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FILOSOFIA

GERAL E
JURÍDICA

Cássio Vinícius
Filosofia do Direito
na Idade Moderna
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Definir o período de início da Idade Moderna.


„„ Explicar a importância do Renascimento para a filosofia da Idade
Moderna.
„„ Identificar no Renascimento a retomada do Direito Natural.

Introdução
O período que marca a transição do período medieval para o período
moderno é chamado de Renascimento. Embora o Renascimento muitas
vezes seja apresentado apenas em função do seu legado cultural para
a humanidade, nas obras de arte de artistas como Leonardo da Vinci ou
em escritos de autores como William Shakespeare isso não passa de uma
parte da história. Tal legado cultural é, sobretudo, o produto, não a causa,
de uma verdadeira transformação da concepção filosófica na visão de
mundo do homem e do seu papel no contexto da existência, com impli-
cações para diversos campos do conhecimento, inclusive para o Direito.
Neste capítulo, você vai aprender sobre o Renascimento e algumas
das suas consequências filosóficas mais importantes, bem como sobre
a noção de Direito Natural originada em tal período.

Renascimento
Renascimento é o nome dado ao período da história que vai do final do século
XIV até o final século XVI. Esse período é caracterizado por uma revolução
cultural (cuja origem remonta a diversas cidades da península itálica) que
determina a transição da visão de mundo medieval para a visão de mundo mo-
derna, com transformações significativas na arte, economia, política, religião,
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etc. Quanto a isso, antes de tudo, é importante que você saiba que, embora o
Renascimento represente uma ruptura com relação ao período medieval, tal
ruptura não é total e completa. Mesmo com os diversos contrastes entre ambos
os períodos, é possível encontrar diversas semelhanças e similaridades que
justificam a ideia de que há neles certa continuidade.

O Renascimento é, sobretudo, uma ponte ou o elo que liga o período medieval ao


período moderno.

O período renascentista é marcado por uma série de fatores históricos


peculiares, como:

„„ o início das navegações o descobrimento das américas;


„„ o estabelecimento de rotas comerciais fixas;
„„ o desenvolvimento de escolas laicas;
„„ a crença ptolomaica de que a Terra era o centro imóvel do universo dá
lugar à descoberta copernicana de que, em verdade, a Terra gira em
torno do Sol;
„„ o advento da imprensa de Gutemberg, que torna possível a publicação
de livros e a propagação de ideias em escala nunca antes vista;
„„ a crise religiosa e os conflitos internos à Igreja, que vieram a culminar na
Reforma Protestante, de Martinho Lutero, bem como na Contrarreforma;
„„ a queda do Império Romano oriental e a emigração de uma série de in-
telectuais bizantinos para o ocidente (sobretudo para a península itálica);
„„ o modo de produção feudal tipicamente rural começava a dar lugar aos
grandes centros urbanos, ao comércio e ao surgimento de uma pequena
classe burguesa.

É nesse contexto em ebulição que surge a necessidade de refletir sobre


os velhos dogmas medievais, colocando-os na balança, e repensar o papel do
homem no mundo. Como resultado de tais reflexões, originou-se aquilo que
viemos a conhecer como humanismo renascentista.
O humanismo renascentista representa a passagem da ideia tipicamente
medieval de que o homem é um ser pecador e indigno do reino dos céus e de
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que a vida mundana não tem valor para a ideia de que essa vida tem valor, bem
como a compreensão de que o homem é, sobretudo, obra-prima da criação
divina. Quanto a isso, duas ideias são fundamentais: aquilo que comumente
chamamos de virada antropocêntrica renascentista e a sua proposta de
retorno ao mundo clássico. Vejamos cada uma das ideias.

O humanismo representa uma mudança do enfoque do pensamento medieval, que


coloca “Deus no centro das reflexões filosóficas”, para o pensamento moderno que
coloca “o homem no centro das reflexões filosóficas”. Isto é, há uma guinada do
chamado teocentrismo medieval para o antropocentrismo moderno. Assim, se no
período medieval Deus era considerado a explicação de todas as coisas e o homem
era visto como um mero coadjuvante na existência, com o advento do Renascimento,
o homem passa a ser tratado como um protagonista de toda a história.

