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Santo Agostinho – Do espírito e da letra

“Penso, portanto, que tu te lembras como em nosso primeiro diálogo (I,11,21) ficou
suficientemente estabelecido que nada pode sujeitar o espírito à paixão, a não ser a
própria vontade. porque nem um agente superior nem um igual podem constrangê-la
a esse vexame, visto que seria injustiça. Tampouco, um agente inferior, porque esse
não possui poder para tal.” – O livre-arbítrio, Livro III, 2.

No ano 412, Santo Agostinho escreveu a obra De spiritu et littera (O espírito e a letra) em
resposta à uma solicitação de seu amigo Flávio Marcelino, tribuno romano em Cartago, cidade
onde Agostinho passou grande parte de sua vida. O ensejo da obra é o surgimento do maior
cisma da Igreja na África, o movimento donatista que se via como representante do verdadeiro
cristianismo, em oposição ao bispado romano que se tornara, na visão dos partidário de
Donato Magno (270 – 355), relapsos com a manutenção da sã doutrina.

Na obra anteriormente enviada a Marcelino (De baptismo contra Donatistas), Agostinho havia
defendido a possibilidade de um ser humano viver sem pecar, e agora via a necessidade de se
explicar melhor uma vez que seus escritos passavam a ser distorcidos para defender heresias
em todo o mundo romano. O santo doutor da Igreja estava passando pelos mesmos problemas
que outro grande teólogo, o apóstolo Paulo1, e não havia forma melhor de colocar fim à vileza
de seus oponentes que escrevendo outra obra para detalhar seu posicionamento. Assim, o
autor argumenta para com seu interlocutor: “Consideras estar ouvindo um absurdo ao dizer-te
que algo seja possível sem que se apresente um exemplo de sua existência. No entanto, julgo
eu, não duvidas nunca de ter acontecido que um camelo tenha passado pelo buraco de uma
agulha, e, no entanto, Cristo afirmou que isso era possível para Deus”2. A argumentação de
Agostinho no primeiro capítulo de sua obra é que muito do que é possível para Deus é também
inédito na Terra, ou seja, o fato de Deus poder todas as coisas não significa que Ele as tenha
realizado alguma vez. Além do exemplo do camelo passando pelo buraco da agulha, o autor
cita ainda a possibilidade de anjos serem enviados para proteger Jesus de tropeçar, o que
nunca veio a acontecer, ou de Deus exterminar todos os povos inimigos dos israelitas com seu
próprio poder, o que também nunca veio a se realizar. Da mesma forma, para a teologia
augustiniana a possibilidade de alguém viver sem pecar é real – Cristo é a prova dessa
possibilidade3 –, ainda que jamais tenha acontecido. O que o autor quer deixar claro é a total
sujeição da vontade humana à desobediência, ponto vital para sua teologia que tem como pilar
o postulado do livre-arbítrio4.

A necessidade de provar a escravidão natural do homem ao pecado se tornou inadiável com o


surgimento da cisão da Igreja africana. O trauma se deu após a morte do bispo de Cartago,
Mensúrio, que durante a perseguição sob Diocleciano entregou seus escritos sagrados para o
Império, tornando-se um traditor. Com o vazio deixado na sé cartaginense, os bispos locais se
reuniram para realizar o processo de eleição do novo representante da Igreja na importante
cidade africana, e o nome escolhido foi o de Ceciliano, arcediago de Mensúrio. Aqui centrou-se

1
Cf. II Pe 3.15,16
2
O Espírito e a letra, I, 1.
3
“[...]mesmo considerando o fato de ele ser o Filho de Deus, aprendeu a obediência por intermédio das aflições que
padeceu; e, uma vez aperfeiçoado...” – Hb 5.8.9
4
Conforme vimos anteriormente.

1
um grande problema para a Igreja na África, as
grandes perseguições das últimas décadas haviam
forjado na cristandade africana uma personalidade
de resistência, por alguns autores vistos até
mesmo como de fanatismo religioso5. Nesse
campo de cristãos perseguidos ao longo de dois
séculos, a ideia de ver a igreja liderada por bispos
que ao invés de se tornarem mártires haviam
entregue os escritos da Igreja para a polícia
romana era inaceitável; o movimento donatista não
foi uma subversão provocada por um grande
orador, e sim a representação de um espírito
revoltoso coletivo que encontrou em uma número
significativo de bispos de cidades da Numídia,
Mauritânia e da África Proconsular, a pregação de
resistência ao Estado que, na visão da Igreja
Ocidental (principalmente no bispado romano), era
uma postura que colocava em risco a própria
existência da Igreja no Império. Esse grupo de
cristãos entendia que o cristianismo não deve ter
como premissa a permanência na Terra, mas a
sobrevivência submetida ao zelo, cumprindo com
rigor a doutrina de Cristo independente do preço a
Figura 1 – Agostinho triunfando sobre os Donatistas
ser pago.

