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SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

(e. de 354-407)

O mais conhecido dentre os Padres da Igreja grega. Natural de Antioquia, ali passou a mocidade, vivendo
monasticamente, tendo como mestre Deodoro de Tarso e colega Teodoro de Mopsuéstia. Ordenado pres-
bítero em 386, tornou-se famoso pregador e mais tarde patriarca de Constantinopla. Sua eloqüência lhe
valeu o título, dado pela posteridade, de Cristianismo (= boca de ouro). No exercício zeloso das funções
pastorais atraiu irritações na corte. Falsas suspeitas sobre sua ortodoxia levaram-no ao exílio, na Armênia.
Morreu em Comana, no Ponto. O papa são Pio X proclamou-o padroeiro dos pregadores. Tributária da
teologia dita antioquena, de tendência mais para o racionalismo do que para o misticismo (em oposição à
teologia alexandrina), a obra de são João Crisóstomo, embora de cunho predominantemente pastoral, não
se apresenta isenta de pontos criticáveis no plano da doutrina. Tem especial valer o que escreveu sobre a
Eucaristia. É autor de Comentários a vários livros bíblicos, de Sermões, de um tratado sobre o sacerdócio,
e de obras pastorais.

Diversas obras em grego e francês, na col. S.C., tomos 1381 117, 50, 103, 13, 28, 138, 79, 125.

SERMÃO "CONTRA OS ESPETÁCULOS"


(P.G. 56, 264-270)

- É isto tolerável? É isto permissível? Quero que sejais vós mesmos os juizes. Também
Deus agiu assim com os judeus, quando os interpelou: “Povo meu, que te fiz eu, em que
te fui molesto? Responde-me” [Mq 6.3]. E no livro de Jeremias perguntou-lhes de novo:
“Que injustiça encontraram em mim vossos pais?” [Jr 2.5] Imitarei, pois, o exemplo de
Deus, interrogando-vos:
- É isto tolerável? É isto permissível? A despeito de prolongados e reiterados discursos,
a despeito da grande e recente lição [O bispo refere-se a uma calamitosa tempestade
ocorrida dias antes, por motivo da qual se tinham feito procissões e súplicas na célebre
igreja dos Apóstolos em Constantinopla.], alguns houve que, abandonando-nos, foram
ao espetáculo de corridas de cavalo e se entregaram ao de- lírio das ovações, enchendo a
cidade com gritos, berros e risadas. Isto é para chorar!
Eu estava em minha casa e, ao ouvir a algazarra, mais sofria do que se fosse atingido
por uma tempestade. Como os náufragos que se percebem em perigo, vendo as ondas
baterem com furor contra os flancos do navio, era assim que me sentia, como se desa-
bassem, sobre mim as ondas dos gritos irritantes, e me encolhia, cabisbaixo de vergo-
nha, enquanto uns nas arquibancadas e outros, no meio da ágora, torciam delirantemente
pelos carros em corrida. Que poderia responder, que desculpas haveria de alegar, se um
forasteiro, presenciando tal loucura, me perguntasse:
- É esta a cidade dos apóstolos? esta a cidade que acolheu um mestre como santo An-
dré? este aquele povo amante de Cristo, auditório seleto e espiritual?

Nem mesmo quisesses guardar o dia em que se consumaram os símbolos da Redenção


de nossa estirpe! Na próxima sexta-feira, no dia em que o Senhor foi sacrificado e o
Paraíso reaberto, no dia em, que o ladrão foi reconduzido à Pátria e nós fomos resgata-
dos da maldição, no dia em que nossos pecados foram anulados e terminou a guerra dos
séculos, no dia em que Deus se reconciliava com os homens, mudando tudo para o bem,
no dia destinado ao jejum, à oração e à ação de graças Àquele que derramou seus bene-
fícios sobre o mundo, vós não vos importáveis com igreja, Sacrifício, comunidade fra-
terna, dignidade do jejum, e corríeis para o teatro, como que escravizados e arrastados
pelo demônio. Dizei-me: - É isto tolerável? é isto permissível?
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Não me cansarei de repeti-lo, pois aliviarei minha der, não se a sufocar pelo silêncio,
mas se a considerar de frente e se a manifestar diante de vossos olhos.

Como iremos agora pretender que Deus seja propício para conosco? Faz três dias que
terríveis aguaceiros desabaram aqui, inundando e arrasando, arrancando, por assim di-
zer, o pão da boca dos lavradores, abatendo as espigas de trigo e destruindo tudo o mais
pela umidade. Recorremos a ladainhas e rogações, nossa cidade em peso acorreu à igre-
ja dos Apóstolos e imploramos a proteção de são Pedro e de santo André, dos insepará-
veis apóstolos Paulo e Timóteo. E depois de aplacada a ira divina, atravessamos o mar,
arrostamos as ondas, lançando-nos aos pés dos corifeus: Pedro, a rocha da fé, e Paulo, o
vaso de eleição; tecemos-lhes um penegírico espiritual, enaltecendo seus sofrimentos e
suas vitórias contra os demônios. Ora, não vos intimidas por acontecimentos assim tão
recentes? não vos deixais instruir pelos sublimes exemplos dos apóstolos? Pois mal de-
correu um dia após isso e já vos entregáveis às danças e gritos, já vos deixáveis arrastar
pelas paixões? Se tanto vos agradava assistir à corrida de animais, por que não subju-
gastes vossos afetos animais, vossa ira e concupiscência? Por que não lhes impusesses o
jugo suave e leve da sabedoria? Por que não os dirigisses com as rédeas da reta razão,
em direção ao prêmio da vocação celeste, isto é, da terra para o céu, não do circo para
teatro? Pois é essa corrida que conjuga a alegria ao proveito.

Negligenciastes, porém, vossos próprios interesses, fostes ter pela vitória de outros e
empregasses mal um dia tão grande.

