Você está na página 1de 50

História com imagens

KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual.
ArtHistória, Uberlância, v. 8, n. 12, p. 97-115, jan./jun. 2006.
Resumo
• O artigo:
• aponta como a afirmação da história científica conduziu ao desprezo
pela imagem como fonte histórica. Desse modo, a historiografia se
afastou da tradição erudita dos antiquários do classicismo europeu;
• caracteriza o processo de institucionalização dos estudos visuais a
partir da afirmação do conceito de cultura visual no mundo
acadêmico norte-americano;
• apresenta as diferentes definições do conceito de cultura visual,
observando sua valorização no campo da história da arte, o que
permite aproximar a história da imagem da história da arte.
• Os menires caracterizam-se como
monólitos individuais de formato
alongado ou ovóide e cravados na terra
em posição vertical.
• Os cromeleques são
conjuntos de menires,
ascendendo às dezenas,
dispostos em elipses, em
círculos, semi-círculos ou
rectângulos, e compondo
um recinto aberto ou
fechado.
Imagens da história
• A história da imagem se confunde • Os alfabetos são diferentes dos
com a história da escrita. Isso silabários, pictogramas e
porque, desde que se fixou a ideogramas.
palavra escrita, o novo código não • Em um silabário, cada sinal
substituiu a imagem. representa uma sílaba.
• No sistema pictográfico, os
objetos são representados por
meio de desenhos.
• Nos ideogramas, os
pictogramas são combinados
para representar o que não
pode ser desenhado.
Escrita pictográfica

• A escrita pictográfica utiliza


figuras ou imagens que são
criadas a partir de um objeto
concreto com uma certa
fidelidade à sua forma geral.
• A escrita
ideográfica utiliza
símbolos que são
criados a partir de
formas geométricas e
empregados para
representar,
principalmente, ideias e
conceitos abstratos.
• Segundo Paulo Knauss, o estudo das imagens serve para estabelecer
um contraponto a uma teoria social que reduz o processo histórico à
ação de um sujeito social exclusivo e define a dinâmica social por uma
direção única. Isso porque o processo social é dinâmico e possui
múltiplas dimensões e várias formas de produção de sentido.
• Compreender os processos de produção de sentido como processos
sociais implica em considerar que os significados não são dados, mas
construídos culturalmente. Isso abre um campo para o estudo dos
diversos textos e práticas culturais, admitindo que a sociedade se
organiza a partir do confronto de discursos e leituras de textos de
qualquer natureza – verbal, oral ou visual. É nesse terreno que se
estabelecem as disputas simbólicas como disputas sociais.
Imagens e poder
“o poder só se realiza e se conserva pela produção de imagens, pela
manipulação de símbolos” (Georges Ballandier)
O método crítico documental
• O Renascimento e o gosto pela Antiguidade clássica
• Investigação crítica dos documentos de época
• O problema da autenticidade das fontes
• Lorenzo Valla e a Declaração de Constantino
• Crítica filológica
• A concepção da fonte histórica como instrumento de prova, a
veracidade dos fatos pela comprovação documental
• Jean Mabillon, De res diplomática (1681)
• Relação entre o método erudito (crítico) e o estudo da história por
meio da crítica das fontes
O método crítico documental
• Ênfase no estudo de documentos oficiais, de caráter oficial,
transformou a palavra documento em sinônimo de fonte histórica,
sendo que o método crítico era dirigido ao estudo de fontes escritas.
• Mas o interesse pelos clássicos durante o Renascimento não
focalizava apenas os escritos. Havia grande curiosidade por objetos e
imagens, pela arte antiga em geral, o que conduziu à sistematização
de procedimentos de identificação e caracterização de fontes não-
escritas.
• A forma como essa atitude investigativa foi caracterizada constituiu a
tradição dos antiquários e do antiquariado.
Antiquariado
• O antiquariado era caracterizado pela erudição, que traduzia o
conhecimento das fontes do passado.
• O antiquariado tinha um horizonte aberto e se dirigia para o tratamento
das coisas do homem, no sentido das humanitas que caracterizam o
humanismo renascentista. Neste horizonte, incluía-se não apenas textos
escritos, mas também o mundo das imagens da Antiguidade.
• O estudo dos antiquários dirigia-se não apenas à escrita da história, mas
aos diversos usos do passado no mundo social, estabelecendo padrões e
modelos importantes para o desenvolvimento das artes, por exemplo, que
tinham sua inspiração nas referências do passado clássico.
