os
homens pecaram’. Agostinho interpretou ‘as-
530
Segundo alguns investigadores, nesta teoria de um sim também a morte transmitiu-se a todos os
reino do diabo e de um reino da luz enconmtram-se homens’ como ‘assim também o pecado
ainda vestígios do pensamento maniqueu dos anos de
juventude de Agostinho. Ver, entre outros, a disserta- transmitiu-se a todos os homens’. Juntando a
ção de J. van Oort, Jeruzalem en Babylon, sobretudo
532
169-198. Agostinho, De Civitate Dei 1.8.
531 533
Cipriano, Epistula 83,11. Ver também a sua de ca- De Civitate Dei 13.14.
534
tholicae ecclesiae unitate (publicada em W. H. Bee- Agostinho, Sermones ad Populum 240.
535
kenkamp, Thascius Caelius Cyprianus: Keuze uit zijn Rm. 5:12, na tradução da Sociedade Bíblica Holan-
geschriften, 40-62. desa.
isto uma interpretação literal da história do
Génesis ficam presentes todos os ingredientes Deus gosta de nós, não como somos agora, mas como
para sobrecarregar a humanidade por mais mil viremos a ser. 541
e quinhentos anos com um forte sentimento
do pecado. 536
Segundo Agostinho, todo o género humano Um velho sombrio
estava presente ‘nesse único homem’, Adão.
A sexualidade emanou do pecado de Adão, Por volta do ano 400 pregava em Roma um
que por obra de uma mulher, comeu o fruto monge inglês, um certo Pelágio, que tentava
proibido. contrariar a indiferença religiosa e a fraqueza
da fé que imperava por toda a parte entre os
Conta-se que coseram umas às outras folhas de figueira cristãos. Ele atrbuía o comportamento como-
e fizeram tangas com elas; pois sentiam-no nas partes dista de muitos cristãos a uma ênfase dema-
que cobriam. Daí vem o pecado original e por isso nin-
saido grande na doutrina de que a humanidade
guém nasce sem pecado. 537
teria sido automaticamente redimida pela
A partir daí, o homem passou a formar-se por morte de Jesus na cruz e de que, portanto, já
reprodução em vez de por criação. E com essa não tinha grande responsabilidade pelos seus
reprodução reproduziu-se também o pecado, próprios actos. Era partidário de uma forma
que assim vem com o pecado original entra- de piedade severa e ascética. O homem não
nhado. Só Jesus não foi manchado por ele devia esconder-se atrás da desculpa da sua
pois não teria nascido da semente humana. fraqueza, pois isso era uma crítica indirecta a
Deus, que tinha criado o próprio homem com
Cristo foi engendrado e recebido sem luxúria carnal; todas as suas qualidades. Este monge achava
por isso estava liberto de toda a mancha do pecado ori- claramente que o ‘dá o que ordenas e ordena o
ginal. 538 que quiseres’ 542 de Agostinho era uma manei-
ra de ver as coisas demasiado dependente que
A doutrima da graça está estreitamente entre- não fazia jus às capacidades presentes no pró-
laçada à do pecado original. Segundo Agosti- prio homem.
nho, a graça não podia ser compreendida sem Pelágio opunha-se também ao baptismo de
a ideia do pecado original. 539 Pois sem a graça crianças; especialmente porque esse baptismo
de Cristo, o pecado original seria insuportá- estava voltado, não para o seu objectivo real,
vel. Todos os que nasciam normalmente, isto a santificação da vida, mas para o perdão dos
é, em pecado, precisavam por isso do baptis- pecados. Esta prática, então crescente na igre-
mo em Cristo como segundo nascimento. ja 543, arrastava consigo gritantes injustiças so-
ciais, como se constataria também mais tarde;
Só Jesus pôde nascer de tal modo que não precisou de até ao século XX, as crianças não baptizadas
renascimento. 540
não podiam ser sepultadas em solo comsagra-
do e, na opinião de muitos, iam assim directa-
Agostinho via a fé em Cristo como um dom mente para o inferno.
da graça, pois o homem por si mesmo nada Num dos seus sermões, Agostinho fala de
podia fazer de bom. uma mãe desesperada que leva o filho, faleci-
do antes de ser baptizado, ao santuário de
536
Jan van Heerde, cujo cativante comentário segui, Santo Estêvão. Lá, a criança é ressuscitada, só
afirma resolutamente: ‘Nem o Gnénesis 2 e 3 nem Ro- para poder ser baptizada. Porque logo a se-
manos 5:12-21 dão qualquer indicação que possa levar
a procurar na Bíblia uma doutrina do pecado original
guir, a criança morre outra vez; mas escapou à
transmissível’ (Jan van Heerde, Zonde dat er zonde is, condenação eterna. 544
29).
537 541
Sermones 151.6. Agostinho, De trinitate Dei 1.10:21.
538 542
Agostinho, Enchiridion ad Laurentium 13.41. Além Confessiones, 10.
543
disso, Cristo identificar-se-ia com Jesus desde o seu É ilustrativa disto a colectânea de textos sobre o
nascimento. baptismo (de crianças) na igreja antiga feita por Hein-
539
Sobre isto ver sobretudo Agostinho, De gratia rich Kraft, Texte zur Geschichte der Taufe, besonders
Christi et de peccato originale. der Kindertaufe in der alten Kirche.
540 544
Enchiridion 14.48. Sermones, 323, 324.
Mais tarde, um ardente opositor de Agostinho bia do que falava. Depois da condenação de
notaria que o Deus deste era um ‘perseguidor Pelágio e dos seus seguidores em 418, Julia-
de recém-nascidos que lançava no fogo eterno no, que tinha então cerca de 35 anos e estava
criancinhas de peito.’ 545 no princípio de uma gloriosa carreira clerical,
Enquanto que Agostinho acreditava que o ho- pôs-se à cabeça de um grupo de dezóito bis-
mem era doente por natureza, Pelágio, pelo pos italianos que se opuseram ao sombrio en-
contrário, pregava que o homem era bom. E sinamento de Agostinho. Logo no ano a se-
também não acreditava de modo algum que guir, foi expulso de Itália devido à sua oposi-
ele fosse pecador por natureza. O homem ti- ção. Passou o resto da vida no exílio, onde
nha uma vontade própria livre; podia pecar, continuou a sua polémica com Agostinho:
mas também podia não pecar. E assim chocou
irremediavelmente, que afirmava exactamente Perguntas-me por que não quero concordar com a ideia
o contrário. O bispo de Hipona reagiu forte- de que existe um pecado que faz parte da natureza hu-
mana?
mente. Quer em escritos de refutação, quer Respondo: é improvável, é falsa; é incorrecta e desres-
em concílios convocados à pressa no norte de peitosa; dá a impressão de que foi o diabo que criou o
África, Pelágio foi condenado. Mas ao consta- homem. Vai contra a liberdade da vontade... afirmar
tar-se que as coisas não eram tão fáceis como que o homem é tão pouco capaz de fazer o bem que já
tinha parecido à primeira vista – muitos digni- no regaço materno está cheio de pecados antiquíssi-
mos. Pintas esse pecado como sendo tão poderoso que,
tários cristãos estavam do lado de Pelágio – não só destrói a inocência recém-nascida da natureza,
foi pedida a ajuda do imperador. como obriga o homem a cometer eternamente todas as
Isto não era novo, porque na luta anterior con- formas de mal... E é tanto repugante como blasfemo
tra o núcleo duro dos donatistas, que ainda ti- que afirmes que o hábito geral de esconder por decoro
nham muitos seguidores em África, também as nossas partes púdicas é a prova acabada desta te-
se. 550
tinha sido pedida a ajuda do poder temporal.
Para isso, Agostinho baseou-se na parábola
Enquanto Agostinho, com o avanço da idade,
dos convidados reticentes 546, em que um ser-
vê a sexualidade cada vez mais como um de-
vidor, depois de todos os convidados se terem
sejo mau impossível de dominar e a liga ao
desculpado, acaba por obrigar as pessoas da
pecado original, Juliano fala da sexualidade
rua a sentarem-se à mesa da festa. Segundo o
como um ‘sexto sentido’, como um ‘fogo vi-
professor Otto de Jong, com esta argumenta-
tal’, como uma energia absolutamente neutra
ção, Agostinho teria aberto caminho para a
que pode ser usada também de maneira boa.
posterior inquisição. 547
A reacção de Agostinho a esta espécie de
Para fazer o poder imperial adoptar o ponto
observações de grande sensibilidade foi fre-
de vista de Agostinho, um amigo do bispo,
quentemente desagradável, pessoal e nada di-
Alípio, chegou a lançar na luta a arma da cor-
reita ao assunto:
rupção e ‘levou para a corte imperial oitenta
garanhões númidas como luvas’. 548 Pelágio É isso que pensas, é essa a tua experiência? Não queres
foi condenado e morreu pouco depois; mas o portanto que os casais ajam contra esse mal – refiro-me
seu lugar foi ocupado por um bispo do sul de naturalmente àquilo a que chamas bem? Queres portan-
Itália, Juliano de Eclano, com quem Agosti- to que mergulhem na cama quando quiserem, quando
nho se manteve em polémica até à sua morte forem espicaçados pelo desejo? E não os façamos espe-
rar até à noite para darem ouvidos a essa comichão: en-
em 430 – deixando por acabar o seu último treguem-se às suas ‘obrigações conjugais’ quando o
escrito de refutação. vosso ‘bem natural’ fica excitado. Se é esse o tipo de
O bispo de Eclano, Juliano, era ele próprio fi- vida conjugal que levas, não tragas a tua experiência
lho de um bispo e casado com a filha de outro para a discussão. 551
bispo. 549 Era um homem desenvolvido que sa-
Nola no seu Epithalameum (62) por ocasião deste casa-
mento.
545 550
Agostinho, Contra Julianum 1.48. Objecção de Juliano, citada por Agostinho no seu
546
Lc. 14:15-24. segundo (e inacabado) escrito de refutação contra este
547
O. J. de Jong, Geschiedenis der Kerk, 73. bispo, Contra secundam Juliani responsionem imper-
548
E. Pagels, Adam, Eva en de slang, 198. fectum 6.12, op. Cit. P. Brown, 337.
549 551
‘Gentis apostolicae filia facta domo’ (aquela que já Agostinho, Contra Julianum 3.14,28, op. cit. P.
de nascença era gente apostólica), escreve Paulino de Brown, 337.
mento de impotência transforma-se numa ten-
É praticamente certo que antigas frustrações dência para se voltar para forças e poderes fo-
do pai da igreja declarado santo tiveram um ra do homem. O homem sentia-se doente; o
grande papel nas suas condenações. O homem homem sentia-se culpado; o homem sentia-se
era impotente; primeiro, como criança; segun- pequeno. É o sinal da passagem da Antiguida-
do, contra o desejo sexual – ‘essa excitação de Clássica à Idade Média. Agostinho, um es-
diabólica das partes sexuais’ 552 –; e terceiro, pírito sensível e inquiridor, captou na sua
contra a morte. E tudo isso por causa do peca- consciência o que os tempos exigiam. Com
do de Adão e Eva. Agostinho, começa a Idade Média.
Nos seus últimos anos de vida, o velho bispo
formulou uma doutrina ainda mais sombria de
predestinação 553, que seria mais elaborado so- 10. A herança perdida
bretudo na Reforma. Segundo essas comcep-
ções, existem homens que estão predestinados Deus como mulher
a ser salvos e outros que estão predestinados a
perderem-se. Só a graça seleccionadora de
Depois do período dos sete grandes concílios
Deus concede a fé e torna o fiel capaz de rea-
ecuménicos e das actividades dos Padres da
lizar obras de amor.
Igreja sobre que nos debruçámos no capítulo
anterior, a ‘doutrina cristã’ 556 estava em
Agostinho foi um grande pensador, e muito
grande parte estabelecida. O cristianismo
original. Muitos interrogaram-se sobre quais
tinha-se tornado de uma experiência viva
seriam os fundamentos do seu mundo de pen-
numa doutrina, com sanções para quem quer
samento e tentaram traçar as várias orienta-
que se desviasse. O que não quer dizer que
ções do seu pensamento – ele mudou bastante
mesmo num cristianismo enclausurado já não
de opinião – a partir da sua juventude, a partir
fossem possíveis experiências vivas. Veremos
da sua posição de bispo com autoridade ou a
exemplos delas num capítulo posterior.
partir das concepções dominantes do cristia-
E não deixa de ser espantoso ver como um
nismo norte africano dessa época. Mas para
sem número de ensinamentos e concepções
mim, a pergunta essencial é por que é que tan-
essenciais de Jesus puderam degradar-se tanto
tos dos seus pensamentos foram incorporados
num período de cerca de quatro séculos. Aci-
na igreja; se, por exemplo, as concepções de
ma de tudo, a atitude face à mulher.
opositores seus, como Pelágio e Juliano, esta-
vam muito mais em concordância com a tradi-
No livro bíblico Génesis pertencente ao Anti-
ção clerical da sua época. É aliás com ela que
go Testamento, encontramos duas histórias da
se ocupam alguns teólogos actuais. 554
criação. O texto começa com a versão mais
Em essência, Agostinho trouxe um ensina-
recente, que foi escrita provavelmente no sé-
mento sombrio a uma época sombria. À hora
culo VI antes de Cristo durante o cativeiro ba-
da sua morte, os Vândalos cercavam a sua ci-
bilónico. Entre outras coisas, lemos aí:
dade, Hipona. 555 O mundo estava em movi-
mento. O Império Romano desmoronava-se. E Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à
Certezas acalentadas durante séculos caíam. imagem de Deus; criou-os homem e mulher. 557
Os antigos esplendores perdiam brilho e o ho-
mem já não se podia reflectir, nem identificar, A versão mais antiga da história judaica da
com glórias exteriores. Quando o homem se criação data provavelmente de há cerca de mil
sente joguete das ondas do tempo, o senti- anos antes da nossa era e encontra-se em Gé-
nesis 2:4 e seguintes. Nessa parte, encontra-
552
mos a criação do homem formulada de outra
Contra secundam Juliani responsionem imperfec- maneira:
tum 2.33.
553
Agostinho, De praedestinatione sanctorum.
554 556
Ver, por exemplo, Karl Rahner, Befreiende Theolo- Não foi sem razão que Agostinho intitulou uma das
gie, 2, 76. suas obras De Doctrina Christiana (Sobre a doutrina
555
Ver, entre outros, M. C. Capelle, Kruisgang van het cristã).
557
woord, 99 e seg. Génesis, 1:27.
Então, o Deus Jahveh moldou o homem de pó tirado da Se alguém tiver casado com uma mulher e deixar de
terra, e soprou-lhe o alento vital no nariz: assim se tor- gostar dela por ter descoberto nela algo impróprio, que
nou o homem num ser vivente... Então, o Deus Jahveh esse alguém lhe escreva uma carta de separação, lha
adormeceu profundamente o homem; e enquanto ele entregue em mão e a expulse de sua casa... 562
dormia, tirou-lhe uma das costelas e pôs carne no seu
lugar. Depois, o Deus Jahveh formou uma mulher a A separação matrimonial é, portanto, possível
partir da costela que tinha tirado ao homem e levou-a
até ao homem... 558
da parte do homem. Além disso, o matrimó-
nio é orientado especialmente para a reprodu-
Tendo sido desobedientes, Adão e Eva são ção. Se, após dez anos, o matrimónio continua
expulsos do paraíso. Incitada pela serpente, sem filhos, o homem tem a obrigação de casar
Eva colheu um fruto da árvore do conheci- outra vez ou de tomar uma segunda mulher. A
mento do bem e do mal e levou Adão a comer poligamia é, pois, permitida entre os judeus,
também. Em castigo por isso, Deus teria dito: tal como podemos ler nas obras do historiador
judaico José. 563
O teu desejo irá para o teu marido, embora ele te
domine. 559 As coisas estavam assim entre os judeus na
época do nascimento de Jesus de Nazaré. O
Para a maior parte dos judeus, a questão era homem podia repudiar a mulher se achasse o
clara. A mulher está submetida ao homem. seu comportamento impróprio, por exemplo,
Mas não para todos. Judeus espirituais e gnós- se ela falasse em público com outro homem.
ticos (e cristãos espirituais) tinham uma con- Ou se não tivesse filhos. Ou se, tal como diz
cepção totalmente diferente da história do pa- um contemporâneo de Jesus, o profeta Hillel,
raíso. Comer da árvore do conhecimento do deixasse queimar a sopa. 564 Inversamente, não
bem e do mal tinha sido um acontecimento era permitido à mulher repudiar o seu marido.
formidável, pois com ele o homem adquiriu Um homem não podia cometer excessos com
conhecimento da sua verdadeira ascendência outra mulher casada, porque assim diminuía o
divina. E isso era uma ameaça para o deus in- valor da posse do seu marido. Mas um ho-
ferior (Jahveh), que expulsou o homem do pa- mem casado podia dar-se livremente com mu-
raíso. É muito significativo que seja a mulher lheres solteiras sem que isso fosse visto como
a incitar o homem a este acto de sabedoria e um abuso.
vasto alcance. Mais significativo ainda é que Ainda que, segundo o investigador dos Ma-
essa mulher se chame por isso mesmo Sophía, nuscritos do Mar Morto, Roland de Vaux, a
sabedoria. A Sabedoria de Deus é uma figura posição da mulher casada em Israel fosse in-
feminina. Eva como dadora de vida e não co- ferior à das das culturas orientais confinan-
mo tentadora pecaminosa. tes 565, no Ocidente a sua situação não era
muito melhor.
Foste tu que me deste a vida Paul Veyne refere que entre os Romanos o ca-
samento era uma questão racional, destinada à
exclama Adão num tratado gnóstico sobre o produção de descendência legítima. Antes e
aparecimento do mundo. 560 durante o casamento, o senhor da casa tinha
os seus prazeres com as escravas e a noite de
Mas, digamo-lo mais uma vez, para a núpcias tinha na maior parte dos casos algo de
esmagadora maioria dos judeus é claro que a uma entrada em vigor legal. 566
mulher está submetida ao homem e que ele
pode dispôr dela. Nos ensinamentos vertidos
562
Deuteronómio, Moisés suaviza o Deuteronómio 24:1.
561 563
mandamento ‘Não cometerás adultério’: José, Vita, p. 75 e Antiquitates Judaicae 17.1,2.
564
Ver, entre outros, M. de Groeij, De vrouw in het jo-
dendom, na série Verkenning en bezinning, ano 16, nº
558
Génesis, 2:7 e 2:21-22. 2, Set. 1982, 20.
559 565
Génesis, 3:16. Citado em Merlin Stone, Eens was God als vrouw
560
A Hipóstase dos Arcontes, CNH II,4 89,14 e Sobre belichaamd, 78.
566
a Origem do Mundo, CNH II,5 116,7. Paul Veyne (coord.), Geschiedenis van het persoon-
561
Êxodo 20:14. lijk leven, I, p.33-46.
Entre os gregos, as coisas ainda eram piores. erva para o gado
A famosíssima ‘democracia’ de Atenas era e grão para o homem...
uma reunião popular de homens livres, isto é,
de homens sem mulheres e sem escravos. Eva escreveu o grande poeta trágico grego Ésqui-
Cantarella constatou num estudo magnífico 567 lo. 571
que, entre os gregos, a homossexualidade não
só era permitida como era vista como a forma Também a mulher pode dar à luz, criar. Ela é
superior do amor; era a única relação em que a personificação da fecundidade omni-abran-
se podia falar de equilíbrio entre amor corpo- gente. Quando os grandes rios na Babilónia e
ral e espiritual; entre um homem e uma mu- no Egipto saíam anualmente das suas margens
lher havia apenas um laço corporal que estava e tornavam possível uma rica vegetação nas
puramente orientado para a produção de her- zonas ribeirinhas, isso era comparado a um
deiros. Uma ideia que também encontramos seio materno fecundado. Schubart fala nesse
na declaração de Agostinho: caso de ‘paixão criadora’, do imenso senti-
mento de se estar ocupado a criar.
Sinto que nada arrasta mais o espírito masculino das Resumindo, podemos dizer que na alta anti-
alturas para baixo do que o amor de uma mulher e guidade a mulher era vista como o símbolo da
todos esses contactos corporais que pertencem ao fecundidade por excelência. Estatuetas desen-
estado casado. 568 terradas procedentes desse período mostram
mulheres com grandes mamas e ancas genero-
Ora existiram na alta antiguidade culturas ma- sas. Poder criar e a ligação com a fecunda
triarcais onde a divindade foi adorada como mãe terra provocavam no homem um certo re-
mulher. 569 Muito provavelmente, esse foi o ceio, e talvez até, inveja. Quando o homem
caso das mais antigas sociedades. A passou a ocupar-se cada vez mais com a orga-
decadência do matriarcado dá-se em grande nização e com o fabrico de utensílios e ferra-
parte paralelamente à passagem do natural ao mentas, os papéis mudaram gradualmente. A
cultural. Política, ciência e técnica – por mulher tornou-se cada vez mais uma posse.
primitivas que sejam – dão a homem a sua Quer na alta antiguidade, quer no princípio da
independência. nossa era, o amor verdadeiro entre um homem
e uma mulher estava longe de ser um caso ge-
As causas do facto notável de que o homem, apesar da
sua maior força física, abrigar um certo medo da mu-
ral.
lher devem ser muito profundas,

afirma o professor Walter Schubart. 570 A mu- A mulher em Jesus


lher está estreitamente ligada à terra e à sua
fecundidade. Quando Jesus diz num determinado momento
que não veio para abolir a lei, veio para a
O campo está cheio de desejo de bodas. cumprir 572, poder-se-ia pensar que ele adere
Do céu à procura de amor
aos costumes do seu tempo. As opiniões ne-
cai chuva
e a terra engravida. gativas da igreja sobre a mulher estariam en-
E dá à luz para os mortais tão inteiramente explicadas. Mas as coisas são
completamente diferentes.
567
Jesus via a mulher como totalmente equiva-
E. Cantarella, Pandora’s Daughters. lente ao homem. Ele sublinhou repetidamente
568
Agostinho, Soliloquia, 1.10.
569
Sobretudo na época actual, como reacção à desagre-
que o masculino e o feminino se deviam
gação da sociedade patriarcal – raciocínio acima da acompanhar numa equivalência total, que se
percepção, homem acima da mulher, Deus acima da deviam fundir um com o outro para se poder
criatura (B. Koole, Voorbij het patriarchaat, 51) – isto chegar à verdadeira unificação. 573 A atitude
é sublinhado numa literatura bastante abundante. Ver,
por exemplo, Merlin Stone, The Paradise Papers (tra-
571
duzido para holandês como Eens was God als vrouw Ésquilo, Fragmentos, 395, 25.
572
belichaamd); Elisabeth Badinter, De een is de ander e Mt. 5:17.
573
Manuela Dunn Mascetti, The Song of Eve. Ver, entre outros, J. Slavenburg, Een ander testa-
570
W. Schubart, Erotiek en Religie, 4. ment, sobretudo 96-97 e 108-109.
de Jesus em relação à mulher pode, com ra- trevas 580; a da mulher frequentemente beijada
zão, ser considerada revolucionária para a sua por Jesus 581; a da ‘mulher amada de Jesus’.582
época. Não só porque a aceitava como discí- A igreja também não a declarou santa como
pula e permitia que ela o acompanhasse – isso ‘apóstolo dos apóstolos’, um título honorífico
era um costume mais ou menos aceite no ju- que ainda lhe davam nos primeiros séculos do
daísmo desse tempo – mas sobretudo porque, cristianismo 583 porque tinha sido a primeira a
quando era possível, a protegia do homem nu- encontrar a encontrar Jesus ressuscitado e
ma cultura patriarcal; tal como no apedreja- porque era o único elo de ligação entre Jesus
mento de uma mulher adúltera 574 e numa con- ressuscitado e os restantes discípulos. 584 Tam-
versa durante um banquete em casa de um fa- bém Ambrósio não pôde deixar de secundar
riseu: esta opinião, apesar de não ter conseguido
omitir uma referência à pecadora Eva:
Seguidamente voltou-se para a mulher e disse a Simão:
‘Vês aquela mulher? Entrei na tua casa; não me deitas- É justo que uma mulher tenha sido escolhida para men-
te água nos pés, mas eles ficaram molhados com as lá- sageira para os homens. Assim como foi ela a primeira
grimas dela e ela secou-os com os cabelos. Não me a trazer a mensagem do pecado ao homem, foi ela tam-
beijaste, mas desde que eu entrei que ela não pára de bém que trouxe a mensagem da graça de Deus. 585
me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo,
mas ela ungiu-me os pés com bálsamo. Por isso te
digo: os pecados dela estão perdoados, mesmo sendo
Não, a igreja posterior declarou-a santa como
muitos, porque ela demonstrou muito amor.’ 575 Maria Madalena Arrependida. Porquê arre-
pendida? Porque identificaram Maria Madale-
Também falava com mulheres em público. Os na ‘de quem tinham saído sete diabos’ 586 – in-
discípulos ficaram bastante perturbados, como dicação que pode muito bem ser uma metáfo-
se pode ler no Evangelho de João, ao ver Je- ra referente à iniciação séptupla 587 – com a
sus embrenhado em conversa com uma mu- pecadora anónima que ungiu os pés de Je-
lher samaritana na fonte de Jacob. 576 E no sus 588, e que, por sua vez, seria a mesma que
Evangelho de Maria, Pedro pergunta perple- Maria, irmã de Marta, que tinha escolhido a
xo: melhor parte. 589 Esta construção de três-em-
um teve a aprovação do papa Gregório, o
Terá ele falado com uma mulher na nossa ausência e Grande, no século VI. 590 E assim se tornou
não abertamente? 577 Maria Madalena, a iniciada, o apóstolo dos
apóstolos, uma pecadora; uma prostituta to-
Estava a referir-se a Maria de Magdala. An- mada em graça por Jesus.
tes, já tinha tentado afastá-la do círculo íntimo
à volta de Jesus: 580
EvFlp. 46.
581
Ibidem.
Que Maria (Madalena) se vá embora, porque as mulhe- 582
J. Slavenburg, Een ander testament, 74. Ver tam-
res não são dignas da vida. 578 bém S. Ben-Chorin, Broeder Jezus; de Nazarener door
een jood gezien, 102-105.
583
A igreja declarou esta Maria Madalena santa Maria de Groot, ‘De geest in vrouwenmantel’, em
no século IX. Mas não na qualidade que era a M. v. Ameronger (coord.), Sceptici over de Schrift,
160.
sua: a de ‘uma mulher que conhecia o To- 584
Joseph A. Grassi, The Hidden Heroes of the Gos-
do’ 579; a da mulher que viu a luz quando os pels, 134/135.
585
outros discípulos ainda se encontravam em Ambrósio, De Spiritu Sanctu, 3.11,74, op. cit. E. de
Boer, ‘Maria van Magdala en haar Evangelie’, em G.
Quispel (coord.), Gnosis, 92.
586
Lc. 8:2.
574 587
Jo. 8:7. Os textos paleocristãos e gnósticos também se incli-
575
Lc. 7:44-47. nam nessa direcção.
576 588
Jo. 4:27. Lc. 7:36-50.
577 589
Evangelie volgens Maria (Magdalena), J. Slaven- Lc. 10:42.
590
burg/W. G. Glaudemans, Biblioteca de Nag Hammadi Ver, por exemplo, Esther de Boer, ‘Maria Magdale-
I, 384. na en haar evangelie’, em G. Quispel, Gnosis, 85-99 e
578
EvT. 114. Rosemary Radford Ruether, ‘Het feminisme en het ge-
579
Het gesprek met de Verlosser, J. Slavenburg/W. G. zag van de canon’ em R. Bons Storm e outros (coord.),
Glaudemans, Biblioteca de Nag Hammadi I. Zij waait waarheen zij wil, 19 e 24.
importante é aquela onde é dito que ‘Cristo é
Havia ainda outra coisa que chocava os discí- a cabeça de cada homem, o homem a cabeça
pulos masculinos. Jesus protegia a mulher da mulher e Deus a cabeça de Cristo’. 594 Pois:
contra o arbítrio do homem, que sem grandes
dificuldades podia pôr a mulher na rua e ao Um homem... é a imagem de Deus e um reflexo da sua
mesmo tempo ficar com o dote. É o discurso magnificência, enquanto que a mulher é a glória do seu
marido. O homem não foi tirado da mulher, a mulher
de Jesus no Evangelho de Mateus: foi tirada do homem, e o homem não foi criado por
causa da mulher, a mulher foi-o por causa do ho-
Vieram até Ele fariseus para O porem à prova com a mem. 595
pergunta: ‘o homem é livre de rejeitar a sua mulher se-
ja por que razão for?’ Ele respondeu-lhes: ‘Não lestes
que, no princípio, o Criador os fez homem e mulher e
Aqui Paulo parece desviar-se do Génesis, on-
disse: “Por isso, o homem deixará pai e mãe para se li- de é dito que o Homem, homem e mulher, é a
gar à mulher e esses dois tornar-se-ão uma carne”? imagem de Deus. 596
Portanto, eles já não são dois, pois tornaram-se uma
carne. O que Deus ligou não pode ser separado por um Mas, como se se sobressaltasse, acrescenta
homem.’ Eles disseram: ‘Então, por que é que Moisés
prescreveu que se escrevesse uma carta de separação
imediatamente:
ao mandar-se embora uma mulher?’ Ele respondeu:
‘Por causa da dureza do vosso coração, Moisés permi- Além disso é válido para o Senhor que nem a mulher é
tiu-vos que mandásseis embora as vossas mulheres; algo sem o homem, nem o homem sem a mulher: assim
mas no princípio não era assim. Digo-vos, portanto: como a mulher nasceu do homem, assim nasce o ho-
quem manda embora a mulher – sem ser por causa de mem da mulher, e tudo vem de Deus. 597
luxúria 591 – e casa com outra comete adultério.’ 592
A parte da população de pensamento machista
Jesus quer cometer a mulher contra o arbítrio cita frequentemente e com prazer da mesma
do homem, porque são os dois iguais, uma carta:
carne, feitos do mesmo. No fundador do cris-
tianismo não se nota nada do comportamento Como em todas as comunidades dos santos, as mulhe-
claramente inimigo da mulher que a igreja res devem calar-se nas suas reuniões. Não lhes é permi-
tido tomar a palavra; devem permanecer submissas, tal
posterior assumiria. como a lei prescreve. 598

