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Texto-Aula – Modernidade Burguesa e Teoria Política na Inglaterra do Século XVII:

Thomas Hobbes, John Locke e seus Contemporâneos.

Para estabelecer um contexto que nos permita fornecer uma adequada

compreensão da obra dos dois grandes pensadores políticos canônicos produzidos pela

turbulenta história inglesa do Século XVII, Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke

(1632-1704), se faz necessária uma imersão nas particularidades que moldaram o

contexto social, político e econômico da Inglaterra já a partir da Idade Média, e os

peculiares e profundamente influentes caminhos que seriam trilhados por essa nação na

história da era moderna e contemporânea. Pode-se dizer que o peso alcançado por essas

obras políticas e teóricas representam um primeiro sinal do fortalecimento e da ascensão

do Estado e das classes dominantes ingleses que teriam papel central no período histórico

que se seguiu ao tempo de vida de Hobbes e Locke. Seja como for, o fato é que elas estão

profundamente enraizadas no contexto histórico bastante específico da Inglaterra, que

teve no Século XVII um momento de crise, conflitos e transições que marcariam a

importância da Inglaterra na história moderna.

Para começarmos a explorar essa trajetória histórica, precisamos voltar à “Idade

Média” e seu sistema político-econômico dominante, o feudalismo. Precisamos notar

algumas características gerais da sociedade europeia que se formou a partir dos sucessivos

“colapsos” do Império Romano Ocidental e das seguidas “invasões” bárbaras e as formas

culturais mescladas e fundidas que se formaram delas. Em primeiro lugar, e acima de

tudo, temos que notar que estamos falando de uma sociedade predominantemente

camponesa. A população camponesa sempre excedeu a proporção de 90% da população

europeia nesse período, com variações regionais, e essa predominância se combinava com

a existência de cidades que gravitavam em torno desse oceano rural. A principal exceção
a esse padrão, as cidades italianas cuja vida política estava centralizada na urbe, exerciam

um domínio coletivo sobre as vastas zonas rurais circundantes, os condattos.

Reproduziam numa escala mais ampla o domínio senhorial sobre a população camponesa

que representava a característica fundamental do sistema feudal e a base de sua existência:

a servidão dos camponeses perante às classes senhoriais, particularmente à classe feudal,

ou classe dos senhores feudais, que constituía a relação social central do sistema feudal.

A segunda característica mais marcante do feudalismo como sistema político é a

profunda fragmentação política apresentada por esse sistema. O poder estava disperso

numa numerosa aristocracia senhorial, cada qual com seu poder jurisdicional próprio e

em permanente conflito com os demais. Hierarquicamente acima, mas de fato em

permanente competição com, estavam os reis, o Sacro-Imperador e a Igreja, além das

cidades livres em conflito potencial e simbiose com os demais. A relação feudal básica

era constituída pela estrutura social do “feudo”, em suas inúmeras manifestações

particulares. O “feudo”, ou domínio, era propriedade de um “senhor”, ou seja, um

membro da nobreza cavalheiresca feudal, do baronato feudal. Esse domínio era

constituído pela dominação pessoal estabelecida em cima das comunidades camponesas

residentes em seu território, reconhecido por meio das teias flutuantes de alianças e

hierarquias políticas do poder feudal. No interior do seu domínio o senhor tinha um direito

de jurisdição e aplicação da lei, direito esse que variava e flutuava em razão da dinâmica

de conflitos gerado contra ele pelas próprias comunidades camponesas. Mas acima de

tudo esse domínio estabelecia uma série de direitos econômicos, fundamentalmente

tributação de todo o produto camponês, o trabalho compulsório nas terras do senhor, além

do trabalho em obras “públicas”. Esse poder de tributação e domínio do tempo de trabalho

da classe camponesa (que incluía fundamental elemento artesão) constituía o sustentáculo

básico da classe senhorial feudal em suas diferentes manifestações. Os reis feudais, em


grande medida, eram senhores feudais de grande porte, em permanente tensão com a

ampla e dispersa classe senhorial.

A fase de expansão maior do sistema feudal, entre os anos 950-1300, acabou

resultando em aumento populacional e expansão geográfica, uma lenta reintrodução da

economia monetária e a expansão mais centralizada de uns poucos dos muitos reinos

feudais, entre eles notavelmente os reinos da França, Inglaterra, Portugal, Castela e depois

Espanha. Também cresceram as cidades e o comércio, ainda dominado nessa fase pelas

cidades italianas. Mas a estrutura básica da relação de servidão e a centralidade

camponesa continuaram como os elementos estruturais da sociedade feudal até o período

da sua grande crise e a lenta transição para outros modelos sociais, políticos e

econômicos. Aliás, na maior parte da Europa, a maioria camponesa persistiria até o

Século XX. Mas cabe observar aqui as características e eventos básicos do momento

posteriormente conhecido como a “grande crise” do sistema feudal. Chegando no início

do Século XIV com uma população substancialmente aumentada e uma pressão na

divisão das propriedades rurais, a Europa medieval era sacudida por contradições e por

conflitos cada vez mais abertos, embora deva-se notar que o conflito político e a guerra

eram elementos estruturais e constitutivos da estrutura do sistema feudal de poder. Em

meio à fomes e carestias periódicas surgiam também “heresias” religiosas que

questionavam a unidade da “cristandade ocidental” centrada na Igreja de Roma. Esse é o

cenário pintado na famosa obra de Umberto Eco, “O Nome da Rosa”, transformado em

premiado filme. Em meio a esse cenário cambaleante, aonde já haviam despontados

conflitos duradouros como a “Guerra dos Cem Anos” travada entre os Reinos da França

e da Inglaterra (iniciada em 1337), embarcou na Europa em 1346 a epidemia que ficaria

conhecida como a Peste Negra. Em poucos anos a peste destruiu grande parte da

população da Europa, se somando a essa calamidade a fome e a violência resultantes da


queda da sociedade europeia. No final do Século XIV a população era não mais do que

metade do que a que havia se iniciado o Século.