• Como indica Francis Haskell, os antiquários tiveram o mérito de superar
uma desconfiança em relação às imagens, reivindicando a validade da
imagem como fonte histórica.
Fontes escritas e iconográficas
• A historiografia reconhece as práticas de estudo da história que se
assemelham ao modelo da história científica consagrada a partir do
século XIX. E nesse percurso, definiu-se o uso das fontes escritas
como padrão geral de avaliação das práticas de investigação histórica.
O documento escrito se impôs como padrão de fonte histórica e a
concepção de documento como prova dos fatos também prevaleceu
na concepção cientificista, afirmando a objetividade do conhecimento
como dado.
• A memória disciplinar relegou os estudos antiquários à margem dos
estudos históricos e as imagens foram desprezadas enquanto fonte,
exceto na ausência das fontes escritas, como no estudo da
Antiguidade.
Fontes escritas e iconográficas
• A crítica contemporânea à concepção cientificista de história
conduziu à crítica da concepção correspondente de documento
histórico.
• O estudo da história das representações, valorizada pelos estudos da
história do imaginário, da história cultural e da antropologia histórica
promoveu a revisão da definição de documento e a revalorização das
imagens como fontes de representações sociais e culturais.
Estudos visuais
• A renovação do interesse pelos estudos da imagem e da arte alimenta
um campo interdisciplinar de pesquisa, que tem como objeto de
investigação a cultura visual. Este campo, também chamado de
estudos visuais, institucionalizou-se a partir dos Estados Unidos nos
anos 1990.
• Dois programas de pesquisa pós-graduada nos EUA: Programa de
Estudos Culturais e Visuais da Universidade de Rochester (1989) e
Programa de Estudos Visuais da Universidade da Califórnia, Irvine
(1998).
Outras iniciativas
• Universidade de Chicago: seminário de graduação Cultura Visual,
início dos anos 1990, ministrado por W. J. T. Mitchell
• Universidade do Estado de Nova York: curso Imagens e textos:
compreendendo a cultura (1998), de Nicholas Mirzoeff
Estudos visuais
• Categoria ganhou publicidade nos EUA, na década de 90
• Revista October, 1996
• Institucionalização do campo de estudos:
• 1986: Visual Sociology Review
• 2002: Journal of Visual Culture (Sage Publications) e Visual Studies
(Routledge)
• Lançamento de antologias de textos sobre temas da cultura visual
(obras de referência – readers)
Obras de referência
• The block reader in visual culture (1996), de John Bird
• Reúne textos publicados entre 1979 e 1989 no periódico britânico
Block. O conjunto caracteriza-se por abordar a arte como questão
social e ideológica, defendendo uma análise materialista da arte.
• The visual cultural reader (1998), de Nicholas Mirzoeff
• A obra parte de um diálogo crítico com a história da arte para pensar
as relações com a vida cotidiana, a questão contemporânea da
virtualidade, para abordar a cultura pós-colonial, os temas do gênero
e da sexualidade.
Obras de referência
• Visual culture: the reader (1999), de Jessica Evans e Stuart Hall
• Fornece elementos para indagar as retóricas da imagem e as técnicas do
visível, trata da fotografia e das relações entre o olhar e a subjetividade
para abordar questões como gênero e raça. O ponto de partida é a
constatação de que a cultura visual tem sido abordada pela expansão dos
estudos culturais e de mídia, orientados pela leitura de autores como
Walter Benjamin, Roland Barthes, Jacques Lacan e Michel Foucault.
• Os organizadores indicam que a concepção proposta de cultura visual
permite ultrapassar a particularidade de cada um dos meios de expressão,
bem como as narrativas teleológicas construídas em torno de disciplinas
individualizadas. Argumenta-se a favor de um deslocamento da história da
arte pela cultura visual, estabelecendo um movimento da arte para o visual
da história para a cultura.
Obras de referência
• Visual studies (2003), de James Elkins
• Defende aprofundamento dos estudos visuais para que se tornem mais ambiciosos e difíceis com base em
mais análises. Apresenta quadro de evolução dos estudos visuais, relacionando ao campo dos estudos
culturais desenvolvido na Inglaterra na década de 60. define o campo de estudos como uma reunião de
experiências diversas, como um território difuso, com maior recepção no âmbito dos estudos de mídia e
cinema ou dos estudos femininos e proximidade com a história da arte.

