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FILOSOFIA

GERAL E
JURÍDICA

Cássio Vinícius Steiner de Sousa


Filosofia do Direito na
Idade Média e escolástica
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Explicar o que foi a escolástica.


„„ Descrever a importância de Santo Agostinho para a filosofia e para o
Direito.
„„ Demonstrar a importância de São Tomás de Aquino para a filosofia
e para o Direito.

Introdução
A história da filosofia medieval foi um período marcado pela ascensão da
religião católica e dos dogmas do cristianismo na Europa. Nesse contexto,
o ponto de partida da reflexão filosófica do período é dado pelas pala-
vras bíblicas. Em função disso, além da adoção de uma visão de mundo
fundada na fé, intensifica-se o debate acerca da relação entre a fé e a
razão. Tal período é geralmente distinguido em duas fases, a patrística
e a escolástica. O principal nome da fase patrística foi Santo Agostinho.
Já no período escolástico, o principal nome foi São Tomás de Aquino.
Neste capítulo, você vai estudar a história da filosofia medieval, um
período marcado pela ascensão da religião católica e dos dogmas do
cristianismo na Europa.

A filosofia na Idade Média


Embora seja relativamente comum pensar que o período que compreende a
Idade Média (séc. V–séc. XV) foi um período de trevas para a humanidade,
essa ideia está muito longe de ser verdadeira. Tal alcunha, desenvolvida pelos
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autodenominados iluministas para contrastar com o seu próprio período,


obscurece e esconde uma série de contribuições tanto no que diz respeito à
filosofia quanto às ciências. A título de contextualização histórica, é possível
citar, como marcas características da transição entre o período antigo e o
período medieval, os episódios conhecidos como as invasões bárbaras, a
queda do império romano ocidental e a crescente disseminação do cristia-
nismo na Europa.
No que diz respeito à filosofia, a Idade Média se subdivide em dois
momentos: a patrística e a escolástica. Enquanto a patrística compreende
o período que vai do séc. V ao séc. VIII, a escolástica vai do séc. IX ao
séc. XV. No cerne da diferença entre ambas, está a sua compreensão sobre
o papel da razão na justificação e explicação das questões ligadas a fé.
Embora ambos os períodos sejam marcados pela ideia segundo a qual a
razão está de algum modo subordinada à fé, a marca característica da fase
patrística é que a fé não demanda justificações ou explicações por parte da
razão, já na escolástica há uma busca por argumentos e provas para embasar
os dogmas advindos da fé.

Tomemos a questão sobre a existência de Deus. No caso da patrística, a existência


de Deus era dada pela fé e a questão da necessidade de prová-la racionalmente seria
algo fútil e irrelevante. Já no caso da escolástica, mesmo que a existência de Deus
também fosse algo assegurado pela fé, surgiu uma vontade de encontrar argumentos
e razões capazes de prová-la.

A propósito da patrística, cujo termo faz referência aos “pais da Igreja” ou


padres, consiste em um período marcado tanto pelo estabelecimento quanto
pela defesa daquilo que denominamos atualmente como a tradição católica.
Antes de o cristianismo se difundir pela Europa ocidental e se tornar o
dogma dominante, os seus adeptos enfrentaram uma série de perseguições,
resistência e incredulidade geral, em especial das pessoas que haviam sido
educadas em uma cultura greco-romana, que possuíam uma visão de mundo
muito influenciada pelas ideias herdadas da filosofia grega.
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A maior diferença entre a visão de mundo greco-romana a cristã consiste no critério


que é utilizado para fundamentá-las. Enquanto o critério de fundamentação da visão
de mundo legada pelos gregos é racional e pressupõe uma espécie de preponderância
da razão sobre a fé, os dogmas do cristianismo, cujas bases fundamentais não podem
ser questionadas ou discutidas, repousam integralmente na fé.

Imagine-se no séc. V, educado segundo as ideias da filosofia grega. De


um lado, você recusa a visão mitológica da realidade, bem como a fé cega
e irrefletida; de outro lado, você busca embasar na razão a explicação dos
fenômenos. Suponha também que você está ouvindo pela primeira vez ideias
bíblicas sendo pregadas por um padre. Não acha que lhe pareceria algo no
mínimo inacreditável, para não dizer um completo absurdo, ideias como:

„„ a criação do mundo por Deus a partir do nada?


