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Texto-Aula

A Crise da Idade Média e Origens da Era Moderna: Renascentismo, Humanismo e a

Obra de Nicolau Maquiavel

O período histórico que ficou consagrado pela posteridade como o

“Renascimento” é tipicamente imaginado e apresentado como um dos marcos

fundamentais para estabelecer as origens da era moderna. Esse período histórico é

geralmente creditado com a invenção ou influência sobre uma série de fatores associados

com a “modernidade”, como a revalorização do humano, o novo espírito de investigação

que influenciaria a “revolução científica” e o novo status conferido ao indivíduo. Olhando

de perto, a definição do que seria o “Renascimento” se revela um pouco mais complicada.

Para compreender o seu caráter inovador é fundamental entender como ele se entrelaça

com a crise do sistema medieval que avança pela Europa a partir do Século XIV e com

as particularidades das Cidades-Estado italianas, o principal espaço associado com o

Renascimento. O mesmo se faz fundamental para uma melhor compreensão das

características e do contexto do principal pensador político associado com esse período:

o florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), um dos autores mais notórios e talvez o

menos compreendido do cânone da teoria política.

Para entender melhor as novidades representadas pelo Renascimento e pelo

período histórico que essa palavra acabou simbolizando, temos que nos ater a algumas

características fundamentais do período medieval cuja crise forneceu o contexto

fundamental para o seu desenrolar. A chamada “Idade Média” é marcada pelo colapso do

Império Romano na sua parte ocidental, pelas chamadas “invasões bárbaras” e pelo tipo

de mescla social que se seguiu a esses conturbados processos históricos. O resultado do


colapso do modelo imperial antigo foi uma ampla fragmentação política e involução

institucional e tecnológica. A taxa de urbanização da sociedade europeia caiu

vertiginosamente com o colapso romano, assim como o controle de uma série de

capacidades técnicas e arquitetônicas. Europeus dos Séculos VI ao XIV olhavam com

assombro para estruturas arquitetônicas romanas que eles próprios não eram capazes de

reproduzir. O vasto acervo de conhecimento filosófico, científico e historiográfico

acumulado durante a antiguidade se perdeu na sua maior parte, seja como efeito dos

conflitos armados e do caos social, seja do controle do pensamento exercido pela maior

instituição a sobreviver o colapso romano: a Igreja Católica, sediada em Roma.

Lentamente foi se consolidando o modelo feudal, baseado na fragmentação do poder

soberano e na permanente disputa pelos limites jurisdicionais do poder político

fragmentado.

Enquanto a maior parte da Europa se direcionava ao modelo feudal que ainda teria

uma longa trajetória, a situação na península itálica apresentava importantes

particularidades. Lá a retração da vida urbana, embora também considerável comparada

ao auge do período imperial, não foi tão severa quanto no resto do antigo império

ocidental. Uma série de cidades sobreviveram e foram prosperando ao longo dos séculos

medievais, numa relação umbilical com o mundo feudal, maciçamente rural, ao seu redor.

As principais dessas cidades, Florença, Veneza e Gênova, acabaram adquirindo um papel

fundamental no sistema comercial e financeiro que começou a se desenvolver com a

consolidação e expansão do sistema feudal. Por volta do ano 1000 esse sistema feudal

consolidado adquire um novo dinamismo e conhece uma longa fase de expansão, em meio

a qual os reinos se fortalecem, cidades e redes comerciais crescem e se desenvolvem

(como em Flandres e na Liga Hanseática), tudo isso no contexto mais geral de uma

sociedade predominantemente rural e cujas relações fundamentais eram marcadas por


diferentes formas e graus de servidão política e econômica. A vida intelectual e científica,

semimorta nos séculos anteriores, também vive um ressurgimento a partir do Século XI,

com o estabelecimento das primeiras universidades europeias na França (Paris),

Inglaterra (Oxford e Cambridge) e Itália (Bolonha, Pádua). No contexto de um mundo

feudal em expansão o papel e poder das cidades italianas se expandiu, alcançando a sua

posição de supremacia comercial nesse período, intermediando o comércio de longo

alcance por meio do controle das rotas marítimas mediterrânicas. Além de seu predomínio

comercial e financeiro as cidades italianas também se transformaram em importantes

centros manufatureiros, particularmente a Florença natal de Maquiavel. Esse período

representou provavelmente o apogeu do poder das cidades italianas no contexto do

sistema medieval europeu, e foi simbolizado também por importantes marcos no campo

cultural, como a obra dos poetas e pensadores florentinos Dante Alighieri e Francesco

Petrarca. Abalados junto com o resto da Europa pela terrível crise desencadeada pela

Peste Negra, as cidades italianas reagiram à decadência feudal com uma renovada

disposição que desembocaria no momento que conhecemos como o “Renascimento”.