• Visual culture: the study os visual after the cultural turn (2005), de Margaret Dikovitskaya
• Procura demarcar a história da emergência da categoria cultura visual. Apresneta as bases teóricas e
metodológicas do debate em torno do conceito de cultura visual e reúne 17 entrevistas com autores que
promoveram o estudo da cultura visual na América do Norte. Procura caracterizar os estudos visuais como
disciplina dotada de história, objeto e metodologia específicos, informada por tendências do pós-
estruturalismo e pelos estudos culturais. A partir do conceito de cultura visual, o foco recai na análise da
imagem visual como elemento dos processos de produção de sentido em contextos culturais. O estudo
sobre a cultura visual emergiu do encontro da história da arte com os estudos culturais e estabeleceu o
território dos estudos visuais, colocando questões que não foram postas pela história da arte e que podem
caracterizar uma nova historiografia de marca interdisciplinar.
Cultura visual: definições
• Os estudos visuais ou o conceito de cultura visual não tem o mesmo
sentido para os autores que se debruçaram sobre o tema. É possível
reconhecer escolas de pensamento formadas em diferentes instituições e
que são moldadas a partir de opções conceituais distintas.
• Anos 1980: estudo da cultura se tornou central para as ciências humanas e
conduziu a uma revisão do estatuto do social (cultural turn). O lado
subjetivo das relações sociais ganhou espaço e consolidou uma tendência
que sublinha como a cultura (compreendida como sistema de
representações) instigava as forças sociais de um modo geral, não sendo
mero reflexo de movimentos da política ou da economia (virada subjetiva).
A virada cultural destacou os vínculos entre conhecimento e poder.
• A cultura visual seria um desdobramento de um movimento geral de
interrogação sobre a cultura em termos abrangentes.
• Knauss identifica dois universos gerais que definem a cultura visual,
ora de modo abrangente, ora de modo restrito.
• Definição abrangente: aproxima o conceito de cultura visual da
diversidade do mundo das imagens, das representações visuais, dos
processos de visualização e de modelos de visualidade.
• Importa, sobretudo, não tomar a visão como dado natural e
questionar a universalidade da experiência visual.
• Abandona-se a centralidade da categoria da visão e admite-se a
especificidade cultural da visualidade para caracterizar
transformações históricas da visualidade e contextualizar a visão. Não
se pode mais separar os objetos visuais de seu contexto.
• Os estudos visuais interrogam o papel de todas as imagens na cultura.
Essas imagens podem ser comparadas como representações visuais
produzidas no âmbito da produção cultural.
• Evidencia-se um ponto de vista crítico à defesa da excepcionalidade
do estatuto artístico de alguns objetos visuais em favor de uma noção
abrangente de imagem.
Ocularcentrismo
• O ponto de vista mais restrito define cultura visual como um modo
específico de conhecimento característico da cultura ocidental, que dá
centralidade ao olhar (ocularcentrismo). observa-se a primazia do olhar
como recurso para relacionar uma natureza exterior com uma mente
interior, traduzindo a metodologia da observação e o princípio
epistemológico do empirismo como base do pensamento científico
ocidental. No Ocidente, a experiência social do mundo é reduzida à
percepção e termina por afirmar um olho inocente.
• A possibilidade de interrogar o olhar ocidental parte do pressuposto de que
os modos de ver são definidos como visões parciais do mundo, que, por
meio de representações visuais, reordenam o mundo a partir do olhar.
• A teorização do olhar como prática social implica investigar os
fundamentos do pensamento na cultura ocidental, identificando cultura
visual como cultura ocidental.
Autores relacionados à concepção mais
restrita de estudos visuais:
• Chris Jenks
• Nicholas Mirzoeff
• Lisa Cartwright
• Para Knauss, é preciso considerar as duas perspectivas gerais na
definição de cultura visual: uma restrita e outra abrangente. Ambas se
afastam na consideração sobre a historicidade da cultura visual.
• A concepção mais abrangente considera que a cultura visual serve
para pensar diferentes experiências visuais ao longo da história em
diversos tempos e sociedades.
• A concepção mais restrita entende a cultura visual como
correspondente à cultura ocidental, marcada pela hegemonia do
pensamento científico (Chris Jenks) ou na media em que a cultura
visual traduz a cultura dos tempos recentes, marcados pela imagem
virtual e digital, sob o domínio da tecnologia (Nicholas Mirzoeff).
Arte e imagem
• Tendência no debate sobre cultura visual é desnaturalizar o conceito
de arte e o estatuto do artístico. Isso implica em dessacralizar o
objeto artístico e dissolver a problemática da arte num tratamento do
objeto visual na sua generalidade.