„„ o pecado original que tira o homem do paraíso e o coloca em uma
posição inferior ante a existência?
„„ a santíssima trindade que afirma que o pai, o filho e o espírito santo
são um só?
„„ a reencarnação, a ressureição e a imortalidade da alma?
„„ a existência do céu, do inferno e do juízo final?

Há um grande esforço por parte dos padres da fase patrística para, de um


lado, elucidar os dogmas do cristianismo e a fé católica, e para, de outro lado,
defendê-los dos diversos ataques dos descrentes — chamados pelos próprios
padres de hereges e pagãos. Nesse contexto, esses padres foram responsáveis
pela própria expansão e consolidação do cristianismo como a religião domi-
nante na Europa ocidental. Entre outras coisas, a sua estratégia consistiu em
desenvolver uma ponte ou elo de ligação entre os pressupostos do cristianismo
e a visão de mundo herdada dos gregos. Para tal, defenderam que a filosofia
antiga havia fracassado na sua busca pela verdade por ignorar completamente
a fé em nome da razão. Além disso, professavam que a verdade que os gregos
buscavam era encontrada justamente pela fé nas revelações bíblicas.
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De um ponto de vista filosófico, o principal tema abordado na patrística


foi a questão sobre a relação entre fé e razão. Nesse contexto, foram perguntas
típicas do período: Qual é o papel da fé e da razão no que diz respeito a verdade?
Fé e razão são conciliáveis? A propósito de tais questionamentos, tendo em
vista a preponderância da fé, que foi a constante do período medieval como
um todo, formaram-se basicamente três posições:

„„ a primeira defendia que a verdade vinha exclusivamente da fé;


„„ a segunda defendia que a fé e a razão se tratavam de categorias distintas
e irreconciliáveis de verdades, isto é, que existiam verdades que vinham
da fé e verdades que vinham da razão;
„„ a terceira defendia que embora as verdades venham da fé, a razão
cumpre uma espécie de função elucidativa das mesmas.

Para finalizar a breve apresentação do período em questão, cumpre ainda salien-


tar que a figura mais importante desse período é, sem dúvidas, Santo Agostinho,
cujas ideias foram amplamente influenciadas por Platão e pelos neoplatônicos.
Depois da patrística, no séc. IX veio a escolástica. O termo escolástica vem
do termo latino scholasticus, que significa “instruído” ou “aquele que pertence à
escola”. Trata-se de um período de profundo desenvolvimento dos debates ligados
à fé e à razão, da relação entre Deus e o homem, o corpo e a alma. Além disso,
também se debateu muito a questão da hierarquia dos seres celestiais, bem como
as questões da natureza e do fundamento de validade do poder do papa e dos reis.
Outro ponto marcante da escolástica diz respeito à estruturação e difu-
são do ensino com base nas chamadas artes liberais — o trivium, composto
pelas disciplinas de gramática, lógica e retórica, e o quadrivum, composto
por aritmética, geometria, astronomia e música. Além disso, é justamente
nesse período que surgem as primeiras universidades europeias, cujos cursos
disponíveis eram teologia, medicina e Direito.
Se a patrística é marcada pela defesa e consolidação dos dogmas do cris-
tianismo, a escolástica representa um período em que a tais dogmas já estão
completamente consolidados, e a Igreja Católica, representante da palavra de
Deus na Terra, é um poder hegemônico dominante. Nesse contexto, é impor-
tante destacar que, na medida em que detinham uma espécie de monopólio
do conhecimento, o próprio ensino universitário, e a instrução no trivium e
no quadrivium eram realizados por intelectuais ligados à Igreja.
Além disso, foi nesse período que os escritos de Aristóteles, que haviam sido
praticamente esquecidos no período da patrística, foram reintroduzidos no mundo
ocidental, graças ao crescente intercâmbio com filósofos árabes, que mantiveram
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viva a chama do aristotelismo no oriente. Quanto a isso, entre outras coisas, atribui-
-se a São Tomás de Aquino, principal nome da escolástica, o mérito não apenas
por traduzir os escritos aristotélicos do grego antigo para o latim como, também,
por ter sido o grande responsável pela cristianização das ideias aristotélicas.
Tão significativo quanto a filosofia e a teologia desenvolvidas na época foi
o método de investigação empregado pelos escolásticos. Com relação a isso,
é possível dizer que eles se valiam, de um lado, do raciocínio dialético e, de
outro lado, de argumentos de autoridade. Isto é, dado um assunto qualquer,
eles formulavam a questão com base na ideia de tese e antítese, e valiam-se de
autoridades renomadas para fundamentar ambas. Assim, por exemplo, fulano
apresentava uma questão x para debate e alegava que o cânone A defendia tal
e tal posição; o seu opositor tentava refutá-lo com base em um cânone B. O
debate seguia até que se chegasse a novas conclusões sobre a questão debatida.