Não sabeis que Deus nos pedirá contas de como empregamos todos os dias da vida,
assim como também pedimos contas até do último centavo a quem confiamos nosso
dinheiro?

Que diremos, que desculpas alegaremos, quando chegar nossa hora?

É por vós que nasce o sol, que a lua ilumina a noite e as es- trelas brilham. Por vós os
ventos sopram, os rios correm, as se- mentes brotam e as plantas crescem. Por vós a
natureza perfaz seu curso, o dia amanhece e a noite passa. Tudo isso foi feito por vossa
causa. Vós, porém, enquanto as criaturas vos servem, satisfazes a cobiça do demônio e
não pagais o aluguel dessa casa, que é o mundo, e que de Deus alugasses?

E não vos bastou a profanação de um dia, quisesses ainda profanar o seguinte! [Na sex-
ta-feira tinham ido ao circo e no sábado foram ao teatro.] Em vez de ao menos descan-
sar um pouco do mal realizado, enchesses novamente o teatro, como quem corresse da
fumaça o fogo, lançando-se num abismo mais profundo! Anciãos desonraram suas cãs,
jovens aviltaram, sua juventude, pais consigo os filhos atirando-os desde os tenros anos
nos precipícios do mal, de modo que já não seria erro chamar de infanticidas tais pais
que malvadamente levam as almas de seus filhos à perdição.

Em que consiste vossa maldade? Nisto: já não percebeis que cometeis pecados. Nisto
está precisamente minha dor! Afligi-me porque não sentis vossa doença e assim não
procurais remediá-la.

Cometeis adultério e me perguntais de quão mal sofreis? Não ouvistes a palavra de Cris-
to: “Todo aquele que olhar para uma mulher, cobiçando-a, já adulterou com ela no seu
coração?” [Mt 5,28]
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- Mas que mal há nisso, dizeis, se não olhamos para cobiçar?

Como se essa objeção pudesse cenvencer-me! Quem não é capaz de privar-se do teatro,
mas procura os espetáculos com tamanha paixão, como poderá estar encontrando depois
do espetáculo? Vosso corpo é por acaso de pedra ou de ferro? Sois de carne humana,
que com facilidade é arrebatada pela paixão da concupiscência!

Aliás, por que falar em teatro, se já é o bastante encontrarmos uma mulher na praça para
ficarmos perturbados? Vós, porém, sentado no teatro, onde tanta coisa incita à torpeza,
vedes a mulher que entra no palco, de cabeça descoberta e maneiras impudicas, com
roupas douradas e gestos voluptuosos, a cantar canções obscenas, a dizer as coisas mais
sensuais que se pudessem imaginar, às quais vos inclinais para melhor prestar atenção, e
vindes agora dizer-me que nada sentis? Sois porventura de pedra ou de ferro? Não me
cansarei de perguntar-vos: Sois porventura trais sensatos do que os grandes e nobres
varões que caíram só com a visão do pecado?

Não conheceis as palavras de Salmão: “Pode caminhar alguém sobre brasas sem que
seus pés se queimem? Pode alguém esconder fogo no seio sem que suas vestes se infla-
mem? Assim o que vai para junto da mulher do seu próximo” [Pr 6,28.27.29]. Pois
mesmo que não vos juntásseis com a meretriz, já pecastes com ela pelo desejo, já pecas-
tes no coração!

E isso não só durante, mas também após o espetáculo, visto que a figura da mulher se
aninhou em vossa memória, como também suas palavras, atitudes, olhares, andares,
danças e canções obscenas. Rerá com inúmeras lesões que tereis deixado o teatro.

Não é porventura daí que se originam a destruição da vida familiar, o adultério, os di-
vórcios, as inimizades e brigas, os desgostos da vida? Fascinados por aquela mulher,
vós vos tornais seus escravos, de sorte que vossas esposas passam a parecer desagradá-
veis, vossos filhos importunos, vossos servos insuportáveis, vossa casa fastidiosa, vos-
sas responsabilidades molestas e tudo o mais pesado e aborrecido.

A razão dessa mudança é que não voltais sozinhos para casa, mas acompanhados de
uma meretriz - não abertamente, o que aliás seria mais tolerável, pois vossas esposas
logo a expulsariam - mas es- condida em vossa mente, em vossa consciência, avivando
lá dentro o fogo babilônico, o que é muito mais funesto, porque não são mecha, óleo; e
peixe que alimentam tal fogo, mas são as palavras de mulher que provocam total incên-
dio.

Assim como os que estão com febre, embora não tenham de que se queixarem dos ou-
tros, tornam-se, pela moléstia, ásperos para com todos, recusando alimentar-se, vitupe-
rando os médicos e enfurecendo-se com os enfermeiros, do mesmo modo se alteram e
se contrariam os que sofrem da terrível moléstia do adultério, em toda parte enxergando
a meretriz.

O lobo, o leão, os animais fogem do caçador quando feridos. O homem, todavia, sendo
racional, eis que persegue teimosamente aquela que o fere, expondo-se de boa vontade a
ser atingido por suas flechas de modo trais perigoso e comprazendo-se na ferida!
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É isso o mais doloroso e o que faz incurável a doença. Pois quem procura o médico se
não odeia a ferida nem deseja livrar-se dela? Aflige-me ver-vos sair assim tão lesados
por um prazer de breve duração. Antes do inferno pareceis querer antecipar aqui os pio-
res castigos! Ou não é isto o que fazeis, fomentando tal paixão, deixando-vos arder e
envolver cem a chama de um absurdo amor? Ainda assim tendes coragem de transpor os
umbrais da Casa de Deus e de tocar na Mesa celeste? Como escutareis os sermões sobre
a continência, assim cobertos de chagas e com a mente de tal modo escravizada pelo
vício?
Será preciso acrescentarmos algo ainda?
Vejo, porém ,que vos entristeceis pelo que ocorreu. Percebo que alguns se percutem em
sinal de tristeza, enquanto estou falando e fico-vos muito penhorado ao ver-vos assim
compadecidos. Penso que muitos dos que não pecaram também se entristecem, afligin-
do-se pelas feridas dos irmãos. É por isso mesmo que tanta pena me dá a idéia de que a
tal rebanho venha o demônio fazer qualquer mal!

