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Santo Agostinho – A predestinação dos santos

“Devemos demonstrar primeiramente que a fé, que nos faz cristãos, é dom de Deus, e
o faremos, se possível, com mais brevidade do que empregamos em tantos e
volumosos livros. Mas agora vejo que devo dar uma resposta aos que dizem que os
testemunhos divinos, mencionados por nós e concernentes ao assunto, valem apenas
para provar que podemos adquirir o dom da fé por nós mesmos, ficando para Deus
só o seu crescimento em virtude do mérito com o qual ela começou por nossa
iniciativa.” – A predestinação dos santos (De praedestinatione sanctorum), II, 3.

Obra da maturidade do autor, A predestinação dos santos foi escrita em 429, um ano antes da
morte do santo. A essa altura sua luta contra o pelagianismo já havia passado pelos momentos
mais inflamados, e o autor das heresias pelagianas já não era mais um problema para a Igreja.
Porém, como doutor da Igreja Agostinho de Hipona era fonte doutrinária que abastecia de
argumentação toda a cristandade espalhada pelo mundo católico, e seguindo na missão de
levar luz aos povos (Is 49.6), escreveu algumas obras com objetivo de erradicar a ideia
diabólica de que o homem se achega a Deus – ou é acolhido em Deus – por suas próprias
obras.

As ideias de Pelágio acarretavam diversos problemas para a vida comunitária da Igreja, como
a ideia de que o perdão fraternal deveria ser negado aos que haviam cedido à força das
perseguições do Império Romano e, consequentemente, tornado-se um traditore. Como na
Igreja Primitiva o perdão era um tema visto sobre a ótica eclesiológica – em detrimento até
mesmo da visão cristológica –, o clero agia por muitas vezes com a ideia de que o destino das
almas estava nas mãos dos bispos: se esse negasse o perdão a um homem, as portas dos
Céus se fechariam àquele pobre pecador e ele vagaria em busca de um perdão jamais
concedido pelo Salvador. Assim, não apenas a confissão de pecados ao sacerdote, o batismo,
a participação na eucaristia como até mesmo a comunhão com os irmãos, era questão
importante para o destino da alma. Com a ideia de que a graça de Cristo era concedida aos
que se dirigiam ao favor divino, o rebanho de Cristo passava a se ver como um composto de
iluminados, homens de fé que alcançaram a graça, visão essa que fazia com que os que caiam
em pecado ao longo de suas vidas fossem marginalizados na comunidade local, e
naturalmente banidos do convívio congregacional. Foi contra esse mal que Agostinho lutou em
suas últimas obras, num momento em que Pelágio já havia morrido, mas a implacabilidade de
seus fiéis continuava a causar divisões no rebanho de Cristo.

Quando o santo diz “vejo que devo dar uma resposta aos que dizem que ... podemos adquirir o
dom da fé por nós mesmos, ficando para Deus só o seu crescimento”, está combatendo a ideia
de que o homem se achega pelas próprias forças a Deus. O texto do apóstolo, quando diz
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus”1 está
desfazendo justamente a ideia errônea que nasceu em Éfeso de que o homem participa do
processo salvífico de forma meritória, e não por chamamento divino. Continua o texto “não vem
das obras, para que ninguém se glorie”2. Em toda sua obra, Agostinho reforçará que a escolha
de Deus é majoritariamente dirigida às fraquezas deste mundo (I Co 1.25-29), para que

1
EfEf 2.8.
2
Ef 2.9.

1
ninguém diga que Seu poderoso exército é formado por homens fortes em si mesmo, mas em
ramos secos que só se tornaram produtivos pelo enxerto na videira verdadeira (Rm 11.11-24).
Jesus não veio para os sãos, mas para os doentes (Mc 2.17) e seu apostolado não se dá por
meio da convocação de santos, mas de pecadores carentes de justificação (Rm 6.23).