Mas na mesma carta os homens são admoes-


A cabeça da mulher tados a calarem-se em determinadas circuns-
tâncias 599 e Paulo fala do papel evidente que a
Como Jesus partia da completa equivalência mulher desempenha na igreja no que diz res-
entre homem e a mulher, as ideias contrárias, peito a profetizar, a não estar calada, portan-
que durante vinte séculos nos adoentaram e to. 600 Na sua carta aos Efésios, ele exclama:
que ainda põem o seu selo na nossa cultura,
têm de ser procuradas noutro lado. E o pri- Homens, amai a vossa mulher, tal como Cristo amou a
meiro que frequentemente leva com as culpas igreja: Ele entregou-se por ela para a santificar... santa
e imaculada. Do mesmo modo devem os homens amar
é Paulo. 593
as suas mulheres, tal como amam o seu próprio corpo.
A carta mais importante em que Paulo trata Quem ama a sua mulher ama-se a si próprio. Nunca
do instituto do matrimónio e da posição da
mulher é de longe a primeira epístola escrita 594
1 Cor. 11:3. Ver sobre isto também G. Theissen,
aos coríntios e a sua passagem mais Psychologische Aspekte paulinischer Theologie, 163-
180
595
1 Cor. 11:7-9.
591 596
Segundo os estudiosos, a frase ‘sem ser por causa de Génesis, 1:27. Sobre esta questão ver, por exemplo,
luxúria’ é um acrescento posterior. Ver também E. Pa- Krister Stendahl, The Bible and the role of women, 29 e
gels, Adam, Eva en de slang, 60. Bernardette J. Brooten, ‘Paul’s Views on the Nature of
592
Mt. 19. Women and Female Homoeroticism’, em C. W. Atkin-
593
Ver, entre outros, Suzanne Heine sobre ‘o bode ex- son e outros (coord.), Immaculate and Powerful, 61-88.
597
piatório Paulo’ em Vrouwen der vroege christenheid, 1 Cor. 11:11-12.
598
91. Aliás, para Heine, Paulo não é o bode expiatório de 1 Cor. 14:33-34.
599
tantas feministas. É-o para Mary Daly, Beyond God the 1 Cor. 14:28.
600
Father. 1 Cor. 11:5.
ninguém odiou a sua carne; pelo contrário, alimenta-a e mestres. Com efeito, o nosso mestre e Senhor Jesus en-
acarinha-a. E o mesmo faz Cristo com a igreja, porque viou-nos apenas aos doze... 604
somos os membros do seu corpo. 601
Também por essa razão, o apóstolo feminino
Este incansável difusor da fé cristã, ainda tem Junia da carta de Paulo aos Romanos 605 tor-
as mulheres em muito alta consideração. Na nou-se no homem Junias. E Maria Madalena
sua carta aos Romanos são nomeadas várias, tornou-se pecadora. O santo abade Odo de
Febe, Prisca, Maria, Junia, Tryfena, Tryfosa e Cluny (878-942) afirmava grosseiramente das
Persis, que são diáconas, colaboradoras em mulheres:
Cristo, passaram por muitas dificuldades pelo
Senhor ou arriscaram a vida por ele. Noutras Se os homens pudessem ver tudo o que se encontra
cartas encontramos ainda os nomes de Euo- debaixo da pele... a vista das mulheres só provocaria
dia, Julia, Nymfa e Synteche. vómitos... Se nós não queremos tocar com a ponta do
dedo mucos e excrementos, porque é que desejamos
tão ardentemente até abraçar o vaso cheio de imundí-
Foram sobretudo os Padres da Igreja que es- cie)? 606
palharam ideias sobrte as mulheres que se
desviam muito da atitude de Jesus. Vimo-lo já No século anterior, as mulhres ainda tinham
muito fortemente em Tertuliano, que se refere tido um papel importante na missionação e no
assim à mulher: ensino dos povos germânicos. Embora histori-
camente menos conhecidas que homens como
Mesmo nesta época, ainda está viva a condenação de Bonifácio ou Willibrordus, houve muitas
Deus sobre o vosso sexo e, por isso, a vossa culpa não
pode deixar de continuar viva. Vocês são a porta que
monjas que fizeram o mesmo trabalho e per-
dá entrada ao diabo, vocês infrigiram a regra da árvore, correram o país, frequentemente para grande
vocês negaram o primeiro mandamento de Deus e fo- preocupação dos seus colegas masculinos e
ram também vocês que entregaram o homem, que o para indignação do papa. Quando o rei Pepino
diabo tinha medo de atacar. Aniquilaram com demasia- pergunta ao papa se as mulheres podem aju-
da facilidade a imagem de Dus, o homem, e por causa
da vossa desobediência, que implica a morte, até o fi-
dar na missa, como era habitual nalgumas re-
lho de Deus teve de morrer. 602 giões, o papa Zacarias responde indignado:

Como em muitos lugares a mulher ainda era É pecado as mulheres fazerem serviço nos santos alta-
res ou ocuparem-se seja do que for de que os homens
plenamente aceite como profetisa, Tertuliano estejam encarregados. 607
insurge-se contra as suas actividades de ensi-
namento: Uma contemporânea de S. Patrício, Brígida,
fundou vários mosteiros e era tão adorada que
Que impertinentes são as mulheres... Têm a imodéstia
de instruir, de debater, de exorcizar, de fazer curas e
se mantinha uma chama eternamente acesa ao
provavelmente também de baptizar! 603 pé do seu túmulo em Kildare. Como essa ado-
ração conservava traços do culto que era dado
O trabalho de serviço da mulher na comunida- à deusa celta Ceridwen, a chama eterna ao pé
de cristã terminou por volta do século IV. Nu- do seu túmulo foi apagada, quase setecentos
ma compilação do direito da igreja e da litur-
gia do século IV, as Constituições Apostóli-
cas, atribuída incorrectamente aos apóstolos,
lê-se:
604
A base das Constitutiones Apostolorum é provavel-
Não permitimos que as mulheres exerçam o ofício de mente a Traditio Apostolica de Hipólito de Roma. Ver
ensinar na igreja; elas apenas podem orar e ouvir os Frans Vromen, Hippolytus van Rome: De Apostolische
Overlevering. Ver sobretudo também Marcel Metzger,
Les Constitutions Apostoliques, que data as Constitui-
ções Apostólicas da 2ª metade do século IV (57/58).
605
Rm. 16:7.
606
Odo de Cluny, Col. 2,9, op. cit. K. Deschner, De
601
Ef. 5:25.30. kerk en haar kruis, 215.
602 607
De cultu feminarum I.1,2. Op. cit. Auke Jelsma, Tussen heilige en helleveeg,
603
De Praes. 41. 45.
anos depois... por um homem, naturalmen- mem falhado. Quando o desenvolvimento da
te. 608 semente masculina, que, como um artista, as-
Outro homem, o papa Leão IX, que pontificou pira à forma masculina perfeita, falha devido
na época do cisma da igreja oriental surgido a circunstâncias adversas, aparece uma mu-
com a sua colaboração em 1054, vendia mu- lher. 613
lheres de padres como escravas frente ao palá- Embora a valorização e as concepções sobre a
cio de Latrão, apesar de muitos papas terem mulher variem na Idade Média de lugar para
eles próprios amantes. E até os cardeais não lugar e de época para época 614, os autores es-
desdenhavam fazer-se imortalizar com as suas pirituais não sobressaíam do vulgar ao consi-
concubinas, como Alberto II, de Mainz, famo- derarem a mulher um ser particular, poder-se-
so pelo seu negócio de indulgências, que foi ia mesmo dizer anormal. Muitos viam o seu
retratado por Lucas Cranach como S. Marti- comportamento como contrário à corrente,
nho, conjuntamente com uma das suas mere- imprevisível, caprichoso e minador. Muitas
trizes, Ernestina Mehandel, representada co- das desgraças e catástrofes deste mundo
mo Santa Úrsula na mesma pintura. 609 O bis- eram-lhe mesmo imputáveis, como testemu-
po de Liège conseguiu engendrar 65 filhos nha Jacques de Vitry, que escreveu no fim do
ilegítimos antes de ser deposto em 1274. 610 século XIII:
O famoso ideal do ‘amor cortês’ que floresceu
no século XII, foi apenas uma forma de ex- Entre Adão e Deus havia no paraíso apenas uma mu-
pressão (e mesmo assim sobretudo literária) lher ela não teve descanso enquanto não conseguiu fa-
zer expulsar o seu marido do jardim das delícias e con-
das classes superiores, da nobreza. 611 O ver- denar Cristo ao sofrimento na Cruz. 615
dadeiro tom era dado pela teologia medieval,
que culminou na escolástica e nas obras de E antes ainda, cerca de 1200, nas palavras de
Alberto Magno e de Tomás de Aquino. Andreas Capellanus:
Alberto, que era um grande admirador das
concepções histórico-naturais de Aristóteles, Todas as mulheres são por natureza não só avarentas
atribuíu a inferioridade geralmente aceite da como ciumentas, más-línguas em relação aos seus par-
mulher a uma maior quantidade de líquido ceiros sexuais, gananciosas, escravas do ventre, lábeis,
que ela conteria: volúveis nas palavras, desobedientes e recalcitrantes,
manchadas pelo pecado do orgulho e ansiosas por fama
vã, mentirosas, bêbadas e palradoras incapazes de
A mulher é menos dotada para a moralidade do que o guardar segredos e que só pensam no bem-estar,
homem. Com efeito, a mulher contém mais líquido do inclinadas a todos os males e que nunca amam o
que o homem e uma das características do líquido é: fá- homem no seu coração. 616
cil de tomar e difícil de agarrar. O líquido é fácil de
mover. Por isso, as mulheres são inconstantes e curio-
sas. Quando tem relações sexuais com um homem, a O único papel mais ou menos respeitável que
mulher gostaria, se possível, de estar ao mesmo tempo cabia à mulher era o de freira. Mas do mesmo
deitada debaixo de outro. A mulher não conhece a fide- modo que a mulher era um ‘homem mal fei-
lidade... A mulher é um homem falhado e, comparada to’, a freira era um monge de segunda classe.
com o homem, tem uma natureza defeituosa e errada.
Por isso, é incerta em relação a si própria. 612
Sempre que no campo religioso, a mulher en-
veredou por caminhos novos e por isso – co-
Noutro escrito, Alberto, mais tarde declarado mo aconteceu com as beguinas – deixou de
santo, explica porque é que a mulher é um ho- ser classificável como monja ou como laica, a
mulher pôde contar com a correcção da igreja.
608
Ver Auke Jelsma, Tussen heilige en helleveeg, 46-
613
47. De animalibus, III.2,8.
609 614
Numa pintura de Grünewald, outra amante desse Ao escrever sobre a mulher na Idade Média, tive o
prelado, Käthe Stolzenfels, está representada como apoio e a colaboração, que agradeço, da dr.ª C. J. M.
Santa Catarina. Witteveen, medievalista dos Cursos Católicos em Til-
610
Reay Tannahill, De tweede drijfveer, 129. burg.
611 615
Ver sobre isto, entre outros, Joachim Bumke, Höfi- Op. cit. E. Power, De vrouw in de Middeleeuwen,
che Kultur. Literatur und Gesellschaft im hohen Mittel- 14.
616
alter (2 vols). Op. cit. A. P. Orbán, ‘Het Middeleeuwse Antifemi-
612
Questiones super de animalibus, XV q. 11, op. cit. nisme’ em R. E. V. Stuip e C. Vellekoop, Middeleeu-
U. Ranke-Heinemann, 149. wers over Vrouwen, vol. 2, 121-133, 130.
Ciência e tradição eram praticamente sinóni- determinava em última instância – após um
mos na Idade Média. Mesmo disciplinas di- julgamento sobre a qualidade dos cursos – o
vergentes como a biologia e a teologia da- alcance de determinados doutoramentos. Nos
vam-se bastante bem umas com as outras. As- currículos escolares e universitários, a percep-
sim, a mulher foi considerada na doutrina an- ção da realidade dos clérigos estudantes era
tiga e medieval dos humores (= doutrina da dominada por visões, modelos e padrões que
gestão humana da humidade) como fria e hú- em grande parte provinham da antiguidade
mida e medicamente totalmente contraposta tardia. No ensino medieval, as concepções
ao homem (que era quente e seco), com sérias dos antigos e dos Padres da Igreja eram consi-
consequências para o seu funcionamento. A deradas sagradas. A partir do século IV, a
tradição bíblica ensinava que Adão foi feito moldura da maior parte dessas concepções
da terra dura e Eva da carne mole do seu ma- cristalizou-se no ferro da tradição clerical. A
rido. Por isso, a mulher era cons- crítica, ou até a oposição, podiam levar a um
titucionalmente mais mole e mais fraca, e, desagradável processo clerical e a sanções
portanto, estava mais vezes doente. 617 O eru- nada leves.
dito Isidoro, bispo da Sevilha do século VII, A vida e a obra de Pedro Abelardo são um
afirmava rotundamente que a palavra latina exemplo ilustrativo. Não muito depois do
que quer dizer mulher (mulier) vinha etimolo- princípio do século XII, o mestre Abelardo,
gicamente da palavra que quer dizer ‘fraque- célebre docente universitário e eclesiástico, fi-
za’ (mollitia). cou comprometido por um relação secreta
Também as concepções biológicas de Aristó- com a sua aluna Heloísa, que estava na casa
teles, que se tornaram bastante conhecidas no dos vinte. Rumores sobre isto chegaram aos
ocidente após 1100, corroboravam a visão que ouvidos do cónego Fulbert, tutor da jovem.
a igreja tinha da mulher nessa época. Segundo Desiludido, pois tinha grandes planos matri-
Aristóteles, a semente masculina destinava-se moniais para a sua sobrinha agora tão lamen-
a engendrar seres perfeitos, isto é, homens. tavelmente desflorada, mandou castrar o mes-
Mas se alguma coisa corresse mal na concep- tre por um grupo de mercenários. Depois dis-
ção, podia nascer um ser imperfeito, isto é, to, Abelardo e Heloísa não tiveram outra
uma mulher. Nesta concepção, a mulher é um saída que não fosse a vida monacal. A corres-
‘quase-homem danificado’, um aborto.618 pondência que mantiveram entre si depois de
Grandes teólogos medievais, como Alberto, o entrarem no mosteiro tornaram-nos mundial-
Grande, e Tomás de Aquino adoptaram, como mente famosos. 619
vimos, este ponto de vista quase sem modifi- Mas as suas vivências pessoais mantiveram-se
cações. na sombra do trabalho científico de Abelardo.
A sua crítica voltou-se para a tradição clerical
e, em particular, para a sua interpretação.
Um amor proibido Abélard tinha críticas à escravização e à evi-
dente falta de uma mente sadia de que muitos
Durante a sua educação, os estudantes medie- dos seus eruditos colegas (e seus estudantes)
vais – quase sempre eclesiásticos – aprendiam davam provas no modo como se apoiavam na
sentir na pele a camisa de forças da tradição tradição. Quer se tratasse da Escritura, da obra
clerical. Quer se tratasse da faculdade de Ar- dos Padres da Igreja ou dos comentadores das
tes (comparável ao actual ensino secundário) glosse, aceitavam-se sem qualquer reflexão
quer de estudos posteriores em teologia, direi- contradições, tradições textuais incorrectas e
to ou medicina: o ensino estava praticamente anacronismos. Abelardo fez a apologia
sempre nas mãos de eclesiásticos, até à Idade ardente de uma abordagem mais racional da
Média tardia os estudos académicos eram es- tradição, obviamente não para a deitar borda
tritamente reservados aos tonsurados e Roma fora, mas para aprender a conhecer e a dar
sentido às suas contradições internas. O
617
R. Jansen-Sieben, ‘De vrouw in de medische litera- método usado por Abelardo era conhecido no
tuur’ em R. E. V. Stuip e C. Vellekoop, Middeleeuwers
619
over Vrouwen, vol. 2, 160-178, 165. Ver, entre outros, Régine Pernoud, Héloïse et Abé-
618
Jansen-Sieben, como acima, 166. lard.
ensino universitário: a dialéctica. Trata-se de do amor a Deus como provocavam comporta-
um jogo de perguntas e respostas críticas para mentos sociais indesejáveis: os homens torna-
melhor se compreender o assunto em questão. vam-se adversários e inimigos uns dos ou-
A sua obra 620 teve o efeito de uma rabanada tros. 622 Outro eclesiástico, Walter Map, escre-
de vento num arquivo: embora uma parte dos veu no fim do século XIII para um público
estudantes e dos docentes reagisse entusiasti- leigo:
camente e se convertesse à nova orientação,
muitos conservadores viam nas proposições A mulher é sempre estúpida, lábil e mutável, joguete
de mestre Abelardo um assalto à tradição cle- de inúmeros desejos. Se o seu esposo não lhe oferece o
suficiente ou se está envergonhada com as roupas, pro-
rical; a ameaça de perseguição não estava ex- cura um amante. Na realidade, o homem mantém uma
cluída. As peripécias por que Abelardo já adúltera, constitui herdeiro um filho engendrado por
tinha passado aquando de uma condenação outro; o esposo palerma chama ‘filho’ a uma criança
anterior da sua obra em Soissons são típicas que a esposa sabe ser um bastardo. 623
do que poderia acontecer. Nessa altura, a
reunião de bispos tinha decidido também Mas também existem indicações de que a
escondê-lo num mosteiro para lhe tapar a consideração de que as mulheres disfrutavam
boca. Mas a decisão não foi cumprida e no mundo letrado laico era maior do que entre
deixaram-no regressar à famosa abadia de o clero. Para Jan van Boendale, cronista da ci-
Saint-Denis, ao pé de Paris, onde permaneceu dade de Antuérpia no século XIV, nem todas
alguns anos. Essa abadia gozava de alta as mulheres eram más. No Der leken spieghel
consideração, especialmente na corte real. A [O espelho dos Leigos] ele escreve:
fama do mosteiro baseava-se também na
história da sua fundação num passado remoto Amem-se as mulheres boas
Com moderação, recato e medida;
por Dionísio, o Areopagita, que teria sido E odeiem-se as más
bispo de Atenas no tempo dos apóstolos. E evitem-se se se puder,
Abelardo mostrou com provas que esse Dio- Porque com elas nada se ganha. 624
nísio nunca poderia ter sido bispo de Atenas,
embora o pudesse ter sido de outra cidade As cidadãs que actuavam como empresárias
grega. A reacção do abade foi de fúria: achan- autónomas, como coopwijf [mercadoras],
do intolerável que que Abelardo pusesse em eram juridicamente autónomas e imputáveis e
dúvida a tradição, prendeu-o e apresentou equivalentes aos homens. Aparentemente,
queixa na corte. A fuga foi a única maneira de estas mulheres não eram seriamente
escapar à condenação. constrangidas no exercício do seu comércio
A vida de Abelardo foi caracterizada por este por preconceitos ou obstáculos sociais. A
tipo de situações. A sua biografia foi-nos Cultura Cortesã da nobreza dos séculos XII e
transmitida sob o título mais que significativo XIII era também um movimento próprio que
de Historia calamitatum, ou seja, história da se encontrava fora do modelo clerical da
[minha] desgraça. 621 realidade. Nas cortes nobres da Aquitânia, e,
mais tarde, doutros lugares, o serviço ‘cortês’
A imagem (negativa) que o clero (masculino) à mulher não era apenas o tema favorito dos
tinha da mulher penetrou profundamente na trovadores e dos jograis, as próprias mulheres
sociedade, mesmo entre os leigos. Afirmações nobres – tais como Eleonora de Aquitânia –
de eclesiásticos como Andreas Capellanus,
eram tomadas a sério.
Segundo Capellanus, as artes de sedução fe-
mininas não só mantinham o homem afastado
622
Ver A. P. Orbán, ‘Het Middeleeuwse Antifeminis-
me’.
623
620
A mais famosa é Sic et Non (Sim e Não) sobre a Op. cit., Orbán, como acima, 131.
624
harmonização de oposições aparentes, entre outros, nos Op. cit. B. H. D. Hermesdorf, Rechtspiegel, 278:
escritos dos Padres da Igreja. Die goede vrouwen salmen minnen/Met ghetemperden
621
A mais recente edição textual da auto-biografia de zinnen,/Bescheidelijc ende in mate;/Ende die quade
Abelardo, Historia calamitatum, é a de J. Monfrin, salmen haten/Ende scuwen, waer men can,/Want daer
Abélard: Historia calamitatum. en is gheen bate an.
tomavam as iniciativas importantes nesta igreja, luta entre a antiga – ‘realista’ – e a no-
corrente cultural. 625 va – ‘nominalista’ – tradições científicas 628,
A actuação literária de Christine de Pisan, lo- grandes dificuldades organizativas e de direc-
go a seguir a 1400, é provavelmente compará- ção da igreja católica 629, guerras e impotência
vel. Segundo as suas próprias palavras, teve política, fricção entre as concepções das elites
de viver e de trabalhar como um homem para e do povo, etc. Nestas condições, foi fácil
poder ganhar a escrever o sustento da sua fa- aparecer uma psicose colectiva de medo com
mília após enviuvar ainda jovem. Christine a correspondente necessidade de um bode ex-
tornou-se famosa com o seu Boek van de Stad piatório. Apenas o próprio Satã podia ser cul-
der Vrouwen. 626 Esse livro teve de refutar as pado de tanta desgraça. Mas sem homens de
acusações inamistosas às mulheres contidas mão entre nós, o seu sucesso teria sido nulo.
no Romance da Rosa. 627 Por volta de 1400, Tinha, portanto, de haver uma seita que tives-
surgiu uma discussão mais ou menos pública se feito um pacto com o diabo. A invenção da
sobre este popular poema alegórico. O tom seita das bruxas, composta por homens e, so-
humilhante com que tratava a mulher come- bretudo, por mulheres, tornava-se um facto. A
çou então a soar a falso entre alguns homens caça às bruxas encontrou solo fértil no despre-
letrados, quer clérigos, quer não clérigos. zo às mulheres, sempre presente pelo menos
Christine meteu-se como mulher (letrada) na de forma latente, e foi alimentado sobretudo
polémica, com toda a sua bagagem espiritual pela antiga crença popular de que as mulheres
e histórica. Também o seu livro tinha a forma podiam fazer feitiços. 630 A demonologia que
de alegoria. Desencorajada com tantas críticas foi esenvolvida (sobretudo pelos dominica-
às mulheres, teve uma visão em que aparece- nos) no quadro da caça às bruxas fazia uma li-
ram três ‘damas coroadas da mais alta digni- gação entre descrença, diabo, feitiçaria e sexo.
dade’. Essas figuras alegóricas, chamadas Ra- A união sexual ou erótica com o diabo, que de
zão, Justiça e Direito, encarregam-na de vez em quando chegava a aparecer como a
construir uma cidade onde as mulheres esti- Virgem Maria 631, selava o pacto.
vessem ao abrigo das falsas acusações dos ho- Muitas mulheres foram acusadas das coisas
mens. Os exemplos históricos que elas apre- mais horríveis, que confessavam frequente-
sentam em favor da mulher – retiradas de mente sob forte tortura, chegando às vezes,
‘clássicos’ como o Decameron de Bocaccio e sob pressão dos seus verdugos, a citar o nome
o Speculum de Vincentius de Beauvais – for- de outras mulheres que eram imediatamente
mam as pedras de construção da nova cidade. presas, torturadas e queimadas em processos
que não davam qualquer hipótese às condena-
Na última fase da Idade Média e nos dois sé- das. Estes processos aviltantes foram ratifica-
culos subsequentes, a pressão do clero foi dos por uma bula papal de 1484, Summis de-
uma das responsáveis da caça às bruxas. Uma
das responsáveis, pois é apresentado um sem-
628
número de outras causas para este ponto baixo Ambos os termos (realismo e nominalismo) foram
da história cultural ocidental: colheitas falha- usados na chamada disputa dos universalia. A questão
era se conceito universais, como ‘árvore’ ou igreja’,
das e fome, epidemias catastróficas de peste, constituíam uma realidade. Os nominalistas considera-
revoltas e guerras camponesas, tensões laten- vam os universalia instrumentais e apoiados em con-
tes entre as cidades modernas e o mundo rural venções humanas: no pensamento e na fala humanos,
que as rodeava, desequilíbrio demográfico en- desempenhavam uma função útil permitindo uma abs-
tre homens e mulheres, luta entre o estado e a tracção das realidades concretas. Os realistas, pelo con-
trário, achavam que os universalia ocultavam em si
uma realidade (inatingível pelo homem, mas existente
625
Ver, entre outros, Régine Pernoud, Aliénor d’Aqui- – por exemplo, no Espírito de Deus). As consequências
taine. eclesiológicas de um conceito nominalista de igreja são
626
Christine de Pisan, Het boek van de stad der vrou- imensas: o conceito universal ‘igreja’ é nesse caso, por
wen. Ver, entre outros, C. Hogetoorn, ‘Christine de Pi- exemplo, mais um conceito instrumental – baseado em
zan’ em R. E. V. Stuip e C. Vellekoop, Middeleeuwers convenções – do que uma realidade (espiritual).
629
over vrouwen, vol. 1, 81-93, e M. de Roos, ‘Christine Sobretudo o ‘cativeiro de Babilónia’ dos papas (ver
de Pizan, een middeleeuwse Dolle Mina?’, em Spiegel capítulo 11).
630
Historiael, Março 1985, 111-116. P. Bot, Tussen verering en verachting, 87.
627 631
Guillaume de Lorris, Roman de la Rose. C. Ginzburg, Omweg als methode, 25 e seguintes.
siderantes. Três anos mais tarde apareceu mulher para se eximir a essa pressão ainda é
uma obra pouco abonatória, O Martelo das muitas vezes considerado ‘não cristão’. 636
Bruxas 632, da autoria dos inquisidores, Jakob
Sprenger e Heinrich Institoris, nomeados por
esse papa, Inocêncio VIII. A obra faz parecer Sexualidade versus virgindade
que está em curso um complot mundial em
que o diabo tinha relações com mulheres que A abordagem da sexualidade esteve sempre
depois davam à luz filhos do diabo e causa- estreitamente ligada à atitude em relação à
vam doenças e catástrofes naturais. 633 Este li- mulher. Como a sexualidade conduz ao nasci-
vro de má fama apelava a uma intensa perse- mento, o homem encontra-se perante um mis-
guição das mulheres ‘possessas pelo diabo’, tério que toca as mais profundas profundezas
das bruxass, portanto. Os protestos das pes- do ser. Sobretudo na antiguidade longínqua,
soas de boa vontade 634, que viam o diabo havia, como vimos, uma relação forte entre a
mais no cérebro dos perseguidores do que no sexualidade e a fertilidade. Em determinados
das mulheres condenadas, foram demasiado dias (e noites) consagrados, os homens e as
fracos para impedir a desgraça. mulheres tinham relações mútuas em massa e
sem distinções. O incentivo era, não a luxúria,
A caça às bruxas prosseguia ainda a toda a mas o sacrifício colectivo à fertilidade. À fer-
força quando se desencadeou a Reforma no tilidade, que tinha um significado decisivo pa-
século XVI. Esta parecia significar uma me- ra a vida e a morte. Frequentemente, tais aca-
lhoria para as mulheres. Mas ‘a reforma não salamentos em massa seguim-se ao culto do
foi uma emancipação’. 635 Embora o celibato hierós gámos , do casamento santo. Entre os
dos dirigentes clericais fosse abolido, foi pre- babilónios, este tinha lugar numa enorme pi-
ciso chegar ao século XX para que fosse per- râmide em terraços, um zigurate, onde a su-
mitido às mulheres tornarem-se pregadoras. mo-sacerdotisa era coberta por um homem es-
Na prática de todos os dias, ela foi sempre, colhido, que era sacrificado depois do acto.
através dos séculos, o partido desfavorecido. Encontramos este mesmo tema em muitas
As palavras, atribuídas a Paulo, que falam da culturas sob a forma de adoração ao símbolo
submissão da mulher, calaram fundo até aos fálico. Isto prolongou-se por muito tempo. Se-
dias de hoje, em que o justificado esforço da gundo o princípio da fertilidade, todas as mu-
lheres existiam para todos os homens e todos
os homens para todas as mulheres. O Orfeu
choroso por causa da perda da sua amada Eu-
rídice é atacado por bacantes femininas por-
632
Jakob Sprenger e Heinrich Institoris, Malleus male- que está a secar e já não demonstra qualquer
ficarum (1487).
633
serviço à fertilidade.
Os homens também podiam ter relações com um A fertilidade estava tão ligada à sexualidade
diabo com corpo de mulher, mas isso acontecia muito
mais raramente. Tomás de Aquino declarara já que os
religiosa que na mais antiga história da litera-
diabos podiam apoderar-se da semente masculina tendo tura mundial, a epopeia de Gilgamesh, uma
relações sob forma feminina (succubus, deitado debai- das personagens principais, Enkidu, que ini-
xo) com um homem e podiam depois voltar a pôr essa cialmente vivia como um animal, pastava erva
semente numa mulher adoptando forma masculina (in- e bebia com os animais bravios as águas dos
cubus) (Tomás de Aquino, Summa Theologica 1.q.51).
634
Ver J. Huizinga, Herfsttij der Middeleeuwen, 249-
regatos, se tornou num homem graças a uma
251. prostituta do templo, uma profissão que – co-
635
Auke Jelsma, Tussen heilige en helleveeg, 101. No mo função religiosa importante – gozava de
capítulo que tem este título, o autor afirma que as per- grande consideração na antiguidade. Num jo-
seguições às bruxas continuaram normalmente nas re- go de amor de seis dias e sete noites, a repre-
giões protestantes. Calvino exorta num sermão os go-
vernantes à vigilância: ‘Por causa de tais crimes, os po-
vos pagãos de Canaã tiveram de ser aniquilados. Te-
mos, portanto, de estar vigilantes contra feitiços e con-
juras de tais coisas. Concordemos, pois, bem em que
636
não toleraremos no nosso meio feiticeiros ou bruxas’ Ver, por exemplo, as concepções reaccionárias de
(110). C. van Sliedrecht em Vrouw in kerk en samenleving.
sentante da deusa-mãe liberta-o da sua anima- Em Clemente de Alexandria vemos já uma
lidade e fá-lo renascer como homem. 637 clara luta entre a sua grande consideração pe-
O poeta romano Cátulo (c. 84-54 a.C.) conta- lo casamento e o ideal de virgindade; compa-
nos sobre os sacerdotes da deusa-mãe Cibele, rando os prós e os contras, acabou por colocar
que, após uma dança excitante se castravam a os sexualmente ‘puros’, os ascetas, acima dos
si mesmos num supremo e último sacrifício à casados. O seu discípulo Orígenes como que
fertilidade. Certamente que teve aqui também continua esta linha. Aos seus olhos havia ale-
o seu papel a prática de reter a semente – e, grias mais esplendorosas do que as do leito
portanto, a energia sexual – a maior fonte de conjugal. Mas não liga esta ‘ascenção espiri-
energia do homem – tal como era ensinado no tual’ a um desprezo do corpo, como era o ca-
século IV a.C. pelo lendário médico grego Hi- so, por exemplo, dos ascetas do deserto. O
pócrates 638; uma prática que ainda é usual em corpo era imprescindível para a ‘cura’ da al-
certos grupos orientais. Na antiguidade tardia ma.
estava muito espalhado o pensamento de que
o homem perdia um bocadinho do espírito na O mundo dos nossos sentidos tornou-se um mundo
ejaculação. Talvez este pensamento tivesse material por necessidade dos espíritos que precisavam
de uma vida na matéria corporal. 640
aparecido por causa da experiência de que no
ponto culminante do orgasmo há um pequeno
O corpo, que ele via como um microcosmo,
momento de ‘não se estar neste mundo’.
era o meio auxiliar com que o Espírito se
adaptava às circunstâncias materiais do
Como vimos, entre os judeus o casamento es-
momento. Isso implicava, entre outras coisas,
tava antes de mais virado para a reprodução,
que durante a espiritualização no futuro
mas o prazer que a sexualidade pode oferecer
longínquo, o corpo também se modificaria e
não era de modo algum negado. Um recém
se tornaria menos ‘endurecido’. 641
casado não precisava de entrar ao serviço du-
rante um ano para ser capaz de ‘dar alegria à
No quarto capítulo deste livro vimos que nes-
mulher com quem se casou’. 639 As relações
se tempo havia já um movimento ascético flo-
sexuais fora do casamento eram toleradas em
rescente. É igualmente a época em que apare-
determinadas condições, embora depois se ti-
ceram os diversos Acta (Actos). Alguns deles
vessem de cumprir as leis de purificação.
tornaram-se muito populares entre os cristãos
Sob influência da stoa, um dos mais vigoro-
dos primeiros séculos. Encontramos assim os
sos movimentos filosóficos de todos os tem-
Actos de Paulo 642 a fazer parte até dos livros
pos, ganhou postriormente terreno a visão se-
canónicos do Novo Testamento no chamado
gundo a qual o sexo só devia ter lugar dentro
Codex Claromontanus. Nesses Acta há duas
do casamento e mesmo assim comedidamen-
coisas particularmente notáveis: o papel posi-
te. Nesta altura, o sexo está já despojado de
tivo de Tekla, uma cristã que se baptiza a si
todo o significado religioso. Aos olhos dos es-
própria e ensina livremente a palavra de
tóicos era melhor afastar toda a paixão irra-
Deus 643; e o carácter ascético da obra. Este
cional e ter uma relação racional com o outro,
carácter ascético está também fortemente pre-
como aconteceria mais tarde no casamento de
sente em outros Acta apócrifos. Quando, du-
José dos cristãos. Séneca, o mestre estóico do
rante a sua missionação na Índia, encontra a
imperador Nero, considerava o sexo necessá-
poderosa e bem estabelecida Mygdonia, espo-
rio apenas como possibilidade de reprodução.
Em relação a isto, encontrava-se exactamente
na linha das concepções cristãs posteriores.
640
Orígenes, Commentaria in Evangelium Joannis
19.20,132.
637 641
A mais recente tradução portuguesa desta epopeia Orígenes, De principiis, 1.6.4,104.
642
babilónica é a de Pedro Tamen, Gilgamesh, Lisboa, Os Actos de Paulo tal como os Actos de Pedro fo-
Nova Veja, 2007 ram traduzidos para holandês por A. F. J. Klijn em
638
Ver sobre isto também Aline Rousselle, Porneia: de Apokriefen I. No vol. II encontram-se os Actos de To-
la maîtrise du corps à la privation sensorielle, 157- mé, os Actos de João e os Actos de André.
643
164. Esta Tekla tem também um papel primordial num
639
Deut. 24:5. hino de louvor à virgindade de Metódio, Symposion.
sa de um parente próximo do rei, o apóstolo Para o autor deste esplêndido evangelho, Eva
Tomé diz-lhe: era uma metáfora da alma e Adão uma metá-
fora do espírito. Gregório via Adão como o
Levanta-te do chão e pensa. Pois os adornos que puses- cristalino espelho da alma que, pelo seu lado,
te não te ajudam em nada, como não te ajudam a beleza reflectia a indivisa e perfeita simplicidade de
do teu corpo ou da tua roupa. Também o apelo que
emana da tua dignidade e o teu poder neste mundo e a
Deus. 651 A separação dos sexos apareceu no
suja comunhão com o teu marido não te ajudarão se fo- momento em que Adão perdeu a imortalidade,
res desprovida da verdadeira comunhão... A comunhão e com a mortalidade, a sexualidade tornou-se
que leva a ter filhos passa, porque é desprezível. 644 uma graça dada ao homem por Deus. 652 Gre-
gório, e não apenas ele – reencontramos estes
Já falámos da atitude de Tertuliano face à mu- pensamentos em muitos dos seus contemporâ-
lher. Também ele falava sobre a sexualidade neos – relacionava a sexualidade com a mor-
por vezes usando termos como ‘conspurcação te. A sexualidade assegurava descendentes,
geral’. 645 Bastante mais fina era a abordagem portanto continuidade, uma imortalidade dife-
dos irmãos capadócios Basílio e Gregório. As rida; uma imortalidade a que o homem regres-
regras que Basílio prescreveu às suas comuni- saria. A mortalidade tinha também introduzi-
dades monacais falavam antes de mais do do o factor tempo. Através da virgindade, o
ideal de pobreza 646 e só em pequena medida homem seria capaz de aniquilar esse factor e
consistiam em conselhos sobre como lidar de voltar a ser imortal. Gregório, que declara-
com as inevitáveis fantasias sexuais.647 O seu va compungido que teria preferido manter-se
irmão Gregório escreveu um tratado sobre a casto 653, não pretendia principalmente – como
virgindade 648 apesar de ser casado e de assim os Padres da Igreja posteriores – reprimir os
ter permanecido depois de ter aceite o cargo instintos sexuais; isso era apenas um meio
de bispo de Nyssa em 371. Para Gregório, a para santificar o objectivo último. A ênfase
separação entre homens e mulheres consistia era precisamente inversa em João Crisóstomo.
num estado anormal em que a humanidade se Ele tolerava o casamento como um meio de
encontrava desde a queda do Paraíso. Lemos contrariar a concupiscência e de ‘fazer baixar
o mesmo no Evangelho de Filipe: o termómetro (sexual) demasiado alto’. 654
Enquanto que em Gregório a sexualidade era
No tempo em que Eva estava emAdão, relacionada com a morte, em João Crisóstomo
não havia morte.
Quando ela se separou dele,
e em outros Padres da Igreja orientais, ela era
apareceu a morte. ligada ao ideal (a que havia que aspirar) da
Se ela voltar a entra nele, pobreza, uma das características do
e ele a voltar a tomar, cristianismo sírio.
deixará de haver morte. 649
Se a mulher não se tivesse separado do homem, Se encontrardes um éscio que não tem auto-respeito,
não morreria com o homem. casa, mulher ou posses , que não tem mais roupas do
Com esta separação, começou a morte. que a túnica que enverga, nem mais comida do que a
Cristo veio para voltar a desfazer que vai conseguindo no dia a dia; se o ouvirdes falar na
a separação sua maneira simples a todos os que se aproximam sem
que apareceu no princípio, se zangar por ser troçado... dizei: isto é a vida que eu
para voltar a unir os dois num quero. 655
e dar vida àqueles
que tinham morrido pela separação
e para os unir. 650 Mas, como vimos, foram sobretudo os Padres
da Igreja do século IV que consideraram a
virgindade a mais importante virtude cristã. O

