Você está na página 1de 24

Texto-Aula – Capitalismo e Estado Moderno: A Era das Revoluções, Alta Modernidade,

Karl Marx e Max Weber

O final do Século XVIII concentrou uma série de mudanças notáveis que

convergiram para uma época de transformação que o historiador Eric Hobsbawn chamou

de “Era das Revoluções”. O iluminismo francês havia produzido, seja na vertente

materialista de Diderot e Holbach, seja na obra política de Rousseau, um conjunto de

concepções que apontavam para a necessidade de uma superação revolucionária da

realidade existente, marcada pela predominância do absolutismo com todos os seus

resquícios feudais, e para a potencialidade de um progresso humano antes inimaginável,

quando o ser humano alcançasse a liberdade e liberasse tal potencial. O iluminismo

francês foi um desenvolvimento e um desdobramento das tradições racionalistas que

surgiram na era moderna, estabelecendo essa tradição racionalista como uma nova visão

de mundo, capaz de superar a concepção tradicional herdada da era medieval. Esse

movimento intelectual, dotado de um grau de organização e propósito provavelmente

inéditos, e voltado para a crítica da ordem existente a partir de múltiplos (e por vezes

contraditórios) ângulos, acabou por antecipar uma das revoluções políticas mais

grandiosas e significativas de todos os tempos. Ao mesmo tempo em que a temperatura

política aumentava na França, do outro lado do Canal da Mancha o regime político que

herdou a Revolução Gloriosa passava por um conjunto não menos portentoso de

transformações, que aumentavam a influência que a Inglaterra já havia estabelecido a

partir do final do Século XVII, e que apontavam de maneira inegável que a Inglaterra

passava por um processo de desenvolvimento econômico e social realmente peculiar e

revolucionário. A Revolução Industrial começava a mostrar a sua cara, a partir de uma

longa preparação que envolveu uma febril política de concentração da propriedade

1
dinamizada pelo Parlamento ao longo de todo o Século XVIII. Com a Revolução Francesa

e a Revolução Industrial os contornos específicos do sistema ocidental, que marcaria a

modernidade e se espalharia por todo o mundo pela força das armas europeias, acabava

por tomar a forma que conhecemos e que, de modo geral, ainda marca firmemente a nossa

realidade atual.

Sobre a Revolução Francesa, detonada pela crise que se seguiu à convocação dos

Estados Gerais em 1788, pode-se dizer que ela estabeleceu as bases e o vocabulário para

a modernidade política propriamente dita. A crise política e fiscal que toma conta do

estado absolutista francês na segunda metade da década de 1780 expõe um modelo

político e social que havia sido impiedosamente criticado e rejeitado pelo movimento

iluminista. A convocação dos Estados Gerais, evitada pelos reis franceses desde 1614,

acabou por reforçar a percepção sobre a iniquidade e arcaísmo que predominavam no

sistema político francês. A divisão corporativa que concedia à nobreza e a Igreja reunidas

dois terços da representação na Assembleia, frente a um Terceiro Estado que representava

mais de 95% da população francesa, detonou o sentimento de revolta contra o sistema

estabelecido. Pontuado pela Queda da Bastilha em 14 de Julho de 1789 e pela revolta

camponesa que se seguiu a ela, o sistema francês foi complemente e rapidamente abalado.

Uma estrutura que parecia eterna de repente se mostrava demasiadamente frágil. Uma

sequência frenética de eventos políticos se seguiu, com a convocação de uma nova

Assembleia Nacional, a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem,

um ato simbólico que teve um impacto difícil de ser subestimado, a aprovação da

Constituição de 1791, a invasão estrangeira e proclamação da República em 1792,

resultando na eventual execução do Rei, a revolucionária Constituição de 1793 e o

governo jacobino do Comitê de Salvação Nacional, o período do Terror voltado contra a

antiga nobreza e o eventual golpe contra os jacobinos de Robespierre e seu Comitê,

2
resultando numa relativa normalização oligárquica da Revolução e na eventual ascensão

de Napoleão.

Em meio a esse período de impressionante turbulência se formaram alguns dos

conceitos fundamentais da política contemporânea, assim como da nossa concepção

social de forma mais geral. A Constituição Revolucionária de 1793, abolida antes de

poder ser executada, apontou o caminho para uma série de inovações revolucionárias:

partindo da concepção da soberania popular, primeiro estipulou o caráter eletivo e

temporário dos cargos públicos, aprovando um sistema de sufrágio universal masculino.

A escravidão foi imediatamente abolida, gerando efeitos imediatos nas colônias francesas

e detonando os primeiros passos da revolução no Haiti, no que se tornaria a maior

revolução escrava de todos os tempos, estabelecendo o que foi na época apenas o segundo

estado independente das Américas. Além de uma radical separação entre Estado e Igreja,

estabelecendo o princípio do caráter secular do Estado, outros princípios revolucionários

foram derivados da concepção da soberania popular: a ideia de que o Estado deveria

promover ativamente o bem-estar, a educação e a saúde dos seus cidadãos, em termos

mais gerais, a ideia de que o Estado deveria promover bens e serviços voltados para o

público do qual ele era a representação coletiva. Essa ideia, que veio junto com a comissão

de projetos nacionais de educação, de saúde, de promoção da ciência, acabaria por não

ser traduzida na prática; contudo, os princípios nela estabelecidos não seriam esquecidos

e formariam a base para o que podemos chamar da agenda política moderna, e seu

respectivo imaginário político. O matemático, filósofo e político Marquês de Condorcet

(1742-1794), um dos poucos representantes do iluminismo clássico a viver e pensar a

Revolução, pode ser tomado como um termômetro desse clima de inovação política.