Agostinho revisa sua posição quanto à fé

“[...]convenci-me também do erro, quando nele laborava, julgando que a fé, que nos
leva a crer em Deus, não era dom de Deus, mas se originava em nós por nossa
iniciativa”3

No início de sua carreira como escritor, Agostinho produziu algumas obras onde advogava ser
a fé para crer uma ação humana, uma espécie de iniciativa responsiva ao chamado de Deus.
Cria o autor que essa ação era de parte única e exclusiva do homem, a qual Deus esperava
para então conceder sua graça e, assim, filiar o novo fiel à sua Santa Família. Porém, no fim de
sua vida Agostinho reconhece que absolutamente tudo vem de Deus, pois o homem não tem
carnalmente a força necessária para crer no invisível, sendo a fé um dom de Deus, como está
escrito:

“A fé vem pelo ouvir as boas novas, e as boas novas vêm pela Palavra de Cristo” –
Rm 10.17

As posições de Agostinho não apenas foram revisadas por ele mesmo, como ao longo da
História a Igreja fez correções à leitura agostiniana relativa à eleição e predestinação,
destacando que a salvação da alma não é um processo que tem Deus como único agente
ativo, mas que Deus, o Único Salvador é aquele que move todo o seu sacerdócio para realizar
a redenção do homem. Assim, Deus elege sua Igreja para anunciar a Palavra a todos os
povos, como o próprio Jesus ordenou em Atos:

Então, os que se haviam reunido lhe consultaram: “Senhor, será este o tempo em que
restaurarás o Reino a Israel?” Ele lhes afirmou: “Não vos compete saber as épocas ou
as datas que o Pai estabeleceu por sua exclusiva autoridade. Contudo, recebereis poder
quando o Espírito Santo descer sobre vós, e sereis minhas testemunhas, tanto em
Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra!” – At 1.6-8

Não vos compete saber a data em que subirei ao trono, mas sereis minhas testemunhas de
que subirei ao trono um dia. As palavras de Cristo não são de correção da ideia de um futuro
reinado seu, mas de que seus seguidores não devem se preocupar com a data, antes devem
tratar de ser testemunhas de que esse dia chegará. Essa ação testemunhal é a missão da
Igreja, que indo aos “confins da terra”, testemunha quanto ao advento da parousia.

“Eis que Ele vem com as nuvens, e todo olho o verá.” – Ap 1.7

É mister compreender e entender que, diferente do que alguns acreditam, Agostinho não reviu
sua posição relativa ao livre-arbítrio, qual seja a de que o homem tem vontade livre para

3
A predestinação dos santos, III, 7.

2
decidir. Em seu Predestinação (VIII, 13), o autor relembra o capítulo 6 do Evangelho de João,
onde está escrito:

Então, eles questionaram a Jesus: “O que faremos para realizar as obras de Deus?”
Jesus lhes asseverou: “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por Ele foi
enviado.” Por esse motivo o desafiaram: “Que sinal poderás realizar para que o
vejamos e creiamos em ti? Que obra farás? Nossos pais comeram o maná no deserto;
como está escrito: ‘Ele lhes deu a comer pão do céu’.”Respondeu-lhes, então, Jesus:
“Em verdade, em verdade vos asseguro: não foi Moisés quem vos deu o Pão do céu;
mas é meu Pai quem vos dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é o que
desce do céu e dá vida ao mundo.” Então, eles pediram a Jesus: “Senhor, dá-nos
sempre desse pão.”

Diante disso, Jesus ministrou-lhes: “Eu sou o Pão da Vida; aquele que vem a mim
jamais terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede. Todavia, como Eu vos
disse, embora me tenhais visto, ainda não credes. Todo aquele que o Pai me der, esse
virá a mim; e o que vem a mim, de maneira alguma o excluirei. Pois Eu desci do céu,
não para fazer a minha própria vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E
esta é a vontade do Pai, o qual me enviou: que Eu não perca nenhum de todos os que
Ele me deu, mas que Eu os ressuscite no último dia. De fato, esta é a vontade daquele
que me enviou: que todo aquele que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e Eu o
ressuscitarei no último dia.” – Jo 6.28-40

Os ouvintes de Cristo o desafiaram a convencê-los de sua divindade ao repetir um suposto ato


de Moisés, que fazendo cair pão do céu testificou seu chamado divino, Jesus porém lhes
repreendeu dizendo que não foi Moisés que deu o pão, mas o Pai de Jesus, ao que seus
ouvintes lhe respondem de pronto “então nos dê desse pão”, e Jesus responde “Eu sou o Pão
da Vida”. Deus quer alimentar seus filhos para que eles tenham a vida eterna, e por isso lhes
dá do Pão da Vida, porém nem todos creem nesse pão, nem todos fazem dele bom uso e há
os que repetem os escravos no deserto que desobedeceram a Moisés e tentaram estocar o
maná de Deus (Ex 16.20).