Chama-se de argumento ontológico todo aquele que provar a existência de Deus


valendo-se apenas da sua definição, de modo a priori (independentemente de qualquer
experiência). Nesse contexto, atribui-se a Santo Anselmo da Cantuária (1033 d.C.–1109
d.C.) a formulação do primeiro argumento ontológico. Em uma tradicional formalização
do argumento, a conclusão de que Deus existe pretende ser extraída na base de
quatro simples premissas:
1. Deus é algo do qual nada mais perfeito pode ser pensado.
2. Conseguimos imaginar algo do qual nada mais perfeito possa ser pensado.
3. Ou algo do qual nada mais perfeito pode ser pensado existe apenas no pensamento
ou existe também na realidade.
4. Existir na realidade e no pensamento é mais perfeito do que existir só no pensamento.
Conclusão: Deus existe na realidade e no pensamento.

Santo Agostinho
Agostinho de Hipona (354 d.C.–430 d.C.), mais conhecido pela alcunha de Santo
Agostinho (Figura 1), nascido em Tagate, uma província romana na África, é
considerado o filósofo mais relevante da patrística. O valor das suas ideias é
inestimável não apenas para a teologia cristã, como também para a filosofia
ocidental como um todo. As suas obras mais importantes são Confissões e
Cidade de Deus, cujas ideias seguem sendo estudadas até hoje.
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Figura 1. Santo Agostinho, retrato por Phillippe


de Champaigne, séc. XVII.
Fonte: Champaigne [1650].

Filho de Mônica, uma cristã muito devotada, antes de se converter ao


cristianismo (com cerca de 28 anos de idade), Agostinho flertou com as ideias
helenistas contidas nas obras de Cícero, com as ideias maniqueístas e com o
ceticismo. Porém, nenhuma delas havia trazido a segurança e a certeza com
relação às grandes verdades que buscava. Foi então que, depois de uma crise
espiritual, ao ouvir a história sobre a vida de santo Antão do Deserto, alegou
ter escutado uma ordem divina para ler os escritos bíblicos. Em função disso,
mudou completamente os rumos da sua vida, vindo a se tornar, anos mais
tarde, bispo da cidade de Hipona e também o maior nome da patrística.

De modo simplificado, o maniqueísmo consiste na ideia religiosa segundo a qual o


bem e o mal existem e são constitutivos da realidade em si mesma.
O ceticismo consiste na posição filosófica segundo a qual se existem grandes
verdades, não é possível conhecê-las.
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Entre outras inúmeras contribuições, atribui-se a Santo Agostinho a res-


ponsabilidade por cristianizar as ideias platônicas. Nesse contexto, ele viu na
teoria das ideias de Platão um caminho para explicar aquilo que entendia ser
a revelação da verdade pela fé nas palavras da Bíblia. Lembre-se de que a
teoria das ideias de Platão veio para responder a questão sobre a possibilidade
do conhecimento da verdade. Na base da teoria, está a distinção entre aquilo
que ele chama de mundo sensível e mundo das ideias. Enquanto o mundo
das ideias consiste nas formas perfeitas, eternas e imutáveis das coisas, o
mundo sensível não passa de mera aparência imperfeita do mundo das ideias.
Com efeito, o conhecimento das coisas não estaria nelas mesmas, mas no seu
correspondente no reino superior das ideias.
Perceba agora que, no essencial, a estratégia de Agostinho consiste em
substituir o que Platão chama de mundo das ideias por Deus. Assim, a ver-
dade não estaria nas aparências do nosso mundo físico, mas em Deus. Nesse
contexto, tal qual as ideias platônicas, Agostinho entende que Deus não é
perfeito, eterno e imutável. Além disso, ele considera que Deus é a causa de
toda a existência. Porém, disso resulta um problema: se Deus é a causa perfeita
de tudo, como explicar a existência do mal?
A solução agostiniana para essa questão consiste na ideia de que o mal
nunca foi criado efetivamente, tampouco que ele existe em si mesmo. Segundo
Agostinho, a criação divina não pode ter os mesmos atributos do criador, sob
pena de restarem ambos indiscerníveis. Porém, se esse fosse o caso, então
estaria violada a ideia de que Deus é um só. Assim, tudo aquilo que Deus
cria possui não apenas certo grau de autonomia ante o criador, mas também
é essencialmente imperfeito, falho e limitado. Com efeito, nessa visão, o mal
não é especificamente um “algo”, pois, em verdade, trata-se da mera ausência
de bondade plena. É aquilo que a criatura não tem e que faz com que ela não
seja plenamente boa, tal qual a divindade. Além disso, não é que Deus atribua
a sua criação à possibilidade de escolher entre a bondade e a maldade, mas
que a própria escolha da maldade se deve ao grau de imperfeição dos homens
na escala hierárquica dos seres.
Com relação à filosofia do Direito, toda explicação agostiniana passa pela ideia
de que a justiça está em Deus. Segundo ele, os homens não são justos pelos seus
atos, mas por uma espécie de graça divina conferida pela fé. Nas suas palavras:

Está escrito: o justo vive da fé, porque, como ainda não vemos nosso bem,
é preciso que o busquemos pela fé. O próprio bem-viver não o obtemos com
nossas próprias forças, se quem nos deu a fé, que nos leva a crer em nossa
debilidade, não nos auxilia a crer em nossa debilidade, não nos auxilia a
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crer e a suplicar. Com estranha vaidade, fizeram a felicidade depender de si


mesmos aqueles que julgaram encontrar-se nesta vida o fim dos bens e dos
males e, assim, radicaram o soberano bem no corpo ou na alma, ou nos dois
juntos (SANTO AGOSTINHO, 2015, p. 285).

Assim, diferentemente dos antigos, que entendiam que a justiça estava nas
ações e a felicidade consistia em uma atividade racional conforme a virtude,
para Agostinho, a questão passa por Deus e pela fé. Nesse contexto, há um
completo esvaziamento da noção de virtude moral advinda da razão. Na prá-
tica, o critério para o estabelecimento do que é justo deixa de se fundamentar
na razão e passa a estar nas revelações garantidas pela fé, que, por sua vez,
são geridas e controladas pela Igreja, ao passo que o Estado é visto como
um mero instrumento de realização da lei divina. Além disso, das próprias
características divinas surge a ideia de que a lei emanada de Deus é imutável.
Quanto a isso, Agostinho escreve:

Porventura a justiça é desigual e mutável? Não. Os tempos a que ela preside é


que não correm a par, pois são tempos. [...] Não reparava que a justiça, a que
os homens retos e santos se sujeitam, formava nos seus preceitos um todo
muito mais belo e sublime. Não varia na sua parte essencial, nem distribui e
determina, para as diversas épocas, tudo simultaneamente, mas o que é próprio
de cada uma delas (SANTO AGOSTINHO, 2015, p. 285).

Nesse caso, torna-se possível compreender a ideia de que todas as leis que
não estão em conformidade com as escrituras sagradas são fruto da imperfei-
ção humana, que, no limite, remonta ao pecado original que tirou o homem
do reino dos céus. E mais: há uma clara distinção entre lei dos homens (lex
temporalem) e lei divina (lex aeterna).
Perceba que, quanto a isso, embora haja alguma similaridade com a distinção
grega entre justo natural e justo legal, enquanto a distinção grega nos leva a
crer que a justiça está na ação realizada no mundo, a distinção agostiniana
coloca a justiça em um plano transcendental além do alcance da ação racio-
nal. A propósito da noção de Direito natural agostiniana, Alysson Mascaro,
afirma que “o Direito natural — se é que assim se pode chamá-lo na visão
agostiniana — é um rol de regras inflexíveis, não naturais no sentido de que
não se veem na natureza nem na sociedade, mas que são oriundas do desígnio
divino” (MASCARO, 2016, p. 100).
Ora, mas se isso é assim, dado que não dispomos das leis divinas para
organizar a sociedade, tampouco podemos viver em sociedade sem leis, surge
a necessidade de que leis humanas sejam instituídas. Além do mais, para que
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tais leis possam ser efetivamente chamadas de Direito, devem estar de algum
modo subordinadas à lei eterna. Quanto a isso, nas palavras de Eduardo Bittar:

[...] apesar de imperfeitas, as leis humanas são a garantia da ordem social, e,


para serem chamadas em seu conjunto de Direito, devem estar minimamente
aproximadas da justiça. A justiça, na teoria agostiniana, figura como ratio
essendi do Direito; é aqueça essentia para este, pois o Direito, sem a justiça,
consistiria em mera instituição transitória humana, iníqua e sem sentido
(BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 254).