Além de defender de forma inapelável a abolição da escravidão, defendendo a tese da

igualdade humana universal, deu um passo além e defendeu de forma eloquente os

3
direitos de cidadania das mulheres. Sendo a razão a base dos direitos humanos, não

existiam argumentos sólidos para excluir metade da humanidade do exercício dos direitos

recentemente declarados para os homens. O velho dogma da exclusão política das

mulheres era finalmente questionado, embora sem efeito prático contemporâneo. A

Revolução e a obra de Condorcet estimularam o trabalho pioneiro de Mary

Wollstonecraft, que em 1793 publica um trabalho intitulado Os Direitos das Mulheres, a

primeira grande defesa sistemática da emancipação das mulheres. Condorcet também

redigiu um programa nacional de educação, defendendo o acesso universal e gratuito dos

cidadãos a um sistema nacional de educação. Envolvido nas disputas entre girondinos e

jacobinos em torno da Constituição de 1793 (para a qual havia escrito um projeto e seu

plano de educação, ambos rejeitados), Condorcet acaba perseguido e executado pela

revolução que o entusiasmou. Mas as suas ideias, se comparadas com o período pré-

revolucionário, apontavam para a profundidade do alcance inovador da revolução. A

Revolução Francesa foi também a principal responsável pela nossa noção que divide a

política em esquerda e direita, e pela distinção das perspectivas do liberalismo, do

conservadorismo e do socialismo, que deu os seus primeiros passos em meio à turbulência

da revolução. Além disso, a noção plenamente articulada do nacionalismo moderno

nasceu em meio a corajosa defesa popular da revolução.

A Inglaterra acabaria se consolidando como a principal adversária geopolítica do

regime que surge das cinzas da revolução. A sua crítica conservadora ganharia relevo na

obra do polemicista Edmund Burke, mas não era o medo do contágio revolucionário a

principal preocupação inglesa, diferentemente dos regimes absolutistas do continente que

acabaram por sofrer todos os impactos da revolução. A Inglaterra passava por um período

de impressionante estabilidade política, calcada num desenvolvimento que já começava

a se configurar como revolucionário aos olhos de todos os contemporâneos. A hegemonia

4
parlamentar estabelecida a partir do final do Século XVII estava mais consolidada do que

nunca, e as classes produtoras inglesas se voltavam crescentemente para as manufaturas

das novas cidades industriais que despontavam, afastadas da vida rural por meio da

furiosa onda de cercamentos que varreu a Grã-Bretanha no Século XVIII, e que refletia

o poder consolidado da classe de proprietários representada no Parlamento. O sistema em

ascensão ganhou a sua expressão teórica na nova disciplina da Economia Política,

particularmente a partir da publicação da Riqueza das Nações em 1776, de autoria do

célebre escocês Adam Smith. Smith, entre tantas contribuições, teorizou as condições de

produção no contexto de um sistema de concorrência, postulou o princípio do equilíbrio

de mercado por meio da sua famosa metáfora da “mão invisível” e defendeu a tese de que

o trabalho era a fonte última da riqueza. A sua descrição do potencial da divisão industrial

do trabalho fornecia um relato, e ao mesmo tempo profetizava, o potencial da revolução

industrial. Também lançava um interessante olhar crítico sobre a expansão colonial que

era outra característica fundamental do sistema inglês que despontava na época da

revolução francesa. Lutando, especialmente a partir da ascensão de Napoleão, contra a

perspectiva de uma supremacia francesa no continente europeu, a Inglaterra capitalista

acabaria saindo como a grande vencedora do período conhecido como as Guerras

Napoleônicas, estabelecendo as bases para um período histórico no qual a Inglaterra se

afirmaria como a maior potência mundial, um período que estava destinado a durar, e que

culminaria com a construção do maior império territorial, multicontinental, já

estabelecido na história humana, apesar da perda da maior parte das suas colônias norte-

americanas a partir da revolta dos colonos iniciada no mesmo ano da publicação da

magnum opus de Smith, 1776.

Um outro conjunto de eventos que contribuiu para consolidação da Era das

Revoluções foi justamente a Guerra pela Independência dos futuros Estados Unidos da

5
América, e a promulgação da sua República constitucional, resultando na Constituição de

1788. Os colonos anglo-americanos, que importaram as sementes do capitalismo com a

sua vinda para a América do Norte, se rebelaram contra os frouxos controles coloniais

ingleses, cujo olhar se voltava para outras partes do mundo, e realizaram a primeira

grande guerra de libertação nacional na história colonial moderna, estabelecendo um

precedente que teria grande repercussão, tanto nas Américas quanto no imaginário

europeu da época. A constituição republicana dos EUA, apesar de consagrar a escravidão

e promover um expansionismo crescente frente às nações indígenas que ainda ocupavam

grande parte do continente, ainda assim influenciou a mentalidade europeia e deve ser

contada como mais um fator a detonar a muito mais influente revolução na França. As

palavras iniciais da constituição, “Nós, O Povo”, apontavam para o apelo que esse

documento fazia à ideia de soberania popular. Os principais teóricos da nova constituição,

James Madison, Alexander Hamilton e John Jay, que escreviam anonimamente sob o

pseudônimo do “Federalista”, desenvolveram a sua visão num diálogo com a teoria de

Montesquieu que havia relegado a forma republicana a um passado remoto. O objetivo

expresso desses autores era o de repensar a forma republicana no contexto da era

moderna. O argumento defendido por esses autores e políticos, no contexto das polêmicas

políticas imediatas, era a defesa de um estado central forte como condição fundamental

para o sucesso e a estabilidade da nascente república. Frente a um contexto marcado pela

ausência dos resquícios feudais e por um forte sentimento de igualdade fomentado pela

guerra de libertação nacional, a ideia da participação política e de um sistema

representativo se apresentavam como imperativos. Os teóricos federalistas também se

inspiraram em Montesquieu a fim de promover a sua versão própria da teoria da separação

dos poderes, baseada na noção de “freios e contrapesos”, por meio da qual as instituições

públicas, particularmente os poderes executivo, legislativo e judiciário, dividiriam as

