Você está na página 1de 12

Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

AS SETE CARTAS DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA

Sobre as obras

➢ Autor: Foi o terceiro bispo de Antioquia, depois de Santo Evódio, que sucedeu São Pedro.
Padre Apostólico, que conheceu os apóstolos, estava em Antioquia quando estalou uma
perseguição de caráter local, e da qual pode ter sido a única vítima. Foi preso e condenado às
feras do anfiteatro de Roma, partindo para lá acompanhado de
dez soldados. A viagem, ora por mar, ora por terra, foi longa. O
seu suplício foi consumado em Roma, provavelmente em 20 de
dezembro do ano 107, sendo devorado pelos leões,
provavelmente no recém-inaugurado Coliseu.
➢ As Cartas: Ao todo treze cartas foram atribuídas a Santo Inácio
de Antioquia, mas de sua autoria certa sabemos que são apenas
sete, todas elas escritas durante sua viagem a Roma. Quando
passou pela província da Ásia, visitou as igrejas de Éfeso,
Magnésia e Trales, deixando-lhes cartas de despedida ao partir
(daí a origem das cartas aos Efésios, aos Magnesianos e aos
Tralianos). Em Esmirna foi recebido pelo bispo São Policarpo, e
de lá enviou a carta aos Romanos, suplicando à Igreja de Roma
que nada fizesse para impedir seu martírio. De Troas escreveu
aos Filadelfienses, aos Esmirnotas e a carta a São Policarpo, que
o recebera em Esmirna. São essas sete as epístolas que
examinaremos.
➢ Data: Não é possível dizer com exatidão a data. As datas, na vida
de Santo Inácio, não são exatas, mas prováveis. Se ele de fato
tiver morrido no ano 107, as cartas foram escritas nos anos
anteriores a este. O certo é que foram todas escritas na primeira
década do século II, menos de dez anos após a Carta de São
Santo Inácio de Antioquia
Clemente, examinada na aula anterior.
➢ Importância: As cartas de Santo Inácio são de uma importância capital, e somente seu estudo
poderá demonstrá-lo: exorta seus destinatários a se precaverem contra as heresias,
especialmente contra os judaizantes, mostrando que o tempo do judaísmo perecera e fora

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

substituído; exorta os fiéis a permanecerem com seu bispo e com seu clero e deles não se
separarem; deixa claro a hierarquia sacerdotal, insistindo no princípio do episcopado
monárquico; além de ser em uma delas que pela primeira vez se tem uma demonstração clara
da primazia da Sé de Roma.

(Padre Insuelas. Curso de Patrologia, p. 30-32).

Análise introdutória das cartas

➢ Siglas e abreviações utilizadas:


o Carta de Santo Inácio aos Efésios: Ef (não confundir com a Carta de S. Paulo).
o Carta de Santo Inácio aos Magnésios: Mg.
o Carta de Santo Inácio aos Tralianos: Tr.
o Carta de Santo Inácio aos Romanos: Rm (não confundir com a Carta de S. Paulo).
o Carta de Santo Inácio aos Filadelfienses: Fl.
o Carta de Santo Inácio aos Esmirnotas: Em.
o Carta de Santo Inácio a São Policarpo: Ad Polycarpum.
➢ Essa aula não analisará cada um dos textos em separado, e sim todos de modo sistemático.
Abordará cada um dos temas mais tratados pelo santo em suas epístolas procurando conjugar
seus argumentos e exortações para se dar a entender de modo claro o pensamento de Inácio.
➢ Diga-se de antemão que nas Cartas que Santo Inácio de Antioquia escreveu durante sua longa
viagem até o anfiteatro romano estão expostos com clareza os aspectos essenciais que definem
a Igreja Católica: a sua unidade, a origem divina do sacerdócio, a hierarquia eclesiástica, o
primado romano, a Eucaristia como corpo e sangue de Cristo, a tradição apostólica, a
intercessão dos santos e a própria santidade.
➢ Duas preocupações são as mais evidentes em seis das cartas de Santo Inácio: a unidade da Igreja
e a pureza da fé, dois elementos intrinsecamente ligados e necessariamente indissociáveis. A
única das cartas que não é dedicada a este tema é a endereçada à Igreja de Roma, redigida com
o objetivo de expor as razões de seu próprio martírio.