Devemos notar alguns pontos sobre o Renascimento e suas condições. Em

primeiro lugar, no caso da vida cultural das cidades italianas a sequência histórica não

corresponde a uma passagem simples da era medieval para uma era moderna. De certa

forma, o Renascimento é um fenômeno que pode ser considerado originalmente

“medieval”. Seus fundadores e inspiradores como Dante e Petrarca são figuras históricas

firmemente enraizadas no contexto medieval no qual viveram. O mesmo pode ser dito de

Brunelleschi, arquiteto florentino que reintroduziu técnicas de engenharia há muito

esquecidas e desenvolveu um tanto de outras completamente novas. O ponto que mais

chama atenção para a novidade do Renascimento é a sua tentativa de resgate de técnicas

e ideias há muito esquecidas ou proibidas. O moderno se afirmando como uma volta ao


passado? A própria ideia de uma modernidade que surge por um apelo à antiguidade

parece incoerente. A importância de um renascimento que coincide com um

florescimento cultural e filosófico não pode ser medida por uma ideia abstrata de

modernidade, mas sim por uma comparação com as ideias dominantes no período

medieval. Essas ideias dominantes estavam associadas ao papel predominante da Igreja

ao longo de todo o período medieval, e estabelecidas a partir das sínteses de filósofos

cristãos remontando à Santo Agostinho no Século IV. A análise do pensamento medieval

é uma vasta e complexa tarefa para a qual inúmeros especialistas se voltam. Mas algumas

consequências gerais do pensamento medieval podem ser notadas: um desprezo pelas

ciências naturais e empíricas, uma elevação da teologia e da metafísica, e uma filosofia

política de base teológica profundamente conformista e de acordo com as disparidades da

estrutura social feudal. Uma das características dominantes da filosofia medieval

dominante, e contra a qual se voltaria o Renascimento, é a ideia da miséria do homem

(miseria hominis), uma concepção antropológica que entende o ser humano a partir dos

conceitos de pecado e maldade. Essa concepção, desenvolvida originalmente por

Agostinho, entende o ser humano e a natureza humana da forma mais negativa. A miséria

do homem na terra seria compensada, evidentemente, pelo Reino dos Céus que garantiria

a salvação eterna. Mas a existência concreta e real do ser humano seria um “vale de

lágrimas” contra o qual pouco se poderia. Tal visão se revelava ao mesmo tempo

conformista e hierárquica, defendendo a divisão social tal como existente no modelo

feudal. As artes, as ciências, o corpo, tudo isso era menosprezado em vista da irrelevância

da vida terrestre atribuída pelo teocentrismo dominante. Essas concepções medievais

sofreriam críticas dentro do próprio contexto da época, principalmente na sua fase mais

avançada da segunda metade do Século XIII e primeira do XIV, com a consolidação da

Escolástica e sua redescoberta de Aristóteles, mas ainda assim representavam o senso


comum intelectual da época medieval, e foi contra esse senso comum que o Renascimento

como amplo movimento cultural se voltou.

A tendência de uma revalorização do humano se dá no contexto de uma

redescoberta e reinvenção do Humanismo. Já presente nas obras de Dante e Petrarca, essa

tendência seria radicalizada no Século XV, seja na obra de pensadores como Nicolau de

Cusa que defendiam a Dignitas Hominis contra a Miseria Hominis, seja na prática e na

arte de arquitetos como Brunelleschi e seus inúmeros sucessores, e escultores e pintores

como os lendários Michelangelo e Leonardo da Vinci. Essa tendência cultural, artística e

filosófica, que tinha nas cidades italianas o seu grande centro, acabava das mais variadas

formas por promover um novo tipo de antropocentrismo contra o teocentrismo por tantos

séculos predominante. Na arquitetura novos projetos resgatavam técnicas há muitos

perdidas, como a construção do domo na Catedral de Santa Maria del Fiore em Florença

(completada em 1436), e pintores resgatavam as técnicas da perspectiva também há muito

perdidas, permitindo uma reprodução pictórica da realidade muito mais realista do que

antes imaginado. No campo da escultura o realismo greco-romano foi reinventado por

gênios como Donatello e Michelangelo, cujos respectivos “David” estão entre as maiores

obras de arte da história. Aliás, o empreendedorismo cultural de figuras como

Brunelleschi, Michelangelo e Da Vinci acabou por também criar o conceito moderno de