6
tarefas do poder público e impediriam que uma vontade autocrática, de origem

aristocrática ou popular, pudesse impor a sua vontade contra os “interesses permanentes”

da nação. O poder executivo foi desenhado para ser exercido por um presidente eleito

pelo voto direto dos cidadãos aptos ao voto (num primeiro momento, homens brancos

adultos de origem inglesa), contrabalançado por sua vez por um poder legislativo

bicameral, em si próprio dividido entre o Congresso e o Senado, cada qual com um

princípio próprio de seleção e competências específicas. A autonomia do poder judiciário,

por sua vez, era consagrada pelo estabelecimento de uma Suprema Corte, que deveria

servir como guardiã e supervisora da constituição, e cujos membros deveriam deter uma

posição vitalícia a fim de garantir a sua autonomia frente aos demais poderes. Esse

desenho institucional, inspirado tanto pelo medo do poder popular quanto pela convicção

republicana, acabou se revelando enormemente influente, eventualmente sendo

identificado como um novo modelo de democracia, apesar de tal defesa não estar presente

na concepção originária dos “pais fundadores”, que não estabeleciam distinções

específicas entre o governo republicano e o governo democrático. Tal distinção seria

estabelecida algum tempo depois, se transformando em elemento de identidade e orgulho

do ponto de vista da cultura política dos Estados Unidos.

O conjunto dessas transformações associadas à Era das Revoluções resultou numa

revolução de época nas formas de consciência, uma revolução da qual ainda somos os

herdeiros diretos. A retomada do humanismo e do racionalismo a partir do Século XV,

resultando na formação da tradição científica europeia, com os seus inúmeros avanços

nos séculos XVI-XVIII, acabou finalmente por se converter num vetor fundamental da

nova visão de mundo, que encontrou no iluminismo francês um movimento de advocacia

militante. A esse longo processo de formação de uma nova visão de mundo se acrescentou

o impacto imediato e de longo alcance da Revolução Francesa, um evento que representou

7
uma bomba política para o mundo ocidental na época, espalhando a sua influência

eventualmente inclusive para regiões que nunca haviam sentido o impacto do pensamento

europeu. As ideias de nação, revolução e direitos universais rapidamente se espalham

para regiões como os impérios otomano, persa e chinês. A experiência generalizada de se

viver numa era revolucionária gerou novas teorias sobre a sociedade e a história. Os

avanços científicos se encontravam com os avanços filosóficos e políticos na construção

e consolidação de uma consciência do mundo realmente nova, que podemos chamar de

consciência histórica moderna. Diferentes campos do conhecimento, como as nascentes

ciências da geologia e da paleontologia, convergiam para apontar uma antiguidade antes

impensável para a existência do planeta terra, ao mesmo tempo afirmando, com a

geologia, que a superfície que vemos hoje na terra, com a sua enorme variedade de

relevos, era produto de uma longa história, de causas puramente naturais. O tempo

profundo foi descoberto. A paleontologia, impulsionada pela escavação mineral

resultante da revolução industrial, descobria fósseis de animais totalmente distintos

daqueles vivos. Em 1795, em meio à turbulência da Revolução, o biólogo George Cuvier

espantava plateias em Paris com a revelação de restos fósseis de mamutes e mastodontes

e com a chocante descoberta da extinção. O físico francês LaPlace e o filósofo alemão

Immanuel Kant propunham teorias sobre a origem (e logo a história) do universo

conhecido (a hipótese nebulosa). O mesmo raciocínio era aplicado de forma crescente

para a própria existência humana, também marcada pela descoberta de fósseis de

humanos extintos, e por uma nova compreensão da longa duração da história humana.

Em meio a uma fuga que acabaria resultando na sua captura e execução, Condorcet

elabora um Esboço de um Quadro Histórico do Progresso Humano, no qual postula o

progresso como uma tendência fundamental e de longo prazo na história humana, que

havia resultado na formação da civilização e da ciência e que estabelecia uma tendência

8
irreversível para um futuro de prosperidade, liberdade, justiça e razão. Do fundo do

abismo político Condorcet encontrava razões para um otimismo de longo prazo que

transcendia a tragédia da sua trajetória particular. O estabelecimento da concepção de

uma história humana universal era também o resultado dos esforços iluministas e do

transbordamento do espírito revolucionário de mudança para o plano concreto da política.

A nova consciência histórica que despontava como visão de mundo dominante

conferia um valor central à ideia de tempo e de mudança. Essa nova visão, inspirada pelos

avanços da revolução científica, acabou por inspirar as novas concepções de realidade

trabalhadas nas ciências naturais. Seu resultado final é a ideia de que tudo que existe, já

tenha existido ou existirá, tem uma história. Aplicada aos seres humanos e à vida como

um todo, essa noção se traduz na poética afirmação de que somos “poeira de estrelas”. As

repercussões completas de tal concepção de realidade ainda estão em pleno andamento.

Mas já no início do Século XIX ela se apresentava como uma lógica irresistível do ponto

de vista da teoria social e política. Se tudo é histórico, isso é ainda mais relevante para o

ser humano, que não apenas vive o tempo, mas faz a sua própria história, como Marx

argumentaria. O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831) foi pioneiro na

aplicação plena do raciocínio histórico para a questão da filosofia social e política.

