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Pais da Igreja – Apologistas

Vimos nas páginas anteriores que a heresia só pode nascer no ambiente doutrinário, sendo
natural que se faça presente no seio da Igreja. O que não é natural (e não pode ser admitido) é
que ela habite na Igreja e passe a coabitar com a sã doutrina. A essa tarefa de limpeza do
terreno e estabelecimento de marcos da fé cristã, dedicaram-se os grandes estudiosos das
escrituras conhecidos hoje como padres apologistas, dentre os quais sobressaem-se os nomes
de Quadratus (– 129?), Atenágoras (133 – 190) e Aristides de Atenas (séc. II), Teófilo de
Antioquia (séc. II) e Taciano, o Assírio (– 172)1.

A tarefa da apologia se fazia essencial nos primeiros séculos devido ao Evangelho de Cristo ter
sido pregado não apenas com poder miraculoso, mas também com poder intelectual. Se os
apóstolos enfrentaram mágicos, magos e feiticeiros como o Mago Simão (At 8) e o demônio de
adivinhação (At 16), os bispos encontraram dentro da Igreja, após a morte dos apóstolos, um
não pequeno número de fiéis que viam o Cristianismo como matéria de compreensão superior
do mundo inferior. Esses recém-convertidos vindos de um mundo inundado pelas escolas
filosóficas do mundo helênico2, eram tentados a explicar elementos como a obra expiatória de
Cristo, a ressurreição do corpo, o significado das parábolas de Jesus, os dons do Espírito
Santo e o fim dos tempos, assim como uma ressignificação dos textos da Torah, à luz
principalmente da escola pitagórica, platônica e aristotélica. Inevitavelmente tais explicações
tinham como consequência a criação de heresias abomináveis, uma vez que todas elas
partiam da quebra de um princípio expresso desde a tradição judaica na interpretação da Lei e
dos Profetas: a sabedoria de Deus é insondável (Is 40.28), é impossível medir seu
entendimento (Sm 147.5), Seus caminhos são mais altos que os caminhos humanos (Is 55.9),
a sabedoria vem de Deus (Pv 2.6), enfim... Deus não pode ser compreendido e explicado pela
mente humana, como bem expressou o apóstolo:

Eu mesmo, irmãos, quando me dirigi até vós, não o fui apenas com um discurso
eloqüente, nem ostentando sabedoria para vos anunciar o testemunho de Deus.
Porquanto decidi nada saber entre vós, a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado. E
foi sob fraqueza, temor e grande tremor que estive entre vós. Minha mensagem e
minha proclamação não se formaram de palavras persuasivas de conhecimento, mas
constituíram-se em demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé não se
fundamente em sabedoria humana, mas no poder de Deus. Contudo, falamos de
sabedoria entre aqueles que já têm maturidade; não me refiro, entretanto, à
sabedoria desta era ou dos poderosos deste século, que estão sendo reduzidos a nada.
Ao contrário, falamos da sabedoria de Deus, do mistério que estava oculto, o qual
Deus preordenou antes da origem das eras, para a nossa glória. – I Co 2.1-7

É digno de destaque a expressão “[...]de sabedoria desta era ou dos poderosos deste século,
que estão sendo reduzidos a nada”. Já na segunda metade do primeiro século (a epístola aos
Coríntios foi escrita no ano 55), a sabedoria dos filósofos estava “sendo reduzida a nada”, ou
seja, o apologético da fé cristã já vinha destruindo as armadilhas levantadas contra a sã

1
Listo aqui os nomes dos apologistas do segundo século, uma vez que já vimos anteriormente nomes do primeiro
século como Pápias e Clemente Romano.
2
Sobre as filosofias do mundo helênico, ver os capítulos iniciais sobre a Filosofia na Era Pré-Cristã.

1
doutrina, que tinham como objetivo desmoralizar a fé dos apóstolos no Cristo de Deus. A
afirmação de Paulo nos faz lembrar da passagem de Mt 23, onde Jesus ridiculariza a exegese
dos fariseus ao questioná-los quanto à interpretação do Salmo 109, ao que o Evangelho
conclui “[...]desde aquele dia, ousou mais alguém interrogá-lo”.

