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Pais da Igreja

A morte dos apóstolos era aguardada por uma parcela dos crentes que compunham a ecclesia,
aquela parte que ansiava por ocupar o espaço de liderança que ficaria vacante após a partida
da primeira geração de líderes. É importante notar que a ideia de que heresia e herege são
termos que dizem respeito a elementos externos à Igreja, é uma noção oposta à realidade (o
que não é incomum de acontecer quando lidamos com conceitos distantes de aplicação
cotidiana). O herege necessariamente precisa ser membro componente do corpo (no caso, o
corpo de Cristo). Não é possível criar ou propagar uma heresia estando fora da Igreja, no
máximo é possível difamar a Instituição ou atacá-la política e conceitualmente, mas não
produzir uma heresia. Portanto, ao estudarmos a história do Edifício de Cristo nos deparamos
com nomes que, ao longo do tempo de vida cristã, ouvimos como sendo referentes a ímpios,
pagãos ou até mesmos inimigos da Igreja como Marcion, Nicolau, Valentim, Simão (Mago),
Pelágio... Acontece que todos esses eram membros da Igreja Primitiva, tendo sido discipulados
pelos próprios apóstolos ou discípulos diretos destes. Marcion era filho do Bispo de Sinope
(região do Ponto), e estima-se que também tenha sido ordenado Bispo; Nicolau foi um dos sete
discípulos escolhidos em At 61; Valentim foi teólogo na primeira metade do segundo século; o
mago Simão ouviu o evangelho em At 82 da boca de Felipe, o evangelista; Pelágio foi um
monge asceta do quarto século.

Como alertou Jesus, os lobos vorazes não estariam fora da Igreja


esperando para entrar, compunham o rebanho disfarçados de
ovelhas.

“Acautelai-vos quanto aos falsos profetas. Eles se aproximam de


vós disfarçados de ovelhas, mas no seu íntimo são como lobos
devoradores” – Mt 7.15

Entender esse ponto é vital para entendermos que, a luta contra a


heresia e contra os hereges, não é uma luta em defesa da Igreja
como instituição, mas em defesa da sã doutrina. O que os hereges
objetivavam com suas heresias não era destruir a Igreja, mas sim
adaptá-la às suas escolhas pessoais com relação ao como o Corpo
de Cristo deveria prosseguir daquele ponto em diante.

Os primeiros apologetas
Ler os escritos apostólicos é ler uma obra pedagógica e apologética. Figura 1 – A morte do mago Simão (ou A morte
A pedagogia é facilmente encontrada nas cartas apostólicas, quando do Anticristo) – autor desconhecido

1
No estudo da História da Igreja há historiadores que afirmam que o próprio Nicolau foi o pai da heresia dos nicolaítas
(citada em Ap 2 como sendo uma das heresias que rondavam a Igreja em Éfeso), porém há historiadores que apenas
citam a tradição da Igreja de que Nicolau, o discípulo, era casado e decidiu se abster de relações sexuais com sua
esposa, esta acabou o traindo e Nicolau, envergonhado, não conseguiu viver abstêmio e passou a assumir a traição da
esposa, voltando a viver com ela e permitindo novas traições. Aqueles que eram conhecidos como “nicolaítas” eram
praticantes de tal libertinagem sexual, e pregavam que não era essa prática ofensiva à vida cristã.
2
Ao longo dos primeiros séculos da Igreja, “Simão, o Mago” foi personagem constante de diversos escritos, desde
obras apologéticas anti-gnósticas até escritos fantásticos, porém em Irineu de Lyon encontramos o combate do teólogo
do segundo século contra a seita dos simonitas (Contra as Heresias, I, 23.1), o que mostra que a ação diabólica
relatada nos registros de Lucas fizeram parte das primeiras lutas da Igreja contra a destruição da sã doutrina.