644 651
Actos de Tomé 88, op. cit. A. F. J. Klijn, Apokrifen Gregório de Nyssa, De hominis opificio 12.9.
652
II, 116. Ibidem 17. Ver também J. Daniélou, L´être et le
645
De virginibus velandis 10.3. temps chez Grégoire de Nysse, 154-163 e, do mesmo
646
Basílio, o Grande, Asceticum parvum 11. autor, Platonisme et Théologie mystique, 30-32.
647 653
Ibidem 9. Gregório de Nyssa, Liber de Virginitate 9.1.
648 654
Gregório de Nyssa, Liber de Virginitate. João Crisóstomo, De virginitate 19.1-2.
649 655
EvFlp.53. Liber Graduum 16.7, op. cit. Peter Brown, Lichaam
650
Idem 59. en maatschappij.
ideal da virgindade foi empolado despropor- aos olhos dos teólogos, teria recebido Jesus
cionadamente e visto como um cúmulo de sem se ‘rebaixar à sexualidade’.
absoluta santidade. A obsessão de Agostinho pela sexualidade e a
sua luta contra a luxúria já foram tratadas no
O culto dos santos começou com o culto dos mártires. capítulo precedente. Enquanto que João Cas-
Como mais tarde deixou de haver mártires, pelo menos siano, abade egípcio contemporâneo de Agos-
entre os católicos, porque entre os outros eles não se fi-
zeram esperar, a conservação da virgindade tornou-se
tinho, ainda dizia que o sexo era uma dádiva
uma espécie de substituto do martírio, do ‘Senhor, não para nos danar, mas para nos
servir’ 658 e via as tentações sexuais como in-
afirma ironicamente Karlheinz Deschner. 656 dícios de males muito maiores que deviam ser
O ideal da virgindade tocou deste modo a prá- vencidos – ira, cobiça, avareza e preguiça 659 –
tica da ascese. Ainda existem muitos movi- , Agostinho ligava esta força humana directa-
mentos, também no Oriente, que vêem na as- mente ao pecado original. Paulino de Nola,
cese uma condição para o crescimento espiri- outro contemporâneo de Agostinho, simulta-
tual. O desapego das coisas terrestres é aqui o neamente seu amigo e homem de confiança,
principal. Mas desapego não significa neces- era muito menos incisivo do que Agostinho
sariamente negação da matéria. Significa li- sobre este ponto. 660 Pode-se perguntar se a
bertar-se das ligações emocionais e psíquicas sombria concepção deste último não será um
com ela, porque as peias que elas acarretam resultado do seu trabalho como bispo. Agosti-
obstam ao objectivo essencial, a transforma- nho era um homem sensível com um grande
ção da matéria em espírito. A liberdade essen- sentido do dever e sofria com a dor e a misé-
cial do homem condu-lo, se ele aprender a co- ria da vida diária dos seus paroquianos. En-
nhecer a alma, através da matéria até ao espí- quanto que Cassiano escolheu a ilha de Lérins
rito. Voltarei mais detalhadamente a este as- para habitar, Agostinho, enquanto bispo, não
sunto no epílogo. podia ser ao mesmo tempo um monge, embo-
É lamentável que nesta mania da virgindade a ra tentasse tanto quanto possível viver monas-
mulher tenha tido uma imagem cada vez mais ticamente. Um contemporâneo, Possídio, es-
negativa por ser vista como a causadora por creveria mais tarde sobre ele:
excelência do maldito desejo sexual. Segundo
Jerónimo, o casamento devia servir apenas Nenhuma mulher alguma vez penetrou no interior da
sua casa, nunca falou com uma mulher sem ser na pre-
para engendrar filhos (novos virgens). E para sença de terceiros e fora da sua sala de recepções. Nem
isso era desgraçadamente preciso algo tão no- com a sua própria irmã mais velha ou com as sobri-
jento como a sexualidade. Os esposos não de- nhas, todas três freiras, ele fazia excepção. 661
viam ter qualquer prazer no acto e deviam
abster-se de todas as formas de relação sexual A incómoda herança de Agostinho e dos seus
que não conduzissem directamente à concep- coube principalmente ao Ocidente. Na Cons-
ção. Relações sexuals que deveriam realizar- tantinopla do século VI, cantava-se nos dias
se com a atitude prescrita pela igreja: todas as de casamento o kontákion, inspirado num ser-
outras formas eram muito pecaminosas e mão de João Crisóstomo:
eram condenadas como contra-naturais ou co-
mo bestialidade. 657 Rejeito o jejum
O elogio de Ambrósio à pura virgindade foi de quem não conhece a piedade.
Aceito a oração
uma das causas do culto de Maria, que atingiu de quem come com temperança.
proporções altíssimas na Idade Média. Maria Desprezo todas as virgens
era, com efeito, a virgem mais pura, porque,
658
João Cassiano, Collationes 4.7.
656 659
K. Deschner, De kerk en haar kruis, 66. Ibidem 1.22.
657 660
Ver, por exemplo, J. A. Brundage, ‘Let me count No seu Epithalanium, ele tenta fazer equivaler o
the ways: canonists and theologians contemplate coital amor corporal e a castidade; o casamento terrestre po-
positions’, em Journal of Medieval History 10 (1984), dia assim tornar-se uma antecipação do casamento ce-
81-93 e J. E. Salisbury, ‘The latin doctors of the leste. Ver J. A. Bouma, Het Epithalamium van Pauli-
Church on sexuality’, em Journal of Medieval History nus van Nola.
661
12 (1986), 279-289. Possídio, Vita S. Augustini episcopi 26.
que excluem o sentimento humano. partidas à humanidade. É como se se tivesse
Adoro os casados tentado amputar uma parte essencial do ho-
que amam o seu próximo. 662
mem. Só na Renascença é que começou a ha-
ver alguma mudança. Mas no domínio da se-
A teologia dos Padres da Igreja teve um pro-
xualidade, o pensamento deprimente posto em
fundo efeito na Idade Média. Seguindo Sex in
palavras pelos Padres da Igreja dos séculos IV
History do historiador inglês Taylor, 663 Van
e V continua a produzir os seus efeitos
Emde Boas chega ao seguinte resumo das
mesmo na actualidade.
regras medievais:

As actividades sexuais são pura e simplesmente peca-


minosas. Mesmo no casamento, devem ser evitadas Tornar os dois num
tanto quanto possível, não apenas em actos como tam-
bém em pensamentos, porque o desejo sexual deve ser Jesus viu crianças a serem amamentadas.
considerado pecado em si mesmo, mesmo quando rela- E disse aos seus discípulos:
tivo ao seu próprio companheiro. ‘Estas crianças a serem amamentadas
O coito é permitido exclusivamente aos casados para parecem-se com os que entram no Reino’.
assegurar a continuidade da raça humana. Mas mesmo Eles perguntaram-lhe:
nesse caso está sujeito a grandes limitações, porque a ‘Se formos crianças entraremos no Reino?’
procura do prazer sexual é já pecado em si mesma. Pa- Jesus disse-lhes:
ra tornar possível o acto sexual com um mínimo de ‘Se tornardes os dois num
prazer foi introduzida no leito conjugal – em contradi- e se fizerdes o interior ser como o exterior,
ção frontal com o antigo costume de dormir nu – a e o exterior como o interior,
‘chemise cagoule’, uma camisa de noite comprida, fei- e o acima como o abaixo,
ta de um pesado tecido cru, em que havia uma abertura e se fizerdes o masculino e o feminino serem uma e a
que possibilitava o coito sem qualquer contacto corpo- mesma coisa,
ral adicional. de modo ao masculino não ser masculino
Todas as variantes de coito são proibidas, com excep- e o feminino não ser feminino...
ção da posição frente-a-frente com o homem por ci- entrareis no Reino.’ 666
ma. 664
Será apenas no século XX, através da teoria
Acrescenta ainda que a posição ‘a tergo’ (a animus-anima 667 do psicanalista suíço Carl
posição de acasalamento dos animais) era cas- Gustav Jung, que haverá algum eco das pala-
tigada em determinadas regiões com sete anos vras de Jesus de Nazaré dois mil anos antes
de penitência, que os dias de abstinência, do- relativas ao masculino e ao feminino. Foi
mingo, quinta e sexta-feira, foram acrescenta- também apenas no fim do século XX que al-
dos com quarenta dias antes da Páscoa e do guém, uma mulher, teve a coragem de voltar a
Natal, com três dias antes de receber a Santa ligar dois conceitos, sexualidade e consciên-
Comunhão e, naturalmente, com os períodos cia crística, durante longos séculos separados
de penitência, e que a masturbação era vista pela igreja, e a mostrar a sua unidade. 668
como um grande pecado. 665 Enquanto os místicos de todos os tempos ten-
Foi sobretudo a noção de pecado aqui sobre- taram sempre pôr em palavras a experiência
posta que durante séculos e séculos pregou da totalidade, da unidade de tudo, os teólogos
cristãos, praticamente desde o início, tentaram
662
Romanos Melodes, Hino 31 24.5-8, op. cit. Peter
666
Brown, Lichaam en maatschappij, 251. EvT. 22.
663 667
Tradução holandesa: G. R. Taylor, De zeden in het F. Fordham, De psychologie van Jung, 140, diz so-
verleden. bre o significado de anima e de animus:
664
Coen van Emde Boas, Geschiedenis van de seksuele anima: o lado feminino inconsciente do homem.
normen, 103-105. animus: o lado masculino inconsciente da mulher.
665
Não admira que este discurso fosse continuado com C. G. Jung, em Die Beziehungen zwischen dem Ich und
a afirmação de que uma posição coital (teologicamen- dem Unbewussten (traduzido para holandês como Het
te) desprezível, designada de preferência por ‘contra- ik en het onbewuste, 76-103) trata da anima e do ani-
natural’, podia provocar filhos coxos ou leprosos. Ver, mus. Ver também a clara explanação profusamente
por exemplo, B. Demyttenaere, ‘Vrouw en sexualiteit. ilustrada de M.-L. von Franz em ‘Het individuatie-pro-
Een aantal kerkideologische standpunten in de vroege ces’, C. G. Jung, De mens en zijn symbolen, 177-196.
668
Middeleeuwen’ em Tijdschrift voor Geschiedenis 86 Hannah van Buuren, Sexualiteit en Christusbewust-
(1973), 236-261. zijn.
criar distância e convencer a humanidade da
separatividade. Enquanto que Jesus revelava que o homem
pode vivenciar a sua existência como Deus
... se tornardes o masculino e o feminino num, desde que esteja preparado para seguir o ca-
de modo ao masculino (deixar de ser apenas) masculi- minho do renascimento 673, a igreja colocou
no
e ao feminino (deixar de ser apenas) feminino... 669
Deus fora do homem, o que fez enfraquecer o
... (e) onde toda a mulher que ganhe coragem (que per- impulso para o renascimento e exteriorizou o
mita em si o masculino – e todo o homem que permita baptismo interior até este ser um ritual em que
em si o feminino) se tinha de jurar fidelidade a uma organização
entrará no Reino dos Céus. 670 em vez de fidelidade ao seu próprio ser divi-
no.
Enquanto que Jesus exclama: que o masculino
não continue a ser apenas masculino e o femi- Jesus disse:
nino apenas feminino – por outras palavras: ‘Se aqueles que vos guiam disserem:
descobre o feminino e o masculino em ti mes- “Vede, o Reino está no céu”,
mo, examina-os, harmoniza-os, junta-os num então, as aves do céu serão mais que vós.
E se disserem: “Está no mar”,
–, os teólogos interpretam o livro bíblico Gé- então, os peixes serão mais do que vós.
nesis tão literalmente que põem a mulher fora Mas o Reino está dentro de vós e fora de vós.
do homem. Se vos conhecerdes a vós próprios,
também sereis conhecidos
E de novo disse Jesus: ‘Esforçai-vos por salvar aquele e sabereis que os vossos filhos
que vos pôde seguir e por o achar e por lhe falar inte- são do Pai vivo.
riormente, de modo a que, depois de o achardes, tudo Mas se não vos conhecerdes,
possa estar em harmonia convosco. Pois digo-vos, o estareis em pobreza;
Deus vivo habita em vós e vós habitais nele.’ sereis a pobreza.’ 674
Judas disse: ‘Vede, as potestades habitam no céu; serão
elas que nos governarão.’ Os discípulos disseram-lhe:
O Senhor respondeu: ‘Vós é que as governareis. Pois ‘Quando é que o Reino virá?’
se afastardes de vós a inveja, vestir-vos-eis a vós mes- Jesus disse:
mos de luz e entrareis na sala da noiva (reino).’ 671 ‘Não vem por se esperar por ele;
não se dirá: Está aqui, ou: está ali.
Enquanto que Jesus se dirige ao homem na Mas o Reino do Pai
está espalhado pela terra
sua grandeza (latente), os Padres da Igreja e os homens não o vêem.’ 675
oprimem o homem com uma consciência do
pecado e fazem o homem definhar. Enquanto que Jesus revelava que o Reino do
Pai podia ser vivido no aqui e no agora, os
‘Sois deuses.’ 672
teólogos cristãos situaram o Reino fora do ho-
669
mem, num lugar e numa época longínquos. 676
EvT. 22.
670
EvT. 114. NT: a tradução portuguesa perde bastante
Os seus discípulos disseram-lhe: ‘O que é que temos de
devido a uma ambiguidade do original impossível de
fazer para ter a certeza de que a nossa obra será perfei-
transpôr para português. O verbo utilizado, vermannen,
ta?’
que significa ganhar coragem, é também o verbo que
O Senhor respondeu-lhes: ‘Estai preparados em face de
seria criado, de acordo com as estruturas normais da
tudo. Abençoado é o homem (que encontrou a chave
língua holandesa, se se quisesse dizer por uma única
palavra ‘transformar-se em homem’.
671
Do Diálogo com o Salvador, J. Slavenburg/W. G. todos os homens’ – e em Jo. Jesus refere-se ‘àqueles a
Glaudemans, Nag Hammadi-geschriften I, 247-248. quem a palavra de Deus é dirigida’; ao homem, portan-
672
Jesus respondeu-lhes: ‘Não está escrito na vossa to. Isto está também inteiramente em concordância
Lei: Disse-vos: vós sois deuses? Ela chamou deuses com a passagem citada acima do Diálogo com o Salva-
àqueles a quem a palavra de Deus é dirigida.’ (Jo. dor, cuja tradição é mais antiga do que a dos evange-
10:34-35). Por referência às palavras aqui citadas dos lhos bíblicos, como se explicou anteriormente.
673
Salmos 82:6, onde se fala de uma reunião de deuses, a Sobre isto, ver entre outros, Jo. 3:3.
674
passagem de João acabada de transcrever é frequente- EvT. 3.
675
mente explicada no sentido de que a frase ‘vós sois EvT. 113.
676
deuses’ se refere a deuses e não a homens. Mas, por Ver também, por exemplo, Mt. 10:7; 11:12; 16:19;
um lado, logo na frase seguinte dos Salmos 83, a mor- 19:14 e 23:13; Lc. 12:32 e 22:29; e EvT. 21, 46, 49, 82
talidade é ligada a estes deuses – ‘morrereis a morte de e 99.
deste conhecimento e entabulou a luta consigo mesmo. muitos séculos de cristianismo, pouco restava
Ele viu o que os seus olhos não viram). Ele nem matou da esplendorosa herança de Jesus de Nazaré,
nem foi morto, pois apareceu vitorioso.’
Judas disse: ‘Diz-me, Senhor, o que é o princípio do
que durante alguns anos tinha podido ser to-
caminho?’ talmente Cristo. A herança tinha-se perdido.
Ele respondeu: ‘Amor e Bondade. Se um destes dois
estivesse presente nas potestades, a corrupção nunca te-
ria surgido.’ 677
11. Poder e misticismo
Enquanto que Jesus indicava o caminho da
auto-actividade – ‘Que aquele que procura A luta pela terra santa
não pare de procurar até que encontre’ 678 –
para chegar à redenção, a teologia cristã asse- Em 385, quando o bispo espanhol Prisciliano
nhoreou-se do sacrifício da morte na cruz para foi condenado à morte por heresia com mais
retirar ao homem essa possibilidade com a seis apoiantes, havia ainda entre os seus opo-
desculpa de que Jesus redimiu o homem.679 sitores quem desaprovasse fortemente a sen-
Assim, o homem fica pequeno e dependente e tença; por exemplo, o então bispo de Roma,
submisso a uma instituição que traduzia ec- Sirício, e Martinho de Tours (S. Martinho).
clesia por igreja (exclusiva), em vez de por Quando algumas décadas mais tarde, Agosti-
comunidade (universal). nho apelou ao imperador para que ‘usasse a
força para fazer entrar (na igreja)’ os donatis-
Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás tas, praticamente já não havia oposição.
o teu inimigo. Mas eu digo-vos: Amai os vossos inimi-
gos e orai por aqueles que vos perseguem, para que vos Este ‘fazê-los entrar à força’ foi o ponto de partida de
possais tornar filhos do vosso Pai do céu que faz o sol um desenvolvimento catastrófico: uso da força contra
nascer para os maus e para os bons e faz chover sobre opiniões divergentes dentro da igreja e contra não cris-
justos e injustos. Pois se amardes quem vos ama, que tãos – Agostinho tinha dado o mote. A raiz da sangren-
direito tendes a recompensa? Não fazem os cobradores ta luta contra os herejes da Idade Média acaba por ter
de impostos o mesmo? E se só saudardes os vossos ir- aqui a sua raiz...
mãos, o que é que fazeis de invulgar? Não fazem os pa-
gãos o mesmo? Sede, pois, perfeitos, tal como o vosso
Pai no céu é perfeito. 680
afirma um historiador alemão da religião. 682
Esse mesmo Agostinho tinha mesmo concebi-
Enquanto que Jesus apelava a que se amasse o do regras para as guerras:
próximo tanto como a si mesmo 681, os Padres
Segundo ele, a guerra tinha de ser justa no motivo e na
da Igreja proibiram o homem de gostar de si intenção e só devia ser desencadeada se os outros
mesmo, tentando assim retirar-lhe a possibili- meios estivessem esgotados e se tivessem falhado to-
dade de amar verdadeiramente o seu próximo, dos os esforços por conservar a paz terrena. A guerra
o que o manteve prisioneiro de uma espiral de tinha de ser oficial, tinha de ser conduzida pelo sobera-
guerra, de violência, frequentemente sancio- no reconhecido e estabelecido por Deus e só esse sobe-
rano podia tirar a vida. Matar arbitrariamente para de-
nada pela igreja. No próximo capítulo voltarei fesa dos seus próprios interesses particulares não era
ao apelo da igreja à guerra e à violência. Aqui permitido. Era preciso ater-se a juramentos e acordos,
limitar-me-ei à triste constatação de que, após declarar formalmente a guerra e não usar força desne-
cessária, sobretudo contra inocentes e não combatentes.
677 O clero e os monges não podiam participar na luta. 683
Do Diálogo com o Salvador, J. Slavenburg/W. G.
Glaudemans, Nag Hammadi geschriften I, 249.
678
EvT. 2. Pouco restava dessas regras nas Cruzadas. Em
679
‘Eugen Drewermann, teólogo alemão destituído das 1095, o apelo feito pelo papa Urbano II na ci-
suas funções, constata com razão que, desta maneira, a dade francesa de Clermont Ferrand para que
igreja retira ao homem as suas dores de crescimento, a se reconquistasse Jerusalém e a terra santa,
sua experiência consciencializadora. Ele é adormecido
com certezas aparentes e assim obstaculizado no seu
provocou um entusiasmo desconhecido. A ac-
processo de crescimento.’ J. Slavenburg, ‘Reïncarnatie
682
is geen geloof’, retomado em Trouw 25, Maio de 1992. Wolfgang Göller, ‘Augustinus’, em G. Stemberger
Ver também Eugen Drewermann, Een ruimte om te le- (coord.), De Bijbel en het christendom, IV, 87-92, 90.
683
ven. L. de Blois, ‘De Staat Gods en de mensenwereld.
680
Mt. 5:43-48. Augustinus’, em L. de Blois e G. H. Kramer, Kerk en
681
Marc. 12:31. vrede in de oudheid, 62-73, 69-70.
tualidade da época não pôde ter desempenha- cátaros – tinha simpatias por ideias heréticas.
do nisso grande papel, pois Jerusalém já tinha No decurso da história, esta inquisição foi res-
sido conquistada pelos árabes há quase quatro ponsável por uma quantidade inominável de
séculos e meio, em 638. Havia, sim, e desde sofrimento, devido ao carácter totalmente
1070, incidentes com os (muitos) peregrinos amoral dos seus meios. A denúncia de herejes
cristãos, devido a uma mudança política. Pa- devia-se frequentemente a interesses pessoais
rece que os ouvintes de Urbano lhe responde- e praticamente nunca havia um processo sé-
ram maciçamente aos gritos de Deus lo vult rio. Na realidade a culpa era certa de antemão,
(Deus o quer). A igreja, por seu lado, prome- como foi também o caso da triste caça às bru-
teu que todos os participantes numa cruzada xas que examinámos no capítulo anterior. A
receberiam revogação plena às penas da igre- inquisição estava em condições de desconjun-
ja; mais ainda, a prometida indulgência previa tar toda a vida em sociedade e de semear ódio
mesmo a abolição da culpa de todos os peca- e desconfiança em larga escala.
dos cometidos.
A Primeira Cruzada começou de maneira A oposição à cruzada como opressão da pró-
pouco edificante: na Renânia, grandes grupos pria população cristã foi selectiva; o que pica-
de judeus foram passados à espada; um ante- va alguns era sobretudo ‘não parecer justo dar
gosto do assassínio em massa de islamitas e a mesma indulgência plena por matar alguns
de judeus (outra vez) acontecido em 1099, de- camponeses encardidos das vizinhanças e pela
pois da conquista (ou reconquista) de Jerusa- perigosa luta contra os maometanos depois de
lém. uma marcha fatigante’. 684
Como os estados cristãos estabelecidos no Apesar de não estar satisfeito com a conquista
oriente estavam sob grande pressão militar – de Constantinopla, por ser um ataque a cris-
Edessa caíu passado pouco tempo – foi pro- tãos, o papa Inocêncio III não deixou por isso
clamada uma segunda cruzada por nem mais de ser o iniciador, alguns anos depois, de uma
nem menos do que Bernard de Clairvaux. cruzada extemamente sangrenta contra cris-
Muitas cruzadas teriam lugar nos dois séculos tãos do seu próprio quintal: a cruzada contra
seguintes, inclusive uma ‘cruzada de crianças’ os Albigenses.
(1212) sancionada pela igreja. Quando o mo-
vimento esmoreceu nos fins do século XIII, a
situação na terra santa era em grande parte Os homens bons
ainda idêntica à de antes do apelo de Urbano
em 1095. Mesmo antes de Inocêncio III ter convocado
Entretanto, as cruzadas não se tinham limita- em 1208 uma cruzada contra os Albigenses
do ao Médio Oriente: durante a Quarta Cruza- (cátaros), na sequência do assassínio de um
da (1202-1204), Constantinopla foi conquista- enviado papal, havia já muitas pessoas e gru-
da e saqueada; camponeses holandeses foram pos excomungados e perseguidos. A maior
massacrados por um exército cruzado em parte desses perseguidos opunham-se ao es-
1230; contribuintes recalcitrantes, os Stedin- plendor e à opulência da igreja e dos seus ser-
gers, foram chamados à ordem em Bremen, vidores. Funções episcopais e outras eram,
em 1234; e em 1248 houve outra vez proble- por vezes, vendidas e revendidas por altas so-
mas quando surgiu revolta contra um candida- mas de dinheiro (simonia); a maior parte das
to à coroa imperial. vezes tratava-se de decisões lucrativas, por-
A juntar a isto, a igreja dispunha desde o que os impostos eclesiásticos asseguravam
quarto concílio de Latrão (1215) da insidiosa um retorno rápido do investimento. A mistura
e mortífera arma da inquisição. Inicialmente com o poder político e secular, frequentemen-
sob a autoridade dos bispos locais, a institui- te acompanhada por uma maneira exorbitante
ção depressa ficou nas mãos de clérigos (so- de viver em luxo e abundância, com o conse-
bretudo dominicanos) que respondiam direc- quente empobrecimento dos valores espiri-
tamente perante o papa; isso dava-lhes a pos-
sibilidade de negar, ou até de perseguir, o cle-
684
ro local, que por vezes – como no caso dos H. P. H. Jansen, Geschiedenis van de Middeleeuw-
en, 190.
tuais e dos cuidados pastorais, suscitava re- e também às missas de sufrágio pelas almas
volta. Tal como nos primeiros séculos do cris- falecidas. O quarto concílio de Latrão conde-
tianismo, muitos tomaram o caminho da asce- nou-os em 1215 como hereges e a inquisição
se. Enquanto isso aconteceu dentro dos muros fundada nesse mesmo concílio pôde começar
dos mosteiros, a igreja encorajou mais do que a trabalhar imediatamente. A cruzada contra
combateu esta tendência. Mas, graças aos os cátaros (também chamados albigenses, da
muitos donativos, os próprios mosteiros enri- cidade de Albi) decorria então há já sete anos.
queceram. Em reacção à riqueza de Cluny, Das regras de condução da guerra de Agosti-
Robert de Molesmes fundou um mosteiro em nho não sobrava então grande coisa. Quando
Cîteaux, onde imperava a maior sobriedade. as tropas entraram após longo cerco na cidade
Também estes cistercienses tiveram seguido- de Béziers no sul de França, o comandante
res. Bernard fundou um mosteiro em Clair- perguntou ao enviado papal como é que se
vaux e outros seguiram-se rapidamente. Mas distinguia a parte boa da população dos here-
haviam também muitas outras ‘cadeias’ de or- ges presentes na cidade, ao que esse cristão
dens monásticas, como os norbertinos e os respondeu secamente:
premonstratenses. 685
Mas quando o ideal de pobreza era pregado Matem-nos todos. Deus reconhece os seus. 687
fora dos muros dos mosteiros, o que muitas
vezes era acompanhado por uma saudável do- No âmbito deste livro não é possível dar am-
se de crítica à igreja estabelecida, a repressão pla atenção aos cátaros 688, mas não quero dei-
não se fazia esperar. Foi o que descobriu Ar- xar de deter-me em alguns aspectos. Em mui-
noldo de Brescia, morto em 1155, por consi- tas obras historiográficas, juntaram-se os cáta-
derar o despojamento total uma condição para ros ao grupo dos movimentos da pobreza.
a salvação da alma. Mas isso não é tudo. Gilbert e Birks admiram-
Ainda mais conhecido foi o movimento dos se no seu estudo The treasure of Montségur
valdenses. O rico mercador Petrus Valdes, de por os usos cátaros ‘mostrarem concordân-
Lião, vendeu todas as suas posses e começou cias notáveis e de pormenor com os do cris-
a pregar de terra em terra. O seu exemplo foi tianismo primitivo’. 689 E também o estudioso
tão estimulante que rapidamente apareceu um francês Dondaine, que preparou uma edição
movimento muito espalhado em que as pes-
soas percorriam o país aos pares para anunciar
687
o evangelho onde isso se proporcionasse; não Michel Roquebert, L’Épopée Cathare I, 258.
688
nos devemos esquecer que os leigos estavam O interesse pelos cátaros cresceu espectacularmente
proibidos até de ler a Bíblia; para ouvir expli- depois do aparecimento da tradução de Montaillou, vil-
lage occitan de 1294 à 1324, do historiador francês
cações da Bíblia era preciso recorrer exclusi- Emmanuel Le Roy Ladurie (tradução holandesa: Mon-
vamente às exegeses, muitas vezes unilaterais, taillou, een ketters dorp in de Pyreneëen). Le Roy La-
dos servidores eclesiásticos. 686 Explicações durie trata, porém, no seu estudo, de um período muito
diferentes, como as que eram frequentemente posterior ao florescimento do catarismo; as cruzadas e
dadas pelos valdenses, não podiam deixar de a inquisição tinham já deixado os seus pesados rastos.
Além disso, Le Roy Ladurie baseia o seu livro na obra
implicar uma crítica ao modo de agir da igreja desbravadora do historiador francês Jean Duvernoy,
e dos seus funcionários. Os valdenses opu- que estudou exaustivamente os registos da inquisição
nham-se vivamente à prática das indulgências relativos a este período: Le registre d’inquisition de
Jacques Fournier (1318-1323) (3 volumes). Da sua au-
toria são também as impressionantes obras Le Catha-
685
Ver a obra clássica escrita em 1935 por H. Grund- risme. I. La Religion des Cathares e Le Catharisme. II.
mann, Religieuse Bewegungen im Mittelalter. L’Histoire des Cathares. Para uma boa noção do cata-
686
A proibição de ler a Bíblia não incluía a Vulgata, rismo, ver também Walter Birks e R. A. Gilbert, The
escrita em latim, mas a sua leitura só era possível para Treasure of the Montségur; René Nelli, La vie quoti-
poucos. Os valdenses traduziram partes da Bíblia para dienne des Cathares du Languedoc au XIIIe siècle; W.
a língua vulgar. Os sínodos de Toulouse (1229) e de P. Martens, De Katharen; Michel Roquebert, La Reli-
Béziers (1246) condenaram tais comportamentos. A gion Cathare; e Bram Moerland, Monségur, gnosis,
Bíblia só podia ser lida e explicada pelo clero. Sobre gnostiek en de katharen. Ver ainda J. Slavenburg, De
isto ver, entre outros, o Index Librorum Prohibitorum’ geheime woorden, 133-157.
689
em Miroslav Hroch e Anna Skybová, Inquisitie en con- Walter Birks e R. A. Gilbert, The Treasure of the
trareformatie, 223-237. Montségur, 101.
(de um fragmento) do Ritual cátaro 690, indica tismo significava uma mudança radical da vi-
que este é tão notavelmente cristão que o cul- da.
to cristão primitivo se reconstitui inteiramente
a partir dele. Este carácter paleocristão é uma Era uma iniciação. Os homens e mulheres que queriam
das coisas mais notáveis do catarismo. Encon- ser sacerdotes tinham de seguir um longo caminho de
instrução antes de poder receber o consolamentum. Isso
tram-se com regularidade nos documentos acontecia numa reunião solene, onde o baptizando se
usos e noções que só voltam a aparecer no ajoelhava ante o altar e sabia o Novo Testamento –
cristianismo muito antigo. Por exemplo, no aberto no favorito Evangelho de João – sobre si. A reu-
Ritual aparece uma refeição ‘santa’ comunitá- nião, solene mas muito festiva, decorria segundo um
ria; refeição essa que era muito usual no sécu- determinado ritual, com pergunta e resposta, oração e
perdão. Frequentemente, sobretudo na época em que
lo I (e anteriormente já entre os Essénios) e de ainda não havia perseguição, estavam presentes bastan-
que fazia parte a celebração da eucaristia: o tes sacerdotes e também familiares e amigos do novo
Agápē (refeição do amor). Já vimos anterior- Bonhomme.
mente que esta refeição caíu em desuso e foi Estes homens e mulheres consagrados tinham uma ra-
substituída por uma refeição simbólica (a co- diação gigantesca sobre a população. Tal como foi dito,
o Espírito de Cristo estava com eles (em quase todos os
munhão). O pão e o vinho passaram a ter en- casos). Se essa era a força que era bebida na tradição
tão apenas uma função trans-substancial e apostólica, simbolizada pela imposição das mãos, en-
deixaram de ser uma refeição real. O facto de tão, era uma força impressionante. 693
os cátaros ainda a honrarem na forma original
denuncia uma longa tradição, que, segundo Os sacerdotes cátaros, designados por parfaits
eles mesmos, remontava aos apóstolos, por- (perfeitos) pela inquisição posterior de modo
tanto, indirectamente ao próprio Jesus. A bên- mais ou menos depreciativo, eram chamados
ção e distribuição do pão, que era um ritual com razão bonshommes (bons homens) pela
que aparecia muito entre os cátaros, baseava- população. Nenhuma dificuldade era grande
se no significado intrínseco das palavras de demais para estes homens quando se tratava
Jesus: do bem (da alma) do seu próximo. De noite e
na tempestade, eles apressavam-se a ir aos de-
Quem comer este pão viverá na eternidade. 691 funtos que queriam receber o consolamentum.
Na época das perseguições posteriores, essas
Nos tempos da perseguição, quando os con- viagens eram longas e muito perigosas.
tactos entre o clero cátaro e os fiéis tinham de Nos tempos áureos do catarismo, os sacerdo-
ter lugar em segredo e, portanto, eram menos tes, quer homens quer mulheres, viviam em
numerosos, muitos fiéis guardavam cuidado- comunidades, as chamadas maisons-ateliers.
samente um bocado de pão – entretanto muito Tratava-se de lugares de encontro onde se fa-
endurecido – que tinham recebido do sacerdo- zia trabalho manual, onde os noviços rece-
te. 692 biam ensinamento e de onde partia o cuidado
Os cátaros conheciam também o beijo da paz, pastoral. Eram centros não só espirituais, co-
que era dado entre eles como selamento do mo sociais.
facto de se ser verdadeiro irmão ou irmã. E Os bonshommes eram celibatários, andavam
conheciam ainda o baptismo dos adultos, o desarmados, jejuavam e oravam a horas deter-
consolamentum; ‘o baptismo com fogo’ em minadas e eram vegetarianos, mas comiam
que, por meio de uma imposição das mãos, o peixe. Também bebiam vinho, embora fre-
Espírito Santo, recebido por via da sucessão quentemente diluído com água, segundo um
apostólica (que remontava aos primeiros costume ainda existente nalgumas regiões
apóstolos), era transmitido. Este baptismo era francesas. René Nelli conta no seu cativante
dado a todos os que se declaravam prontos, o estudo sobre os cátaros que os bonshommes
que na maior parte dos casos acontecia no lei- comiam com grande alegria a sua frugal ração
to de morte. Em todos os outros casos, o bap- de pão e fruta, mesmo quando acompanhados
por seguidores que se deleitavam com as me-
690
A. Dondaine (coord.), Liber de Duobus Principiis.
691
Jo. 6:58.
692
Ver, por exemplo, Emmanuel Le Roy Ladurie,
693
Montaillou, 108-109. J. Slavenburg, Gnosis, 105.
lhores iguarias. 694 O exame da literatura dis- de algumas citações dos Padres da Igreja. 700
ponível mostra para lá de qualquer dúvida que No Livro de João lemos 701:
se tratava em infinita medida de um sacerdó-
cio interior que inspirava grandes grupos de Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amen.
pessoas – os chamados croyants (crentes) no Perguntas de João apóstolo e evangelista na ceia secre-
ta no reino dos céus, sobre a organização deste mundo
sul de França, no Norte de Itália, e também e sobre o seu príncipe e sobre Adão...
em regiões muito afastadas destas 695, a adop- Eu (João) perguntei: ‘Senhor, antes de ter caído, em
tarem um comportamento de vida verdadeira- que glória se sentava Satan ao lado do Pai?’ E ele dis-
mente cristão. E isso era muito excepcional se: ‘Na magnificência dos céus e ao pé do trono do Pai
numa época em que o sacerdócio exterior da invisível, e ele era o dirigente de tudo e sentava-se ao
pé do meu Pai e eu próprio ainda não me sentava lá.
igreja única e geral (= católica) era o modelo Ele era o dirigente das virtudes dos céus e daqueles que
da grande rarefacção da consciência espiritual seguem o Pai e o seu poder estendia-se dos céus até ao
do homem nesta era. inferno e para cima até ao trono do Deus invisível, do
Pai, e guardava as magnificências que estavam acima
Há algumas décadas atrás, ainda se partia do de todos os céus. E concebeu o plano de pôr o seu as-
sento acima das nuvens e de ser igual ao Altíssimo...’
princípio de que o ensinamento dito dualista
dos cátaros remontava de alguma maneira ao
Os Cátaros ainda sentiam um Deus totalmente
ensinamento dos maniqueus. 696 Sobretudo a
transcendente, invisível, que também era cha-
partir do trabalho magistral de Jean Duver-
mado Pai. Satã é uma força, um anjo, que cai
noy697, a maior parte dos investigadores está
e produz o mal. Cristo veio após ele como
convencida de que há outras linhas operantes,
força pré-existente para fazer o mal desvane-
embora ainda não se possa traçar o quadro
cer-se e regressar ao bem. O estado material
exacto. 698 Tal como já tinha acontecido nos
do ser humano é temporário e não surgiu di-
primeiros séculos, a literatura cátara autêntica
rectamente de Deus. Por isso responde Jesus:
foi destruída pela igreja. No século XX foram
redescobertos alguns manuscritos, tais como o Ouve, amado João, os homens que não sabem dizem
já referido Ritual e O Livro dos dois princí- isso, mas como o meu Pai não fez corpos materiais (o
pios. Os Cátaros tinham também um Livro de que estaria em luta contra os seus próprios mandamen-
João 699, onde se encontram paralelismos sur- tos), e fez todas as virtudes dos céus a partir do Espírito
preendentes com o livro gnóstico encontrado Santo, foram eles próprios que, pela infracção devida à
sua queda, vieram parar a corpos materiais e foram en-
em 1945 em Nag Hammadi chamado O Livro tregues à morte.
Secreto de João, e talvez dispusessem ainda
de uma versão do Evangelho dos Nazarenos, No fim, ‘as obras da mulher desvanecer-se-
uma obra que foi transmitida apenas por meio ão’, segundo explica Judas a Mateus o escla-
recimento de Jesus. 702 Pois Jesus disse:

Vim para pôr fim às obras da mulher. 703

694
René Nelli, La vie quotidienne des Cathares du E no Livro de João cátaro, Jesus diz:
Languedoc au XIIIe siècle, 47-48.
695 Dos espíritos caídos dos céus, alguns entram nos cor-
Até à Renânia e à Holanda.
696 pos femininos e eles recebem a carne do desejo carnal
Ver, por exemplo, H. P. H. Jansen, Geschiedenis
van de Middeleeuwen, 268, e Fernand Niel, Albigeois e ao mesmo tempo recebem o espírito, e o espírito nas-
et Cathares (capítulo 3).
697
Jean Duvernoy, Le Catharisme. I. La Religion des
Cathares, e Le Catharisme. II. L’Histoire des Catha-
700
res. Ver também a sua edição de fontes em 3 volumes Ver A. F. J. Klijn, ‘Het Evangelie van de Nazore-
Le registre d’inquisition de Jacques Fournier (1318- nen’ em Klijn, Apokriefen I, 19-22.
701
1323). Todas as citações feitas a seguir ao Livro de João
698
Ver J. Slavengurg, De geheime woorden, 133, a pro- foram retiradas da tradução de W. P. Martens, em De
pósito da cadeia borborianos-paulicianos-bogomilos. Katharen, 149-159.
699 702
Também chamado Cène Secrète (santa ceia). Este Het gesprek met de Verlosser, J. Slavenburg/W. G.
escrito está retomado numa tradução francesa em René Glaudemans, Nag Hammadi geschriften I, 250.
703
Nelli, Ecritures cathares, e em holandês em W. P. Het Evangelie van de Egiptenaren, Klijn, Apokrie-
Martens, De Katharen, 149-159. fen, I, 28.
ce do espírito, e a carne da carne, e assim termina o rei- Espiritualidade, gnose e mística
no de Satan.

Teólogos eminentes e homens inteligentes em geral


Segundo os cátaros, a salvação não se tinha costumam definir o seu deus cada vez mais, não como
tornado efectiva por si com a mote de Jesus uma pessoa, mas como uma força, um princípio, uma
na cruz. A responsabilidade era do próprio qualidade figurativa de todo o Ser, um poder integrador
homem. Só pelo renascimento, o baptismo que dá expressão à unidade e assim, riqueza de sentido
com fogo, em Cristo, é que o homem se podia ao cosmos, ‘dimensão de profundidade’, etc.,
libertar da roda eterna do nascimento e do re-
nascimento e alcançar o espírito. diz Abraham Maslow, que fez um estudo so-
bre os aspectos religiosos das experiências ex-
E de novo, eu, João, perguntei ao Senhor: ‘O homem tremas 705. É a imagem de Deus que se aproxi-
pode ser salvo pelo baptismo de João sem o teu baptis- ma mais da do Livro Secreto de João, de filia-
mo?’ ção gnóstica, do que da dos Padres da Igreja e
E o Senhor respondeu: ‘Sem o meu baptismo com que seus seguidores através dos séculos. É uma
eu baptizo para perdão dos pecados, digo-te eu, nin-
guém pode receber a salvação de Deus. Por isso eu sou imagem que encontramos entre os cátaros es-
o pão da vida, que desce do sétimo céu, porque quem pirituais e também em muitos místicos, que
come o meu corpo e bebe o meu sangue é chamado fi- estavam exactamente à procura de modo mui-
lho de Deus.’ to forte dessa experiência de unidade.

Disto disse o escritor do Evangelho de Filipe: Na tradição mística, a divinização, a unificação com
Deus, significa que eu me torno no que Deus é, e, em
Se alguém mergulha na água essência mais profunda, Deus é amor. 706
e volta à superfície se ter recebido nada
e diz ‘sou cristão’ Mais uma citação:
recebeu esse nome de empréstimo.
Mas se recebeu o Espírito Santo
Quem de repente, assim sem mais nada ou após uma
recebeu esse nome como um presente.
longa preparação, experimenta a bênção de uma expe-
riência espiritual de unidade, e seguidamente, não fica
Não se tiram os presentes a quem os recebeu,
demasiado tempo a pairar na dor da respectiva falta,
mas o que é recebido de empréstimo
acaba por se interrogar: o que é que se passa comigo,
é exigido de volta.’ 704
ou connosco, que parecemos aperceber-nos tão pouco
da Realidade omnipresente? Como é que podemos lim-
Encontram-se evidentemente influências ma- par as janelas embaciadas?
niqueias no catarismo, tais como a separação ... O abandono temporário da armadura conceptual que
bastante estrita entre Deus, o Pai, e o Príncipe normalmente enquadra todo o nosso mundo de expe-
riências, exige um abandono da nossa identificação
das Trevas. Encontramos também no mani- com o pensamento intelectual. Essa armadura concep-
queísmo a noção de que todas as partículas de tual, que nos é trazida pela educação, pelo ensino e pe-
luz divinas têm de regressar ao mundo de los costumes sociais, é mantida sobretudo pela conver-
Deus. Aconteceu certamente no Oriente, nos sa interior na nossa cabeça, que está constantemente a
primeiros séculos, uma fusão em que elemen- acontecer, sobretudo em nós, homens modernos. Exige
todo um processo de aprendizagem observar, e ainda
tos do cristianismo siríaco, de pequenos gru- mais abandonar de vez em quando, essa identificação
pos gnósticos oprimidos e do maniqueísmo se com o pensamento intelectual e ao mesmo tempo per-
juntaram e deram origem ao que poderíamos manecer perfeitamente acordado, de modo a que o si-
chamar ‘doutrina dos cátaros’. Mas o mais re- lêncio original possa tornar-se perceptível.
confortante é que não se ficaram pela doutri- ... Segundo a minha experiência, o espiritual pode ser
designado como o Espaço infinito do Espírito divino
na. Numa parte do mundo medieval então co- em cujo interior se desenrolam todas as coisas finitas;
nhecido, Cristo tornou-se muito vivenciável. não apenas os fenómenos físicos mas também todos os
Mas o tempo ainda não estava maduro para psíquicos. Enquanto Espaço omni-abarcante, esse Espí-
isso.
705
Abraham H. Maslow, Religie en topervaring, p. 58.
Ver também Frits Staal, Het wetenschappelijk onder-
zoek van de mystiek, sobretudo p. 80/81.
706
Hein Blommestijn, ‘Spiritualiteit als omvormings-
proces’ em Auke Jelsma e Harry Juch (coord.), Ruimte
704
EvFlp.49. om op adem te komen, p. 99.
rito não só é diferente de todos os fenómenos finitos resias 714. Os bons homens, entre os cátaros,
que aparecem no interior desse espaço como também viviam de uma compreensão permanente da
está infinitamente próximo e perpassa esses fenóme-
nos. Os fenómenos finitos existem, têm consciência,
essência profunda das coisas e, a partir desse
são justificados e são normais graças ao Espírito omni- fundamento, eram totalmente não violentos
abarcante. 707 devido a um intenso respeito pelo próximo,
enquanto reflexo de Deus; eram-no, portanto,
Esta experiência do professor Otto Duintjer também em relação aos perseguidores católi-
testemunha de uma visão que cada vez se en- cos, que os perseguiam – aos olhos dos bons
contra mais na época actual 708. Voltarei a isto homens – devido à ignorância, à não-gnose.
no último capítulo, que fala da Nova Era. Tudo isto tem, naturalmente, algo de generali-
Aqui, quero mostrar algumas diferenças e se- zação. Às vezes, a mística e a gnose estão
melhanças entre a espiritualidade 709, gnose 710 muito perto uma da outra e passam sem des-
e mística 711. Tanto a gnose como a mística continuidade uma à outra. E também, nem tu-
têm a ver com a espiritualidade 712, porque do o que se apresenta sob esta designação me-
ambas se ocupam do espírito. Na mística, o rece o nome. As experiências místicas são fre-
que é notável é que se trata muitas vezes de quentemente comparadas a vivências amoro-
experiências extremas, como lhes chama sas. É a experiência do amante e do amado.
Maslow. Estas não estão necessariamente as- Mas se a mística não se enraizar num saber
sentes num saber, em gnose. A mística é a ex- puro, na gnose, e não for enquadrada por ela,
periência flamejante de um estrato mais pro- pode acontecer que a fixação no amado vá tão
fundo que está permanentemente presente na longe que tudo o que pareça ameaçador para
gnose. As experiências místicas, por esplêndi- ele seja rebaixado; tal como um jovem apai-
das e enriquecedoras que sejam, não são sem- xonado, para proteger a namorada, pode ser
pre garantia de uma compreensão divina per- levado a atacar, ferir ou até matar (aparentes)
manente. Bernardo de Claraval foi de certeza assediantes.
um místico que viveu profundas experiências Não deixa de ser notável que seja precisamen-
divinas, mas isso não o impediu de pregar a te na Idade Média, no ponto alto do poder cle-
cruzada 713 e de atacar as (aos seus olhos) he- rical, quando a espiritualidade era no máximo
um fenómeno marginal ameaçador, que a mís-
707
Professor Otto Duintjer, ‘Het belang van nieuwe tica tenha um grande florescimento; não per-
spiritualiteit’ no jornal Trouw de 28 de Março de 1992. dendo de vista que a mística não é um fenó-
708
Ver também J. Slavenburg, Mystiek en Spiritualiteit. meno tipicamente medieval e aparece em to-
Een reis door het tijdloze. das as épocas e praticamente em todas as cul-
709
‘A palavra “espiritualidade” vem da palavra latina turas e no interior de quase todas as religiões.
spiritus, que significa “espírito”. Spiritus é, por sua
vez, uma tradução do grego pneûma, que por sua vez Assim, por volta de 1250, o grande místico
representa o hebraico ruah’ (Otger Steggink e Kees sufi Djalalu’ddin Rumi 715 está activo no islão.
Waaijman, Spiritualiteit en Mystiek, 1, Inleiding, p. 9).
710
De gnôsis, palavra grega que significa conhecimen- O sufi recusa aceitar qualquer distância, mesmo ínfima,
to. entre ele e Deus, recusa aceitar o véu que, afinal não é
711
‘A palavra “mística” provém do grego mustikós, que
é relacionada com os verbos múo (fechar os olhos e a
boca) e muéo (iniciar nos mistérios). Mustikós integrou ve-se, porque o rei dos céus perdeu a sua terra... os ini-
a linguagem cristã como empréstimo grego. O Antigo migos da cruz reuniram-se para conjurar contra ele.
Testamento e a tradição judaica empregam outros Preparam-se para profanar os lugares consagrados pelo
termos’ (O. Steggink e K. Waaijman, Spiritualiteit en sangue de Cristo; elevam as mãos contra o Monte
Mystiek, p. 9). Ver também Peter Koslowski ‘Philoso- Sião...’ (Epistula 467, op. cit. M. C. Slotemaker de
phie, Mystic, Gnosis’ em P. Koslowski (coord.), Gno- Bruïne em Bernard de Clairvaux, Bezinning – tradução
sis und Mystik in der Geschichte der Philosophie, p. 9- holandesa da De Consideratione – 12).
714
13. Assim, apela ao papa Inocêncio II que ‘esmague
712
A espiritualidade ‘não está ligada a determinadas re- pela força aqueles que corrompem a fé’ (referia-se aqui
ligiões, nem mesmo a uma religiosidade oficial’ (C. aos ‘ensinamentos ímpios de Abelardo), prefácio ao
Alders, Spiritualiteit, p. 13). seu Tractatus de erroribus Petri Abaelardi, op. cit.
713
Trata-se da Segunda Cruzada. Em Março de 1146, Anton van Duinkerken, Uren met St. Bernard, p. 73-
Bernard começou os seus empolgantes sermões. Uma 74.
715
impressão da paixão da sua convocatória pode ser dada Ver entre outros, R. van Brakell Buys, Djalalu’ddin
pela leitura de algumas cartas: ‘A terra estremece e mo- Rumi.
mais do que a sua própria personalidade humana, que Ó tu, Deus que te fundes na união com a tua amada!
se interpõe entre ele e Deus. Ele deseja o seu próprio Ó tu, deus que descansas no meu peito!
‘aniquilamento’ (fana) para assim se dissolver na den- Sem ti, não posso mais ser... 719
sidade ontológica de Deus. O amante dissolve-se no
amado... Deus deu a todas as criaturas
viverem segundo a sua natureza.
escreve Ben-Ami Scharfstein 716. Sobretudo Então, como é que eu posso resistir à minha natureza?
Tenho de me afastar de todas as coisas para ir para
este último aspecto pode ser sentido em quase Deus,
cada frase dos místicos ocidentais da Idade que é o meu Pai por natureza,
Média. o meu irmão pela sua humanidade,
o meu noivo pelo amor
e eu a sua noiva sem princípio.
Pensavam que eu não sentiria esta natureza?
O amor Deus pode ambos: o queimar ardentemente ou arrefe-
cer consoladoramente. 720
Bruno Borchert resume assim o fenómeno
místico: Ou, três séculos mais tarde, no místico Juan
de la Cruz (João da Cruz):
Saber por experiência que tudo é, de alguma maneira,
interdependente, que tudo é uno em origem. 717 Numa noite escura,
com ânsias em amores inflamada,
Também ele compara o fenómeno à experiên- – ó ditosa ventura –
saí, sem ser notada,
cia do enamoramento. Ele afirma que, na mís-
estando já minha casa sossegada.
tica, o enamoramento em si não é muito im-
portante, porque, na maior parte das vezes, Às escuras e segura,
passa depressa. Mas pode mudar toda uma vi- pela secreta escada disfarçada,
da e ‘pode-se querer viver repetidamente o – ó ditosa ventura –
Às escuras e às escondidas,
impulso do enamoramento’. 718 Também há a
estando já minha casa sossegada.
possibilidade, diz Borchert, de fazer o enamo-
ramento crescer até ser alor. Subtituindo ‘ena- Na noite ditosa,
moramento’ por ‘experiência mística’ fica-se em segredo, que ninguém me via,
com uma certa ideia do que a mística pode nem eu via nada,
sem outra luz nem guia,
ser.
a não ser a que em meu coração ardia.
Como foi dito, é precisamente no misticismo
que aparecem imagens de ígneas relações Ela guiava-me
amorosas entre um amante e uma amada. Por mais certa do que a luz do meio dia
exemplo, na mística Mechtild de Magdeburg aonde me esperava
quem eu bem sabia
(1207-1294) em A fluente luz da Divindade:
em parte onde não parecia haver ninguém.
Ó tu, Deus que te derramas nos teus dons! Ó noite que me guiaste!
Ó tu, Deus que fluis na tua amada! Ó noite, mais amável que a alvorada!
Ó tu, Deus que ardes no teu desejo! Ó noite, que juntaste
amado com amada,
716 amada no amado transformada!
Ben-Ami Scharfstein, Mystiek ervaren, p 16. Chama
a atenção que nesta época haja de novo um grande inte-
No meu peito florido,
resse pela mística sufi; um interesse que é muitas vezes
que se guardava inteiro só para ele,
maior do que o que existe pela mística cristã. Sobretu-
ali ficou adormecido,
do a mística inspiradora do mestre sufi oriundo da Ín-
e eu acariciava-o,
dia Hazrat Inayat Khan, que veio para o Ocidente em
e o leque de cedro refrescava.
1910, contribuíu em grande medida para isto (ver, entre
outros, os seus Aforismen; de ziel, vanwaar, waar-
heen? e Gayan. Tonen van ongespeelde muziek. Jac-
719
ques Benoit dá em Lusthof der liefde, extractos escolhi- Mechtild de Magdeburg, Het vloeiende licht der
dos de antiga mística sufi, de Hasan al-Basra (falecido Godheid, I, 17, citado em Margot Schmidt, ‘Mechtild
em 728) a Zeb-Un-Nissa (falecido em 1689). van Maagdenburg’ em Johannes Thiele (coord.), De
717
Bruno Borchert, Mystiek, 9. minne is al, 66.
718 720
Ibidem. Ibidem, I.44, 67
O vento lá do alto, E, no entanto, estes dois são de grande utilidade mútua,
quando eu os seus cabelos remexia, porque a razão instrui o amor e o amor ilumina a razão.
com a sua mão serena Quando a razão aceita o ardor do amor e o amor se dei-
o meu pescoço feria xa dominar e ligar à luz da razão, ambos se tornam ca-
e todos os meus sentidos suspendia. pazes de coisas grandiosas. Mas ninguém pode apren-
der isto a não ser por experiência própria. 726
Aquietei-me e esqueci-me,
o rosto reclinei sobre o amado, Chama bastante a atenção o papel invulgar-
cessou tudo e deixei-me,
deixando o meu cuidado
mente importante que a ‘mística’ feminina de-
entre açucenas esquecido. 721 sempenha na Idade Média. 727Na antiguidade
apenas homens, sobretudo Orígenes, Gregório
Nem sempre é fácil compreender inteiramente de Nyssa, Agostinho e pseudo-Dionísio, o
estas expressões místicas. Vários místicos tor- Areopagita 728, eram vistos geralmente como
naram claro que a leitura de poemas místicos grandes exemplos; na Idade Média, a lista po-
só é possível com o ‘sentido do amor ilumina- de facilmente ser expandida com mulheres
do’. 722 como Hildegarda de Bingen, Mechtild de
Magdeburg, Gertrudis de Helfta, Hadewijch,
Como Deus é amor 723, não o podemos abordar apenas Birgitta da Suécia, Juliana de Norwich,
com o nosso intelecto racional, acabamos por com- Catharina de Siena e muitas outras.
preender algo dele pelas nossas tentativas hesitantes de
amar. 724

Ora foi isto precisamente o que Hadewijch


Um génio feminino
descreveu como ‘a faculdade de visão da al-
No ano de 1141 depois de Deus se ter tornado homem,
ma’ que tem dois olhos: a razão e o amor. 725
quando eu tinha 24 anos e sete meses, o céu abriu-se
A maior parte dos místicos masculinos per- numa luz ígnea.
correm o velho caminho que, através da con- Ela flui em todo o meu espírito e abrasou-me o coração
templação, através do conhecido, alcança o como uma chama que não queimava propriamente, mas
desconhecido, Deus, que ultrapassa todo o co- apenas aquecia, tal como o sol aquece aquilo para onde
dirige os seus raios.
nhecimento. Hadewijch sabe que o caminho
E de repente, desvendou-se-me o significado dos sal-
do amor é um caminho de incertezas, de im- mos, dos evangelhos e dos restantes livros do antigo e
potência, mas que a pode levar mais longe do do novo testamento.
que a razão: Vi e ouvi tudo isto, mas não pude decidir-me a
escrevê-lo. Não por não querer, mas por causa de uma
A razão avança até ao que Deus é através das coisas dúvida tão séria que o látego de Deus me atirou doente
que não são Deus. O amor não se ocupa do que Deus para a cama.
não é e encontra a sua alegria no desfalecimento naqui- Por fim, embora abatida por grandes dores, consegui
lo que Deus é. A razão satisfaz-se mais depressa do levar a mão a escrever.
que o amor, mas o amor conhece maior satisfação na Então, as minhas forças voltaram.
beatitude. Só então recuperei da doença. 729

721 726
Este poema de Juan de la Cruz está traduzido numa Op. cit. Borchert. Noutra passagem Hadewijch afir-
edição da ed. Estampa com o título A Noite Obscura, ma:‘se a razão for rude com o seu amado, o amor é
João da Cruz. muito magoado’ (Op. cit. Frank Willaert, ‘Hadewijch’,
722
‘Sensus illuminati amoris’, Guillaume de Saint- em J. Thiele, 109). Ver também Paul Mommaers, De
Thierry, Epistola ad Fratres de Monte Dei: Lettre aux visioenen van Hadewijch.
727
Frères de Mont-Dieu, op. cit. H. H. Blommestijn e F. J. Lanczkowski atribui o facto ao lugar especial que
A. Maas, Kruispunten in de mystieke traditie, 14. as mulheres tiveram em Jesus (Peter Dinzelbacher
723
1 Jo. 4:7. (coord.), Wörterbuch der Mystik, 175-177).
724 728
Blommestijn e Maas, 14. É sobretudo este místico cristão do século VI, que
725
A mística Marguerite Porète distingue raison de se chama a si mesmo Dionísio, que é visto geralmente
amour (ver Franz-Josef Schweitzer, ‘Marguerite Porè- como ‘o pai’ da mística cristã. ‘The influence of these
te’, em J. Thiele, De minne is al, 168-179) e o visioná- writings (de pseudo Dionísio – JS) on the mystical tra-
rio místico William Blake contrapõe reason e imagina- dition of the West can hardly be exaggerated’ (Michael
tion (Jos van Meurs, ‘William Blake Recreation of Cox, A Handbook of Christian Mysticism, 75).
729
Gnostic Myth, em G. Quispel (coord.), De Hermetische Hildegard van Bingen, prólogo do Liber Scivias, nu-
Gnosis in de loop der eeuwen, 539-580, 546). ma tradução de Etty Mulder, Hildegarda, 7.
Quando se fala em mística feminina na Idade escrever as visões. 732 Esta timidez inicial, tal
Média, vem imediatamente à mente o nome como a grande força de expressão e o
de Hildegarda de Bingen. Hildegarda nasceu conteúdo majestoso das suas visões, mostram
em 1098 na Alemanha Central e foi confiada muitos paralelismos com o místico Jacob
aos oito anos de idade à abadessa de um Böhme, cerca de 400 anos posterior. É
mosteiro feminino. Aí, no mosteiro de que ela notável nessas visões a patente unidade
própria se tornou abadessa aos 38 anos, divina. Ela vê uma figura cósmica gigantesca
Hildegarda tornou-se o protótipo daqueilo a que se apresenta com as palavras:
que posteriormente (na Renascença) se
chamaria uomo universale (homem Eu, a força suprema e ígnea, inflamei todas as cente-
universal); ela ocupou-se não só das questões lhas de vida e de mim nada emanou que fosse mortal.
Decido toda a realidade. Com as minhas asas superio-
organizativas do mosteiro – fundou o seu res, sobrevoo o globo terrestre: em sabedoria, ordenei o
próprio mosteiro em Bingen e, devido ao universo. Eu, a ígnea vida de essência divina, movo-me
enorme sucesso, ainda um mosteiro adicional inflamante sobre as belezas dos campos, acendo-me no
– mas também de muitos outros assuntos; era que cresce e ardo no sol, na lua e nas estrelas. A cada
dotada em composição musical, poesia, sopro do ar, desperto tudo à vida, como que com vida
invisível que tudo contém... Estou culto em toda a rea-
biologia, arte de curar, e mais ou menos, lidade como uma força ígnea. Tudo arde através de
também em teologia e política, como se vê da mim, tal como o alento move ininterruptamente o ho-
sua vasta correspondência de cerca de 300 mem, tal como a chama o fogo que se move pelo
cartas aos grandes personagens do seu tem- vento. Tudo isto vive no meu ser, e nele não há nada
po. 730 morto. Pois eu sou a vida. Sou também a inteligência
que traz em si o alento da palavra possante pela qual
Hildegarda escreve que tinha visões em crian- toda a criação foi feita. Insuflo vida em tudo, de modo
ça: que nada da sua espécie é mortal. Pois eu sou a vida. 733

