Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vol. 5, No 2 | 2016
Antropologia e desenho
Anthropology and drawing
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/cadernosaa/1089
DOI: 10.4000/cadernosaa.1089
ISSN: 2238-0361
Editora
Núcleo de Antropologia Visual da Bahia
Refêrencia eletrónica
Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 5, No 2 | 2016, « Antropologia e desenho » [Online], posto online no
dia 01 outubro 2016, consultado o 25 fevereiro 2020. URL : http://journals.openedition.org/
cadernosaa/1089 ; DOI:10.4000/cadernosaa.1089
TABLE OF CONTENTS
Editorial
Artigos
Etno-artes
Artigos
Editorial
1 É com muita alegria que escrevo esta introdução ao dossiê Antropologia e Desenho da
revista Cadernos de Arte e Antropologia em 2016. Constatar o crescimento da área é
revigorante. Passaram-se apenas cinco anos desde que o tema se tornou parte da minha
vida como pesquisadora e, coincidentemente, ganhou maior visibilidade na literatura
antropológica internacional. Parece pouco, mas o que vimos nesse intervalo de 2011 até o
presente foi muito: a bibliografia diminuta e tangencial multiplicou-se e adensou-se,
como tão bem ilustram os autores deste volume e suas referências. Já abordei
recentemente algumas dessas obras e suas consequências práticas para uma renovação do
trabalho etnográfico (Kuschnir 2016a). Nesta introdução, faço um comentário panorâmico
da área, acreditando que minha própria aproximação do assunto ilustra algumas de suas
características atuais. Busco estabelecer a relação do tema com o universo de valores
antimodernizantes, assim como sintetizar algumas das discussões abordadas por seus
autores-chave.
2 Eu estaria mentindo se dissesse que foi na própria antropologia que encontrei inspiração
para escrever meu primeiro plano de pesquisa sobre desenho e etnografia. Na época, tudo
que eu conhecia de antropologia visual girava em torno das câmeras de fotografar e de
filmar, enquanto na antropologia da arte e do grafismo, o foco era na produção indígena.
Durante a escrita do projeto, não existiam ainda dois livros que se tornaram referências
na área, I swear I saw this (de Michael Taussig) e Being Alive (de Tim Ingold), ambos
publicados em algum momento desse mesmo ano de 2011. E, por incompetência e falta de
tempo para um bom levantamento bibliográfico, escaparam-me as Histórias Etíopes, de
Manuel João Ramos (2010 [2000]), e os artigos fundamentais de Afonso e Ramos (2004),
Ramos (2004), Hendrickson (2008, 2010), Leal (2008), entre tantos outros dispersos.
3 A ideia de que o pesquisador também pudesse desenhar (e, portanto, conhecer o mundo
por meio desse processo) me veio de outro lugar. Eu ia escrever “da arte”, mas essa não é
bem a palavra correta. Nos anos 2000, surgem nas livrarias e na internet, em diferentes
lugares do mundo, autores dedicados à produção de desenhos de observação que não se
identificam como artistas. São sketchers – ou, como diz a boa tradução portuguesa,
“desenhadores” – pessoas que desenham para registrar sua vida, suas viagens, suas
memórias. Não almejam as galerias de arte nem a venda de seus trabalhos, tampouco a
redação de teses acadêmicas: desenham (e escrevem) em cadernos. Desse período, surge
uma renovação da paisagem gráfica através de plataformas online de compartilhamento
de imagens e textos tais como Yahoo Groups (grupo Every Day Matters, fundado por Danny
Gregory, em 2004, inspirado em seu livro com o mesmo nome, de 2003), Blogger ( O
Desenhador do Quotidiano, de Eduardo Salavisa, criado em 2006, pouco antes da publicação
do livro Diário de Viagem, de 2008, organizado pelo autor) e Flickr (onde surgiu o grupo
Urban Sketchers, em 2007, de Gabi Campanhario). Em pouco tempo, milhares de pessoas
estavam participando desses espaços, lendo os livros que os inspiraram e desenhando em
cadernos – eu inclusive.
4 Em 2011, aconteceu o segundo encontro internacional dos Urban Sketchers (USK), em
Lisboa, Portugal. Ao participar desse evento (como aluna), conheci mais de perto vários
autores cujos projetos esfumaçavam as fronteiras entre desenho e produção de
conhecimento. Fiquei fascinada em mergulhar nessa conversa que me pareceu
sinceramente interessada no diálogo interdisciplinar. Ali, por exemplo, ouvi a palestra de
Ruth Rosengarten (2012), primeira autora da antropologia que conheci diretamente
fazendo uma apresentação sobre o tema “antropologia e desenho”, onde chegara por via
dos historiadores do cotidiano e dos desenhadores urbanos.
5 Uma semana depois desse evento, de volta ao Brasil, me vi diante de uma oportunidade:
faltava um mês para enviar o pedido de renovação do meu projeto como bolsista-
pesquisadora junto ao CNPq (principal órgão de fomento à ciência e tecnologia do Brasil).
Após vinte anos publicando na área da antropologia da política, onde fiz minha carreira,
resolvi apostar na aventura de propor uma investigação sobre desenho e antropologia
urbana. E não escrevo aventura como recurso retórico. Eu estava certa de que perderia a
bolsa e de que não convenceria meus pares avaliadores de que aquele tema fazia sentido.
mais ampla, a partir de Grimsham & Ravetz (2015) e a da já mencionada distinção téorica
vs. etnográfica na abordagem do tema por Ingold (2011 e outros) e Taussig (2011). É muito
bem colocado pela autora a mistura de “empolgação e dúvida” que acompanha o
ressurgimento do desenho na prática antropológica, destacando com humor seu lugar de
“novidade velha”. Azevedo, sem dúvida, preenche a lacuna de contar essa história,
apontando com otimismo para a riqueza da cena atual da antropologia desenhada.
18 Também é muito bem-vinda a reflexão de Philip Cabau sobre a especificidade do desenho
etnográfico, explorada com criatividade e cuidado, por um autor que olha
simultaneamente de perto e de longe para a área, nos oferecendo importantes insights e
uma agenda de formação. Por comparação às demais ferramentas visuais, para Cabau –
inspirado em Berger (2005), Valéry (2002) e outros –, o ato de desenhar teria o papel de
prolongar a atenção no campo, testemunhando não só aquilo que se observa mas a
experiência do observador, tornando-se, ele próprio, um ato-performance de integração
do etnógrafo ao meio estudado. Sua melhor prática seria, paradoxalmente, aquela onde os
resultados se saem “mal”, escapando das armadilhas da plasticidade, do realismo e das
figurações previamente codificadas (como enfatizado por Taussig 2011). Do ponto de vista
do autor, o ensino do desenho seria benéfico na formação da “caixa de ferramentas” da
antropologia desde que focado na ideia de uma “percepção negociada”, um “processo de
olhar” voltado para a captura de ideias internas mais do que externas. O que realmente
importa não é a aparência que surge dos traçados, mas os problemas e questões
suscitados pelo processo dessa experiência visual e etnográfica.
19 Já o fascinante artigo de Christine Escallier integra este volume trazendo o que a
antropologia sabe fazer melhor: pesquisa de campo densa em diálogo com fontes e
reflexões teóricas. Recuperando a tradição da história das técnicas, que marca o estudo
das práticas marítimas, a autora discute em profundidade o potencial dos variados tipos
de imagens etnográficas. Suas experiências no campo mostram que fotografias e desenhos
não têm propriedades intrínsecas, mas sim significados construídos segundo as diversas
circunstâncias de produção e recepção de seus conteúdos. É especialmente rica sua
discussão sobre autoria e memória: filmes, iconografia histórica, fotografias de variadas
origens e desenhos da própria etnógrafa e de seus interlocutores participam de um debate
sobre foco e potencial narrativo por meio de imagens. A partir de problemas específicos
do seu campo, Escallier apresenta várias comparações contundentes, como nos desenhos
de mapas, na descrição de práticas pesqueiras e no uso de materiais como objetos sociais.
Num exemplo sobre pesca com redes, vemos croquis e fotografias, lado-a-lado,
demonstrando que a cooperação desenho-foto é essencial para entendermos
sociologicamente tanto a composição técnica dos materiais quanto os movimentos
corporais gerados nos processos de sua utilização. Difícil não concordar com o argumento
da autora de que as visualidades – em seus múltiplos formatos – devem ser objetos de
análise em si mesmas, indo além do papel de testemunhar, registrar, observar (Mauss,
1967). O trabalho criativo de Escallier demonstra que os diferentes tipos de imagens se
complementam, enriquecendo nossa compreensão das relações sociais e tornando visíveis
os silêncios e invisibilidades do universo etnografado.
20 Num bonito e instigante relato analítico e visual, Inês Belo Gomes nos conta sua passagem
do mundo da arte para o da antropologia, e sua posterior redescoberta do desenho à luz
da experiência de campo. Refletindo sobre esse, por vezes, doloroso processo, a autora
formula uma questão nada óbvia: “O que é que faz com que o desenho seja etnográfico?”
A pergunta atravessa o texto, trazendo à tona temas já apontados aqui como os da
24 Todavia, até que ponto podemos afirmar que a produção de desenhos (sejam de
observação, imaginação, memória; sejam dos investigadores ou interlocutores) impacta
tanto na antropologia? Nos perguntarmos sobre isso é importante para não cairmos num
processo de reificação e encantamento da ideia de “desenhar”, como se estivéssemos
diante do novo graal da antropologia. Em nome do desenho, jogaríamos a câmera e a
filmadora, junto com toda a reflexão da antropologia visual (ou não) na vala das ideias
“frias” e ultrapassadas? Não, não contem comigo para acender essa fogueira.
25 Como desenhadora e apaixonada por desenhos, acho mais do que saudável a valorização
dessa prática que é, por si mesma, um espaço de prazer, liberdade, registro e reflexão,
com muitas especificidades. Por isso, escolhi como epígrafe para esta introdução a frase
de um interlocutor do artista Nelson Paciência a respeito da sua experiência de aprender
a desenhar numa prisão de segurança máxima (Kuschnir, 2016b). Para a imagem que abre
o artigo, optei por um desenho num caderno meu antigo, tendo como objeto o próprio
caderno segurado por mim. Estou ali, diante da primeira página em branco, a sugerir um
processo em aberto, como um convite. Vamos desenhar para somar, multiplicar. Como
demonstram os vários autores desse volume, etnografia com fotos, filmes, desenhos,
cadernos, sujeitos, lugares, línguas, valores, lutas, diálogos, experiências: todas essas
dimensões importam.
BIBLIOGRAPHY
Afonso, Ana Isabel, Manuel João Ramos. 2004. “New Graphics for Old Stories: Representation of
local memories through drawings”. Pp. 66-83 in Working Images: Visual Research and Representation
in Ethnography, edited by A. I. Afonso, L. Kurti e S. Pink. London: Routledge.
Ballard, Chris. 2013. “The Return of the Past: On Drawing and Dialogical History”. The Asia Pacific
Journal of Anthropology, 14:2, 136-148.
Berger, John. 2005. Berger on Drawing. Jim Savage (ed.) Aghabullogue: Occasional Press.
Causey, Andrew. 2012. “Drawing flies: artwork in the field.” Critical Arts, 26 (2), pp. 162–174.
Colloredo-Mansfeld, Rudi. 2011, “Space, line and story in the invention of an Andean aesthetic”.
Journal of Material Culture, 16 (1): 3-23.
Geismar, Haidy. 2014. “Drawing it Out”. Visual Anthropological Review, 30 (2): 96-113. Disponível em
<http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/var.12041/full>.
Gell, Alfred. 1975. Metamorphosis of the Cassowaries. Used Society, Language and Ritual. London: The
Athlone Press.
_____. 1999. The art of anthropology – Essays and Diagrams. Edited by E. Hirsch. Londres: The
Athlone Press.
Grimshaw, Ann, Amanda Ravetz. 2015. “Drawing with a camera? Ethnographic film and
transformative anthropology.” Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 21, issue 2: 255-275.
Disponível em <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-9655.12161/abstract>.
Hendrikson, Carol. 2008. “Visual Field Notes: Drawing Insights in the Yucatan”. Visual
Anthropology Review, 24 (2): 117-132. Disponível em <http://onlinelibrary.wiley.com/ doi/10.1111/
j.1548-7458.2008.00009.x/abstract>.
_____. 2010. “Ethno Graphics: Keeping Visual Field Notes in Vietnam”. Expedition, Vol 52, n 1:
31-39. Disponível em <http://www.penn.museum/documents/ publications/expedition/
PDFs/52-1/Ethno-Graphics.pdf>.
Ingold, Tim. 2011. Being Alive – Essays on movement, knowledge and description. London and New
York: Routledge.
_____. 2013. Making. Anthropology, archeology, art and architecture. London and New York:
Routledge.
Kuschnir, Karina. 2011. “Drawing the city – a proposal for an ethnographic study in Rio de
Janeiro.” Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, 8(2): 609-642. Disponível em <http://
goo.gl/66GqES>.
_____. 2012. “Desenhando Cidades”. Sociologia & Antropologia. Vol. 02.04: 295-314. Disponível em <
http://revistappgsa.ifcs.ufrj.br/wp-content/uploads/2015/05/14-ano2-v2n4_registro_karina-
kuschnir.pdf>.