Agora, se a visão de mundo teocêntrica medieval já não é mais aceitável,


posto ser considerada um tanto quanto ultrapassada e decadente, onde buscar
inspiração para desenvolver uma nova visão de mundo? Ora, retornando
ao período em que a humanidade não se via como uma mera sombra do
Sumo Criador: no mundo greco-romano pré-cristão. Nesse contexto, além do
protagonismo do homem no contexto da existência, é parte constitutiva do
humanismo renascentista a ideia segundo a qual a antiguidade clássica foi o
período em que a humanidade esteve no ápice de sua plenitude. Do que resulta
uma típica formulação do ideário renascentista como uma volta às origens —
despertando do longo período em que o homem esteve nas sombras medievais
e retornando, de modo peculiar, para o glorioso mundo antigo.
Quanto a isso, é importante deixar claro que não significa que eles sim-
plesmente deixaram de acreditar em Deus ou abandonaram por completo a
tradição cristã como um todo. Como dito anteriormente, é constitutivo do
antropocentrismo humanista a ideia de que não apenas o homem é uma criação
divina, como também que, entre todas, é a mais próxima da perfeição.
Tal concepção se mostra de modo muito direto em uma série de obras de
arte da época. Artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael Sanzio
e Donatello, além de abordarem, em incontáveis das suas obras, temas caros ao
cristianismo como a Virgem Maria, o menino Jesus, a Santa Ceia e a criação
do homem, também elevaram os padrões de excelência técnica e representativa
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da arte a níveis totalmente inconcebíveis para o período medieval. Afinal de


contas, se o homem deixa de se ver como um mero pecador e começa a se
conceber como um ser destacado no contexto da criação divina, nada mais
justo que as criações dos homens façam jus a tal ideia.

Figura 1. O homem vitruviano, de Leonardo da Vinci.


Fonte: Imagineerinx/Shutterstock.com.

Figura 2. A Criação de Adão no teto da Capela Sistina (Vaticano), de Michelangelo.


Fonte: Creative Lab/Shutterstock.com.
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Outro elemento fundamental para que você possa compreender o período


renascentista repousa naquilo que posteriormente ficou conhecido como
mecenato. Os mecenas eram homens poderosos e imensamente ricos que
patrocinavam o desenvolvimento da arte, da literatura e da cultura de modo
geral, custeando artistas para que pudessem se dedicar exclusivamente ao seu
ofício de excelência. A título de exemplo, podemos citar o papel destacado da
família Médici na própria virada renascentista.

Em 1469, Lorenzo de Médici (1449 d.C.–1492 d.C.) assumiu o controle dos bem-sucedidos
negócios da família no ramo bancário. Além de ser reconhecido como ótimo admi-
nistrador, multiplicando em muito o poder da família pela Europa, Lorenzo de Médici
também era reconhecido pelo modo peculiar com que desfrutava do seu dinheiro.
Ele acreditava que poderia usá-lo para promover a beleza e a verdade. Com o tempo, a
ideia de Lorenzo acabou por se propagar e a prática do mecenato passou a ser adotada
por diversos papas, pela nobreza e também pelos comerciantes abastados da época.
Assim, uma quantidade enorme de dinheiro pode ser investida na promoção da beleza
e do conhecimento humano. Graças a isso, o Renascimento pode florescer pela Europa.