• Observa-se que, até a institucionalização do campo dos estudos
visuais, o tema da história e das artes não era imediatamente
associado à cultura visual. Quando o termo cultura visual apareceu
pela primeira vez no título de um livro em língua inglesa, o trabalho
não se dedicava ao estudo da arte, mas tratava das possibilidades de
educação pela televisão (Towards a visual culture, de 1969, escrito
por Caleb Gattegno).
• O termo cultura visual partiu do reconhecimento da diversidade do
universo de imagens, favorecendo um tratamento das imagens que
não esteve baseado na tipologia que distingue materialmente os tipos
de imagens.
• A utilização da noção de cultura visual tornou possível superar a falta
de um objeto próprio que se encontra esfacelado diante de uma
divisão tradicional de história da arte, do filme ou do cinema, da
fotografia etc., consequ6encia de uma definição dos objetos visuais
que se poderia chamar de posivista.
• A emergência da categoria cultura visual também é associada ao
campo da história da arte.
Michael Baxandall
• Michael Baxandall, Painting and experience in fifteenth-century Italy (1972)
• Relaciona história da arte e história social
• Noção de period eye (olhar de época): associa hábitos visuais e modos cognitivos
de percepção
• A tese propõe que os quadros são pintados a partir de uma experiência geral que
sustenta modelos e padrões visuais construídos e que caracterizam a capacidade
de entendimento de imagens como uma habilidade historicamente demarcada.
• O equipamento mental ordena a experiência visual de modo variável, uma que
esse equipamento é culturalmente relativo e orienta as reações diante dos
objetos visuais. O espectador se vale de uma competência visual que é
socialmente estabelecida, do mesmo modo que o pintor depende da resposta de
seu público. Em suma: a sociedade influencia a experiência visual. O olhar é um
sentido construído socialmente e historicamente demarcado.
Svtelana Alpers
• A arte de descrever (1983)
• Tese de que a representação pictórica do mundo no universo da
pintura holandesa se constitui em oposição às formas narrativas de
representação do mundo que têm como base os textos verbais,
estabelecendo sua peculiaridade, a exemplo da arte renascentista
italiana.
Modos de ver
• Interrogação sobre o olhar antes da afirmação da cultura visual: John
Berger, 1972.
• O olhar é múltiplo. Seu estudo requer preparo para ver e analisar
imagens, sendo possível estudar os modos de ver.
• Os modos de ver podem ser demarcados num sentido sociológico
geral, que sublinha convenções oculares articulando a dimensão
visual das relações sociais.
• Há uma relação entre visão e contexto que precisa ser estabelecida.
Conclusões
• O foco da cultura visual dirige-se para a análise da imagem como
representação visual, resultado de processos de produção de sentido em
contextos culturais.
• Percebe-se em diversos autores que a afirmação do conceito de cultura
visual implica analisar as imagens como representações visuais no sentido
de problematizar a visão como processo ou identificar formas de
visualização, colocando a visualidade em questão.
• Os estudos visuais, seguindo os estudos culturais, defendem que os
sentidos não estão investidos em objetos. Pelo contrário, o conceito de
cultura visual sustenta o pressuposto de que os significados estão
investidos nas relações humanas. A cultura é definida como produção
social e, por isso, o olhar pode ser definido como construção cultural.
Conclusões
• As definições materiais e tipológicas devem ser concebidas como
elementos do processo de significação.
• O objeto individual é integrado numa rede de associações e de
valores que integram as competências visuais.
• O conceito de autonomia da arte é substituído pelo conceito de
intertextualidade.
• A interrogação sobre a autonomia do visual e seus limites é colocada
de modo a afirmar que a visão deve ser tratada como uma matriz que
inclui outros sentidos.
Conclusões
• As representações visuais são vistas como parte de um conjunto
entrelaçado de práticas e discursos. A experiência visual não se realiza
de modo isolado.
• A leitura da imagem e da experiência visual não podem ser explicadas
unicamente pelo modelo da textualidade.
• Os estudos visuais não estão limitados ao estudo de imagens e
representações, mas abarcam também práticas cotidianas de olhar e
exposição.
• O estudo da imagem pode ser concebido como um jogo complexo
entre visualidade, aparatos, instituições, discursos, corpos e
figuração.
114
• Aparato
• Instituições
• Corpos
• Figuração
Conclusões
• Os sentidos de toda imagem são múltiplos e podem ser recriados a
cada novo olhar.
• É preciso conhecer as convenções, considerando que as associações
entre símbolos e códigos não são fixas e os sentidos são negociados
• As práticas de olhar não devem ser definidas como atos de consumo
passivos.

Você também pode gostar