Nessa altura cabe algumas considerações sobre as particularidades do caso inglês

no contexto mais amplo do sistema feudal europeu. Um marco fundamental na história

medieval inglesa se deu no ano de 1066 com a conquista normanda liderada por William,

o Conquistador, em meio a uma disputa pelo controle do Reino da Inglaterra. O rei anglo-

saxão havia repelido uma invasão liderada pelo rei da Noruega. Aproveitando o momento

propício, William e seu exército normando lideraram a expedição invasora e foram

vitoriosos na Batalha de Hastings. Os normandos eram um grupo de ex-vikings que

haviam se estabelecido na costa do Canal da Mancha na França no início do Século X, se

assimilando à sociedade feudal francesa e sendo importantes jogadores em seu meio

político. Com a invasão William restabeleceu pelo alto a distribuição de terras e domínios

e a estrutura política do reino inglês, criando uma relação muito mais centralizada entre

o reino e o baronato feudal, mas uma relação que acabaria se transformando numa

duradoura parceria política, uma divisão do poder do Estado entre o Rei a Aristocracia,

que acabaria estabelecendo ainda no Século XII o parlamento que dura até os dias de hoje.

O maior sinal de que esse modelo mais centralizado de poder estatal não implicava numa

supremacia da coroa sobre à nobreza foi dado pela Magna Carta de 1215, documento que

representa uma petição dos nobres contra poderes arbitrários da coroa, como a declaração

de guerra e o estabelecimento de novos impostos, sem a aprovação da nobreza

representada no parlamento. Esse documento exerceu profunda influência na prática e no

imaginário político inglês nos séculos posteriores, sendo invocado durante todas as crises

políticas que o reino atravessaria. O elemento principal a notar é que o Reino da

Inglaterra, quando confrontado com o terrível peso da Peste Negra e da crise que a

sucedeu, era caracterizado por uma parceria entre Coroa e Nobreza que era incomum no
resto do mundo feudal, uma parceria que conferia ao Estado e às classes dominantes

inglesas uma unidade pouco encontrada alhures, condição essa que moldou as trajetórias

seguidas pela sociedade inglesa na sua rota para além do feudalismo.

Uma comparação com a trajetória francesa nos ajuda a compreender essas

especificidades inglesas e a particularidade do caminho que levou à Inglaterra na direção

do capitalismo. A França era muito mais central para o sistema político feudal do que a

Inglaterra ou a Grã-Bretanha jamais foram. A França era um gigante demográfico nesse

período, com uma população alcançando 20 milhões de habitantes no seu auge medieval,

contra um teto máximo de apenas 3 milhões para a Inglaterra (só por comparação, as

populações atuais da França e da Inglaterra são de 65 e 55 milhões, respectivamente; a

Inglaterra, claro, faz parte do Reino Unido, desde sempre absolutamente hegemonizado

por ela). Nenhum outro lugar forneceu exemplo mais puro do modelo de fragmentação

feudal, com uma ferrenha competição no interior da classe senhorial, e uma tênue posição

da coroa francesa situada em Paris, a partir da sua base na região da Ilê de France. A Crise

da Peste Negra e a Guerra dos Cem Anos travada contra as pretensões do rei da Inglaterra

no território continental, apesar dos seus defeitos devastadores no conjunto da estrutura

social, forneceu um impulso para uma dinâmica de fortalecimento relativo da coroa

francesa frente ao conjunto da classe senhorial, e a partir do Século XV se inicia a

trajetória de centralização política e expansão territorial que caracterizaria a construção

do Estado Absolutista na França.

Nesse momento, devemos chamar atenção para uma consequência comum da

grande crise feudal tanto na Inglaterra quanto na França, assim como em outras regiões

da Europa: o desastre social e econômico, associados com a enorme perda populacional,

gerou um maior espírito de luta e rebelião entre os camponeses sobreviventes. Ao mesmo

tempo, a escassez de população trabalhadora melhorava a posição relativa do campesinato


na sua luta contra a classe senhorial. O resultado dessas lutas foi a eventual abolição da

servidão camponesa tanto na Inglaterra quanto na França, sinalizando o colapso do

modelo feudal e a abertura para a ascensão de novas estruturas sociais, políticas e

econômicas. Na trajetória trilhada pela França o resultado da abolição da servidão foi a

formação de uma imensa classe de pequenos proprietários rurais livres, agora explorados

não mais pelo domínio senhorial feudal e sim pela estrutura tributária e fiscal do enorme

Estado central que se configurava. O projeto de centralização do absolutismo enfrentava

um enorme obstáculo, a saber, a própria fragmentação que era característica central do

sistema feudal. A coroa se colocou numa luta ferrenha contra os poderes regionais e locais

de uma numerosa classe de nobres e magistrados, que reivindicavam divisões

estabelecidas do poder político. Essa luta conheceu uma fase crítica durante as Guerras

Religiosas da segunda metade do Século XVI, que colocaram o rei católico contra

senhores regionais e locais que haviam se convertido ao protestantismo e o usado como

plataforma político-religiosa para as suas reivindicações de autonomia. Essas lutas

geraram uma tradição de pensamento político huguenote (nome dado aos protestantes

franceses) que defendia o direito de resistência contra o poder ilegítimo (particularmente

do rei). Os autores dessa perspectivas, conhecidos coletivamente como monarcômacos,

consideravam que os portadores desse direito de resistência eram magistrados, ou seja,

portadores de poder político, que tinham direito de se opor ao rei em nome de poderes

políticos há muito estabelecidos. Nesse mesmo período Jean Bodin, um dos pensadores

políticos centrais do período, marcou época ao elaborar o conceito de soberania a fim de

defender a pretensão de poder exclusivo do rei católico da França. Ele argumentou que

todos os poderes parciais eram dependentes de um poder geral capaz de manter em

harmonia os demais poderes, e que esses derivavam a sua própria posição da soberania

central que se fazia assim primordial. O debate político francês no contexto da expansão
absolutista era então um debate sobre os respectivos alcances da jurisdição política,

colocando as pretensões absolutas do rei e seus numerosos aliados contra magistrados e

nobres recalcitrantes. Tudo isso no contexto da predominância populacional absoluta da

classe de camponeses marcada pela pequena propriedade rural, estrutura essa que

sobreviveria ao próprio regime monárquico, alcançando o Século XX.

Agora voltemos para a Inglaterra. No contexto da parceria política entre coroa e

nobreza estabelecido durante a Idade Média, os resultados das lutas camponesas,

eventualmente vitoriosas, contra a servidão foram bastante distintos daqueles que

descrevemos na França. Ao invés de resultar numa luta entre poder central e poderes

regionais pelo tributo de uma classe camponesa com propriedade própria, a classe

dominante inglesa procurou transformar os seus títulos de propriedade, antes

condicionados por uma série de restrições, numa nova forma de propriedade privada

exclusiva. Deve-se notar o caráter condicional da propriedade feudal: em primeiro lugar,

os camponeses tinham um direito absoluto a sua propriedade comum, não podendo ser

expulsos. Pelo contrário, o problema era a sua mobilidade, sujeita à jurisdição do senhor.