“Aquele que vem a mim jamais terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede”. Vem e
crê, são dois verbos executados por aquele que busca o pão. “Todo aquele que o Pai me der,
esse virá a mim”. Der e virá, são dois verbos executados por aquele que dá o Pão. Assim
vemos que o homem, pela misericórdia de Deus, se achega a Cristo, e é aqui que Agostinho
quer chegar. A união entre a ação humana e a benevolência do Todo Poderoso.

O texto em João prossegue com alguns judeus se irritando quando Jesus diz “Eu sou o Pão
que desceu do céu”, ao que Jesus responde “Ninguém pode vir a mim a menos que o Pai, o
qual me enviou, o atrair”. É indiscutível à luz das palavras de Jesus de que é Deus quem atrai o
pecador. E aqui entendemos perfeitamente o agir de Deus no testemunho dos santos (At 1), de
acordo com as palavras do apóstolo quando escreve Aos Romanos: Deus institui a sua Igreja
para pregar o Evangelho a toda criatura (Mc 16.15); o Evangelho é Cristo (Jo 1.1; II Co 11.4; Gl
1.6-9); ao ouvir o Evangelho, o ouvinte se torna alvo da atração de Deus (Sl 19.1-4; Rm 10.17);
à qual não deve resistir, mas ceder (Sl 95.7,8; Hb 3.7,8); e cedendo, recebe o penhor de Deus,
como promessa da ressurreição para a vida eterna (Jo 6.39; II Co 1.21,22).

3
O Apóstolo diz claramente a respeito dos judeus: Irmãos, o desejo do meu coração e
a prece que faço a Deus em favor deles é que sejam salvos (Rm 10,1). O que pede
pelos que não crêem, senão que creiam? De outro modo, não alcançariam a
salvação. Pois, se a fé dos que crêem antecede a graça de Deus, acaso a fé daqueles
pelos quais se pede que creiam antecede a graça de Deus? Responde-se: quando se
pede por eles que não crêem, isto é, não têm fé, é para que lhes seja concedida a fé. 4

Agostinho cita a carta de Paulo aos romanos, onde o apóstolo fala com a igreja gentílica que os
judeus não devem ser rejeitados ou sequer ignorados pelos cristãos, mas devem ser alvos de
súplicas e orações a Deus para que venham a reconhecer Jesus como o Messias prometido
em Abraão. Com essa lembrança do ensino apostólico, o bispo de Hipona ressalta que a
oração do apóstolo era a de que Deus concedesse aos judeus fé para crer, como está escrito
em outra passagem “[...]é Deus quem produz em vós tanto o querer como o realizar”5. Assim, o
autor de A predestinação demonstra que sua leitura acerca do chamado de Deus não exclui o
homem, e nem mesmo a sua vontade, mas coloca todas as ações humanas carentes do
beneplácito de Deus:

“Entenda a verdade contida nas palavras do Apóstolo, que diz: Pois vos foi
concedido, em relação a Cristo, a graça de não só crerdes nele, mas também de por
ele sofrerdes (F1 1,29). O texto revela que ambas as coisas são dom de Deus, porque
disse que ambas as coisas são concedidas.”6

Para Agostinho, a graça “não é concedida de acordo com os méritos, mas é causa de todos os
bons méritos”7.

A predestinação para a perdição


Ponto discutível da doutrina da predestinação8 é a parte concernente à perdição eterna.
Ninguém com o mínimo conhecimento da doutrina da Igreja jamais questionou o existir a
predestinação da parte de Deus, essa questão é extensivamente declarada nas Escrituras (Rm
8.29,30; Ef 1.5; II Tm 1.9,10). Antes de que algo aconteça, Deus determina o fato (antes da
fundação do mundo cf. Mt 25.34 ao falar do Reino de Deus; Lc 11.50, sobre o sangue dos
profetas que foi derramado; Ef 1.4, a respeito da escolha dos filiados em Cristo; Hb 4.3, falando
sobre as obras dos santos; etc.). Agostinho defendia o posicionamento de que Deus escolhe
previamente alguns para a perdição eterna, da mesma forma que escolhe outros para a
justificação em Cristo Jesus. Ao longo da História, a Igreja irá se debruçar sobre o texto de I Tm
2.1-4, onde o apóstolo diz que Deus “deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao
pleno conhecimento da verdade”, e assim entenderá que a predestinação é tema exclusivo da
Sabedoria de Deus, e que não cabendo ao homem conhecer de antemão o que será de cada
um, devemos todos trabalhar para ministrar o Evangelho e assim proporcionar aos que ainda
estão nas trevas, a Palavra da Salvação (cf. Rm 10.12-15).