Contrariando as premissas do contratualismo e do racionalismo, particularmente na forma

apresentada pelo seu predecessor Kant, Hegel argumentou que a razão moderna é o ponto

de chegada da história, por assim dizer, e não o seu ponto de partida, tal como apresentado

pelos contratualistas Hobbes e Locke assim como por Kant, ou, em outra chave, por

Descartes (ou, ainda, pela tradição da economia política e as suas “robinsonadas”, mas

tarde assim caracterizadas por Marx). Longe de apresentar a natureza humana em algum

estado puro ou inicial, a razão moderna é produto de um tortuoso processo de formação

da consciência humana, da qual ela representa a realização última e destinação de todo o

9
processo. Hegel, particularmente na sua Fenomenologia do Espírito e na sua Filosofia do

Direito, procura traçar um amplo panorama das etapas desse desenvolvimento,

fundamentando a sua análise numa concepção de dialética que identificava na contradição

o fator dinâmico das transformações. Subjacente a essas contradições estava a “dialética

do senhor e escravo”, por meio da qual Hegel apresentava a história humana como uma

história do progresso do reconhecimento humano, culminando no reconhecimento de uma

igualdade universal, que o Hegel tardio e mais conservador associou com o Estado liberal

em ascensão. Seja como for, o sistema hegeliano, de notável dificuldade filosófica, se

revelou como um imponente edifício teórico para os seus contemporâneos. Não à toa é

reconhecido como um dos maiores filósofos de todos os tempos. Na sua obra todo um

espírito de época convergia, exatamente da maneira que ela descrevia em seu modelo

teórico. Hegel estabelece o princípio fundamental da especificidade histórica: o espírito

de época é sempre maior do que a imaginação de qualquer pensador particular: não se

pode escapar da história. O seu abrangente e multifacetado sistema filosófico gerou as

mais diversas intepretações e desdobramentos, se tornando o centro das discussões

filosóficas numa Alemanha que dava seus primeiros passos na formação de uma

consciência nacional moderna e de uma maior articulação entre as suas ainda

fragmentadas partes políticas. Quando ele morreu em meio a uma epidemia de cólera em

1831 a disputa pelo seu legado determinou importantes caminhos teóricos e políticos que

seriam trilhados, incluindo notavelmente a obra de Karl Marx, talvez o pensador social e

político mais influente de todos os tempos.

Um momento importante na trajetória que levaria ao pensamento de Marx foi dada

pelo filósofo e teólogo hegeliano David Strauss com a publicação do seu A Vida de Jesus

em 1835. Essa obra, inspirada em Hegel, procurava traçar um panorama mais realista da

trajetória de Jesus, eliminando os milagres e outros elementos místicos, e entendendo na

10
Bíblia uma fonte de alegorias históricas e morais, e não de verdades literais. O iluminismo

francês também tinha assistido a uma série de tentativas de “historização” da narrativa de

Jesus, incluindo uma escandalosa versão do Barão D’Holbach que apresentava Jesus

como um inepto charlatão. Mas essas obras tiveram impacto limitado no contexto mais

geral de inovação representado pelo iluminismo clássico. O trabalho de Strauss gera um

debate nacional, mobilizando toda a intelectualidade alemã, e seria o ponto de partida

para a formação do grupo de pensadores conhecidos como os “jovens hegelianos”,

representados principalmente por Bruno Bauer (1809-1881) e Ludwig Feuerbach (1804-

1872). Esses pensadores seriam amigos e mentores do jovem Marx, nascido em 1818 e

membro mais novo do grupo de pensadores mais críticos e escandalosos da Alemanha da

sua época. Bauer, pupilo de Hegel e vencedor do prêmio nacional de filosofia em 1830,

adquiriu um prestígio precoce na academia alemã, se tornando professor na antiga cátedra

de Hegel na Universidade de Berlim. Especialista em teologia, tem uma primeira reação

crítica à Vida de Strauss. Mas a obra de seu contemporâneo o leva a uma epifania, o

conduzindo a uma radicalização da crítica bíblica inaugurada por Strauss. Bauer

desenvolve uma série de descobertas fenomenais e históricas na análise de obra há tanto

tempo consagrada e para a qual tanta atenção havia sido dada. Ele desenvolveu uma

análise histórica dos evangelhos, estabelecendo a tese da Prioridade de Marco e dos

Evangelhos Sinópticos, que demonstrava que os evangelhos de Lucas e Mateus eram

basicamente novas versões do evangelho original de Marco. Bauer também demonstrou

o caráter literário e não testemunhal dos evangelhos, que foram demonstravelmente

escritos décadas após a suposta crucificação de Jesus. Com suas teses bombásticas, muito

à frente de seu tempo, Bauer cai em desgraça política e seria eventualmente prescrito

totalmente da academia alemã, relegado a um ostracismo e obscuridade na qual a sua obra

se encontra até aos dias atuais. Seu radicalismo se traduzia numa crítica universal à

11
religião e a identificação dela como o maior mal político e social. Marx consideraria tal

ênfase unilateral e procuraria orientar o seu próprio radicalismo numa nova direção.

Durante esse período Bauer era nada menos do que o orientador da tese de doutorado de

Marx e seu amigo íntimo e mentor. Os dois eventualmente romperiam teórica e

politicamente, com o jovem Marx dedicando algumas de suas principais obras iniciais,

como A Questão Judaica e A Sagrada Família, a sua polêmica com o velho mestre.

O outro grande pensador a influenciar a formação inicial de Marx foi Feuerbach.