Se quiserdes, podemos fechar-lhe a entrada! De que modo? Se cuidarmos que os doen-


tes recuperar, a saúde, se abrirmos as redes da doutrina e procurarmos envolver os que
sucumbiram às feras, se os arrancarmos da própria goela do leão!

Não me digais: “São poucos os que foram roubados ao rebanho!” Pois mesmo que fos-
sem apenas dez, a perda não seria insignificante; mesmo que cinco, dois ou até um! O
Bem Pastor deixou as no- venta e nove ovelhas e foi em busca de uma, não regressando
senão quando a pôde reconduzir e completar o número desfalcado de seu rebanho. Não
deveis dizer: trata-se de apenas um! Pensai que se trata de uma alma, de algo que moti-
vou a criação do mundo visível, a existência das leis, dos castigos, das disposições e dos
inúmeros milagres e das obras de Deus; de uma alma, por quem Deus não poupou seu
próprio Unigênito. Pensai quão grande preço foi pago por cada pessoa, não desprezeis
sua salvação! Saí a sua procura, reconduzi-a, convencendo-a a não mais cair no mesmo
vício! Se, porém, o pecador não voltar, a despeito de meus conselhos, de vossas exorta-
ções, farei então uso do poder que Deus me deu, para edificação e não para destruição
vossa.

Por isso advirto-vos e digo em alta e clara voz que se alguém, depois desta minha exor-
tação e ensinamento, voltar à perniciosidade dos teatros, não o receberei dentro destas
paredes, não lhe administrarei os sacramentos, não lhe permitirei que se aproxime da
sagrada mesa. Assim como os pastores afastam das sãs as ovelhas infestadas de sarna,
para não as contagiarem, da mesma forma o farei.

Outrora o leproso tinha de ficar fora do acampamento e até, sendo rei, perdia seu dia-
dema. Muito mais nós baniremos fora deste recinto sagrado aquele que for leproso na
alma! Se no princípio usei de exortações e conselhos, enfim me verei na necessidade de
recorrer à amputação. já faz um ano que governo vossa cidade e não deixei de continu-
amente vos exortar. Permanecendo alguns na corrupção, recorrerei à amputação. Embo-
ra não tendo instrumento de ferro, tenho minha palavra mais cortante do que o ferro.
Embora não use o fogo, valho-me de uma doutrina mais ardente e comburente que o
fogo.

Não desprezeis nossa advertência. Somos insignificantes e míseros, mas recebemos da


divina graça uma dignidade que nos habilita a tais medidas.
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Sejam expulsas, pois, tais pessoas, a fim de que os sãos tenham uma saúde mais robusta
ainda e os doentes se restabeleçam de sua grave moléstia.

Se estremecesses ao ouvir esta sentença - pois vejo que vos afligis e compungis - con-
vertam-se os culpados e a sentença estará suspensa. Pois assim como recebi o poder de
ligar, recebi o de absolver.

Não queremos esmagar nossos irmãos, mas apenas defender a Igreja contra o opróbrio.
Sim, porque os pagãos e judeus riem de nós quando não nos importamos com os peca-
dos, e ao contrário nos elogiam e admiram a Igreja, ao verem e respeitarem nossa disci-
plina.

Portanto, quem quiser continuar na vida impura não entre na Igreja, mas seja censurado
por vós, seja nosso inimigo comum. “Se alguém não obedecer ao que ordenamos por
carta, observai-o e não tenhais relações com ele” [2Ts 3,14]. Fazei assim, não conver-
seis com tal pessoa, não a recebais em casa, Pão comais com ela, evitai sua companhia
nas viagens, passeios e negócios. Desta maneira será reconquistada com facilidade.

Assim como os caçadores costumam acossar de todos os lados as feras mais difíceis,
também encurralemos os transviados, nós de um lado, vós de outro, e em pouco tempo
os apanharemos nas redes da salvação.

Para isso indignai-vos, juntamente comigo, também vós! Condoei-vos, por amor às leis
de Deus e separai do convívio os doentes e transgressores, a fim de recuperá-los para
sempre. Não seria pequeno vosso pecado se negligenciásseis proceder assim, ficaríeis
réus de grave castigo. Se já na vida civil não se pune somente o em- pregado apanhado
em roubo de ouro ou prata, mas também se punem os que, estando a par do crime, não o
denunciaram, muito mais na Igreja! Deus mesmo vos dirá: Como pudestes silenciar,
vendo que se tira de minha casa, não ouro ou prata, mas a observância? Como pudestes
silenciar vendo que alguém, após receber meu precioso corpo e participar do Sacrifício,
se encaminha para tão grande pecado? Como silenciasses e suportasses isso? Como não
o denunciastes ao sacerdote, para escapardes de castigos não leves?

Assim também eu, embora com tristeza, não pouparei a nenhum dos que me são caros!
Antes afligir-vos agora e resguardar-vos da condenação futura do que agradar-vos e ser
depois castigado convosco.

Suportar em silêncio tal corrupção seria imprudência e perigo, pois se cada um de nós
tem de prestar contas de seus atos, eu sou responsável pela salvação de todos.

Não me calarei, pois, e farei até o impossível, mesmo com o risco de vos afligir, de pa-
recer molesto e desagradável, para que possa apresentar-me sem mácula nem ruga dian-
te do terrível Tribunal.