1
os discípulos de Cristo ensinavam a Igreja a agir corretamente para com Deus e para com o
próximo, praticar a fé cristã, cultuar a Deus em espírito e em verdade, ministrar o poder do
Espírito Santo e todos as outras práticas constantes do primeiro século; apologética quando
vemos os mesmos pais da Igreja ensinando os cristãos a: não se adaptar a ensinamentos
pregados fora da Congregação dos Santos (tema que domina a epístola de Clemente aos
Coríntios3), fugirem dos grupos independentes criados fora da união apostólica (I Co 3), se
absterem de práticas consideradas pecaminosas não apenas pela Lei de Moisés como pela
ortodoxia (como a definida no Concílio de Jerusalém, em At 15) e fugirem dos “ministérios
proféticos” que surgiam ali e acolá (I Jo 4.1).

Todos os apóstolos tiveram de lidar com heresias, era inevitável iniciar a Igreja de Cristo sem
ter de enfrentar um número razoável de homens e mulheres que desejavam não ser ovelhas,
mas pastores. Esse mal de se ver como alguém maior do que realmente é foi denunciado por
Paulo à Igreja de Roma (Rm 12.3) pois o apóstolo já lidava com uma série infindável de
pessoas que, ao conhecerem o Evangelho, queriam se tornar ministros – é o que aconteceu
com Simão, em Atos 8: “vendo Simão que o Espírito era dado com a imposição das mãos dos
apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro e disse: ‘dêem-me também este poder’”. Os apóstolos eram
tidos em alta estima pela sociedade da época, os inimigos que surgiam vinham basicamente
dentre os judeus, ou um e outro grupo que via no cristianismo uma ameaça financeira – uma
vez que com o crescimento da Igreja dos nazarenos, as crenças pagãs do Império Romano
sofriam decréscimo de fiéis. Quem se achegava ao Caminho, era tentado a ser também um
dos grandes, afinal não se sabia ainda o que eram os ofícios e dons do Espírito Santo, e a
ideia de que todo cristão era um apóstolo em potencial não era incomum.

Ao lermos as cartas neotestamentárias, vemos os apóstolos realizando, especificamente, o


trabalho que lhes cabia: construção das colunas da Igreja sobre a pedra fundamental (que é
Cristo, conforme I Co 3). Não foi deixado nenhum elemento basilar da fé cristã sem ser
estabelecido até a morte de João. Tudo o que a Igreja veio a definir após o primeiro século foi
de caráter apologético, eclesiológico, litúrgico, administrativo..., mas nada precisou ser
revelado por Deus à Igreja que já não estivesse revelado nas Escrituras Sagradas – que ao fim
do primeiro século (quando da morte do discípulo amado) já era reconhecida como o guia de
Deus para as igrejas espalhadas pelo mundo, cabendo às cartas dos bispos o papel de
direcionamento e pastoreio, jamais de revelação de Deus aos homens.

Essa construção dos pilares da fé cristã é facilmente identificável como sendo um plano divino,
pois se estabelecia sobre o princípio de que só podia ser considerado inquestionável o
ensinamento que vinha dos apóstolos, ou seja, o Evangelho ensinado por aqueles que haviam
convivido com o Senhor e sido escolhidos dentre eles para esse mister4. Essa sábia decisão
fazia com que após a morte do últimos dos apóstolos, fosse impossível a alguém destruir a sã
doutrina uma vez que a Igreja simplesmente desconsideraria novos ensinamentos, ficando
sempre com o Escrito Sagrado para servir de prumo. Ainda que algo novo fosse definido em
concílio, não poderia ser antibíblico pois isso significaria ser contrário ao ensinamento do
próprio Jesus Cristo. Passou então o Cristianismo a ser uma religião de fato, não apenas um
grupo de pessoas que se reuniam sob uma autoridade espiritual: havia um Deus (Pai, Filho e

3
A Epístola de Clemente aos Coríntios é um texto considerado autêntico, porém não-canônino. Destinada aos cristãos
da cidade de Corinto, a epístola foi escrita entre 95-97 d.C por Clemente (35 – 100), Bispo de Roma entre 88 e 97.
4
Nas Escrituras temos registro dos apóstolos como sendo Pedro, Tiago, João, André, Filipe, Bartolomeu, Mateus,
Tomé, um segundo Tiago, Tadeu (ou Judas, irmão de Jesus), Simão, o Zelote e Judas Iscariotes. Foram também
apóstolos Matias (sorteado para substituir Judas Iscariotes), Paulo, Tiago (irmão de Jesus e autor da epístola que leva
seu nome), e Barnabé (At 14).