Desde os meus anos de infância, quando os meus os- É notável que Hildegarda considera o homem
sos, nervos e veias ainda não eram suficientemente for-
tes, até ao momento presente, e já tenho mais de seten-
parte integrante desse cosmos, microcosmos
ta anos, que me alegro neste dom de contemplar na mi- no macrocosmos, tal como acontecia de modo
nha alma. E a minha alma eleva-se – como Deus quer – muito forte na gnose hermética dos primeiros
nessa contemplação até à altura do firmamento... Mas séculos da nossa era.
não vejo essas coisas com os olhos exteriores, nem as
oiço com os ouvidos exteriores, nem as percepciono Então, apareceu no peito da figura que eu contemplava
com os pensamentos do meu coração ou seja por que um círculo maravilhoso. No lado de fora apareceu um
intermediação for dos meus cinco sentidos. Vejo-as círculo de fogo luminoso. Dentro dele, vi um círculo de
unicamente na minha alma, com os olhos do corpo fogo negro e dentro de novo outro círculo que parecia
abertos, de modo que nunca caio na inconsciência de ser de puro éter. Dentro desse círculo estava suspenso
um êxtase e contemplo-as acordada, de dia e de noite. um círculo de ar aquoso. Dentro, apareceu-me um cír-
A luz que eu contemplo não está ligada ao espaço. É culo de ar branco e brilhante que brilhava tanto como o
muitíssimo mais clara que uma nuvem que tem o sol sol. Para finalizar, mostrava-se ainda uma fina camada
dentro de si. Não vejo nela nem altura, nem compri- de ar que às vezes parecia ter nuvens altas e claras ou-
mento, nem largura. É-me indicada como o ‘reflexo da tras vezes nuvens profundas e escuras. No meio da es-
luz viva’. E assim como o sol, a lua e as estrelas se re- fera de ar fino vi uma forma oval e no meio desse im-
flectem na água, assim brilham ante mim escrituras, pressionante grande círculo vi a figura de um homem.
palavras, forças e determinadas obras dos homens. 731 O seu crânio estendia-se para cima e os seus pés para
baixo até às esferas de ar branco, e os seus braços esta-
Mas como Hildegarda afirma numa citação vam abertos para ambos os lados. 734
anterior, foi só aos 24 anos que, de maneira
muito hesitante e após uma troca de cartas 732
com Bernardus de Clairvaux, começa a Ao princípio, não só pensou que era ‘arrogante’ fa-
lar das suas contemplações, como também teve medo
de não ser levada a sério por ser mulher. Ver Marie
Veit, ‘Hildegard von Bingen’ em Luise Schrottroff e
Johannes Thiele (coord.), Met passie over God spre-
730
Ver Hildegard von Bingen, Epistulae, traduzidas pa- ken, sobretudo 57-58.
733
ra alemão por A. Führkötter, Briefwechsel. Hildegard von Bingen, De operatione Dei, op. cit.
731
Carta de Hildegarda a Wilbert de Gembloux, op. cit. Ingrid Riedel, 34.
734
Ingrid Riedel em ‘Hildegarda van Bingen’ em J. Hildegard von Bingen, Liber Divinorum Operum,
Thiele, De minne is al, 46. op. cit. Etty Mulder, 13. Hildegarda mandou as monjas
conteúdo das suas visões não seria uma pro-
O homem é o núcleo do cosmos, rico em pos- jecção das suas próprias fantasias. Encontra-
sibilidades. Enquanto Hermes Trismegistos mos esta atitude em muitas místicas femini-
exclama: nas, tal como na já referida Mechtild de Mag-
deburg e na sua homónima Mechtild de Hac-
O homem, ó Asclepius, é uma grande maravilha 735, keborn. Esta última ouviu, num período de
martirizante incerteza, uma voz interior que
Hildegarda afirma simplesmente: anunciava:
Quando criou mundo, Deus já tinha decidido que que- Estou no coração daqueles que querem ouvir-te falar.
ria ser homem. 736 Sou a inteligência no ouvido dos ouvintes,
pela qual eles compreendem o que ouvem.
Esta imagem positiva do homem, extrema- Estou na boca daqueles que falam sobre isso,
mente invulgar na Idade Média, volta a apare- estou na mão daqueles que o escrevem. 739
cer na apreciação que Hildegarda faz da se-
xualidade, que volta a ter paralelos notáveis Em Mechtild vemos claramente a mudança
no Corpus Hermeticum e no apócrifo medieval de perspectiva do Cristo triunfante
Evangelho de Filipe. No seu tratado médico para o Cristo sofredor. 740 ‘O sofrimento re-
Causae et Curae, ela escreve: dentor de Cristo torna-se em Mechtild um so-
frimento reconciliador por outros.’ 741 Vemos
Assim que a semente do homem é derramada, o sangue também a ênfase no sofrimento na adoração
feminino toma-a com todo o desejo de que ela é capaz de mártires femininas, como Catarina, cujas
em amor e aspira-a para dentro, exactamente do lendas circulavam nessa época. 742 A identifi-
mesmo modo que se pode meter algo para dentro pela cação com o sofrimento foi por vezes tão lon-
inspiração... e assim se torna a mulher na realidade
uma só carne com o homem e se torna assim, ela
ge que os místicos se auto-flagelavam. 743
própria homem. 737
E pensou também que Deus lhe ordenava que se desfi-
zesse de todas as coisas. E ela compreendeu-o no senti-
A unificação não tem consequências só para a do de que ele queria que todo o seu corpo fosse casti-
mulher. Durante o coito, o homem absorve al- gado. E assim tirou a roupa e começou a castigar o seu
go de feminino 738; uma abordagem totalmente corpo, começando pelo pescoço, e castigou todo o cor-
diferente da distinção entre o perfectum (o ho- po com pancadas o mais fortes que conseguia, até dei-
mem) e o minus perfectum (a mulher) que ve-
mos em Tomás de Aquino um século mais 739
Mechtild von Hackeborn, Revelationes Gertrudia-
tarde. nae ac Mechtildianae, V,22, op. cit. Margot Schmidt,
‘Mechtild van Hackerborn’, em J. Thiele, De minne is
Hildegarda, que estava muitas vezes doente, al, 78. Comparar com a revelação a Jakob Lorber:
lutava frequentemente com a incerteza de se o ‘Quem quer ter contacto Comigo, tem ele próprio de
procurar acesso a Mim – então pôr-lhe-ei as respostas
no coração. – Mas apenas os puros, cujo coração é hu-
desenhar algumas das suas visões (ver as ilustrações milde, poderão compreender o som da minha Voz! –
coloridas deste livro). Conversarei com ele em amizade interior’ (De jeugd
735
Asclepius 6. van Jesus, 10).
736 740
Op. cit. Etty Mulder, 84. Ver, entre outros, M. C. Slotemaker de Bruïne, Het
737
Hildegarda von Bingen, Causae et Curae, op. cit. ideaal der navolging van Christus ten tijde van Ber-
Etty Mulder, 97. nard van Clairvaux.
741
Ver o Logion 114 do Evangelho de Tomé: Ibidem, 83
742
‘Jesus disse: Sobretudo na já referida Legenda Aurea. Também
“Vede, eu conduzi-la-ei, os muitos livros de horas do fim da Idade Média estão
de modo que a farei masculina iluminados com imagens dos mais horríveis martírios
para que ela se torne um espírito vivo de santas mulheres (ver, por exemplo, os fólios 15 a
tal como vós, homens. 20, e também o 179 no De Belles Heures van Jean, duc
Pois toda a mulher que se masculinizar de Berry).
743
entrará no Reino dos Céus”’. Por outro lado, a prática da auto-flagelação não es-
738
Ver Asclepius 21, onde se pode ler: tava reservada a determinados místicos. Na Idade
‘...nesse momento (do coito) vês que pela mistura dos Média, e também mais tarde, houve diversos grupos,
dois sexos, a mulher recebe a força masculina e o entre os quais os flagelantes, que viajavam açoitando-
homem a receptividade feminina. (Ver pág. 67.) se.
xar de conseguir levantar a mão para continuar a bater. fazem arder na minha alma o fogo do amor por ti... 749
E assim se açoitou três vezes com 500 chicotadas, não
contando com as fracas... E tomou o peito e raspou-o A unio mystica (unificação total com o divi-
contra uma pele de ouriço, até a sua pele ficar pendura-
da nos picos a sangrar. E quando já quase não conse-
no) cristalizou-se cada vez mais na união mís-
guia suportar a dor, pensou nos tormentos do nosso Se- tica com ‘o Senhor crucificado e sofredor’. 750
nhor, e repetiu tudo mais três vezes, em honra da Santa Outro aspecto importante da mística medieval
Trindade. 744 é o ideal de pobreza. Já vimos que muitos
grupos e indivíduos pugnaram fortemente por
Não foi só Christina Ebner que se martirizou. ele, e que quando isso acontecia fora da vida
Também Elsbeth van Oye nos diz que se cas- monacal regular (onde o voto de pobreza era
tigou com um chicote feito por si, cujos picos um ponto central), a igreja se sentia aguilho-
por vezes se enterravavam tão profundamente nada até à perseguição. Francisco de Assis en-
na sua carne que tinha dificuldade em voltar a controu um caminho intermédio neste domí-
tirá-los. E tinha também uma cruz cheia de nio.
pregos afiados que ela apertava tanto contra o
corpo com um cinto que os pregos penetra-
vam profundamente no seu corpo. 745 Menos Casamento com D. Pobreza
sangrentas são as experiências de Margareta
Ebner, que durante a época da paixão irrom- Um dia, o irmão Masseo veio até Francisco e disse:
pia num pranto que frequentemente durava ‘Porquê tu, porquê tu, porquê tu?’ Francisco respondeu
horas. 746 a esta esquisita pergunta: ‘O que é que queres dizer
exactamente?’ O irmão Masseo disse: Pergunto por
que é que todo o mundo te segue, por que é que todos
Isto são alguns extremos, mas o ‘sofrimento
querem ver-te, ouvir-te e obedecer-te. Não és bonito;
em substituição’, a tentativa de redimir outros também não tens assim tantos estudos e não és nobre.
por meio de um sofrimento doloroso, conti- Por que é que toda a gente te segue?’ 751
nuou durante muito tempo a ser uma prática
corrente, sobretudo em mulheres. 747 Jesus em Os seguidores de Francisco eram realmente
sofrimento era objecto de sonhos e visões em numerosos. Em 1221, contavam-se mais de
que, por vezes, Jesus nu era abraçado pelo três mil irmãos, e o papa, Honório III, achou
místico. Digo místico, porque esta forma de melhor enquadrar o movimento dentro da
mística não aparecia apenas em mulheres: por igreja para melhor o vigiar e para evitar novos
exemplo, Bernard de Clairvaux, transformado conflitos, depois do fracasso com os cátaros.
em mulher, tomou nos braços o crucifica- Francisco, filho de Pietro Bernardone, um ri-
do. 748 E também Jan Luyken fala disto: co mercador, distribuíu todos os seus bens pa-
ra levar uma vida ‘em imitação de Cristo’. Se-
Os teus sinais de amor, vermelhos com o santo sangue gundo um dos seus biógrafos, ele teria excla-
do céu,
mado ao fazê-lo:
os sinais de amor nos teus pés e nas tuas mãos
Pai nosso, agora posso falar em liberdade, pois tu estás
no céu e não o pai Pietro Bernardone. 752
744
Christina Ebner, Der nonne von Engelthal Büchlein Viajou pregando e mendigando, e a Ordem
von der genaden überlast, op. cit. Siegfried Ringler,
‘Christina Ebner’, em J. Thiele, De minne is al, 129.
dos Franciscanos, a quem deu o nome tor-
745
Peter Ochsenbein, ‘Elsbeth van Oye’, in J. Thiele, nou-se uma ordem mendicante, tal como a
De minne is al, 190/191. Ordem dos Dominicanos, fundada alguns
746
Manfried Weitlauff, ‘Margareta Ebner’, in J. Thiele,
De minne is al, 151.
747
Até ao século XX com Simone Weil, que se deixou
749
morrer de fome (Anne Bancroft, Vrouwelijke mystici Jan Luycken, op. cit. J. W. Schulte Nordholt, Ont-
van de twintigste eeuw, 110-124). Ver também a intro- moeting met Jan Luyken, 57.
750
dução de Pater Perrin à obra de Simone Weil, Attente Manfried Weitlauff, ‘Margareta Ebner’, in J. Thiele,
de Dieu. De minne is al, 150.
748 751
Bernardin Schellenberger, ‘Bernhard von Clair- Op. cit. W. Nigg, Grote Heilige, 25.
752
vaux’, em Gerhard Ruhbach e Josef Sudbrack (coord.), Op. cit. Walter Tritsch, Christliche Geisteswelt II,
Grosse Mystiker, 116. Ver também Borchert, 111. Die Welt der Mystik, 104.
anos antes. 753 Pois aos contrários dos benedi-
tinos, dos cistercienses e de outros, os francis- O Pai habita na Luz inacessível, e o Espírito é Deus, e
canos não se encerravam em mosteiros e de- Deus nunca foi visto por ninguém. Mas como Deus
existe, Ele só pode ser visto pelo Espírito.
sempenhavam funções no mundo. As suas co-
munidades encontrava-se, por isso, nas cida-
E continua:
des e não nos campos. 754 Chamavam-se a si
mesmos irmãos menores, pois ‘ter mais é rou- Pois é o Espírito que vivifica; a carne não serve para
bar’. Ele, que tinha experimentado na sua pró- nada. 757
pria vida o bem-estar, era de opinião que era
um roubo ter-se mais do que o estritamente O seu biógrafo Thomas de Celano escreve
necessário. que Francisco foi uma noite intensamente as-
Francisco era indiscutivelmente um místico. sediado por desejos sexuais. Por muito que
Ele sentia de maneira dominadora Deus em castigasse o ‘irmão burro’, como chamava ao
toda a natureza, desde a mais ínfima criatura seu corpo, não servia de nada. Até que, no cú-
até aos majestosos elementos descritos no seu mulo do desespero e completamente nu, veio
Hino ao Sol. 755 Na sua mística, Francisco para a rua e fez sete bonecos com a neve que
transcende a dualidade do bem e do mal. No acabara de cair. Depois disse ao seu próprio
mesmo Hino ao Sol são louvadas simultanea- corpo:
mente tanto as forças negativas como as for-
ças positivas da natureza. Inicialmente, antes Olha bem, irmão burro, este maior é a tua mulher.
da regulamentação pela igreja, a sua fraterni- Aqueles quatro são dois filhos e duas filhas teus; os ou-
dade estava aberta a pessoas de todas as tros dois são o teu criado e a tua criada, pois, natural-
mente, também precisas de pessoal. E despacha-te a
orientações, mesmo aos muçulmanos, que por vesti-los, porque estão a morrer de frio. Mas talvez
instigação da igreja eram combatidos a ferro e aches que não és capaz de tantos cuidados. Pois bem,
fogo do outro lado do Mediterrâneo. Francis- nesse caso serve com as tuas preocupações apenas o
co não elevou a voz contra esta igreja batalha- Senhor! 758
dora, não por medo de represálias, mas por-
que não queria ocupar-se de tais mesquinhi- Este desprezo do corpo, ligado ao ideal de po-
ces. breza, correspondia às necessidades de muitos
Francisco gostava de Clara, mas casou com religiosos dessa época. Que isto podia levar a
‘D. Pobreza’. 756 E ajudou Clara a fundar um exageros consideráveis vê-se pela história de
‘movimento feminino’ franciscano, a ‘ordem Angela de Foligno, que estava de tal modo
segunda’. Mais tarde, juntou-se ainda uma possessa pelo ideal do seu conterrâneo Fran-
‘ordem terceira’ de leigos, que se integravam cisco que falava alegremente
normalmente na sociedade, mas tinham vo-
luntariamente em conta a promessa dos ‘ir- sobre a morte súbita de todos os seus familiares: da
mãe, que tinha sido para ela um grande obstáculo no
mãos e das irmãs’. Embora Francisco não im- caminho para Deus, do marido e dos filhos, por cuja
pusesse obrigatoriamente a ascese aos seus morte ela tinha rezado expresamente a Deus. 759
seguidores iniciais, essa ascese teve um suces-
so entusiástico. Francisco diz algures: Francisco experimentava o divino em tudo.
Poder-se-ia dizer que a sua concepção de po-
753
breza era mais do que uma consequência da
Ver Ewert H. Cousins, ‘Francis of Assisi: Christian desigualdade social que tem de ser abolida; na
Mysticism at the Crossroads’ in Steven T. Katz
(coord.), Mysticism and Religious Traditions, 163-191. criação divina tudo é equivalente. Os pássaros
754
No século XX, houve mesmo historiadores que afir- e os peixes precisam tanto do evangelho como
mavam que só podiam ser consideradas cidades as po- os homens. Alguns séculos mais tarde, Tho-
voações onde tivesse sido fundado um mosteiro fran-
ciscano, independentemente do estatuto jurídico da po-
757
voação. W. Tritsch, Die Welt der Mystik, 104.
755 758
O Hino ao Sol de Francisco está retomado em ver- Op. cit. Auke Jelsma, ‘Een drieluik om mee te be-
são alemã na obra de Gerhard Ruhbach e Josef Sud- ginnen’ em Auke Jelsma (coord.), De kunst van het
brack, Christliche Mystik, 137-138 loslaten, 12.
756 759
Ver A. A. C. Sier, Het heilig verbond van de zalige Op. cit. Ulrich Köpf, ‘Angela van Foligno’, em J.
Franciscus met Vrouwe Armoede. Thiele, De minne is al, 112.
mas a Kempis, que também queria imitar
Cristo, diria na sua Imitatio Christi (imitação Eckhart é um mestre de frontalidade. Tudo se
de Cristo) que: torna como que luminoso quando ele faz bri-
lhar a sua luz. Numa frase como
enquanto não nos despojarmos de todo o criado, não
nos podemos voltar livremente para o que é divino. 760 o ser de Deus é a nossa génese 765

Pois o Criador de todas as coisas nada tem em está todo um mundo de experiência. Um mun-
comum com as criaturas. 761 Também Eckhart do que se constata estar impregnado pelo divi-
diz algures: no, pois
Quanto mais esvaziado o homem estiver do criado, tan- quem tem Deus na língua, sente o sabor de Deus em to-
to mais claramente a luz preenche a sua alma. A verda- das as coisas. 766
de e a compreensão tornam-se parte sua. 762

Mas, ao contrário de Thomas a Kempis, Mestre em mística


Eckhart, tal como Francisco, continua a expe-
rimentar Deus em todas as criaturas, portanto,
também no homem. Para tanto, aos olhos de Nos seus muitos sermões, Eckhart mostra ao
Eckhart, não era em si necessário isolar-se do homem o caminho para se aproximar de
mundo e entrar num mosteiro (a via comtem- Deus, para manifestar o divino em si. Emana
plativa). Eckhart, tal como por exemplo, a deles uma enorme força, também para o ho-
mística Catarina de Siena, punha a via activa mem da nossa época. Num sermão sobre a
em plena luz. 763 virgindade de Maria, ele leva de maneira irre-
futável o conceito de virgindade corporal er-
Perguntaram-me: radamente compreendido pela igreja para o si-
‘Certas pessoas retiram-se muito de entre os homens e gnificado intrínseco de ser virgem:
gostam de estar sempre sós, mesmo quando estão pré-
sentes na igreja; nisso está a sua paz. Isto é o melhor Pronunciei, primeiro em latim, umas palavras que estão
que se pode fazer? escritas no evangelho e que na nossa língua seriam: ‘O
Respondi: ‘Não!’ nosso Senhor Jesus Cristo subiu a uma cidade e foi re-
E reparai porquê. cebido por uma virgem que se tinha tornado
Quem está com a disposição correcta, está-o em todos mulher.’ 767
os lugares e ao pé de toda a gente. Mas quem não está Pois bem, ouvi bem estas palavras: era necessário que
com essa disposição não o está esteja onde estiver e es- essa pessoa que recebeu Jesus fosse uma ‘virgem’. Vir-
teja com quem estiver. Porém, quem está no estado gem quer dizer uma pessoa que está vazia de todas as
correcto, tem verdadeiramente Deus ao pé de si. Po- imagens estranhas, tão vazia como quando ainda não
rém, quem possui verdadeiramente Deus, tem-No em existia. Ora pode-se perguntar como é que uma pessoa
todos os lugares, tanto na rua e ao pé de toda a gente que nasceu e chegou à idade da compreensão pode es-
como na igreja ou na solidão de uma cela; na medida tar vazia de imagens, tão vazia como quando ainda não
em que estiver em ordem em tudo o resto e na medida existia. Ela sabe muitas coisas, e tudo isso são
em que O possui, não há ninguém que lhe possa pôr imagens; como é que ela pode estar vazia? Ouvi o
obstáculos. 764 ensinamento que eu vos quero dar. Mesmo que a minha
inteligência fosse tão vasta que eu guardasse nela todas
760
Thomas a Kempis, Imitatio Christi III.31,6 na tradu- as imagens que alguma vez ocorreram à comunidade
ção de Bernard Naaijkens, Thomas a Kempis: De na- dos homens, e além delas, também as imagens que
volging van Christus, 128. estão no próprio Deus, e se as guardasse todas de tal
761
Ibidem, III.31,5. modo que ficasse livre de ligações egocêntricas a todas
762
Eckhart, das Predigten, ‘Von der ewigen Geburt’, elas, seria virgem sem que essas imagens me
op. cit. Jacques Benoît, afectassem de modo algum. Se eu guardasse todas
763
Jörg Jungmayr, ‘Catharina van Siena’, em J. Thiele,
765
De minne is al, 228/229 e Catharina J. M. Halkes, ‘Ca- Op. cit. Meester Eckhart: Eeuwigheid en Stilte,
tarina van Siëna – “Ik ben bloed en vuur”… em Luise Heemstede 1992.
766
Schottroff e Johannes Thiele (coord.), Met passie over Op. cit. Karlfried Graf Dürckheim no seu posfácio
God spreken, 80-100. Ver também Michael de la Be- ‘Ter nagedachtenis aan Erika Albrecht’ em Erika Al-
doyère, Catharina van Siëna. brecht, Meester Eckhard.
764 767
Eckhart, Rede der onderscheiding, 6, op. cit. R. De- Eckhart refere-se a Lc. 10:38. O seu tratamento do
meyer, A. Hoste e C. Wagenaar, Pelgrim naar de bron- texto é bastante livre porque o experimenta interior-
nen, 239. mente.
essas imagens na minha inteligência de tal modo que próprio Deus. A virgem-mulher produz esse fruto e es-
no meu fazer e deixar, tanto no que diz respeito ao se nascimento e fá-lo todos os dias centenas ou milha-
passado como no que diz respeito ao futuro, não res de vezes, sim, vezes incontáveis ela é fértil e fru-
actuasse como se alguma dessas imagens fosse minha e tuosa a partir de um solo nobilíssimo. Melhor dito ain-
estivesse no momento actual livre e vazio ante a da: na verdade, ela é frutuosa e fértil a partir do mesmo
vontade de Deus para a cumprir continuamente, seria solo de onde o Pai engendra a sua palavra eterna. 768
verdadeiramente virgem, sem que todas essas imagens
me afectassem de modo algum, exactamente como era Mestre Eckhart não vê Deus apenas como um
antes de existir. Digo mais: o facto de o homem ser
virgem não lhe tira nada das obras que já fez. Mas elas
Pai de tudo, Ele é também Mãe de tudo:
deixam-no virgem e livre ante a verdade suprema, sem
qualquer constrangimento, do mesmo modo que Jesus É Pai porque, enquanto criador, é causa de todas as coi-
está livre e vazio e é virginal em si mesmo. Os mestres sas. E é também Mãe de todas as coisas, pois como o
dizem que apenas o ‘igual e o igual’ são fundamento criado recebe Dele a sua essência, Ele fica ligado es-
para a unificação, por isso o homem tem de ser virgem sencialmente à criatura. Se Deus não permanecesse no
para receber o virginal Jesus. criado depois de este ter recebido Dele a sua essência,
Prestai atenção e ouvi bem! Se fosse sempre virgem, o não poderia deixar de acontecer que a criatura perdesse
homem não daria fruto. Para que dê fruto, é necessário rapidamente a sua essência. 769
que ele seja mulher. ‘Mulher’ é o nome mais nobre que
se pode dar à alma, muito mais nobre que ‘virgem’. É A unificação, que era um ponto tão central no
bom o homem receber em si Deus, e nessa receptivida- ensinamento de Jesus e que teve tanto eco no
de, ele é virgem. Porém, é melhor se Deus se tornar fe-
cundo nele. Pois a frutificação das dádivas é já gratidão
cristianismo espiritual dos dois primeiros sé-
pelas dádivas. E o espírito é mulher na gratidão frutifi- culos, é um conceito que surge repetidamente
cante onde Jesus frutifica no coração paterno de Deus. em Eckhart.
Muitas boas dádivas são recebidas em virgindade, mas
não voltam a nascer em Deus em fertilidade feminina e O nosso Senhor suplicou ao Pai que fôssemos um Nele
com um louvor de gratidão. Essas dádivas apodrecem e e com Ele 770, e não apenas que nos reuníssemos. Para
desaparecem todas, de modo que com elas o homem compreender estas palavras e a sua verdade, volto ao
nunca se torna mais feliz ou melhor. A sua virgindade exemplo do fogo e da madeira. Quando o fogo faz o
não lhe serve então para nada, pois acima da sua vir- seu trabalho e faz a madeira inflamar-se e arder, esta é
gindade ele não é uma mulher em plena fertilidade. Aí consumida pelo fogo e perde a sua essência. Aspereza,
está o mal. Por isso disse: ‘Jesus subiu a uma cidade e frio, humidade e peso desaparecem e a madeira dissol-
foi recebido por uma virgem que se tinha tornado mu- ve-se em fogo. Nem o fogo nem a madeira alcançam
lher’. Isso era necessário, como vos expliquei. repouso, quietude e satisfação antes de o fogo se en-
Os casais quase nunca dão mais do que um fruto por gendrar a si mesmo na madeira e lhe comunicar a sua
ano. Mas agora tenho em vista uma espécie diferente natureza e a sua essência: assim se torna tudo num uni-
de ‘casal’: todos os que se ligaram, em proveito pró- co fogo, ambos semelhantes, sem qualquer diferença.
prio, à oração, ao jejum, à vigília e a toda a espécie de Mas antes há: fumo, luta intestina, estalos, violência re-
exercícios e castigos exteriores. Chamo um ano a qual- petida. Mas quando toda a desigualdade é banida e de-
quer apego egocêntrico a seja que obra for que vos tire posta, o fogo tranquiliza-se e a madeira cala-se. 771
a liberdade de estardes à disposição de Deus neste pre-
sente actual e de o seguides, livres e novos a cada mo-
mento, na luz com que ele vos dá indicações para o
É maravilhosa a linguagem imagística, que
vosso fazer e deixar, como se não tivésseis, quisésseis tem um efeito tão esclarecedor. Vemos isso
ou pudésseis outra coisa. Chamo um ano a qualquer intensamente num fragmento de sermão que
apego egocêntrico ou a qualquer obra empreendida que trata de novo da unificação, de tornar-se no
vos tire essa liberdade sempre nova. Pois a vossa alma próprio Filho. São notáveis os paralelos com
não dá nenhum fruto sem ter feito a obra que iniciastes
em proveito próprio. Fazendo-o, não tendes confiança
o cristianismo muito primitivo, tal como
nem em Deus nem em vós próprios, apenas fazeis o quando o autor do Evangelho de Filipe excla-
trabalho de que vos encarregastes em apego egocêntri-
co, de contrário não tendes paz. Por isso, também não
dais frutos, fizestes o vosso trabalho. Considero isto 768
Eckhart, Predigten, op. cit. Blommestijn e Maas,
um ano e o fruto é pequeno, porque provém de trabalho Kruispunten in de mystieke traditie, 41-43. Há uma pri-
feito em apego egocêntrico e não em liberdade. morosa edição holandesa dos sermões de Eckhart: F.
Chamo ‘casal’ a essas pessoas porque se encontram em Maas, Van God houden als van niemand. Ver também
apego egocêntrico. Dão poucos frutos, e pequenos, ain- J. Quint, Meister Eckhart.
da por cima, como já disse. 769
Eckhart, Spreuken 41, op. cit. Gundolf Gieraths,
Uma virgem que é uma mulher, livre e sem ligações, Rijnlandse mystiek, 69.
sem apegos egocêntricos, está continuamente tão perto 770
Jo. 17:22.
de si mesma como de Deus. Dá muitos frutos e eles 771
Eckhart, extraído de Das Buch der göttliche Trös-
não são diminutos: são nada mais nada menos do que o tung, op. cit. Benoît, 67/68.
ma que todos os cristãos se podem tornar um ritual em Deus. Esse arquétipo não é apenas racional, é
Cristo. razão pura. 775

Mas muitas pessoas queixam-se de que não sentem ne- Mestre Eckhart foi processado pelas autorida-
nhuma animação interior, nenhuma atenção piedosa, des eclesiásticas (inquisição) devido às suas
nenhuma sensibilidade ou consolo particular de Deus. afirmações; sob grande pressão espiritual,
Tais pessoas enganam-se redondamente; podíamos fi- achou sábio retirar tudo. 776 Mas séculos mais
car por aqui, mas é melhor continuar. Digo-vos em ver-
dade: enquanto se erguer em alguém algo que não seja
tarde ressoa ainda o eco da sua mística no Pe-
a palavra eterna ou que não provenha da palavra eterna, regrino Querubínico de Angelus Silesius.
por muito bom que seja, essa pessoa ainda não é verda-
deiramente justa. Por essa razão, só é justo quem ani- Sou tão grande como Deus, Deus tão pequeno como
quilou todas as coisas criadas e se voltou directamente, eu,
sem olhar para fora, para a palavra eterna, e nela se for- Ele não pode estar acima de mim, nem eu abaixo dele.
mou e reformou na justiça. Tal pessoa recebe onde o
Filho recebe e é o próprio Filho. Um texto da escritura Deus é fogo em mim, eu sou Nele brilho,
diz: ‘Ninguém conhece o Pai a não ser o Filho’ 772 e por portanto temos de ter muito em comum.
isso: se quiserem conhecer Deus, devem ser não apenas
iguais ao Filho, mas o próprio Filho. Antes de existir aqui, eu existia na vida de Deus:
Mas muitas pessoas querem olhar para Deus com os por isso, Ele deu-se inteiramente por mim.
mesmos olhos com que olham para uma vaca, e que-
rem gostar de Deus como gostam de uma vaca. Gosta- No mar é tudo mar, mesmo as gotas mais pequenas:
se das vacas por causa do leite e do queijo e por inte- quem é um santo em Deus, não será o próprio Deus?
resse próprio. É o mesmo que fazem todos os que gos-
tam de Deus por causa da riqueza exterior ou do conso- Deus ama-me mais que a Si: que eu O ame mais que a
lo interior: não gostam autenticamente de Deus, gostam mim,
do seu interesse próprio. Sim, digo conformemente à assim não Lhe dou mais, do que Ele a mim me dá.
verdade: tudo aquilo para que dirijam o vosso esforço e
não seja Deus em si mesmo, nunca pode ser tão bom Se Cristo nascer mil vezes em Belém
que não seja um obstáculo para a verdade superior. 773 mas não em ti: estarás perdido mesmo assim. 777