Figura 3. O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli. Obra feita para Lorenzo de Médici.
Fonte: Dias (2013).
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Implicações filosóficas do Renascimento


Se nos voltarmos para as implicações filosóficas do cristianismo, percebemos
que não há propriamente um consenso acerca da contribuição do Renascimento
para a história da filosofia, pois, diferentemente da arte renascentista, que
mostra claros sinais de ruptura com a arte do período medieval, há uma série
de elementos que nos permitiriam inferir que pouco se inovou em filosofia.
Quanto a isso, segundo o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano (2007,
p. 863):

[...] não faltam elementos de continuidade entre a idade média e o Renascimento


e muitos dos problemas preferidos por humanistas e filósofos do Renascimento
eram os mesmos já discutidos pela idade média, com as mesmas soluções.
Isto explica por que a interpretação do Renascimento sempre oscilou entre
dois extremos: de um lado, a oposição radical entre ela e a idade média, de
outro lado, a continuidade intrínseca entre dois períodos.

Entre as principais continuidades, é possível citar o apreço tanto dos medie-


vais quanto dos renascentistas pelas obras dos grandes filósofos da antiguidade.
Você deve lembrar que muitas das ideias de Platão foram cristianizadas por
Santo Agostinho no período da patrística. Além disso, também deve saber
que São Tomás de Aquino foi responsável pela cristianização das ideias de
Aristóteles no período da Escolástica. Agora você sabe que é parte constitutiva
do humanismo renascentista um retorno aos clássicos da antiguidade, com
destaque especial para os diálogos platônicos e escritos aristotélicos. Nesse
contexto, você poderia se questionar se existe algum elemento distintivo
entre a leitura que os medievais e que os renascentistas faziam dos grandes
filósofos da antiguidade.
Entre aqueles que defendem a continuidade entre a filosofia feita entre
ambos os períodos, os elementos distintivos seriam tão ínfimos e insignifi-
cantes que tais períodos sequer mereceriam ser distinguidos. Já entre aqueles
partidários da ideia de que há uma ruptura, a principal diferença apontada é
uma certa mudança do modo de ver os escritos dos filósofos antigos. Nesse
contexto, considera-se que existem duas agendas distintas, a agenda cristã
e a agenda humanista, e cada uma delas aborda os clássicos à sua maneira.
No caso da agenda cristã, o uso que fizeram dos textos clássicos é claro:
traçar uma distinção entre fé e razão e estabelecer a fé como o caminho
para a verdade maior contida nas supostas revelações divinas. Já a agenda
humanista se vale dos clássicos para reforçar a ideia de que a razão humana
é o caminho para a excelência e, sobretudo, o elemento que torna o homem a
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obra prima da divindade. Assim, mesmo que não seja incorreto dizer que o
Renascimento pretendeu voltar aos clássicos sem a contaminação do pensa-
mento cristão, isso não significa dizer que os clássicos eram vistos de modo
puro, isto é, por si mesmos.
Para que você tenha uma ideia mais clara de algumas das mais importantes
implicações filosóficas do Renascimento, vamos ressaltar quatro pontos:

„„ o naturalismo renascentista;
„„ o racionalismo;
„„ o hedonismo;
„„ o individualismo.

Naturalismo. Junto com a noção de humanismo e a valorização do homem e da


vida mundana (por oposição ao reino dos céus), o Renascimento trouxe aquilo
que pode ser chamado de naturalismo renascentista. Dentre outras coisas, tal
ideia considera que, assim como o homem, a natureza é uma grande obra de
Deus. Nesse contexto, diferentemente da visão medieval, que considerava o
mundo físico como uma espécie de vale de lágrimas, imperfeito e muito distante
da Cidade de Deus nos céus, o homem renascentista procurava destacar a beleza
e a harmonia da natureza. Assim, a natureza era, sobretudo, considerada uma
dádiva que deveria ser conhecida e louvada. Essa nova concepção acerca da
natureza foi determinante não apenas para os desenvolvimentos artísticos da
época, como o desenvolvimento da técnica da perspectiva e do jogo de luz e
sombra, como também para o próprio avanço das ciências empíricas — com
base na observação direta da natureza e descrição dos fenômenos sem recorrer
a explicações fundamentalmente religiosas.