Oxalá os que pecaram se convertam, pela prece dos santos, e os que se mantiveram,
ilesos cresçam em brilho e observância, para assim conseguintes vós a salvação, nós a
alegria, e ser Deus glorificado agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
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O SACERDÓCIO
[Este tratado clássico sobre o sacerdócio, uma das peças pastorais mais importantes da
patrística, é apresentado sob a forma de diálogo entre João Crisóstomo e certo Basílio]
(Trechos dos livros 2 e 3. P.G. 48, 631-633; 642s)

Que se poderia pensar mais vantajoso do que exercer funções como as que, segundo a
palavra de Cristo, manifestam nosso amor por ele? Dirigindo-se ao chefe dos apóstolos,
disse o Senhor: Pedro, tu me amas? - Sim, Senhor. - Se me amas, apascenta meus cor-
deiros [Jo 21,15]. O Mestre interroga o discípulo se o ama, não para informar-se sobre
algo, pois seu olhar penetra os corações, mas para nos ensinar qual o valor que dá à fun-
ção de chefia de seu rebanho.

Suposto isso, torna-se claro o grande prêmio prometido para quem se dedica a um mi-
nistério tão caro a Jesus. Nós mesmos, quando vemos o zelo de um servo no cuidar de
coisas compradas corro nosso dinheiro, reconhecemos uma prova irrecusável de sua
dedicação a nós. Que recompensa então não dará o Cristo a quem pastoreia o rebanho
comprado por ele, não a preço de dinheiro ou coisa semelhante, mas ao preço de efusão
de seu sangue?

Quando Pedro lhe disse: Sim, Senhor, sabes que te amo, tomando como testemunha de
seu amor aquele mesmo a quem amava, Cristo não se contentou com a declaração, quis
provas, e estas não ligou ele à sua pessoa. Pedro lhe havia dado várias provas inequívo-
cas dos sentimentos a seu respeito mas o que Cristo desejava é que Pedro e nós todos
aprendêssemos qual seu amor por sua Igreja e qual o zelo que por seus interesses deve-
ríamos ter. Por que Deus não poupou seu próprio Filho? Por que o entregou à morte, se
era seu único? Para atrair os corações hostis e formar para si um povo de seu agrado. E
por que verteu até a última gota de sangue? Para pagar e resgatar as ovelhas confiadas
depois a Pedro e a seus sucessores. Cristo tinha razão, portanto, ao dizer: Qual o servo
fiel e prudente, que seu senhor estabeleceu para governar sua casa? [Mt 24,25].

A frase parece exprimir uma interrogação, mas só aparente, como também na pergunta
dirigida a Pedro e onde ele não que- ria conhecer o amor do discípulo, e sim manifestar
a grandeza de seu próprio amor. Da mesma forma agora, quando pergunta: Qual é o
servo fiel e prudente? Não o ignorava, mas queria ensinar-nos como são raros tais ser-
vos e como é grande seu encargo. julgue-se isso pela recompensa que lhe destina: Ele o
estabelecerá sobre todos os seus bens [Mt 24,47].

E então dirás que te enganei e te prejudiquei quando te entreguei o governo das coisas
de Deus, quando te confiei o exercício das funções que mereceram a Pedro sua preemi-
nência sobre os demais apóstolos? Pedro, disse-lhe o Senhor, amas-me mais que estes?
Então, apascenta os meus cordeiros! Ele poderia ter dito: “Se me amas, pratica o jejum,
deita-te sobre o chão duro, passa as noites em vigia, defende os oprimidos, sê o pai dos
órfãos e o defensor das viúvas” … Mas não, não lhe prescreve nada disso, contenta-se
em recomendar-lhe seu rebanho: Então, apascenta meus cordeiros!

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O sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está entre as coisas do céu. E com
razão. Não foi homem, anjo, arcanjo, ou qualquer outra potência criada, foi o próprio
divino Paráclito quem assim dispôs: que seres ainda permanecendo na carne exercessem
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esse ministério dos anjos. Seria preciso que o sacerdote fosse tão puro como se estivesse
no céu, colocado entre os anjos. Recorde-se a majestade das cerimônias no sacerdócio
hebraico, o te- mor reverenciar, o santo terror que inspirava, todo aquele conjunto de
campainhas de ouro, romãs de púrpura, pedras preciosas a brilharem sobre o peito e
espáduas do sumo sacerdote, sua mitra, seu diadema, a longa túnica, a lâmina de ouro,
enfim o Santo dos Santos e o silêncio profundo que lá havia. Todas essas exterioridades
eram pouco em comparação aos mistérios da lei da graça, e o Apóstolo disse justamente
que o brilho do primeiro sacerdócio nada era ao lado da glória supereminente do se-
gundo [2Cor 3,10]. Realmente, quando vês o Senhor imolado sobre o altar, e o sacerdo-
te a inclinar-se sobre a vítima, em profunda oração, e os circunstantes com os lábios
enrubescidos pelo precioso sangue, pensas estar ainda entre os homens e sobre a terra?
Não te parece antes teres sido transportado subitamente para o céu e ali, banidos os pen-
samentos carnais, contemplares com a alma pura as coisas celestes? O prodígio! O bon-
dade de Deus! Aquele que se assenta junto do Pai, nesse momento se deixa segurar pe-
las mãos dos circunstantes e se doa aos que desejam recebê-lo e abraçá-lo. Eis o que
percebem os olhos da fé! Tais grandezas acaso te parecem dignas de desprezo ou aptas
para revoltar nosso orgulho?

Será preciso apelar para a comparação com outro prodígio para se demonstrar a exce-
lência de nossos santos mistérios? Imagina o profeta Elias, cercado de imensa multidão,
no momento em que estendia as vítimas sobre as pedras do altar. Os assistentes ali estão
imóveis e no maior silêncio. Só o profeta fala, e para orar. Súbito desce fogo do céu e
abrasa a vítima. Que cena admirável, própria para extasiar a alma!