A Unidade da Igreja

➢ A preocupação eclesiológica de Santo Inácio é evidente em quase todas as suas cartas: a Igreja
é uma só, deve permanecer unida, e deve preservar íntegra sua fé.

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

➢ Em primeiro lugar, há que se ressaltar que a Igreja, apesar de espalhada em todos os cantos da
terra, é uma só, é “universal”, é “Católica”, termo usado pela primeira vez pelo próprio Santo
Inácio na carta aos esmirnotas (Em 8,2): “Onde aparece o bispo, aí esteja a multidão, do mesmo
modo que onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica”.
➢ Reafirma em todas as cartas a unidade da Igreja. Aos magnésios (Mg 7,2) exorta a “Correi
todos juntos como ao único templo de Deus, ao redor do único altar, em torno do único Jesus
Cristo, que saiu do único Pai e que era único em si e para ele voltou” e ainda que (Mg 7,1)
“reunidos em comum, haja uma só oração, uma só
súplica, um só espírito, uma só esperança no amor, na
alegria imaculada que é Jesus Cristo, nada é melhor do
que ele.” (Mg 7,1).
➢ Aos trálios (Tr 7,2) diz que “Aquele que está dentro do
santuário é puro, mas aquele que está fora do santuário
não é puro”.
➢ Aos filadelfienses (Fl 4) essa unidade fica ainda mais
clara: “Preocupai-vos em participar de uma só eucaristia.
De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e
um só cálice na unidade do seu sangue, um único altar,
assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos.”
Aos esmirnotas (Em 1,2), após descrever a morte e
ressurreição de Cristo, diz: “É graças a esse fruto, à sua “Una, Santa, Católica e Apostólica”, as quatro notas da
Igreja, já expostas nas cartas de Santo Inácio.
divina e feliz paixão que nós existimos, a fim de erguer
para sempre um estandarte pela ressurreição para os seus santos e fiéis, tanto judeus como
pagãos, no corpo único da sua Igreja.”
➢ Aos trálios (Tr 11,2) enfatiza que os fiéis (a Igreja), são o Corpo único e indiviso de Cristo:
“Por meio de sua cruz, Cristo vos chama em sua paixão, vós que sois membros dele, a cabeça
não pode ser gerada sem os membros, pois Deus prometeu a unidade, que é ele mesmo”.

A hierarquia eclesiástica

➢ Mas seria essa unidade meramente espiritual e invisível, como protestarão os protestantes
quatorze séculos depois? Não. Em cada uma das cartas, exceto naquela aos romanos, Santo
Inácio frisa que a unidade da Igreja se dá em torno de uma hierarquia visível, composta por