Racionalismo. Embora o racionalismo seja comumente identificado como


uma corrente filosófica típica do período moderno (que se contrapõe à corrente
empirista), esse não é o único significado atribuído ao termo. De modo mais
geral, considera-se uma certa atitude ou crença de que a razão é, sobretudo,
o meio pelo qual obtemos as verdades acerca da realidade. Se tomamos essa
ideia como ponto de partida, é possível encontrar tal tendência já no mundo
grego, a partir dos pré-socráticos. Porém, com o advento do cristianismo e
da filosofia cristã, a ideia de que a razão é o caminho para o conhecimento
acabou perdendo muito terreno. Se você pensar nas ideias de Santo Agostinho
no período da patrística, perceberá que o papel da razão para a obtenção de
conhecimento sobre a verdade fora completamente substituído pela fé nas
escrituras sagradas. Mesmo no período escolástico, embora seja possível
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encontrar em São Tomás de Aquino um certo restabelecimento da importância


da razão, com base na distinção entre verdades da fé e verdades do intelecto, há
uma clara subordinação da razão aos dogmas da fé, pois as verdades racionais
não poderiam contrariar as verdades da fé.

No contexto do Renascimento, mesmo que a ideia de que existem verdades que vêm da
fé não tenha caído em completo descrédito, houve o início de um processo de eman-
cipação da razão sobre a fé e uma busca de explicações racionais acerca da realidade,
a despeito dos dogmas do cristianismo. Agora, se você soma isso com a tendência
humanista e naturalista do Renascimento, torna-se possível compreender o germe
de uma atitude que veio a desembocar no desenvolvimento das ciências modernas.

Hedonismo. A escola hedonista, cuja origem remonta ao grego Aristipo de


Cirene (435 a.C.–356 a.C.), identifica a felicidade com os prazeres físicos
e carnais, bem como a infelicidade com a dor. Nesse contexto, na base do
hedonismo está a ideia segundo a qual a busca pelo prazer consiste no pró-
prio sentido da vida. Ainda no período antigo, o filósofo Epicuro de Samos
(341 a.C–270 a.C.) desenvolveu a doutrina do hedonismo ao considerar a
importância da prudência e do comedimento para a busca da felicidade nos
prazeres da vida (doutrina conhecida como epicurismo). Se a ideia da busca
pelos prazeres mundanos desempenhou um papel importante na antiguidade
clássica, sobretudo no contexto da civilização romana, não é possível dizer
o mesmo a propósito do período medieval, pois a vida mundana e os praze-
res como um todo eram identificados com o pecado e com a corrupção. Foi
justamente com o advento do Renascimento e a sua inspiração nos clássicos
da antiguidade que a busca pelos prazeres passou a ser reconsiderada como
algo que possui valor. Nesse contexto, houve uma desvinculação da ideia de
prazer com a de pecado. Assim, abre-se espaço para que os prazeres carnais
e mundanos sejam buscados, a fim de que seja possível viver uma vida plena.

Individualismo. O individualismo é entendido como uma concepção política,


social e moral orientada para a busca do bem individual. Quanto a isso, o
individualismo se opõe ao coletivismo. Enquanto o coletivismo considera que
o bem comum prevalece sobre o bem de cada um dos membros da sociedade,
segundo o individualismo, o bem individual tem prioridade sobre o bem
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comum. O Renascimento é o berço do individualismo. Tal posição resulta,


entre outros elementos, da combinação da concepção medieval de indivíduo
com o humanismo renascentista.