Num outro sermão, Eckhart suspira: Cristo Jesus apelou a que se amasse o próxi-
mo como a si mesmo. Eckhart refere-se a isso
Oiço muitas pessoas dizer: reza por mim. E às vezes num profundo sermão:
penso: por que é que procuram fora de si e não tiram
proveito das suas próprias posses? Com efeito, traze- Se vos amais a vós mesmos, amai todos os homens co-
mos em essência toda a verdade em nós. 774 mo a vós mesmos. Enquanto amardes um único
homem menos do que a vós mesmos, ainda não tendes
E ainda noutro sermão, ele explica: verdadeiro amor, pois não amais todos os homens
como a vós mesmos, num homem todos os homens: e
Com isto quer-se explicar que temos de ser um filho esse homem é Deus e homem. Está tudo bem com o
único, engendrado pelo Pai na eternidade. Quando o homem que se ama a si mesmo e a todos os homens
Pai criou todas as criaturas, criou-me a mim e eu ema- como a si mesmo; está mesmo tudo bem com ele. Mas
nei com todas as criaturas e permaneci contudo no inte-
rior do Pai. Exactamente como as palavras que estou a 775
Eckhart, Predigte, op. cit. Blommestijn e Maas, 55.
dizer: elas surgem em mim, depois detenho-me a ima- 776
Em viagem para Avignon, onde pretendia pedir ao
giná-las, em terceiro lugar digo-as e todos as ouvem;
papa para ser reabilitado, faz a seguinte declaração na
mas em sentido real, elas permanecem em mim. Assim,
igreja dominicana de Colónia, no dia 13 de Fevereiro
fiquei eu também no Pai. No Pai estão os arquétipos de
de 1327: ‘Encontrando-se um erro no ensinamento mo-
todas as criaturas. Este púlpito tem um arquétipo espi-
ral e de fé que eu escrevi, disse ou preguei, em segredo
ou abertamente, onde quer que tivesse sido e fosse
quando fosse, directa ou indirectamente, seguindo um
772
Mt. 11:27. ensinamento menos são ou falso, então, na presença de
773
Eckhart, Predigten, op. cit. Blommestijn e Maas, todos vós e de cada um em particular, declaro que a
30/31. partir deste momento quero considerá-lo como não dito
774
Eckhart, Predigten, op. cit. Benoît, 91. Séculos mais e não escrito, tanto mais que me chega aos ouvidos que
tarde, encontramos em Jakob Lorber a frase de Jesus: fui mal compreendido’ (op. cit. Gerhard Wehr na sua
‘Quando me procurardes, tendes de me procurar em introdução a Meester Eckhart: Uit stilte geboren).
777
vós e não nos outros. Pois pode ser procurado ao longe Angelus Silesius, O Peregrino Querubínico, op. cit.
aquele que habita continuamente em vós e vos espera?’ Jacques Benoît, Angelus Silesius, resp. 37, 39, 41, 59,
(Himmelgaben, I, 408). 73 e 81.
alguns dizem: gosto mais do meu amigo que me faz gnificantes, e de valor muito temporário. As
bem do que de outros homens. Isto não está bem: é catedrais foram construídas como monumen-
imperfeito. Mas também é verdade que algumas
pessoas navegam no mar com vento fraco e mesmo
tos à eternidade e deviam ao mesmo tempo
assim chegam ao destino. Acontece o mesmo com as ilustrar a força da fé. 781 Os construtores são
pessoas que amam mais uns do que outros; é natural. quase sempre anónimos; as obras de arte não
Mas se eu amar alguém tão sinceramente como me eram assinadas.
amo a mim, tudo o que lhe acontecesse de alegria e Isso muda na época geralmente designada por
desgraça, mesmo a vida e a morte, seria como se me
acontecesse a mim; isto seria amizade autêntica. 778
Renascimento. O ‘renascimento’ implica nes-
te caso que o homem se apoia num nascimen-
Mestre Eckhart, e, felizmente, muitos místi- to anterior considerado muito mais grandioso
cos com ele, ainda experimentava no coração e brilhante do que a época que se estava a en-
o saber puro, a gnose, que não é apenas trans- cerrar. Esse nascimento anterior é a cultura
mitida exteriormente de mestre a discípulo e antiga. Os artistas, sobretudo, começam a
brota também da fonte mais intrínseca que há: apreciar as majestosas construções (ou o que
o próprio coração. Não há poder que possa er- delas restava) do período greco-romano. A
guer-se contra este verdadeiro misticismo. partir desta concepção básica, passou-se à re-
criação. 782 Não só na arquitectura, mas tam-
bém numa multiplicidade de outos domínios,
procurou-se a autenticidade, as fontes. Nisso,
12. Um Renascimento varie- o homem tornou-se a medida de todas as coi-
gado sas 783, para usar uma expressão do filósofo
grego Protágoras. Eram humanistas os que
O novo impulso mergulhavam na investigação da origem das
coisas. Eles não se contentavam com as fábu-
Na Idade Média, o homem estava fortemente las transmitidas, com as traduções carcomidas
orientado para a vida depois desta vida. A vi- pelo passar do tempo feitas para um latim que
da terrestre era um vale de lágrimas e servia se ia tornando quase ilegível, com cópias de
como preparação para a impiedosa chegada cópias de cópias: eles procuravam afincada-
da morte. Memento mori (tem em mente a mente as próprias fontes. Do mesmo modo
morte) é a chamada divisa do homem medie- que os artistas plásticos se inspiravam na arte
val. 779 Nesta época, havia também uma cons- dos antigos, os humanistas debruçavam-se so-
ciência colectiva 780; a vida enquanto porta de bre os textos transmitidos mais antigos e exa-
entrada da morte deixava pouca margem à in- minavam criticamente não só esses textos co-
dividualidade. Pois vistos à luz da eternidade, mo também aqueles a que eles tinham dado
os actos do indivíduo eram pequenos e insi- origem, descobrindo no processo que não
poucas incorrecções se tinham infiltrado nos
textos durante o processo de cópia. Até nos
778
Eckhart, Predigte, op. cit. Blommestijn e Maas, 67. textos bíblicos. Desiderius Erasmus, de Roter-
779
Ver sobre isto Philippe Ariès, L´homme devant la dão, usava a tradução latina das obras de Orí-
mort. Nessa obra, o autor afirma entre outras coisas
que o memento mori não é um fenómeno típico da genes para ganhar acesso ao significado místi-
Idade Média tardia, como se aceita com frequência, e é
781
antes um tema que aparece em toda a Idade Média e Ver sobre isto sobretudo Georges Duby, Le Temps
também em épocas posteriores; são provas disso as des Cathédrales. Jan Hendrik van den Berg afirma em
danças macabras e, por exemplo, a famosa pintura O Metabletica van de materie I que o esforço por conse-
triunfo da morte de Breughel, o Velho, datada de 1562 guir altura expressa-se não só na arquitectura gótica,
(Prado, Madrid). como também na românica; mais ou menos a partir do
780
Jacob Burckhardt, o lendário historiador cultural fa- ano 1000 DC, a época do aumento do poderio da igre-
la no seu famoso estudo Die Kultur der Renaissance in ja. Duby vê um paralelo entre o poder claramente cres-
Italien, da ‘consciência humana, que se encontrava ain- cente do poder temporal (real) e o surgimento do
da num estado de sonho, apenas semi-acordada sob um gótico no século XII.
782
véu de comunitariedade... O homem estava consciente Ver, entre outros, Peter Burke, The Renaissance e
de si apenas enquanto membro de uma raça, de um po- De Italiaanse Renaissance.
783
vo, de uma facção, de uma família ou de algum outro Ver também o capítulo ‘O Homem – medida de
laço aglutinador’ (parte I, capítulo 2: Ontwikkeling van todas as coisas De mens – de maatstaf aller dingen’ em
het individu). Kenneth Clarke, Civilisation.
co da Bíblia. 784 O humanista italiano Lorenzo pouco depois de ser libertado. O sucessor,
Valla descobriu que a Donatio Constantini, Clemente V, era francês e acedeu em grande
sobre a qual se baseava grande parte do poder parte aos desejos de França; estabeleceu-se,
territorial do papa, era uma falsificação ordi- não em Roma, mas em Avignon. Entre 1309 e
nária. Por incumbência do príncipe Cosimo de 1377, Avignon conheceu sete papas, no que
Medici, Marsilio Ficino traduziu não só as foi conhecido como o Cativeiro de Babilónia.
obras do ‘divino’ Platão como os tratados de Quando, por fim, Gregório IX, em grande
Hermes Trismegistos. O seu conterrâneo Pico parte devido às pressões exercidas sobre ele
della Mirandola ganhou notoriedade muito por Catarina de Siena, decidiu transferir-se
precocemente com uma obra extremamente para Roma, as dificuldades não acabaram. Foi
profunda ‘sobre a dignidade do homem’. 785 É nomeado um anti-papa, Clemente VII, que se
como se neste período de algumas décadas a aninhou em segurança em Avignon, e assim, a
auto-consciência crescesse quase despropor- cristandade passou a poder escolher entre dois
cionadamente. Os artistas assinavam as suas papas, de acordo com as suas preferências po-
criações e retratavam o ‘novo homem’, não líticas ou espirituais. Este assim chamado cis-
recolhido, como nos séculos anteriores, mas ma do ocidente em breve provocou grande in-
com ardente auto-confiança. O memento mori dignação e no centro teológico da época, Pa-
foi substituído pelo carpe diem (aproveita o ris, foi feita a exigência de um concílio geral
dia). É como se o homem descobrisse o seu para defrontar as dificuldades. Esse concílio
‘eu’. Saía-se com toda a força dos padrões an- reuniu-se em Pisa, em 1409. E trabalhou sem
tigos, como a serpente sai da pele antiga. O delongas: depôs os dois papas existentes (o de
horizonte humano ampliou-se; também em Roma e o de Avignon) e nomeou um novo.
sentido geográfico, pois foi nessa época que Mas os papas anteriores não aceitaram esta
Colombo chegou à América, viagem a que se nomeação e, de repente, passou a haver três
seguiriam ainda muitas descobertas. papas. Só no concílio de Konstanz (1414-
1418) é que se encontrou uma solução e o cis-
Esta nova era não pôde deixar de ter conse- ma de ocidente acabou. Graças à acção do
quências para a igreja. Durante muito tempo, movimento conciliário, que queria que o po-
esta tinha conseguido reprimir todas as opi- der estivesse nos concílios e não na cúria, o
niões desviantes e conservar o monopólio da papado começou a decompôr-se, não sem a
vida diária. Não só não havia salvação fora da ajuda dos rebentos amorais de alguns mem-
igreja, como também praticamente não havia bros da casta da Santa Sé, tais como Inocên-
vida possível fora da igreja. E isso apesar da cio VIII, Júlio II, e sobretudo, Alexandre VI
grande crise em que o papado se encontrava Bórgia, o infame pai de César e Lucrécia. 786
desde o século XIV. Seguindo Inocêncio III, o Quanto ao conteúdo da fé, nessa época os im-
papa Bonifácio VIII tentou passar a ideia de pulsos vinham, não de Roma ou de Avignon,
um ‘governo de Deus’, de uma teocracia, na mas principalmente de Paris, devido aos teó-
terra, através da bula Unam Sanctam, na qual logos da escolástica que lá ensinavam. Entre
exigia para si como papa as duas espadas, das eles, Tomás de Aquino é não só o mais co-
quais a temporal poderia ser concedida, após nhecido como o mais importante para a histó-
longa reflexão da sua parte. O rei de França ria da igreja; uns bons seiscentos anos depois
opôs-se, mas a bula de excomunhão nunca da morte de Tomás de Aquino, o tomismo foi
veio. Bonifácio levou um murro de um fun- elevado em 1879 à categoria de doutrina ofi-
cionário do rei de França, foi preso e morreu cial da igreja católica. 787
Tomás, que estava fortemente influenciado
784
Ver André Godin, Erasme; lecteur d’Origène. pelas obras de Aristóteles, fazia uma distinção
785
Pico della Mirandola, De dignitate hominis (tradu- clara entre saber e crer. Podia-se saber que
ção holandesa, por exemplo J. Hemelrijk, Giovanni Pi-
co della Mirandola e Concordia:Over de menselijke
786
waardigheid). Ver também K. Schuhmann, ‘Giovanni Encontra-se um retrato cativante dos envenenamen-
Pico della Mirandola en het Hermetisme. Van medes- tos, incestos, abusos de poder e outros crimes destes
tander naar tegenstander’ em G. Quispel (coord.), A Bórgias em Marion Johnson, The Borgias.
787
Gnose Hermética no decorrer dos Séculos De Her- Sobre os fundamentos disto, ver P. Thibault, Savoir
metische Gnosis in de loop der eeuwen, 311-338. et pouvoir.
existia um reino da realidade, da verdade, or- que quem tem de cuidar de tudo tem de per-
denado por leis. 788 Podia-se adquirir esse co- mitir o mal para que tudo possa funcionar
nhecimento a partir do pensamento objectivo. bem. 792 Ele segue a linha exposta por Agosti-
Tomás rejeitava o pensamento subjectivo, on- nho na sua doutrina da predestinação e afirma
de se parte do princípio de que tudo o que é que esta concepção do bem e do mal implica
cognoscível se forma no espírito humano, e é, que há homens que alcançarão o objectivo,
portanto, subjectivo. Segundo Tomás, o co- mas que a maior parte não o conseguirá. 793 O
nhecimento era objectivo, e portanto, verda- homem faz parte de um colectivo, de uma so-
deiro. Mas, argumentava ele, acima desse rei- ciedade, de um estado.
no de conhecimento filosófico-metafísico que
pode ser conhecido, há algo como uma ‘ver- É impossível que o homem seja bom, a menos que se
dade sobrenatural’. Que não pode ser conheci- encontre em relação correcta com o bem estar geral. 794
Quanto mais o bem estiver voltado para o bem estar
da, é preciso crer-se nela. Segundo Tomás, geral, tanto maior é o seu valor. 795
pertenciam a essa verdade conceitos como a
trindade, a encarnação e a ressureição. A exis- Como dissémos, o pensamento de Tomás de
tência de Deus é também cognoscível em pri- Aquino teve uma grande influência na teolo-
meira instância por meio da inteligência. E ele gia do fim da Idade Média e dos séculos que
dá cinco ‘provas’ dela, como a afirmação de se lhe seguiram. A prudente oposição de Duns
que se alguma coisa se move tem de haver um Escoto 796 e a oposição bastante mais ardente
‘motor primeiro’ e se há efeitos de causas tem de William of Ockham 797 pouco puderam al-
de haver também uma prima causa, uma cau- terar este facto. Mais perigosa para a igreja foi
sa primeira. 789 Mas, diz Tomás, para lá destas a crítica de John Wyclif, que, apoiando-se na
provas, que são cognoscíveis, Deus 790 não é Bíblia, chegou à convicção de que o poder de
compreensível; é também necessária fé: Deus não é igual ao poder da igreja, a qual se
arrogava falsamente esse poder. Depois de o
Daí que, quando abordamos Deus à maneira do afasta-
mento, começamos por lhe negar as características cor-
seu ensinamento ter sido condenado, houve
porais, e depois negamos-lhe as espirituais, tal como uma segunda condenação no concílio de
elas se encontram nas criaturas – por exemplo bondade Konstanz, de que resultou que o corpo desse
e sabedoria; e então, na nossa inteligência fica apenas erudito já falecido em paz foi desenterrado e
que ele é, e nada mais; ele é então como que uma inde- queimado. O mesmo castigo foi dado a Johan-
terminação. E por fim, retiramos-lhe também esse ser
semelhante ao que se encontra nas criaturas e então, ele
nes Hus, da Boémia, com a diferença que ele
fica numa escuridão de não-saber. É nessa escuridão do ainda estava vivo e antes da sentença houve
não-saber que, no que diz respeito a esta vida, nos liga- inúmeras torturas e audiências; tudo isso, no-
mos da melhor maneira a Deus, tal como diz Dioniso. te-se, durante o concílio de Konstanz, para o
E esta é a nuvem obscura onde se diz que Deus habi- qual tinha recebido um salvo-conduto com o
ta. 791

792
Para Tomás, o mal está ao pé de Deus mas Summa Theologiae I, q.23, a.2.
793
não é de Deus. Ele explica que quem só tem Ver sobre isto, J. B. M. Wissink, ‘Providentie, pre-
de cuidar de uma coisa tenta evitar o mal, mas destinatie en praktijk’ em De praktische Thomas, 74-
88.
794
Summa Theologiae I.II, q.92, a.1, ad 3.
788 795
Summa Theologiae I, q.82, a.2. Summa Theologiae I.II, q.141, a.8.
789 796
Summa Theologiae I, q.2, a.3. Duns Escoto (John Duns Scotus) afirmava, por
790
Em Le chemin de la théologie chez Thomas exemplo, que o homem é totalmente livre de não
d’Aquin, M. Corbin diz que, em Tomás, Deus é, não o aceitar a revelação.
797
‘deus aristotélico’, mas o deus JHWH. Este é também Segundo William of Ockham, o homem tem a pos-
claramente o caso de Duns Escoto, que escreve na pro- sibilidade de ‘conhecer’ Deus, e ‘Deus pode ser dife-
posição 11 da sua obra De primo principio: ‘Tu és renciado como três e um, e pode ser conhecido pelo
Deus, para além do qual não há qualquer outro, tal co- menos abstractamente’ (William of Ockham, Scriptum
mo disseste pelos profetas’ (op. cit. Duns Scotus, Het in librum primum Sententiarum: ordinatio, 5). ‘O
eerste beginsel, na tradução de W. A. M. Peters, 84). objectivo final do homem é contemplar Deus, e a sua
791
Tomás de Aquino, Scriptum I, d.8, q.1, a.1, ad 4, op. inteligência pode fazê-lo no além: Deus dotou-nos
cit. Herwi Rikhof, ‘Voorzichtig spreken over God. Een assim nesta vida’ (William of Ockham, Evidente kennis
lezing van enkele questiones uit de Summa Theolo- en theologische waarheden, na tradução de E. P. Bos,
giae’ em De praktische Thomas, 57-74, 73 (nota 19). 14).
objectivo de poder defender as suas concep- ra declarações. Lutero recusou-se a ir e foi
ções; mas como ele era herético, não era pre- apoiado nessa decisão pelo príncipe eleitor
ciso cumprir a palavra dada. 798 A sua pergun- Frederico. Uma coisa assim seria impensável
ta recorrente sobre se os membros do concílio um século antes. E portanto, o cardeal Caeta-
conseguiam demonstrar o seu erro com base no foi a Augsburg para aí ouvir Lutero. Este
na Bíblia ficou sem resposta. Alguns anos recusou-se a retratar-se fosse do que fosse e
mais tarde, o mesmo destino atingiu o seu difundiu os seus pensamentos com a regulari-
apoiante Jerónimo de Praga. dade de um relógio em brochuras impressas
Uma grande parte da Boémia checa era posse que depressa fizeram o seu caminho.
da igreja. O arcebispo de Praga necessitava de
nada mais nada menos do que um terço de to- Em 1521, Lutero foi banido, mas pôde ainda
dos os impostos eclesiásticos dos seus domí- fazer a sua defesa perante o imperador Carlos
nios para aumentar o seu prestígio. Johannes V em Worms. Como também nessa ocasião
Hus ergueu-se não só contra isso, mas tam- não tinha a menor intenção de retratar-se de
bém contra ‘as omissões dúbias e en- nada, foi sujeito também ao desterro imperial.
ganadoras de um papa moderno’. 799 Lutero O príncipe eleitor levou-o para Wartburg ao
erguer-se-ia um século mais tarde contra o pé de Eisenach, onde em tranquilidade e sos-
mesmo sistema. Mas enquanto que Johannes sego pôde trabalhar em muitas obras e tam-
Hus estava na Idade Média, Lutero era um fi- bém numa tradução do Novo Testamento do
lho da sua época, do Renascimento. Não se grego para alemão.
podia impedir mais uma irrupção. Além disso, Algo tinha sido posto em movimento. Lutero
havia um facto de uma importância muito queria desviar o sacerdócio geral da igreja de
grande: tinha sido entretanto inventada a im- poder para os fiéis. Mas os fiéis eram para ele
prensa. mais os poderosos seculares, que ele apelou a
que interviessem para melhorar o estado da
igreja, do que os cidadãos livres. Muitos dos
Concepções contraditórias em seus seguidores queriam, porém, ir mais longe
Wittemberg e Zurique do que ele. Irromperam pequenas revoltas
aqui e ali e em algumas igrejas foram as ima-
Lutero nasceu a 10 de Novembro de 1483, em gens que pagaram. Thomas Müntzer renovou
Eisleben. Aos vinte e dois anos e idade entrou tão radicalmente o culto com orações e cantos
contra a vontade do pai para os eremitas agos- de sua autoria, e tudo isso na língua nacional,
tinhos. Dois anos mais tarde foi consagrado que ele deixou de se parecer com o culto ante-
padre e no ano seguinte foi enviado para Wit- rior. Thomas pôs-se também atrás da revolu-
tenberg para ensinar e pregar. Lutero tinha um ção camponesa que estalou no sul da Alema-
grande sentido de missão em relação à sua do- nha em 1524. Os revoltosos apoiavam as suas
cência e entrava regularmente em conflito in- exigências sociais na Bíblia e na liberdade dos
terior em relação à harmonização das expres- cristãos proclamada por Lutero. Mas isso era
sões bíblicas com a prática da igreja, que se o que Lutero menos precisava. Todos deviam
baseava principalmente na teologia escolásti- obedecer à autoridade querida por Deus e ele
ca. Ele achava, por exemplo, um erro dizer-se apelou aos líderes seculares para que repri-
que ‘sem Aristóteles’ não se podia ser um missem a revolta dos camponeses. Estes não
bom teólogo. E entabulou também, entre ou- ofereceram qualquer resistência quando foram
tras, com as famosas proclamações de 1517, a dizimados em 15 de maio de 1525 pelos exér-
luta contra o comércio de indulgências; embo- citos do príncipe. 800
ra essa luta fosse mais dirigida contra os co- A reforma luterana não veio, pois, de baixo.
merciantes que agiam livremente do que con- Com o tempo, apareceram ‘igrejas nacionais’
tra a própria Roma. Mas Roma chamou-o pa- apoiadas pelos príncipes que eram completa-
mente independentes de Roma. Por volta de
798
Ver Alfred C. Bronswijk, Hervormers, ketters en re-
800
volutionairen. Sobre o comportamento de Lutero face à revolta
799
Op. cit. Pierre Chaunu (coord.), De Reformatie (edi- camponesa ver M. Ruppert, Luther en de boerenop-
ção holandesa S. Groeneveld e S. B. J. Zilverberg, 59. stand.
1540, podia-se já falar de igrejas estatais na uma vez que consideravam inválido o seu pri-
Suécia, na Noruega, na Dinamarca e na Islân- meiro baptismo em crianças. Isto era demais
dia. para Zwingli, que não muito tempo depois se-
O suíço Huldrych Zwingli, de carácter mais ria abatido como esmolador de campo na luta
pacifista, que se opôs fortemente ao uso de entre os cantões de pendente reformista e os
soldados que se alugavam a quem pagasse seus colegas conservadores. Os rebaptizado-
mais 801, começou ao mesmo tempo que res foram ferozmente perseguidos, pelas auto-
Lutero uma reforma na sua própria cidade de ridades católicas, naturalmente, mas também
Zurique. Tal como Lutero, também fez um – e isso era novo – pelas autoridades protes-
certo número de proclamações que doram tantes; e em 1527 foi pronunciada a primeira
aceites pelo conselho da cidade de Zurique. sentença de morte.
Essas proclamações eram uma reacção a Em 1534, os predicadores e os governantes de
protestos do bispo de Konstanz, de que Zürich uma Münster de pendente reformista foram
dependia. Zwingli discordava de Lutero num convencidos pelas ideias algo radicais do pa-
certo número de pontos. Por exemplo, nos deiro baptista de Haarlem Jan Matthijs, que
decénios que se seguiram houve material de fundou na cidade da Vestfália uma espécie de
sobra para discussões sobre a interpretação ‘cidade de Deus’. Havia completa comunida-
literal de Lutero sobre a presença de Cristo na de de bens e, segundo os usos do Antigo Tes-
hóstia dada na eucaristia. Zwingli mudou ‘isto tamento, poligamia 804. O próprio Jan foi aba-
é o meu corpo’ em ‘isto representa o meu tido numa saída contra as tropas sitiantes, mas
corpo’. Na proclamação 18 declarava: outro Jan, o alfaiate Jan Beukelsz, de Leiden,
tomou o seu lugar. Teve uma morte martirial
que Cristo, que se tinha sacrificado a si mesmo uma horrorosa depois da conquista da ‘cidade de
vez, é um sacrifício eternamente activo e reconciliador Deus’ em 1535.
para os pecados de todos os fiéis. Daí se conclui que a
missa não é o sacrifício, é uma comemoração do sacri-
Depois destes acontecimentos turbulentos, os
fício... 802 grupos baptistas, sempre atreitos a persegui-
ções, passaram a trabalhar mais em silêncio.
Também no que diz respeito ao papel dos go- Sob a direcção do pastor de Witmarsum Men-
vernantes, Zwingli, bastante desprezado por no Simons 805, o movimento cresceu
Lutero, discordava deste último. Enquanto fortemente e desenvolveu sinais que davam
Lutero clamava por uma absoluta confiança muito nas vistas, como a rejeição de armas 806,
nos governantes instalados por Deus, Zwingli
achava que eles podiam ser depostos se fos-
sem infiéis e ‘actuassem fora das directrizes determinava nas suas Christianae religiones institutio
de Cristo’. que ‘Cristo tinha dado à igreja o baptismo e a santa
ceia’ (54). O baptismo era o baptismo de crianças. Ver
Foi também de Zurique que partiu o impulso também Alexandre Ganoczy, Einführung in die
para os rebaptizadores ou anabaptistas. Eram katholische Sakramentenlehre, p. 21-24 e ainda M. E.
Brinkman, Schepping en sacrament, sobretudo p. 38-
pessoas que não conseguiam encontrar no No- 60.
vo Testamento referências a um baptismo de 804
Ver S. Voolstra, ‘De roerige jaren dertig’ em S.
crianças e daí concluíam que apenas o baptis- Groenveld e outros (coord.), Wederdopers, Menisten,
mo que se seguisse a uma confissão (adulta) Doopsgezinden in Nederland 1530-1980, p. 10-25. A
era válido 803. Por isso, faziam-se rebaptizar, esperança da chegada para muito breve do reino de
Deus à terra também desempenhou o seu papel. Ver
Albert Mellink, Amsterdam en de wederdopers in de
801
Ver K. M. Witteveen, Het eangelie tussen pacifisme zestiende eeuw, p. 18-20 e L. G. Langsma, ‘De weder-
en geweld dopers in de Nederlanden en Noord West Duitsland
802
Op. cit. G. Stemberger (coord.), De Bijbel en het (1530-1535)’ em L. G. Langsma e P. G. G. M. Schul-
Christendom, parte 2, p. 188. ten, religieuze bewegingen, p. 111-119.
803 805
Lutero reconhecia à igreja no máximo três sacra- Ver I. B. Horst, ‘De strijd om de fundament des ge-
mentos, ‘baptismo, santa ceia e, eventualmente, loofs’ em S. Groeneveld e outros (coord.), Wederdo-
também a penitência’ (W. H. Van der Pol, Het wereld- pers, p. 25-46.
806
protestantisme, p. 69. Sobre ‘eventualmente a Ver S. L. Verheus, ‘Beleden vrede – omstreden vre-
penitência, ver sobretudo C. Riemers, Luther en het de’ em S. Groeneveld e outros (coord.), Wederdopers,
sacrament van de boetvaardigheid). Calvino p. 162-180.
afastamento de qualquer influência estatal e Urizen é a razão, a queda da divindade, o deus
uma forte retirada do mundo. 807 criador.
Na gravura de abertura de Europa (1793),
Urizen é representado como um velho que
Um artista visionário cria o universo com um compasso. Blake cha-
mou a essa figura ‘um velho pai de ninguém’.
O jovem William foi visitado por visões No The Book of Urizen (1794), ele parece-se
desde muito novo. Quando tinha quatro anos muito com o demiurgo gnóstico. Blake via a
viu a cabeça de Deus a olhá-lo pela janela e queda de Urizen, a queda da razão do mundo
por volta dos nove viu uma árvore cheia de espiritual, como um símbolo do pensamento
anjos. 808 Mais tarde diria: dualista do homem, pois exclusivamente de
uma consciência abstractiva mecanicista tinha
Uso o meu olho corporal da mesma maneira como de aparecer a dualidade. As figuras místicas
percepciono através de uma janela o que é visível. de Blake representam forças no homem e ao
Olho através dele, não com ele. 809 seu redor 811, para o que usou o princípio her-
mético ‘o que está em cima é como o que está
Segundo Blake, que além de esplêndidas pin- em baixo’ (ver a Tabula Smaragdina). E a sua
turas também escreveu poemas intensamente expressão é quase platónica:
profundos, a percepção devia acontecer a par-
tir da consciência total. Os sentidos não de- O mundo da imaginação é o mundo da eternidade. É o
viam ser fechados, deviam precisamente ser seio divino onde todos chegamos depois da morte do
abertos. Ele partia de uma compreensão múl- corpo material. Esse mundo da imaginação é infinito e
eterno, enquanto que o mundo da reprodução, da vege-
tipla construída com diversas camadas. As-
tação, é finito e temporário. Nesse mundo eterno exis-
sim, falava de uma compreensão simples, em tem as realidades permanentes de todas as coisas que
que se podia falar de cegueira espiritual, por- vemos apenas reflectidas no espelho da natureza. 812
que trabalhava apenas a partir do olho. Era a
compreensão de um Newton. A compreensão William Blake estava dolorosamente cons-
dupla, manifestava-se pelo olho, não com o ciente do caminho que o homem devia seguir
olho, e partia da percepção de uma realidade através da matéria para se aproximar de Deus,
espiritual atrás da material. Na compreensão mais ainda, para se tornar Deus, Cristo.
tripla, o pensamento manifesta-se numa forma
emocional, aparecendo a sub-consciência co- Deus é homem e vive em nós e nós nele. 813
mo uma força criadora. Na compreensão quá-
drupla é questão de um êxtase místico, em Por isso, a matéria devia ser não negada mas
que Deus, o homem e o mundo se tornam espiritualizada.
unos. 810
Encontramos esta divisão em quatro estratos Tomado por um desejo apaixonado, ele realizou, já
aqui na terra, no seu corpo mortal, uma espécie de nir-
de consciência também na sua ‘mitologia’ dos
vana; todas as suas faculdades, a totalidade da sua per-
chamados Four Mighty Ones ou Zoas: sonalidade, a essência do seu espírito e o seu corpo
Tharmas representa aí o corpo físico, os senti- fundiram-se totalmente nesse estado final imagísti-
dos, a percepção; co... 814
Luva, sob forma degenerada Orc, é o senti-
mento, o desejo e o amor;
811
Urthona, em forma degenerada Los, é a ima- Jos van Meurs faz notar em ‘William Blake en zijn
ginação criadora, a intuição; e gnostische mythen’, (em G. Quispel (coord.), De Her-
metische Gnosis in de loop der eeuwen, 539-579) que
os quatro Zoas correspondem à divisão de C. G. Jung
das quatro funções psíquicas de intuição, pensamento,
807
Ver W. H. Kuipers ‘In de werels, maar niet van de sentimento e percepção sensorial (573).
812
wereld’ em S. Groeneveld e outros (coord.), Wederdo- Alexander Gilchrist, Life of William Blake (2 vol.),
pers, p. 219-240. II, 163.
808 813
Michael Davis, William Blake, 14. G. Keynes (coord.), William Blake: Complete Wri-
809
Alexander Gilchrist, Life of William Blake (2 vol.), tings, 775.
814
II, 176. William M. Rossetti, The Poetical Works of William
810
Ver entre outros, Michael Davis, William Blake, 25. Blake, ‘Prefatory Memoir’, 11.
Blake era um homem feliz. O seu optimismo
pela vida ressoa claramente, apesar do uso No seu leito de morte, recitava em voz alta versos so-
ocasional de uma linguagem sombria, no seu bre o Criador; isso parecia de tal modo celeste aos ou-
vidos da sua mulher Catharina que ficava a ouvi-lo.
magistral Jerusalem, um poema épico de Blake olhou-a com olhos cheios de amor e disse-lhe:
1804 onde tem lugar a reunificação das quatro ‘Amada, não são meus, não, não são meus’. E disse-lhe
faculdades (as zoas). Tal como em Jakob que não se separariam um do outro; ele estaria sempre
Böhme a Sophia é unida a Cristo, Urizen é de ao pé da sua mulher para cuidar dela. Aos versos devo-
novo incorporado no verdadeiro corpo do ‘Je- tos seguiu-se, por volta das seis horas de uma tarde de
verão, uma paragem da respiração calma e sem dor; o
sus da imaginação’ e Albion, metáfora da hu- momento preciso quase passou despercebido à sua mu-
manidade, manifesta-se de novo. lher, que estava sentada ao pé da cama. Uma simples
Blake escreve numa carta que recebeu inspi- mulher da vizinhança, a sua única companhia, disse
ração directa para esta obra grandiosa: mais tarde: ‘não vi a morte de um homem, era a de um
anjo bem-aventurado.’ 819
Escrevi esta obra poética em ditado directo, com doze
ou às vezes vente ou até trinta versos ao mesmo tempo, William Blake viveu na fronteira entre dois
sem reflexão prévia e até contra a minha vontade. 815 mundos. Na Inglaterra do puritanismo, da
moralidade e da severidade lúcida que tudo
Tal como Swedenborg, Blake sentia a compa- parecia empapar, vemos irromper depois da
nhia que lhe era outorgada. Glorious Revolution de 1668 um período ge-
ralmente designado com o nome de Iluminis-
Não me envergonho e também não receio ou evito di- mo. Um iluminismo em sentido material. Era
zer-lhe o que deve ser dito: que estou dia e noite sob a
direcção de mensageiros celestes. Mas a natureza des-
uma liquidação das trevas que imperavam na
tas coisas não é, como alguns supõem, isenta de difi- Europa, Europa que, depois da América, seria
culdades ou preocupações. 816 palco de uma sangrenta revolução. Blake foi
disto uma testemunha à distância.
O homem que nos últimos quarenta anos da
sua vida não foi à igreja tinha uma confiança Uma contribuição importante para o pensa-
em Deus infinitamente profunda. Ele disse mento iluminista foi dada por Isaac Newton
numa conversa: (1643-1727), que expôs a lei da gravitação
nos seus Principia (por extenso Philosophiae
Jesus Cristo é o único Deus, tal como o somos você e Naturalis Principia Mathematica). Antes dis-
eu. 817 so, já tinha ganho renome com teorias pionei-
ras sobre a luz e as cores. Não foi sem razão
No The Eternal Gospel (O Evangelho Eter- que o poeta inglês Pope, ele próprio um filho
no), ele põe Deus a dizer a Cristo: do iluminismo, rimou:
Se te humilhares, humilhas-me a mim. Nature and Nature’s laws lay hid in night,
Também tu permaneces na eternidade. God said ‘Let Newton be!’ and all was light. 820
És um homem. Deus não é mais nada.
Aprende a adorar a tua própria condição de homem,
pois ela é o meu espírito da vida. 818 Mas o que era mais notável era o método que
Newton usava na sua investigação. Ele con-
Neste tranquilizador saber interior, William sistia em:
Blake adormeceu com a idade de setenta a. fazer observações;
anos. b. descrevê-las em termos matemáticos;
c. sugerir uma causa (ou um número tão pe-
queno quanto possível de causas);
815
Carta de 25 de Abril de 1803, op. cit. William M. d. estabelecer a relação entre causa e efeito
Rossetti, The Poetical Works of William Blake, ‘Prefa- por meio de medidas de controle.
tory Memoir’, 41.
816
Alexander Gilchrist, Life of William Blake (2 vol.),
II, 185.
817 819
William M. Rossetti, The Poetical Works of William Alexander Gilchrist, Life of William Blake (2 vol.),
Blake, ‘Prefatory Memoir’, 77. I, 360.
818 820
Op. cit. Tobias Churton, Geschiedenis van de Gno- Op. cit. H. M. Beliën e outros, Een geschiedenis van
sis, 140. Europa 1500-1815, 314.
É um método científico que emana exclusiva- Deus é como um príncipe que tem várias nações no seu
mente da matéria. A este método, em que se reino; todas pagam tributo. E cada uma fala a sua lín-
gua; em diferentes religiões. 822
rejeita de antemão toda a especulação e se
parte exclusivamente da experiência (mate-
Também Hume e Voltaire sugeriram que a
rial), chama-se empirismo.
maior parte do cristianismo podia ser conside-
Newton foi presidente da Royal Society, uma
rada superstição e idolatria. 823A isso, juntou-
academia de ciências fundada em 1662 onde
se ainda a descoberta de terras e de povos, co-
eram proibidas discussões sobre política ou
mo a China, que tinham uma cultura tal que
metafísica!
podia ser comparada com êxito às luzes euro-
Não foi contra a pessoa de Newton, que hon-
peias e que pôs sob uma nova luz o sentimen-
ramos como cientista e como homem, mas
to de superioridade e a doutrina de salvação
contra o sistema, a visão mecanística do mun-
exclusiva do cristianismo.
do, que William Blake se levantou um século
Mas nem sempre o pensamento iluminista se
mais tarde. No seu poema ‘Análise’, incluído
traduzia num ateísmo radical. O grande factor
em Jerusalem, ele interroga-se:
foi sobretudo o deísmo. No deísmo, Deus é
Porque é que queres numerar cada fibrazinha da minha
visto como o criador perfeito que impera, po-
alma rém, autonomamente por meio de leis natu-
e espalhá-las ao sol como quem seca linho? rais. 824 Esta concepção tornou-se cada vez
A alegria infantil é bela, mas a análise mais aceitável para a igreja também ela em
horrível, medonha e mortal. Não encontras nela materialização. Isso teve consequências.
senão negro desespero e uma tristeza que não passa. 821