_____. 2016a. “Ethnographic Drawing: Eleven benefits of using a sketchbook for fieldwork.” Visual
Ethnography. v.5:105-138. Disponível em <http://www.vejournal.org/index.php/vejournal/
article/view/92>.
_____. 2016b. “A liberdade de desenhar.” Karina Kuschnir: desenhos, textos e coisas. Disponível em <
https://karinakuschnir.wordpress.com/2016/08/18/nelsonpaciencia/>.
Pina Cabral, João. 2007. “Aromas de Urze e de Lama: reflexões sobre o Gesto Etnográfico”.
Etnográfica, 11 (1): 191-212.
Leal, João. 2008. “Retratos do povo: etnografia portuguesa e imagem.” Pp. 117-145 in O visual e o
quotidiano, editado por J. Machado Pais, C. Carvalho e N. M. Gusmão. Lisboa: Imprensa de Ciências
Sociais.
Ramos, Manuel João. 2004. “Drawing the lines – The limitation of intercultural ekphrasis.” Pp.
147-156 in Working Images: Visual Research and Representation in Ethnography, edited by A. I. Afonso,
L. Kurti e S. Pink. London: Routledge.
Rosengarten, Ruth. 2012. “Passing by, stopping, walking on: urban sketching in context.” Pp.
24-51 in Urban Sketchers em Lisboa. Lisboa: Quimera. (Edição Bilíngüe)
Salavisa, Eduardo. 2008. Diários de Viagem – desenhos do quotidiano, edited by E. Salavisa. Lisboa:
Quimera Editores.
Severi, Carlo e Lagrou, Els. (orgs.) 2013. Quimeras em diálogo: grafismo e figuração nas artes indígenas.
Rio de Janeiro: 7 Letras.
Strenski, Ivan. 1982. "Malinowski: second positivism, second romanticism". Man, 17(4):266-271.
Taussig, Michael. 2011. I swear I saw this. Drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago
and London: The University of Chicago Press.
Valéry, Paul. 2002. Degas Danse Dessin. Paris: Gallimard. [Em português: 2012. Degas Dança
Desenho. São Paulo: Cosac Naify.]
AUTHOR
KARINA KUSCHNIR
UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil
Karina Kuschnir é professora do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
karinakuschnir@gmail.com
Artigos
Articles
Aina Azevedo
EDITOR'S NOTE
Recebido em: 2016-02-07
Aceitado em: 2016-07-05
consequência, temos uma história desconhecida a sustentar um presente que nos parece
duvidoso.
2 Um belo exemplo de monografia amplamente conhecida e desenhada é o “Os Nuer” de
Evans-Pritchard (2002). Decerto, os desenhos de vacas, cabaças, lanças, etc., jamais
causaram incômodo algum: são desenhos sóbrios que, a exemplo dos “sonhos sóbrios”
distinguidos por Freud, não precisam ser interpretados por terem uma relação auto-
evidente com o que representam (Freud 2015: 130). Entretanto, mesmo em casos como
esses, uma investigação mais séria pode ser reveladora, como será demonstrado
posteriormente no trabalho de Geismar (2014) sobre os desenhos de Bernard Deacon.
3 Talvez fosse o caso de nos perguntarmos, então, por que os antropólogos desenhavam e
por que pararam de fazê-lo? Com questões como essas em mente, o presente artigo busca
percorrer e recuperar de forma fragmentária partes de uma possível história do desenho
na antropologia, bem como os regimes de visualidade que a atravessam, com o objetivo de
apresentar o estado da arte da relação entre desenho e antropologia em torno do século
XXI. Como observa Ballard (2013: 139), persiste uma ausência de histórias sobre o desenho
na antropologia, a despeito de sua importância na produção do conhecimento.
Entretanto, o momento atual lhe parece bastante confortável para antropólogos que
desenham, quando ocorre um “graphic turn” ou “virada gráfica” que, em suas palavras,
indica “o renascimento do interesse pelo desenho como uma atividade e foco analítico
entre antropólogos e em outras disciplinas” (Ballard 2013: 140) [Tradução minha] 2. Ao
perceber que diversos antropólogos voltam a desenhar, renovamos também nossas
perguntas iniciais: por que alguns antropólogos desenham atualmente e quais os efeitos
dessa prática em suas metodologias/resultados de pesquisa? Ao levantar tais questões,
este artigo pretende iluminar os caminhos passados, atuais e, quiçá, futuros do desenho
na antropologia3.
Teodoro da Cunha 2006).8 A partir daí, uma série de outros investimentos amplamente
conhecidos irão corroborar a íntima relação entre antropologia e imagem, como é o caso
das simetrias encontradas nas leituras das fotografias “totalizantes” de Malinowski, do
retrato atemporal – com longos plano sequência – do filme Nanook of the North de Flaerthy,
das sequências fotográficas do gestual balinês de Batson e Mead, da “verdade do filme
etnográfico” de Jean Rouch, etc. (Barbosa e Teodoro da Cunha 2006).
16 Se, por um lado, não há uma continuidade mais profunda na recapitulação histórica que
relacionaria o desenho aos subsequentes desenvolvimentos da antropologia visual, por
outro, é verdade que a própria evolução histórica da antropologia visual não foi tão
simples, nem linear. Ao entrarmos em contato com essa história, colhemos pistas sobre os
regimes de visualidade da antropologia, cuja problematização feita pela antropologia
visual, embora não possa ser transposta diretamente para a confecção de uma história do
desenho, nos serve como guia.
17 Grimshaw e Ravetz procuram mostrar como o uso frequente de recursos visuais na
antropologia vitoriana foi rechaçado na antropologia moderna. Conforme as autoras, os
regimes de visualidade daquela antropologia eram marcados pela ostensiva utilização da
imagem enquanto método e objeto de estudo para a classificação de pessoas nativas,
dando forma ao esquema evolucionista então vigente. Posteriormente, a antropologia
moderna buscaria se firmar enquanto uma disciplina científica e textual. Para tanto, seria
imprescindível não confundi-la com o que Grimshaw e Ravetz chamam de “atividades
rivais”, como o jornalismo e o turismo, frequentemente associadas ao porte de uma
câmera (2005: 5).
18 A exclusão de um tipo particular de imagem como modo de distinção da antropologia
também é observada por Gell (1999: 31) com relação ao distanciamento dos gráficos – que,
por sua vez, persistiam em ciências que ele denominou de “inimigas”, como a engenharia.
Para este autor, a antropologia de sua época era por definição não-diagramática e
profundamente verbal, a exemplo de expoentes intelectuais como Geertz, Derrida,
Ricouer e Heidegger (Gell 1999: 31). Gell também atribui este rechaço às imagens ao
excesso de diagramas do estruturalismo, evidenciado em mentes que expressavam
graficamente os significados da antropologia – como Leach, Lévi-Strauss e Fortes (Gell
1999: 31).
19 Seguindo com diagramas, uma rara menção feita aos mesmos em “The Routledge
Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology” ocorre no item “Tempo e espaço,
prática e estrutura” que compõe o verbete “Tempo e Espaço” (Barnard e Spencer 2010:
689-693). Aqui, diagramas e que tais são descritos como um formalismo das análises
estruturais para evidenciar uma análise virtual sincrônica (Barnard e Spencer 2010: 692).
Entretanto, vejamos o que o próprio Gell tem a dizer sobre o assunto, valendo salientar
que o autor usou diagramas não apenas para elucidar suas próprias reflexões (Gell 1975),
como também para lançar luz à compreensão de outros trabalhos, a exemplo de
“Strathernograms” (Gell 2006: 29-75). Desenhos e diagramas, apresentados ao longo de
suas publicações, fazem todos parte de um mesmo esforço do autor de tornar a
antropologia mais compreensiva visualmente ou, como escreve Gell, fazem parte da sua
própria familiaridade com essa linguagem, evidenciada na sua maneira de pensar
primeiro em diagramas, depois em textos escritos (Gell 2006: 8-9).
20 Em “Metamorphosis of the Cassowaries”, na seção dedicada à transformação dos tipos de
máscaras usadas pelos Umedas, Gell (1975) apresenta um exemplo interessante do uso de
diagramas. Nas palavras do autor, “O argumento desta seção é expresso em termos
visuais: para seguí-lo, é necessário referir-se às figuras que mostram os vários tipos de
penteados e máscaras.” (Gell 1975: 279). Entre os Umedas, o ciclo de vida masculino era
marcado por mudanças de penteado e cada estilo expressava os estágios desse progresso:
cabelo curto (controlado ou não) e cabelo longo (controlado ou não). Dessa elaboração da
cabeça humana iriam partir os diferentes estilos e tipos de máscaras. Para resumir o seu
argumento, Gell dispõe de um “‘fluxograma’ justapondo os vários tipos de máscaras de
acordo com a sua sequência temporal implícita e ‘processual’” (Gell 1975: 297-308). Aqui,
nota-se tanto o desafio de inscrever uma transformação temporal em um diagrama que
ganha o caráter de fluxograma, quanto a observação explícita feita pelo autor de que a
seção em questão é concebida em termos visuais. Ou seja, o desenho-diagrama não era
exterior à formulação do autor que buscava trazer uma dinâmica própria ao diagrama por
meio do fluxograma.
21 Retomando o argumento de Grimshaw e Ravetz sobre a presença/ausência das imagens
na antropologia (2005: 3), essas autoras ainda descrevem as contradições internas da
antropologia moderna em aceitar ou não recursos visuais como fonte de pesquisa e
exposição do conhecimento. Destacam que foi somente a partir da década de 70 que a
antropologia visual se firmou como uma sub-disciplina, tendo como marco a publicação
de “Principles of Visual Anthropology” de Paul Hocking in 1975. No Brasil atual, os
reflexos mais evidentes do espaço conquistado pela antropologia visual são os prêmios
Pierre Vergé de Filme Etnográfico (em sua XI edição) e de Ensaio Fotográfico (em sua VIII
edição), concedidos durante a bienal Reunião Brasileira de Antropologia, em que não há
nenhuma menção ao desenho.
22 Aqui, não é o caso de definir a posição do desenho em relação à antropologia visual, mas
de observar a existência de práticas que conversam entre si mantendo-se separadas. E
ainda, de perceber as oscilações entre presença e ausência que as imagens, em suas
diversas formas, sofreram ao longo do tempo na antropologia. De todo modo, vale
salientar que, se o desenho participa de alguma forma da gênese da antropologia visual, é
certo que não acompanha os seus desdobramentos. E ao que tudo indica, embora haja
uma série de pontos convergentes entre registros que são distintos do texto – como é o
caso do desenho, da fotografia e do filme – as diferenças entre essas práticas persistem.
23 Inclusive, autores como Taussig enfatizam as qualidades do desenho contrastando-o com
a fotografia. Parafraseando Berger, Taussig destaca a passagem do tempo que se evidencia
ao longo do desenhar; ao contrário do que ocorre com a fotografia que congelaria os
eventos (2011: 21)9. Ainda: Taussig considera que o poder do desenho está em revelar
exatamente aquilo que escapa à fotografia – como a possibilidade de desenhar
acontecimentos anteriores ou a possibilidade de desenhar a própria imaginação (2011:
31). No mesmo sentido, Ballard observa que na ocasião em que Haidy Geismar e Anita
Herle repatriaram imagens de John Layard aos Malakula, 200 fotografias foram
reproduzidas e apenas 3 desenhos, quais sejam: “um mapa, um desenho de areia e uma
vista panorâmica da área de dança na Ilha Vao, todos exemplos de imagens que a
fotografia falha em capturar adequadamente, e para os quais os antropólogos comumente
recorreram ao desenho.” (Ballard, 2013: 139-140).
24 Ou seja, embora digno, o lugar ocupado pelo desenho na antropologia é justamente aquele
em que a fotografia falha? Em outras palavras: é esse o desenho permitido pela
antropologia? Uma outra pergunta seria: será que a evolução técnica é suficiente para
descrever uma espécie de substituição do desenho pelo fotografia – quando sabemos o
quão difícil era transportar equipamentos pesados para o trabalho de campo?
25 Se o desenho será localizado junto à antropologia visual no futuro é uma questão que não
cabe responder aqui. Entretanto, enquanto a antropologia visual conquistou o seu lugar
ao sol – não tão brilhante como critica Martins (2012) – , o mesmo não ocorreu com o
desenho que ainda precisa se firmar e se legitimar em espaços institucionais – como é o
caso dos prêmios, dos artigos científicos, dos grupos de discussão, dos cursos
universitários e do desenvolvimento das habilidades dos antropólogos.
35 Como exemplo da sua relação com o desenho em trabalho de campo, Taussig descreve a
experiência de desenhar a embarcação fantasma de Julio Reyes subindo o rio à noite na
Colômbia. Ele ouvira falar sobre essa história – que, aliás, jamais poderia ser fotografada –
e resolveu se deter nos reflexos do rio noturno. A tentativa de representar o barco, o
brilho das lâmpadas de gasolina e as cabanas invertidas no rio deixaram-no com uma
impressão péssima de seu próprio desenho. Porém, ele relata que olhou para aquelas
cores, para a noite e o rio como se nunca os tivesse visto antes. Ao final, Taussig se
pergunta se existiria uma outra atividade – como desenhar – que tão bem recompensaria
as falhas? Para ele, ao contrário do que ocorre com a escrita, “esses são sapos que se
tornam flores” (Taussig 2011: 31).