Após dois mil anos de história é possível olharmos para trás e vermos claramente que o
posicionamento da Igreja Ocidental foi o mais seguro (e sensato), o que de forma alguma tira o
mérito dos zelosos que enfrentaram a morte para defender a supremacia da religião – e não da
política – em uma cultura.

O serviço de Agostinho à Santa Igreja


Quando Donato, bispo da Numídia, confrontou os bispos que aceitavam a nomeação de
traditores para o clero, chamou para si a atenção de grande parte da Igreja africana, de tal
forma que na disputa que ocorreu no ano 411 em Cartago – na qual o tema principal era o
donatismo –, dos mais de 500 bispos presentes, a metade era de bispos donatistas6. Esse
número já basta para mostrar que o acontecimento motivador da redação d’O espírito e da letra
não foi um cisma menor ou uma loucura momentânea, mas a disputa mais significativa da
história da Igreja até o quinto século7.

Ciente da importância do momento vivido, Agostinho entende que é necessário buscar a


unidade da Igreja, e essa unidade não se dá por meio do relevamento das discordância, mas

5
Ao longo das pesquisas em diferentes autores, é comum encontrar aqueles que utilizam o termo pejorativo “fanáticos
religiosos” para definir os cristãos do norte da África, porém se fugirmos do anacronismo e buscarmos entender a
motivação das decisões tomadas ao longo da história, veremos a igreja africana como o berço da ortodoxia cristã
assim como do martírio – para verificação desse ponto ver I. DAVIDSON em The birth of the church, p. 209 (External
pressure: Suffering for and defending the faith); e EUSÉBIO em História Eclesiástica, Livro VI, XLI onde o autor relata a
perseguição brutal na igreja africana (“[...]começaram a pensar que somente era religião este ato de culto demoníaco:
assassinar-nos”).
6
A lista aproximada dá conta de 284 bispos donatistas em um total de 570 bispos componentes do Concílio.
7
Para detalhes sobre o cisma donatista, ver St. Augustine and African Church Divisions, de W. J. Sparrow Simpson.

2
da destruição do engano. Para Agostinho, a base da doutrina de Donato é anticristã, uma vez
que se sustenta sobre a ideia de que o cristão vive sem pecado por força de obediência, e não
por graça divina. A visão do santo doutor da Igreja foi excepcional: no calor do momento, o
bispo de Hipona entendeu que o problema não era relacionado ao pecado, mas ao perdão. Se
alguém havia pecado (como os traditores), o papel da Igreja não era punir, mas conduzir ao
arrependimento. “Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o e, caso ele venha a se arrepender,
perdoa-lhe”8. A proposta argumentativa de Agostinho para vencer o debate contra os
donatistas era a de demonstrar a total incapacidade humana em vencer o pecado por conta
própria, sendo o homem capacitado a vencer o pecado apenas ao abandonar a velha natureza
por meio da morte, e nascer novamente em uma nova natureza disposta à boa vontade9.

Pela graça sois salvos


“Talvez me responderás que estes fatos mencionados, não acontecidos, mas que
poderiam acontecer, seriam obras divinas. Mas o fato de o ser humano viver sem
pecado pertence à esfera humana e é a ação mais excelente.”10

O autor está ciente do problema com relação à compreensão acerca dos temas relacionados à
vida cristã no quarto século, não apenas a Igreja estava atordoada no pós-perseguição (Décio
e Diocleciano), como os cristãos ao redor do mundo estavam em dúvida com relação à vida de
santidade. O martírio de homens que iam para a fogueira sem negar a fé, ao mesmo tempo em
que havia igrejas que associavam o paganismo com o cristianismo, instalou uma esfera de
pensamento que fazia com que as ovelhas não soubessem mais se a elas estava disponível o
viver em santidade ou se a vida cristã era como a vida secular, com a diferença de que o
cristão participava do culto religioso e recebia os sacramentos. As obras de Agostinho
relacionadas à graça trazem em detalhes o que Cristo e os apóstolos pregaram sobre a prática
cristã: “podes ir e não peques mais”11.