4
Ibdem., VIII, 15.
5
Fp 2.13.
6
Ibdem., II, 4.
7
Ibdem., II, 5.
8
Do grego proorizó (προορίζω), determinação prévia; antemão; definição antes do acontecimento.

4
O autor da Predestinação lembra o leitor quanto ao ocorrido com os patriarcas, que ao gerarem
filhos não sabiam de qual deles adviria o cumprimento da promessa, assim lemos:

“A palavra do Senhor a Israel, por intermédio de Malaquias. Eu vos tenho amado,


diz o Senhor. Mas vós dizeis: Em que nos tens amado? Acaso não era Esaú irmão de
Jacó? diz o Senhor; todavia amei a Jacó, e aborreci a Esaú; e fiz dos seus montes
uma desolação, e dei a sua herança aos chacais do deserto.” – Ml 1.1-3

YHWH prometera a Abraão que de sua semente viria o Redentor, e para cumprir essa
promessa atuou no tempo predestinando uns para comporem a videira verdadeira (“Então
brotará um rebento do toco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará”9) e outros para
serem árvore infrutífera. Deus não predestinou Ismael e Esaú para a perdição, antes
tranquilizou Abraão quando Sara lhe disse “Livre-se daquela escrava e do seu filho, porque ele
jamais será herdeiro com o meu filho Isaque”, ao que o Criador lhe falou “Não se perturbe por
causa do menino e da escrava. Atenda a tudo o que Sara lhe pedir, porque será por meio de
Isaque que a sua descendência há de ser considerada”10. Deus assegurara o patriarca de que
a intromissão de Sara não prejudicaria os planos divinos, pois esses se executariam não por
meio de Ismael, mas de Isaque, e completou “Mas também do filho da escrava farei um povo;
pois ele é seu descendente”. Deus abençoou Ismael poderosamente, como se vê no escrito
“porque dele farei um grande povo”, e a genealogia de Esaú foi extensa, como se vê em Gn 36.
A Igreja trabalha firme sobre as palavras de Pedro, que disse: “O Senhor não retarda a sua
promessa, ainda que alguns a têm por tardia; porém é longânimo para convosco, não querendo
que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se.”11 Conclui-se que a
predestinação de Deus não é individual, mas coletiva (“perdição dos homens ímpios”, cf. II Pe
3.7) em um ato de justa paga pelo pecado (Mt 20.1-16; Rm 6.23). Ressalte-se porém que o
posicionamento de Agostinho era o de que Deus predestinava sim alguns homens à perdição,
no que o Justo atuaria com plena justiça uma vez que todos pecaram (Rm 3.23).

Graça e predestinação

“Sobre o que afirmei antes: “O poder salvífico desta religião jamais faltou a alguém
que dela fosse digno e, se a alguém faltou, é porque não foi digno”, se se discute e
investiga a razão pela qual alguém é digno, não faltam os que dizem que é pela
vontade humana. Nós, porém, dizemos que é pela graça ou predestinação divinas.
Todavia entre a graça e a predestinação há apenas esta diferença: a predestinação é
a preparação para a graça, enquanto a graça é a doação efetiva da predestinação.”

Nesse escrito redigido no fim de sua jornada, Agostinho não expõe com total clareza o que é
da Sabedoria, e desde o início o autor já sabia que enveredava por caminhos inacessíveis ao
homem como muito bem definiu João Calvino ao dizer “lembrem de que, quando querem saber
os segredos da predestinação, penetram no santuário da sabedoria divina, no qual todo aquele
que entra com ousadia não encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num labirinto
do qual não pode sair”12. Falar sobre predestinação de Deus é falar sobre uma decisão da

9
Is 11.1.
10
Gn 21.
11
II Pe 3.9
12
A instituição da religião cristã, XXI, 1.

5
vontade santa do Criador, tomada antes da fundação do mundo. O apóstolo Paulo, ao falar aos
romanos sobre o tema, concluiu com um cântico espiritual em louvor ao Criador:

“Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, a fim de usar de


misericórdia para com todos. Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como
da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus
caminhos! Pois, quem jamais conheceu a mente do Senhor? ou quem se fez seu
conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado?
Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente.
Amém” – Rm 11.32ss

Fernando Melo
Brasília, 27 de julho de 2022

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