A propriedade do senhor sobre os seus domínios era então em grande parte “formal” e

nominal. Os seus direitos de domínio eram antes um conjunto de direitos políticos

impostos à comunidades camponesas fixas na terra. A terra não podia ser vendida, os

camponeses não podiam ser expulsos. Trata-se de uma concepção de propriedade, que

podemos chamar de propriedade política, bastante distinta daquela que impera no atual

mundo capitalista. Na Inglaterra, com a dissolução das obrigações feudais, a classe

senhorial lutou justamente para estabelecer uma tal concepção de propriedade, na qual a

propriedade se dava sobre o território, no interior do qual prevalecia de forma absoluta a

vontade do seu proprietário, de usar e até de abusar da sua propriedade, como colocaria

Locke no final do Século XVII. Uma enorme concentração da propriedade fundiária se


seguiu ao fim da servidão na Inglaterra, com os grandes proprietários procurando novos

usos econômicos e lucrativos para as suas terras. Na mesma medida a classe camponesa

inglesa sofreu um ataque às suas propriedades tradicionais e ao seus direitos comuns de

uso sobre a terra. Já no início do Século XVI surgia uma ampla classe de trabalhadores

expulsos da terra, forçados à migração urbana e à mendicância pelo processo de

concentração fundiária. Uma onda de políticas que ficaram conhecidas como os

“cercamentos” representaram um ataque generalizado e de longuíssima duração contra a

posição dos camponeses agora “livres”. Muitos camponeses se tornariam trabalhadores

assalariados ou semi-assalariados, enquanto os grandes barões rurais, sucessores dos

antigos senhores feudais, alugavam suas propriedades para fazendeiros arrendatários, que

por sua vez recontratavam trabalhadores rurais desapossados, num contexto de produção

voltada para o mercado e o lucro. Eram os primeiros passos do capitalismo agrário na

Inglaterra.

Essa situação gerou um amplo comentário social na Inglaterra da época, que inclui

o famoso trabalho “A Utopia” do filósofo e político Thomas More, onde ele escreveu

uma famosa passagem descrevendo o processo pelo qual “carneiros devoram homens”,

descrevendo o processo de concentração de terra para a criação de ovelhas e carneiros,

voltados principalmente para a lucrativa indústria de extração e manufatura de lã, na qual

a Inglaterra do Século XVI despontava. O novo tipo de pobreza gerado por esse processo

levou eventualmente à formação da primeira “Lei dos Pobres” na Inglaterra em 1601. A

unidade da classe dominante inglesa prosseguiu nesse período, que incluiu o famoso

reinado de Henrique VIII, responsável por ainda maiores passos na unificação e

fortalecimento do Estado inglês, especialmente a sua criação da Igreja Anglicana em meio

à Reforma Protestante, estabelecendo dessa forma a completa independência do Reino da

Inglaterra frente à Igreja de Roma e seus campeões seculares (principalmente França e


Espanha), além de promover uma impressionante rodada de redistribuição e concentração

da terra em propriedade da Igreja. Esse ato brusco de nacionalização religiosa gerou

também a semente de conflitos que perdurariam na Inglaterra pelo próximo século e meio.

O seu sucessor, o jovem e breve Eduardo IV, concedeu à Igreja reformada um caráter

decididamente protestante, abolindo o celibato dos sacerdotes. Essas medidas foram

revertidas por sua irmã e sucessora, Maria I, que, católica, procurou reverter a reforma do

seu pai, gerando enormes tensões e uma brutal repressão. Somente sua morte e sucessão

por outra filha de Henrique, Elizabete I, que retornou o caráter protestante da nova Igreja

Anglicana, apaziguou os conflitos. Elizabete teve um longo reinado (1558-1603), em

meio ao qual a Inglaterra se tornou uma potência marítima e lançou seus primeiros passos

rumos à política colonial inaugurada há muito pelos seus rivais continentais.

Durante esse período um novo tipo de concepção de sociedade despontou na

Inglaterra. Essa concepção era fruto de uma nova ordem pós-feudal única, marcada pela

perda da importância de tradicionais identidades e filiações corporativas, uma ordem

marcada cada vez mais pela lógica “pragmática” do mercado, num contexto de cidadãos

“livres”, ainda que sem direitos políticos positivos. Essa nova realidade resultou numa

nova concepção da política centrada na ideia do indivíduo, e da sociedade como uma

multidão ou coleção de indivíduos. Sir Thomas Smith, então embaixador da Rainha

Elizabete na França, descreveu, num tratado sobre a política inglesa chamado “De

Republica Anglorum”, uma “sociedade civil” ou commonwealth como “uma sociedade

ou ação comum de uma multidão de homens livres reunidos e unidos por acordos comuns

e regras entre si, para a sua preservação na paz assim como na guerra”. Era um tipo de

definição bastante singular no contexto da história da teoria política, com a sua ênfase no

indivíduo como o produtor, por assim dizer, da sociedade. Desde Aristóteles era

simplesmente suposto por todos, e com boas razões, que o ser humano era na sua essência
um animal político. Ainda que a formulação precoce de Smith não implicasse num ataque

à posição aristotélica, o pressuposto da primazia ontológica do indivíduo em relação à

sociedade que ela implica apontava para uma nova direção. No mesmo período outro

teórico político, o bispo John Ponet, elaborou uma teoria do direito individual de

resistência frente a um governo injusto ou ineficaz. Ponet argumentava que o Estado era

uma associação de homens livres, e que possuía uma série de finalidades claras de

manutenção do bem-estar, da liberdade e da paz. A transgressão a esses objetivos

justificava a resistência política por parte de homens livres. Essa concepção radical de

Estado e cidadão, concebido como um indivíduo e não, como na França, como uma série

de entidades corporativas, implicava numa nova concepção de direito natural e político

dos indivíduos com enorme potencial e repercussões.

A Rainha Elizabete morreu em 1603 sem deixar herdeiros. Seguindo a complexa

lógica da sucessão dinástica, seu primo distante, Jaime IV, Rei da Escócia, assumiu o

trono, tornando-se o rei Jaime I da Inglaterra. A Inglaterra assistiu assim a troca de casa

real, da linhagem Tudor para a nova linhagem Stuart. Destoando da cultura política

dominante na Inglaterra, que santificava a doutrina da “constituição mista” simbólica da

união de coroa e nobreza estabelecida há muito na Inglaterra, com a partilha de poder

entre Coroa e Parlamento, o novo rei tinha simpatias absolutistas. Ele havia até mesmo

escrito um tratado político no qual defendeu a teoria do direito divino dos reis, uma teoria

geralmente acompanhada por uma dilatada compreensão do alcance do poder real.

