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Pais da Igreja – Aproxima-se a perseguição

Nos primeiros séculos, o batismo era realizado apenas após a aplicação da catechesis, a
instrução daquele que se achegava à Igreja e ainda não havia recebido os ensinamentos
básicos quanto a fé cristã. Ao observarmos obras didáticas utilizadas para a catequese, como o
próprio Didaqué ou o Tradições Apostólicas (Hipólito1), encontramos instruções curiosas que
nos mostram que a) a preparação para o batismo podia demorar até três anos; b) o batismo
era ministrado sobre pessoas de qualquer idade, incluindo crianças que não tinham capacidade
de pronunciar a declaração de fé; c) o batismo era realizado preferencialmente em água
corrente; d) não apenas o bispo, como também os presbíteros e até mesmo um membro da
igreja – em casos extremos – podia ministrar o batismo; e) mulheres não realizavam o batismo;
f) para descer às águas, o batizando deveria retirar toda a roupa e, no caso das mulheres,
soltar os cabelos pois o batismo era o momento de limpar do corpo e da alma todo o mal2.

Ao escrever seu tratado sobre o batismo, Tertuliano (160 – 220) repete um padrão utilizado nos
primeiros séculos da Igreja: a fonte para definição de toda a doutrina era a Escritura Sagrada.
O autor defende que não se deve batizar ninguém antes de este ser plenamente catequizado,
pois foi assim com Filipe e o Eunuco (At 8):

O Espírito havia ordenado a Filipe que seguisse por aquele caminho em específico (a
estrada que ia para Gaza): o próprio eunuco não foi encontrado ocioso, nem como
alguém que foi simplesmente tomado pelo desejo ardente de ser batizado; mas, depois
de subir ao templo por causa da oração, estando intensamente engajado na Escritura
divina, foi assim adequadamente encontrado. A Escritura que ele estava lendo se
encaixa oportunamente com sua fé: Filipe, sendo solicitado, é levado para sentar-se
ao lado dele; o Senhor é evidenciado; a fé não perdura; não é preciso esperar as
águas; a obra está terminada, e o apóstolo é arrebatado.3

Buscando nos textos sagrados a referência para tudo o que instituíam à comunidade cristã, os
primeiros teólogos sabiam não estar criando a doutrina da Igreja, mas apenas compreendendo-
a. É preciso ter claro em mente que esses momentos de definição doutrinária não eram
“oficiais”, na verdade muitos dos que estabeleceram a doutrina da Igreja sequer eram aceitos
como seus representantes, como foi o caso do próprio Tertuliano que inclusive era
desacreditado por muitos cristãos por ter deixado de comungar com a congregação católica – a
qual julgava estar vivendo um tempo de lassidão doutrinária – passando a se reunir com os
montanistas4. Não obstante esse fato, a produção teológica de Tertuliano é incontestavelmente
pura, e a doutrina cristã é compreendida em pontos dificílimos por esse grande teólogo de

1
A autoria do Tradições Apostólicas tem alguma controvérsia entre os estudiosos dos textos originais, alguns autores
não creditam o texto a Hipólito de Atenas, apesar de que o consenso ainda esteja com esse autor. O que é indiscutível
é que o texto influenciou fortemente a Igreja Oriental, de forma mais intensa que para com a Igreja Ocidental.
2
Sobre o batismo na Igreja Primitiva, ver Didaqué, 7; Tertuliano, Sobre o batismo, 18; e Tradições Apostólicas, 21.
3
Tertuliano, Sobre o batismo, 18.
4
O montanismo foi um movimento herético criador por Montano, um cidadão da Frígia que se converteu ao
cristianismo e desde logo passou a profetizar (ver História Eclesiástica V, XVI). Auxiliado por duas mulheres que
também profetizavam, Priscila e Maximila, Montano organizou uma congregação para reunir cristãos que desejavam
servir a Deus com ascetismo e um estilo de vida extremamente rígido (o montanismo condenava o segundo casamento
e impunha jejuns rigorosos a seus membros, assim como rigor absoluto quanto à vida sexual), sendo considerado
herético pela Igreja principalmente por sua pregação que dizia ser sua profecia (e de suas ajudantes) a manifestação
do Paráclito.