“gênio” que tão facilmente atribuímos a essas impressionantes figuras. O ponto em

comum é que, seja na arquitetura, seja na arte, seja no campo da reflexão, esse espírito de

época, todo ele coberto de nostalgia por um passado distante greco-romano recentemente

reavaliado, converge para a valorização das formas e da existência humanas, em contraste

nítido com o senso comum prevalecente por longos séculos na Europa. Deve-se notar

também que tal renascimento se dá não apenas por tendências internas, mas também pela

importação de ideias: traduções dos clássicos greco-romanos do árabe para o latim,


influência grega direta dos romanos orientais, os bizantinos (principalmente depois das

devastações promovidas em Constantinopla pelos venezianos na Quarta Cruzada do final

do Século XIII, resultando na emigração de um grande número de romanos orientais para

a Itália), traduções das obras dos filósofos e cientistas árabes e islâmicos, com suas

notáveis contribuições nos mais variados campos do conhecimento. Seja como for, o

espírito do renascimento não deixa de constituir um momento impressionante de

realizações.

Esse momento de florescimento cultural, com as suas fenomenais catedrais,

pinturas e esculturas, acompanhadas pela efervescência no campo literário, poderia

sugerir que as cidades italianas passavam por um momento de grande poder, estabilidade

e riqueza. Embora sem dúvida muita riqueza tenha sido gerada, ajudando na construção

dos marcantes monumentos desse período, não se pode dizer que o período considerado

o mais “clássico” do Renascimento, 1400-1550, seja um período de fortalecimento

político das cidades italianas, e muito menos de estabilidade. Pelo contrário, olhando

retrospectivamente, podemos enxergar nesse período a formação de tendências que

implicavam na obsolescência do modelo das cidades-estado italianas, e na sua lenta mas

irreversível decadência como forma política. No campo comercial a expansão do Império

Otomano implicou na perda de controle das rotas navais mediterrânicas, ao mesmo tempo

em que as potências ibéricas de Portugal e Castela se lançavam na era das navegações,

eventualmente superando as tradicionais rotas de ligação da Europa com a vasta rede de

comércio da Ásia. No campo político a crise do sistema feudal acabou produzindo novos

tipos de atores políticos, o Estado Absolutista em ascensão em lugares como Castela (logo

depois Espanha) e França, com grandes repercussões para a vida política na Itália.

Foi nesse contexto de florescimento e crise que Nicolau Maquiavel nasceu em

1469, em Florença, filho de pais da baixa nobreza. Maquiavel teve acesso a uma excelente
educação e seguiu para o serviço público quando uma revolta republicana se vê vitoriosa

em Florença em 1494, quebrando com o poder oligárquico da família Médici que

controlava Florença como uma realeza de facto havia várias décadas. Maquiavel foi um

importante servidor público da República florentina por quase vinte anos, servindo como

embaixador na França, conselheiro para assuntos externos e organizador de uma milícia

civil, ideia concebida e organizada por ele próprio. Em 1513 a sua sorte política muda

quando um golpe derruba a República e reestabelece o controle dos Médici sobre a cidade.

Maquiavel é demitido e depois torturado quando suspeito de conspirar contra os Médici.

Banido do serviço público, Maquiavel sofre um exílio interno, indo morar na propriedade

familiar localizada na área rural de Florença (o Condato). Foi nesse contexto de desgraça

pessoal e política que Maquiavel redigiu originalmente a sua mais famosa obra, O

Príncipe. Maquiavel comunicou a produção da obra numa famosa carta para seu amigo

Vettori, mas ela só seria publicada após a sua morte, em 1532. Em poucos anos entraria

para o índice proibido da Santa Inquisição. Maquiavel produziu uma série de outras obras

importantes, incluindo os Discursos Sobre a Década de Tito Lívio, A Arte da Guerra, a

História de Florença, uma série de outros escritos políticos, inúmeros poemas e peças de

teatro incluindo a Mandrágora. O conjunto da sua obra e vida, e particularmente os