A maior obra desse pensador, A Essência do Cristianismo, procurava demonstrar que o

cristianismo representava uma etapa particular da formação da consciência universal

humana. Feuerbach submeteu a obra e particularmente a teologia de Hegel a uma severa

crítica, defendendo o materialismo como concepção filosófica universal. Essa crítica

influenciou profundamente o jovem Marx. A sua tese de doutorado, Diferenças da

Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, partia justamente da análise dos dois

grandes pioneiros gregos do materialismo antigo. Como seus colegas mais velhos, a obra

de Hegel forneceu o ponto de partida para a empreitada de Marx. Influenciado por

Feuerbach, Marx identificou na obra de Hegel as bases de um idealismo filosófico que

demandava uma profunda crítica e reversão teórica. As formas de consciência, assim

como as formas do direito, deveriam ser compreendidas não como uma realidade

primária, mas sim como um reflexo das formas de vida concretas. A consciência é a

manifestação na forma de pensamento da experiência vivida, que sempre extrapola os

limites da reflexão propriamente dita. A existência material concreta do ser humano é

primária em relação às formas de consciência e as determinam de modo geral. Marx

propõe como o seu grande objetivo teórico, desde sempre inspirado pelo radicalismo

político que ele desenvolve ainda enquanto jovem, o estudo das diferentes formas de

existência material concreta do ser humano e das sociedades por eles formadas. A história

12
humana, concebida por Hegel como a história do desdobramento da consciência humana,

passa a ser vista como a história da sucessão de uma série de formas de organização social

concreta, responsáveis pela existência material da humanidade. Contra o que ele

considera como o materialismo contemplativo e naturalista de Feuerbach, Marx propõe

um materialismo histórico, baseado na compreensão do papel das condições materiais e

das contradições sociais na longa trajetória da história humana, e procurando desenvolver

tal compreensão com base em teorias capazes de realizar o potencial da emancipação

humana agora associada ao que ele chama de divisão de classes e luta de classes. “A

filosofia, até hoje, se limitou a compreender o mundo; o ponto, contudo, é transformá-

lo”, afirmou o jovem Marx na últimas das suas Teses sobre Feuerbach.

O jovem Marx, estudioso da filosofia e amigo de alguns dos mais inovadores

pensadores da sua época, rapidamente desenvolve um conjunto único de conceitos e

teorias que revolucionariam a nossa compreensão da política e da história, estabelecendo

de modo definitivo a nossa contemporaneidade social e política. Frente ao modelo de

democracia política que havia se insinuado na Revolução Francesa e se estabelecido nos

EUA, Marx elabora uma crítica precoce e presciente. O modelo dos direitos políticos

estabelecido se assenta numa dualidade social, numa separação dos domínios sociais,

entre uma esfera pública do cidadão marcada pela universalidade dos direitos civis (o

“Céu”, afirmou o jovem Marx em polêmica com o seu mentor Bauer), e uma realidade

sócio-econômica marcada pela propriedade privada, pela desigualdade e pelo egoísmo, a

“terra” dos homens em contraposição ao céu dos cidadãos. Marx apontou para o caráter

formal da democracia política e para a abstração dos direitos por ela consagrados. A sua

premissa era a defesa e reprodução da desigualdade promovida pela propriedade privada

no âmbito da “sociedade civil”. Essa era também a sua condição de possibilidade:

representando uma fictícia igualdade entre cidadãos no contexto de uma divisão e

13
dominação de classes que era o próprio fundamento da sociedade burguesa. Podemos

dizer que é o próprio caráter formal e abstrato dos direitos políticos sob a ordem burguesa,

ou capitalismo, que facilita a sua universalização: a expansão dos direitos civis e políticos

é perfeitamente compatível com a reprodução da estrutura de classes baseada no

monopólio dos meios de produção por parte da classe capitalista. O direito ao voto não

se traduz de forma direta e simples em melhores condições econômicas, por exemplo.

Embora a expansão do sufrágio ainda enfrentasse uma enorme resistência na época em

que o jovem Marx antecipou essas críticas e essa análise, persistindo somente nos EUA

(em pouco tempo a Revolução de 1848 na França traria uma versão ainda mais abrangente

desse modelo ao continente europeu), foi justamente a percepção de tal formalidade do

sistema eleitoral e representativo e a viabilidade da manutenção da estrutura social que

facilitou que as classes proprietárias capitalistas acabassem por se conformar com a

expansão do sufrágio e o estabelecimento da democracia política. Frente à perspectiva de

uma radicalização revolucionária das lutas da classe trabalhadora, a concessão de direitos

políticos e a formação de um sistema representativo acabou se mostrando uma estratégia

viável, marcando a história política dos países do capitalismo central em particular,

embora de forma nada linear. O pensador liberal francês Alexis de Tocqueville já havia

dado esse conselho para a burguesia francesa e europeia na sua obra A Democracia na

América, publicada originalmente em dois volumes lançados em 1835 e 1840. Marx

apontava para as limitações da democracia política: no âmbito da estrutura de distribuição

da propriedade e da riqueza existentes, nenhum tipo de democracia formal poderia se

traduzir numa democracia substantiva real, voltada para os interesses da maioria. Tal

possibilidade só se daria com uma drástica transformação dessa estrutura de produção e

propriedade e sua superação por uma forma superior de organização, que Marx acreditava

que o próprio capitalismo estava por criar as condições: o socialismo.