Para compreender melhor a posição individualista engendrada pelo Renascimento,


vamos voltar por um momento para a Antiguidade Clássica.
Imagine-se um cidadão ateniense no período helênico. Enquanto um ser humano,
você se considera um animal político: vê-se, sobretudo, como uma parte da pólis e
entende que a sua felicidade é completamente dependente do bem comum.
Suponha, agora, que o tempo passou e você é um cristão em plena Idade Média. Além
de crer na existência de um reino dos céus por oposição ao reino terreno, você acredita
que existe uma vida espiritual como contrapartida da vida mundana. Se de um ponto
de vista mundano e terreno você só é algo na medida em que faz parte da sociedade
em que está inserido e isso significa viver em um mundo pecaminoso e degradado,
de um ponto de vista espiritual, você possui valor em si mesmo, independentemente
do resto, afinal de contas, tem fé na imortalidade da alma e no reino dos céus.
Para completar essa viagem no tempo, imagine-se um florentino em pleno Renas-
cimento. Embora você ainda acredite no reino dos céus, na imortalidade da alma e
tudo mais, com o advento do humanismo e da virada antropocêntrica, você deixa de
ver a sua existência mundana como se estivesse meramente pagando com juros o
pecado original e passa a vê-la como uma dádiva. Você passa a desfrutar os prazeres
da vida, explorar as belezas da natureza e desenvolver suas excelências artísticas
e intelectuais, sem ter carregar na consciência o peso de uma cruz. Em suma, crê
que inclusive a sua vida na Terra tem valor em si mesmo. Além disso, acredita que a
competição é intrínseca ao organismo social e que, com muita força de vontade e
talento, pode fazer tudo. Disso resulta as bases do individualismo renascentista, sendo
o homem também um universo.

Renascimento e o Direito Natural


Se o Renascimento provocou uma grande mudança na visão de mundo dos
homens, no contexto da política e filosofia do Direito, as coisas também não
foram diferentes. Em função do humanismo, o homem deixou pouco a pouco a
visão de mundo teológica, que coloca a figura de Deus no centro das reflexões,
e passou a adotar uma concepção antropológica da realidade, em que o homem
possui grande destaque e proeminência.
No que concerne à filosofia do Direito, não é segredo que, no período
medieval, a lei divina, perfeita, eterna e imutável era considerada a fonte e o
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fundamento de validade da lei humana. Tanto Santo Agostinho quanto São


Tomás de Aquino, os grandes representantes, respectivamente, da patrística e
da escolástica, apresentam visões do Direito como algo inteiramente subordi-
nado e derivado das leis de Deus. Quanto a isso, Eduardo Bittar e Guilherme
Almeida (2015, p. 307) afirmam que:

A Cidade de Deus é o lugar regido pela lei divina que contrasta com a cidade
dos homens, regida pela lei humana. A tarefa de incorporar a lei divina no
âmbito da lei humana é o que deve ser realizado pelo Direito. Ressalte-se que
se trata de uma tarefa dificílima. Na concepção tomista há uma lei eterna, uma
lei natural e uma lei humana. A lei eterna regula toda a ordem cósmica (céu,
estrelas, constelações etc.) e a lei natural é decorrente dessa lei eterna. Fica
claro nas duas concepções, sinteticamente resenhadas anteriormente, que a
lei superior (a divina, para Santo Agostinho, e a eterna, para São Tomás de
Aquino) emana de uma força sobre-humana, qual seja: Deus.

Com o advento do humanismo renascentista, há o início de um movimento


de laicização do Direito Natural e a passagem da ideia de que o fundamento
de validade da norma repousa sob a figura de Deus para uma concepção de
Direito Natural fundada na razão humana. A título de ilustração de tal movi-
mento, Eduardo Bittar e Guilherme Almeida propõem uma comparação com
a revolução copernicana: “[...] essa mudança de centro, verdadeira revolução
copernicana na esfera do Direito, indica um novo caminho a ser percorrido pela
Ciência Jurídica, que deixa de estar ligada à concepção mítico-religiosa para
buscar o seu fundamento último na razão” (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 308).
Assim, a visão teológica de que as leis dos homens giram em torno de
Deus é substituída pela visão antropológica de que o fundamento último das
leis emana da própria razão humana.
Entre outros, atribui-se ao filósofo e jurista holandês Hugo Grócio (1583
d.C.–1645 d. C.) o mérito por realizar a transição da concepção de Direito Natural
teológico para a concepção de Direito Natural antropológico ou racional. Para ele,
não são os mandamentos divinos que determinam e conferem força normativa às
leis humanas, mas a reta razão. Nas suas palavras: “o mandamento da reta razão
que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer,
mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional” (GRÓCIO,
apud BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 308). Além disso, diferentemente de São
Tomás de Aquino, que vincula a reta razão à dádiva divina, Hugo Grócio defende
que a razão não precisa buscar fundamento ulterior em Deus, pois basta-se em
si mesma. Assim, o Direito Natural que deriva da reta razão “existiria mesmo
que Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas humanas”.
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Do ponto de vista do método de conhecimento das leis naturais, Hugo