36 Apesar da facilidade com que Taussig relata a sua falta de habilidade em desenhar, a
maioria dos antropólogos não só se sente desconfortável em mostrar os seus desenhos
como, em geral, não vê motivos para desenhar. Aparentemente, no entanto, todas as
pessoas têm a capacidade de desenhar, embora a maioria considere que não. Uma das
razões que Ingold encontra para a rejeição ao desenhar relaciona-se a uma certa noção do
“fazer” como projeto, ou seja, quando uma ideia preconcebida é projetada para ser posta
no papel (Ingold 2011a: 177). Seguindo uma perspectiva que se opõe a essa, Ingold traz a
experiência de Marion Milner descrita no livro “On not being able to paint”, quando ela se
sentia péssima diante de sua inabilidade para desenhar, até que experimentou uma outra
abordagem. Ao invés de tentar transpor, sem êxito, o que via para o papel, deixou a sua
mão seguir para onde quer que fosse, sem qualquer ideia preconcebida de como isso iria
terminar (Milner apud Ingold 2011b: 17-18). Assim, ela conseguiu desenhar. A ênfase aqui
está em um certo tipo de desenho: aquele menos comprometido com a forma final e mais
com o processo de desenhar.
37 Concordar com a ideia de Ingold de que todos podem desenhar ou de Taussig de que as
falhas do desenho são recompensadoras, não significa que não deva haver um
investimento, uma dedicação à prática do desenho. Como é mostrado por Kuschnir (2014),
para algumas pessoas não é tão simples começar a desenhar e no “Laboratório de Desenho
e Antropologia” que a autora fez durante um semestre com estudantes de antropologia na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, diferentes técnicas foram apresentadas e
praticadas. A ideia era de que os alunos desenvolvessem certas noções de desenho para
que finalmente se sentissem confortáveis para desenhar como um recurso de pesquisa e
forma de descrição na antropologia.
38 Assim, o desenho pode ser entendido como um processo, uma maneira de pensar,
observar, conhecer, descrever e revelar menos comprometido com o resultado final –
como mostram Ingold e Taussig. Ou, como uma técnica mais densamente trabalhada em
cursos que enfatizam igualmente o desenho enquanto processo e, além disso, produto
final, bem como o desenvolvimento das habilidades dos antropólogos – como mostra
Kuschnir.
39 Posto isso, me volto, finalmente, para as experiências de antropólogos que desenham. Na
atualidade, o trabalho que parece ser pioneiro na articulação entre narrativa desenhada e
antropologia é “Prophecies, Police Reports, Cartoons and Other Ethnographic Rumors in
Addis Ababa” de Newman (1998). Aqui, a autora compôs um artigo desenhado em que
narrou a morte de um eremita na Etiópia. Influenciada pela narrativa pictórica etíope,
pelos quadrinhos e a novela gráfica, este é um esforço exemplar na conjugação do
desenho e da antropologia no formato de arte sequencial. Além disso, o uso de elementos
43 Um exemplo mais casual, porém não menos importante de percepções que surgem no
trabalho de campo por meio do desenho, foi trazido por Causey (2012) no artigo “Drawing
flies: artwork in the field” (2012). Causey descreveu como algo aparentemente banal,
como desenhar insetos, particularmente um besouro, o levou à discussão de temas até
então evitados por seu interlocutores em Sumatra, na Indonésia. Ali, Causey pesquisava o
impacto do turismo entre os Toba Bataks e uma das questões que o intrigava era o
consumo ilegal de cogumelos alucinógenos fornecidos pelos Bataks aos turistas.
Imaginados por Causey como uma fonte de poder xamânico no passado, os usos do
cogumelo poderiam ter se transformado com as leis e o turismo ocidentais. Foi pelo
interesse despertado em seus interlocutores ao verem, casualmente, os desenhos de
insetos produzidos pelo autor que o tema da pureza/impureza veio finalmente à tona,
assim como o poder daquilo que nasce e se alimenta dos excrementos, como os besouros e
os cogumelos. Para Causey, a qualidade de seus desenhos foi o menos importante, sendo a
experiência de desenhar e o objeto desenhado aquilo que considerou fundamental para
despertar uma conversa desejada, porém inesperada.
44 O trabalho com prostitutas em Porto Alegre desenvolvido por Olivar é, por sua vez, um
exemplo bastante interessante de um esforço do autor em pensar formas metodológicas
que estejam em sintonia com as pessoas com quem trabalhamos (Olivar s/data: 1). Em
“Dibujando putas”, Olivar (2007) abre seu artigo questionando nossa preparação para o
trabalho de campo como algo focado especialmente na escuta, deixando de lado outras
formas de nos relacionarmos com a realidade. Assim, o autor escreve que: “(…) quando a
porta do elevador se abriu, eu não estava preparado para outra coisa que não fosse
escutar. Não estava preparado para ver, porém o mundo quase nunca necessita de nossa
preparação.” (Olivar 2007: 1). Com essa constatação inaugural, Olivar reflete sobre os
desenhos que fez durante o trabalho de campo, trabalho este que resultou numa tese de
doutoramento recheada de desenhos (Olivar 2010).
45 Entre as questões levantadas por Olivar está o que ele considerou uma das complexidades
de seu trabalho de campo com prostitutas, qual seja, a cumplicidade e clandestinidade
femininas, apresentadas como um desafio a ser representado. Ao se deparar com
fotografias de prostitutas cuja finalidade seria a de familiarizar o leitor, o que Olivar
encontrou foram imagens de pobreza e marginalidade. Não que ele negasse tais
características, entretanto, as mulheres com quem trabalhou “se arrumavam
cuidadosamente para apagar as marcas de exclusão e pobreza” e sua experiência como
observador “estava muito mais próxima de Bachelard, do filme ‘Pillow Book’ e da arte
barroca de Caravaggio, que dos registros de medicina forense” (Olivar 2007: 9). Assim, o
autor se coloca a questão de como produzir imagens que não sejam desleais ao universo
representado.
46 Em outro trabalho que tematiza o mesmo assunto, “Ethnographic drawings: some insights
on ‘prostitution, bodies and sexual rights’”, Olivar (s/data) parte da crítica à câmera
fotográfica como uma arma usualmente apontada para as prostitutas por policiais,
repórteres, profissionais da saúde ou pervertidos. Com isso, o autor clama por um novo
repertório de imagens que não negue a multiplicidade e complexidade da experiência de
prostituição (Olivar s/data: 1). Para Olivar, os desenhos que produziu têm um
investimento estético que fazem deles tanto uma expressão artística quanto uma
ferramenta para análise nas ciências sociais (Olivar s/data: 1). São também uma
reconstrução fenomenológica de sua experiência de campo e, o que é mais importante
para o autor, fazem parte de um esforço maior de promover os direitos e a saúde sexuais
(Olivar s/data: 1-2). Considerando a arte como uma ferramenta reconhecida quando o
assunto é sexualidade, tanto em termos subjetivos quanto sociais, Olivar concluiu que por
meio dela criam-se espaços em que é possível circular de formas novas e radicais (Olivar
s/data: 2).
47 Na etnologia, dois trabalhos se destacam em termos de desenho: “A fluidez da forma” de
Lagrou (2007) e “Ser en el sueño” de Wright (2008). O primeiro deles, embora não
apresente maiores reflexões sobre o desenho como método de pesquisa ou forma de
exposição do conhecimento, conta com diversos desenhos produzidos pela autora, além
daqueles feitos pelos Kaxinawá com quem trabalhou. De forma bastante despretensiosa,
Lagrou revela, por meio de um desenho e de uma anedota sobre a sua confecção que, em
sua primeira viagem de barco ao grupo indígena com quem trabalhou, ela pôde antever a
classificação das imagens, além da expressão e percepção visual Kaxinawa (2007: 117) –
assuntos trabalhados ao longo de todo o livro. Já em “Dibujos”, uma espécie de apêndice
de “Ser en el sueño” (2008), Wright apresenta uma série desenhos feitos principalmente
por seu interlocutor indígena Ángel, mas também por dois colegas de pesquisa, além dele
mesmo. Tais desenhos foram conectados à cosmologia Toba no capítulo intitulado
“Cosmografias”, em que o autor apresenta o desenho como um técnica de pesquisa que
superou os limites temáticos de suas perguntas, o levando a aprofundar as suas
investigações especialmente sobre o mundo sobrenatural Toba e a compreender melhor
os seres e as relações que não conseguia visualizar.
48 Já a interface entre desenho e mundo virtual foi abordada no artigo de Boserman (2014),
“Entre grafos y bits”, que reúne desenho, práticas digitais e investigação social como uma
metodologia de análise de políticas de representação social. Partindo de uma tecnologia
rudimentar como os cadernos e os desenhos, a autora passa por scanners, para chegar a
sistemas de arquivo e armazenamento on line (Boserman 2014: 14). Nomeando seu
trabalho de #relatograma e #coreograma, o primeiro seria um objeto digital formado por
desenhos e palavras capazes de fixarem experiências e ideias em narrações gráficas não
lineares (Boserman 2014: 10-12); enquanto o segundo seria o conjunto dos #relatogramas
em circulação, em compartilhamento na rede (Boserman 2014: 20).
49 O desenho foi trazido por Boserman como processo de documentação, inscrição e registro
(Boserman 2014: 9) do qual parte o #relatograma. Boserman apresenta uma morfologia
dos #relatogramas que devem conter, entre outras coisas: desenho dos participantes,
perguntas ou reflexões em torno do assunto, informação do evento e referências que
podem ampliar a discussão realizada ali (Boserman 2014: 15-16). Seu objetivo com os
#relatogramas é “oferecer uma vista parcial dos acontecimentos, das ideias, autores,
visões expostas, de quem relata, escuta, dos imaginários depreendidos.” (Boserman 2014:
18), ou seja, quer dar conta da produção do conhecimento como um processo. Entretanto,
quando os #relatogramas estão em circulação – transformando-se em #coreogramas – é
que a autora percebeu o potencial de seu método, como a produção de um tipo de
memória digital e de imaginários gerados pela agregação (Boserman 2014: 21).
50 Por fim, como uma referência na relação entre desenho e antropologia no Brasil, temos
Kuschnir, já mencionada anteriormente. Além de “Ensinando antropólogos a desenhar”
(Kuschnir 2014), há um outro trabalho da autora que revela o seu interesse pelo processo
de desenhar cidades do grupo Urban Sketchers (do qual ela mesma faz parte). Neste artigo,
Kuschnir (2014) incluiu os seus próprios desenhos, além daqueles produzidos por
membros do grupo estudado, transformando o desenho em objeto de investigação,
método de pesquisa e apresentação dos resultados.
51 Não caberia discutir aqui as minhas próprias contribuições à relação entre desenho e
antropologia, tendo em vista que o presente artigo é uma manifestação disto. Assim,
apenas indico tais investimentos a seguir. Em “Um convite à antropologia desenhada”,
escrevi sobre a possibilidade do desenho ser incorporado aos métodos e técnicas de
pesquisa da antropologia com a ideia de que se não soubermos que podemos desenhar,
talvez não o façamos (Azevedo 2016). Já em “Diário de campo e diário gráfico:
contribuições do desenho à antropologia” (Azevedo no prelo) trouxe as contribuições do
“diário gráfico” (Salavisa 2008 e 2014) para pensarmos que, além da escrita não precisar
ser a única forma de notação em nossos diários de campo, podemos aprender bastante
com os diários daqueles que desenham – suas técnicas e perspectivas. Em um trabalho
feito a quatro mãos, “Drawing Close – on visual engagement in fieldwork, drawings and
the anthropological imagination” (Azevedo e Ramos 2016), escrevemos sobre uma oficina
de desenho que realizamos na University of Aberdeen junto com Ingold e a comunidade
acadêmica local. Aqui debatemos o lugar que o desenho tem e pode vir a ter em nossas
pesquisas atuais e apresentamos os desenhos produzidos ao longo daquele encontro. Em
outro trabalho colaborativo, “Weathering – a graphic essay” (Azevedo e Schroer no prelo
), apresentamos uma narrativa gráfica-antropológica em forma de arte sequencial sobre a
relação entre falcoeiros e falcões. Além desses trabalhos mais recentes, a minha própria
tese “Conquistas cosmológicas: pessoa, casa e casamento entre os Kubheka de KwaZulu-
Natal e Gauteng” (Azevedo 2013) conta com um Caderno de Imagens que apresenta a
maior parte dos desenhos que fiz em campo na África do Sul. Por sua vez, “Desenhos na
África do Sul: Desenhar para ver, para dizer e para sentir” (Azevedo 2014) é um pequeno
ensaio visual que também apresenta alguns dos desenhos produzidos durante o trabalho
de campo que originou a minha tese de doutoramento.
Comentários finais
52 A fim de conduzir a investigação sobre desenho e antropologia, nos guiamos por
perguntas bastante genéricas, tais como “por que os antropólogos desenhavam no
passado?” e “por que pararam de fazê-lo?”. Vimos que o desenho foi uma técnica de
pesquisa bastante utilizada na virada do século XX – a exemplo de Miklouho-Maclay e
Deacon – que, entretanto, parece não ter sido formalmente difundida como uma das
habilidades dos antropólogos para o trabalho de campo (Geismar 2013), com exceção da
menção ao ensino do desenho na antropologia russa (Makar’ev 1928).