2
Espírito Santo), uma Escritura Sagrada (Bíblia Sagrada, composta pela Torah mais os escritos
apostólicos) e uma Ecclesia (a comunidade organizada debaixo da autoridade dos bispos).

Com essa organização a Igreja passou a ter ferramentas para se propagar (papel destinado
aos evangelistas) e se firmar (ofício do bispo, servido por presbíteros e diáconos). Em cada
cidade que a Igreja se estabelecia, era eleito um corpo para o trabalho. Se a comunidade fosse
pequena, bastavam diáconos locais sendo dirigidos por um bispo de alguma cidade maior na
proximidade, caso a cidade fosse de porte considerável elegiam-se presbíteros e um bispo. De
tempos em tempos os bispos se reuniam em concílios para discutir questões doutrinárias ou
tomar decisões que dissessem respeito à toda a comunidade dos santos.

Inácio de Antioquia
Inácio (nascido entre 30 e 35 e morto entre 98 e 107) foi sucessor de São Pedro no bispado da
Igreja em Antioquia (68 – 100). Discípulo direto do apóstolo João, Santo Inácio foi detido pelas
autoridades em um tempo onde as denúncias enviadas à Roma diziam respeito à infidelidade
dos cristãos para com o Imperador, era com o objetivo de anular as denúncias e provar
lealdade ao Império que, diante da população, o cristão precisava queimar incenso a César ou
declarar “César é o Senhor”, o que deixava claro que o denunciado não era da seita dos
nazarenos. Levado por um destacamento de soldados – “acorrentado a dez leopardos” (Aos
Romanos, 5.1) –, o velho bispo vai passando de cidade em cidade pelo caminho e sendo
visitado pelos bispos e diáconos (locais e vizinhos). Ao longo dessa trajetória que tinha como
ponto de chegada o Coliseu, onde Inácio se entregaria tranquilamente às bestas feras para o
martírio, o santo escreveu sete cartas5, todas belíssimas e de leitura imprescindível a todo
cristão.

Pouco se sabe sobre a biografia de Inácio sendo a principal fonte a seu respeito suas próprias
epístolas. Da tradição da Igreja Católica Ortodoxa, temos o registro:

Êmulo dos apóstolos em sua vida, sucessor deles sobre seus tronos, tu encontrastes
na prática das virtudes, ó inspirado de Deus, o caminho que conduz à contemplação.
Assim, dispensando fielmente a palavra de verdade, lutastes pela fé até ao sangue, ó
Pontífice mártir Inácio. Roga ao Cristo para que salve nossas almas.6

De Eusébio:

Brilhava por este tempo... Inácio, o homem mais célebre para muitos ainda hoje,
segundo a obter a sucessão de Pedro no episcopado de Antioquia.7

Basta, o que mais se tem na história da Igreja sobre o santo mártir é dispensável. Vejamos
aqui a principal das fontes, suas epístolas.

AOS EFÉSIOS – À Igreja de Cristo na cidade de Éfeso, Inácio saúda esta que é “grandemente
abençoada com a plenitude de Deus Pai, inabalavelmente unida, escolhida na paixão

5
Epístola aos Efésios, Epístola aos Magnésios, Epístola aos Trálios, Epístola aos Romanos, Epístola aos Filadélfos,
Epístola aos Esmirniotas e Epístola a Policarpo de Esmirna.
6
Patrística, Vol. 1. Inácio de Antioquia, Introdução.
7
História Eclesiástica, Livro V, XXXVI.