A apresentação do Evangelho, a princípio, parecia tratar de algo extremamente simples e


intelectualmente insustentável, tratando-se única e totalmente de matéria de fé. Falar de um
homem comum, que nasceu em uma cidade humilde da Palestina e que, após ser aclamado rei
dentre seu povo é perseguido pelas autoridades religiosas e, levado ao poder do Império
Romano, é condenado à morte não parecia ser uma história muito impressionante; e o aspecto
que a seita dos nazarenos pregava quando à uma suposta ressurreição de seu corpo ao
terceiro dia, não era nem mesmo novo dentre a poesia grega que já falava do renascimento de
Perséfone, da geração miraculosa de Dionísio nas coxas de Zeus, assim como no Egito o culto
osírico adorava o deus que havia sido ressuscitado pelos demais deuses que, juntos, reuniram-
se para trazer novamente à vida aquele que havia tido seu corpo despedaçado. Essa suposta
simplicidade do Evangelho pareceu, aos olhos dos filósofos da época, ser algo de fácil
questionamento, e assim carecia de sustentação intelectual. Entraram em cena diversos
filósofos gnósticos para trabalhar na tentativa de absorver intelectualmente a teologia cristã, e
dar a essa fé um corpo filosófico. Nascia assim o gnosticismo, a respeito do qual já tratamos
anteriormente.

Essa enxurrada de argumentações que passou a caminhar lado a lado com o Evangelho foi
enfrentada desde o início pelos apóstolos. No judaísmo já era comum desde a dinastia dos
Macabeus o embate interpretativo das Escrituras. O enfrentamento dos pais da Igreja para com
as heresias foi evento inédito para a Igreja de Cristo, mas não para o mundo teológico. Assim,
o apóstolos Paulo, “fariseu, filho de fariseu” (At 23.6) sabia muito bem debater e confrontar
filósofos que tentavam racionalizar a fé – e, assim, destruí-la – como se deu em Atenas (At 17).
Irineu de Lyon, no século II, também entendeu as artimanhas dos alunos aristotélicos:

“Usar contra a fé o esmiuçamento e a subtileza nas questões é próprio do argumentar


aristotélico”3

O que vemos ao voltarmos os olhos para a História da Igreja nos primeiros séculos é um
trabalho evangelístico e doutrinário no primeiro século, apologético até o quarto século e, daí
em diante, doutrinário e teológico. Sistematizando: a Igreja de Cristo levou a mensagem da
salvação a todo o mundo (evangelismo), defendeu sua fé (apologia), definiu o que é o
cristianismo (doutrina) e passou a estudá-lo (teologia)4.

Os primeiros apologistas
Segundo os escritos de Eusébio de Cesaréia e Jerônimo de Estridão5, Quadratus de Atenas foi
um dos primeiros apologistas, tendo produzido sua obra por volta de 120-130, mesma época
em que foram produzidas algumas outras obras, das quais infelizmente raríssimas cópias

3
Irineu de Lyon em Contra as Heresias, Livro II, 14,5.
4
Não sendo cada uma dessas fases superposta à anterior, mas complementar. A Igreja de Cristo sempre será
evangélica, apologética, doutrinária e teológica, não podendo jamais voltar a cometer o erro que cometeu por mais de
1.000 anos, quando abandonou a obra apologética de Justino e Irineu de Lyon, retomando-a apenas no século XVI,
com Erasmo de Roterdã (1466 – 1536).
5
Eusébio de Cesaréia em História Eclesiástica, Livro IV, III; e Jerônimo de Estridão em Dos Homens Ilustres, 19.

2
chegaram até nós. Dentre os escritos do segundo século, o destaque é indiscutivelmente a
obra de Justino Mártir e Irineu de Lyon.