Discursos e a História, apontam para as duradouras convicções republicanas de

Maquiavel. E não só essas preferências eram republicanas, como Maquiavel demonstrou

também, inclusive no Príncipe, uma preferência por governos republicanos de base ampla

e popular. Nos trabalhos e poemas políticos escritos durante o seu período ativo no serviço

público Maquiavel demonstrou um contínuo desprezo por ambições políticas vãs e uma

constante preocupação com o papel político da nobreza. Isso tudo se faz importante para

compreendermos as peculiaridades do Príncipe e sua posição no contexto da obra e do

pensamento do florentino.
Um dos aspectos mais desconcertantes do Príncipe é a sua dedicatória inicial,

endereçada à Lorenzo de Médici, novo governante de Florença e o principal responsável

pela queda política e pessoal de Maquiavel. Oportunismo? Essa hipótese parece pouco

provável, apesar de muitos republicanos servirem à oligarquia dos Médici, como o

próprio Maquiavel estava sem dúvida plenamente disposto. A obra dedicada, note-se, não

foi publicada durante a vida de Maquiavel e nem do recipiente da dedicatória. O que

levanta a hipótese de que o conjunto da obra tem um caráter deliberadamente provocador,

apesar de todas as aparências nas quais parece legitimar as formas mais imorais e

degeneradas de ação política. Maquiavel se transformou, evidentemente, num sinônimo

de amoralismo na política: a maioria dos intérpretes modernos consideram que a sua

grande inovação foi justamente a de separar a política da moral, especialmente num

contexto no qual a moral era definida pela noção do príncipe cristão/santo. De fato, o

ponto de partida de Maquiavel estabelece um princípio geral de realismo: ele não está

interessado nas coisas como eles devem ser, mas sim na verdade efetiva das coisas. Ele

não está interessado em imaginar repúblicas ideais (uma clara referência negativa à

Platão) mas sim no mundo como ele é. Independentemente do juízo que se faça a respeito

do Príncipe como um todo, esse princípio geral do realismo, ao mesmo tempo

epistemológico e político, parece ser de fato uma importante contribuição de Maquiavel.

E talvez, ao mesmo tempo, uma pista para o leitor: fique atento aos juízos e análises do

próprio autor. Não se deve esquecer do lado artístico de Maquiavel. Parece muito

provável que o histórico escrito O Príncipe não deve ser lido de maneira estritamente

literal; que o seu autor pretendia algo mais do que a confecção de um manual de perfídias

políticas. Uma leitura mais atenta, aliás com longa linhagem histórica, vai identificar no

Príncipe uma visão mais crítica, e também moral, do mundo da política que ela descreve

com maestria.
Maquiavel parte de uma tipologia geral da política. Ela transforma a tradicional

divisão grega entre três formas políticas, a monarquia, a aristocracia e a democracia, e

suas vertentes “degeneradas” (tirania, oligarquia e demagogia) numa divisão binária entre

principados e repúblicas. As repúblicas podem ser divididas entre oligárquicas e

populares (chamadas de governo stretto e governo grosso na linguagem da época), mas

essa não era a preocupação de Maquiavel no Príncipe. A sua atenção se volta para os

principados. Quanto a esses, também deve-se notar que Maquiavel não supõe que eles

necessariamente envolvam uma lógica dinástica de organização: qualquer um pode se

tornar príncipe, dadas as circunstâncias e as capacidades particulares a cada circunstância.

A preocupação principal de Maquiavel na obra envolve os meios de se alcançar e de se

manter o poder num principado. É nesse contexto que se apresenta o lado “amoral” da

sua teoria: Maquiavel apresenta uma série escandalosa de conselhos e análises para o

leitor e para um potencial príncipe. Existia, tanto na época de Maquiavel quanto na

antiguidade, uma tradição de escritos voltados para o aconselhamento de governantes. Na

verdade, essa tradição remonta aos primeiros historiadores como Heródoto e Tucídides,

sempre empenhados no pronunciamento de juízos políticos acerca dos objetos das suas

histórias, uma tradição seguida pelos historiados romanos como Tito Lívio e Tácito que

foram as maiores influências teóricas na obra de Maquiavel. Contudo, o modo como

Maquiavel apresenta seus argumentos e “conselhos” é único: ele chama atenção para o

lado sórdido, criminoso, violento, tantas vezes envolvidos na disputa e manutenção do

poder. Ele conclama seus prospectivos príncipes a mentir, a matar, a gerar o medo. Quão

literal seria essa escandalosa receita política? O fato é que para leitores literais da sua

obra, a partir de seu lançamento em 1532, ela foi vista com horror e repulsa. Maquiavel

virou sinônimo de perfídia e maldade, e maquiavélico sinônimo de amoral.