14
Marx, em meio a uma parceria de vida com o seu amigo Friedrich Engels (1820-

1895), co-autor de várias das suas obras, procurou desenvolver uma ampla teoria social

que fundamentasse a sua análise política e que fornecesse as bases para uma teoria capaz

de iluminar os caminhos para a superação revolucionária da condição atual da

humanidade. As mesmas ambições que haviam animado o esforço do Barão de

Montesquieu um século antes eram agora retomadas, mas à luz de um novo propósito

político e de um século de profundas transformações em todas as esferas sociais,

resultando na nova consciência histórica da qual Marx foi um dos principais

representantes. O modelo de Marx parte de uma definição das classes sociais e da

identificação do seu papel central na estruturação da sociedade em todas as suas

dimensões. No Manifesto Comunista Marx e Engels proclamam que a história humana é

a história da luta de classes. O que são as classes? Marx define as classes a partir do que

chama de relações de produção. Em todas as sociedades os seres humanos são obrigados

a produzir para se manterem. O trabalho humano, que envolve um tipo único de relação

mental com a realidade, envolve a transformação da realidade para atender a objetivos

humanos. Marx adota uma antropologia naturalista e materialista: o ser humano é um tipo

peculiar de animal, com capacidades e tendências próprias. É um animal social e político,

o zoon politikon, um animal racional, o homo sapiens, e um animal produtor, o homo

faber. O ser humano é um ser inequivocamente social, dotado de um aparato tecnológico

e cultural único, crucial para a sua sobrevivência. Esse aparato se desenvolve

historicamente, e Marx dá a ele o nome de forças de produção. O conjunto das relações

de produção com o desenvolvimento das forças de produção confere uma estrutura central

para cada sociedade (ou conjunto de sociedades, ou épocas históricas), o seu modo de

produção. A divisão de classes existe quando se estabelece uma separação entre os

produtores diretos e grupos sociais especializados e organizados em torno da apropriação

15
da produção. Marx reconhece que as sociedades humanas originárias não eram marcadas

pela divisão de classes, se organizando numa base tribal e cooperativa baseada na

propriedade comunitária. Marx e Engels chamaram esse tipo de sociedade de

“comunismo primitivo”, substituindo os antigos e fantasiosos modelos do estado de

natureza por uma compreensão realista da “pré-história” da humanidade, uma concepção

que, embora ainda escassa em termos de material empírico, antecipou de maneira notável

as teorias antropológicas que surgiriam posteriormente. A grande ruptura histórica se dá

com a quebra desse modelo originário (que hoje sabemos que perdurou por dezenas de

milhares de anos) com a divisão da sociedade entre produtores e não-produtores, entre

dominantes e dominados. Seja como ela tenha se dado, essa ruptura promoveu uma

duradoura divisão social, que acabaria se difundindo ou se desenvolvendo entre grande

parte da humanidade. Marx estava particularmente interessado nos modos de produção

escravocrata, com sua divisão entre senhores e escravos, e o modo feudal, baseado na

divisão entre senhores e servos, que teria antecedido o desenvolvimento do modo de

produção capitalista. Marx definiu também o modo de produção “asiático”, baseado numa

divisão direta entre Estado e produtores. Característico de todas essas estruturas de classes

estava o fundamento político da sua dominação. O Estado e o poder político estavam

monopolizados pelas classes apropriadoras e serviam de base para a apropriação. No

modo asiático é o poder coercitivo do Estado que fundamenta a apropriação do produto

por meio da coleta de tributos e impostos. A mesma lógica permeia a exploração de

classes no feudalismo, só que na escala do senhor feudal, que exerce um tipo mais

próximo e pessoal de dominação, implicando em relações de dependência potencialmente

mais rígidas no que no modo asiático em tese caracterizado pela exploração coletiva de

uma vasta população e território por um Estado central (modelo inspirado numa

concepção relativamente simplificada de sociedades como a chinesa e o Egito Antigo).

16
No caso da escravidão o próprio indivíduo-escravo se transforma numa mercadoria à

disposição do seu senhor, a quem pertence toda a produção por ele realizada. Em todos

os casos a dominação política é o substrato da apropriação econômica. É a mudança nessa

lógica por meio do modo de produção capitalista que explica as peculiaridades do sistema

moderno, na visão de Marx.

O capitalismo desenvolve uma lógica única, baseada na sua estrutura de classes.

Nela, o capitalista é o proprietário dos meios de produção, visando utilizar a sua estrutura

produtiva para a obtenção de renda na forma de lucro. Se a classe capitalista se define

pela sua propriedade exclusiva dos meios de produção, a classe produtora se define pela

sua não-propriedade, pelo seu afastamento, dos meios de produção. É uma situação

comparável apenas a do escravo; contudo, o produtor no capitalismo é um homem livre.

A sua única posse é a propriedade de si e a sua capacidade para o trabalho. Nesse contexto

de polarização entre uma classe de proprietários e não-proprietários se desenvolve a

relação de assalariamento como base para a produção. Essa nova classe trabalhadora é o

proletariado. Marx não está lançando uma teoria abstrata. Esse modelo é uma descrição

dos acontecimentos que formaram essa estrutura na Inglaterra. Para o capitalista o único

objetivo da sua propriedade é a produção de mais renda. Isso se dá por meio da compra

da força de trabalho dos trabalhadores em potencial, além da compra dos insumos da

produção. O objetivo é a realização do lucro ao final do processo, depois do que ele deve

se reiniciar, se a unidade de capital pretender se manter viva enquanto unidade de capital.

A formação desse sistema se dá no contexto da formação de um sistema competitivo de

produção, disperso entre inúmeras unidades de capital independentes, todas voltando a

sua produção para o mesmo mercado. Marx descreve de forma simples como esse modelo

gera a estrutura do que ele chama a “interminável acumulação de capital”: começando

com o investimento em dinheiro (D), passa pela produção de mercadorias (M) e depois

17
pela sua venda, resultando novamente em dinheiro (D’). Um circuito D-M-D’. Ora, tal

processo só faz sentido se o resultado final for maior do que o inicial. A acumulação de

capital pressupõe a realização do lucro, gerando uma lógica social circular potencialmente

sem limites. Tal modelo gerava um novo tipo de imperativo de crescimento econômico e

uma dinâmica nova em termos da inovação dos meios de produção. Ao mesmo tempo, a

apropriação econômica se dava agora por meios também econômicos. A diferença do

valor da força de trabalho e da riqueza gerada por esse mesmo trabalho era a fonte última

da renda do capitalista. Essa fonte de renda, camuflada pela ficção do contrato no contexto

do mercado de trabalho, aparecia como uma forma muito mais opaca de exploração do

que em qualquer modelo anterior. Ao mesmo tempo, a separação dos trabalhadores em

relação aos meios de produção permitia que a expansão dos direitos políticos não

implicasse numa transformação substantiva da estrutura de classes. A democracia liberal

combinava o ar libertador de novos direitos com a manutenção de uma estrutura

econômica marcada pela divisão de classes e pela exploração. Como Marx disse para os

seus leitores alemães do primeiro volume do Capital: essa é a nossa história narrada.