Contudo, o experiente rei da Escócia, agora plenamente centrado na sua nova posição na

mais poderosa e rica Inglaterra, contornou possíveis problemas e governou com eficácia

até o fim da sua vida, em 1625. Durante seu reino uma série de conflitos potenciais, que

misturavam política com as ardentes questões religiosas, permaneceram latentes. Após a

repressão aos católicos que se seguiu à rebelião no início do seu reinado, Jaime contornou
as profundas contradições que haviam surgido no interior do campo protestante,

principalmente entre a Igreja Anglicana, os puritanos e os presbiterianos de origem

escocesa.

Esses conflitos, contudo, vieram imediatamente à tona após a ascensão de seu

filho, Carlos I, ao trono da Inglaterra. Carlos não apenas tinha simpatias absolutistas como

o pai, mas entrou rapidamente em conflito com o Parlamento, perseguindo e prendendo

importantes parlamentares e passando a governar de modo mais plenamente pessoal. Ele

também gerava polêmica por sua esposa católica e presumida simpatia pelo então

detestado “papismo”, além de outras controvérsias religiosas no interior do campo

protestante (ele era oficialmente anglicano como o pai Jaime). A partir de 1629 Carlos

iniciou uma longa sequência de anos sem a convocação do Parlamento, quebrando com

uma secular tradição e gerando um clima de rebelião aberta no interior das classes

proprietárias inglesas. Com a estrutura sócio-econômica única da Inglaterra cada vez mais

característica de uma dinâmica capitalista, a classe proprietária não tinha nenhum

interesse na imposição de um reinado nos moldes absolutistas. A “constituição mista”

(formulação antiga tomada de empréstimo de Aristóteles e Cícero), com a bem-

estabelecida parceria entre rei e a classe proprietária representada no Parlamento, era de

interesse vital de uma classe cada vez mais orientada por imperativos de produtividade e

lucro. Com crescente impopularidade e contestação Carlos atravessou a década de 1630,

até que em 1640 ele não segurou a pressão e convocou novamente o Parlamento. Os

parlamentares reunidos não desperdiçaram tempo se organizando para a resistência aberta

às pretensões de Carlos, publicando uma famosa Petição do Direito, prendendo e

processando importantes figuras aliadas de Carlos, e o exortando para reconhecer as

limitações da sua posição. O Rei dispensou furiosamente as críticas, reunindo forças para

reprimi-lo. A dissolução do Parlamento iniciou o período da Guerra Civil Inglesa, embora


as hostilidades armadas só tenham se intensificado quando o parlamento novamente se

reuniu em 1642, agora com uma disposição ainda mais militante, organizando a

resistência armada contra as forças reais. Nesse meio tempo as forças parlamentares

tomaram uma direção que teria importantes consequências do ponto vista político e

teórico: eles fizeram um apelo direto à “multidão” de homens comuns, particularmente à

população de Londres, então já uma metrópole enorme, e passaram a organizar a

população comum na luta armada contra o rei. Esse apelo “populista” das forças

parlamentares gerou enorme controvérsia no interior da classe proprietária. Muitos

temiam as consequências de tal tipo de apelo popular do ponto de vista da estrutura de

poder existente na sociedade inglesa. Que tipo de reivindicação e questionamento não

poderiam surgir de tal participação popular? Muitos parlamentares se voltaram para o

lado realista à luz desses questionamentos durante os anos de Guerra Civil.

Os temores despertados pela participação popular logo se revelaram realistas.

Além do entusiasmo da participação popular na causa parlamentarista, surgiram

escritores que passaram a elaborar uma inovadora teoria crítica da política a partir da

experiência da multidão, traduzindo os sentimento da multidão popular numa série de

denúncias e reivindicações. Esses autores, jornalistas e panfleteiros, assim como os seus

numerosos simpatizantes nas fileiras populares, ficaram conhecidos como os Levellers,

ou Niveladores. Eram personagens como o jornalista John Lilburne e o Coronel

Rainborough, que estabeleceram premissas e questionamentos que fizeram tremer as

estruturas sociais inglesas e seus pressupostos políticos. Com o acirramento da guerra, o

principal líder parlamentarista, Oliver Cromwell, mobilizou um novo tipo de exército de

base popular, o New Model Army, o novo exército modelo. Esse exército definiu a vitória

militar parlamentarista, mas também se tornou a principal base organizacional do novo

radicalismo inspirado pelos Levellers.


Vale a pena descrever as principais ideais dos niveladores. Além da defesa

incondicional da liberdade de consciência e da separação entre Estado e religião,

refletindo as suas filiações predominantemente puritanas, uma posição também inovadora

e profundamente influente no futuro, eles definiram a ideia de governo por consentimento

de uma maneira marcante e inovadora. Partindo de um radical pressuposto da igualdade

humana e do direito universal à vida e à liberdade, os niveladores defenderam que um

governo baseado no consentimento deveria envolver a participação política universal de

todos os homens livres (aliás, homens ingleses livres, free englishmen, como falavam).

No contexto de um sistema parlamentarista, isso significava que o direito de voto deveria

ser estendido a todos os homens (a questão das mulheres estava além da imaginação

inglesa desse período até no campo simbólico das aspirações). E não só isso, mas esse

voto deveria ser exercido regularmente, como forma de assegurar a verdadeira

representatividade dos representantes. Tal defesa premonitória da democracia

representativa foi um duro choque para as elites inglesas da época, incluindo as elites

parlamentaristas. Os niveladores haviam desenvolvido e proposto uma teoria abrangente

dos direitos políticos, como inerentes a todos os ingleses (essa discussão se travava no

campo mais restrito da noção do direito dos englishmen, que remetia de maneira

imaginária a uma longa tradição).

