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DA ACADEMIA FRANCESA
A IGREJA
DOS TEMPOS
BÁRBAROS
Tradução
de
EMÉRICO DA GAMA
Quadrante
São Paulo
1991
Título original
L'ÉGLISE DES TEMPS BARBARES
Capa
José C. Prado
Ilustração da capa
Carlos Magno e dois bispos. Detalhe de um sarcófago
da Capela Palatina, Aix-la-Chapelle
Mapas e desenhos
Pedro Loghetto
I. 0 SANTO DOS TEMPOS NOVOS . ... .. ... .. ...... ... .. . .... .. .. . . . . .. . . . . . . . ... 9
Em Hipona sitiada ............................................................
. 9
"Eu amava amar..." .................................................... . ..... 12
Deus responde a quem o chama ........................................... 17
Uma obra-prima imortal: as "Confissões" .............................. 21
U m gênio e um santo ... .. .. .. .... .. .... ......... .. .................. . .......
. 24
Um bispo africano ....... .............................. ............ ............. 29
O combatente d a verdade . .. .. .. .. .. .. .. .. .... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... 33
A inteligência a serviço de Cristo .............. ............................ 41
A "Cidade de Deus", baluarte cristão .................................... 46
As bases do futuro .............................................................
. 49
Presença de Santo Agostinho ................................... ............. 57
Em Hipona sitiada
Deus se cumpre ? "O godo não tira aquilo que Cristo guarda ! " As verda
deiras riquezas não são as que os vândalos saqueiam ; a verdadeira vida
não é aquela que um bárbaro vos pode arrancar . . . E estas palavras eram
mais que consolações complacentes , pobres bálsamos sobre feridas incurá
veis. Tão grande era a fé deste homem , tão poderoso era o seu gênio ,
que esta esperança se tornava criadora. Perante o destino que empurrava
uma sociedade para o abismo , o velho bispo apelava para outra , fundada
sobre princípios cujos elementos repetia sem cessar. E cada um dos seus
apelos era uma opção sobre o futuro .
No terceiro mês do cerco , essa grande voz calou-se . Correu por Hipo
na a notícia de que o velho bispo estava chegando ao fim . Fora acometi
do por uma febre infecciosa trazida sem dúvida por algum fugitivo . Perce
beu imediatamente que a hora de Deus estava próxima. Encerrou-se na
sua cela e passou longos dias em silêncio , não prostrado , mas recapitulan
do a sua vida , meditando e orando . Às vezes , chegava-lhe aos ouvidos o
grito agudo de uma trombeta sobre as fortificações : era o alerta para al
gum assalto vândalo . Na rua, diante da soleira do bispado-convento , a
multidão esperava e orava. Já por inteiro na suprema Presença, pedia a
Deus que lhe perdoasse as suas faltas ; acusava-se de não ter feito bastan
te por Ele , de não ter dado dEle testemunho bastante , de não ter prepara
do suficientemente a sua vinda . E pediu que pendurassem nas paredes
da sua cela uma cópia dos salmos penitenciais , cujos versículos repetia com
fervor.
Morreu em 28 de agosto de 4 3 0 . Na humildade da sua última prece ,
teria o velho bispo de Hipona suspeitado que o seu pensamento iria ilu
minar os séculos , que o seu gênio modelaria o mundo. que havia de nas
cer após os grandes desmoronamentos , e que a sua santidade permanece
ria para sempre como um exemplo ? Pois perante Deus e perante a Histó
ria, este velho bispo chamava-se Agostinho 1•
''
' 'Eu amava amar...
Se alguma vez. uma alma humana deu a impressão de estar desde sem
pre " confiada à guarda de Deus " e de ser conduzida apenas por Ele pa
ra o seu verdadeiro fim , foi sem dúvida a desse rapazinho africano que a
Graça havia de tornar um santo . Nasceu em 1 3 de novembro de 3 5 4 ,
e m plena região númida , de velhas cepas do país . A sua terra natal , a que
(1) Hipona resistiu ainda muito tempo , após a morte de Santo Agostinho - cerca de catorze
meses . Os vândalos levantaram o cerco . Bonifácio, que recebera alguns socorros da Itália, foi vencido
12 e abandonou a África , que passou a ser um reino vândalo. Por fim , Hipona foi tomada e saqueada.
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
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LIMITES DO IMI'ÉRIO ROMANO --
é necessano dizer o que foi a sua vida moral ; sem tomarmos exatamente
ao pé da letra os pormenores que o seu arrependimento lhe arrancou
mais tarde , temos de admitir que essa vida nada teve de exemplar. Não
era muito freqüente , mesmo na África, que um rapaz de dezoito anos
mantivesse uma concubina e tivesse dela um filho .
Mais interessantes e mais formativos eram os contactos que a grande
cidade lhe proporcionava com todas as opiniões , todos os sistemas , filoso
fias , heresias e cismas que a sua paixão pela dialética o levava a conhecer .
No seu espírito havia ainda o doloroso e apaixonado tumulto da adolescên
cia , e na sua alma - pelo menos assim o julgava - não havia senão o
que ele viria magnificamente a chamar ' ' o silêncio de Deus ' ' .