1
Cartago. Foi ele o responsável não apenas pelo início da produção teológica em Latim (que
apenas posteriormente passou a ser adotada pela Igreja Ocidental, em Roma), como também
por lançar as bases da doutrina da Igreja quanto à compreensão da Triunidade de Deus, em
um tempo em que o Corpo de Cristo em todo o mundo buscava entender como se dava o ser
de Deus. Não era fácil para os cristãos entender a divindade de Cristo, e muito menos a
pessoa do Espírito Santo. Era comum cristãos que viam em Jesus apenas o Escolhido, ou
seja, o homem santo que foi separado por Deus para revelar sua doutrina, e ser morto como
apontava o sacrifício de Isaque nas escrituras judaicas. Tertuliano, porém, para combater os
heréticos que diziam ser Cristo não Deus, mas escolhido de Deus, se utiliza de conceitos da
Filosofia para estabelecer uma defesa técnica do conceito de Trindade, já apresentado por
Atenágoras.

Há, ele afirma, uma substância divina (substantia), subsistindo em três pessoas
(personae), e a natureza de Deus é melhor descrita pela palavra Trindade (Trinitas).
Tertuliano pode não ter originado completamente o uso de substantia e persona como
termos teológicos, mas ao tratá-los como o fez ele forneceu à doutrina trinitária um
vocabulário técnico que seria usado pela maioria dos cristãos orientais.5

O teólogo trabalhava com a tarefa de entender as escrituras, e entendendo-as, auxiliar a


cristandade a firmar sua fé em tempos de assédio intelectual constante, uma vez que por todo
o Império Romano pululavam doutrinas pagãs e, mesmo na Igreja de Cristo, a busca por
compreender a fé que se vivia diariamente era intensa.

Viver o cristianismo e compreender a fé


Buscar conhecer nos escritos patrísticos como era a vida dos cristãos nos primeiros séculos é
uma tarefa maravilhosa, e impactante para o estudante da História da Igreja. Não é difícil
encontrar pessoas que cometem erros de estudo nessa matéria, como por exemplo aqueles
que se esquecem de que a História jamais pode ser plenamente reencontrada após ser vivida,
sendo acessível em plenitude apenas aos que a vivem, jamais aos que a estudam. Ao estudar
a história de Napoleão Bonaparte, você jamais conhecerá o Imperador dos franceses, apenas
conhecerá relatos, mais ou menos fiéis, de alguns episódios dos quais ele foi protagonista ou
participante. O mesmo acontece com qualquer outro personagem (ou acontecimentos). Vejo
algumas obras que, ao falar de Tertuliano, param para tentar entender o porque do grande
teólogo de Cartago ter aderido aos montanistas. Essa curiosidade biográfica poderia nascer no
coração de um biógrafo, ou um jornalista que queira remontar passos de alguma figura do
passado, mas jamais deveria ocupar mais que um minuto do coração do cristão que tem às
mãos dezenas e dezenas de obra para ler, todas escritas por Tertuliano, esse cristão exemplar.
Olhar para trás e imaginar ser possível entender Tertuliano é uma fantasia infantil, assim como
imaginar que alguém poderá entender a ti, leitor. Nossas decisões não são baseadas apenas
na razão, nossos passos não são históricos, não podem ser pesquisados e dissecados por
outrem além daquele que sonda mentes e corações (Jr 17.10).