O nível de agitação que tomara o Novo Exército Modelo após a prisão do Rei

Carlos em 1647 acabou chamando a atenção das lideranças oligarcas do campo

parlamentarista. O líder Cromwell organizou um debate das lideranças com os

representantes populares do Exército, no bairro londrino de Putney, em 1647. Antes do

debate os líderes niveladores fizeram uma jogada de tirar o fôlego, propondo as bases de

uma futura constituição com o lançamento do seu Acordo Para o Povo, prevendo um

sufrágio masculino universal. Para a sorte da posteridade, uma transcrição foi feita desses
impressionantes debates. Com o próprio Cromwell mediando o debate, os representantes

populares enfrentaram os líderes parlamentares. Os principais debatedores foram o

Coronel Rainborough do lado das propostas niveladoras e o genro de Cromwell e um dos

principais líderes parlamentaristas, Henry Ireton. Após dias de debate, Rainborough fez

um pronunciamento que resumia de forma marcante a posição do campo popular: “O

homem mais pobre na Inglaterra tem uma vida a viver, assim como o maior; e então

verdadeiramente, senhor, eu penso que é claro, que todo homem que deva viver sob um

governo deva antes pelo seu próprio consentimento se colocar sob esse governo; e eu

realmente penso que o mais pobre homem na Inglaterra não está de forma alguma preso

num sentido estrito para aquele governo que ele não tenha tido a voz para colocar a si

mesmo sob”. Eram palavras fortes. Colocava-se em questão todas as formas oligárquicas

tradicionais de legitimação política, todas as formas não submetidas ao consenso ativo

dos governados. Além de enfatizar, nitidamente, o caráter “natural” e universal de tal

direito. Henry Ireton ficou desconcertado. Argumentou que tal concepção implicava num

direito “pelo mero ato de respirar”. O que era de fato a implicação. Além de contra-

argumentar invocando o exemplo do estrangeiro, Ireton ressaltou a defesa tradicional do

sufrágio censitário prevalecente na Inglaterra: apenas homens com “interesses

permanentes” na nação, ou seja, a classe de proprietários, possuíam uma estabilidade de

vontade que os tornava os legítimos representantes da nação inglesa. Conferir direitos

para aqueles “que um dia estavam aqui, outro ali” significava ir contra toda a tradição

estabelecida por séculos de costume. Ireton preferiu uma defesa da desigualdade social

com base nas convenções e no precedente histórico do que encarar o argumento dos

niveladores no campo do direito natural com o qual estes haviam defendido o princípio

democrático.
Desenvolvimentos posteriores enfraqueceram o momentum nivelador. A fuga do

Rei de seu confinamento reacendeu a guerra, resultando em nova vitória parlamentarista

liderada por Cromwell, e na eventual execução do Rei, raríssimo momento na história

inglesa. É interessante notar que nem os niveladores eram a princípio contrários à

existência da monarquia. Foi a intransigência de Carlos que levou os líderes

parlamentaristas ao regicídio. Nesse meio tempo conflitos no interior do campo

parlamentarista levou à repressão dos niveladores e ao desmantelamento do Novo

Exército Modelo. Cromwell se consolidou no topo de um sistema parlamentarista restrito

a sua estrutura oligárquica tradicional, com o “Lorde Protetor” exercendo o poder

executivo de modo centralizado. Foi nesse contexto que Thomas Hobbes (1588-1679)

publicou a sua maior obra, O Leviatã (1651). Hobbes, um dos mais celebrados pensadores

do período na atualidade, nem tanto pela substância dos seus argumentos quanto pela

engenhosidade do seu raciocínio, era uma figura complexa e destacada. Nascido na baixa

elite, passou a sua vida em serviço aos reis Stuart. Mas, além de tutor e servidor público,

Hobbes era uma poderosa mente filosófica, uma figura que conheceu pessoalmente

Galileu Galilei, foi secretário do célebre filósofo inglês Francis Bacon na juventude, e

trocou uma importante correspondência com o legendário filósofo francês René

Descartes. Seus interesses cobriam um vasto campo dentro da filosofia e da ciência

nascente. Hobbes foi um dos primeiros autores a usar o termo ciência na sua acepção

atual, diferentemente até do posterior físico Isaac Newton, que ainda falava de “filosofia

natural”. No campo político, Hobbes sempre foi um adepto dos reis Stuart e das suas

simpatias absolutistas. O eixo central da obra política de Hobbes é justamente a defesa da

ideia de uma soberania absoluta, embora de uma forma que foi mudando e se

desenvolvendo com o tempo, culminando na formulação do Leviatã.


Hobbes iniciou a sua teoria política em dois trabalhos, De Cive (1640) e Os

Elemento da Lei (1642), escritos em resposta aos conflitos imediatos: A convocação do

Parlamento em 1640 e a sua reconvocação em 1642, que culminou na publicação da

Grand Remonstrance pelo Parlamento, um conjunto duro de exigências feitas ao rei

Carlos que detonou a luta armada entre o campo realista e o campo parlamentarista.

Nesses trabalhos Hobbes desenvolveu de forma pioneira os argumentos mais tarde

apresentados no Leviatã, embora nesse momento a sua preocupação política ainda estava

mais voltada para a negação das pretensões do Parlamento do que a negação mais

generalizada das pretensões políticas surgidas em meio à Guerra Civil, que ele empreende

no Leviatã. Esses argumentos partiam das premissas particulares da concepção social e

política que vinha sendo gestada desde o Século XVI, particularmente a centralidade do

indivíduo e a concepção de sociedade como produto da reunião desses indivíduos,

combinada com a adoção de premissas radicais que vinham sendo elaboradas pelas forças

populares e que haviam ganhado grande força durante a guerra civil, como comentamos

acima. Deve-se notar que enquanto o teórico do Século XVI Thomas Smith havia

apresentado uma visão inovadora da sociedade a partir dos indivíduos e suas associações

e contratos mútuos, esse autor e seus contemporâneos não conceberam a sua visão como

qualquer tipo de ruptura ou revolução conceitual. Hobbes, um pensador muito mais

sofisticado e profundo conhecedor da história da filosofia, apresentou essa concepção de

uma forma muito mais explícita e militante: tratava-se de uma superação da equivocada

visão de mundo legada por Aristóteles e reproduzida por milênios, a ideia do homem

como animal político e social. Ao invés de um organismo social que estabelecera desde

sempre a base para a vida política, Hobbes afirma que o homem é na sua essência mais

básica um ser egoísta e individualista. Na sua natureza mais básica o homem é um ser
anti-social. A reunião dos homens em sociedade é um processo secundário e frágil,

embora absolutamente necessário.

O ponto de partida da teoria de Hobbes é o chamado estado de natureza. Nesse

estado, os homens são livres e iguais, além de racionais. Hobbes partia de premissas que

eram escandalosas para os conservadores do seu tempo, e ele conseguiu a façanha de ser

detestado por aliados e inimigos. Mas a sua formulação tinha uma série de objetivos

bastante claros. Vejamos. A igualdade dos homens significa que, no estado de natureza,

ninguém é superior ao ponto de se impor sobre os demais. Os homens são movidos pelos

seus interesses e pelo seu orgulho. A liberdade do estado de natureza significa a ausência

de leis e obstáculos capazes de frear os homens na busca dos seus interesses. Na ausência

de um poder soberano, os homens livres e iguais, cada qual buscando seus próprios

interesses e glória, acabam-se tornando inimigos. Ninguém está seguro. Resulta dessa

condição de igualdade e liberdade a famosa “guerra de todos contra todos” de Hobbes.