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

homens vindos dos apóstolos e que são chamados a governar o povo católico em cada uma das
igrejas locais. Ou seja, essa unidade não é apenas invisível e mística, mas visível e histórica.
➢ O sacerdócio católico tem origem divina, insiste Santo Inácio aos efésios (Ef 6,1) que “É
preciso que o recebamos (ao bispo) como se fosse aquele que o enviou. Está claro, portanto,
que devemos olhar o bispo como ao próprio Senhor”. Aos magnésios (Mg 3,1-2) diz que ao
bispo deve-se tributar “toda reverência”, se submetendo a ele, ou melhor, “não a ele, mas ao
Pai do bispo de todos, Jesus Cristo”. E aos filadelfienses (Fl Saudação) mostra essa origem
divina ao dizer que o bispo, os presbíteros e os diáconos foram “estabelecidos conforme o
pensamento de Jesus Cristo, o qual, segundo sua própria vontade”.
➢ A hierarquia católica – bispo, presbítero, diácono – é exposta à exaustão por Santo Inácio,
a ponto de não se poder questionar que esse sistema hierárquico é de instituição
apostólica. Na carta aos trálios (Tr 3) manda que “todos respeitem os diáconos como a Jesus
Cristo, e ao bispo, que é a imagem do Pai, e os presbíteros como à assembleia dos apóstolos.
Sem eles, não se pode falar de Igreja.” Na carta aos esmirnotas (Em 8,1) diz: “segui todos ao
bispo, como Jesus Cristo segue ao Pai, e ao presbitério com os apóstolos; respeitai os diáconos
como à lei de Deus”.
➢ Aos magnésios (Mg 6,1) expõe com inigualável clareza a hierarquia eclesiástica: “Por isso vos
peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do
bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio dos apóstolos, e
dos diáconos, que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo,
que antes dos séculos estava junto do Pai e por fim se manifestou.”
➢ Em suma, a unidade da Igreja se dá, em primeiro lugar, pela união dos fiéis em torno de sua
legítima hierarquia. Por isso Inácio exorta os efésios (Ef 4) a caminharem de acordo com “o
pensamento do vosso bispo”, para que toda a Igreja Católica se torne “um só coro, a fim de que,
na harmonia de vosso acordo, tomando na unidade o tom de Deus, canteis a uma só voz, por
meio de Jesus Cristo, um hino ao Pai, para que ele vos escute e vos reconheça por vossas boas
obras, como membros do seu Filho. É proveitoso que estejais em unidade inseparável, a fim
de sempre participar de Deus”. Essa necessária unidade em torno do bispo é uma
correspondência à unidade da Igreja com Jesus Cristo, e de Jesus Cristo com o Pai (Ef 5,1).

O primado romano

➢ É em uma das cartas de Santo Inácio que está uma das mais antigas evidências do
reconhecimento do primado da Igreja Romana. À exceção das outras seis, na carta aos romanos

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

não há nenhum tipo de lição. Não fala de submissão ao bispo, não fala de manter a unidade,
não fala de fugir da heresia, nada disso. Escreve apenas para fazer um pedido.
➢ O reconhecimento evidente do primado se dá na saudação da carta (Rm Saudação): “Inácio,
também chamado Teóforo, à Igreja que recebeu a misericórdia, por meio da magnificência do
Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único; à Igreja amada e iluminada pela bondade
daquele que quis todas as coisas que existem, segundo fé e amor dela por Jesus Cristo, nosso
Deus; à Igreja que preside na região dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de
ser chamada feliz, digna de louvor, digna de
sucesso, digna de pureza, que preside ao amor,
que porta a lei de Cristo, que porta o nome do
Pai; eu a saúdo em nome de Jesus Cristo, o Filho
do Pai. Àqueles que física e espiritualmente estão
unidos a todos os seus mandamentos,
inabalavelmente repletos da graça de Deus,
purificados de toda coloração estranha, eu lhes
desejo alegria pura em Jesus Cristo, nosso Deus.”
➢ Enfatiza, na mesma carta, que não ousa dar ordens
São Pedro em vestes pontificais
à Igreja de Roma: “Não vos dou ordens como
Pedro e Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um condenado. Eles eram livres, e eu até agora
sou um escravo” (Rm 4,3).

A unidade da fé e o combate à heresia

➢ Se por um lado a unidade da Igreja se dá na união em torno dos legítimos pastores instituídos
por Deus, ela não será possível quando há a disseminação de erros dentro da Igreja. Com efeito,
de que se trata essa unidade de que fala Santo Inácio a não ser na verdadeira fé em Jesus
Cristo? Isso fica claro na carta aos magnésios (Mg 1,2), na qual diz que “desejo-lhes a união
na carne e no espírito de Jesus Cristo, nossa eterna vida; união na fé e no amor, ao qual nada
é preferível, e, o que é mais importante, união com Jesus Cristo e o Pai”.
➢ É por isso que uma de suas maiores preocupações é impedir que doutrinas heréticas penetrem
no redil da Igreja. Outrossim, a unidade que defende tão ardorosamente só é possível na verdade
(não pode haver unidade entre a verdade e o erro) e, por isso, do mesmo modo e com a mesma
clareza que enfatiza a unidade da Igreja em torno do bispo e a dignidade divina do sacerdócio,
exorta os fiéis a fugirem da heresia. Isso fica claro na carta aos filadelfienses (Fl 2-3): “Filhos