Assim, embora essa linha de argumentação não abra espaço para que as
leis humanas possam vir a ser efetivamente justas, ela nos induz a crer que,
quanto mais próximas da justiça divina e das revelações da fé, melhores
elas serão. Em última análise, o fundamento de validade do Direito Positivo
repousaria na lei eterna.
Embora a posição agostiniana esteja sujeita a inúmeras críticas, perceba
que isso não significa que é incompreensível ou deselegante. Aliás, justo em
função da sua coerência e capacidade explicativa ela constituiu as bases daquilo
que podemos chamar de filosofia cristã. Tais bases se tornaram um dogma
absoluto que reinou sem maiores problemas até a redescoberta da Europa
ocidental dos textos aristotélicos, via mundo árabe-judaico, depois do séc. VIII.
Embasados nos textos aristotélicos, os árabes foram capazes de desenvolver
uma filosofia muito mais racional e sofisticada. Isso constituiu um grande
problema para a tradição católica da época, pois, incapazes de compatibilizar
os seus dogmas com as bases do aristotelismo, restou-lhes um infrutífero,
ingrato e insustentável esforço de persegui-lo e condená-lo ao descrédito. Até
que tudo mudou quando São Tomás de Aquino surgiu na história.

São Tomás de Aquino


Tomás de Aquino (1225 d.C.–1274 d.C.), nascido em Roccassecca, no Reino da
Sicília, é o maior representante da escolástica. A grandeza da sua filosofia con-
sistiu, entre outras coisas, no esforço de compatibilizar as bases do cristianismo
com as obras de proporção enciclopédica de Aristóteles. Para tal, inclusive
foi o responsável pela tradução dos textos aristotélicos do grego antigo para
o latim. Como resultado desse esforço, resultou, ainda que inacabada, a sua
obra mais importante: Suma teológica. Em função dela, atribui-se comumente
a São Tomás de Aquino (Figura 2) a responsabilidade por ter cristianizado
as ideias de Aristóteles.
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Figura 2. São Tomás de Aquino.


Fonte: Instituto São Tomás de Aquino (2017).

A relação entre a fé e a razão foi um dos grandes problemas que Tomás de


Aquino se propôs a responder. Em função da visão agostiniana, a razão não
cumpre qualquer papel na busca pela justiça e, na medida em que o reino dos
homens é essencialmente imperfeito e pecaminoso, apenas a fé pode salvar o
homem, mesmo que não em vida, e fazê-lo adentrar no reino dos céus.

Na base da ideia de Tomás de Aquino está uma espécie de amenização da radical


dicotomia agostiniana entre fé e razão, pois, se para o agostinianismo a fé era o único
caminho para a salvação posterior, para o tomismo a razão não deixa de ter um papel
importante para a salvação ainda nessa vida.
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A estratégia de São Tomás consiste, de um lado, em distinguir “verdades