Na ausência de um poder capaz de segurá-los, os indivíduos são impelidos a uma

condição permanente de instabilidade e guerra. A realização conceitual e política de

Hobbes pode ser percebida: ele pegou as bandeiras da igualdade e da liberdade,

radicalizadas por correntes como os niveladores, e transformou essas bandeiras em causas

da miséria humana, uma inversão conceitual e valorativa impressionante. Nessa altura do

argumento entra novamente a questão da racionalidade. Ora, tal situação se configura

intolerável. Se pelo direito natural todos se lançam à guerra, a lei natural, derivada da

razão, afirma que todos devem se mobilizar pela busca da paz e pela superação da

condição precária do estado de natureza, onde a vida era “solitária, pobre, sórdida, brutal

e curta”. A lei natural é a lei da auto-preservação, visando garantir o primeiro de todos os

direitos, o direito à vida. Partindo dessa percepção que, enquanto natural, é comum a

todos os homens, estabelecia-se o maior imperativo político para os indivíduos livres,


iguais e racionais: o estabelecimento de um poder soberano capaz de garantir a paz e

preservar a vida.

O estabelecimento desse poder soberano se dava pelo livre consentimento de

todos os indivíduos por meio de um pacto, ou contrato, social. É esse movimento na teoria

de Hobbes que o fez ser considerado um dos fundadores da concepção contratualista.

Contudo, o "contrato" no caso de Hobbes tem uma função muito peculiar comparada às

posteriores teorias liberais que se arvorariam no conceito do papel generalizado do

contrato na construção da vida social. Para Hobbes esse pacto consiste no abandono ou

abdicação dos direitos naturais, com exceção feita ao direito à vida, em nome da

obediência à lei. Nessa concepção contratualista, direito e lei são contrapostos de forma

radical. Por meio do pacto que estabelece o poder soberano, os indivíduos contratantes

depositam a sua soberania na figura maior do soberano. O soberano, por sua vez, não é

considerado um participante do pacto, mas sim é visto como pairando acima dele. Não

existindo previamente ao contrato, mas sim sendo o produto dele, não pode ser

indevidamente cobrado por ele. Para Hobbes, o sucesso do poder soberano é dependente

de uma ampla liberdade e discricionariedade no seu uso: somente usando o seu poder

soberano de modo absoluto poderá ser ele bem-sucedido na tarefa de garantir a paz e

preservar as vidas. Desse modo, os súditos não podem reivindicar qualquer tipo de direito

de resistência, com uma ampla exceção que discutiremos em seguida. No contexto da sua

teoria do pacto social, Hobbes acrescenta um outro elemento que fortalece ainda mais a

sua defesa do poder absoluto: ele argumenta que, como o poder soberano foi estabelecido

pelo livre consentimento dos indivíduos, esses mesmos indivíduos, agora súditos do

poder soberano, são co-autores de qualquer ação tomada pelo soberano, tendo em vista

que ele age em nome do seu bem e é o seu procurador. Acusar o soberano de injustiça é

acusar a si mesmo de injustiça, o que para Hobbes era absurdo e logicamente falho.
Partindo da ampla discussão sobre o conceito de poder por meio do consentimento, que

havia levado à defesa do sufrágio universal e da igualdade política pelos Levellers,

chegávamos com Hobbes numa concepção na qual o poder soberano seria incapaz de

injustiça e seria automaticamente a manifestação ativa do consentimento popular!

Embora Hobbes tivesse sido desde sempre um partidário fiel do rei e tenha sido

um dos primeiros exilados realistas na França, fugindo da Inglaterra em 1640 logo após

a convocação do Parlamento, e apesar de ter preferências explícitas pelo poder real e,

particularmente, o poder de um único indivíduo, como soberano, é importante notar que

Hobbes sempre ressalta que o soberano pode ser composto por um único indivíduo ou

por uma assembleia de homens. Desse modo ele procurava também fazer as pazes

políticas com o governo inglês liderado por Oliver Cromwell, que em 1652 assumia o

poder pessoal com o título de “Lorde Protetor”, e que ele exerceria até sua morte em 1660.

De fato, Hobbes voltaria de seu exílio em 1652, sem sofrer qualquer tipo de perseguição.

Também é fundamental notar que a teoria da origem do poder soberano em Hobbes não

contém qualquer elemento teológico, se apresentando como teoria “científica” que partia

dos primeiros princípios da constituição do indivíduo até à formação do poder soberano

ou Estado. Contra a tradição escrita de inspiração aristotélica Hobbes exortava o leitor

para olhar para a própria consciência como meio de confirmação da sua lógica. Era uma

ideia semelhante ao argumento de Descartes que passa da dúvida radical para o

reconhecimento da certeza da existência, assim como um ceticismo em relação à tradição

também manifestado pelo mentor do jovem Hobbes, Francis Bacon. A defesa mais

tradicional do poder real ainda se manifestava na forma da doutrina dos direito divino dos

reis, uma doutrina elaborada pelo próprio rei Jaime I e pelo contemporâneo de Hobbes,

Robert Filmer. A defesa do poder absoluto por Hobbes, embora certamente “extrema”,

era também feita a partir de princípios exclusivamente secularistas. Boa parte do Leviatã
é dedicado a uma discussão teológica que acaba por afirmar a primazia absoluta do poder

secular em relação ao poder espiritual.

Outros aspectos importantes do Leviatã devem ser analisados a fim de que se

ressalte a peculiaridade da contribuição do autor. Mencionamos que havia uma exceção

à ideia de Hobbes de que não havia direito de defesa legítimo frente ao soberano. Como

a base fundamental do pacto social e do resultante poder soberano era a preservação da

vida, a ameaça da vida do súdito por parte do soberano resultava na dissolução do pacto

e na legitimidade da reação por parte do súdito. Ninguém era obrigado a abrir mão da

própria vida. Esse direito era estritamente individual e particular, mas um conjunto de

indivíduos sofrendo a mesma ameaça poderiam resistir conjuntamente a ela. Nessas

circunstâncias, o estado de natureza havia se reestabelecido, e os indivíduos resgatavam

a liberdade de lutar por suas vidas. O mesmo poderia se dar frente ao alistamento militar,

por exemplo. A pequena exceção de Hobbes acaba se transformando numa enorme

porteira, dependente da compreensão que se dê ao “direito de vida”. Em tese, os famintos

e desesperados não poderiam reivindicar o mesmo direito? A tentativa de Hobbes de criar

uma defesa estritamente fechada, “matemática”, do poder absoluto acabava criando uma

enorme contradição. O liberal Locke, na sua defesa do Estado de Direito, negaria esse

mesmo tipo de brecha, considerando que o indivíduo que se volta contra a lei se

transforma numa “fera selvagem”, devendo ser abatida por todos os cidadãos.