No entanto , neste pequeno negociante da eloqüência, que em 3 74 ,
com apenas vinte anos , regressava ao burgo natal para ali ganhar a vida
como um pedagogo em necessidade , o germe que Mônica depositara den
tro dele em segredo fizera já brotar o grão . É escusado dizer que ele o ig
norava e talvez nunca ousasse pensar que Deus , desde essa época, bem
longe de " calar-se " , o chamara pelo seu nome . Certamente não soubera
ouvir a voz inefável , quando , ainda criança, pensara em pedir o batismo
durante uma grave doença, e depressa pusera de parte o projeto , uma vez
curado . Certamente também não soube encontrar a Palavra naquela Bíblia
que abriu em Cartago , por curiosidade , entre tantas outras leituras , e que
lhe pareceu um livro absurdo , impenetrável . Mas até nos estranhos cami
nhos a que o seu temperamento de fogo o arrastava , Agostinho de Tagas-
14 te , sem o saber , seguia o rasto de Deus .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
grimas e cujo penhor eterno é a cruz . Aos vinte anos , bem podia ele ten
tar descobrir os sinais desse amor no mistério carnal da mulher, ou no es
plendor do mundo , ou ainda em belas mas perecíveis amizades . Um ou
tro amor o espiava , um amor que estava prestes a abrigá-lo sob as suas
asas , quando chegasse o dia, quando a experiência da vida o tivesse des
prendido totalmente de si .
Se esta era a verdade secreta do seu destino , as aparências , durante
nove anos , em nada puderam fazer prever uma conversão . De 3 74 a 3 8 3 ,
primeiro em Tagaste , depois em Cartago , Agostinho aparece aos olhos
do mundo como um pequeno retórico veemente , que milita a favor da
heresia maniqueísta , que publica um livro de estética puramente profana
e que , alojado em casa de um amigo riquíssimo , se embriaga com os pres
tígios do luxo e com as admirações fáceis . Testemunha de tudo isso , que
para ela era um escândalo , Mônica não desesperava desta alma aventuro
sa; orava e chorava . Um dia em que foi pedir conselho a um bispo seu
conhecido e, diante dele , deu largas ao seu desgosto , esse santo homem
de Deus respondeu-lhe : " Acalma-te ; é impossível que se perca o filho
de tantas lágrimas ! " Mais tarde , Agostinho compreenderia que essas lágri
mas de sua mãe tinham sido para ele como um primeiro batismo . Mas
não havia soado ainda a hora do Senhor.
Essa hora , porém , estava próxima. Impelido pela ambição e pelo tédio ,
mais inseguro do que queria parecer, em 3 8 3 decide partir para Roma j.
Mas , em vez do cenário à medida dos seus anseios , a princípio apenas en
contra ali rancores e desilusões . Doente , minado pela febre , obrigado a
mendigar lições em casa dos filhos dos ricos para sobreviver, miseravelmen
te instalado num desses grandes prédios que nunca tinha conhecido a menor
higiene, ignorado do público e defraudado pelos alunos, pensa em voltar
para a África quando se produz um acontecimento providencial . Candida
to a uma carreira de retórico em Milão , Agostinho , graças à recomendação
dos seus amigos maniqueus e à boa vontade do prefeito Símaco , é nomea
do chefe do clã pagão , que se sentiu feliz de colocar nesse posto um ad
versário da Igrej a 6. Livre dos apertos , muito contente (pelo menos aparen
temente) e talvez muito orgulhoso da sua pessoa, na primavera de 3 84
parte na diligência imperial para Milão , onde julga encontrar a fortuna,
sem saber que ali , como no segredo do seu coração , Cristo o esperava.
(5) Há um incidente que mostra como ele estava ao mesmo tempo atormentado e indeciso:
não ousou dizer a sua mãe que queria partir para Roma . Mônica, com a intuição própria das
mulheres, tinha as suas suspeitas . Uma noite , cm que o viu dirigir-se ao porto, não o largou .
Mas não! Ele não pensava em embarcar; ia apenas acompanhar um amigo que partia. Como Mô
nica orou! Mas certa vez , quando a mãe passava a noite numa capela, o filho partiu . . .
(6) Sobre Símaco, um dos últimos defensores do paganismo, cfr. A Igreja dos Apóstolos e
16 dos Mártires, cap . XII , par. A agonia do paganismo.
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
(7) Em Milão , que era capital , o governo imperial não veria com muito bons olhos um ensi
no maniqueísta ou cético , exatamente na ocasião em que Teodósio acabava de proclamar o cristia
nismo como religião do Estado. Se foi válido este argumento, não podemos deixar de observar
que, neste gênero de crises , Deus se serve de todos os meios- etiam peccata, mesmo dos pecados .
(8) Cfr. A Igreja dos Apóstolos e dos Martires, cap . XII , par. Um exemplo: Santo Ambrósio . 17
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
no jardim da casa vizinha, uma voz de criança canta, como se fosse o re
frão de um jogo : "Toma e lê ! Toma e lê ! " No estado de confusão em
que se encontra , essas palavras parecem-lhe uma ordem divina . Levanta-se
de um salto e abre o seu São Paulo ao acaso ; é a página do capítulo 1 3
da Epístola aos Romanos: ' ' Não andeis j á em comilanças e bebedeiras ,
nem na cama, fazendo coisas impúdicas , nem em contendas e rixas ; mas
revesti-vos de Nosso Senhor jesus Cristo e não vos ocupeis da carne e dos
seus desejos " (Rom 1 3 , 1 3 ) . O livro cai ao chão . Para que ler mais ? Ama
nheceu-lhe na alma a luz da paz . E compreendeu .