Em termos mais formais, podemos dizer que Maquiavel apresenta a tese de que

“os fins justificam os meios”. Mas que fins? Que meios? Não seria Maquiavel esperto o

suficiente para perceber o caráter escandaloso das suas próprias palavras? Bem, podemos

dizer que, a princípio, o fim declarado é o de se alcançar e de se manter o poder. Seria

esse um fim geral, contudo, um bem público? Qual o objetivo do poder político e da

existência do Estado, afinal? Ao longo do Príncipe Maquiavel apresenta uma série de

definições que apresentam de modo bem mais claro e geral as finalidades da política como

um bem público. A tarefa do poder político é a de garantir a ordem interna e a paz. A

única forma de se garantir uma ordem interna estável e bem governada, que é a condição

da vida digna, é a preparação para a guerra. Essa deve ser a principal preocupação de um

príncipe. Mas não se para por aí. Um exército popular, ou milícia, é a principal garantia

de força para o príncipe da cidade-estado. Em toda a discussão a preocupação de

Maquiavel com a cidade-estado é clara. Ele não está preocupado com os grandes reinados

territoriais da Europa ou com impérios, mas sim com a cidade-estado, sua forma natal e

preferida de organização política. A dependência em relação a atores externos como os

reinos ou exércitos mercenários é um desastre. Isso é uma crítica explícita aos

procedimentos dos governantes oligárquicos das cidades italianas. Maquiavel expõe uma

preferência explícita pelo homem comum, e uma suspeita e desgosto correspondente pela

nobreza. Ele inverte o juízo de valor aristocrático dominante de que “quem constrói seu

poder sobre o povo, constrói sobre lama”. Para Maquiavel, antes o contrário. Sob essa

luz, seus conselhos escandalosos e suas narrativas laudatórias acerca de figuras históricas

vilipendiadas pela tradição, demonstram que o livro de conselhos de Maquiavel tinha

claramente objetivos mais sutis do que os demonstrados numa leitura superficial.

Um dos aspectos mais comentados do Príncipe diz respeito ao seu aparentemente

nebuloso conceito de virtú (virtude, virilidade?) e sua relação com a fortuna, ou destino.
Em termos mais gerais, pode-se dizer que a virtú se relaciona com a capacidade do

príncipe de se organizar para enfrentar as demandas do seu governo e da sua posição de

forma mais geral. Especialmente levando em consideração o papel desempenhado pela

fortuna, ou seja, pelas circunstâncias cambiantes das conjunturas e momentos políticos.

Geralmente se argumenta que a virtú consiste na capacidade do príncipe em antecipar ou

ler essas mudanças nas circunstâncias, transformando o seu comportamento de acordo

com essas circunstâncias, ou seja, agindo de forma estratégica. Deve-se notar que essas

são considerações plenamente estabelecidas quando o assunto diz respeito à questão da

guerra. Mas esse não parece ser o ponto de Maquiavel. Maquiavel está descrevendo a

dinâmica do poder no contexto da paz. Levando-se em consideração a noção de bem

público apresentada por Maquiavel, pode-se argumentar que Maquiavel levanta a questão

da fortuna não como um meio para avaliar a esperteza estratégica de príncipes do passado

e do futuro, mas sim para estabelecer a necessidade permanente de meios que previnam

os imprevisíveis e inevitáveis golpes da fortuna. Somente com um bom governo se pode

prevenir que o Estado caia como um castelo de cartas. E como Maquiavel descreve no

Príncipe, inúmeras foram as vezes que maus príncipes viram seu poder se esvair perante

os sopros da fortuna, com consequências desastrosas para as cidades e para o povo

comum. Ao final e a cabo, o escandaloso livro de conselhos se apresenta como um manual

para a avaliação de um bom governo e uma defesa da arte da estratégia para a manutenção

de um Estado capaz de proporcionar a vida digna. Parece que autores como Espinoza e

Rousseau não estavam distantes da realidade na sua celebração do florentino como

defensor do republicanismo e do povo.

Os juízos políticos sobre a obra de Maquiavel permanecem abertos. Enquanto

pareceu óbvia para os intérpretes contemporâneos a interpretação de Maquiavel enquanto

um teórico das condições gerais e cambiantes da ação política embasada no cálculo


estratégico, um gélido defensor do realismo político e um adversário das concepções

moralistas da política, talvez tenha se perdido de vista o caráter provocador e irônico da

sua principal obra, embasada como parece estar numa concepção positiva do Estado e da

sociedade a partir de uma noção do bem público, da participação política e da defesa

coletiva da república. Por isso que podemos voltar a nossa afirmação original de que

Maquiavel talvez seja o menos compreendido entre os grandes clássicos do cânone da

teoria política “ocidental”.

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