3
verdadeira, pela vontade do Pai e de Jesus Cristo”8, o que já nos configura ótima notícia uma
vez que pelo menos 10 anos antes João havia redigido o Apocalipse enquanto esteve preso na
Ilha de Patmos, e lá Cristo disse ao Anjo da Igreja de Éfeso “[...]tenho contra ti o fato de que
abandonaste o teu primeiro amor. Recorda-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à
prática das primeiras obras. Porquanto, se não te arrependeres, em breve virei contra ti e tirarei
o teu candelabro do seu lugar”9.

À essa comunidade, Inácio escreveu sua carta “numa alegria irrepreensível”, e agradeceu o
envio de um diácono (denominado Burro) por parte dos irmãos para servir-lhe como
secretário10. Tema constante em suas epístolas, o autor exorta aquela comunidade a “caminhar
de acordo com o pensamento de vosso bispo, como já o fazeis. Vosso presbitério, de boa
reputação e digno de Deus, está unido ao bispo, assim como as cordas à cítara”. Encontramos
também exortação referente às heresias, quando no capítulo 7 lemos:

“De fato, existem algumas pessoas que dolosamente costumam levar o Nome, mas
agem de modo diferente e indigno de Deus; é preciso que eviteis essas pessoas como
se fossem feras selvagens. Com efeito, são cães raivosos que mordem
sorrateiramente. Atentos a eles, pois suas mordidas são difíceis de curar. Existe
apenas um médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, Filho
de Maria e Filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeiro passível e agora
impassível, Jesus Cristo nosso Senhor”.

Texto riquíssimo, onde encontramos não apenas uma exortação amorosa, mas um verdadeiro
conjunto de informações típicas de um credo apostólico, ao afirmar que “Jesus Cristo nosso
Senhor” é único, gerado e não gerado, encarnado, filho de Maria (humano) e filho de Deus
(divino), verdadeiramente ressuscitado, verdadeiramente morto, viveu entre nós terrealmente e
vive celestialmente para sempre. Esse tipo de citação se popularizou no seio da Igreja nos dois
primeiros séculos, e foram utilizados posteriormente como matéria prima para a confecção dos
credos, uma vez que afirmavam os pontos vitais da fé cristã.

Em tempos de dispersão do rebanho causada pelos falsos mestres, que saiam da congregação
pregando novas doutrinas e criavam grupos à parte daquele fundado pelos apóstolos, Inácio c
chama os efésios a fortalecer a presença nas reuniões: “Esforçai-vos para vos reunir mais
freqüentemente, para agradecer e louvar a Deus. Quando vos reunis com freqüência, as forças
de satanás são abatidas e sua obra de ruína é dissolvida pela concórdia de vossa fé”.

AOS MAGNÉSIOS – O bispo de Antioquia reforça à Igreja em Magnésia (cidade próxima a


Éfeso) que as reuniões cristãs devem ser realizadas no domingo, e não no sábado: “aqueles
que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o
sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte”,

8
As aspas em todos os comentários das epístolas de Inácio são retiradas das próprias epístolas, salvo quando textos
de outras fontes devidamente citadas no próprio texto aqui redigido.
9
Ap 2.4,5.
10
Costume comum à época, o envio de diáconos para ajudar os bispos era uma forma de contribuição por parte da
comunidade uma vez que o trabalho do bispado era exaustivo, compreendendo não apenas o pastoreio da
comunidade, cuidado doutrinário, comunicação com outros bispados, administração do corpo eclesiástico, afora o
cotidiano devido ao “anjo da Igreja” referente à vida de oração, jejum e estudo. Não podemos ignorar que grande parte
dos bispos eram teólogos e pregadores, sendo-lhes de ofício o trabalho apologético além do administrativo. Os
diáconos serviam como secretários e também como copistas, à semelhança de João Marcos (auxiliar de Pedro) e
Lucas (auxiliar de Paulo). Na Epístola aos Efésios, Inácio agradece também a Croco, Onésimo, Burro, Euplo e Frontão,
(além de Burro), todos membros da Igreja em Éfeso.