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

da luz verdadeira, evitai as divisões e más doutrinas. Onde estiver o pastor, aí deveis segui-lo
como ovelhas. De fato, muitos lobos se fazem dignos de fé, através de aliciamento mau, e
cativam os que correm com Deus. Eles, porém, não terão lugar em vossa unidade.”
➢ Usa palavras duríssimas para se referir aos hereges: aos efésios (Ef 7,1) chama-os de
“pessoas que dolosamente costumam levar o nome (de cristãs), mas agem de modo diferente e
indigno de Deus”. Deve-se evitá-las como se fossem “feras selvagens”, pois são “cães raivosos
que mordem sorrateiramente”. Aos filadelfienses (Fl 3) se refere aos hereges como “plantas
más, que Jesus Cristo não cultiva”. Aos trálios (Tr 11) chama-os de “plantas parasitas”, que
“produzem fruto mortal, e quem o experimenta morre imediatamente”.
➢ Qual o destino dos hereges? Diz aos efésios (Ef 16,2) que o destino “daqueles que corrompem
a família de Deus” é “o fogo inextinguível, juntamente com os que os escuta”, e aos
filadelfienses (Fl 3,3) que “se alguém segue cismático não herdará o Reino de Deus. Se alguém
caminha em conhecimentos estranhos, esse não participa da Paixão”.
➢ Ao bispo São Policarpo (Ad Polycarpum 3)
orienta firmeza com os hereges: “Aqueles
que parecem dignos de fé, mas ensinam o
erro, não te amedrontem. Permanece firme,
como a bigorna sob os golpes do martelo. É
próprio de grande atleta aparar os golpes e
vencer. É por causa de Deus que devemos
suportar tudo, a fim de que ele também nos
suporte. Sê mais zeloso do que és; discerne os
tempos.” Triunfo da Igreja sobre a heresia
➢ Santo Inácio exorta cada uma das igrejas a se
manterem firmemente na fé verdadeira. Aos magnésios (Mg 8,1) diz que não se deixem
nganar “por doutrinas heterodoxas nem por velhas fábulas que são inúteis”. Aos trálios (Tr
6,1) exorta: “não eu propriamente, mas o amor de Jesus Cristo, a usar somente alimento
cristão, abstendo-vos de toda erva estranha, que é a heresia” e acrescenta: “Permanecei
inseparáveis de Jesus Cristo Deus, do bispo e dos preceitos dos apóstolos” (Tr 7,1). E aos
esmirnotas (Em 4,1) pede que fiquem de sobreaviso contra “as feras em forma humana. Não
só não deveis recebê-las, mas, se possível, sequer encontrá-las. Somente rezem por elas, para
que possam converter-se, o que é difícil”.
➢ Havia especialmente duas classes de hereges que Santo Inácio preocupava-se em combater - os
judaizantes e os docetistas:

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

o Combate aos judaizantes: Em várias cartas o santo enfatiza que o judaísmo passou.
Aos magnésios (Mg 10,2) manda que os fiéis joguem“fora o mau fermento, velho e
ácido” do judaísmo, “e transformai-vos no fermento novo, que é Jesus Cristo” e diz
(Mg 10,3) que “é absurdo falar de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, judaizar. Não foi o
cristianismo que acreditou no judaísmo, e sim o judaísmo no cristianismo, pois nele se
reuniu toda língua que acredita em Deus”. Aos filadelfienses (Fl 6,1) é claro enfatizar
que “se alguém vos interpreta o judaísmo, não o escuteis”. Aos magnésios diz ainda
que, ficando o judaísmo para trás, guardamos não mais o sábado, mas o domingo,
dia que o Senhor ressuscitou (Mg 9) e que abraçamos “a vida segundo o cristianismo”.
“Quem é chamado de nome diferente desse”, ou seja, do nome “cristão”, “não é de
Deus” (Mg 10). Debela ainda o terrível erro que confunde o judaísmo depois de Cristo
com o judaísmo veterotestamentário. Este último, com efeito, encontra sua continuidade
na Igreja: os profetas do Antigo Testamento viveram para que se manifestasse Jesus
Cristo (Mg 8) e “esperaram a Cristo e o aguardaram. Crendo nele, foram salvos;
permanecendo na unidade de Jesus Cristo, santos dignos de amor e admiração,
receberam o testemunho de Jesus Cristo e foram admitidos no evangelho da nossa
esperança comum” (Fl 5,2).
o Combate aos docetistas: Outra heresia que combate de forma enérgica era a docetista,
que negava a Encarnação, o sofrimento e a morte de Cristo, professando que toda sua
vida terrena se deu apenas na aparência (Tr 10). Seu combate a estes hereges é claro
sobretudo na carta aos esmirnotas (Em 1-3): “Estais plenamente convencidos de que
nosso Senhor é verdadeiramente da descendência de Davi segundo a carne, Filho de
Deus segundo a vontade e o poder de Deus, nascido verdadeiramente da virgem,
batizado por João, para que toda a justiça fosse cumprida por ele. Ele foi realmente
pregado por nós em sua carne, sob Pôncio Pilatos e o tetrarca Herodes. Ele sofreu tudo
isso por nós, para que sejamos salvos. E ele sofreu realmente, assim como ressuscitou
verdadeiramente. Não sofreu, apenas na aparência, como dizem alguns incrédulos.
Quanto a mim, sei e creio que, mesmo depois da ressurreição, ele estava na sua carne.
Quando veio até aos que estavam em torno de Pedro, lhes disse: ‘Pegai, tocai-me, e
vede que eu não sou espírito sem corpo.’ E imediatamente eles o tocaram e, ao contato
com sua carne e seu espírito acreditaram. É por isso que eles desprezaram a morte e
foram reconhecidos superiores à morte. E depois da ressurreição, comeu e bebeu junto
com eles, como um ser de carne, embora espiritualmente unido ao Pai.”

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

➢ Deve-se evitar todos estes erros e permanecer na fé verdadeira. E qual é a fé verdadeira?