Grócio propôs dois caminhos distintos, porém complementares: de um lado,
como algo puramente a priori e, de outro lado, como algo a posteriori. Enquanto
o método a priori consiste na análise da conformidade das normas jurídicas
com princípios racionais, o método a posteriori consiste em uma investigação
das normas jurídicas de diferentes povos, visando encontrar elementos que
são compartilhados por todas elas (NADER, 2004).
A propósito das implicações das ideias do humanismo renascentista para
a filosofia política, Alysson Mascaro (2016, p. 120) afirma:

Trazer os problemas filosóficos para o eixo do próprio homem represen-


tou, na filosofia política, abdicar da tradição que imaginava a sorte política
como sendo uma emanação da vontade divina. Desde Paulo de Tarso, com a
Epistola aos romanos, cria-se o poder humano era dado pela vontade divina.
O Renascimento apontará para um caminho distinto: o poder pertence aos
homens, ao seu engenho, astúcia e capacidade.

Nesse quesito, embora muito criticada na época, a obra O Príncipe, de


Nicolau Maquiavel (1469 d.C.–1527 d.C.), desempenhou um papel destacado.
Em O Príncipe, ele escreveu uma série reflexões sobre o Estado, oferecendo
conselhos para aqueles que governam possam se manter no poder. Nesse
contexto, as suas ideias são de importância capital para a passagem de uma
concepção de poder fundada apenas na graça de Deus para uma concepção
que valoriza a aptidão política e a capacidade dos governantes. Acerca do
pensamento de Maquiavel, Alysson Mascaro afirma que “é verdade que o
destino — fortuna — influencie a vida social, mas isso não nega o espaço da
ação política. Não é um desígnio divino, mas a virtú do agente político — as
suas qualidades, capacidade e empreendimentos — que determina o encami-
nhamento da sociedade” (MASCARO, 2016, p. 121). Assim, tal concepção,
que se opunha à tradição medieval segundo a qual a política e os governantes
dependiam da graça divina para governar, tratava a política com um viés muito
mais prático e dependente de como o mundo é.

Maquiavel foi um diplomata, historiador e poeta nascido na cidade de Florença,


considerado um dos pais do pensamento político moderno.
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Como mencionado anteriormente, Maquiavel foi muito criticado no


seu tempo. Tanto é que em função disso hoje o adjetivo maquiavélico tem
uma conotação puramente negativa e significa algo torpe, maléfico. Isso se
justifica por duas razões: em primeiro lugar, a Igreja Católica realizou um
grande programa de difamação das suas ideias, pois elas representavam
uma ruptura em relação à concepção tradicional de política subordinada à
teologia; em segundo lugar, as ideias de Maquiavel sugerem uma caracte-
rização do bom governante muito diferente da concepção dos antigos; não
como aquele que busca exatamente o bem comum, mas como aquele que é
capaz de se perpetuar no poder.

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


BITTAR, E. C. B., ALMEIDA, G. A. de. Curso de filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Atlas,
2015.
DIAS, M. Análise da obra “O nascimento da Vênus” de Sandro Botticelli sob a perspectiva
estética de Hegel. 2013. Disponível em: <http://esteticaeteoriadaarte2.blogspot.com.
br/2013/07/analise-da-obra-o-nascimento-da-venus.html>. Acesso em: 5 fev. 2018.
MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2016.
NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Leituras recomendadas
FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão dominação.
São Paulo: Atlas: 1990.
MORRIS, C. Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
REALE, M. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 2015.
REALE, M. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
VILLEY, M. Filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
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