Outro aspecto marcante da formulação de Hobbes era a sua teoria da propriedade.

A classe dominante inglesa era fundamentalmente uma classe de proprietários, cada vez

mais diretamente envolvidos com a organização da produção. A defesa da propriedade

era justamente a maior motivação das elites parlamentaristas na sua luta contra as

pretensões absolutistas do rei Carlos I. Para Hobbes, contudo, o direito de propriedade

deve ser considerado um direito relativo e secundário. Toda propriedade é função da


existência do poder soberano. No estado de natureza não existia nenhuma garantia da

propriedade e nenhuma estabilidade na sua posse. Toda a divisão de propriedade depende

da existência prévia do poder soberano, que a distribuiu e pode redistribuir de acordo com

a necessidade de garantir a paz e preservar as vidas. Com essa teoria Hobbes negava os

valores e os interesses mais caros à classe dominante inglesa, e demonstrava a distância

de sua teoria do poder soberano da ascensão capitalista, “burguesa”, que era a

característica fundamental do desenvolvimento histórico da Inglaterra pós-feudal. A sua

teoria, combinando os elementos conceituais mais modernos com a defesa de um modelo

político inútil para a sua própria sociedade, garantiu a caracterização de Hobbes como um

“pensador maldito”, como havia sido seu antecessor florentino Maquiavel, apesar das

enormes diferenças do arcabouço teórico e das simpatias políticas desses dois clássicos

do pensamento político da baixa modernidade.

A defesa incondicional da propriedade privada seria uma das características mais

marcantes do pensamento de John Locke (1632-1704), o outro grande pensador político

canônico produzido pela Inglaterra do Século XVII. Assim como Hobbes, Locke foi um

pensador com uma vasta gama de interesses e objetos de reflexão. Nascido de uma família

da baixa aristocracia com interesses comerciais, Locke teve a melhor educação existente

na sua época, ingressando na Universidade de Oxford, onde se dedicou a uma ampla gama

de temas, se transformando em palestrante de filosofia e depois se formando em medicina.

Formou amizade com importantes figuras do pensamento inglês da época, como Robert

Boyle, pioneiro da Química moderna, e Thomas Sydenham, figura de vanguarda da nova

medicina empírica baseada no estudo aprofundado da anatomia humana. Mais tarde Isaac

Newton, o revolucionário físico, se tornaria seu amigo. Foi enquanto médico que se

tornou amigo e parceiro de Anthony Ashley Cooper, o Conde de Shaftesbury, uma das

mais importantes figuras políticas da Inglaterra e adepto das ideias parlamentaristas. A


partir da sua associação com Shaftesbury Locke exerceu uma série de funções públicas e

se envolveu profundamente nas disputas políticas da Inglaterra da sua época.

Depois da morte de Oliver Cromwell em 1660 a classe dominante inglesa, ainda

traumatizada pelo impacto das forças populares desencadeadas pela guerra entre rei e

parlamento, optou pela restauração da monarquia Stuart, entronando o filho do executado

rei Carlos I, Carlos II, que reinaria até 1685. As forças parlamentaristas inglesas,

incluindo seus elementos mais radicais como os Levellers, nunca foram decididamente

“republicanas”. A existência da monarquia não era vista como um mal em si, mas sim a

pretensão usurpadora do poder absoluto por parte do rei. O estabelecimento de uma

república de facto sob o governo do “Lorde Protetor” Cromwell não foi acompanhada por

uma formalização constitucional e nem por novas teorias republicanas. Essa tradição

também favoreceu a restauração da monarquia como um ato quase inercial, apesar dos

enormes conflitos das décadas anteriores. Seja como for, a restauração da dinastia Stuart

acabou reacendendo os mesmos conflitos que haviam levado à guerra civil. Forças

opositoras se articularam novamente no Parlamento, levando a uma divisão entre uma ala

liberal (os “whigs”) e outra conservadora (os “tories”) que perduraria por longo tempo

(até hoje os conservadores ingleses são chamados de “tories”). O Conde de Shaftesbury

despontou como um dos principais líderes do campo dos whigs. O conflito com o rei se

acirrou no final da década de 1670, culminando com a chamada “Crise de Exclusão”

gerada pelas polêmicas acerca da sucessão real. Durante essa crise Shaftesbury foi preso

e depois exilado para a Holanda, com Locke o acompanhando no exílio. O Conde

morreria no exílio em 1683. Foi durante esse período de crise que Locke escreveu a sua

principal obra política, Os Dois Tratados Sobre o Governo Civil, assim como outros

importantes trabalhos como a Carta Sobre a Tolerância. Esses trabalhos só seriam

publicados depois do retorno de Locke do exílio em 1689, em conjunto com a vitoriosa


Revolução Gloriosa. A tal revolução consistiu num golpe parlamentar que depôs a casa

real dos Stuart e a substitui pela casa Orange, na figura do Rei William de Orange,

importada da Holanda. Ao invés de uma prolongada luta entre rei e parlamento, dessa vez

o conflito foi resolvido por uma troca de reis. Essa substituição foi o início de uma longa

era de estabilidade política no interior da classe dominante inglesa, com o pleno

reestabelecimento da parceria da “Coroa no Parlamento”, como afirmava uma famosa

fórmula política inglesa, com a hegemonia tendendo agora cada vez mais para o próprio

Parlamento, apesar de um papel da coroa que ultrapassa bastante o status meramente

simbólica que a coroa preserva no Reino Unido nos dias de hoje.