Num magnífico desenho conservado na Tate


Gallery de Londres vemos Newton desenhado
Romantismo
por Blake de forma quase idêntica à de Uri-
zen, com um compasso; o símbolo de Blake Todos os movimentos provocam um contra-
para a queda na dualidade. movimento. À consciência colectiva e intro-
vertida da Idade Média seguiu-se a ‘personali-
Newton não foi queimado pela igreja devido teitsdrang’ do Renascimento, por sua vez se-
às suas ideias, como tinha acontecido com guido do movimento devocional barroco
Giordano Bruno apenas dois séculos antes. orientado para dentro. Portanto, à racionalida-
Mas a igreja mantinha-se extremamente cépti- de quase auto-sobrestimada do Iluminismo e à
ca. O que é que restava da omnipotência de violência das revoluções, tinha de se seguir
Deus se se demonstrava que o mundo era re- uma reacção de recolhimento; e ela apareceu
gido por leis naturais? A homenagem à razão sob a forma do Romantismo. O homem chega
expressa em todo o lado era uma ameaça para à noção de que pode saber muito, e de que tal-
a fé. Mas essa fé foi considerada pelos con- vez possa explicar tudo, mas não deixa por is-
temporâneos como uma obscura superstição so de estar sujeito às forças da natureza. Mes-
que se desvanecia à luz da saudável inteligên- mo o Iluminismo não tinha tornado o homem
cia. Aos seus olhos, a igreja apenas tinha tra- imortal. E frente ao sentimento de individuali-
zido guerra, perseguição e divisão e estava dade, voltou a haver uma certa predilecção
muito afastada dos princípios humanistas da
822
nova era; da era da ‘liberdade, igualdade e Montesquieu, Pensées diverses, 131.
823
fraternidade’, lema sob o qual a revolução Rudolf Boon, Het christendom op de tocht, 15.
824
O ‘abc do pensamento protestante’ define como
francesa tinha começado. Uma revolução diri- deísmo:
gida contra a classe dirigente e, portanto, tam- ‘Uma concepção corrente sobretudo durante o Ilumi-
bém contra a igreja. Meio século antes, Mon- nismo, segundo a qual Deus criou de facto o mundo,
tesquieu já tinha feito uma comparação entre mas se retirou dele em grande parte e o abandonou a si
a religião e a política: mesmo. As profissões de fé cristãs são reduzidas pelo
deísmo a uma religião “natural” comum para todos os
homens, onde tudo o que é histórico e sobretudo o si-
gnificado salvífico de Jesus perde importância’ (Hans
821
Op. cit. Tobias Churton, Geschiedenis van de Gno- Jürgen Schultz (coord.), Theologie voor niettheologen,
sis, 138. I, 13.
pelo sentimento seguro e quente do colectivo, Face à igreja ‘racional’, surgem movimentos
da Idade Média. Todos estes elementos são de despertar. Pergunta-se em certos círculos,
claramente perceptíveis na arte da primeira onde é que ainda se pode encontrar Jesus?
metade do século XIX. A pequenez do ho- Onde é que ainda se pode sentir o Espírito
mem face às majestosas forças da natureza é Santo? Para quando é que se deve esperar o
representada por um barco que se perde na regresso há tanto tempo esperado de Cristo?
tempestade ou por uma imensa praia a borde- Todas estas perguntas inspiraram líderes espi-
jar um mar infinito onde se vê um pontinho: rituais a encontrarem um cristianismo mais
um homem. Ou esse mesmo homenzinho de- interiormente vivenciável. Nos anos trinta do
senhado como um ponto numa imponente pai- século XIX, Irving, pregador londrino de ori-
sagem montanhosa. O tema da morte é tam- gem escocesa, assumiu o papel de apóstolo; e
bém um fenómeno notável da arte desta épo- também profetas tinham o seu lugar na
ca. As pinturas são ornamentadas com pedras Apostolic Church em separação. 827 Também
tumulares e com ruínas de glórias passadas.825 na ciência bíblica a palavra de ordem era Re-
Há mesmo excêntricos que mandam pôr ruí- gresso às origens, embora em sentido ligeira-
nas nos seus amplos jardins. E na arquitectura mente diferente, pois passou-se a dar atenção
voltam a usar-se modelos medievais, por ao ‘Jesus histórico’, livre do véu que se foi te-
exemplo, sob a forma do neogótico. Sofrer cendo à sua volta com o passar do tempo. 828
com a vida, o aterrador, o estranho, são ele- Foi sobretudo David Friedrich Strauss (1808-
mentos que encontramos também muito clara- 1874) quem afirmou que os evangelhos ti-
mente na literatura desta época. E ao mesmo nham de ser completamente descarnados para
tempo, a revolução industrial prossegue estre- lhes retirar as fábulas e as fantasias em que
pitosa, engendrando ghettos de trabalhadores estão envoltos e sobretudo, o material do anti-
nas grandes cidades e provocando o despo- go testamento que os reveste. 829 Também a
voamento de algumas regiões do interior. In- chamada Tübinger Schule percorreu este ca-
terior esse que irá ser glorificado como uma minho histórico-crítico. Ferdinand Christian
fonte de espaço vital seguro e quente, uno Baur (1792-1860), após teimosa exegese, des-
com a natureza, com a terra, com a vegetação, cobriu que na igreja antiga tinham existido
com os animais, com algo de Deus. vários partidos e que não havia nela qualquer
O contra-movimento é forte se nele se reco- homogeneidade. 830 Baur foi também um dos
nhecerem suficientes padrões do movimento fundadores da investigação dedicada à gnose
anterior. O Renascimento não é uma quebra dos primeiros séculos 831; a sua obra é quase
relativamente à Idade Média. O humanismo sempre vista como o fundamento da moderna
liberal ainda estava impregnado de cristianis- investigação sobre a gnose. O seu archote se-
mo. O humanismo ateísta só surge no Ilumi- ria retomado por Adolf von Harnack e sobre-
nismo. Encontram-se na arquitectura do bar- tudo por Adolf Hingenfeld 832, Wilhelm Bous-
roco fenómenos tipicamente renascentistas e a set 833 e Richard Reitzenstein, que também fez
ciência do Iluminismo apoiava-se em impul- investigação importante sobre as fontes de
sos que tinham sido dados no Renascimento.
E assim, no Romantismo vemos, ao lado de
uma nostalgia de forte coloração emocional
827
dirigida para (uma imagem romanceada de) Ver a dissertação de M. J. Tang, Het Apostolische
uma vida social sincera, um avanço expansivo Werk in Nederland.
828
da ciência materialista e uma industrialização Ver sobretudo Albert Schweitzer, Geschichte der
Leben-Jesu-Forschung (2 vol.).
quase invasiva, ambas sustentadas por uma 829
David Friedrich Strauss, Das leben Jesu; kritisch
visão mecanicista do mundo. 826 bearbeitet 2 vol.)
830
Ferdinand Christian Baur, Kritische Untersuchun-
gen über die kanonische Evangelien.
831
Ferdinand Christian Baur, Die christliche Gnosis
825
Sobre a arte no Romantismo, ver sobretudo William oder die christliche Religions-Philosophie in ihrer ge-
Vaughan, Romantic Art; Hugh Honour, Romanticism; schichtlichen Entwicklung.
832
Jan van der Hoeven e outros, De Romantiek, e Eckart Adolf Hilgenfeld, Ketzergeschichte des Urchristen-
Klessmann, Die Deutsche Romantik. tums urkundlich dargestellt.
826 833
Ver P. N. Stearns, European Society in Upheavel. Wilhelm Bousset, Hauptprobleme der Gnosis.
gnose diferentes da cristã e estudou a influên- res. Ficam assim no tinteiro muitas divisões
cia sobre a gnose das religiões de mistérios. 834 da igreja, frequentemente provocadas por
questões dogmáticas, que tiveram lugar nos
A ciência e a teologia relacionavam-se melhor últimos dois séculos. E mesmo no que diz res-
no lado protestante do que no lado católico, peito a movimentos espirituais exteriores à
onde, tanto quanto possível, a ciência era igreja, só aqui e ali se lhes deu atenção. Pude
mantida de fora. 835 Ao mesmo tempo, o poder percorrer apenas algumas linhas laterais, ten-
temporal do papa era cada vez mais contesta- tando ao mesmo tempo, tanto quanto possível,
do, devido às muitas revoluções sociais e na- esclarecer e não perder de vista a linha geral.
cionais do século XIX. A partir de 1870, o pa- No Epílogo, voltarão a reunir-se muitas pe-
pa tornou-se, nas suas próprias palavras, ‘cati- quenas linhas numa espécie de apoteose final;
vo do Vaticano’. Mas antes disso Pio IX não por causa de considerações literárias, mas
anunciou em 1854 o dogma da immaculata simplesmente porque vivemos numa época
conceptio (concepção imaculada). Desde o apocalíptica.
momento em que foi concebida, Maria tinha Há, porém, um movimento que não quero dei-
estado livre da impureza do pecado original. xar de referir, porque conheceu (e ainda co-
Nem toda a gente se alegrou com este dogma; nhece) uma grande irradiação na consciência
não por causa do conteúdo, que mais não fa- ocidental: a teosofia. Ao fazê-lo, quero, não
zia que retomar algo que já vinha da Idade perder-me na descrição da história de uniões,
Média, mas porque nenhum concílio se tinha sociedades, lojas e outras coisas so género
reunido antes da declaração. Quando se reu- que operavam de modo mais ou menos inde-
niu finalmente um concílio, nos anos de 1869- pendente – e que é de importância secundária
1870, alguns meses antes de os nacionalistas – mas voltar-me para três pontos: a gnose, a
italianos ocuparem Roma e declararem a re- cosmologia e a influência oriental.
pública, foi apenas para poder confirmar a in- Como foi dito mais acima, no século XIX
falibilidade do papa em declarações eclesiásti- houve vários teólogos que se ocuparam de
cas. Os opositores a este concílio formado es- maneira científica com o fenómeno gnose.
sencialmente por italianos partiram antes da Naturalmente que o centro dessa actividade
votação final, com o resultado de que um no- era ocupado pela gnose cristã dos primeiros
vo dogma foi adptado pela esmagadora maio- séculos da nossa era. Essa gnose foi estudada
ria de 533 votos contra 2: o dogma da infalibi- como um fenómeno. Poder-se-ia chamar a is-
lidade do papa. so, para usar a terminologia de William
Blake, a primeira compreensão, o primeiro es-
trato da consciência.
Ex oriente lux
Porém, a investigação puramente científica não nos po-
de levar ao cerne da questão. Haverá sempre um abis-
A história cultural do cristianismo apresenta- mo entre o saber exterior e o saber interior, enquanto
da neste livro concentrou-se nos primeiros os dois não forem unificados. 836
cinco séculos, porque, na minha opinião, foi
nessa época que foram assentes os fundamen- A teosofia escava até estratos mais profundos
tos do cristianismo clerical. Esta preferência que fazem a gnose ser o conhecimento do co-
por esse período faz com que todo o tempo ração. Muito antes da descoberta dos textos
posterior seja um pouco tratado como entea- de Nag Hammadi, Helena Petrovna Blavatsky
do. Mesmo que fosse possível discutir deta- escreveu coisas notáveis sobre ela. 837 Em vez
lhadamente os primeiros cinco séculos, a em- de circunscrever a gnose à variante cristã,
presa torna-se claramente incomportável se se Blavatsky põe-na numa perspectiva muito
incluirem também os quinze séculos posterio- mais vasta. Ela mostrou que a gnose é absolu-
tamente universal e se encontra em todas as
834
Richard Reitzenstein, Poimandres; Die hellenisti-
schen Mysteriemreligionen; Das iranische Erlösungs-
836
mysterium. J. Slavenburg, ‘Wie is er bang voor gnosis?’ em
835
Ver J. A. de Kok, Drie eeuwen westeuropese kerk- Bres, 153, Abril-Maio de 1992, 73.
837
geschiedenis, sobretudo 121 e seguintes. Ver J. Slavenburg, H. P. Blavatsky.
épocas e em todas as culturas. 838 Particular- tante que ideias vindas do oriente tenham in-
mente inspiradores foram os exemplos que ela fluenciado a sociedade ocidental no último
trouxe do oriente, onde há muito a gnose for- quartel do século XIX. Primeiro, de modo tí-
mava o núcleo da religião. Era algo novo no mido, como já disse, e deparando-se com
ocidente. É verdade que tinha aparecido um muita oposição. Mas algo entrou na consciên-
interesse hesitante pelas descobertas de via- cia do homem, frequentemente de modo in-
jantes que tinham visitado a China, a Índia, o consciente, passe o paradoxo aparente. Pois
Tibete e o Nepal, mas tal interesse era despo- há muito, muito tempo que se sabe no oriente
letado pelo maravilhoso dessas culturas, e que Deus (ou Brahman) é indivisível. E que é
também pela aventura. Blavatsky adicionou a fonte de onde tudo provém e que está pre-
uma aventura espiritual. Ideias sobre a reen- sente em tudo, ou que, dito de modo mais
carnação e o carma, que hoje aparecem quase simples, é tudo. Por isso está escrito num dos
a propósito de tudo e de nada, fizeram timida- Upanishads ‘tat twam asi’, és aquilo. 841 Pois
mente o seu caminho em direcção ao ociden- também o homem é Deus. No epílogo deta-
te; onde depararam com uma reacção bastante lharei mais este pensamento nuclear e mostra-
céptica. Mas havia mais. Na sua obra magis- rei que, se não for compreendido de maneira
tral The Secret Doctrine (A Doutrina Secre- correcta, como acontece em alguns agrupa-
ta) 839, Blavatsky tentou mostrar que a evolu- mentos New Age, ele se torna um anacronis-
ção visível ao homem é apenas parte de um mo que tem um efeito tão desviante para o de-
sistema praticamente infinito de ciclos evolu- senvolvimento da consciência como o dogma
tivos. 840 A apresentação de Blavatsky não se de que Deus é o outro e se encontra totalmen-
destinava a convencer o homem da sua insi- te fora de nós. O homem ocidental, no seu
gnificância, como acontece de uma maneira materialismo e individualismo – noções que
ou de outra em algumas orientações confes- aqui não estão a ser sujeitas a nenhum juízo
sionais, o seu objectivo era dar ao homem a de valor – tinha-se separado essencialmente
perspectiva do lugar extremamente responsá- de Deus, mesmo em si próprio, e agora apare-
vel que ele ocupa no todo. O homem nasceu ciam do oriente impulsos que o ajudariam a
para ser livre; não com a liberdade material sair do seu estado de separação, de dualidade.
que muitos supõem ao ouvir isto, mas com a E aqui trata-se sempre do interior e não de co-
liberdade interior absoluta que só pode ser ad- meçarmos a andar por aí com roupagens
quirida após um longo caminho interior: o ca- orientais sendo homens ocidentais. E também
minho do coração. Foi imensamente impor- não se trata de, sem qualquer forma de refle-
xão, adoptar e aplicar acriticamente ao oci-
838 dente todas as formas orientais.
Há um erro bastante geral que consiste em afirmar
que Blavatsky se orientava exclusivamente para o No princípio do século XX, foi sobretudo Ru-
oriente. Pelo contrário, ela deu atenção à tradição ocul- dolf Steiner que advertiu contra a transferên-
ta ocidental e à origem do cristianismo, sobretudo na cia irreflectida do caminho de desenvolvimen-
sua última grande obra, Isis unveiled (Ísis sem Véu). to oriental para o ocidente. 842 Ao mesmo tem-
Nas suas muitas obras encontram-se inúmeros po, ele acentuou a rica tradição que está ocul-
comentários de passagens do Novo Testamento, como
mostrou recentemente uma investigação extremamente ta no ocidente e que o cristianismo clerical
minuciosa de H. Spierenburg, The New Testament sempre reprimiu. É notável que Steiner, tal
Commentaries of H. P. Blavatsky. Num estudo ainda como a tradição clerical – mas naturalmente
mais recente, Henk Spierenburg reuniu e anotou os com ênfases totalmente diferentes –, coloque
comentários de Blavatsky sobre o budismo (H. J. Cristo num ponto absolutamente central da
Spierenburg, The Buddhism of H. P. Blavatsky).
839
A edição original da Secret Doctrine (Doutrina história do mundo. Steiner escreveu e disse
Secreta) é de 1888. A tradução holandesa mais recente muito sobre aquilo a que chamava ‘o mistério
apareceu com o título De geheime leer (2 vol.) em
1988.
840
Na primeira metade do século XX, estas revelações
sobre a criação e a evolução extraídas do chamado Li-
vro de Dzyan, foram continuadas por Alice Bailey, so-
841
bretudo em A Treatise on Cosmic Fire. Ver também Chandogya Upanishad. Ver J. A. Blok, Oepani-
Rudolf Steiner, sobetudo Die Geheimwissenschaft im sjads, 37-48.
842
Umriss. Ver J. Slavenburg, Rudolf Steiner.
do Gólgota’. 843 A sua ideia era que os evange- Marilyn Ferguson 848 e Fritjof Capra 849 os ex-
lhos deviam ser lidos muito literalmente, para poentes máximos desse movimento. 850 O ter-
se poderem captar as imagens que emanam mo New Age é muitas vezes associado a Era
deles. 844 Chama a atenção nos ensinamentos de Aquário. 851 O holismo ocupa um lugar
de Steiner, a sua orientação extremamente central na filosofia da New Age. Nessa visão
prática que ainda hoje se vê, por exemplo, na holística, tudo está interligado.
ecologia e nos cuidados de saúde espiritual e
corporal. Este visionário experimentava o es- No mais profundo do meu ser, tenho a mesma essência,
pírito em todos os aspectos da vida. O espírito a mesma natureza, do que qualquer outro, sou uno com
todo o cosmos. Temos todos a mesma natureza e expe-
que faz viver. rimento que o meu próprio Ser está em harmonia com
essa natureza. 852