A cena do jardim data , certamente , da primavera de 386 e não tardou
a produzir o seu efeito . A partir de julho , Agostinho deixa Milão e insta
la-se numa vtfla, posta à sua disposição por um amigo , para lá meditar.e
resolver o caminho a seguir. Calma e silêncio , beleza da paisagem , esplen
dor dos poentes no horizonte alpino . Muito perto , estendem-se os espe
lhos mágicos dos lagos italianos ; a região está cercada de frescos vales , de
colinas arborizadas e de águas correntes , e por toda a parte se sente o
odor da hortelã e do anis . Durante nove meses , no seu retiro de Cassicía
co 9, acompanhado apenas pela mãe , por alguns amigos verdadeiros e pe
lo filho , o pequeno Adeodato , cuja inteligência - dirá ele - era subli
me , Agostinho aplica-se com honestidade a apreender a sua própria verda
de . Os So!tfóquios, que escreveu nesta altura , denotam bem a violência
apaixonada das suas meditações , a misteriosa batalha travada durante noi
tes de insônia com o homem velho que hesitava em morrer. "Faz , ó Pai ,
que eu te procure ! " Este grito , como o de um Pascal , ecoa ao longo de
todas essas páginas . E a quem O chama com tão inteira sinceridade , Deus
sempre responde .
Na noite de 24 para 2 5 de abril de 3 8 7 , juntamente com o filho e
com o seu amigo Alípio , Agostinho recebe o batismo das mãos de Ambró
sio . Não com o ruído e a ostentação com que transcorrera o batismo do
retórico Vitorino , mas humildemente , como um cristão pecador em meio
a outros . Pouco antes enviara ao bispo um memorial em que resumia os
seus erros passados e se comprometia a renunciar a eles para sempre .
Agora restava apenas tirar as conclusões práticas da sua decisão . Renun
ciara já às suas funções de mercador da eloqüência, que podiam dar lugar
a equívocos ; era necessário também deixar a casa que fora alugada outro
ra pelo retórico maniqueu seu amigo , e regressar a Á frica, onde a lembran
ça viva das faltas da sua juventude exigia reparações exemplares . Tudo is
to se realizou prontamente ; a vontade de Deus era tão manifesta ! Quan
do se preparava para atravessar o mar, Agostinho sentia-se seguro .
porque é eterna' ' . Num relâmpago , estes dois seres tinham fugido aos li
mites da condição humana , aproximando-se do Céu .
E , pouco depois , a África que cinco anos antes tinha deixado partir
um pequeno retonco ávido de êxito , agitado por idéias contraditórias e
por juvenis ambições , via agora regressar um homem inteiramente senhor
de si , que realizara a sua síntese pessoal e descobrira a certeza. Voltaram
a ver Agostinho em Cartago e em Tagaste , mas foi apenas para vender
os bens que herdara do pai , distribuir o produto pelos pobres e instalar-se ,
com alguns fiéis , naquilo que ia ser o primeiro mosteiro agostiniano .
Um gên io e um santo
( 1 3 ) Não temos nenhum retrato de Santo Agostinho , como também não os possuímos de Je
sus ou de São Paulo . Os amigos não sentiam esse gênero de curiosidade , c os contemporâneos
de Agostinho que falaram dele não o descreveram fisicamente . Em 1 900 , encontrou-se sob os ali
cerces da capela do Sanefa Sanctorum , únicos despojos do mais amigo palácio de Latrão , um mo
saico do século V ou VI que representa um homem vestido de toga, com pouco cabelo , de bar
ba curta e grisalha e pequena estatura , que segura na mão esquerda um rolo c parece meditar,
sentado em freme de uma estante sobre a qual se vê um livro . Por cima da imagem lêem-se
dois versos latinos que dizem : " Os diversos Padres disseram diversas coisas; este disse tudo, e
por meio da sua eloqüência romana fez ressoar o sentido místico ' ' . Supõe-se que apenas Santo
Agostinho podia merecer tais elogios . Mas, mesmo admitindo que o autor do mosaico quisesse re
presentá-lo , ficaria por saber como é que , cem ou cento e cinqüema anos após a sua morte , po
24 dia ter conhecido os seus traços fisionômicos .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
Do ponto de vista literário , é cerro que nem tudo tem igual valor no
meio de uma massa tão grande . Temos de confessar que nem sempre é
fácil vencer o tédio que nos causam algumas das suas explanações , bem
como cena irritação que nos provoca - sobretudo nas obras oratórias -
o abuso das sutilezas engenhosas , das antíteses rebuscadas, dos jogos de
palavras e de conceitos que cenamente seriam úteis para cativar o seu pú
blico africano . Por muito vasta que fosse a cultura que Agostinho acumu
lou durante toda a sua vida, está provado que esta se manteve sempre
dentro dos limites de um homem que não tinha conhecido a fundo senão
Cícero e Virgílio , que hauriu a sua ciência nas obras enciclopédicas de
Varrão , que possuía apenas um verniz do grego e - o que é mais grave
- se mantinha excessivamente preso aos métodos da gramática e da retó
rica em que se havia formado . ' ' Um letrado da decadência' ' , disseram de
le ll. E nós acrescentaremos : um espírito que às vezes nos parece insuficien
temente crítico , quer se trate de exegese ou de ciências naturais , e que
16•
faz cenas afirmações que nos levam a sorrir
Tudo isto é a pane caduca da obra - q u e obra humana não a tem ?