Max Weber (1864-1920) nasceu quase cinco décadas após Marx, e teve uma

trajetória e formação que não poderia ser mais distinta do que a do teórico do materialismo

histórico. Marx viveu a maior parte da sua vida exilado em Londres e completamente

alheio ao ambiente acadêmico. Como havia ocorrido com o seu mentor Bauer, sua heresia

política o transformou num pária. O seu profundo conservadorismo político de base não

impediu, contudo, que a academia e a ciência alemã dessem notáveis contribuições ao

longo do Século XIX. Os alemães praticaram definiram um novo modelo de intelectual,

o pesquisador ou o scholar, um especialista dedicado a pesquisas empíricas em torno de

uma vasta série de temáticas e projetos de pesquisa que despontavam na época. Nesse

período os alemães se destacaram em áreas como a arqueologia e a filologia,

18
revolucionando o nosso conhecimento do mundo antigo, por meio de descobertas como

a da antiga civilização da Mesopotâmia, por exemplo, e a descoberta e deciframento de

textos antigos como o Código de Hamurabbi. Já discutimos como, nesse contexto de

pesquisa, Bruno Bauer havia revolucionado o estudo da Bíblia, aplicando as novas

metodologias à velha coleção de textos. Se descobriu, por exemplo, que os primeiros

evangelhos foram escritos em grego, e que Paulo de Tarso teria vivido bem antes dos

escritores dos Evangelhos, quem quer que eles fossem, tendo em vista que as suas

verdadeiras identidades foram agora também questionadas. Isso são apenas alguns

exemplos do desenvolvimento de uma nova mentalidade de pesquisa que ocorria na

Alemanha do Século XIX, que incluiu também a teoria da nova historiografia

desenvolvida por Leopold Von Ranke, baseada no princípio metodológico do estudo de

arquivos. Estudar história é estudar fontes, afirmou Ranke. Uma vida intelectual e

acadêmica movimentada, embora politicamente limitada, caracterizou a Alemanha antes

e depois da sua unificação política liderada pela Prússia em 1870. Weber foi um filho da

unificação e do regime que a ela se seguiu.

Comparado ao revolucionário Marx, podemos dizer que Weber era basicamente

um conservador. Ele não era mobilizado pelas paixões políticas que mobilizavam a

esquerda em ascensão na Alemanha da sua época. As suas maiores simpatias políticas

sempre foram as do nacionalismo alemão, tendo participado de grupos pan-germânicos

na sua juventude. A sua visão do mundo moderno, apesar de em grande parte pressupor

os parâmetros do sistema estabelecido e elaborar uma vigorosa tentativa de compreender

as suas bases históricas, a partir de uma concepção grandiosa baseada na ideia então

dominante do Milagre do Ocidente, era também em grande medida sóbria ao abordar os

dilemas políticos característicos de sua época e tendencialmente e resignadamente

pessimista quanto ao futuro do sistema moderno. Diferentemente das tendências de

19
especialização preconizadas a partir de Ranke, Weber era um autor extremamente

abrangente e ambicioso. Pode-se dizer que com ele a ambição de Montesquieu também

estava presente. Weber também pretendia superar os limites do que ele conhecia somo a

concepção marxista. Em termos gerais, podemos dizer que a obra de Weber visava a

formulação de uma narrativa sobre a ascensão da modernidade sob a égide da

particularidade do Ocidente. Ele queria estabelecer uma série de fatores que ele

considerava, em conjunto, como os fatores históricos causais que permitiram o “milagre”

do Ocidente. Ele considerava que a concepção marxista era unilateral ao (supostamente)

considerar apenas fatores econômicos, e considerava que a mesma atenção deveria se

voltar para a transformação dos valores culturais dominantes (por meio da análise da

religião, principalmente) e da transformação das instituições políticas, em processos

aparentemente simultâneos contudo separados. Se a premissa metodológica de Marx,

inspirada por Hegel, é olhar para o todo, pode-se dizer que Weber elabora um pluralismo

social, um particularismo de esferas sociais supostamente autônomas. Weber considerava

que tal pressuposição de esferas sociais representava um importante passo para a ciência

social. Se fazia necessária a análise da convergência dessas lógicas sociais para a

explicação do milagre do Ocidente. Foi com essa perspectiva que Weber elaborou a sua

famosa análise da relação entre as transformações da religião na Europa moderna e a

ascensão do Capitalismo, na sua obra A Reforma Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Ao fomentar o individualismo, o trabalho como forma de salvação e a espírito poupador,

a reforma protestante dinamizou as mudanças que marcariam a ascensão do capitalismo

moderno. Apesar da sua ênfase na pluralidade causal, no fundo Weber também apresenta

uma abrangente visão da mudança sistêmica: um amplo e generalizado processo de

racionalização e secularização, que permeia todas as esferas sociais, estabelecendo uma

lógica singular e impessoal para cada uma delas. Com essa lógica ocorre um

20
desencantamento do mundo. Assim a economia segue uma lógica econômica do lucro, a

política a lógica política do poder, a religião se volta para uma esfera própria e mais

restritamente espiritual, o Direito segue uma lógica formal e autônoma, etc. Subjacente à

lógica da racionalização está a lógica da burocratização, que também tendia a permear

todas as esferas sociais, mas particularmente as esferas econômica e política. Tal lógica

corria o risco de sair do controle, ponderava Weber, permitindo uma visão tenebrosa do

futuro como uma “jaula de ferro”. Ao diagnosticar tal perigo Weber se limita a uma

peculiar esperança no poder carismático como uma forma de quebrar o desencanto que

marcava a sua complacente e fatalista concepção do futuro.