da fé” de “verdades da razão”, e, de outro lado, em afirmar que ambas vêm
de Deus. Com relação à distinção, enquanto o conhecimento da fé vem da
palavra revelada, o conhecimento da razão diz respeito à natureza. Além disso,
embora tratem-se de ordens distintas de verdade, na medida em que vêm de
Deus, não podem estar em descompasso ou em contradição. Em função disso,
diferentemente do desprezo agostiniano pela razão em nome da fé, São Tomás
entende que a razão cumpre um papel destacado não apenas na busca das
verdades que lhe são peculiares, mas também como um instrumento harmo-
nizador de tais verdades com as verdades da fé. E, se em algum momento as
verdades da fé entrarem em conflito com as verdades da razão, isso se deve
fundamentalmente ao mau uso da razão.
No que concerne à filosofia do Direito, em função da introdução da rele-
vância do racional no contexto da filosofia cristã, torna-se possível reformular
a ideia agostiniana de lei do homem e lei divina. Se Agostinho considerava
que a lei divina era a única que poderia ser justa — e a lei dos homens aca-
bava por ser considerada essencialmente injusta — São Tomás entendia que
a lei dos homens poderia ser justa. Para isso, ele introduziu a noção de lei
da natureza como uma espécie de termo médio entre a lei divina e a lei do
homem. Nesse contexto, Alysson Mascaro afirma que “além dos mandamentos
divinos obtidos por meio da revelação e da fé, há um espaço das leis naturais,
que são divinas porque a natureza é criação de Deus, mas são passíveis do
conhecimento humano” (MASCARO, 2016, p. 105). Assim, dado que as leis
naturais também são ditas justas (em função de sua origem divina) e a razão
é o instrumento utilizado para descobri-las, as ações e as leis humanas que
estão em conformidade com a natureza também serão justas.
Outro aspecto interessante da concepção tomista da lei humana diz respeito
à necessidade de que esteja vinculada ao bem comum. Isto é, na medida em que
a lei humana está indissociavelmente ligada com a razão, se uma lei não visa ao
bem comum, ela simplesmente não pode ser considerada uma lei. Nessa mesma
linha, Alysson Mascaro afirma que, para São Tomás de Aquino, “somente é
considerada lei aquela ordenação que visa ao bem comum” (MASCARO, 2016,
p. 105) e Paulo Nader diz que “a lei humana (...) teria natureza de lei apenas
quando se conformasse à reta razão e, quando se afastasse, lei não seria, mas
violência” (NADER, 20004, p. 166). Assim, no limite, é possível compreender
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que o fundamento de validade das leis humanas não está especificamente no


poder estatal de editá-las, mas na sua conformidade com a reta razão, que
tente para o bem comum.
Disso tudo resulta a ideia de que a distinção agostiniana entre lei dos
homens e lei divina é substituída pela distinção tríplice entre lei divina, lei
da natureza e lei dos homens. Tanto a lei divina quanto a lei da natureza são
criadas por Deus. Porém, enquanto a primeira está fundamentalmente ligada
à dádiva divina e é uma questão de fé na palavra revelada, a segunda está
intimamente ligada à razão, pois é em função dela que o homem é capaz de
descobrir quais são as leis da natureza. Por fim, graças à relação entre tal
tipo de lei e as leis humanas, e ao papel destacado da razão, torna-se possível
superar a ideia agostiniana de que as leis humanas são essencialmente injustas,
abrindo caminho para a ideia de que as leis humanas podem ser justas.
Um último ponto importante acerca da visão tomista do Direito consiste
na sua reafirmação das doutrinas aristotélicas acerca da justiça. Quanto a
isso, tanto Paulo Nader quanto Alysson Mascaro consideram que concepção
de São Tomás segue de perto as lições de Aristóteles no livro V da Ética a
Nicômaco. Paulo Nader, em Filosofia do Direito, afirma que “Foi pequena a
contribuição de Tomás de Aquino à teoria da justiça, pois acompanhou quase
integralmente a doutrina aristotélica, não superada até hoje” (NADER, 2004,
p. 167). Na mesma linha, Alysson Mascaro, em Filosofia do Direito, diz que,
a proposto da questão da justiça, “Tomás de Aquino segue em linhas gerais,
(...), o pensamento de Aristóteles na Ética a Nicômaco. A justiça é por ele
considerada o bem do outro, e sua manifestação específica é distributiva e
retributiva” (MASCARO, 2016, p. 108).
Filosofia do Direito na Idade Média e escolástica 13

BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. Curso de filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
CHAMPAIGNE, P. Saint Augustine by Philippe de Champaigne. Wikimedia Commons, San
Fracisco, [1650]. Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/
ea/Saint_Augustine_by_Philippe_de_Champaigne.jpg >. Acesso em: 14 dez. 2017.
INSTITUTO SÃO TOMÁS DE AQUINO. Apresentação. Lisboa, 2017. Disponível em: <http://
www.ista.pt/>. Acesso em: 14 dez. 2017.
MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 24. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

Leituras recomendadas
AQUINO, T. Suma teológica. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2009. v. 1.
FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação.
4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MORRIS, C. (Org.). Os grandes filósofos do Direito: leituras escolhidas em Direito. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2015.
REALE, M. Introdução à filosofia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
REALE, M. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
SANTO AGOSTINHO. Cidade de Deus. Petrópolis, Vozes, 2012.
VILLEY, M. Filosofia do Direito: definições e fins do Direito. São Paulo: Martins Fontes,
2003.

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