Volta agora os olhos para nossos altares e verás um prodígio ainda maior. Lá também o
sacerdote está de pé, invocando sobre a terra, não o fogo extinguível mas o Espírito
Santo. Se fica algum tempo em oração, não é para pedir que uma chama desça do céu e
devore a vítima, mas para que a graça, descendo sobre a vítima, abrase através dela as
almas ali presentes, tornando-as mais puras e refulgentes que a prata ao fulgor do sol.
Quem, portanto, sem ser insensato ou pobre de espírito, desprezará tais mistérios terrí-
veis? E o ardor desse fogo espiritual - não o ignoras - jamais haveria alma humana ca-
paz de o suportar: ela seria aniquilada se a graça divina não a viesse socorrer.

AS BEM-AVENTURANÇAS
(Trechos da Homilia XV sobre Mateus. P.G. 57, 223-228)

Vede como o Senhor se abstém de todo fausto e grandeza! Sem cortejo numeroso, vai
por toda a parte, atravessa cidades e aldeias a curar doenças. Quando a multidão acorre,
senta-se em lugar campestre, não em povoado ou no meio das praças, mas na solidão de
um monte. Destarte nos ensina a nada fazer por ostentação e a afastar-nos do tumulto e
ruído, para ouvirmos os ensinamentos da sabedoria e meditarmos sobre as verdades
eternas.

Aproximam-se os discípulos, depois que ele subiu ao monte e se assentou. Notai seu
progresso na virtude e a feliz transformação por que passaram. Enquanto muitos só aspi-
ravam a ver milagres, eles desejavam uma grande e sublime doutrina. Foi o que levou
o Mestre a instruí-los e a dar início a este discurso. Não só curava os corpos mas tam-
bém convertia as almas; passava de um ministério a outro, variando seus benefícios e
unindo à pregação da doutrina o ensinamento por obras. Assim impunha silêncio à ousa-
dia dos hereges, pois;, ao prestar cuidado tanto às almas como aos corpos, comprovava
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ser o Criador de todo o composto humano. A ambas as substâncias estendia sua provi-
dência, curando ora uma ora outra. Tal era seu modo de proceder.

“Abrindo a boca” - diz o Evangelho – “ensinava-os”. Por que motivo se acrescentou


esta expressão: “abrindo a boca”? Para aprenderdes que ele ensinava seja calando, seja
falando, tanto por palavras como por obras fazia ouvir sua voz. Ao ouvirdes que ele “os
ensinava”, não julgueis que se dirigia somente aos discípulos, mas, por intermédio de-
les, a todos os demais. Como a multidão do povo ainda rastejava por terra, o Senhor
coloca diante de si o grupo dos discípulos e lhes dirige seu discurso, moderando as pa-
lavras, para não molestar os rudes com a doutrina da sabedoria. É o que Lucas também
insinua. O mesmo declara Mateus, quando diz: “Aproximaram-se dele seus discípulos e
ele os ensinava”. Deste modo os ouvintes prestariam mais atenção do que se a todos
dirigisse a palavra.

Por onde começa? Que fundamento estabelece para a nova lei? Ouçamos o que vai di-
zer; porquanto, se para alguns ouvintes suas palavras foram proferidas, para todos os
vindouros foram escritas. Na pregação dirigida aos discípulos, não restringe a eles seu
discurso, mas de modo indeterminado proclama as bem-aventuranças.

Com efeito, não disse: “Bem-aventurados sereis, se fordes pobres”, mas, “bem-
aventurados os pobres”. Embora lhes falasse em particular, os conselhos haviam de ser
comuns a todos os pósteros. Assim, ao dizer: “Eis que estou convosco todos os dias até
à consumação dos séculos” [Mt 28,20], não falava apenas aos discípulos presentes, mas
na pessoa deles ao mundo inteiro. Igualmente, quando os declara bem-aventurados por
terem de sofrer perseguição, exílio e toda espécie de intoleráveis injúrias, não só a eles
promete recompensa, senão a quantos suportarem corajosamente idênticos males.

Além disso, para que esta verdade se torne mais evidente e compreendais que a vós e a
toda a natureza humana se dirigem os conselhos, ouvi o exórdio deste admirável discur-
so: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”.

Quem são os pobres de espírito? Os humildes e contritos de coração. Nesta passagem o


espírito significa a alma, a intenção da vontade. Muitos pobres há, não por livre escolha,
mas, constrangidos pela necessidade; a estes não se refere o Senhor, porque em si, tal
condição não é motivo de elogio; os primeiros que ele declara bem-aventurados são os
que por própria deliberação se humilham e abatem.

Por que não os chama humildes, mas, pobres? É por que este titulo abrange o outro.
Designa os homens tementes a Deus e observantes dos seus preceitos, os mesmos nos
quais pelo profeta Isaías o Senhor declara comprazer-se. “a quem olharei senão ao po-
brezinho contrito de coração, que teme minhas palavras?” [Is 66,2]

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“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”. Que entender por esta palavra? A
virtude, em geral, ou a espécie de justiça oposta à avareza? Como o Senhor ia promul-
gar o preceito relativo à esmola, ensina de que modo é mister exercê-lo. Beatificando a
justiça, condena a avidez.
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Notai a força da expressão usada pelo Senhor. Não disse apenas: “Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça”? Destarte, inculca a necessidade de abraçá-la com todo
o ardor da alma, não apenas por desencargo de consciência. Maior do que o desejo de
alimento e bebida é a ambição da avareza em adquirir e possuir bens; por isso nos man-
da transformar tal desejo na virtude oposta a este vício. E de novo promete prêmio sen-
sível, dizendo: “porque serão saciados”. É opinião corrente que a avareza enriquece.
Cristo afirma o contrário: é a justiça que produz este efeito. Se caminhantes nas vias da
justiça, não deveis recear a pobreza, pois não havereis de sofrer fome. Aos homens am-
biciosos cabe o temor de serem despojados de seus bens; os justos, porém, hão de pos-
suir tudo com segurança. Se os que não cobiçam os bens alheios gozam de tantas rique-
zas, quanto mais os que distribuem os próprios haveres.