- , as escórias que o vento do tempo arrasta , e de que um único livro
no mundo está indene , porque não é do homem : o Evangelho . Mas, por
outro lado , que dons extraordinários , que resultados felizes ! Este talento
que adapta tão agilmente a sua técnica ao seu desígnio , clássico na Cida
de de Deus, romântico nas Confissões, incisivo nos textos polêmicos , qua
se popular nos sermões , este gênio do estilo que brilha incessantemente
em fórmulas definitivas e ao qual se submete tudo o que nasce da inteli
gência , este arquiteto monumental que , na Cidade de Deus, inclui todo
o destino do mundo num livro , terá na verdade outro igual na história
das letras humanas ? Lembremo-nos da famosa passagem de La Bruyere ,
no seu capítulo dos Espn"ts forts: " Pela vastidão dos seus conhecimentos ,
pela profundidade e penetração , pelos princípios da pura filosofia e pela
sua aplicação e desenvolvimento , pela j usteza das conclusões , pela dignida
de do discurso , pela beleza da moral e dos sentimentos , não há nada que
se possa comparar a Santo Agostinho , a não ser Platão e Cícero " . Apesar
das suas falhas e das suas fraquezas , a obra de Santo Agostinho inspira
respeito , mesmo àqueles que não panilham da esperança que a guia.
Mais que respeito , essa obra inspira simpatia , porque em toda ela é a
alma do autor que se descobre e que nos toca de mil maneiras . O que
torna Santo Agostinho diferente de um simples literato é o acordo total
que ele realiza entre a sua vida e os seus livros . O que pensa , vive-o; o
que diz , experimentou-o até o fundo do seu ser . Para este teólogo , Deus
nunca é um conceito , mas a realidade viva que o coração sentiu palpitar
perto de si no j ardim de Milão e que , desde então , o envolveu com a
sua soberana presença. Para este apologeta, para este rude lutador, o cris
tianismo não é nunca um conj unto de posições a sustentar , um mero cor
po de doutrina , mas uma maneira de ser e de viver, um compromisso to
tal . Quando aborda os grandes temas - a justiça, a moral , a liberdade ,
por exemplo - , dá-nos a impressão de nunca os considerar de forma abs
trata , mas sempre em relação com o homem verdadeiro , de carne e osso ,
de esperança e sofrimento ; e se pôde fazê-lo , foi porque ligou esses pro
blemas , espontaneamente , às suas experiências pessoais , porque de uma
forma ou de outra os viveu todos . Vitam impendere vero , empenhou a vi
da pela verdad e . Foi por isso que conseguiu que tudo despenasse interes
se , mesmo as questões mais áridas - como a noção do tempo no livro
XI das Confissões - , porque , para ele , a descoberta da verdade era um
dos aspectos da Sabedoria e a " contemplação do verdadeiro estabelece no
homem uma semelhança com Deus ' ' . Podemos dizer que tudo nele , a
sua inteligência, o seu estilo , os seus métodos , está impregnado de sensi
bilidade . E aqueles que não vêem nele senão um Doutor severo , um pes
simista tristonho ou um teólogo impiedoso , estão condenados a nada co
nhecer da sua alma e da mensagem que nos trouxe .
É isto que coloca Santo Agostinho na primeira fila dos escritores cris
tãos de todos os séculos e muito acima dos outros Padres da Igrej a , seus
predecessores ou rivais . Há nele um poder de amor que resplandece na
sua obra e lhe dá um brilho único . Já se fez notar que as palavras mais
freqüentemente saídas da sua pena são amor e can"tas; mais do que qual
quer outro , ele é o Doutor do amor , o Doutor da caridade . No tempo
das suas dolorosas buscas , não foi o amor que o guiou para a luz ? Nun
ca se separou dele , e a extrema velhice , essa idade em que tantas vezes
os sentidos se anquilosam como os músculos , encontrou-o tão sensível e
de braços tão abenos como na sua inquieta adolescência. E tudo ele en
volve nesse amor ; é sensível - coisa rara no mundo antigo - à r;t ature
za, à beleza da terra , ao esplendor constantemente renovado da vida ; e ,
muito mais ainda, comove-o o ser humano , e é a este que oferece um co- 27
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
ração inesgotável . Aquele que foi por vezes apresentado sob o aspecto de
um pessimista abrupto , de uma espécie de pona-voz da condenação , e
que , de tempos a tempos , nos surpreende com o rigor das teses a que o
conduz a firmeza da sua dialética, amou os homens mais do que ninguém ,
como um cristão os deve amar , isto é, em Deus e para o seu destino eterno .
Este é o sentido da sua caridade , que não é somente humana, mas so
bre-humana , virtude sobrenatural que inclui todas as formas do amor,
que as dirige para Deus e assim as transcende e realiza. Segundo Jesus ,
amar a Deus e amar os homens é a mesma coisa; nada pode separar os
dois termos " do primeiro de todos os mandamentos " . A caridade de Agos
tinho não é uma filantropia, pois não há caridade verdadeira sem a pani
cipação no amor de Cristo ; e, em sentido inverso , a mais humilde das
ações " caridosas " reveste-se de um alcance imenso a panir do instante
em que se estabelece entre Deus e a alma a misteriosa comunicação do
amor. A caridade assim entendida é, pois , a regra de ouro de todo o com
portamento humano ; eis como se deve entender, e não no sentido de
uma indulgência fácil , a admirável fórmula de Santo Agostinho : " Ama e
faz o que quiseres ' ' . Se o amor de Deus e do próximo pudessem ser per
feitos no nosso coração , cada uma das nossas ações seria de uma perfeição
inefável .
to que ele percebia dentro de si " gemendo nas provações até o fim dos
séculos " , foi nEle que o seu " coração inquieto " encontrou a paz . Era Ele
que o santo da caridade reconhecia no rosto das criaturas , e foi Ele , enfim ,
que em dado momento do tempo se tornou a seus olhos a explicação de
finitiva da história. Nada , na obra de Agostinho , se poderá compreender
plenamente , se se esquecer que , acima de todo o talento e de todo o mé
rito , ele foi um filho de Cristo , um homem de Deus .