Quando jovem, Justino foi para Éfeso estudar filosofia – ele descreveu sua busca em
seu Diálogo com Trifão. Começando seus estudos com um tutor estóico, ainda neste
período a filosofia mais popular, Justino passou em seguida a tomar aulas com um
professor aristotélico, que o desiludiu ao que parece por questões financeiras
relacionadas aos honorários cobrados; Justino passou entou a ser aluno de um
pitagórico e, finalmente, se tornou aluno de um filósofo platônico com quem se
contentou bastante, principalmente por causa do lado religioso e místico das
aspirações platônicas – o filósofo havia escrito em sobre a visão da alma de Deus.
Mas enquanto meditava na solidão à beira-mar, Justino encontrou um velho que
refutou a doutrina platônica da alma e passou a contar-lhe sobre os profetas do
Antigo Testamento, que em suas profecias predisseram a vinda de Cristo. Justino se
converteu, ainda que de imediato não tivesse compreendido a necessidade do
abandono da filosofia como guia espiritual e solução de suas indagações filosóficas.6

Henry Chadwick resume o início da vida de Flávio Justino (conhecido na hagiografia como
Justino Mártir), retirando do Diálogo com Trifão o relato autobiográfico do santo cristão
venerado por praticamente todas as comunidades cristãs, desde a Igreja do Oriente, como do
Ocidente assim como a Igreja Luterana. Sua vida, além de conceder para a Igreja elementos
vitais para a defesa da sã doutrina, é de grande proveito para toda a família da fé por servir de
exemplo como uma vida dedicada a Deus e à Sabedoria, unindo Fé e Inteligência, tudo
compreendido apenas no Deus Triuno. Nascido na região da Samaria (atual Cisjordânia) no
ano 100, Justino mostrou-se desde cedo nascido para os estudos. Ainda jovem saiu da
Samaria e foi para a grande cidade de Éfeso para estudar, e lá se destacou como filósofo
multidisciplinar, conhecendo a fundo o estoicismo, o epicurismo, o aristotelismo e o platonismo,
escola esta que lhe entregou a ciência pela qual buscou em toda sua vida de estudos, entender
o que há de mais sublime para se conhecer nessa vida: quem é Deus.

Trabalhando com a filosofia platônica, Justino conheceu o Evangelho de Cristo (conforme


relato acima) e, a partir daí, dedicou-se ao estudo das Escrituras. Mudou-se para Roma onde,
na vida adulta (151 d.C) escreveu uma Apologia cristã e endereçou-a ao imperador Antonino
Pio, obra que foi seguida pela redação de Diálogo com Trifão. Munido do platonismo, era
impossível para Justino coadunar com a ideia pagã relacionada à alma e à divindade.
Acrescido seu conhecimento do Evangelho de Cristo, não fazia mais sentido algum para
Justino discussões que dominavam as tribunas sofistas, incluindo aqui as discussões
filosóficas impulsionadas pela teologia cristã, o que nos dois primeiros séculos da Era Cristã foi
a grande moda intelectual em todo o mundo romano. Após alcançar todo o mundo com as
Boas Novas, a Igreja se viu diante de uma nova frente de batalha, a intelectual. Se até a morte
do último dos apóstolos, o IDE de Cristo era cumprido como uma missão evangelística, onde
os apóstolos e evangelistas iam de nação em nação anunciando que Cristo foi concebido pelo
poder do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi
crucificado, morto e sepultado, ao que desceu ao reino dos mortos ressuscitando ao terceiro

6
CHADWICK. H. The Penguin History of the Church. The Early Church. Penguin Books. England, 1967. (Tradução
nossa).

3
dia7, duzentos anos após o nascimento do Salvador era necessário não mais apenas anunciar
as Boas Novas, mas defende-las. Iniciava um tempo em que os evangelistas eram
acompanhados pelos apologistas, aqueles que não pregavam o Evangelho para os pecadores,
mas defendiam a sã doutrina diante dos conhecedores da doutrina da Igreja.

Dentre tantos apologistas fundadores da Igreja de Cristo, Justino se destaca por três aspectos:
tempo – foi um dos pioneiros na ciência que defende os fundamentos inteligentes da fé cristã;
volume – Eusébio lista a produção do apologista em um número excelente de volumes dos
mais variados temas8; e abordagem – sendo filósofo, Justino é peça-chave na exposição do
Evangelho em linguagem filosófica, e não apenas teológica-escriturística.