As teorias políticas de Locke podem ser entendidas como uma grande defesa desse

modelo político anti-absolutista que acabou prevalecendo na Inglaterra, assim como uma

inovadora defesa do novo tipo de sociedade que estava se erguendo na Inglaterra e que

despontaria plenamente ao longo do Século XVIII, culminando com a Revolução

Industrial e com a ascensão imperial e colonial da Inglaterra. Além dos Dois Tratados que

discutiremos em seguida, Locke publicou nesse período outros textos fundamentais,

como a sua eloquente defesa da liberdade religiosa e da separação entre Estado e Igreja

na sua Carta Sobre a Tolerância, e o seu mais famoso trabalho filosófico, Ensaio Acerca

do Entendimento Humano, no qual defendeu a concepção empirista do conhecimento,

afirmando a primazia da experiência e dos sentidos na formação do conhecimento e

negando as ideias “inatistas” de conhecimento novamente popularizadas por René

Descartes (tais ideias remontam ao idealismo de Platão). Nesse denso e influente estudo,

Locke fez a famosa afirmação de que o ser humano nasce como tabula rasa, ou página

em branco, acumulando noções, ideia e conhecimento por meio do aprendizado e da

experiência. Essa concepção não apenas afirmava a prioridade do aprendizado na

formação humana, como também negava diferenças inatas, acabando por revelar
consequências igualitárias. Esse trabalho teria grande influência no Iluminismo que

caracterizaria boa parte do pensamento europeu no Século XVIII.

Voltemos agora para os Dois Tratados Sobre o Governo Civil. Escritos entre

1679-81 mas publicados em 1690, esse trabalho era inovador o suficiente para fazer

Locke negar a sua autoria até a sua morte (a autoria foi confirmada por testamento). Locke

e muitos outros adeptos do parlamento tinham dúvidas sobre a estabilidade do novo

governo, e talvez isso explique sua relutância em assumir a teoria da obra, que era um

ataque frontal às pretensões reais. No primeiro dos dois tratados Locke elabora uma

refutação do trabalho do teórico absolutista, já falecido, Robert Filmer. Filmer justificava

o poder absoluto dos reis com uma variação da doutrina do direito divino, estabelecendo

uma linhagem que ligava os reis atuais até Adão. Locke derrubou as pretensões dessa

peculiar teoria. É no segundo tratado que ele expõe as bases da sua própria concepção de

política. Locke adotou, sem fazer referência clara, o modelo de Hobbes que começava

com indivíduos livres no Estado de Natureza. Mas a apresentação e o uso que Locke fará

do estado de natureza é bastante distinto do de Hobbes. Hobbes pintou um estado de

natureza absolutamente pavoroso como condição para legitimar a sua defesa do poder

incondicional do soberano. O objetivo de Locke era o de defender um tipo estritamente

limitado de poder soberano, um tipo de configuração que corresponde ao que

chamaríamos de um Estado de Direito. Para Locke, o estado de natureza é caracterizado

por menos tensão do que o de Hobbes: homens livres, iguais e racionais compartilham a

natureza, dotados de um conhecimento racional das leis da natureza, que afirmam os

princípios de justiça a partir do ideal da reciprocidade, da ideia de “agir com os outros

como gostaria que agissem com você”. Esse é um estado de relativa harmonia, onde os

homens possuem os direitos naturais à liberdade e propriedade. A concepção de

propriedade de Locke difere radicalmente da de Hobbes. Para Locke todos os indivíduos


possuem uma propriedade um si mesmos, uma ideia tomada de empréstimo dos

niveladores. Todos os frutos do trabalho individual se tornam extensões de do próprio

indivíduo, ou seja, sua “propriedade”. A origem da propriedade é o trabalho e ela antecede

a existência da própria sociedade civil.

Contudo, acontece que o estado de natureza, afinal, não é tão idílico quanto

primeiro apresentado por Locke. Ele é repleto de “inconveniências”, a principal sendo a

ausência de um poder autônomo capaz de julgar as diferenças entre os indivíduos e aplicar

a lei natural. No estado de natureza todo homem é seu próprio juiz, sendo forçado a aplicar

a lei natural com as próprias mãos. Essa situação acaba por ser tornar, se não catastrófica

como em Hobbes, certamente também intolerável. Por meio do pacto social os indivíduos

reunidos concordam com o estabelecimento de um poder comum capaz de codificar e

aplicar as leis naturais e garantir os direitos naturais. Nesse pacto os indivíduos não abrem

mão de qualquer direito, a não ser o da aplicação pessoal da lei natural. Em radical

contraste com Hobbes o Estado Civil não significa a perda mas sim a garantia de direitos.

A função fundamental do estado é justamente o de garantia dos direitos naturais,

notavelmente o direito de propriedade. A lei nesse caso está fundamentada no direito

natural, e não radicalmente contraposta a ele como em Hobbes. Uma vez estabelecido o

Estado Civil os cidadãos podem decidir sobre a forma de governo. Locke não tem muito

a falar a esse respeito, mas é bastante explícito quanto à primazia do poder legislativo no

Estado Civil, apontando para a posição dominante do Parlamento. Locke também não

problematiza a questão do sufrágio. Ao que tudo indica, ele estava satisfeito com o

modelo censitário então prevalecente, que ganhava um reforço adicional com a teoria de

Locke que associava propriedade com mérito individual.

O Estado de Direito estabelece então uma série de limites para qualquer governo.

Qualquer poder arbitrário, exercido acima da lei e de seus representantes, é injusto e


suscita um direito de resistência e revolução por parte dos cidadãos. Dessa forma Locke

nega a legitimidade do poder absolutista e qualquer poder autocrático. A meta de Locke

é o poder coletivo e representativo da classe dos proprietários, um poder embasado nos

direitos de propriedade e colocado acima do papel de qualquer governo particular. Esse

modelo ideal descreveu bastante bem o funcionamento da hegemonia parlamentarista tal

como ela se deu a partir da Revolução Gloriosa. A teoria da propriedade em Locke

também apresenta outras inovações dignas de nota. Ele chamava atenção para a

importância do “melhoramento” produtivo: não bastava qualquer uso para a propriedade,

mas sim um uso que visasse uma utilização cada vez melhor e mais produtivas das

condições de produção. Locke usa esse argumento como justificativa para a colonização

inglesa da América do Norte em andamento desde o início do Século XVII: as populações

nativas poderiam ter a posse da terra, mas não eram capazes de dar a ela um uso produtivo

como os colonos ingleses. A (suposta) maior produtividade da agricultura dos colonos

servia como justificativa para a expulsão das populações nativas e para a consequente

colonização. Pode-se dizer que com Locke a mentalidade burguesa/capitalista em lento

florescimento na Inglaterra alcança um novo nível de amadurecimento. Temos um

verdadeiro pioneiro da tradição liberal que domina em grande o parte o pensamento

político e econômico até os dias atuais, apesar da grande contestação que essa ideologia

suscita e do seu provável colapso num futuro próximo.

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