4
e não apenas com relação ao Dia do Senhor, mas às demais questões a Igreja deveria estar
alerta para não ceder à tentação de voltar às práticas dos judeus: “É absurdo falar de Jesus
Cristo e, ao mesmo tempo, judaizar. Não foi o cristianismo que acreditou no judaísmo, e sim o
judaísmo no cristianismo, pois nele se reuniu toda língua que acredita em Deus”. Parte da luta
contra as heresias nos dois primeiro séculos da Igreja se deu por conta do judaísmo, não
apenas vindo de fora para dentro da Igreja, mas renascendo sempre dentro dos irmãos em
Cristo, que ao se aprofundarem na fé sentiam vontade de voltar às origens judaicas de Jesus e
dos apóstolos, não compreendendo que os aspectos culturais não são elementos componentes
da fé em Cristo, mas acidentais, ou seja, em Cristo não temos uma cultura regional ou racial,
mas adotamos uma nova natureza na qual as características marcantes são as repassadas por
Ele enquanto viveu entre nós, e estas não são comportamentos judeus, mas divinos como
caridade, longanimidade, paciência, perseverança, esperança e tantas outras virtudes
cultivadas no Espírito.

AOS TRALIANOS – Em sua epístola à Igreja que se reunia na cidade de Trália (atual Turquia),
Inácio conclama todos a estarem debaixo da autoridade do bispo e dos presbíteros, pois assim
estariam se comportando como Jesus, que sempre se portava debaixo da autoridade de Nosso
Pai “É necessário, portanto, como já o fazeis, nada realizar sem o bispo, mas também
submeter-vos ao presbitério, como aos apóstolos de Jesus Cristo”. No capítulo 9 de sua carta
aos tralianos, Inácio reforça mais uma vez os aspectos do futuro Credo Apostólico:

Jesus Cristo, da linhagem de Davi, nascido de Maria, que verdadeiramente nasceu,


que comeu e bebeu, que foi verdadeiramente perseguido sob Pôncio Pilatos, que foi
verdadeiramente crucificado e morreu à vista do céu, da terra e dos infernos. Ele
realmente ressuscitou dos mortos, pois o seu Pai o ressuscitou, e da mesma forma o
seu Pai ressuscitará em Jesus Cristo também a nós, que nele cremos e sem o qual não
temos a verdadeira vida.

AOS ROMANOS – Em sua epístola à Igreja em Roma, Inácio faz uma saudação interessante:

À Igreja amada e iluminada pela bondade daquele que quis todas as coisas que
existem, segundo fé e amor dela por Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja que preside na
região dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada feliz,
digna de louvor, digna de sucesso, digna de pureza, que preside ao amor, que porta a
lei de Cristo, que porta o nome do Pai; eu a saúdo em nome de Jesus Cristo, o Filho
do Pai. Àqueles que física e espiritualmente estão unidos a todos os seus
mandamentos, inabalavelmente repletos da graça de Deus, purificados de toda
coloração estranha, eu lhes desejo alegria pura em Jesus Cristo, nosso Deus.

Saudação tão portentosa é um dos raríssimos textos dos quais pode-se obter informação
acerca da primazia que a Igreja de Roma tomou no segundo século, uma vez que até então foi
a cidade de Antioquia que ocupou a posição central da Igreja de Cristo na Terra.

Inácio não reclama para si autoridade apostólica “Não vos dou ordens como Pedro e Paulo;
eles eram apóstolos”, e pede unicamente que a Igreja não tente livrá-lo do martírio “Eu vos
suplico que não tenhais benevolência inoportuna por mim. Deixai que eu seja pasto das feras,
por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído pelos
dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de Cristo”, frase que se tornou
célebre em suas epístolas.