Em sua obra, o teólogo romano desenvolve abordagens que seguirão sendo estudadas por
séculos dentro da Igreja. Algumas de suas leituras se tornarão polêmicas, e assim serão
abandonadas, outras são basilares na teologia cristã e ainda hoje servem de base para a
produção de teologias sistemáticas em todo o mundo. Vejamos alguns exemplos:

PLATONISMO – A influência da escola platônica na formação de Justino deu a ele a


cosmovisão do fundador da Academia: o mundo é naturalmente originário do Criador.
Para Justino, a origem do universo em Deus não é matéria de fé, mas de razão. A
existência precisa ter origem naturalmente (no sentido literal do termo) no Eterno, e
esse Eterno precisa ser o início de todas as coisas, não sendo ele gerado ou causado
por algo externo a si. Dessa leitura filosófica, Justino entendia que a revelação de Deus
se dá não apenas aos profetas de Deus, mas a qualquer um que Deus queira tornar
seu porta-voz (hb. nabí). Para o apologista, não apenas o hebreu Elias anuncia a
mensagem de Deus, mas também o pagão Balaão, assim, Deus pode ser visto e
anunciado dentro e fora de seu arraial, ainda que aquele que anuncia não seja seu
servo. Com essa leitura, Justino acreditava que Platão era claramente um filósofo que
havia alcançado o conhecimento de Deus por meio da via inteligente, e para defender
seu posicionamento citava duas argumentações bem conhecidas à época: a) Platão
havia tido contato com a Torá, e sua filosofia era inundada pela inteligência judaica; e
b) Deus não se revela apenas por meio da pregação evangelística, mas também pela
natureza criada como ensinou Paulo em Aos Romanos.

De início, essa leitura de Justino não apresentou problema algum, mas com o passar
do tempo a ideia de que o platonismo teria nascido de alguém que vislumbrara o
cristianismo trouxe problemas, uma vez que a Igreja passava a ser assediada por parte
dos gnósticos que tentavam de todas as formas “filosofar o Evangelho”. Assim, os pais
da Igreja foram obrigados a se distanciar (e por vezes até amaldiçoar) a utilidade da
filosofia na teologia cristã.

CRISTOLOGIA – Com sua formação platônica, Justino entendia perfeitamente a


obrigatoriedade da manifestação de Jesus Cristo, na Terra, em identidade distinta da
do Criador. “A distinção entre ‘Pai’ e ‘Filho’ corresponde à distinção entre Deus
transcendente e Deus imanente. O Filho-Logos é necessário para fazer a mediação
entre o Pai Supremo e o mundo material” (CHADWICK). Essa compreensão de Justino

7
Tais declarações foram elaboradas ao longo do segundo século e acabaram sendo compiladas para dar corpo a um
Credo Apostólico, uma regra de fé que passou a ser repetida pelos padres apologistas dos primeiros séculos, em uma
forma literária para definir a fé cristã.
8
A lista está em História Eclesiástica (IV, XVIII). Infelizmente só chegaram a nós o Apologias (I e II) e o Diálogo com
Trifão (incompleto).
.

4
se dá pela compreensão filosófica da unidade perfeita em elementos distintos, como a
identidade humana composta por corpo, alma e espírito, numa semelhança da
Santíssima Trindade revelada na coroa da criação. Tal leitura auxiliou a Igreja a
entender a Triunidade de Yahweh, absorvida culturalmente pelos hebreus, ainda que
não defendida (apologeticamente) no culto judaico.

MILENIARISMO – Enfrentando o gnosticismo de seu tempo, Justino utilizou seu


conhecimento filosófico para combater a inteligência humana que em vão tentava
racionalizar o Eterno. Uma das armas do apologista (e de tantos outros de seu tempo)
foi ler as Escrituras como texto histórico, ao invés de alegórico. Sendo o gnosticismo
uma “mistificação de tudo”, para o apologista, tomar o texto sagrado como um relato
literal era uma poderosa arma contra essa mistificação. Assim, foi Justino um dos pais
do milenarismo, a ideia de que Cristo virá para estabelecer um reinado de mil anos
sobre a Terra (baseado na leitura de Apocalipse 20). Essa ideia era comum nos três
primeiros séculos da Igreja, uma vez que vivia-se dentro da comunidade cristã com a
certeza de que se vivia “os últimos dias” em sentido literal, porém após Constantino a
Igreja passa a não mais precisar de um retorno imediato de Cristo, e assim a ideia de
que Cristo irá voltar a qualquer momento perde cada vez mais popularidade, chegando
em Agostinho que lembrará a Igreja de que “ninguém sabe o dia nem a hora”, e o
Cristão precisa viver sua vida de forma ativa, e não contemplativa.