Um bispo africano
Agostinho não desej ava outra coisa senão viver em Deus quando , no
outono de 388 , se retirou para Tagaste e , obedecendo à ordem que Cris
to dera ao jovem rico, vendeu os bens da herança paterna para abraçar a
santa pobreza. À sua volta agrupou-se uma pequena comunidade , forma
da pelos melhores fiéis , Alípio , Evódio e essa maravilhosa criança, Adeoda
to , que , aos dezessete anos , a morte próxima j á rondava . Não se tratava
de um mosteiro propriamente dito , segundo a fórmula dos orientais 17 ,
mas de uma livre associação de almas impelidas pelos mesmos desejos de
perfeição e que era dirigida , sem nenhum título nem consagração sacra
mental , pela personalidade de Agostinho . Foi uma bela existência, recolhi
da e fecunda , a dos três anos em Tagaste . "Nada melhor, nada mais do
ce - exclamou um dia o santo - do que perscrutar no silêncio o divi
no tesouro . Mas pregar , argumentar , corrigir, edificar , inquietar-se com ca
da um . . . , que responsabilidade e que trabalho ! Quem não procurará fu
gir de semelhante tarefa ? ' ' Ora bem , era precisamente para esse encargo
que a Providência iria chamá-lo em breve .
Nos começos de 3 9 1 , Agostinho foi a Hipona, para avistar-se com
um dos numerosos correspondentes que reclamavam as suas luzes , um agen
te de negócios imperial que ele achava estar prestes a converter-se . Mal
chegou à cidade , os católicos do lugar puseram os olhos nele . O bispo Va
lério , um santo homem , não correspondia às expectativas dos fiéis ; era
de origem grega , não conhecia a língua púnica e , j á de idade muito avan
çada , não enfrentava com garra os cismáticos do partido donatista . Duran
te um sermão em que Valério se lamentava dolorosamente da falta de sa
cerdotes na sua igrej a , a multidão interrompeu-o com um clamor : ' ' Agos
tinho presbítero ! Agostinho presbítero ! ' ' O único desej o de Agostinho , na
quele instante , seria estar a vinte léguas dali , na sua querida solidão de Ta-
É, pois , como bispo que Agostinho vai , logo de início , encarnar o cris
tianismo , e devemos reconhecer que esta consagração iria aumentar consi
deravelmente o alcance do seu apostolado . Desde que a Igreja de Cris to
existe , o bispo desempenha um papel fundamental em cada comunidade .
É ele que assume , não só aos olhos dos homens , mas também perante
Deus , a responsabilidade total , material , moral e espiritual do rebanho
confiado à sua guarda. Tudo parte dele , tudo termina nele . Os bispos são
verdadeiramente as pedras com que se constrói a Igrej a . Quase todos os
homens que realizam nesta época grandes coisas na ordem religiosa são
bispos , quer se chamem Atanásio ou Ambrósio , João Crisóstomo ou Marti
nho de Tours . Teria faltado um traço decisivo na figura de Agostinho se
não tivesse sido bispo de Hipona, isto é, se não o víssemos atrelado às
inúmeras dificuldades e tarefas que o episcopado supunha nestes tempos
conturbados .
E como eram especialmente difíceis essas tarefas , neste fim do século
IV , para um bispo africano ! Rica em santos , fecunda em entusiasmos devo
radores , a Igrej a da África foi sempre violenta , inclinada aos extremos e
ameaçada por cisões . Para segurá- la, houve sempre necessidade de homens
de um vigor acima do comum , de um São Cipriano, por exemplo , ou ain
da de um . Tertuliano , que aliás terminou mal 1 8 • No momento em que
Agostinho foi sagrado bispo , as comunidades da África encontravam-se
m àis do que perturbadas pelas tristes lutas do Cisma de Donato 19• Ainda
estão próximos os tempos em que se viu Optato , " bispo " rebelde , percor
rer com a sua chusma os campos , multiplicando as agressões contra os fiéis
de Roma. Na própria Hipona, o bispo donatista Faustino era tão podero-
( 1 8 ) Sobre Tertuliano e São Cipriano, cfr. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, cap . VII ,
par. A Áfni:a de Tertuliano e de SiJo Cipriano.
30 ( 19) Quanto a Donato e ao donatismo, cfr. ib. , cap. X, par. O cisma herético de Donato .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
(20) Discutiu-se muito, sobretudo na Idade Média, se Santo Agostinho teria verdadeiramen
te fundado uma ordem, ou somente um grupo de clérigos regulares ou eremitas. É anacrónico fa.
lar, no que lhe diz respeito, de regra agostiniana. Os princípios, ministrados por ele aos seus dis
cípulos, foram formulados em dois sermões: na Vida e costumes dos clérigos (Sermões 355 e
356) e na famosa Carta 21 1 , escrita em 423 para as religiosas (e que já abrange uma regra de vi
da completa). Foi o conjunto destes princípios, sistematizados ainda antes do século VI, que cons
tituiu o que se viria a chamar a Regra de Santo Agostinho , aquela a que depois recorreriam
muitos fundadores de ordens, como São Norberto. 31
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
reria ver os frutos ! " A homilia prolonga-se , o tempo passa e o orador tem
de pedir desculpas , mas reclama mais uns momentos de silêncio , pois a
sua voz é fraca e ele logo se cansa . Podemos imaginar a influência que
tal eloqüência devia exercer sobre um auditório tão pró, ximo e tão vibran
te . Ao lermos os textos dos sermões que chegaram até nós , temos a impres
são de estarmos a ver o punho forte e caridoso do santo de Hipona , amas
sando a massa do pão cristão .