Na sua discussão sobre os tipos puros de dominação legítima Weber está

empenhado em estabelecer a distinção entre lógicas pessoais e informais de dominação

política da lógica impessoal e formal, “racional”, que permeia o Estado moderno. Toda

forma de dominação, ou seja, todo sistema de obediência, se assenta em princípios de

legitimidade. Weber não discute a questão das sociedades sem formas estabelecidas e

autônomas de autoridade: as sociedade tribais e pré-históricas não entram no seu raio de

visão. Ele simplesmente pressupõe a relação de dominação como um dado. A principal

distinção se dá entre as formas de dominação tradicional e carismática de um lado, e a

dominação racional/legal de outro. A dominação tradicional se fundamenta no princípio

de legitimidade da tradição, ou seja, a crença em poderes há muito tempo estabelecidos e

sacralizados. No seu modelo mais puro, o patriarcal, o poder decisório reside na figura

dominante do patriarca, que exerce o seu poder de modo pessoal, escolhendo os seus

principais funcionários e delegados, e exercendo a disputa de conflitos a partir da sua

própria noção de moralidade, a partir dos limites estabelecidos pela tradição. O principal

limite do poder do patriarca está na própria tradição, a qual ele não pode quebrar sem

colocar em risco as bases da sua própria legitimidade. Uma variante desse modelo é o

21
tipo de dominação estamental, na qual o poder da tradição não está investido num único

indivíduo, mas num grupo de senhores. Weber identifica a Europa feudal com esse

modelo, e para ele tal forma representa mais um fator causal da especificidade do milagre

europeu que deu origem à sociedade moderna caracterizada pela racionalidade. A disputa

pelo poder no interior da classe dos senhores feudais teria dado impulso a uma revolução

no campo do direito, formando as bases para o futuro Estado marcado pela racionalidade

formal e pela concepção do direito positivo. Nesse modelo, no qual a competição entre

os senhores impõem limites à vontade autocrática do patriarca, as bases do poder da classe

senhorial ainda são as tradições que conferem uma posição de privilégio e poder. O caso

do modelo carismático é ainda mais enfático na sua demonstração de uma lógica pessoal

e informal de poder. Nesse caso, o princípio de legitimidade do tipo de dominação está

associado ao carisma, ou seja, prestígio, afeto, que um líder carismático é capaz de exercer

entre os seus seguidores. O potencial do poder pessoal associado ao líder carismático é

enorme: além de escolher os seus preferidos como seus xerifes e comandantes, ele não é

restringido pela tradição, tendo a liberdade de reformular as leis e de criar uma nova

tradição. Talvez essa seja a fonte última das tradições, pondera Weber. Seja como for, tal

modelo segue uma lógica rigorosamente personalista e informal, no qual os únicos limites

ao poder do líder carismático é a extensão do seu próprio carisma e os confins da sua

consciência.

O tipo de dominação legal/racional, típico do Estado moderno, está assentado em

estatutos formais, argumenta Weber. É a dominação formal por meio de regras, leis e

estatutos, que foram criados por sua vez de acordo com critérios igualmente formais, e

que estabelecem ao mesmo tempo as condições para a mudança das leis. Essa é a base da

ideia moderna do direito positivo, o direito visto como um sistema criado e recriado a

partir de critérios estabelecidos pelo próprio direito. Os servidores do Estado moderno,

22
por sua vez, são burocratas profissionais, que exercem as suas funções de acordo com

uma hierarquia profissional estabelecida a partir de estatutos, e que servem de

instrumentos para o circuito de tomada de decisões que se encontra fora da burocracia

propriamente dita, no campo político propriamente dito. No contexto da democracia

liberal, também os políticos exercem os seus cargos de acordo com critérios formalmente

estabelecidos (eleição, indicação). Num modelo republicano tal princípio se aplica a todos

os funcionários do Estado, que adquire assim um grau novo de abstração jurídica, se

transformando numa pessoa jurídica, distinta dos ocupantes específicos dos cargos

estatais. Weber também aponta que esse novo tipo Estado, que caracteriza as sociedades

modernas, é marcado pelo estrito monopólio não apenas da lei, mas também do uso

legítimo da força.

Enquanto Weber enxergava na sociedade moderna, marcada pelo “milagre

europeu”, a própria realização do princípio da racionalidade, e por isso dificilmente

superável, Marx concebia tal sociedade não apenas como injusta e sustentada pela

exploração de classes, mas também como profundamente irracional e voltada contra os

interesses maiores da humanidade a longo prazo. O circuito fechado da interminável

acumulação de capital apontava para uma absurda lógica da produção pela produção, que

nem as personificações do capital poderiam escapar, e que, além da sua irracionalidade,

apontava na direção de consequências catastróficas. Mais de 150 anos após a publicação

do primeiro volume de O Capital, o mundo parece cada vez mais periculosamente preso

nesse circuito interminável, que, com as crises climáticas e ambientais presentes e

vindouras, confirmam o diagnóstico histórico de Marx acerca dos perigos e da

irracionalidade típicas da sempre dinâmica sociedade capitalista. Mais de um século e

meio depois das suas formulações originais, ainda estamos presos nos dilemas apontados

por Marx.

23
24

Você também pode gostar