Nos primeiros séculos da fé, os cristãos não possuíam a forma intelectual da doutrina. Em um
mundo de altas taxas de analfabetismo, conhecer hebraico e grego para ler as Escrituras
Sagradas era um luxo de que poucos podiam gozar. Nesse tempo, como disse o apóstolo
“[...]a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”6, daí a grande importância dos sábios

5
DAVIDSON. I. J. The birth of the church. From Jesus to Constantine. Baker Books. USA, 2004. (Tradução nossa)
6
Rm 10.17, BKJF.

2
da Igreja, como Tertuliano e os demais pais apostólicos. Sendo a vida cristã não apenas
matéria de fé, mas de vivência com o Nosso Pai Celestial, no caminho que é Jesus Cristo, por
meio do Espírito Santo, precisamos nos achegar a Deus pela fé, mas permanecer n’Ele
enchendo-nos do Espírito (Ef 5.18). Não é de menor importância para o cristão que vive pela
fé, entender a Deus, ao contrário lhe é mister. Os discípulos de Cristo pediam “explica-nos a
parábola” (Mt 13.36), veja que mesmo estando diante do Verbo não bastava aos ouvintes
assimilar a ideia (idea, eidos, ou seja, a imagem, forma), era necessário entender a explicação
(ratio, a razão, causa ou “o porquê” como dizemos hoje). Para que a vida cristã seja vivida em
plenitude, é necessário lembrarmos da oração de São Paulo, na carta aos Efésios.

Por esta razão dobro os meus joelhos perante o Pai, do qual toda família nos céus e
na terra toma o nome, para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que
sejais robustecidos com poder pelo seu Espírito no homem interior; que Cristo habite
pela fé nos vossos corações, a fim de que, estando arraigados e fundados em amor,
possais compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a
altura, e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo, que excede todo o
entendimento, para que sejais cheios até a inteira plenitude de Deus. – Ef 3.14-19

“Conhecer o amor de Cristo”, esse é o maior legado da Patrística aos crentes.

As discussões em torno da Trindade


O século III d.C é marcado na Patrística por um novo tempo de grandes teólogos, sai Justino e
Irineu, entram Clemente (150 – 215), Tertuliano (160 – 220), Hipólito (170 – 236) e Orígenes
(185 – 253). Não apenas mudam as figuras na produção doutrinária, mas também os temas a
serem abordados. Se no segundo século a gnose era a grande discussão (obter conhecimento
por meio dos escritos apostólicos e testemunhos dos apóstolos e seus discípulos diretos, ou
buscar o conhecimento revelado no mistério), no terceiro século a discussão torna-se mais
técnica, e os debates giram em torno da correta tradução dos termos em grego, aramaico e
hebraico utilizados nos Escritos, assim como na utilização da linguagem filosófica para
comunicação da verdade de Deus revelada no Velho e Novo Testamento. Assim, a tradição já
estabelecida que dizia respeito aos dons do Espírito Santo, Santa Ceia e Batismo, ressurreição
do corpo, e todos os demais pontos já pacificados ao longo dos primeiros duzentos anos do
Corpo de Cristo, agora eram solidificados em escritos teológicos e, assim, podiam ser
ministrados universalmente após aprovados em concílio.

Justino, no séc. II, já havia apresentado Cristo como o Logos (λόγος, lógos) de Deus. A
abordagem do teólogo romano não era meramente a repetição textual do primeiro capítulo do
apóstolo João (In principio erat Verbum), mas sim a defesa filosófica de porque Jesus, o filho
da Virgem Maria era o Lógos previsto pelos filósofos7. Essa questão era de vital importância