Ela a resume na carta aos tralianos (Tr 9): “Sede, portanto, surdos quando alguém vos fala sem
Jesus Cristo, da linhagem de Davi, nascido de Maria, que verdadeiramente nasceu, que comeu
e bebeu, que foi verdadeiramente perseguido sob Pôncio Pilatos, que foi verdadeiramente
crucificado e morreu à vista do céu, da terra e dos infernos. Ele realmente ressuscitou dos
mortos, pois o seu Pai o ressuscitou, e da mesma forma o seu Pai ressuscitará em Jesus Cristo
também a nós, que nele cremos e sem o qual não temos a verdadeira vida”.
➢ Das cartas de Santo Inácio se extrai ainda enunciações claras a respeito da Divindade de
Cristo, especialmente na carta aos efésios, na qual chama Jesus de “gerado e não gerado, Deus
feito carne, Filho de Maria e Filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeiro passível
e agora impassível” (Ef 7,2) e diz que “toda magia foi destruída, e todo laço de maldade
abolido, toda ignorância dissipada e todo reino foi arruinado, quando Deus apareceu em
forma de homem, para uma novidade de vida eterna” (Ef 19,3).
➢ Alguns outros aspectos essenciais da fé católica já enunciados por Santo Inácio:
o A fé cristã não é a “fé do livro”: Escrevendo aos filadelfienses (Fl 8,2) diz que “Eu
escutei que alguns diziam: ‘Se eu não encontro nos arquivos, não creio no evangelho.’
E quando eu lhes dizia que está escrito, respondiam-me que era preciso provar. Para
mim, o arquivo é Jesus Cristo; meus arquivos invioláveis são a sua cruz, sua morte, sua
ressurreição, e a fé que vem dele. É nisso que eu desejo ser justificado, mediante vossas
orações.”
o A fé católica sobre a Eucaristia: falando dos hereges docetistas, na carta aos
esmirnotas (Em 7,1), Santo Inácio diz que “Eles se afastam da eucaristia e da oração,
porque não professam que a eucaristia é a carne de nosso Salvador Jesus Cristo, que
sofreu por nossos pecados e que, na sua bondade, o Pai ressuscitou.” Aos efésios (20,2)
chama a Eucaristia de “remédio de imortalidade, antídoto para não morrer, mas para
viver em Jesus Cristo para sempre” (20,2).
o Se guarda o domingo, não mais o sábado: Ao dizer aos magnésios (Mg 9) que o
judaísmo ficou para trás, explica que guaramos não mais o sábado, e sim o domingo,
dia em que o Senhor ressuscitou.
o Intercessão: Exorta os efésios (Ef 10) a “rezar sem cessar pelos outros homens, pois
neles há esperança de conversão”, e a serem exemplo constante das virtudes cristãs
para que eles se convertam. Aos magnésios (Mg 14) pede: “lembrai-vos da Igreja que
está na Síria, da qual eu não sou digno de portar o nome. Tenho necessidade da vossa

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

oração unida em Deus e do vosso amor, a fim de que, pela vossa Igreja, a Igreja da
Síria mereça receber o orvalho celeste.”
o Reconhecimento da santidade de São Paulo e outros santos: Escrevendo sobre São
Paulo aos efésios (12,2) diz que ele “foi santificado, recebeu o testemunho e é digno de
ser chamado bem-aventurado” e acrescenta: “possa eu estar sobre as pegadas dele,
quando alcançar a Deus”.
o Merecimento de uns pelos outros: aos tralianos (Tr 13,3) diz que “meu espírito se
sacrifica por vós, não somente agora, mas também quando eu chegar a Deus”, e aos
efésios (Ef 8,1) diz que “sou vossa vítima expiatória, e me oferece em sacrifício por
vós, efésios, Igreja famosa pelos séculos” (Ef 8,1).

A santidade

➢ As epístolas inacianas estão repletas de ensinamentos espirituais profundíssimos, que além de


demonstrarem uma elevação mística altíssima do glorioso autor, parecem conter em germe todo
o desenvolvimento da espiritualidade católica nos dezenove séculos futuros:
o O alicerce da vida espiritual é a fé: “Quem professa a fé não peca”, porém, “a obra
que nos é pedida não é a profissão da fé, mas que cada um se mantenha na força da fé
até o fim” (Ef 14,2).
o Tudo fazer considerando que Cristo mora em nós: Há um aparente erro de tradução
na edição da Paulus. Traduziram Ef 15,3 como “façamos tudo como se ele morasse
dentro de nós”, sendo que a tradução italiana e a tradução inglesa o fazem do seguinte
modo: a italiana diz “façamos tudo considerando que ele mora em nós”, enquanto a
inglesa traduz “façamos tudo como aqueles nos quais ele habita”. Em nenhuma dessas
duas traduções há o sentido metafórico utilizado pelo tradutor lusófono. O mais correto
parece ser “façamos tudo considerando que ele nos habita, para sermos templos dele e
ele próprio ser o nosso Deus dentro de nós, como o é de fato e como aparecerá diante
de nossa face, se o amarmos justamente”. E por essa razão que também aos efésios (Ef
8,2) diz que “até mesmo as coisas que realizais na carne são espirituais” (Ef 8,2).
o A santidade consiste numa configuração plena a Jesus Cristo e à sua paixão: Aos
efésios (Ef 11) escreve que uma só coisa importa: “que nos encontremos em Jesus
Cristo para entrar na vida verdadeira; fora dele, nada tenha valor”. Diz aos magnésios
(Mg 5,2) que “se não estamos prontos a morrer por ele, para participar de sua paixão,
a vida dele não está em nós”, e o mesmo diz aos trálios (Tr 11,2): “Por meio de sua