53 A oscilação entre apropriação e recusa das imagens ao longo da história da antropologia
foi descrita por autores como Gell (1999) e Grimshaw e Ravetz (2005). Neste percurso, o
desenho pareceu compartilhar os mesmos dilemas enfrentados pelo filme e a fotografia
na gênese da antropologia visual, sem participar, entretanto, do processo de
institucionalização desse campo da antropologia. Na atualidade, percebemos que a
convergência entre desenho e antropologia visual tem operado mais pela diferença que
pela semelhança, quando o pensamento que orienta e legitima o desenho como forma de
fazer antropologia tem, muitas vezes, a fotografia como contraste (Taussig 2011; Ballard
2013)10.
54 “Por que alguns antropólogos desenham atualmente e quais os efeitos dessa prática em
suas metodologias/resultados de pesquisa?” foram as perguntas que nos serviram como
guias para pensarmos o momento atual. Em síntese, percebemos uma profusão de motivos
e justificativas para desenhar inversamente proporcional à diversificação de estilos e
metodologias que podem servir como inspiração para outros antropólogos. Tendo em
vista a marginalização do desenho na antropologia, não é estranho constatar o misto de
empolgação e dúvida que acompanha a espécie de novidade trazida pela inserção do
desenho na prática antropológica.
55 Entretanto, a mesma marginalização – cujo efeito é libertador, gerando múltiplos
investimentos de difícil catalogação e em ampla profusão – apresenta também outras
faces. Por um lado, há pouco conhecimento de uma prática mais comum do que se
imagina na história da antropologia – o que faz do desenho uma novidade velha. Por
outro lado, a marginalização também pode ter um efeito paralisante, quando não sabemos
ou não nos sentimos seguros quanto ao fato de que, sim, podemos desenhar como parte
integrante de nossas pesquisas. Desse modo, este artigo buscou suprir, de forma ainda
parcial, uma lacuna no que concerne ao desenho feito por antropólogos, recuperando essa
relação histórica e os trabalhos que tratam desse assunto ao redor do século XXI com
vistas a um futuro que parece promissor.
BIBLIOGRAPHY
Afonso, Ana Isabel, Manuel João Ramos. 2004. “New Graphics for Old Stories: Representation of
local memories through drawings”. Pp. 66-83 in Working Images: Visual Research and Representation
in Ethnography, edited by A. I. Afonso, L. Kurti e S. Pink. London: Routledge.
Azevedo, Aina. 2013. “Conquistas cosmológicas: Pessoa, casa e casamento entre os Kubheka de
KwaZulu-Natal e Gauteng.” Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. Brasília. 346 f.
_____. 2014. “Desenhos na África do Sul: Desenhar para ver, para dizer e para sentir.” Pós – Revista
Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 5 (13): 221-226. (http://periodicos.unb.br/
index.php/revistapos/article/view/12594)
_____. 2016. “Um convite à antropologia desenhada.” METAgraphias: metalinguagem e outras figuras
, v. 1 n.1 (1): 194-208. (http://periodicos.unb.br/index.php/metagraphias/article/view/15821)
Azevedo, Aina e Manuel João Ramos. 2016. “Drawing Close – on visual engagement in fieldwork,
drawings and the anthropological imagination”. Visual Ethnography.
Ballard, Chris. 2013. “The Return of the Past: On Drawing and Dialogical History”. The Asia Pacific
Journal of Anthropology, 14:2, 136-148. (http://www.tandfonline.com/doi/
abs/10.1080/14442213.2013.769119#.V2byzFe2Dwc)
Barbosa, Andréa, Edgar Teodoro da Cunha. 2006. Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro: Zahar.
Barnard, Alan, Jonathan Spencer. 2010. “Time and Space.” Pp. 689-693 in The Routledge
Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology, edited by A. Barnard, J. Spencer. London and New
York: Routledge.
Boserman, Carla. 2014. “Entre grafos y bits”. Obra digital – Revista de Comunicación, Narrativas y
diseño digital, número 6, fevereiro. (http://revistesdigitals.uvic.cat/index.php/obradigital/
article/view/33)
Caiuby Novaes, Sylvia. 2004. “O uso da Imagem na Antropologia.” Pp. 113-119 in O fotográfico,
edited by E. Samain. São Paulo: Hucitec e SENAC.
Causey, Andrew. 2012. “Drawing flies: artwork in the field.” Critical Arts, 26 (2), pp. 162–174.
(http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/02560046.2012.684437)
_____. 2011, “Space, line and story in the invention of an Andean aesthetic”. Journal of Material
Culture, 16 (1): 3-23. (http://mcu.sagepub.com/content/16/1/3.abstract)
Evans-Pritchard, Edward. 2002. Os Nuer. Uma descrição do modo de subsistência e das instituições
políticas de um povo nilota. São Paulo: Editora Perspectiva.
Freud, Sigmund. 2015. Obras completas, volume 13: conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917).
São Paulo: Companhia das Letras.
Focillon, Herni. 2012. Elogio da mão. Instituto Moreira Sales, Rio de Janeiro. Disponível em:
https://issuu.com/ims_instituto_moreira_salles/docs/elogiodamao_07.
Geismar, Haidy. 2014. “Drawing it Out”. Visual Anthropological Review, 30 (2): 96-113. (http://
onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/var.12041/full)
Gell, Alfred. 1975. Metamorphosis of the Cassowaries. Used Society, Language and Ritual. London: The
Athlone Press.
_____. 1999. The art of anthropology – Essays and Diagrams. Edited by E. Hirsch. Londres: The
Athlone Press.
Grimshaw, Ann, Amanda Ravetz. 2005. “Introduction: Visualizing Anthropology.” Pp. 1-17 in
Visualizing Anthropology, edited by A. Grimshaw and A. Ravetz. Bristol: Intelect.
_____. 2015. “Drawing with a camera? Ethnographic film and transformative anthropology.”
Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 21, issue 2: 255-275. (http://
onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-9655.12161/abstract)
Gunn, Wendy. 2009. Fieldnotes and Sketchbooks: Challenging the boundaries between descriptions and
processes of describing. Edited by W. Gunn. Frankfurt: Peter Lang.
Hendrikson, Carol. 2008. “Visual Field Notes: Drawing Insights in the Yucatan”. Visual
Anthropology Review, 24 (2): 117-132. (http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/
j.1548-7458.2008.00009.x/abstract)
_____. 2010. “Ethno Graphics: Keeping Visual Field Notes in Vietnam”. Expedition, Vol 52, n 1:
31-39. (http://www.penn.museum/documents/publications/expedition/PDFs/52-1/Ethno-
Graphics.pdf)
Ingold, Tim. 2011a. Being Alive – Essays on movement, knowledge and description. London and New
York: Routledge.
_____. 2011b. “Prologue.” Pp. 1-20 in Redrawing Anthropology. Materials, Movements, Lines, edited by
T. Ingold. England: Ashgate.
_____. 2013. Making. Anthropology, archeology, art and architecture. London and New York:
Routledge.
Kuschnir, Karina. 2012. “Desenhando Cidades”. Sociologia & Antropologia. Vol. 02.04: 295-314.
(http://revistappgsa.ifcs.ufrj.br/wp-content/uploads/2015/05/14-ano2-v2n4_registro_karina-
kuschnir.pdf)
Lagrou, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa,
Acre). Rio de Janeiro: Topbooks.
Makar’ev, Sergei A. 1928. Polevaia etnografiia. Kratkoe rukovodstvo i programma dlia sbora
etnograficheskikh materialov v SSSR. Moscow.
Martins, Humberto. 2012. “Sobre o lugar e o uso das imagens na antropologia: notas críticas em
tempos de audiovisualisação do mundo.” Etnográfica, vol. 17(2): 395-419. (http://
www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0873-65612013000200008)
Newman, Deena. 1998. “Prophecies, Police Reports, Cartoons and Other Ethnographic Rumors in
Addis Ababa”. Etnofoor, vol. 11 (2): 83-110. (https://www.jstor.org/stable/25757941?
seq=1#page_scan_tab_contents)
Olivar, José Miguel. s/ data. Ethnographic drawings: some insights on “prostitution, bodies and
sexual rights” (http://www.sxpolitics.org/wp-content/uploads/2009/06/artigo-
dibujos_ze_final.pdf)
_____. 2007. “Dibujando Putas: reflexiones de una experiencia etnográfica con apariciones
fenomenológicas.” Pp. 54-84 Revista Chilena de Antropologia Visual (10), Santiago de Chile. (http://
www.rchav.cl/imagenes10/imprimir/nieto.pdf)
_____. 2010. “Guerras, trânsitos e apropriações: políticas da prostituição feminina a partir das
experiências de quatro mulheres militantes em Porto Alegre”. Tese defendida no Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 385 f.
Ramos, Manuel João. 2004. “Drawing the lines – The limitation of intercultural ekphrasis.” Pp.
147-156 in Working Images: Visual Research and Representation in Ethnography, edited by A. I. Afonso,
L. Kurti e S. Pink. London: Routledge.
_____. 2008. “Portugal. 1960.” Pp. 152-157 in Diários de Viagem: desenhos do quotidiano, edited by E.
Salavisa. Lisboa: Quimera Editores.
_____. 2015. “Stop the Academic World, I Wanna Get Off in the Quai de Branly. Of sketchbooks,
museums and anthropology”, Cadernos de Arte e Antropologia, 4 (2): 141-178. (https://
cadernosaa.revues.org/989)
Salavisa, Eduardo. 2008. Diários de Viagem – desenhos do quotidiano, edited by E. Salavisa. Lisboa:
Quimera Editores.
Taussig, Michael. 2009. “What Do Drawings Want?” Culture, Theory and Critique, vol. 50, issue 2-3:
263-274. (http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14735780903240299?
journalCode=rctc20#.V2cPV1e2DaY)
_____. 2011. I swear I saw this. Drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago and London:
The University of Chicago Press.
Wright, Pablo. 2008. Ser en el sueño: Crónicas de historia y vida toba. Buenos Aires: Editorial Biblos.
NOTES
1. A pesquisa bibliográfica que deu origem a este artigo foi desenvolvida durante o estágio de
pós-doutorado na University of Aberdeen. Agradeço à CAPES pela bolsa que viabilizou tal projeto
de pesquisa e, consequentemente, o presente artigo.
2. Ao longo do artigo há diversas traduções feitas por mim – o que pode ser notado quando a
referência é em língua inglesa ou espanhola e a citação em língua portuguesa.
3. Seria muito oportuno trazer uma série de desenhos no transcorrer do texto, entretanto, a
reprodução dos mesmos se fez impossível pela questão dos direitos autorais.
4. Os desenhos etnográficos da coleção do museu Kunstkamera se encontram no site: http://
www.kunstkamera.ru/kunst-catalogue/index.seam?page=1&c=ARTS
5. O livro em questão é um guia para etnógrafos em campo escrito antes da Segunda Guerra
Mundial. O autor, Makar’er, tomou notas das aulas de Vladimir Bogoraz que lecionava o curso
“Introdução à etnografia” na Leningrad State University, atual Saint Pertersburg State
University. Agradeço ao amigo e colega Dmitry Vladimirovich Arzyutov por compartilhar comigo
seu interesse pelo desenho russo, me apresentar o site do museu Kunstkamera, livros sobre o
tema do desenho e ainda traduzir passagens do russo para o inglês, como foi o caso da presente
referência.
6. Na atualidade, um exemplo bastante interessante que reúne o desenvolvimento de técnicas de
desenho como parte da formação de estudantes de antropologia é apresentada por Kuschnir
(2014). Trataremos desse assunto na próxima seção.
7. Aqui não nos aprofundaremos na antropologia visual e seus desdobramentos, bastando
salientar que existe uma diferença entre antropologia visual e antropologia do visual. Conforme
Martins (2012: 406), embora “exista uma antropologia do visual (Ruby 2005; Ribeiro 2004) que
analisa sistemas e culturas visuais e as imagens ou produções visuais enquanto geradoras de
significados (Ribeiro 2004), a antropologia visual que tem predominado assenta numa base
metodológica na qual o filme etnográfico ou o documentário têm lugar central (Ruby 2005)”.
8. Um filme da expedição ao Estreito de Torres disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=XuVDciKvJ0Q.
9. Merleau-Ponty recupera uma ideia semelhante de Rodin ao expressar uma crítica à fotografia.
Para Rodin, a pintura que representa cavalos cavalgando no espaço – o Derby de Epson de
Géricault – é mais verdadeira que o instante congelado da fotografia que, por sua vez, revela a
posição correta das patas, mostrando, porém, um cavalo que parece saltar no mesmo lugar. A
frase de Rodin é a seguinte: “É o artista que é verídico, e a foto que é misteriosa, pois, na
realidade, o tempo não pára.” (Rodin apud Merleau-Ponty 2004: 41).