Esta sobreposição de santas tarefas não exauria Agostinho ? De manei
ra alguma ; e esse é o milagre . Porque , ao mesmo tempo que desempenha
va integralmente as suas funções de bispo , continuava a escrever e prosse
guia a sua obra imensa , sem se deixar devorar pela administração e pelas
tarefas pastorais . A sua ação estendia-se muito além de Hipona . Aquilo
que teria esmagado qualquer outro não era para ele senão uma espécie
de suporte da sua existência, uma maneira de ter conhecimento dos ho
mens e de estar em contacto com a realidade .
O combatente da verdade
(2 1 ) Quanto às heresias anteriores à época de Santo Agostinho, cfr. A Igreja dos Apóstolos
e dos MJirtires, caps . VI, VII e X. 33
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
(2 2 ) Cfr. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, cap . X , par. O maniqueísmo, peste vinda
34 do Oriente.
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
Uma vez libenado do erro , quis libenar dele os outros . O seu primei
ro cuidado - e aqui pode-se entrever o elemento pessoal - foi denun
ciar no De Mon"bus a falsa moral maniqueísta e as suas mal-cheirosas faci
lidades . Seguiram-se depois , a propósito dos livros do Génesis, os seus pri
meiros esforços por explicitar os fundamentos da autoridade . Depois , já co
mo sacerdote e como bispo , continua a combater sem tréguas e desafia
os sequazes de Manes para sessões públicas , em que cada um dos dois cam
pos apresentaria o s seus argumentos . E m 392 , tem lugar o longo debate
- quarenta e oito horas de confronto - em que Agostinho esmaga Fonu
nato a propósito do problema do mal ; doze anos mais tarde , é outro de
bate em que o sábio maniqueu Félix se confessa vencido e se convene ato
contínuo . Ao mesmo tempo , numa sucessão de textos polêmicos , Agosti
nho refuta as grandes obras da seita , as teses de Adimanto , os Fundamen
tos do próprio Manes e a grande obra que Fausto de Milevo acabava de
publicar contra a Sagrada Escritura e que o bispo de Hipona combate
em nada menos do que trinta e três livros . E, paralelamente , para opor
a verdade ao erro , Agostinho redige os grandes tratados sobre O livre arbí- 35
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
( 2 3 ) Foi por isso que, ramo no seu país de origem como no Império Romano , os maniqueus
foram atrozmente perseguidos . Já Diocleciano , em 290, os tinha condenado ao fogo . Constanti
no, Constâncio, Valeminiano I e Teodósio renovaram as mais severas medidas contra a seita .
36 ( 2 4 ) Cfr. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, cap . X , par. O cúma herético de Donato .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
por uma minoria de exaltados , a igreja que se intitulava " dos santos " es
tava assim , desde há oitenta anos , nas mãos de bandidos e malfeitores
de toda a sorte , que moviam uma guerra sem tréguas contra os católicos .
Agostinho , convertido em um dos chefes responsáveis dentro do catoli
cismo , teve de fazer frente praticamente sozinho ao clã de Donato . Por
volta do ano 400 , a igreja cismática tinha talvez mais adeptos na Á frica
do que a verdadeira Igreja. Organizados , armados , apoiados nas suas tro
pas de assalto de circumcelliones 2 5 , os adversários não recuavam perante
coisa alguma; aconteceu mesmo que Agostinho escapou de uma embosca
da unicamente porque o acaso o fez enganar-se de caminho . Mas , embo
ra o perigo físico fosse o mais imediato , poderia impedir que o santo lhe
medisse as conseqüências mais longínquas - a unidade da Igreja esfacela
da, uma falsa concepção que a viciava nos próprios princípios do seu apos
tolado e dos seus bens ? O antigo ouvinte de Santo Ambrósio compreen
dia perfeitamente o que significava a fidelidade à única Mãe ; e poderia
este antigo pecador resignar-se a deixar fora da sua salvaguarda os seus ir
mãos ameaçados ?
A luta contra os donatistas revestiu-se de todos os aspectos imagináveis .
Agostinho mobilizou contra o erro todos os inesgotáveis recursos do seu ta
lento . Para espalhar entre o povo a idéia de que as doutrinas contrárias
eram falsas , ele - o filósofo , o teólogo - compõe um canto popular ,
uma espécie de cantilena com refrão ! Para convencer os chefes da facção
inimiga dos seus erros , desafia-os com freqüência para discussões públicas ,
como fizera com os maniqueus ; mas , menos intelectuais do que os segui
dores de Manes , a maioria deles recusa-se . E assim combate-os por escrito ,
multiplicando livros e tratados em que expõe as suas asserções com uma
honestidade escrupulosa , acabando por desarmá-los e pulverizá-los . Mas tu
do isso não basta . Quando os poderes públicos intervêm , inquietos com
a anarquia provocada pelo cisma, é ainda Agostinho a alma da grande
conferência de Cartago , em que duzentos e oitenta e seis bispos católicos
enfrentam e derrotam duzentos e setenta e nove donatistas , graças ao pen
sador de Hipona . E quando finalmente o governo ordena a supressão le
gal do donatismo e começa a perseguir os seus adeptos , é ainda Agosti
nho quem procura reunir os cismáticos desamparados , para reconduzi- los
ao seio da Igrej a. Se a partir daí o partido de Donato se desmorona , pa
ra desaparecer completamente antes do ano 500 , a maior parte do mérito
pertence a Santo Agostinho .