O platonismo e o milenarismo cairão por terra, porém a cristologia e diversos outros pontos da
teologia justiniana perdurarão pelos séculos, principalmente na obra daqueles que foram
influenciados diretamente por seus ensinamentos, como Atenágoras de Atenas, Teófilo de
Antioquia e o Bispo de Lyon, Irineu.

Irineu de Lyon
Natural de Esmirna, cidade onde a Igreja Cristã prosperou e se tornou uma das principais já no
primeiro século, Irineu é autor de um dos principais escritos da Patrística, Contra as Heresias.
Influenciado pelo trabalho de Justino, o Bispo de Lyon (região localizada na França atual) guiou
séculos de produção teológica com sua obra, legada à Igreja como uma verdadeira
complementação apostólica dada a vastidão de temas abordados em seus textos. Como ele
mesmo escreveu no Livro II (31,1) de sua obra magna: “refutada está toda a multidão dos
hereges”.

O trabalho de Irineu tem como maior tesouro a abrangência das refutações às heresias, o que
o apologista fez foi literalmente listar todas as heresias de seu tempo, estudá-las a fundo e
expor detalhadamente a heresia, para só depois, refutá-la. Esse método de apresentação da
heresia completa (e detalhada) seguida da refutação fez com que Contra as Heresias se
tornasse irrefutável, um trabalho definitivo. Após a publicação de sua obra não restava mais
argumentações para as centenas de facetas gnósticas do Evangelho que pululavam em todo o
mundo mediterrâneo nos dois primeiros séculos da História da Igreja. A “destruição” causada
pela obra de Lyon foi tamanha que, após a publicação de sua apologética, o tema foi perdendo
cada vez mais espaço dentro da Igreja – que passou a ter paz doutrinária para discutir
questões interna corporis despreocupada com a entrada de falsas doutrinas na ecclesia. Seu
objetivo foi alcançado com louvor: “recolocando cada uma das palavras no seu lugar, ajustadas
ao corpo da verdade, desvendará e mostrará a inconsistência das suas fantasias”9.’

9
Contra as Heresias, Livro I, 9,4.

5
Em 177, ao voltar de uma visita a Roma para Lyon, onde era presbítero, Irineu foi eleito bispo
no lugar de Potínio – após este ter sido martirizado na prisão10. Como bispo, Irineu se tornou
conhecido por seu domínio da doutrina cristã não apenas vivida na Igreja do Ocidente, mas
também nas comunidades orientais, o grande apologista conhecia o pensamento cristão da
Espanha à Ásia Menor, e com o tempo se envolveu em questões diplomáticas de Leste a
Oeste.

Celebrando a Páscoa

“Por este tempo levantou-se uma questão bastante grave, por certo, porque as igrejas
de toda a Ásia, apoiando-se em uma tradição muito antiga, pensavam que era preciso
guardar o décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador, dia em que
os judeus deviam sacrificar o cordeiro”11

Na Igreja Primitiva a celebração da Páscoa acontecia segundo o rito judaico, na véspera do dia
14 do mês de Nisan (março/abril), quando o povo judeu relembrava a passagem do Anjo do
Senhor no Egito, e reunidos em casa comiam o cordeiro pascal. Porém, na Igreja Cristã a
celebração da Páscoa passou a ser não mais em memória do cordeiro pascal no Egito, mas
em memória do Cordeiro de Deus, morto no Gólgota. Assim, os cristãos iniciaram uma prática
que se tornou a tradição em todo o mundo, celebrar a Páscoa no “dia do Senhor”, o domingo
seguinte à Páscoa – diferente da celebração judaica que é sempre no 14º dia de Nisan,
independente do dia da semana.

A controvérsia se deu porque nas Igrejas da Ásia Menor a celebração era conforme a tradição
apostólica, que por sua vez era conforma a tradição judaica pois os apóstolos vieram dos
judeus. Com o passar do tempo, a Igreja caminhou para o Ocidente e perdeu a tradição
apostólica passando a adotar não mais o rito tradicional de quem conhece o judaísmo (o que
aconteceu provavelmente a partir do ano 160), adotando então um rito próprio, puramente
cristão. No ano de 154 (ou 155), Policarpo já havia viajado para Roma – que à essa altura já se
destacava no cenário mundial da Igreja12 – com o intuito de estabelecer critérios para a
celebração da Páscoa, porém naquela ocasião o santo não conseguiu fechar um consenso
com Aniceto. Foi quando o Bispo de Roma, Victor13, sucessor de Aniceto, decidiu
monocraticamente que a o padrão ocidental era o correto, e toda a Igreja Católica deveria
adotá-lo, e mais, não apenas Victor tomou a decisão como ordenou a excomunhão definitiva de
qualquer comunidade que se negasse a adotá-la.