7
Fílon de Alexandria (10 a.C – 50 d.C) foi um filósofo judeu que reapresentou ao mundo helênico um tema já abordado
no platonismo: o Único Deus Verdadeiro criando uma divindade portadora da capacidade criadora, um Lógos, o poder
criativo. Platão já havia falado sobre essa questão no Timeu (27-29), e o mundo greco-romano já era íntimo da ideia de
um ser que não o próprio Criador, mas vindo d’Ele, com poder criativo por meio do qual tudo o que foi feito, se fez.
Quando o apóstolo João inicia seu Evangelho com a declaração de que “no princípio era o Verbo”, ele não está
declarando nada de novo para o mundo da filosofia de seu tempo (nem dos últimos 4 séculos), mas quando no verso
17 o apóstolo amado proclama o nome do Verbo, Jesus Cristo, havia ali não apenas uma repetição de poder
intelectual, mas uma revelação (Lc 2.11). Esse ponto de ter a filosofia compreendido o Lógos para a criação foi
abordado inclusive pelos padres apologistas, como Justino que acreditava serem os filósofos pessoas receptivas a
revelações de Deus, ainda que não completas a ponto de revelar-lhes a identidade do Cristo, o que só poderia ser
revelado pelo Espírito Santo, mas que sob o ponto de vista humano, Platão e os demais filósofos que entenderam a
necessidade do Lógos, compreenderam centelhas da verdade divina como argumentado por Paulo em At 17.27.

3
para a Igreja uma vez que os cristãos não estavam em um mundo politicamente estável, e nem
mesmo dentro do Império Romano tinham conquistado aceitação política. A Igreja precisava
provar seu ponto de vista não apenas para seguir o ide de Cristo, mas para se defender das
acusações de ser um grupo de ateus que se reuniam para cometer crimes e pregar a
insubordinação a Roma. A defesa da fé visava não apenas a sobrevivência doutrinária do
cristianismo, buscava evitar sua criminalização.

Quando Vitor I foi sucedido no bispado de Roma por Zeferino (199), a discussão teológica na
Igreja foi tomada pela doutrina de Sabélio, um cristão provavelmente nascido na Líbia (ou
Egito). Para ele, o trinitarianismo era uma compreensão errada do ser de Deus, e não apenas
era prejudicial ao intelecto dos novos convertidos como também era uma heresia pois gerava
dois novos deuses (Filho e Espírito), e assim configurava a fé cristã em uma fé não monoteísta.
Para ajustar esse ponto relativo à identidade de Deus, o sabelianismo defendia algo que ficou
conhecido como Monoteísmo Modalista, consistindo basicamente em Deus, Uno,
apresentando-se ora como Pai, ora como Filho, ora, Espírito, porém sendo sempre o mesmo
Deus. Coube a Hipólito confrontar Sabélio, e em Roma ambos fizeram a contraposição
teológica devida, sendo mediados por Calisto, um ex-escravo convertido e que à época servia
como presbítero em Roma. Na mediação realizada por Calisto, a visão de Hipólito foi rejeitada
pois se mostrava diteísta, ou seja, para o presbítero em Roma, a leitura de que o Pai, o Filho e
o Espírito Santo eram personas diferentes se confrontava com o monoteísmo, e dessa forma
Hipólito teve seu posicionamento negado. Qual não foi a surpresa de Hipólito ao saber que
Calisto se tornara sucessor de Zeferino no bispado da sé romana, o que para o teólogo
trinitariano se tornou inadmissível a ponto de se ver forçado a abrir mão da congregação junto
a Calisto, em 217, e em seguida fundar sua própria congregação, passando a comungar com
os cristãos romanos que compartilhavam da visão trinitariana defendida pela Escritura
Sagrada. “Foi para essa congregação independente que ele escreveu seu ordenamento para a
Igreja, a obra Tradições Apostólicas, contendo evidências dos primeiros desenvolvimentos da
liturgia”8.