Doutrinalmente , esta luta devia ter também uma grande importância.
( 2 6 ) Foi por ocasião desta condenação que Santo Agostinho pronunciou , num sermão , uma
frase que se tornaria proverbial e que a tradição resumiu assim : "Roma locuta, causa finita" :
Roma falou , a causa está encerrada. 39
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
( 2 7 ) Ficavam ainda por resolver certos pontos que foram objeto de vivas discussões com os
semipelagianos: a questão do livre arbítrio, a questão da proporcionalidade da graça com os esfor
ços do homem , a questão da universalidade da salvação . A solução foi equacionada primeiro por
um discípulo de Santo Agostinho , Próspero de Aquitânia, e continuada pelo papa São Leão Mag
no, mas só se tornou definitiva no século seguinte , devido à ação de São Cesário de Arles no
Concílio de Orange e à aprovação pontifícia que se lhe seguiu .
(28) Nos últimos tempos da sua vida, Agostinho teve ainda de enfrentar a heresia ariana,
que pouca penetração tivera na África, mas que, quando se deu a invasão vândala, se identificou
40 para ele com o perigo bárbaro .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
(29) De forma talvez um pouco aguçada, Giovanni Papini observou que a tendencia expres
sa pelo maniqueísmo no século IV faz pensar na teosofia; que o donatismo, sob cenos aspectos,
anuncia o luteranismo e que, finalmente , cenas idéias de Pelágio sobre a inocência original evo-
cam antecipadamente Jean-Jacques Rousseau. 41
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
42 (30) Cfr. op. cit. , A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, caps . VI e VII .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
nada . Agostinho , porém , logo se refez . A queda de Roma não era o fim
do mundo , mas o anúncio do fim de um mundo ; era uma catástrofe co
mo muitas outras , análoga à queda de Tróia . As civilizações , ao fim e
ao cabo , revelam-se morrais como os homens ; não é isso o que impona.
O que importa é compreender o sentido do drama e o seu lugar no tem
po e nas intenções divinas .
Panindo de um ponto de vista inteiramente cristão , Agostinho vislum
brava , ponanto , de um só golpe , a única concepção histórica legítima.
No fluxo contínuo da vida , era bem verdade que a tomada de Roma não
representava uma imobilização do tempo , nem mesmo um marco simbóli
co , e que o verdadeiro trabalho dos homens não era chorar, mas construir
os amanhãs .
48 ( 3 2 ) Portalié.
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
A s bases do futuro
( 3 3 ) Há, evidentemente , muitas partes caducas na Cidade de Deus. Santo Agostinho apóia
muitas vezes as suas demonsrrações na ciência do seu tempo , e ele não é o único dos apologistas
e teólogos que cede a essa inclinação . Os seus raciocínios, as analogias - por exemplo , os dias
da Criação , que relaciona com as épocas históricas -, as suas afirmações - sobre o Além - são
muitas vezes discutíveis . Mas essa falhas não comprometem em nada um edifício de tal solidez . 49
A IGREJA DOS TEMPOS BÁRBAROS
(34) Cfr. A Igreja dos Apóstolos e dos Mmires, especialmente o cap . XII , par. Uma reno·
50 Vllfâo dos valores do homem .
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
vos , submetendo os povos aos seus chefes , mas ensinando aos príncipes o
devotamento ao bem público e eliminando nas relações humanas as cau
sas do ódio e da violência . . . Imagem magnífica , que será sistematizada
na grande obra da maturidade .
Não podemos desenvolver aqui , nem sequer enumerar, todos os pon
tos de sociologia e de política em que o pensamento de Santo Agostinho
concretizou o ideal cristão , com princípios tão duradouros que até hoje
não foram ultrapassados . O melhor será dizer que não há problema que
o homem , enquanto ser social , possa formular, que o prodigioso gênio
do santo de Hipona não tenha determinado , concretizado e quase sempre
resolvido . Quando considera o homem em grupo , distingue claramente
os graus das exigências coletivas e os seus limites .
A família é para ele o primeiro quadro natural em que a pessoa se
ultrapassa; querida por Deus , é a célula-base da sociedade . Não poderá ,
pois , ser absorvida pela sociedade , como na cidade grega , mas tem de con
servar a sua autonomia. A pátria é como que a sua extensão ; com uma
lucidez que muitos modernos perderam , Santo Agostinho não a confun
de nunca com o seu órgão administrativo que é o Estado . Para ele , a pá
tria é uma realidade viva: " carnal " , como teria dito Péguy, um feixe de
felicidades e de exigências concretas . Ela lhe é, visivelmente , muito mais
real e próxima do que o imenso Estado romano , o Império despótico e
centralizador de que desconfia.