10. Para uma crítica aos limites da abordagem de Ingold e Taussig com relação ao desenho como
um verbo, ou seja, como um processo de pesquisa que considera a forma final subsidiária, ver
Grimshaw e Ravetz (2015). Em “Drawing with a câmera? Ethnographic film and transformative
anthropology”, as autoras lançam mão de uma reflexão que equipara o processo de filmar ao
processo de desenhar, sem evitar o fato de que o filme compromete-se inevitavelmente com o
enquadramento, enquanto o desenho permanece aberto. É somente ao considerar os rendimentos
de ambas as práticas que as autoras pensam na possibilidade de uma visão mais radical da
antropologia, na qual esta poderá ser considerada como uma “prática de fazer imagens”
(Grimshaw e Ravetz 2015: 271).
ABSTRACTS
Por que os antropólogos desenhavam e por que pararam de fazê-lo? Com questões como essas em
mente, o presente artigo busca percorrer e recuperar de forma fragmentária partes de uma
possível história do desenho na antropologia, bem como os regimes de visualidade que a
atravessam, com o objetivo de apresentar o estado da arte da relação entre desenho e
antropologia em torno do século XXI. Como observa Ballard (2013), assistimos a uma “virada
gráfica” no presente, quando diversos antropólogos voltam a desenhar, renovando nossas
perguntas iniciais: por que alguns antropólogos desenham atualmente e quais são os efeitos dessa
prática em suas metodologias/resultados de pesquisa? Ao levantar tais questões, este artigo
pretende iluminar os caminhos passados, atuais e, quiçá, futuros do desenho na antropologia.
Why did anthropologists make use of drawings and why did they stop doing so? This article seeks
to recount the history of drawing and its regimes of visibility in the course of anthropology’s own
history, and discusses the relation between drawing and anthropology at the turn of the 21st
Century. As Ballard noted, we are witnessing a “graphic turn” in anthropology. The fact that a
number of anthropologists are showing a renewed interest in drawing leads back to the author’s
preliminary question: why do anthropologists (still) use drawing in their fieldwork practice, and
to what effect in terms of methodology and research findings? By discussing these questions, the
author seeks to shed some light on the past, present and, eventually, future direction of the
practice of drawing within that of anthropological.
INDEX
Keywords: drawing, graphic anthropology, methodology, visibility
Palavras-chave: desenho, antropologia gráfica, métodos, visualidade
AUTHOR
AINA AZEVEDO
UFRN, Natal–RN, Brasil
Aina Azevedo é doutora em antropologia pela Universidade de Brasília, fez pós-doutorado na
University of Aberdeen, Escócia, e trabalha atualmente como professora substituta na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil.
ainaazevedo@gmail.com
Philip Cabau
EDITOR'S NOTE
Recebido em: 2016-02-16
Aceitado em: 2016-05-09
Mudanças
1 Nos anos mais recentes o desenho tem vindo a ser recuperado como ferramenta analítica
do antropólogo.1 Este tímido retorno não é independente da história da geração que por
ele se começa a interessar. Ao contrário daquela que a precedeu e para quem a novidade
da imagem digital assumiu um inquestionável protagonismo – tanto pela facilidade do
registo como pela sua plasticidade – esta nova geração já cresceu num contexto onde
esses meios estão naturalizados, ao ponto de o acesso ao real se ter tornado
essencialmente visual. Mas sendo esta uma geração que pensa por imagens, porque não
integra ela o desenho na sua agenda? Talvez porque ele lhes pareça anacrónico; ou
porque o desenho não é exatamente uma imagem como as outras. Contudo, enquanto
ferramenta para pensar o trabalho do antropólogo, e comparativamente com o seu papel
no trabalho antropológico de há cem anos atrás, o desenho ocupa hoje um lugar mais útil
– e portanto atual – do que aquele que tinha nessa época. É verdade que muitas das
funções que o desenho pode hoje desempenhar no trabalho etnográfico se alteraram.
Enquanto utensílio dirigido à descrição e aos registo dos dados do objeto de estudo, a sua
importância foi sendo drasticamente reduzida. Nos primórdios do trabalho etnográfico o
desenho conheceu muitas vezes uma espécie de lugar natural na sua articulação com a
escrita e também com o registo fotográfico (que à época era muto diferente da fotografia
atual). Era um modo próximo do uso que dele fazemos na infância quando, aí pelos 8 ou 9
anos, já sabemos escrever, mas ainda lhe reservamos um espaço especial... até ao dia em
que outros meios e urgências se lhe sobrepõem, comprometendo-o. O facto é que uma vez
perdida essa prática só através de um trabalho árduo, coordenado e consciente, o
conseguimos resgatar, e à perceção que ele nos proporcionava.
gráficas que vão surgindo no papel, distraindo-se dos conteúdos que supostamente
deveriam veicular. O problema principal é que, por um lado, fazer incidir a prática do
desenho estruturalmente sobre a dimensão lúdica e ilustrativa do mesmo (a armadilha do
antropólogo como autor/desenhador) é incorrer no risco de perder aquilo que o desenho
pode efetivamente trazer ao trabalho etnográfico e que o distingue dos demais meios de
produção de registos visuais2. Há, todavia, outros antropólogos que por instinto, mais do
que por inépcia (pois esta é fácil de tratar e qualquer prática bem dirigida a resolve),
resistem a essas convenções e modos de desenhar. As suas anotações gráficas,
desajeitadas e idiossincráticas – geralmente registadas, à mistura com as notas escritas,
nos cadernos que acompanham o trabalho no terreno – permanecem incólumes às
armadilhas das figurações codificadas. Até porque, conforme o testemunham muitos
registos do trabalho etnográfico, o tempo do antropólogo durante o seu trabalho no
terreno é frequentemente descontínuo, sujeito a interrupções, pausas, esperas. Muitos
dos desenhos da antropologia, tecnicamente mais elaborados, surgiram no contexto do
preenchimento desse espaço quotidiano – um pouco como acontecia com os gestos semi-
distraídos do artesão no fim do seu dia de trabalho, como o polimento de um pormenor ou
a inscrição de um motivo ornamental. A pós-produção não ocupa, na prática do desenho,
um lugar central. Há certamente desenhos que são retrabalhados no momento da
publicação do trabalho, mas muita da representação meticulosa dos desenhos
etnográficos talvez tenha resultado mais desse ritmo meio desatento do que de um
primor descritivo intencional. Posicionados entre o “doodle”, as preocupações da
representação e o primor da apresentação, este é talvez o sítio onde os desenhos do
antropólogo mais se tendem a aproximar da ilustração.
6 Expurgar a dimensão lúdica da relação com o desenho, afastando-o da influência dos
modelos através de um método supostamente asséptico, seria evidentemente uma falsa
resolução do problema. O que importa é evitar a cristalização dos desenhos em “método”,
que o conduziria inevitavelmente à mera figuração e, consequentemente, a um declínio
da atenção – bem como à adoção de maneirismos e convenções figurativas. O problema da
adoção de um método de desenho é que este, por se estruturar integralmente sobre
convenções gráficas, assume a sua inscrição no interior de uma comunidade que é, ela
mesma, sustentada por esse sistema de códigos (tornando-se essa mesma comunidade o
destino de eleição desses desenhos). Esta tendência configura uma armadilha à própria
liberdade do antropólogo, pois esses desenhos – que assentam sobre a linguagem da
ilustração – tenderão a tornar-se, eles mesmos, o objeto da sua atenção, distraindo-o dos
assuntos que verdadeiramente o devem ocupar e restringindo a capacidade experimental
que o desenho, por natureza, possui – a razão mesma pela qual ele deve ser integrado nas
ferramentas de análise etnográfica do antropólogo. Neste sentido, o método ideal será um
“não-método”, uma prática intensiva sem outra fixação que não aquela que cada assunto
exige. Basta pensar nos desenhos que Leroi-Gourhan (Leroi-Gourhan 2002) produziu; as
soluções gráficas que adotou são particularmente ajustadas ao objeto do seu estudo,
problematizando as imagens daqueles objetos por uma via que mais nenhum utensílio de
registo o permitiria (mas tratando-se de outros objetos, aquela teria sido, muito
provavelmente, a forma errada de desenhar).
7 De um modo geral é preciso usar de muita prudência face ao modo como o desenho se
tende a configurar como linguagem, com uma sintaxe que desloca o assunto do “desenho-
em-processo” para o “desenho-como-produto”. O interesse do desenho no trabalho
etnográfico não consiste em ele tornar-se um veículo para fixação sintagmática de signos,
mas numa prática de abertura de inscrições para a potenciação da atenção – através das
linhas que ligam a coisa percecionada aos gestos do desenhador e ao pensamento em ato
do próprio etnógrafo, numa articulação complexa de escolhas – que elege umas coisas em
detrimento de outras. Contrastando com outras formas de produção de imagens, o
desenho é transitório. Ou seja, mais do que fixar a imagem de um objeto ou de um
acontecimento, ele veicula a experiência desse contacto, permitindo aceder à sua
compreensão enquanto processo do olhar, isto é, sem precisar de cristalizá-lo como
produto. É sobretudo esta sua transitoriedade que o distingue dos outros meios e que
deveria, por complementaridade e articulação com as demais formas de análise e
pensamento da prática antropológica, ser protegida e desenvolvida.
8 Quando nos deparamos com os mais interessantes desenhos feitos por antropólogos – ou
seja, aqueles que colocam efetivamente problemas – perguntamo-nos se na verdade o uso
do desenho que integra o trabalho etnográfico não andará mais perto das anotações de
um artista plástico contemporâneo do que, por exemplo, dos desenhos de um ilustrador.
Neles, o seu assunto não é tanto a fixação descritiva das formas, mas a tentativa de
captura de uma singularidade cuja natureza é ajustada ao registo gráfico: o esforço de
reconstituição da ideia interna da forma – da mecânica que a configurou – através de um
processo que só o desenho consegue capturar.
9 Aceitar esta perspetiva sobre o papel do desenho no trabalho etnográfico e antropológico
implica, evidentemente, viver um paradoxo: praticar intensamente o desenho resistindo
sempre à tendência que essa prática possui (como qualquer outra) para se tornar
proficiente. A dificuldade está no seguinte facto: desconfiar dos hábitos, resistir à
configuração de uma prática em método é algo que só pode acontecer se esta é
experimentada como resistência. Ou seja, se a prioridade do desenho for a de fazer jus aos
critérios da própria investigação etnográfica. Uma atenção que passa por promover, no
trabalho etnográfico, um uso contínuo e intensivo do registo gráfico. Nunca como prática
integralmente autónoma e independente, mas sempre ocupando um espaço, por frágil
que seja, no interior de um contexto topológico mais complexo – acompanhado por
outras formas de contacto e de registo do real.
O desenho … e o resto
10 Não poderia, contudo, um outro meio de análise e registo do mundo visual proporcionar
uma experiência análoga, cumprir um propósito semelhante ao que propomos aqui para o
desenho? Sim, talvez, mas só se sujeito a condições muito excecionais. Mas antes de
alimentar a rivalidade entre os meios de análise visual da etnografia ou de lamentar
nostalgicamente a exclusão do desenho da caixa de ferramentas da antropologia, vale a
pena lembrar os contextos nos quais o desenho ocorreu até à profusão da era digital.
Quando o etnógrafo se confrontava com objetos (coisas, imagens) que lhe eram
absolutamente alheios, o desenho permitia duas operações a) compreender, através dos
registos gráficos do desenho, esses objetos e o contexto de onde eles surgiam, e b)
demorar-se neles e aceitá-los (construir aquela “boa distância” que o convívio com a
estranheza exige). Se a primeira destas operações é hoje anacrónica e mesmo inverosímil,
já a segunda confirma-se absolutamente ajustada ao presente. As suas caraterísticas – a
capacidade de síntese que o desenho proporciona, o tipo de atenção que permite no
acesso ao objeto (pois no desenho a atenção acompanha o objeto, capturando-o através de
um movimento de contacto, de um processo que é simultaneamente háptico e empático),
de significado. O primeiro coincide com as imagens com que enchem as “redes sociais”, o
segundo encontra-se em terrenos de especialidade, menos acessíveis, como as artes
plásticas. E se o primeiro vive acompanhada por comentários incessantes, sempre
exteriores a ela, já o segundo é propriedade exclusiva dos comentadores autorizados.
Ambos dependem, contudo, da palavra – que ocupou o lugar que elas, fotografias, foram
capazes de significar sozinhas.
14 A fotografia desempenhou, no trabalho etnográfico, uma função performativa que hoje já
não possui. Para além da técnica permitir convocar uma dramaturgia mágica, ela
promovia uma ação performativa, um espaço de curiosidade e partilha que permitia
alcançar um patamar de cumplicidade ou, mais exatamente, a criação de uma
comunidade operativa e propícia ao trabalho etnográfico. Dir-se-ia que o desenho, um
meio de registo anterior à própria palavra escrita, tende agora a ocupar esse espaço
performativo. Não é, naturalmente, qualquer desenho que pode reproduzir essa função,
pois a habilidade (as relações entre o objeto e a figuração) torna-se um elemento central
desse processo. Muitos são, contudo, os antropólogos desenhadores que reconhecem, no
seu trabalho etnográfico, esta função dramatúrgica do desenho.