Epílogo: A nova era O homem que tem a noção de que o corpo, a


alma e o espírito estão integrados uns nos ou-
A New Age está na moda tros está estreitamente ligado ao organismo
vivo chamado terra; e esse homem sabe-se
O título deste capítulo, deste epílogo, ‘A nova igualmente parte integrante da totalidade do
era’, não pretende ser uma tradução do universo, do cosmos. Tudo está interligado.
conceito New Age. A New Age é uma corrente Holismo é uma palavra-chave na New Age; os
variegada que se espalhou a partir da Ca- sintomas estão contidos num todo maior. Po-
lifórnia, nos Estados Unidos 845, mas tem raí- des curar a tua vida é o título de um popular
zes em diversas correntes. 846 Muitos investi- livro New Age. 853 Se compreenderes a causa
gadores indicam Alice Bailey como ‘invento- da tua doença, podes melhorar. 854 ‘Deixa fluir
ra’ da denominação New Age 847 e consideram a vida em ti’ é o credo de muitas terapias mol-
dadas na forma da New Age. Para se ter me-
lhor noção de si próprio há sessões de rebirth-
843
Ver, entre outros, Rudolf Steiner, De Jesus a Cristo; ing e para ganhar compreensão dos padrões
Bausteine zu einer Erkenntnis des Mysterium von em que se está actualmente cativo há a revivi-
Golgotha; e O Quinto Evangelho.
844
Ver Rudolf Steiner, O Evangelho segundo João; O ficação de vidas anteriores, sobretudo por hi-
Evangelho segundo Lucas; O Evangelho segundo pnoterapia, um meio muito utilizado. 855
Mateus; e O Evangelho segundo Marcos.
845
M. Messing, ‘Hoe nieuw is de Nieuwe Tijd? Een
vergelijkende beschouwing’ em Religieuze bewegingen naar e Koos Hafkamp, Wegen en dwaalwegen van de
in Nederland, número 18, ‘New Age’, Amsterdam, Nieuwe Tijd, 42). Ver também R. Kranenborg, ‘Het
1989, 35-57, 38; J. Verkuyl, De New Age beweging, 8 verschijnsel New Age: een overzicht’ em Religieuze
e 11. bewegingen in Nederland, número 18, ‘New Age’,
846
‘O pensamento da New Age já é antigo’, afirma Amsterdam, 1989, 7-19, 9.
848
Hein Westerouen van Meeteren em ‘Een nieuwe tijd!’ Marilyn Ferguson, The Aquarian Conspiracy.
849
(Egbert van Dalen, coord., Omzien naar een nieuwe Fritjof Capra, O Ponto Zero; Fritjof Capra, O Tao
tijd, 9). H. M. H. Stufkens, ‘New Age tussen gods- da Física.
850
dienst en religie’ em Religieuze bewegingen in Neder- R. Kranenborg, ‘Het verschijnsel New Age: een
land, número 18, ‘New Age’, Amsterdam, 1989, 57- overzicht’ em Religieuze bewegingen in Nederland,
69, vê as raízes remontarem aos românticos do século número 18, ‘New Age’, Amsterdam, 1989, 7-19, 9; H.
XIX (58); na Holanda, ele considera Frederik van Ee- M. H. Stufkens, ‘New Age tussen godsdienst en reli-
den um percursor (Hein Stufkens, Gezichten van de gie’ em Religieuze bewegingen in Nederland, número
nieuwe tijd, 29. Também Lemesurier vê as raízes re- 18, ‘New Age’, Amsterdam, 1989, 57-69, 58; Hans-Pe-
montarem ao século XIX, mas à segunda metade, so- ter Waldrich, Wat is esoterie?, 141.
851
bretudo ao Movimento Teosófico (Peter Lemesurier, Muito grosseiramente, o Sol está cerca de 2000 anos
Wat is New Age?) em cada um dos signos do zodíaco. Na época da vida
847
Alexandra Gabrielli afirma que Alice Bailey lançou de Jesus começou a Era de Peixes, actualmente esta-
o nome de New Age (A. Gabrielli, ‘Aquarius, de Nieu- mos a passar à Era de Aquário.
852
we Tijd en het paranormale’ em Religieuze bewegingen Peter Russel, The Global Brain.
853
in Nederland, número 18, ‘New Age’, Amsterdam, Louise L. Hay, Pode Curar a sua Vida.
854
1989, 19-35, 31). É também essa a opinião de Lemesu- Ver, entre outros, Alan Young, Cura Espiritual.
855
rier (Peter Lemesurier, Wat is New Age?, 199). War- Um exemplo apenas da avalanche de literatura que
naar e Koos Hafkamp vêem também em Bailey a prin- há sobre isto: Pieter Langedijk, Reïncarnatie, psichote-
cipal inspiradora do movimento New Age. (Han War- rapie en innerlijke groei.
A New Age acaba também com a exclusivida- para nós que vivemos na passagem do século
de do cristianismo. Religiões, filosofias e prá- XX ao século XXI e passámos pelo ano 2000
ticas orientais são alvo de uma ávida procura o que eu vejo de novo nesta época é o facto de
como meio de se ‘descobrir a si mesmo’.856 estarmos colocados ante um desafio que pro-
Foi sobretudo a concepção de que o homem vavelmente será de importância decisiva para
tem de encontrar a salvação em si mesmo e as formas posteriores sob as quais a evolução
não na igreja que levou muitos autores cris- se desenrolará. Os colegas historiadores argu-
tãos a combaterem os pensamentos da New mentarão que já houve outras épocas em que
Age. 857 Mas o perigo de muitos fenómenos da se falou de ‘nova era’, basta pensar no Renas-
New Age não se esconde aí, está mais no mo- cimento. É verdade. Mas a fase a que agora
do de abordagem psíquico-emocional de onde chegámos como humanidade nesta terra é de
não aparenta sair. Na minha opinião, a New outra ordem: na história nunca aconteceu que
Age é demasiado absolutizada. Ela é um elo o homem cometesse um tão grande assalto à
na história da humanidade, não o seu destino. sua alimentadora, à Mãe Terra, e que a conti-
E nuação dos padrões que o homem teceu, nos
últimos cinquenta anos, conduzisse a uma ca-
na medida em que toma o cariz de uma nova religião, a tástrofe mundial. Alguns optimistas, pessoas
New Age é mais um passo atrás do que um salto em de vistas curtas, ingénuos e interessados (por
frente na história da consciência humana
razões de lucro) na continuação do esgota-
mento da terra, ainda conseguem dizer que
afirma com razão Hein Stufkens. 858
isto é conversa de velhos do Restelo; muitos
Vejo a ‘nova era’ no quadro da evolução par-
estudiosos internacionais, o Clube de Roma e
cialmente representada no esquema da página
os agrupamentos ambientais falam de modo
254. Naturalmente que a designação é relati-
diferente.
va; virão ainda outras eras mais novas. 859 Mas
A solução não está em ‘ser amável para a ter-
ra’, do mesmo modo que ‘ser amáveis uns pa-
856
Enquanto o homem ocidental está fortemente orien- ra os outros’ 860 também não levou a uma paz
tado para a expansão, para o exterior, e portanto, dirige mundial geral. Messing afirma que ‘a New
a sua força de acção sobretudo para a matéria, o ho- Age pode favorecer uma transformação da
mem oriental está mais metido em si mesmo. Vede isto
como se fosse uma expiração e uma inspiração. Desde consciência no que diz respeito à amabilida-
a antiguidade que a experiência do Deus imanente está de; à tolerância, à compaixão e à aceitação’861
viva no Oriente; no Ocidente, Deus foi posto cada vez Penso que isto está muito longe de ser sufi-
mais no exterior do homem. A teosofia, sobretudo, ciente. O homem terá de (re)descobrir, e isso
criou uma ponte entre estes dois mundos experienciais. a partir da sua consciência diurna completa,
A ponte é o equilíbrio entre a inspiração e a expiração.
Esse equilíbrio nem sempre é visível nos agrupamentos que o espírito fala em toda a matéria. A (re)-
da New Age. descoberta do espírito em tudo leva a uma
857
J. I. van Baaren e O. H. D. van Tuyl, New Age Mo- consciencialização e esta resulta numa abor-
vement en de anti-christ in het licht van de Bijbel e J. I. dagem naturalmente respeitosa a tudo o que
van Baaren, Zeg nee tegen de New Age infiltratie con- vive, cresce e existe. Através dos séculos, e
sideram o movimento New Age como o anti-cristo.
Críticos, mas menos temerosos, são P. J. van Kampen, também actualmente, tentou-se alcançar esse
De cirkel en het kruis; J. Verkuyl, De New Age bewe- caminho místico da unificação, do abraço do
ging, I. A. Kole, New Age; e Martie Dieperink, New espírito, negando a matéria, como, por exem-
Age en christelijk geloof. plo, na ascese. Mas já Jesus dizia:
858
H. M. H. Stufkens, ‘New Age tussen godsdienst en
religie’ em Religieuze bewegingen in Nederland, nú-
mero 18, ‘New Age’, Amsterdam, 1989, 57-69, 65.
Stufkens dá a justificação desta afirmação no capítulo Rudolf Steiner, Beelden van de evolutie, 182-184). Ver
final de Heimwee naar God, 86-97. também a clara análise das ‘visões do mundo’ em Piet
859
H. P. Blavatsky introduziu no Ocidente a doutrina Vroon, Tranen van de krokodil, 11-34.
860
oriental das eras, das yugas e das manvantaras (Isis Pense-se nos sonhos hippies e no ‘love – love –
Unveiled I, 31-32; The Secret Doctrine, I, 378, II, 322). love’ dos anos sessenta.
861
Sobre a relação entre o Oriente (yugas) e o Ocidente M. Messing, ‘Hoe nieuw is de Nieuwe Tijd? Een
(eras astrológicas, como Aquário) ver Marcel Messing, vergelijkende beschouwing’ em Religieuze bewegingen
Gnostieke wijsheid in Oost en West. Rudolf Steiner liga in Nederland, número 18, ‘New Age’, Amsterdam,
os ciclos astrológicos ao processo de respiração (ver 1989, 35-57, 51.
Se não se estiver em trevas lhe Deus, se preferir), mas também ‘aquilo’ se
não se será capaz de ver a luz. esforça por chegar a mim. O ‘Aquilo’ olha-
Se alguém não compreender como surgiu o fogo
esse alguém arderá nele
me amorosamente e eu posso reconhecê-lo
pois não lhe conhece as raízes. porque ele é da mesma substância que o
Se não se conhecer primeiro a água ‘aquilo’ em mim. O ‘aquilo’ em mim não po-
não se conhecerá nada. deria existir sem o outro ‘aquilo’. E inversa-
Que significará então para ele mente, o ‘aquilo’ consiste em todos aqueles
receber o baptismo de água?
Se não se compreender
pequenos, e frequentemente ainda inconscien-
de onde vem o vento que sopra tes, ‘aquilinhos’. Compreender, experimentar,
é-se levado por ele. isto conduz ao ‘repensamento’ de que fala van
Se não se compreender Ruysbeek.
como surgiu o corpo que se leva Na fase histórica primordial, o homem tinha
morrer-se-á nele.
E como quer alguém que não conhece o Filho
ainda uma consciência indivisa. Por essa
conhecer o Pai? consciência indivisa, o homem ainda podia
E para quem não conhecer as raízes de todas as coisas aceder ao mundo espiritual; ‘andava com os
estas permanecer-lhe-ão ocultas. deuses’. 864 Lentamente, surgiu uma dualidade
Quem não aprende a conhecer a raiz do mal na consciência humana; uma parte dela desen-
não lhe é um estranho.
Quem não compreende como veio
volveu-se cada vez mais como uma consciên-
também não compreenderá como irá... 862 cia material. Pois não é verdade que o homem
tenha apenas uma consciência material; do
O místico do século XX Erik van Ruysbeek mesmo modo que não tem também apenas um
diz sobre isto: corpo material. Se fossem apenas materiais, o
corpo, a alma e a consciência não poderiam
Tudo o que um dia foi dito do espiritual começa agora existir. O espírito, o mundo espiritual, está
a dizer-se da matéria. No Oriente, a matéria era consi- sempre na base de tudo. Mas assim como o
derada irreal, apenas o espiritual era real. A matéria era homem no seu estado material está com fre-
o rasto deixado pelo espiritual. Agora estamos numa
direcção inversa: o espiritual poderia ser o rasto que a
quência totalmente inconsciente de que o seu
realidade micro-física deixa em nós. Tudo isto nos diz corpo se desagregaria e regressaria à matéria
respeito de modo fundamental. Com isto, somos obri- se não fosse mantido por corpos mais finos,
gados a repensar-nos, a re-sentirmo-nos, a nós mesmos. mais subtis, assim também o homem está na
Não somos apenas o que antes pensávamos que éra- maior parte dos casos inconsciente de que a
mos. 863
sua consciência, o seu pensamento, o seu sen-
timento, apenas podem ter lugar por causa da
No pensamento totalmente material, uma he-
ligação com o mundo espiritual.
rança da visão mecanicista do mundo, a natu-
Nos tempos primordiais, o homem tinha essa
reza material puxa o pensamento para baixo.
consciência, mas isso acontecia à custa do seu
Ele permanece material, mas actua como uma
impulso de acção na terra; era uma consciên-
espécie de estrangeiramento, porque afasta o
cia onírica.
homem do caminho que a nostalgia primor-
A evolução criou um padrão em que o homem
dial lhe sussurra.
acumula experiência, in-forma-ção, na maté-
Na ascenção para o espírito, frequentemente
ria. Assim como o espírito está ocupado
por negação da matéria, surge também um es-
criando, assim também foi dado ao homem
trangeiramento. Tudo se esvai de tal modo
estar ocupado criando. A condição era que o
que o chão, e o respectivo atrito, falta.
homem se acoitasse cada vez na matéria; em
Penso que a arte está em experimentar cons-
vez de como que pairar mais acima, participar
cientemente o espírito e a matéria como uma
no desenvolvimento. Na história da humani-
unidade; e isso a partir da noção de que não
dade, isso conduziu várias vezes, e está ac-
só eu me esforço por chegar ‘àquilo’ (chame-
tualmente a conduzir, a uma grande altivez. O
862 homem pensa poder criar na matéria, poder
Het gesprek met de Verlosser J. Slavenburg/W. G.
Glaudemans, Nag Hammadi geschriften I, 246. dominar a matéria, sem ter ciência das forças
863
Erik van Ruysbeek, ‘Van de dood van God naar de
geboorte van de ongrond’ em M. Messing (coord.) Re-
864
ligie als levende ervaring, 226. Ver, por exemplo, Génesis, 5:22-24 e 6:9.
que estão na base dela. Apareceu um véu na governadores e a reis por causa de Mim, para dardes
consciência do homem. O pensamento mate- testemunho na sua presença. Mas primeiro a Boa Nova
tem de ser anunciada a todos os povos. Quando vos
rial ao desenvolver-se, tornou-se cada vez levarem para serdes entregues, não vos preocupeis de
mais um pensamento isolado. A individuali- antemão com o que haveis de dizer e dizei o que vos
dade ao desenvolver-se, se necessário para for dado dizer no momento. Pois quem fala não sois
poder chegar à formação a partir da consciên- vós, é o Espírito Santo. Um irmão entregará outro para
cia própria e da responsabilidade estritamente ser morto, e o pai entregará o filho, os filhos levantar-
se-ão contra os pais e mandá-los-ão matar. Sereis
pessoal, tornou-se uma individualidade sepa- objecto de ódio por causa do meu Nome. Mas quem
rada. perseverar até ao fim será salvo. Quando virdes o
A ‘nova era’ está perante um desafio gigan- horror da destruição estar onde não pode – quem ler
tesco. Será o homem capaz de afastar as corti- isto, que compreenda – que os homens da Judeia fujam
nas, de rasgar os véus e de voltar a experi- para as montanhas; que aquele que se encontra no
telhado não desça e entre em casa para ir buscar
mentar a unidade das partes material e espiri- alguma coisa; e que o que está no campo não regresse
tual da sua consciência? Agora que o grande em busca do manto. Ai das grávidas e das mães de
desafio da matéria está ganho e que a humani- crianças de peito. Rezai para que não calhe no inverno.
dade desenvolveu uma ciência capaz de anali- Pois esses dias serão dias de horror como nunca houve
sar o material até às suas partes mais ínfimas, desde o princípio em que Deus criou o mundo até
agora e como nunca mais voltarão a haver. Se o Senhor
aparece o desafio do espírito. Estamos prepa- não tivesse encurtado esses dias, ninguém seria
rados para experimentar o espírito na nossa poupado; mas Ele encurtou esses dias por causa dos
vida, no nosso pensamento, nas nossas ac- eleitos que Ele escolheu. Portanto, se alguém vos
ções? Estamos preparados para fazer inflamar disser: Vejam, o Cristo está aqui, ou: está ali, não
o amor no nosso coração? Na minha opinião, acrediteis. Pois levantar-se-ão falsos cristos e falsos
profetas que farão sinais e milagres e enganarão, se
só se estivermos preparados para isso é que se possível, até os eleitos. Estai, pois, vigilantes; previ-
perspectiva, nesta forma, um futuro esplendo- vos tudo. Mas depois desses horrores, o sol escurecerá
roso para a humanidade. É o ‘salto de cons- nesses dias e a lua não dará luz; as estrelas cairão do
ciência’ a que se refere o esquema da página céu e os exércitos celestes entrarão em confusão; então,
254. 865 verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens, com
grande poder e magnificência. Então, Ele enviará os
seus anjos para reunir os eleitos dos quatro cantos da
terra, desde o fim da terra até aos confins do céu. Tirai
O regresso de Cristo e o Reino da parábola da figueira esta lição: quando os ramos fi-
cam moles e começam a rebentar, sabeis que o verão
está a chegar. Do mesmo modo, quando virdes estas
Quando Jesus deixou o templo, disse-Lhe um dos dis-
coisas, sabei que está próximo, sim, está à vossa porta.
cípulos: ‘Mestre, olha que pedras e que construção!’
Em verdade vos digo, esta geração não passará antes de
Mas Ele disse: ‘Vedes aqueles grandes edifícios? Não
tudo isto ter acontecido. O céu e a terra passarão, mas
ficará deles pedra sobre pedra, tudo será destruído.’ E
as minhas palavras não passarão. Ninguém sabe o dia
tendo-se sentado no Monte das Oliveiras, em frente do
ou a hora, nem mesmo os anjos do céu, nem mesmo o
templo, Pedro, Tiago, João e André, os únicos que
Filho, apenas o Pai. Estai vigilantes; vigiai, pois não
estavam presentes, perguntaram: ‘Diz-nos, quando é
sabeis quando vai chegar o momento. Passa-se com ele
que isso vai acontecer e qual será o sinal que dirá que
como com alguém que está no estrangeiro. Ao sair de
vai acontecer?’ ‘Estai vigilantes’, começou Jesus a
casa, deixou-a ao cuidado dos seus servos, deu a cada
explicar, ‘para que ninguém vos transvie. Porque
um a sua tarefa e ordenou ao guarda da porta que vi-
muitos aparecerão em meu Nome e dirão: sou eu. E
giasse. Vigiai, pois, já que não sabeis quando o senhor
muitos irão atrás. Se ouvirdes falar de guerra e de
da casa volta, se tarde ao serão ou no meio da noite, se
rumores de guerra, não vos assusteis. Tudo isso tem de
ao cantar do galo ou de manhã cedo. Se voltar inespe-
acontecer, mas ainda não é o fim. Haverá luta de povo
radamente, que ele não vos encontre a dormir. E o que
contra povo e de reino contra reino; haverá terramotos
vos digo, digo a toda a gente: estai vigilantes!” 866
e fomes, primeiro aqui, depois ali; é o princípio das
dores. Estai vigilantes. Entregar-vos-ão aos tribunais,
açoitar-vos-ão nas sinagogas e sereis apresentados a Nesta passagem do Evangelho de Marcos, Je-
sus pede a Pedro, Tiago, João e André – mas
865 compreendido em sentido mais amplo, a toda
Ver também Allerd Stikker, Tao, Teilhard en Wes-
ters denken: ‘Estou convencido de que a humanidade a humanidade – que estejam sobretudo vigi-
está a ponto de dar um novo salto importante no pro- lantes. Ele adverte contra o engano vindo de
cesso de evolução’ (15). Seguindo linhas diferentes
(são sobretudo ilustrativas as muitas tabelas do seu li-
866
vro), ele chega à mesma conclusão. Mc. 13.
falsos cristos e de profetas só na aparência. É do céu e as hostes celestes ficarão em confusão. Então,
notável que num outro evangelho, desta vez aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem; todas as
tribos da terra se lamentarão e verão vir o Filho do Ho-
apócrifo, Jesus também advirta os seus discí- mem nas nuvens do céu com poder e grande magnifi-
pulos contra o engano: cência. Ele enviará os seus anjos com grandes toques
de trombeta, para reunir os seus eleitos dos quatro can-
A paz esteja convosco. Produzi a minha paz. Cuidai de tos da terra, desde um dos confins do céu até ao ou-
que ninguém vos transvie dizendo ‘está aqui’ ou ‘está tro. 871
ali’, pois o Filho do Homem permanece no vosso imo.
Segui-o! Quem o procurar encontrá-lo-á. Ide, e anun- Pinchas Lapide, investigador judeu do Novo
ciai o evangelho do Reino. Não façais determinações
diferentes das que eu estabeleci. E não promulgueis
Testamento, notou num estudo sobre a espera
leis como o legislador, para não ficardes cativos do Messias, que aqui não se fala de modo al-
dela. 867 gum de Jesus.

Comparando estes dois textos, vemos muito Eles não queriam o regresso do filho do carpinteiro de
claramente uma diferença. Em Marcos, e nos Nazaré. Queriam o ‘Filho do Homem’ que vem sobre
as nuvens do céu... 872
respectivos paralelos nos outros evangelhos
sinópticos 868 – sobretudo no Evangelho de
Thomas Sheehan afirma que Paulo foi o pri-
Mateus – Jesus fala do perigo de os discípulos
meiro a ligar entre si Jesus e ‘Senhor’. 873 O
serem transviados, no Evangelho de Maria fa-
‘Filho do Homem’ seria o próprio Jesus.874
la de evitar que os discípulos se transviem.
Encontramos muitas vezes a expressão ‘Filho
Em Marcos lemos sobre um (falso) cristo ex-
do Homem’ nos textos apocalípticos judai-
terior, em Maria trata-se do Cristo interior.
cos 875; a ‘passagem do regresso’ dos evange-
Neste sentido, a passagem do Evangelho de
lhos sinópticos tem bastante influência apoca-
João que continua a ser explicada como o
líptica. Matter afirma no seu estudo sobre a
anúncio dos tempos do fim, torna-se muito
parousía 876 que Justino Mártir (± 140) cuidou
mais clara. Lemos aí:
posteriormente de que o significado ‘Regresso
Em verdade, em verdade, vos digo: virá uma hora, sim,
do Senhor’ se tornasse habitual na igreja.877
já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Não se vê literalmente nos textos que esse re-
Deus, e os que ouvirem viverão. 869 gresso terá lugar no final dos tempos. 878 A li-

O meu itálico enfatiza que Jesus está a falar


871
de um estado actual, em que os (espiritual- Mt. 24:29-31.
872
mente) mortos (em outros escritos também Pinchas Lapide, Het bezit van de waarheid: het ein-
de van de dialoog, 81-82.
designados por ainda adormecidos ou incons- 873
Em 1 Ts. 1:1, Thomas Sheehan, The first coming,
cientes) ‘ganham ouvidos para ouvir’. 177.
874
Ibidem, 178.
875
Avança-se frequentemente como razão para Sobretudo no livro de Daniel, mas também, por
inicialmente não se ter posto por escrito nada exemplo, no livro pseudo-epigráfico de Henoch, onde
se lê que o ‘Filho do Homem’ já existia ‘antes de o sol
dos ensinamentos e dos actos de Jesus, o facto e as constelações terem sido criadas’ (1 Henoch, 48:3;).
de no cristianismo muito primitivo se esperar 876
‘Parusia (gr. Parousía = lit. estar ao pé; presença;
para muito breve o seu regresso. 870 Cita-se também chegada) significava no mundo helenístico
frequentemente em apoio desta tese a seguinte mais ou menos o mesmo que epifania e era usada como
passagem: designação do aparecimento da divindade (nos misté-
rios) ou para a chegada de um príncipe. Na linguagem
cristã “parusia” designa a chegada (“regresso”) de Je-
Imediatamente a seguir aos horrores desses dias, o sol sus no começo do “Reino de Deus”. A parusia tem,
escurecerá e a lua deixará de dar luz, as estrelas cairão portanto, um carácter claramente escatológico...’ M. A.
Beek, , G. Sevenster e outros, Encyclopedie van de Bij-
867
Evangelho de Maria, J. Slavenburg/W. G. Glaude- bel, 365.
877
mans, Biblioteca de Nag Hammadi-, I, 381. H. M. Matter, Wederkomst en wereldeinde, 10.
868 878
Mt. 24 e Lc. 21 ‘Isto falta em várias das mais antigas confissões
869
Jo. 5:25. cristológicas’ (Bo Reicke e Leonhard Rost, Bijbels-
870
Ver, entre outros, O. J. de Jong, Geschiedenis der Historisch woordenboek VI 31). Ver também Eduard
Kerk, 22; ver também Rudolf Bultman, Eeuwigheid. Schweitzer, Jesus Christus in vielfältigen Zeugnis des
Hier en nu, 53. Neuen Testaments, sobretudo 57 e seguintes.
gação do conceito ‘Reino de Deus’ aos tem- Mas o Reino está em vós e fora de vós.
pos do fim e ao chamado regresso, também Se vos conhecerdes a vós mesmos
também sereis conhecidos
não se tira directamente dos textos e é resulta- e sabereis que sois filhos
do de teologia posterior. Foi sobretudo Albert do Pai Vivo.
Schweitzer quem no princípio do século XX Mas se não vos conhecerdes a vós mesmos
mais defendeu a concepção escatológica do então, estareis em pobreza
‘Reino’. 879 Nisso seguiu em grande parte Jo- e sois vós mesmos a pobreza.’
hannes Weiss, que, no final do século XIX, Jesus viu bébés a serem amamentadas.
também situava o ‘Reino’ no futuro. 880 Adolf E disse aos seus discípulos:
von Harnack, já referido neste livro, afirmava ‘Estas crianças a serem amamentadas,
exactamente o contrário: o ‘Reino’ seria po- são parecidas com os que entram no Reino.’
der divino, silencioso e forte, no nosso cora- Eles perguntaram-lhe:
‘Se nós formos crianças entraremos no Reino?’
ção. Teria sido iniciado na terra por Jesus.881 Jesus disse-lhes:
Esta opinião foi seguida essencialmente por ‘Se fizerdes do dois um
teólogos ingleses 882, mas a maior parte dos in- e se tornardes o interior como o exterior
vestigadores do Novo Testamento adoptem e o exterior como o interior
actualmente uma espécie de caminho intermé- e o acima como o em baixo
e se fizerdes do masculino e do feminino uma e a mes-
dio: para Jesus, o Reino de Deus já estava no ma coisa
homem, mas havia também a expectativa de de modo ao masculino não ser masculino
um reino futuro onde aquilo que até agora se e ao feminino não ser feminino,
tinha realizado apenas parcialmente, se torna- se fizerdes olhos em vez de um olho
rá uma realidade total. 883 e uma mão em vez de uma mão
e um pé em vez de um pé
e uma imagem em vez de uma imagem,
Em relação ao ‘Reino’, por vezes também entrareis no Reino.’
chamado ‘Reino dos céus’, ou ‘Reino de
Deus’ ou ainda ‘Reino do Pai’, Jesus explicou Jesus disse:
repetidamente aos seus discípulos que se tra- ‘Desde Adão até João Baptista
não há entre os que nasceram de mulher
tava de um estado espiritual alcançável por ninguém maior do que João Baptista,
qualquer pessoa. Sobretudo no registo muito para que os seus olhos não precisem de quebrar-se.
antigo das palavras de Jesus que tomaria mais Mas digo-vos
tarde forma escrita no Evangelho de Tomé, que se um de vós se tornar como uma criança
encontramos estes pensamentos expressos conhecerá o Reino
e estará mais alto que João.’
com frequência:
Os seus discípulos disseram-lhe:
Jesus disse: ‘Quando é que o Reino vem?’
‘Se vos disserem: Jsus disse:
“O Reino está no céu”, ‘Não vem por se esperar por ele;
então as aves do céu preceder-vos-ão. não dirão: olhem aqui, ou olhem ali.
E se disserem: “Está no mar”, Mas o Reino do Pai
então os peixes preceder-vos-ão. está espalhado sobre a terra
e os homens não o vêem.’ 884
879
Albert Schweitzer, Geschichte der Leben-Jesu-For-
schung, sobretudo no capítulo ‘Die Lösung der konse- Nada há aqui de um longínquo tempo final;
quenten Eschatologie’. No seu prefácio à sexta edição mas há a possibilidade de uma realização no
de 1950, ele volta a sublinhar que Jesus começou por aqui e agora!
anunciar um Reino de Deus espiritual, mas, face ao in-
sucesso da sua missão, adiou o Reino para mais tarde e
esperou uma intervenção sobrenatural de Deus. No que se refere ao regresso, ninguém se sur-
880
Johannes Weiss, Die Predigt Jesu vom Reiches Got- preenderá se eu, depois de centenas de pági-
tes. nas de história cultural do cristianismo, o vir
881
Adolf Harnack, Das Wesen des Christentums, 35. como um estado que, tal como o reino, já co-
882
Ver, entre outros, C. H Dodd, The Parables of the
Kingdom e T. W. Manson, The Servant-Messiah. A stu- meçou. O Espírito de Cristo está ‘espalhado
dy of the public ministry of Jesus.
883
Ver, entre outros, G. N. Stanton, Jesus of Nazareth
884
in New Testament Preaching. EvT. resp. 3, 22, 46 e 113.
sobre a terra, mas os homens não o vêem’. de 1982; a anunciada emissão nunca aconte-
Mas está plenamente presente a possibilidade ceu. 888
de deixar o Cristo ressuscitar no nosso cora-
ção; de experimentar e de festejar o seu re- As opiniões de Benjamin Creme não são entu-
gresso diariamente na nossa própria consciên- siasticamente abraçadas por todos nos círcu-
cia: sem véus, através das nuvens. los da New Age. Muitos vêem o Jesus históri-
co como um mestre de sabedoria, um mestre
mundial. Jesus é também visto, por exemplo,
Cristo e Aquário pelos teósofos, como um avatar, uma encar-
nação divina. Mas, ao contrário do que afirma
Não é só nas fileiras clericais que se espera a fé cristã (e também, por exemplo, as con-
um regresso material de Cristo, isso acontece cepções de Steiner), ele não seria a única ma-
também em alguns assim chamados círculos nifestação de Deus na terra. Houve avatares
‘esotéricos’. No princípio do século XX, An- em muitos períodos da história da humanida-
nie Besant e Charles Webster Leadbeater de.
apresentaram, através de uma organização eri- Para os teósofos, Jesus é um avatar, um mes-
gida de propósoto para o efeito 885, o jovem tre, que fez uso de uma ‘natureza intermé-
Krishnamurti como sendo o novo mestre dia’. 889 O teósofo G. de Purucker escreve em
mundial, o Senhor Maitreya. Foi o próprio A História de Jesus 890:
Krishnamurti que, em 1929, dissolveu o mo-
O avatara Jesus, por exemplo, nunca mais nascerá na
vimento na cidade holandesa de Ommen com
terra, por outras palavras, nunca mais reencarnará; pois
as palavras: um avatara é uma divindade que se manifesta por meio
do aparelho psicológico daquilo que conhecemos como
Pouco me importa se acreditam se sou o mestre mun- um dos mestres da sabedoria ou da compaixão, e que
dial ou não. Isso não tem importância nenhuma... Não se põe à disposição para esse objectivo, para que as su-
desejo seguidores... Estão habituados a que vos di- blimes forças divinas que assim se expressam se
gam... em que nível espiritual se encontram. Que infan- possam mostrar ao homem e o possam instruir. 891
tilidade! Quem melhor do que vós pode dizer se são
bonitos ou feios por dentro? 886
Também no movimento New Age não há lu-
gar para o cristocentrismo, pois ele rebela-se
No fim dos anos setenta do século XX, o es- contra qualquer pretensão de exclusividade
cocês Benjamin Creme anunciou que o re- vinda seja de que religião for. Tudo veio de
gresso de Cristo estava muito perto. Deus e está em Deus – frequentemente desi-
gnado por energia primordial –, portanto,
Desde Julho de 1977 que o Cristo se encontra em pes-
soa entre nós. Regressado ‘como um ladrão na noite’, Deus está também no homem. Isto em oposi-
numa altura em que ninguém o esperava, ele encontra- ção à teologia vulgar que põe Deus fora do
se desde então numa grande cidade de um país moder- homem. Na realidade, trata-se aqui de meias
no. verdades. Deus é a vibração primordial trans-
O mais tardar em 1982, dar-se-á a conhecer na sua ver-
cendente e imanente a partir da qual tudo se
dadeira natureza. Então, ‘todo o olho o verá e todo o
ouvido o ouvirá’. Com efeito, ele mostrar-se-á ao mes- formou. Não foi só a igreja que fez dogmas
mo tempo a todo o mundo numa emissão rádio-televi- das suas concepções; o mesmo aconteceu em
siva de âmbito mundial. 887
888
Mas o movimento ainda está vivo. Cristo já teria si-
Desencadeou-se uma verdadeira investigação do visto em pessoa em diversas reuniões em todo o
jornalística focada no bairro ‘asiático’ de mundo. Apareceria do nada e voltaria a desaparecer no
Londres, onde ele teria sido visto. Em vão, os nada. Ver também Alice A. Bailey, Second Coming of
Christ e as observações cautelosas sobre o regresso
crédulos esquadrinharam os guias televisivos feitas por Karel Douven, Het christendom op weg naar
de 21e eeuw, 85-92.
889
Ver J. Slavenburg, H. P. Blavatsky.
885 890
A Ordem da Estrela do Oriente. A História de Jesus (Original: De geschiedenis van.
886
Op. cit. Mary Lutyens, Krishnamurti, 10-11. G. de Purucker). Tradução: Wilson Mello Franco
887 891
Texto da contracapa do livro de Benjamin Creme G. de Purucker, De geschiedenis van Jesus (incor-
De wederverschijning van de Christus en de meesters porado como livro independente em H. T. Edge, Theo-
van Wijsheid. sophie en Christendom, 29).
alguns círculos da New Age. Isso não deixa Todas estas imagens não fazem justiça ao ser
de comportar os seus perigos, porque Deus é de Jesus e à essência de Cristo. Se o Cristo re-
assim limitado, diminuído, até à escala do presenta a força universal divina absoluta, não
próprio eu do momento. Acarinhar o deusinho é preciso que vá fisicamente à Índia, a Ingla-
queridinho em si próprio pode facilmente le- terra, ao Japão, à Grécia, ao Egipto, à Pérsia e
var a um falso sentimento de auto-satisfação e sei lá mais aonde, para tomar conhecimento
à inércia. A consciência divina no homem, o dos sistemas de sabedoria. A sabedoria estava
Deus imanente, só tem força se for ligado ao encerrada no próprio Jesus, e pela ligação
Deus de fora, ao Deus transcendente. E para consciente da sua própria consciência com a
isso é preciso um longo caminho de conscien- consciência universal, ele era capaz de fazer
cialização. fluir tudo o que quisesse na sua própria cons-
Como o oriente e o ocidente foram ligados ciência. Mas é certo que ele esteve na Índia
um ao outro no século XX, não admira que em espírito ou, muito provavelmente, numa
Jesus vá ficando com um ar cada vez mais forma mais ou menos visível, e que tornou a
oriental. 892 O homem tem tendência a ver o sua presença aí mais ou menos palpável. O
todo a partir da sua própria (e presumida) ver- que foi captado pelos sábios. 896 Mas a sua vi-
dade. Já vimos acima que Deus é frequente- da terrestre desenrolou-se na Palestina e a cru-
mente projectado no écran próprio. O mesmo cificação foi a coroação do seu ‘acto de
acontece com Jesus. Ele teria estado na Índia amor’. Um Jesus posterior a meio gás ou um
nos seus anos ‘desconhecidos’ entre as idades Jesus pensionista depois de ferido na cruz não
de 12 e 30 anos 893, ou depois da crucificação, se coaduna com o significado da sua cons-
a que teria sobrevivido. 894 Naturalmente que ciencialização e também não tem qualquer
Jesus, o guru, teria seria vegetariano e teria sentido. Jesus não foi apenas um mestre de sa-
bebido sumo de uva não fermentado. 895 bedoria; havia inúmeros na sua época. Jesus

892
Ver, entre outros, A. Romarheim, ‘Christus in het possibilidade de parar a fermentação espontânea do su-
tijdperk van Aquarius’ em Religieuze bewegingen in mo de uva (ver Edward Hyams, Dionysus. A Social
Nederland número 18, ‘New Age’, Amsterdão 1989, History of the Wine Vine). Tudo isto sem contar com o
69-83. valor extremamente simbólico, precisamente no cristia-
893
O primeiro autou a escrever sobre isto foi Nicholaus nismo. Bernard de Clairvaux, de orientação bastante
Notovitch, que deu à estampa em 1890 o livro La vie ascética, escrevia já na sua Apologia: ‘É também me-
inconnue de Jésus. Partes desta obra encontram-se em lhor beber um pouco de vinho... do que despejar água
E. C. Prophet, The lost years of Jesus. O Aquarius pela garganta por causa da sofreguidão; com efeito,
Evangelie van Jezus de Christus refere uma série de também São Paulo ordenou a Timóteo que bebesse vi-
países onde Jesus teria estado. Este escrito teria sido re- nho e o próprio Senhor o bebia, de tal modo que foi
cebido como revelação directa por Levi H. Dowling, chamado bebedor de vinho. Ele deu vinho a beber aos
que o teria tirado da crónica de akasha. apóstolos e com vinho instituíu o sacramento do seu
894
Em Srinagar, na Cachemira, há um túmulo atribuído sangue; ao contrário, não permitiu que se bebesse água
a Jesus. H. Schonfield relaciona-o com a lenda cristia- nas bodas’ (Apologia, 6, 12, op. cit. Anton van Duin-
nizada de Barlaão e Josafat (ou Josafá). Ver sobretudo kerken em Bernardus van Clairvaux, 117-118). Na
também H. Kersten, Jezus leefde in India. Ver também ‘Edição revista’ (1992) da tradução bíblica Willibrord,
M. Baigent, R. Leigh e H. Lincoln, The Holy Blood as palavras ‘bebedor de vinho’ foram substituídas por
and the Holy Grail; F. Alt, Jezus, de eerste nieuwe ‘amigo de patuscadas’.
896
man, 52 e as obras referidas na nota 78. Na época actual, muitos gurus indianos traduzem is-
895
Ver, entre outros, M. Messing, ‘Kijk naar de leliën to de maneira material; ou pelo menos é dessa maneira
in het veld...’, em Prana 72 (Ago./Set. 1992), 18-28, que nós os entendemos. É notável que sejam sobretudo
24. Há algumas fontes que referem que Jesus e alguns as alocuções de Sai Baba a ser ofrecidas como ‘prova’
dos seus discípulos, entre outros, o seu irmão Tiago, e de que Jesus teria estado fisicamente na Índia; saben-
também João Baptista, não comiam carne. Outras fon- do-se que é precisamente este santo que pode materiali-
tes afirmam exactamente o contrário (ver o final do ca- zar objectos e deslocar-se sem ser visto manifestando-
pítulo 4 deste livro). Mas nunca se fala de peixe. Sabe- se numa figura material seja em que lugar for da terra,
se que os sacerdotes cátaros vegetarianos comiam pei- enquanto o seu corpo permanece no seu ashram india-
xe. Mas não bebiam vinho. Não há provas nenhumas no. Na minha maneira de ver, as suas palavras sobre
onde apoiar a afirmação de que Jesus não bebia vinho. Jesus têm este significado. Sobre as observações de Sai
Pelo contrário, em quase todos os textos sobre a vida Baba sobre a estadia de Jesus na Índia, ver Wim G. J.
de Jesus é dito que ele bebia vinho, o que ra um hábito van Dijk, Bevrijding komt niet uit de hemel vallen,
diário da sua época, também no país onde ele vivia. É 268-270, 278, e Satya Sai Baba, Volg Christus (Kerst-
mais do que provável que nessa época não se tivesse a toespraken), 173-174.
trouxe o espírito de Cristo para a terra (e para
a matéria) e assim tornou-o reconhecível no
nosso próprio ser.
Cristo não precisa de renascer num corpo ma-
terial. Cristo já está aqui.
No nosso próprio coração.
É lá que o podemos encontrar.

Sede abençoados, meus filhos.


O amor está convosco.
Que o amor jorre nos vossos corações
como de uma fonte que nunca seca.
Que o amor seja o vosso guia na vida
de modo a que a senda que seguis
passe entre flores maravilhosas
e seja uma senda de alegria.
Meus filhos deste mundo.
Dei-vos esta dádiva.
Espero que A aceiteis.
A minha bênção.
Jesus. 897

897
Mària Hillen, Een daad van liefde, 34.

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