Orígenes funda o estudo sistemático da teologia


Natural de Alexandria, Orígenes nasceu em um lar cristão e ainda aos 18 anos viu o pai
(Leônidas) ser martirizado pela fé em Cristo. Dono de uma personalidade obstinada, Orígenes
viveu o cristianismo com zelo e dedicação absoluta, a ponto de fazer uma leitura radical de Mt
19.12 e, assim, tornar-se eunuco por amor a Cristo. Após a morte do pai, Orígenes inicia seus
estudos na Escola Catequética de Alexandria9 junto com seu amigo Héraclas – que viria a se
tornar Patriarca de Alexandria no período de 232-248. Ainda na escola, Orígenes atua como
assistente nas aulas de Gramática e passa a lecionar filosofia, teologia e dar aulas de Escritura
Sagrada. Esse último tema é marca especial de sua carreira teológica, pois seguindo a linha
apologética de Irineu e Tertuliano, o alexandrino considerava a Bíblia Sagrada como a fonte de
toda a revelação de Deus entregue à Igreja. Foi então que o estudante da Palavra compilou
sua Héxapla, uma versão do Velho Testamento composta por seis colunas de texto, uma ao
lado da outra, contendo os mesmos versos em hebraico, grego, a tradução realizada por
Áquila, a versão de Símaco, a Septuaginta e a versão de Teodócio. Para este que é
considerado o maior erudito da Patrística, a Escritura continha em si a Palavra de Deus

8
CHADWICK. H. The Penguin History of the Church. The Early Church. Penguin Books. England, 1967. (Tradução
nossa).
9
A Escola Catequética de Alexandria foi a primeira do gênero, fundada em 190 d.C na cidade de Alexandria, que a
esse tempo já era respeitada em todo o mundo como centro intelectual portador tanto da Biblioteca, como do Museu,
ambos símbolos da sabedoria humana em todo o mundo helênico.

4
revelada ao homem, bastando mergulhar em seu estudo para alcançar a explicação das
verdades espirituais.

Orígenes via o corpo da Escritura como o corpo humano, divido em três partes, as quais
deviam ser estudadas cada uma de uma vez, de acordo com sua composição:

Corpo: gramatical, histórico.

Alma: Moral, anagógico.

Espírito: Místico, alegórico.

Sendo a Escritura não um texto fruto da vontade humana, mas divina, para o doutor
alexandrino era preciso estudá-la sobre todos os ângulos, e jamais tomá-la como um texto de
sentido único.

Orígenes foi responsável por estabelecer um novo marco no trabalho teológico, iniciando algo
que hoje é conhecido como Teologia Sistemática, o estudo teológico em diferentes campos,
todos tratados por um mesmo autor e não raramente em uma mesma obra (como a Suma
Teológica de Tomás de Aquino, a Teologia Dogmática de Herman Bavinck e a Dogmática
Eclesiástica, de Karl Barth). Para dar conta de tamanho trabalho intelectual, Orígenes foi
auxiliado por Ambrósio de Alexandria, um gnóstico que conheceu o Evangelho por meio das
exposições de Orígenes na Escola Catequética. Sendo homem de grandes posses, Ambrósio
financiou ao longo de sua vida o trabalho do criador da Héxapla, inclusive colocando à
disposição de seu amigo teólogo uma equipe de auxiliares, como bem descreve Eusébio:

Efetivamente, quando (Orígenes) ditava, tinha à mão mais de sete taquígrafos, que se
revezavam a certos tempos fixos, um número não menor de copistas e também
algumas jovens treinadas na caligrafia.10

O método utilizado para a produção de grande parte de suas mais de 2.000 obras literárias era
de citação, que eram então redigidas simultaneamente por essa grande equipe de auxiliares.

Com sua produção grandiosa em Teologia Sistemática, Orígenes passou a ser requisitado por
Igrejas em todo o mundo a fim de resolver conflitos interpretativos da fé cristã, e assim o doutor
passou a viajar o mundo. Foi em uma dessas viagens que, ao se afastar de Alexandria,
Orígenes viu-se alvo da inveja de Demétrio, o patriarca da Igreja de Alexandria entre 189-232.
Demétrio objetou que enquanto esteve em Cesareia, Orígenes orou na presença dos bispos
como se fosse um sacerdote, e apesar de os próprios bispos negarem tal fato, Demétrio
repreendeu o teólogo. Posteriormente, em uma viagem à Palestina, Orígenes veio a ser
ordenado presbítero pelos bispos locais, o que para Demétrio foi o necessário para conclamar
em Sínodo em Alexandria a condenação de Orígenes.