“Bem-aventurados os misericordiosos”. Não merecem este título somente os que fazem


esmola com dinheiro; julgo que também dele são dignos os que a praticam pelas obras.
Diversas formas reveste a misericórdia, bem extenso é este preceito. Qual será sua re-
compensa? 'Eles mesmos alcançarão misericórdia'. Os termos são equivalentes; mas na
realidade a recompensa supera de muito a boa obra. Os homens exercem a misericórdia
na medida em que podem; em troca recebam-na de Deus em medida copiosa. Pois, não
há comparação entre a misericórdia divina e a humana; entre ambas a distância é como
entre a bondade e a malícia.

“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” Eis outra vez a promessa
de recompensa espiritual. Os homens de coração puro são, conforme o pensamento do
Senhor, os que praticam toda espécie de virtudes e cuja consciência de nada os acusa,
ou os que vivem na castidade? Com efeito, não há virtude que nos seja tão necessária
como esta para contemplarmos a Deus. Por este motivo, dizia são Paulo. “Vivei em paz
com todos e na pureza, sem a qual ninguém verá o Senhor” [Hb 12,14].

Trata-se da visão de Deus, na medida que é possível ao homem. Muitos há que fazem
esmolas, não são ambiciosos ou avarentos e todavia entregam-se à impureza. A tais
homens adverte o Senhor não serem suficientes as outras virtudes. Também Paulo na
Epístola aos coríntios diz, a respeito dos macedênios, que eram ricos não só pela prática
da esmola senão também por outras virtudes. Após ter falado da liberdade de seus dons,
acrescenta: “eles se dedicaram ao Senhor e a nós” [2Cor 8,5].

“Bem-aventurados os pacíficos”. Não se contenta o Senhor em banir dissensões e inimi-


zades. Exige algo mais que procuremos restabelecer a concórdia entre adversários.
Promete uma recompensa espiritual. Em que consiste esta recompensa? “Serão chama-
dos filhos de Deus”. É obra por excelência do Filho unigênito unir os que estavam sepa-
rados, reconciliar os litigiosos. Em seguida, para que não julgueis ser desejável a paz
sob qualquer condição, prossegue: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por
amor à justiça”, a saber, por causa da virtude, pela defesa do próximo ou da religião. Na
virtude consiste a perfeita sabedoria da alma.

“Bem-aventurados sereis quando vos injuriarem, perseguirem e, mentindo, disserem


todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-vos e exultai”. É como se Cristo dissesse:
“Quando vos chamarem de sedutores e maléficos ou vos derem qualquer outro nome
injurioso, então sereis felizes”. Que haverá de mais estranho de que tais exortações,
propondo a nossos desejos o que sempre será objeto de temor, a saber: mendigar, cho-
rar, sofrer perseguições e insultos? Todavia, assim falou Cristo para persuadir não a
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duas, dez, vinte, cem, mil pessoas, mas ao mundo inteiro. As multidões, atônitas, ouvi-
am predições tão terríveis, tão contrárias ao sentimento vulgar. Ouviam-no, contudo,
por ser grande a autoridade do Mestre.

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE S. MATEUS


(P.G. 57, 55s)

Meditar em casa a homilia do domingo

Ouço alguns dizerem: quando estamos na igreja gostamos de escutar a doutrina e, toca-
dos de compunção, nos sentimos atraídos pela palavra de Deus, mas, tão logo saímos
dali, muda nossa disposição completamente e se extingue todo o fervor levaria um meio
para impedir essa instabilidade?

Consideremos qual será a causa. De onde vem tal mudança? Deriva do fato que fre-
qüentamos lugares inconvenientes e pessoas que não se recomendam. Não deveríeis, ao
sair da igreja, lançar-vos logo em atividades que não se harmonizam com o que acabas-
tes de ouvir. Chegando em casa deveríeis pegar o Evangelho e junto com a mulher e os
filhos reler e meditar o que vãs foi dito, para só então retomar vossos afazeres. Geral-
mente evitais ir logo à praça depois do banho, para não perder o benéfico efeito; pois a
precaução é mais necessária quando saís da igreja! Entretanto fazemos o contrário disto
e perdemos os frutos da sementeira: antes que esta tenha tempo de fixar as raízes na
nossa alma, já um assalto impetuoso de preocupações terrenas a investe e arranca tudo
de nosso coração. Se não quereis que isto aconteça mais, ao deixardes estas reuniões
considerar que não há coisa mais necessária do que a meditação sobre os ensinamentos
recebidos. Seria de fato uma ingratidão e desconsideração dedicar cinco ou seis dias aos
afazeres terrenos e não dar um dia, até pequena parte de um dia, às coisas espirituais.
Não vedes que vossos filhos estudam e repetem durante o dia inteiro o que escutaram na
escola? Imitemo-los! pois se cada dia jogamos a água num vaso furado, se não pomos,
no conservar a palavra de Deus, o mesmo cuidado que empregamos para guardar o ouro
e a prata, não obteremos vantagem alguma em nossos encontros. Quando alguém recebe
dinheiro, guarda-o bem numa sacola e até a fecha com selo; nós porém depois de ou-
virmos a palavra de Deus, infinitamente mais preciosa que o ouro e as pedrarias, não
cuidamos de guardá-la no íntimo da alma e deixamos com indiferença que se percam do
espírito os tesouros do Espírito Santo. Quem terá pena de nós se nos expomos a nós
mesmos e nos deixamos reduzir a uma condição de miséria? Para impedir que isto acon-
teça, assumi a lei inviolável de consagrar um só dia da semana, mas totalmente, a escu-
tar e meditar a palavra de Deus. Essa aplicação constante vos fará acorrer com mais
docilidade e prontidão às nossas sucessivas pregações; estareis poupando um grande
trabalho nosso e ao mesmo tempo tirareis maior proveito de nossas explicações, ouvin-
do o que se segue com a lembrança ainda na mente do que foi dito antes. ]É muito im-
portante, de fato, para compreender o que dizemos, recordar com exatidão o desenvol-
vimento de nossas exposições. Sendo impossível que digamos tudo de uma só vez, vos-
sa memória deve ir coletando o que somos forçados a dizer em diversos dias, formando-
se um encadeamento, de modo que possais ver com o olho do espírito toda a Escritura
juntada num só corpo. Procurai, pois, recordar-vos do que já temos explicado do Evan-
gelho, de modo que se possa passar adiante.