Dir-se-ia ainda que , por uma admirável presciência, ele , que não ti
nha sob os olhos senão o lmperium , adivinhou o nascimento das futuras
pátrias , e as concebeu respeitando-se umas às outras , numa espécie de fe
deração de iguais . Esta grande imagem só ganhará corpo muito mais tar
de , quando , no dobrar do ano 1 000 , a França , a Hungria e a Polônia,
as nações batizadas , procurarem tornar-se pátrias e o ideal da Cristandade
se afirmar . O gênio de Santo Agostinho terá orientado o futuro . Assim
entendida , a pátria terá o seu lugar na hierarquia dos deveres humanos e
poderá mesmo exigir grandes sacrifícios . Mas o seu verdadeiro significado
é ser neste mundo uma prefiguração da comunidac � fraterna da cidade
de Deus .
Do Estado , Santo Agostinho fala longa e minuciosamente . É uma das
suas grandes preocupações . Sente-se que tem sob os olhos o exemplo de
um Estado cuja decrepitude crescente não o impede de ser opressivo , an
tes pelo contrário ! O Baixo Império , o Império da dec adência, é, com efei
to , um vasto sistema de servidão . É aqui que Agostinho faz uma afirma
ção de extrema imponância: o Estado nunca pode ser o fim supremo da
sociedade e do indivíduo ; o cristão não é somente - nem mesmo em pri-
52 meiro lugar - um cidadão . Mas isto não quer dizer que o bispo de Hi-
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
(36) É possível destrinçar, em Santo Agostinho, até mesmo princípios válidos para uma ver·
dadeira Organização das Nações Unidas, na qual cada povo tenha o direito de conservar a sua
língua, os seus costumes e as suas instituições, e na qual uma sociedade coletiva resolva os confli·
tos por meio da arbitragem . Desconfiado do Império Romano do seu tempo, excessivamente esta-
tizante e centralizador, Santo Agostinho concebe uma espécie de federalismo dos povos . 53
A IGREJA DOS TEMPOS B ÁR BAROS
também homens pecadores e ímpios , que não estão do lado de Deus . Co
mo sociedade humana, engloba-os a todos e, num impulso imenso , esfor
ça-se por erguê-los para o alto . E aqui temos uma concepção infinitamen
te humana e consoladora que , do menor dos batizados , faz uma humil
de pedra do grande edifício que as gerações vão levantando , uma após
outra, e cuja cúpula é Cristo .
Este agrupamento visível de homens orientados para os fins espirituais ,
encontra-se no terreno prático estritamente relacionado com outro agrupa
mento de homens , este ordenado para fins bem diferentes : o Estado . O
imenso problema das relações entre a Igreja e o Estado havia começado a
impor-se em ritmo de urgência no momento em que Constantino se alia
ra ao cristianismo , se não por maquiavelismo , pelo menos com algumas in
tenções menos espirituais . De reinado para reinado , o problema fora-se
agravando. A Igrej a devia consentir em ser uma mera colaboradora do Es
tado , isto é, em depender dele de fato ? Já sabemos que , instintivamente ,
os seus pastores se haviam recusado a uma tal abdicação , e Santo Agos
tinho estabelece agora como doutrina essa atitude espontânea.
Para ele - e isto é o essencial - a cidade terrena e a cidade celes
te opõem-se substancialmente , porque são animadas por espíritos contrá
rios . Na prática, a Igreja e o Estado podem colaborar; não há inconvenien
te nisso , desde que não se esqueça que os fins dos respectivos esforços são
radicalmente diferentes . A Igrej a, sociedade encarregada de assegurar a sal
vação dos fiéis , possui direitos particulares e irrecusáveis ; tem um jus sa
crum , que Agostinho reivindica para ela. Mais ainda: como a Igreja tem
especialmente o segredo e a guarda da justiça e da caridade segundo Cris
to , e como - se bem nos lembramos - o Estado é legítimo na medida
em que se orienta por essas virtudes , resulta daí que a Igreja possui um
direito de vigilância sobre o Estado .
É uma afirmação capital . Se a Igreja , no decorrer dos séculos que vão
seguir-se , defende melhor ou pior , e no meio de enormes escolhos , a sua
independência perante o poder temporal , é porque está impregnada des
ta doutrina agostiniana. E, aliás , ela irá ainda mais longe : porventura a
idéia de um controle exercido sobre o temporal pelo espiritual não contém
em germe a doutrina da teocracia, essa ' ' utopia' ' , como diz Maritain, que
pretenderá fazer passar a Igreja do controle espiritual para o próprio exer
cício do poder? Santo Agostinho , porém , nunca avançou nesse sentido , is
to é, no sentido daquilo que se chamará "o agostinianismo político " ; a
sua concepção das duas cidades , dos dois espíritos contrários , preservava-o
de semelhante erro .
Não é, porém , apenas neste domínio que o seu pensamento , em si no-
54 tavelmente equilibrado , será desvirtuado pelos seus descendentes . A doutri-
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
Uma obra tão colossal e uma personalidade de tal brilho poderiam fi
car encerradas num pequeno bispado africano ? A verdade é que elas ultra
passaram de longe esse quadro , e que , mesmo enquanto vivo , Agostinho
conheceu aquilo que hoj e chamaríamos celebridade . Poder-se-ia pensar que
a modéstia da sua sé episcopal - provinciana e isolada - prejudicou o
( 3 8 ) Não há praúcamente milagres na sua vida. Possrdio, seu biógrafo , auibui-lhe a cura
de alguns possessos e conta que , no decurso da sua úlúma doença, devolveu a saúde a uma crian
60 ça. Algu �s hagiógrafos posteriores, porém, nem sempre observarão esta discrição.
O SANTO DOS TEMPOS NOVOS
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