Embora Demétrio tenha morrido pouco depois, seu sucessor manteve a excomunhão
de Orígenes que, afinal, mudou-se definitivamente para Cesaréia, onde lecionou pelo
resto de seus dias. Durante a eclosão da perseguição política sob o imperador Décio

10
História Eclesiástica, Livro VI, XXIII.

5
por volta de 251, Orígenes foi preso e torturado por sua fé, e morreu em Tiro cerca
de três anos depois como resultado dos ferimentos sofridos na tortura.

Figura 1 – As tochas de Nero, pintura de Henryk Siemiradzki (1843) retratando os mártires sob a perseguição no reinado de Nero

As grandes perseguições
Ao longo de todo o terceiro século, a Igreja de Cristo se fortaleceu de forma a ser necessária a
construção dos primeiros locais de adoração, e assim, até o ano 300 a Igreja já contava com
40 basílicas apenas em Roma. Dados disponíveis a nós, hoje, dão conta de que no mesmo
tempo a estrutura ao redor do mundo era algo como:

Palestina: poucos membros de Cristo reunindo-se em congregações simples;

Cesareia (costa do Mediterrâneo): pequeno número de cristãos;

Síria: número elevado de cristãos;

Ásia Menor: região com as Igrejas mais populosas;

Ponto: totalmente cristianizada;

Grécia: cristianismo em nível avançado;

Gália: igreja próspera com registro de diversas paróquias;

Espanha: idem;

Britária: idem;

Norte da África: Igreja avançado com cerca de 250 bispos.

Uma série de perseguições tomaram o terceiro século logo em seus primeiros anos, quando
ainda em 202, Sétimo Severo, imperador romano de 193 a 211, proibiu a Igreja de realizar
novas conversões em todo o Império em uma tentativa de fazer cessar o crescimento
desenfreado do cristianismo, que como vimos anteriormente causava não apenas transtornos

6
de ordem econômica, como atemorizava Roma diante de um cenário de possível
desobediência civil por parte da comunidade dos crentes. Foi na perseguição de Sétimo
Severo que o pai de Orígenes foi martirizado, assim como Perpétua e seus companheiros em
Cartago11.

Diante do péssimo cenário que tomava principalmente a Igreja no norte da África, Orígenes
alertou:

É provável que a existência segura, no que diz respeito ao mundo, desfrutada pelos
crentes no presente, chegará ao fim, já que aqueles que caluniam o cristianismo de
todas as maneiras estão novamente atribuindo a atual frequência de rebeliões à
multidão de crentes que, não são perseguidos previamente pelas autoridades como
nos velhos tempos. Logo serão perseguições não mais locais, mas universais.12

Com o início das perseguições generalizadas, das quais destacam-se historicamente as de


Décio e, principalmente, de Diocleciano, a Igreja passou a sofrer internamente as
consequências da apostasia, elaborando um código de conduta para tratar os casos dos
cristãos que negavam a fé quando levados diante das autoridades. A maneira com que deviam
ser tratados os que negavam a fé diante do martírio tornou-se motivo para um grande cisma na
Igreja, com o qual os cristãos se viram divididos em três grandes blocos, o de Cipriano, dos
chamados lenientes e o de Novatio, como veremos a seguir.

Fernando Melo
Brasília, 18 de maio de 2022

11
O martírio de Perpétua e seus companheiros é descrito no Catena Aurea, 167, e faz parte da série de martírios que
flagelaram os cristãos do norte da África no terceiro século.
12
DAVIES. J. G. The Early Christian Church. Barnes and Noble Books. USA, 1965

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