15 c) O filme, por sua vez, é o meio de maior sucesso na captação do grande público, como a
profusão de festivais de cinema documental e etnográfico o comprova. Mas é também
aquele que tende a gerar mais equívocos, pois a imagem movimento, rivalizando
visualmente com a própria realidade, cria a ilusão de convocar o próprio objeto,
produzindo uma naturalização das narrativas. Já o desenho, está, pela sua própria
natureza abstrata, isento desse risco – e esta é uma das suas maiores diferenças. Nele
encontra-se resolvida a disjunção entre a perceção do objeto e o seu registo. E, nessa
unidade, protege-se da tendência que os registos visuais do trabalho etnográfico têm em
tornarem-se produtos acabados neles mesmos. No modo como ele convoca o olhar,
obrigando a uma atenção que mobiliza o corpo inteiro, articulando durações e fragmentos
percetivos (sensações) de modo sempre transitivo, o desenho é distinto dos demais
dispositivos da perceção. A sua perceção é, para mais, estruturalmente topológica, aberta
e, portanto, sempre suscetível de ser alterada.
16 Se a fotografia nos obriga, simultaneamente, à reinvenção do espaço que se encontra fora
do enquadramento e à invenção das imagens que antecederam ou sucederam aquela que
testemunhamos, já o filme, pela naturalização que caracteriza grande parte das
montagens, corre o risco de se substituir à experiência original da ação registada, de
produzir a ilusão da convocação do objeto. Nisto ele admite uma passividade sem
mediação, deixando o observador saciado. Numa época em que as diversas fases do
processo (captação das imagens, sua edição, produção e distribuição) se misturam e
sobrepõem é natural que a tendência seja mais aquela de produzir objetos do que a de
colocar perguntas 3. O desenho, na sua economia operativa, não incorre no perigo que
frequentemente se verifica no documento cinematográfico: a perda da consciência que a
sua função é transitória. Pela sua própria natureza (informalidade, rapidez), o desenho
tem a capacidade de manifestar na prática, quando usado bem, a potência da sua
transitoriedade, mantendo-se focado naquilo a que permite aceder e não naquilo que ele é
enquanto forma e objeto.
A atenção do desenho
17 O que distingue o desenho das restantes formas de registo e testemunho do trabalho
etnográfico e lhe permite cumprir uma função distinta dos demais meios é sobretudo o
facto dele ser um meio visual composto por abstrações: a própria linha é uma entidade
gráfica cuja existência depende diretamente da decisão que determina a própria
inscrição. Como referiu Paul Valéry, com o desenho “apercebemo-nos do que ignoramos,
do que não tínhamos verdadeiramente visto. Até então o olho não tinha senão servido de
intermediário” (Valéry 2002: 77-82).
18 De entre as diversas esferas do trabalho do antropólogo que o desenho pode auxiliar, duas
delas parecem-me prioritárias: a própria análise do objeto e a inscrição do testemunho
dessa observação na experiência do próprio desenhador. Ambas gravitam à volta de um
mesmo assunto: o trabalho da atenção. Estas são, a nosso ver, as duas funções que o
desenho pode proporcionar (particularmente numa época de produção intensiva e de
consumo extensivo de imagens) e aquilo que o diferencia dos demais meios. Em suma: o
papel fundamental do desenho será, para o antropólogo, o de “auxiliar a minha atenção”.
O centro dessa atenção não pode, no ato do desenho, residir integralmente nem no objeto
desenhado, nem na sua representação. Os modos do desenho, que não são exatamente
técnicas nem linguagem, deverão ser capazes de se furtar às suas próprias armadilhas (à
habilidade, ao desejo de um estilo autoral). Esta “minha” atenção encerra três dimensões
que, apesar de distintas, estão relacionadas entre si, podendo caraterizá-las nos seguintes
termos:
19 a) Descritiva: estabelecendo e ampliando as ligações entre o observador e a coisa
observada;
20 b) Testemunhal: aprofundando as inscrições da experiência da observação no próprio
observador;
21 c) Performativa: problematizando a integração do observador etnográfico na
comunidade.
22 Sobre a primeira dimensão da atenção, a mais evidente, vale a pena recordar de novo
Valéry (2002: 77-82), numa das definições mais célebres sobre o que pode o desenho: “Há
uma grande diferença entre ver uma coisa sem um lápis na mão e vê-la desenhando-a”.
Menos conhecido, todavia, é o desenvolvimento que o autor dá a esse fragmento. Um
pouco adiante o autor fala da questão da vontade contida no ato de desenhar, referindo
que “É preciso aqui querer para ver, e esse olhar reclamado possui o desenho
simultaneamente como fim e como meio”. Nesta coincidência entre meio e fim reside uma
das mais relevantes funções do desenho: ele permite estabelecer, no próprio ato do
desenhar, uma simultaneidade entre ver, inscrever e compreender. E é a memória dessa
experiência, que aqui chamamos testemunhal, da coisa vista e registada naqueles traços
sobre o papel, a memória dessa coincidência, que permanecerá inscrita no autor do
desenho muito depois do acontecimento. Uma coincidência que os outros meios, mesmo a
palavra escrita, não possuem. No fundo é uma ideia simples, esta que sustenta o desenho;
mas é absolutamente extraordinária – pelo simples facto de, em última instância, ela não
ser partilhada. A intuição de Paul Valéry é tanto mais notável quanto sabemos que o seu
texto data de 1938, muito antes do desenvolvimento das ciências cognitivas e da
neurologia – como hoje as conhecemos. No desenho a experiência coexiste com o seu
registo. Por outras palavras, o desenho dobra a perceção sobre a atenção. Uma das suas
particularidades é, portanto, a sua potência de contacto com o objeto, o modo como
proporciona as ligações entre o desenhador e a coisa desenhada, obrigando ao mesmo
tempo a aproximações múltiplas e à escolha de posições e pontos de vista privilegiados; a
procurar enfim uma disposição adequada (suspensa entre a agitação que caracteriza a
curiosidade infantil e a tensa imobilidade do predador). E, sobretudo, ele envolve uma
demora, implica aceitar uma duração que é a do desenho em ato – sempre determinada
por ele, mesmo quando se trata de um mero esboço. O desenho, no seu significado mais
elementar, quase desapareceu, deixando de ser evidente o que ele proporcionava ao
desenhador-observador: uma prática que contém, em potência, uma perceção negociada.
Tanto aquela do desenhador com o objeto e consigo mesmo, como também as outras,
recuperadas no ato do desenho: as comunidades que tanto o objeto como o autor do
desenho (etnográfico) vêm convocar. Sendo a antropologia, como lembra Tim Ingold
(2011b: 238), não uma prática sobre o mundo, mas sobretudo com ele, não se compreende
como pode o desenho ser excluído das ferramentas da compreensão e perceção do real.
23 Sobre a segunda dimensão da atenção, a mais enigmática, importa lembrar que apenas
uma parte dos desenhos feitos por antropólogos – provavelmente menor do que se supõe
– resulta de um registo direto de observação do objeto. Os desenhos servem muitas vezes
para recordar ou fixar uma impressão, uma forma, um acontecimento; outras para refletir
sobre o já visto – a partir de memórias ou de notas sucintas. “Não posso esquecer-me
disto”, é a inscrição secreta no verso de todo o desenho feito por um antropólogo. Cada
uma destas palavras tem a mesma importância e cumpre a mesma convergência em
direção à razão pela qual aquele desenho aconteceu. É disto que fala Michael Taussig em I
Swear I Saw This (Taussig 2011) quando combina a ideia de “empatia mágica” de James
Frazer, na sua obra icónica The Golden Bough com a “necessidade de testemunhar” de que
fala George Bataille quando este se refere aos desenhos pré-históricos das grutas de
Lascaux. O desenho – “este” desenho – é sempre um testemunho daquilo que vejo e que
deve permanecer inscrito, com estes traços, em mim (para não se perder por entre a
multitude da perceções, sensações e objetos que nos atravessam constantemente).
Enumerar as funções do desenho implica, contudo, resolver uma dificuldade acrescida: o
seu lugar na formação do antropólogo. Isto porque a existir uma chave para a
estruturação desse ensino do desenho, ela será complexa, senão mesmo paradoxal,
podendo resumir-se na seguinte pergunta: como orientar a prática pedagógica de modo a
que o estudante alcance um certo domínio do desenho, sem que esta se torne mera
habilidade (que mais não faria senão produzir velaturas sobre o trabalho da atenção que
ele, desenho, deve servir)?
24 Sobre a terceira dimensão da atenção – talvez a menos frequente das três – importa
lembrar que os dispositivos de registo digital da imagem se tornaram hoje quase
invisíveis. A sua presença deixou de se fazer notada, não apenas por estes se tornarem
banais, mas porque a tecnologia lhes permite serem cada vez mais pequenos e mais
próximos do corpo, como próteses naturalizadas. Mas esta realidade possui duas faces; é
que se eles perderam a sua presença disruptiva, perderam também a sua aptidão
performativa para produzir os efeitos dramatúrgicos, tantas vezes úteis, na relação do
antropólogo com o meio do trabalho etnográfico. O que é hoje estranho é ver um
antropólogo tirar um lápis e um bloco de notas... e desenhar. Por outras palavras, a
frequência com que um procedimento – ou um dispositivo – é usado num determinado
contexto constitui um fator cuja importância não pode ser ignorada. O efeito de raridade
produz atenção, cria uma diferença que o antropólogo, melhor que ninguém, sabe
reconhecer – uma vez que a condição que carateriza o seu trabalho implica, para o bem e
para o mal, controlar essa mesma distância. O acontecimento excecional que foi outrora a
fotografia, obtida no contexto de uma comunidade (em estudo) e revelada num
laboratório improvisado no local, há muito que se perdeu. Do mesmo modo, partilhar um
filme acabado de registar no ecrã de um telefone portátil tornou-se um gesto banal. Por
efeito de diversos fatores o desenho pode hoje, curiosamente, recuperar esse lugar de
renegociação das distâncias entre o antropólogo e a comunidade que este estuda. De entre
os testemunhos que mencionam este facto, o texto de Ana Isabel Afonso (2004) – com
colaboração de Manuel João Ramos – demonstra, de forma exemplar, o papel que o
desenho pode desempenhar num trabalho etnográfico4. São várias as razões que
proporcionam ao desenho esta aproximação performativa, negocial e empática, entre o
antropólogo e a comunidade em estudo:
25 a) Todas as comunidades, ou quase, conhecem hoje – ao contrário do que acontecia
anteriormente à globalização – os códigos e convenções das figurações gráficas de origem
“ocidental”.
26 b) O desenho mantém-se – e tudo indica, infelizmente, que assim permanecerá por
bastante tempo – uma prática arredada das formações básica e liceal. O deslumbramento
ou, pelo menos, a surpresa face à aptidão do desenhador no espaço público tenderá a
permanecer.
27 c) Desenhar no exterior, no espaço público, é hoje uma prática pouco frequente. A
possibilidade de acompanhar esse processo, é algo de ainda mais raro.
28 d) O desenho envolve, na sua execução, recursos rudimentares: o corpo e o dispositivo de
inscrição (riscador e suporte). Este despojamento técnico proporciona ao desenhador uma
plataforma de interação mais nivelada face à comunidade onde se insere – ao contrário de
outros dispositivos que são, muitas vezes, a evidência de uma assimetria no acesso à
cultura material.
formação que pretenda abordar o assunto do desenho para a antropologia deverá, a meu
ver, cobrir simultaneamente diversas frentes. A sua implementação pedagógica passará,
naturalmente, pela definição de estratégias específicas traduzidas em exercícios
concebidos para o efeito. Conscientes do risco que é, numa formulação deste género,
separar artificialmente os conteúdos das suas estratégias, enumeramos abaixo seis áreas
de ação que deverão sustentar um ensino do desenho na área da antropologia:
30 1ª. Desenvolver táticas de aquisição das agilidades de base do desenho – mantendo a
focagem na questão da atenção, mais do que na habilidade da representação.
31 2ª. Insistir na multiplicidade das formas de atenção (referidas atrás) colocando o
desenhador perante distintos cenários – cuja natureza e diversidade lhe permitam
explorar diversos tipos de duração (dessa mesma atenção). O desenho providencia, nesse
contacto que agrega olhar, objeto e inscrição, uma temporalidade e uma concentração
absolutamente singulares. E, com a sua prática, também proporcionará o acesso a uma
maior finura da perceção, que é fundamental ao trabalho etnográfico.
32 3ª. Sensibilizar para a questão da necessidade do controle do espaço da perceção e da
delimitação do assunto em análise (por via do desenho), de modo a poder tratá-lo como
um tipo distinto de imagem: não apenas o enquadramento e a distância face ao objeto,
mas as durações que caracterizam as relações entre este e as estratégias gráficas para o
seu tratamento.
33 4ª. Aprender a usar o desenho numa articulação ativa com os demais meios de registo e
análise da imagem (descrições escritas, fotografias, filmes, etc.), de modo a conseguir
extrair do desenho aquilo que só ele pode trazer ao trabalho etnográfico. Apesar da
questão se encontrar geralmente ausente das preocupações de uma formação em
desenho, a articulação com os outros meios e dispositivos analíticos da “caixa de
ferramentas” do desenhador é fundamental para os estudantes de antropologia acederam
ao que “pode” o desenho.