5
AOS FILADELFIENSES – À Igreja a quem o Anjo do Senhor disse em Apocalipse “Farei aos
da sinagoga de Satanás, aos que se dizem judeus e não são, mas mentem; sim, farei que
venham adorar prostrados aos teus pés e saibam que Eu te amo!”, a Igreja em Filadélfia é
saudada por Inácio como a “que obteve misericórdia e foi consolidada na concórdia de Deus, e
repleta de inabalável alegria na paixão de nosso Senhor”. Essa Igreja tinha um bispo admirável
“afinado aos mandamentos, como a cítara às cordas... virtuoso e perfeito”.

À comunidade dos crentes em Filadélfia, Inácio alerta que alguns haviam deixado de congregar
com a Igreja e passavam a se reunir debaixo da autoridade de “plantas más, que Jesus Cristo
não cultiva”, e complementa: “aqueles que, arrependendo-se, vierem para a unidade da Igreja,
serão também de Deus” mas “se alguém segue cismático, não herdará o Reino de Deus”.

AOS ESMIRNIOTAS – A cidade de Esmirna foi uma cidade costeira da região onde hoje é a
Turquia, a Igreja de Cristo que lá se encontrava é uma das sete Igrejas do Apocalipse, onde se
lê “Conheço as tuas aflições e a tua pobreza; contudo, tu és rico! Conheço a blasfêmia dos que
se dizem judeus mas não são, pelo contrário, são sinagoga de Satanás”, como podemos ver
também em Esmirna os judaizantes espalhavam suas raízes daninhas à comunidade dos
crentes, impedindo que gozassem da liberdade tanto pregada pelo apóstolo Paulo. Inácio
saúda essa Igreja como aquela “à qual não falta nenhum dom, caríssima a Deus”, e os exorta a
não darem ouvidos aos docetistas que se infiltravam na comunidade pregando que Jesus não
havia sofrido fisicamente, mas apenas em corpo espiritualFinaliza o bispo conclamando
também mais essa Igreja a permanecer em obediência aos líderes locais:

“Segui todos ao bispo, como Jesus Cristo segue ao Pai, e ao presbitério como aos
apóstolos; respeitai os diáconos como à lei de Deus. Sem o bispo, ninguém faça nada
do que diz respeito à Igreja. Considerai legítima a eucaristia realizada pelo bispo ou
por alguém que foi encarregado por ele.”

E conclui:

“Onde aparece o bispo, aí esteja a multidão, do mesmo modo que onde está Jesus
Cristo, aí está a Igreja católica”.

É o mais antigo registro onde se encontra a expressão “Igreja Católica”. Inácio em todas as
suas cartas trabalha para que a Igreja seja vista, independente de sua localidade geográfica,
como sendo uma só, que segue os mesmos preceitos, erigida sobre as mesmas colunas e
fundada sobre a mesma Pedra.

A POLICARPO – Policarpo, que também foi discípulo do apóstolo João, recebeu de Inácio
palavras de fortalecimento e perseverança, que conclamavam o bispo de Esmirna a
“apressares tua corrida, e exortares a todos”. Policarpo deveria acelerar seu trabalho para
concluí-lo depressa pois os tempos estavam cada vez piores para os trabalhadores da seara.
O prisioneiro conclama seu amigo também a não amar apenas os bons discípulos, mas ser
manso com os contaminados. Em todas as cartas de Inácio vemos as palavras de um pastor,
um verdadeiro discípulo do amado João, que mesmo diante de hereges e inimigos da
comunidade cristã, não se porta com ira ou desejo de separação, mas anseia por paz e reunião
ao primeiro amor.

O futuro mártir pede que seu amigo pregue no púlpito contra as “profissões desonestas”
adotadas por algumas mulheres, referindo-se provavelmente à prostituição religiosa que

6
acontecia nos templos de todo o Império Romano; e quanto aos homens, “que amem suas
esposas” ao que conclui: “convém que os homens e as mulheres que se casam, contratem sua
união com o parecer do bispo, a fim de que seu matrimônio seja feito segundo o Senhor”. A
Igreja começava a participar dos aspectos não apenas religiosos, mas também civis na vida da
comunidade.