Victor foi contestado por um bispo asiático sênior, Polícrates de Éfeso, e por Irineu
que, embora mantendo a prática romana (apesar de suas origens asiáticas),
argumentou que a liminar de Victor era um abuso de autoridade que dividiria
desnecessariamente as igrejas. O conselho de Irineu prevaleceu e Victor
aparentemente revogou sua ordem de excomunhão.14

10
Ao que tudo indica, Potínio foi preso quando já contava com 90 anos de idade, e acabou não resistindo à prisão e
morrendo devido os maus tratos.
11
História Eclesiástica, Livro V, XXIII.
12
Conforme vimos no capítulo anterior ao lermos o prefácio da carta Aos Romanos escrita por Inácio.
13
O pontificado de Victor corresponde aos anos 189-199.
14
DAVIDSON. I. J. The birth of the church. From Jesus to Constantine. Baker Books. USA, 2004. (Tradução nossa).

6
A decisão de Victor de Roma terminou sendo estabelecida como a oficial na Igreja, quando em
325 o Concílio de Nicea bateu o martelo na decisão e estipulou que a Páscoa deve ser
observada sempre no domingo seguinte à primeira lua cheia após o Equinócio de Primavera.

A participação de Irineu na controvérsia da Páscoa foi bem sucedida, e após o episódio o


antigo presbítero tornou-se além de bispo um agente diplomático entre a Igreja Ocidental e a
Oriental.

A doutrina em Irineu
Outros pontos abordados por Irineu se tornaram o padrão da Igreja, como a descrição da
doutrina de composição do homem em corpo, alma e espírito – com a alma representando a
imagem de Deus. Para o bispo, após a queda no Éden, o homem perdeu a semelhança com
Deus, mas jamais sua imagem. Com a vida cristã, passo a passo o homem tem sua
semelhança restaurada uma vez que seu modelo é Cristo, o Filho de Deus. Não apenas temas
relacionados à vida cristã cotidiana, mas toda a teologia em Irineu é focada na pessoa do Filho
de Deus. Aspectos como encarnação, ressurreição do corpo, Santa Ceia... todos são centrados
na pessoa de Cristo, sendo inevitável concluir que a obra de Irineu é plenamente cristocêntrica.

Se Justino Mártir já havia estabelecido as bases teológicas do Trinitarianismo, foi em Irineu que
a Igreja passou a formar um cânon.

Ireneu percebeu que era necessário ter um cânon ou uma lista fixa de escritos
autorizados do Novo Testamento. Até então, a linha divisória entre os livros
atribuídos ao status de serem lidos no lecionário da igreja e os livros que eram de
ortodoxia aprovada não havia sido traçada de fato. Irineu traçou essa linha e foi o
primeiro escritor cujo Novo Testamento corresponde virtualmente ao cânon aceito
como tradicional hoje.15

Ao estudar as heresias produzidas desde o tempo em que Cristo era o Pregador, Irineu
entendeu que grande parte das heresias eram produzidas não por devaneios soltos, mas por
interpretações das Escrituras baseadas não na Tradição (judaica e apostólica), mas em
sistemas filosóficos. Marcião, de quem se originou o marcionismo, ensinava que o Deus do
Antigo Testamento era outro que não o Deus do Novo Testamento, e sua interpretação era
baseada em algumas interpretações da doutrina paulina. Ao escrever seu Contra as Heresias,
Irineu faz uma série de citações que correspondem a praticamente todos os livros da Bíblia
Sagrada, com poucas exceções. Sua estratégia de combater a heresia por meio da citação dos
autores bíblicos foi definitiva para a constituição do que viria a ser o cânon da Igreja.

Fernando Melo
Brasília, 27 de abril de 2022

15
CHADWICK. H. Op. cit. (Tradução nossa).

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