Em O espírito e a letra, A natureza e a graça, A graça de Cristo e o pecado original, dentre


outras obras, Agostinho expõe a forçosa vida de santidade imposta aos cristãos pelo perdão
dos pecados no sangue de Cristo. “Não torno inútil a Graça de Deus”, disse o apóstolo12 ao
pregar para os gálatas sobre a inutilidade da Lei em se fazer cumprir, sendo essa capacidade
dada não pelo mandamento, mas pela Palavra que “é poder de Deus”13. O mandamento não
faz nada mais do que apontar o erro, sendo a boa notícia não o anúncio das ordens de Deus,
mas o dom da graça que possibilita a obediência, como está escrito “Ora, se o ministério que
trouxe a condenação era glorioso, quanto mais ainda será o ministério que produz a
justificação!”14.

“Asseveramos que a vontade humana é de tal modo ajudada por Deus para praticar a
justiça, que, além de o homem ser criado com o dom da liberdade e apesar da
doutrina que o orienta sobre o modo de viver, receba o Espírito Santo, que infunde
em sua alma a complacência e o amor do Bem incomunicável, que é Deus, mesmo

8
Lc 17.3.
9
Livre-arbítrio, I, 11, 25.
10
Do espírito e a letra, II, 2.
11
Jo 8.11.
12
Gl 2.21.
13
Rm 1.16.
14
II Co 3.9.

3
agora quando ainda caminha pela fé, e não pela visão. Desse modo, com o penhor da
graça recebido gratuitamente, anseie aderir ao Criador e anele vivamente
aproximar-se da participação daquela Luz verdadeira, e, assim, proceda a felicidade
daquele de quem recebeu o ser.”15

“Além de o homem ser criado com o dom da liberdade”, Agostinho reafirma mais uma vez que
a doutrina cristã não nega o livre-arbítrio, e o homem natural tem sim a livre vontade; e “com o
penhor da graça recebido gratuitamente” este homem (e apenas este) adere ao Criador e
participa da Luz. Aqui está o cerne da mensagem agostiniana relacionada à graça: o homem
deve ser santo, mas só pode ser santo se for santificado em Cristo, de graça e pela graça,
como está escrito “[...]o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida
eterna por intermédio de Cristo Jesus, nosso Senhor!”16.

Após Agostinho a Igreja terá, além do texto sagrado, a doutrina da Igreja estabelecida, e está
guiará o rebanho em direção à vida de santidade. O bispo de Hipona trouxe para a Igreja, a
base intelectual que o Corpo de Cristo precisava para guiar a cristandade em um mundo
carnal, à semelhança de Moisés que mesmo tendo nas próprias mãos as tábuas escritas pelo
dedo de Deus, precisou alertar o povo com suas próprias palavras “Prestai, pois, atenção! Hoje
estou colocando a bênção e a maldição diante de vós.”17 A Igreja de Cristo do quarto século já
tinha os escritos sagrados, mas com a doutrina da Igreja produzida pelos padres apostólicos “o
povo que andava nas trevas viu uma grande luz”18.

O ponto vital da teologia da graça de Santo Agostinho é provar que a justificação do homem
não se dá pelo não pecar, mas pelo perdão dos pecados conquistado no sacrifício caríssimo
realizado por Deus (“fostes comprados por alto preço”19) e concedido gratuitamente aos
homens (“pela graça sois salvos”20), e que a vida de santidade após o perdão dos pecados não
é dom dos homens, mas também é dom de Deus. Assim, diz Agostinho: “ele estende sua
misericórdia não porque o conhecem, mas para que o conheçam”21. Não há dúvidas, Deus não
justifica os justos, mas os pecadores (“Eu não vim para convocar justos, mas sim
pecadores”22), e se Deus não veio para chamar justos, mas chama os pecadores ao
arrependimento e à vida justa, é d’Ele o poder de tornar o impossível, possível “pois é Deus
quem produz em vós tanto o querer como o realizar, de acordo com sua boa vontade”23. Como
se vê, a Patrística é profundamente bíblica, e ainda que hoje haja um grande número de
cristãos que entenda que a Tradição da Igreja é a fundamentação da Escritura, é a Escritura
que sustenta toda a argumentação patrística, para que essa possa servir de sustentação
teológica para a pregação da Igreja ao longo dos séculos.

15
Ibdem., III, 5.
16
Rm 6.23.
17
Dt 11.26.
18
Texto do profeta Isaías (9.2), onde claramente se faz referência ao surgimento de Cristo como se vê em Mt 4.16. A
referência aqui é justa, uma vez que a Palavra de Deus – que é a base da qual advém a doutrina da Igreja – é o próprio
Cristo, o Logos de Deus, seu Verbo, sua Palavra.
19
I Co 6.20.
20
Ef 2.8.
21
Ibdem., VII, 11.
22
Mc 2.17.
23
Fp 2.13.