HOMILIA SOBRE A 1ª EPISTOLA AOS CORÍNTIOS


(P.G. 61,81-87)
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“Assim nos considerem os homens: como ministros de Cristo e dispensadores dos mis-
térios de Deus” [1Cor 4,1]. Aos mesmos cuja arrogância rebaixou, o Apóstolo dirige
agora uma palavra de reerguimento: “como ministros de Cristo”. Não abandones o Se-
nhor para te nomeares a partir de servos. “Dispensadores”, diz ainda, indicando o dis-
cernimento com o qual hão de ser distribuídos os bens do Senhor: não a todos mas àque-
les aos quais convém. “E isto se requer dos dispensadores, que sejam fiéis”. [1Cor 4,1]
Por outras palavras, não se usurpe como coisa própria o que pertence ao Senhor. Cabe
ao dispensador administrar honestamente o que lhe foi confiado, reconhecendo a propri-
edade do Senhor. Isto vale, seja quanto à palavra da pregação, seja quanto aos bens ma-
teriais: trata-se sempre de coisas do Senhor, recebidas em confiança.

Desejas conhecer dispensadores fiéis? Ouve a Pedro: por que nos considerais como se
por nossa própria força ou piedade tivéssemos feito este' homem andar?” [At 3,12]. Ele
mesmo dizia a Cornélio: “somos homens mortais, sujeitos às condições de todos”. [At
14,15] E a Cristo: “eis que deixamos tudo e te seguimos” [Mt 19,27]. Paulo, por sua
vez, depois de escrever: “trabalhei mais do que todos”, acrescentou: “não porém eu e
sim a graça de Deus comigo” [1Cor 15,10]. E em outra ocasião: “que tens tu que não
recebeste?” [1Cor 4,7]. Nada na verdade tens de teu: dinheiro, palavra ou a própria vida
- pois também esta é do Senhor. Se necessário, oferece até tua vida. Se amas tua vida e
não aceitas devolvê-la quando te é pedida, já não és fiei dispensador. Como se haveria
de resistir a um apelo de Deus? Por causa disto aliás, admiro a bondade divina: Ele pode
reclamar de ti, mesmo contra tua vontade, mas não o faz assim, para teres merecimento;
ele pode reclamar tua vida contra tua vontade, mas prefere que a ofereças livremente e
digas como Paulo: “morro todos os dias” [1Cor 15.31; pode receber tua glorificação
humilhando-te, mas não o quer assim; pode tornar-te pobre mas prefere que isto desejes
por ti mesmo para teres a recompensa. Vês a bondade de Deus e a nossa indolência.

Chegaste à alta dignidade do sacerdócio? Não te envaideças, pois foi o Senhor quem te
revestiu de tal glória. Serve-te dela como de coisa alheia, não a uses para o que não de-
ves, não te inches por causa dela; reconhece-te, ao contrário, pobre e humilde. Mesmo
que te seja dada a púrpura régia, use-a com cautela, evitando manchá-la e procurando
conservá-la para quem ta entregou. Recebeste o dom da palavra? Não te engrandeças
porque o encargo e dom de falar não é coisa tua. Não te apropries do que pertence ao
Senhor, antes oferece-o ao próximo. Não te envaideças ou te mostres avaro no distribuí-
lo aos outros.

Se tens filhos, eles pertencem a Deus. E se te persuades disto, darás graças enquanto os
tens e depois, ao te serem tirados, não desesperarás. É a lição de já. “o Senhor deu, o
Senhor tirou” [Jó 1,21].

Com efeito, tudo que possuímos provém de Cristo, e até tudo o que somos, nossa vida
com a respiração, a luz, o ar, a terra. Se um destes bens nos faltar, resta-nos morrer, co-
mo estrangeiros e peregrinos que realmente somos.

Falar do “meu” e do “teu” significa pronunciar palavras sem sentido. Se dizes que a
casa é tua, a afirmação é falsa, pois também o ar, a terra e a matéria pertencem ao Cria-
dor, tanto quanto tu, que construíste a casa, e qualquer outra coisa. Se dizes que ao me-
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nos o uso te pertence, respondo que mesmo o uso é incerto, pela eventualidade da mor-
te, e, já antes, pela instabilidade dos eventos.

Se nos persuadimos intimamente destes conceitos, chegaremos a uma justa compreen-


são da realidade e obteremos resultados muito preciosos: seremos gratos quando e en-
quanto tivermos algo; e não nos tornaremos escravos das coisas fugazes e alheias.

Se Deus te leva o dinheiro, retoma o que é seu; e o mesmo se diga da glória do corpo ou
da alma. Se te leva um filho, não é teu filho que leva, mas um servo seu. Não foste
quem o criaste, e sim ele. Tu foste apenas o instrumento de sua vinda. Manifestemos
pois nosso reconhecimento por sermos julgados dignos de ser instrumentos da obra do
Senhor. Quererias talvez ter filho para sempre ao lado? És então ingrato, não te dás con-
ta de que ele pertencia a outrem, não a ti (... )

Se nós não somos nossos, como eles seriam nossos? Nós pertencemos duplamente a
Deus, sob o ângulo da criação e da fé. Por isto dizia Davi: “toda a minha substância está
em tuas mãos” [Sl 38,8]. E Paulo: “em Deus vivemos, nos movemos e existimos” [At
17,28]. Quando trata da fé, diz ele depois: “não sois vossos, fostes comprados por gran-
de preço” [1 Cor 6,19s].