34 5ª. Implementar, através do uso do desenho, a consciencialização da natureza
fragmentária da própria perceção – por forma a resistir à tendência para criar imagens
“acabadas”, constituindo-se assim o desenho, à partida, como um produto e não um
processo experimental – problema frequente no uso da fotografia e do filme em contexto
pedagógico.
35 6ª. Introduzir, no interior de um contexto específico e laboratorial adequado ao trabalho
etnográfico, a dimensão performativa (e mesmo dramatúrgica) do ato de desenhar, de
modo a permitir o acesso a narrativas dialogantes sobre os desenhos produzidos no
terreno. Esta esfera pode envolver não apenas o etnógrafo no seu desenhar, mas também
a comunidade em estudo, através da recorrência ao uso participativo do desenho – como
o testemunham alguns desenhos recolhidos por Margaret Mead e, mais recentemente,
por Michael Taussig.
36 A partir deste elenco de problemáticas cremos ser possível definir uma estratégia
pedagógica para um ensino do desenho adequado à antropologia. Este deverá,
evidentemente, considerar o contexto formativo, o perfil dos estudantes (isto é, a sua
posição curricular numa formação em antropologia), a duração da ação pedagógica e o
meio onde este curso/workshop irá ocorrer (isto é, o espaço público e a comunidade alvo
– e suas problemáticas latentes suscetíveis de serem tratadas por esta via).
37 Os desenhos propriamente ditos deverão ser acompanhados de um trabalho
propedêutico, capaz de tratar algumas das questões implicadas na prática etnográfica em
problemática em estudo. Não se pode realmente falar aqui de imagens que caraterizem
uma “esfera de conteúdos”, uma vez que o que realmente importa no desenho não é tanto
a aparência dos objetos de estudo, mas algo que esses desenhos veiculam. Isto é, nem os
desenhos precedem a problemática, nem o contrário. O desenho existe para tentar dar
consistência às relações que possam existir entre a experiência visual e a problematização
etnográfica propriamente dita. Compreende-se pois que o desenho deva desempenhar
sobretudo uma função “testemunhal”, tornar-se um utensílio de afinamento da perceção,
onde o domínio dos meios técnicos constitui um fator pouco relevante. Esta é, a nosso ver,
uma questão central, pois uma uniformização dos modos de desenhar pode, pelas razões
que mencionámos atrás, perturbar o acesso que o desenho tem a este trabalho da atenção.
Pode dizer-se que, paradoxalmente, é preferível uma declarada inépcia no uso do
desenho, um “cuidado para desenhar mal” (como acontece, por exemplo, com Michael
Taussig), à adoção de sistemas de representação convencionais que tenderão a instalar-se
entre o pensamento analítico e o registo gráfico, dando primazia a este último. Claro que
o antropólogo terá que entender que a utilidade dos seus desenhos é sobretudo a destes
funcionarem enquanto meio de rememoração da experiência original da perceção (a sua
dimensão “xamânica”, como refere aquele autor). O intuito do desenho não é portanto
ilustrar o objeto, apresentando a sua imagem a uma comunidade externa à antropologia,
mas articular as duas dimensões complementares dessa experiência: testemunhar o
acontecimento e inscrever esse testemunho. Ambas envolvem um elaborado processo de
diálogo consigo mesmo que muitas vezes ignorando ou simplesmente não conseguindo
aceder à dimensão descritiva que o desenho possui, se centra na potência de evocação que
ela, a experiência do desenho, consegue por vezes encerrar.
42 Não se trata tanto, talvez, de perseguir um desenho da antropologia, quanto configurar
uma constelação desarticulada que se posiciona nos antípodas deste: desenhos singulares,
atípicos, muitas vezes desajeitados e frequentemente idiossincráticos. Em última
instância deverá existir não tanto um desenho “do” antropólogo, mas o desenho “no”
antropólogo – atípico hospedeiro de um organismo invulgarmente transitivo. Os
desenhos dos antropólogos, pela sua condição mesma, mas também por se inscreverem
numa prática analítica e reflexiva, plural e multiforme, tenderão a manifestar-se de um
modo tentativo e fragmentário: desenhos crus e descosidos. Para o antropólogo que os
desenha eles tenderão a ocupar um espaço insubstituível, desempenhando uma função
que é, afinal, evidente.7
BIBLIOGRAPHY
Afonso, Ana Isabel e Ramos, Manuel João (ilustrações). 2004. “New graphics for old stories,
Representation of local memories through drawings”. Disponível em http://iscte.academia.edu/
ManuelJoaoRamos/Papers/733733/
New_Graphics_for_old_Stories_illustrations_for_Ana_Isabel_Afonsos_chapter_in_Working_Images
.
Barthes, Roland. 1998. Oevres Complètes II, La Chambre Claire. Paris: Seuil.
Cabau, Philip. 2012. Design pelo Desenho: Exercícios, jogos, problemas e simulações. Lisboa: FCA Design,
Grupo Lidel.
Dias, Jorge, Margot Dias e Fernando Galhano. 1964. Os Macondes de Moçambique. Lisboa: Junta de
Investigação do Ultamar – Centro de Antropologia Cultural.
Elkins, James. 2002. Why Art Cannot Be Taught. Illinois: University of Illinois Press.
Godard, Jean-Luc. 1965. Montage, Mon Beau Souci. Paris: Cahiers Du Cinéma 65.
Ingold, Tim. 2011a. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. Primeira versão do
texto “Creativity – Abduction or Improvisation? Conferência no Keble College, Oxford, RU”.
London: Routledge
Ingold, Tim. 2011b. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. Primeira versão do
texto “Radcliff-Brown Lecture in Social Anthropology”. London: Routledge
Leroi-Gourhan, André. 2002. O Gesto e a Palavra: Memoria e Ritmos. Lisboa: Edições 70.
Michaud, Yves. 1999. Enseigner l'art?. Analyses et réflexions sur les écoles d'art. Nimes: Jacqueline
Chambon.
Pauly, Danielle. 2006. Le Corbusier : Le dessin comme outil. Lyon: Fage Editions.
Pedretti, C. 1983. Leonardo Da Vinci: Nature Studies from the Royal Library at Windsor Castle.
University of Washington Press.
Ramos, Manuel João. 2015. “Stop the Academic World, I Wanna Get Off in the Quai de Branly. Of
sketchbooks, museums and anthropology.” Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 4, No 2 | 2015 p.
141-178.
Sennett, Richard. 2008. The Craftsman. New Haven-London: Yale University Press.
Taussig, Michael. 2009. “What Do Drawings Want?” Culture, Theory and Critique, 50:2-3, 263-274,
DOI: 10.1080/14735780903240299.
Taussig, Michael. 2011. I Swear I Saw This: Drawings In Fieldwork Notebooks, Namely My Own. Chicago:
University of Chicago Press.
NOTES
1. Não sendo antropólogo, a minha relação com desenhos cujo intuito primeiro consiste na
observação do mundo precedeu a descoberta de autores/antropólogos, como Tim Ingold e
Michael Taussig, que nos seus textos abordam esta vertente do desenho. Isto decorreu do facto de
me encontrar familiarizado com o desenho e seu ensino em duas áreas distintas – as artes
plásticas e a arquitetura. Aí, o desenho de observação possui já uma tradição de vários séculos,
constituindo um património incontornável, como o testemunham muitos dos desenhos de
Leonardo, Turner, Delacroix ou Le Corbusier. Tenho, todavia, a consciência que a minha incursão
no território da antropologia só pode ser feita sob reserva e com a cautela que resulta do facto
desta não ser a minha área de especialidade.
2. Será talvez útil referir aqui o interesse que os desenhos de análise e de observação realizados
por alguns autores que trabalharam no espaço das artes plásticas (Belas Artes) e da arquitetura
podem ter para a própria antropologia. Nas primeiras ocupam posição fundadora os desenhos de
Leonardo da Vinci através das inúmeras áreas de interesse que caracterizaram a sua vida. Da
botânica ao corpo humano, da mecânica à arquitetura, todos os territórios do saber são
suscetíveis de serem compreendidos pelo desenho – pois só ele é capaz de aceder às razões
internas da forma e da matéria. Já no século XIX, há dois exímios desenhadores com trabalho
nesta área específica do desenho que devem ser referidos. O primeiro foi Eugène Delacroix, cujos
cadernos da sua viagem a Marrocos testemunham um excecional uso do desenho de observação.
O segundo, William Turner, comprova na sua obra pictórica, o papel didático que o desenho
assume no conhecimento das formas e das forças que as constituem – ele, que no começo da sua
vida profissional, desenhou centenas de desenhos de representação rigorosa de paisagens
inglesas. Já na arquitetura, os desenhos de registo de Le Corbusier continuam a ser hoje uma
referências notáveis, tanto pelo seu esforço de inteligibilidade como pela economia de meios com
que são tratados os mais diversos assuntos: territórios, arquiteturas, pessoas e utensílios. Os seus
cadernos da “Viagem ao Oriente” registam centenas de desenhos daquele que foi, provavelmente,
o trabalho mais “etnográfico” da arquitetura. Num contexto bem mais próximo de nós, tanto no
espaço como no tempo, a obra do arquiteto Álvaro Siza Vieira constitui um notável testemunho
sobre o papel do desenho na compreensão do mundo e das suas formas.
3. Referimo-nos aqui especificamente uma tendência que se manifesta frequentemente no filme
documental e, particularmente, ao produzido em contexto pedagógico. Os bons filmes
etnográficos sabem, evidentemente, escapar-se desta falácia – como o cinema de Jean Rouch o
comprova.
4. John Berger (2005) fala desta dimensão contida no desenho – uma forma latente de diálogo
performativo – no seu texto “Drawing on Paper”, que faz parte da recolha dos seus textos sobre
desenho “Berger on Drawing”.
5. No sentido da distinção entre antropologia e etnografia que refere Tim Ingold no referido
texto (Ingold 2011b)
6. Esta tradução recorre, por transcrição, à versão do texto apresentado da referida conferência
(Ingold 2011b).
7. Nota final: O presente texto é desenvolvido a partir de um ponto de vista muito específico: o
papel que o desenho pode desempenhar no trabalho etnográfico – e, sobretudo, o seu lugar na
perceção do real do antropólogo. Ou, mais precisamente, o modo como pode ser pensada a sua
aprendizagem no quadro formativo de um currículo de antropologia. Por outras palavras, não se
pretende incidir sobre os tipos de desenho nem sobre as qualidades que os caracterizam. Uma vez
que, no entanto, no texto se faz referência a desenhos e cadernos de notas, registos do trabalho
de campo, etc., adiante indicamos os “hyperlinks” que na internet correspondem a exemplos que
podem ilustrar algumas das questões abordadas, ajudando assim a contextualizar os conteúdos
trabalhados no texto.
Eugène Delacroix, Páginas do caderno da Viagem a Marrocos (c.1832): www.imarabe.org/sites/
default/files/delacroix.pdf
ABSTRACTS
Fala-se cada vez mais da recuperação do desenho no trabalho etnográfico. Mas o que está
exatamente a ser resgatado? Que particularidades pode o desenho trazer ao trabalho do
antropólogo que nenhuma outra prática da perceção possua também? E, uma vez identificadas
essas particularidades, como se consegue integrá-las na formação do antropólogo? Partindo do
desenho como prática-em-pensamento, a sua natureza, os seus utensílios na perceção da
realidade visual e o seu lugar por entre os demais utensílios do antropólogo, o presente texto
pretende identificar e caracterizar do trabalho da atenção e a sua importância no trabalho
etnográfico.
The practice of drawing is becoming ever more present in ethnographic work. But what is it
exactly that is being brought back to the anthropological field with the drawing pencil? Which
are the particularities that situate the act of drawing within the work of the anthropologist? How
can we include drawing in anthropology’s teaching curricula? Starting out from drawing as a
means of reasoning and a tool to foster visual awareness, the article explores the nature of
drawings, drawing as a tool for perception and the possible place of drawing within the
anthropologist’s fieldwork toolkit.
INDEX
Keywords: drawing, pedagogy, anthropologic research, ethnographic notebooks
Palavras-chave: desenho, ensino, investigação antropológica, cadernos etnográficos
AUTHOR
PHILIP CABAU
Instituto Politécnico de Leiria, Portugal. Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha
cabau@esad.ipleiria.pt
Christine Escallier
NOTE DE L’ÉDITEUR
Recebido em: 2016-01-07
Aceitado em: 2016-05-16
Introduction
1 Le dessin a certainement accompagné le développement de l’écriture : “Je crois que l’art
dit art premier ou art rupestre, naturellement sacré, destiné à mémoriser mythes ou
événements, est bel et bien en soi une première écriture.” (Coppens cité par Anati 2000).