4
A graça para cumprimento da Lei
“Portanto, a Lei foi dada para que se procurasse a graça; a graça foi dada para dar
pleno cumprimento à Lei. Pois não se dava pleno cumprimento à Lei não devido à sua
imperfeição, mas devido à imperfeição da malícia da carne.”24

No capítulo XIX, Agostinho chama a atenção do leitor para o profeta Jeremias, citando:

“Dias virão”, afirma o SENHOR, “quando estabelecerei uma nova Aliança com a
Casa de Israel e a Casa de Judá. Não será como a Aliança que firmei com seus
antepassados quando os tomei pela mão para tirá-los do Egito, pois eles não
honraram o meu pacto, mesmo sendo Eu o Marido divino deles!” assevera Yahweh.
“Eis, no entanto, a Aliança que celebrarei com a comunidade de Israel passados
aqueles dias”, afirma o SENHOR: “Registrarei o conteúdo da minha Torá, Lei, na
mente deles e a escreverei no mais íntimo dos seus sentimentos: seus corações. Assim,
serei de fato o Deus deles e eles serão o meu povo! Ninguém mais terá a necessidade
de orientar o seu próximo nem seu irmão, pregando: ‘Eis que precisas conhecer quem
é Yahweh, o SENHOR!’, porquanto serei conhecido no interior do ser de cada
pessoa, desde os mais jovens até os idosos, dos mais pobres aos mais ricos.”, garante
o SENHOR. “Porque Eu mesmo lhes perdoarei a malignidade e não me permitirei
recordar mais dos seus erros e pecados!”

Como disse o doutor da Igreja, aqui está nada menos que uma citação do Novo Testamento no
Velho Testamento. Em Jeremias vemos claramente Deus anunciando que haverá uma Nova
Aliança, que diferentemente da Antiga não estará gravada em tábuas de pedra, mas nos
corações dos homens. A graça de Deus em Cristo Jesus concedida em seu sangue “Bebei
dele todos vós. Pois isto é o meu sangue da aliança”, é o meio pelo qual Deus liberta o homem
do pecado, tornando-os coparticipantes em Si (Hb 3.14), Aquele que venceu o pecado e a
morte (Hb 4.15; At 3.15).

Não devemos temer, mas amar

“Pela lei tememos a Deus, pela fé esperamos em Deus; mas para os que temem o
castigo a graça permanece oculta. E a alma, sofrendo este temor, enquanto não
vencer a concupiscência do mal e aquele temor, qual severo vigilante, não se afastar,
refugie-se pela fé na misericórdia de Deus, a fim de que ele conceda o que manda e,
com a suavidade da graça infundida pelo Espírito Santo, consiga que lhe dê mais
prazer o que ele manda do que o que ele proíbe.”

A motivação do cristão não deve ser fugir da ira divina, sua motivação deve ser o amor pelo
Mestre. O cristão precisa amar a Cristo e esse amor deve ser pedido a Deus “que a todos dá
liberalmente”25. Assim, cheios de amor26 nos aproximaremos da Luz e amaremos sua Lei e a
guardaremos.

24
Ibdem., XIX, 34.
25
Tg 1.5.
26
Cf. Ef 5.2.

5
Agostinho deixa muito clara a necessidade de buscar a Cristo, e esse chamado à santidade na
vida do autor de Cidade de Deus é essencial para o período da Igreja agora que o Império
Romano caminha para a ruína. Ainda em vida, Agostinho de Hipona vê a chegada dos
bárbaros, e tanto intra muros quanto extra muros precisa lutar contra o barbarismo, seja nas
guerras pela defesa da fé contra as heresias, seja contra a destruição dos tesouros da Igreja
pelos vândalos.

Os libertos em Cristo precisam viver livres

“O consentimento ou o dissentimento ao chamado de Deus, conforme já afirmei, é


obra da vontade própria.”27

O escrito Do espírito e a letra conclui com uma verdade que não pode ser esquecida pois é o
mote da Igreja: “todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo! No entanto, como
invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram falar?
E como ouvirão, se não há quem pregue?”28. Para Agostinho, não há salvação do pecado fora
da graça concedida no sangue de Cristo Jesus, porém esse sangue só pode ser tomado a
quem lhe for oferecido, assim, a Igreja é chamada a tomar postos em sua atividade
evangelística e ir “por todo o mundo” pregar o Evangelho a toda criatura.

Fernando Melo
Brasília, 20 de julho de 2022

27
Ibdem., XXXIV, 60.
28
Rm 10.13,14.

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