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

cruz, Cristo vos chama em sua paixão, vós que sois membros dele. A cabeça não pode
ser gerada sem os membros, pois Deus prometeu a unidade, que é ele mesmo” (Tr.
11,2).
o Caráter combativo da vida cristã: Escreve a São Policarpo (Ad Polycarpum 6,2) que
“Procurai agradar àquele sob cujas ordens militais e do qual recebeis vosso soldo. Não
se encontre entre vós nenhum desertor. Que o vosso batismo seja como escudo, a fé
como elmo, o amor como lança, a perseverança como armadura”.
➢ É, portanto, a santidade possível? Santo Inácio responde dizendo aos filadelfienses (5,1) que
ainda é imperfeito, “mas a vossa oração a Deus me tornará perfeito, a fim de que obtenha a
herança recebida na misericórdia”.

O martírio

➢ Escrevendo todas as cartas enquanto caminhava para o martírio, a morte por Cristo está sempre
diante de Santo Inácio, que escreve aos magnésios (Mg 5,2): “Se não estamos dispostos a
morrer por ele, para participar de sua paixão, a vida dele não está em nós”.
➢ Mas ao seu martírio dedica especialmente a carta aos romanos. Com efeito, a Igreja de Roma
estava tentando impedir seu martírio e Inácio, desejoso de dar a vida por Cristo, constatava (Rm
1,2) “que o vosso amor me faça mal” e implorava que nada fizessem para impedir que derrame
seu sangue pelo seu Senhor: “Não desejeis nada para mim, senão ser oferecido em libação a
Deus, enquanto ainda existe altar preparado, a fim de que, reunidos em coro no amor, canteis
ao Pai, por meio de Jesus Cristo, por Deus se ter dignado fazer com que o bispo da Síria se
encontrasse aqui, fazendo-o vir do Oriente para o Ocidente.” Pedia que nada pedissem por ele
a não ser “a força interior e exterior, para que eu não só fale, mas também queira; para que
eu não só me diga cristão, mas de fato seja encontrado como tal” (Rm 3,2).
➢ Pelo martírio, ele será trigo moído por Deus (Rm 4): “Escrevo a todas as Igrejas e anuncio
a todos que, de boa vontade, morro por Deus, caso vós não me impeçais de o fazer. Eu vos
suplico que não tenhais benevolência inoportuna por mim. Deixai que eu seja pasto das feras,
por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído pelos
dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de Cristo. Ao contrário, acariciai as
feras, para que se tornem minha sepultura, e não deixem nada do meu corpo, para que, depois

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

de morto, eu não pese a ninguém. Então eu serei verdadeiramente discípulo de Jesus Cristo,
quando o mundo não vir mais o meu corpo. Suplicai a Cristo por mim, para que eu, com esses
meios, seja vítima oferecida a
Deus. Não vos dou ordens como
Pedro e Paulo; eles eram
apóstolos, eu sou um condenado.
Eles eram livres, e eu até agora
sou um escravo. Contudo, se eu
sofro, serei um liberto de Jesus
Cristo, e ressurgirei nele como
pessoa livre. Acorrentado,
O esperado martírio de Santo Inácio de Antioquia em Roma em 107
aprendo agora a não desejar
nada.”
➢ Cumpre reproduzir suas belíssimas palavras aos romanos sobre o martírio: uma verdadeira
teologia não apenas do martírio, mas da vida cristã:

Possa eu alegrar-me com as feras que me estão sendo preparadas. Desejo que elas sejam
rápidas comigo. Acariciá-las-ei, para que elas me devorem logo, e não tenham medo, como
tiveram de alguns e não ousaram tocá-los. Se, por má vontade, elas se recusarem, eu as
forçarei. Perdoai-me; sei o que me convém. Agora estou começando a me tornar discípulo.
Que nada de visível e invisível, por inveja, me impeça de alcançar Jesus Cristo. Fogo e
cruz, manadas de feras, lacerações, desmembramentos, deslocamento de ossos, mutilações
de membros, trituração de todo o corpo, que os piores flagelos do diabo caiam sobre mim,
com a única condição de que eu alcance Jesus Cristo.
Para nada me serviriam os encantos do mundo, nem os reinos deste século. Para mim, é
melhor morrer para Cristo Jesus do que ser rei até os confins da terra. Procuro aquele que
morreu por nós; quero aquele que por nós ressuscitou. Meu parto se aproxima. Perdoai-me,
irmãos. Não me impeçais de viver, não queirais que eu morra. Não me abandoneis ao
mundo, não seduzais com a matéria quem quer pertencer a Deus. Deixai-me receber a luz
pura; quando tiver chegado lá, serei homem. Deixai que seja imitador da paixão do meu
Deus. Se alguém tem Deus em si mesmo, compreenda o que quero e tenha compaixão de
mim, conhecendo aquilo que me oprime.
O príncipe deste mundo quer arrebatar-me e corromper o meu pensamento dirigido para
Deus. Que ninguém dos que aí estão presentes o ajude. Antes, colocai-vos do meu lado,
isto é, do lado de Deus. Não tenhais Jesus Cristo na boca, desejando, ao mesmo tempo, o
mundo. Que a inveja não habite em vosso meio. Mesmo se eu estiver junto de vós e vos
implorar, não vos deixeis persuadir. Persuada-vos aquilo que vos escrevo. É vivo que eu
vos escrevo, mas com anseio de morrer. Meu desejo terrestre foi crucificado, e não há mais
em mim fogo para amar a matéria. Dentro de mim, há uma água viva, que murmura e diz:
“Vem para o Pai.” Não sinto prazer pela comida corruptível, nem me atraem os prazeres
desta vida. Desejo o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, da linhagem de Davi, e por
bebida desejo o sangue dele, que é o amor incorruptível.
Não quero mais viver conforme os homens. Se quiserdes, assim o será. Desejai isso, para
que também vós possais ser amados por Deus. Eu vo-lo peço em poucas palavras: Crede
em mim. Jesus Cristo vos manifestará que estou falando sinceramente. Ele é a boca que
não mente, pela qual o Pai verdadeiramente falou. Rogai por mim, para que eu alcance a

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com


Escola de História da Igreja – Patrística - Lucas Régis Lancaster

meta. Não vos escrevi segundo a carne, mas conforme o pensamento de Deus. Se eu sofrer,
vós me tereis amado; se eu for recusado, vós me tereis odiado.

Conclusão

➢ Concluamos com algumas das belas palavras que Santo Inácio direciona aos efésios (Ef 9,1-2),
pelas quais, sem o saber, orientava os rumos da Igreja na história: “Eu soube que por aí
passaram alguns, levando mau ensinamento. Vós, porém, não os deixastes semear em vosso
meio, tapando os ouvidos para não receber o que eles semeiam, porque sois as pedras do
templo do Pai, preparadas para a construção de Deus Pai, levantadas até o alto pela alavanca
de Jesus Cristo, que é a cruz, usando a corda, que é o Espírito Santo. Vossa fé é o vosso
guindaste, a fé é o caminho que eleva até Deus. Sois todos companheiros de viagem, portadores
de Deus e do templo, portadores de Cristo e do Espírito Santo, portadores dos objetos
sagrados, ornados em tudo com os mandamentos de Jesus Cristo.”

Santo Inácio de Antioquia, Bispo e Mártir, rogai a Deus por vossa Igreja que
ainda caminha na terra, que tanto precisa de vosso auxílio e intercessão!

Conteúdo licenciado para Daniel de Faria Tomazio - ielgames1@gmail.com

Você também pode gostar