Na verdade, tudo pertence a Deus. Quando o Senhor retoma algo, não sejais os como os
que falsificam as contas, servos desonestos que se arrogam direitos sobre o que não é
seu. Se nem tua alma é tua, sê-lo-ia teu dinheiro? Por que desperdiças inutilmente bens
que não são teus? Não sabes que seremos acusados de os termos administrado mal?

Com efeito, o que não é nosso, mas do Senhor, devemos dispensar ao próximo. Ao rico
que não tiver agido assim, será cobrado seu comportamento, e da mesma forma a todos
que se tiverem recusado a dar de comer ao Senhor. Não se diga: “gasto os meus bens,
usufruo deles”. Eles não são teus, pertencem aos outros. Digo porém: “aos outros”, pen-
sando que tu mesmo o queres: Deus manda que sejam consideradas tuas as coisas confi-
adas a ti em benefício dos irmãos.

Os bens alheios se tornam tua propriedade quando os distribuis ao próximo. Se ao con-


trário os usas em teu benefício, ei-los tornados coisa dos outros. Do momento em que te
serves deles de modo egoístico, como a dizer: “é justo que minhas riquezas sejam gastas
exclusivamente para meu uso e consumo”, digo-te que tais riquezas já não são tuas, per-
tencem aos outros. Porque são bem comum e seu usufruto compete igualmente a teu
próximo. Da mesma forma que são comuns o sol, o ar e a terra, isto é, todas as coisas.

Com o uso dos bens ocorre o mesmo que com o corpo: cada membro pode desempenhar
a própria função somente se acha unido ao conjunto; desde que determinado órgão se
separe, passa a ficar privado da própria capacidade.

Para explicar-me com maior clareza: se o alimento corpóreo destinado a todos os órgãos
fosse dado apenas a um deles, se tornaria inútil para o mesmo, pois não poderia ser as-
similado e produzir qualquer efeito; se porém o organismo inteiro é alimentado, cada
órgão se beneficia tanto quanto o conjunto. Não de outra forma acontece com as rique-
zas: se pretendes gozá-las sozinho, já as perdeste porque não receberás recompensa; se
ao contrário repartes com outros sua posse, serão mais tuas e te proporcionarão verda-
deiro lucro.
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Não vês que as mãos tomam o alimento, a boca o mastiga e o estômago o recebe? Ora,
diria o estômago: “se fui eu que recebi o alimento, vou retê-lo para mim”? Nem tu fales
deste modo a respeito de teus bens! Cabe a quem recebe riquezas distribuí-las aos ou-
tros. Da mesma forma que o estômago adoece quando retém os alimentos, danificando o
organismo, também é doença para os ricos reter para si o que possuem; seu comporta-
mento causará danos a si e aos outros. O olho recebe a totalidade da luz, mas não a re-
tém, e ilumina com ela todo o corpo. Não lhe cabe, como olho, reservar-se unicamente
toda a luz. O nariz, embora capte os perfumes, não os retém, remete-os ao cérebro, ao
estômago, em proveito do todo. Os pés caminham por si, nas para que o corpo se mova
por meio deles. Também tu deves abster-te de reservar para teu uso o que te foi conce-
dido, pois prejudicarias a todos, principalmente a ti mesmo.

Os exemplos poderiam tirar-se de outras fontes. O serralheiro, se quisesse lucrar sozi-


nho ao trabalhar, se prejudicaria e prejudicaria as demais atividades. O mesmo vale do
sapateiro, do lavrador, do moleiro, de todos que pretendam excluir os outros dos benefí-
cios de seu trabalho.

E que dizer dos ricos? Pois também os pobres poderiam prejudicar-vos, se imitassem
vossa avareza, levando-vos em breve tempo à miséria e à ruína, caso recusassem pres-
tar-vos seu trabalho necessário: por exemplo, se o lavrador sonegasse seu produto, se o
marinheiro não entregasse a mercadoria das viagens, se o soldado não combatesse na
guerra. Portanto, ainda que sem outro motivo, ao menos por vergonha procurai imitar a
benevolência deles.

Não condividís as riquezas com ninguém? Sabei que nada recebereis, e se isto acontecer
a situação se inverterá. Em todos os planos, o dar e o receber são fontes de numerosos
efeitos positivos: na sementeira, nas ciências, nas artes. Quem presumisse exercer uma
atividade para si lesaria a si e ao mundo. O agricultor, guardando as sementes, causa a
carestia. E assim o rico, se agisse deste modo, se danaria antes dos pobres, atraindo so-
bre a cabeça a chama da geena.

Da mesma forma que os mestres, os quais, apesar dos muitos discípulos, sabem dedicar
a cada um seu ensino, também poderás, pelas boas obras, socorrer muitas pessoas. Mui-
tos se ouvirão dizendo: “livrou a este da pobreza, aquele do perigo”; “eu estaria morto
se, por graça de Deus, não me tivesse salvo”, “preservou um da doença, outro da calú-
nia, hospedou a este, vestiu o nu”. Palavras do gênero são mais preciosas que muitas
riquezas e tesouros, encantam mais que vestes douradas, cavalariças e servos, pois estas
coisas te tornam desagradável, te dão a aparência de um inimigo comum, ao passo que
as boas obras te apresentam como um pai comum e benfazejo. E - o que é principal - a
benevolência de Deus seguirá todos os teus atos...

C. Folch Gomes. Antologia dos Santos Padres. 2 Edição. São Paulo, Edições Paulinas,
1979. pp. 279-295.

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