Policarpo de Esmirna
Na Igreja da cidade de Esmirna, Policarpo foi forjado após seu discipulado com João. Ali foi
educado e feito bispo, e isso é praticamente tudo o que sabemos sobre a biografia deste herói
da fé, cujos relatos em Eusébio nos falam de seu martírio na fogueira11, onde após sua prisão
foi levado à arena para ser queimado vivo:

“[...]os encarregados do fogo acenderam-no, mas, fazendo-se uma grande chama,


vimos um prodígio, aqueles aos quais foi dado vê-lo e que fomos conservados para
anunciar aos demais o ocorrido. Ocorreu que o fogo, formando uma espécie de
abóbada, como a vela de um navio enchida pelo vento, protegeu o corpo do mártir
como uma muralha em torno. E ele estava no meio, não como carne queimada, mas
como ouro e prata candentes no forno. E nós, em verdade, sentíamos uma fragrância
tal, como exalada pelo incenso ou por qualquer outro aroma precioso. Ao fim, vendo
aqueles ímpios que o corpo não podia ser consumido pelo fogo, ordenaram ao
confector que se aproximasse e cravasse nele sua espada”.

Esse homem piedoso é autor de uma


epístola pastoral, muito simples em
linguagem e de conteúdo dos mais
humildes, conclamando sua
comunidade a nada além da prática
do amor, a caridade. Sua Epístola
aos Filipenses12 afirma que Cristo
morreu na carne e foi ressuscitado
por Deus “livrando-o das dores do
Hades”, confirmando mais uma vez
que a Igreja Primitiva sempre
acreditou que a morte de Cristo foi
seguida por todos os acontecimentos
Figura 2 – Martírio de São Policarpo.
comuns aos homens, como Xilogravura da retirada do Livro dos Mártires – John Foxe.
padecimento do corpo, sepultamento
e descida do espírito à morada dos mortos, a qual não pode detê-lo. Além dessa declaração,
Policarpo alerta seus fieis quanto ao amor ao dinheiro, o dever dos esposos para com suas
esposas, o dever das viúvas e dos jovens. Repete o bispo alguns ensinamento joaninos, como
o que encontramos em 7.1 que diz “quem não confessa que Jesus Cristo veio na carne, é
anticristo” (cf. I Jo 4). Além das exortações pastorais, Policarpo lida com um caso de apostasia
na Igreja, onde um homem chamado Valente, presbítero na Igreja de Esmirna, abandonou o
cargo por questões relacionadas a dinheiro “quem não pode governar a si mesmo nessas

11
História Eclesiástica IV, XV. O relato é longo e vale a pena ser lido tal a riqueza de detalhes do registro, desde a
prisão até a execução do mártir.
12
São duas epístolas, mas na primeira consta apenas a saudação à Igreja de forma que ambas na prática compõem
um único conjunto de texto.

7
coisas, como pode exortar os outros? Se alguém não se abstiver da avareza, será
contaminado pela idolatria”.

Há ainda uma epístola escrita por parte da Igreja de Esmirna endereçada à Igreja de Filomélio,
uma antiga cidade turca. Nesse texto, encontra-se uma descrição fiel do martírio de Policarpo
que, inclusive, foi quotado por Eusébio em sua História Eclesiástica. Ao fim do texto,
encontramos:

Gaio copiou essas coisas dos escritos de Ireneu; ele viveu com Ireneu, que foi
discípulo de são Policarpo. Esse Ireneu, que esteve em Roma na época do martírio do
bispo Policarpo, instruiu muita gente. Temos dele numerosos escritos muito belos e
ortodoxos. Ele mencionou Policarpo, dizendo que tinha sido discípulo dele. Refutou
vigorosamente todas as heresias e nos transmitiu a regra eclesiástica e católica, tal
como havia recebido do santo.

É de Irineu de Lyon que fala a Igreja de Esmirna, do qual falaremos também nós a partir de
agora.

Fernando Melo
Brasília, 20 de abril de 2022

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