L’Homme semble-t-il a toujours dessiné : sur sa peau ou celle d’animaux, sur les parois
d’une grotte ou les murs de New York, sur tous les supports et en toutes occasions pour
lutter contre ses peurs, marquer son territoire, communiquer et transmettre ses
connaissances.1 Car dessiner les objets et les êtres, c’est témoigner et appréhender le
monde environnant tout en clarifiant une pensée. Ces représentations visuelles ont
notamment eu une place essentielle au temps des grands voyages d’exploration, quand les
navigateurs2 embarquaient avec eux des explorateurs, des missionnaires et des
naturalistes qui ont produit des descriptions de terres (cartographie, topographie), de
faunes et de flores (classification), de peuples primitifs (culture). Ces documents
constitueront les premières grandes sources ethnographiques de l’histoire des Hommes
Fig. 1 – Ferronnier Rom des monts Mátra au XIXe siècle (Théodore Valerio, 1891). Domaine public
(PD-Art).
l’objet technique, y associer son milieu et son organisation sociale, contexte qui seul
autorise la technique à se développer et qu’elle transforme en retour. Cette dissociation,
Leroi-Gourhan l’a contestée, considérant la technique comme un domaine à part entière
du savoir et de la culture. Il consacre d’ailleurs une grande part de ses recherches à
l’anthropologie des techniques à partir desquelles divers concepts sont dégagés,
notamment ceux de fait et de milieu technique4, ainsi qu’un cadre méthodologique à
partir du degré du fait et de la chaîne opératoire. Il s’agit là d’un principe de “découpage”
de l’action technique et d’analyse de ses séquences qui fige le geste dans son milieu,
comme le fait un dessin. Il permet de déterminer l’ordre linéaire des faits, d’observer les
innovations techniques et les variations opératoires. Ces apports fondamentaux à
l'épistémologie de ce champ disciplinaire sont réunis dans des ouvrages présentant des
milliers de dessins.5 Notons également que cette discipline6 a pris son essor du fait surtout
de l’archéologie où le dessin a longtemps prévalu sur l’infographie qui traite
numériquement les images d'origine – dessinées ou photographiées.
7 Une culture se construit dans l’action sur des cultures matérielles spécifiques qui jouent
un rôle fondamental dans l'organisation des groupes, la division sexuelle de leurs tâches,
leur hiérarchie (Julien & Rosselin 2005). Ces cultures matérielles posent ainsi des
questions tout aussi spécifiques auxquelles l’anthropologie – dans une démarche
d’interrogation totalisante – tente de répondre.
8 L’importance de l’objet ethnographique dans l’univers matériel des hommes et le rôle
médiateur qu’il joue entre l’homme et la matière impliquent que l’ethnologue ne se
contente pas de faire parler les gens. Car faire l’ethnographie des techniques ce n’est pas
seulement décrire l’objet, dans sa réalité intrinsèque (objet simple), c’est révéler son rôle
en tant que pensée technique (objet social). L’objet alors prend tout son sens quand celui-
ci est interrogé comme témoin. “Tout est logos ou parole vivante. L’ethnologue sur le
terrain ne doit pas se contenter de faire parler les gens ; il faut qu’il apprenne aussi à faire
parler les choses et à les écouter.” (Bastide 1968: 1075). Marcel Mauss considère l’objet en
tant que fait social, prônant la nécessité de les collectionner et de les cataloguer,
“meilleur moyen pour dresser un catalogue de rites” (1967: 7). Il conseille aux
muséographes la règle fondamentale qui est de toujours l’accompagner de dessin :
Chaque objet recevra un numéro porté à l'encre, renvoyant à un inventaire et à une
fiche descriptive, donnant les renseignements sur l'usage et la fabrication de
l'objet. […] Un dessin sera joint chaque fois qu'il faudra montrer le maniement de
l'objet, un mouvement de la main ou du pied (exemple : pour l'arc et les flèches, il
est important de fixer la méthode de lancement par la position des bras, des doigts
aux divers moments; le métier à tisser est incompréhensible sans documents
montrant son fonctionnement). (op.cit.: 12)
9 Ainsi, en décrivant sa morphologie, sa fonction et son fonctionnement, et en le replaçant
dans la main de son utilisateur, on voit que celui-ci s’insère dans un ensemble d’objets,
d’actions et de savoir-faire empiriques et didactiques, formant une chaîne opératoire.
Cette chaîne, articulation d’une série d’opérations, d’actions structurées, associe le geste,
l’outil et l’homme, et les connaissances nécessaires pour la réalisation de cette action.
Plus qu'un récit, la description est une explication, une mise en mémoire des procédés
techniques incluant des aspects sociaux organisationnels. Elle constitue la matière
première de l’ethnologie des techniques (Leroi-Gourhan 1964, Cresswell 1972,
Geistdoerfer 1973, Balfet 1975-1991, Lemonnier 1976).
10 André-Georges Haudricourt joue également un rôle essentiel dans le développement de
l'anthropologie française des techniques, discipline qu’il contribue à promouvoir en étant
l’un des premiers à affirmer que la technologie est une science – une science humaine
(1987). Il propose deux orientations primordiales. La première concerne l’angle
d’observation de l’objet qui peut révéler différentes perspectives :
Voici une table. Elle peut être étudiée du point de vue mathématique, elle a une
surface, un volume ; du point de vue physique, on peut étudier son poids, sa
densité, sa résistance à la pression ; du point de vue chimique, ses possibilités de
combustion par le feu ou de dissolution par les acides ; du point de vue biologique,
l'âge et l'espèce d'arbre qui a fourni le bois ; enfin du point de vue des sciences
humaines, l'origine et la fonction de la table pour les hommes. Il est clair que pour
un objet fabriqué, c'est le point de vue humain de sa fabrication et de son utilisation
par les hommes qui est essentiel, et que si la technologie doit être une science, c'est
en tant que science des activités humaines (Haudricourt 1987: 37-38).
11 La seconde, la question de la contextualisation de l’objet technique, “[…] mettre autour de
lui l’ensemble des gestes humains qui le produisent et le font fonctionner” (op. cit.: 119).
Dans le domaine particulier de la construction navale, Bertrand Gille rejoint Haudricourt
sur ce dernier point, constatant, dans Histoire des Techniques (1978), qu’une technique
isolée n’existe pas et qu’elle doit faire appel à des “techniques affluentes dont la
combinaison concourt à un acte technique bien défini” (Gille 1978: 15). Ces travaux
s’inscrivent dans l’âge d’or de l’ethnologie des techniques et ont contribué à redéfinir le
statut du document graphique comme support de la représentation identitaire et
manifestation de la pensée conceptuelle.
12 L’anthropologie maritime s’est construite en France dans le cadre de cette anthropologie
des techniques. La mer a longtemps été considérée comme un espace exclusif des sciences
naturelles avec l’étude de ses organismes et leur milieu – binôme fondamental de
l'écologie. Aussi, les activités de l'homme en rapport avec les milieux aquatiques sont
restées peu connues, notamment en raison de leur spécificité. La mer, son rivage et ses
ressources présentent, en effet, des particularités telles – variabilité, irrégularités,
invisibilité, non contrôle de la reproduction, bornage impossible – que, pour devenir
marins ou pêcheurs, des hommes, des femmes, des communautés ont dû inventer des
systèmes techniques, sociaux, économiques différents de ceux que les terriens ont mis en
place pour occuper et exploiter un milieu stable et en partie contrôlable (Geistdoerfer
2007).
Fig. 2 – Épuisette rodafole (6 – Esposende, Fão – rodafole). Oliveira, Galhano & Pereira, 1975, p. 56.
Dessin de Fernando Galhano. © Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação
Fotográfica (DGPC/ADF). Centro de Estudos de Etnologia, Museu Nacional de Etnologia, Lisbonne-
Portugal.
longtemps, l’étude des populations qui vivent directement ou indirectement des mers et
des océans est due, en grande partie, aux sciences sociales qui associent alors les sociétés
de pêcheurs au monde rural :
O litoral, a costa, o mar e o oceano eram simplesmente extensões do continente e as
populações que viviam desses ecossistemas eram considerados "camponeses" e
assalariados marítimos (no caso da navegação costeira ou oceânica) para os quais as
cidades litorâneas e as zonas costeiras representam espaço de moradia. 8 (Diegues
1995: 8)
14 Les anthropologues brésiliens choisiront, d’ailleurs, de parler d’“anthropologie des
sociétés de pêcheurs” plutôt que d’anthropologie maritime (Collet 1993), renforçant ainsi
l’identité d’une science humaine plus spécifiquement tournée vers l’halieutique. Or,
qualifier l'anthropologie de maritime ne signifie pas qu'il y a une anthropologie “propre
aux sociétés maritimes” et que celle-ci peut se développer indépendamment de
l'anthropologie des sociétés rurales, mais de préciser qu'il y a, au sein de ce sous-champ,
des techniques d'observation, des formes d'analyses particulières à ces sociétés dont
l'activité principale leur est spécifique. De ces techniques d’observation et de leurs
rendus, le croquis ou le dessin technique, la photographie, sont indissociables de
l’enquête de terrain. L’objet technique acquiert alors un statut iconographique illustratif
entrant dans un corpus.
15 Le groupe “pêcheur” peu à peu se distingue des autres groupes, devenant une entité à
part entière. Cette nouvelle typologie va donc permettre de mettre en évidence plus
rapidement le profil d’engagement atypique des gens de mer. Leur activité de pêche
devient un métier, c’est-à-dire une activité qui répond à un type de savoirs et un mode
spécifique d’acquisition de ces savoirs manuels, techniques ou mécaniques,
empiriquement acquis et reposant sur un ensemble de savoirs incorporés (Geistdoerfer
op. cit.: 24). Étudier des sociétés de pêcheurs impose tout à la fois, assurément, une
approche technologique et une étude des savoirs aussi bien que des représentations. Les
années 1970 marquent plus qu’une transition. Le champ disciplinaire est reconnu. Une
profusion d’études monographiques sont publiées. Elles donnent une place
prépondérante à la représentation visuelle, notamment à travers le dessin, cet autre
langage qui permet une compréhension universelle de la définition et de la réalisation de
l’objet technique. On peut citer quelques monographies : Actividades agro-marítimas em
Portugal de Oliveira, Galhano et Pereira (1975), Pêcheurs acadiens/Pêcheurs madelinots.
Ethnologie d’une communauté de pêcheurs, de Geistdoerfer (1987) et L’Empreinte de la mer.
Identité des pêcheurs de Nazaré-Portugal, thèse soutenue par de l’auteur en 1995.
16 – La première mobilise cette technique à des fins d’inventaire des engins utilisés pour la
récolte des algues marines (219 illustrations), au nord du Portugal, leur donnant un
caractère essentiellement muséographique (objet simple) plus proche de la fiche
technique, la photographie étant parallèlement utilisée pour sa mise en situation (Fig. 2
et 3).
17 – La deuxième, avec ses 77 dessins et 103 photographies, décrit autant l’objet (un bâton)
que l’action entre l’homme et la matière (l’animal, la peau), dans son milieu associé, en
somme elle explique la technique et le milieu (Fig. 4).
Fig. 3 – Phase du procès de travail (70 – Esposende, a norte da Apúlia). Oliveira, Galhano & Pereira,
1975, p. 56. Photographie de Henrique de Oliveira. © Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de
Documentação Fotográfica (DGPC/ADF). Centro de Estudos de Etnologia, Museu Nacional de
Etnologia, Lisbonne-Portugal.
Fig. 4 – Techniques pour assommer et transporter les phoques (Geistdoerfer 1987: 213 et 216)
compose. Le trait – gras ou fin – le dissèque (Fig. 5), en extrait les informations utiles pour
son assemblage et son fonctionnement.
21 C’est la dynamique de l’objet qui surgit sous sa mine. Il faut “l’ethnographier”, en faire
une étude descriptive et analytique, sur son terrain et dans un contexte qui lui est propre.
Savoir dessiner un objet n’exige pas d’avoir “fait les beaux-arts” mais d’avoir déjà acquis
une connaissance de sa mise en situation, du contexte dans lequel il agit : il faut avoir vu
l’objet en mouvement pour le dessiner à l’arrêt.
22 Le dessin dévoile la vision particulière par laquelle l’observateur perçoit la matière. Il
s’attache à révéler la nature de l’objet, dans une approche sensible des matériaux
naturels. Cette perception, que l’anthropologue Handelman (1990) – suivi du sculpteur
Guiseppe Penone (2011) –, nomment regard tactile, se situant entre le voir et le toucher,
mémorise l’expérience sensorielle au point de se souvenir des qualités matérielles de
l’objet renvoyées par le trait du dessin. Et bien que “l'image d'une calebasse n'a(ait) pas le
goût de la bière de mil.” (Colleyn 1999), en examinant mes archives iconographiques, je
me souviens de l’épaisseur du drap qui confectionne les pantalons des pêcheurs portugais
de Nazaré ou de la légèreté des corsages de ses mareyeuses ; de la masse d’une senne
débordante de sardines au relevage, jusqu’au fumet puissant qui remonte à la surface au
fur et à mesure que la nappe se gorge d’eau, attestant des usages répétés de l’engin…
Cette odeur écœurante s’inscrit dans la mémoire qui dépend des fonctions sensorielles. Le
cerveau enregistre toutes les saveurs (Le Breton 2006). Le toucher est omniprésent dans le
règne vivant. La mémoire dépend de ces apports sensitifs indispensables pour percevoir
l’environnement et elle joue un rôle fondamental lors de la reproduction, par le dessin, et
avec un souci de justesse, ce qui n’est plus. Cet enjeu est particulièrement vif quand il
s’agit de demander à des informateurs de dessiner des objets disparus ou inaccessibles au
regard. Nos sens, en effet, construisent et reconstruisent les souvenirs en les transposant,
voire les travestissant, sans cesse. On fait alors appel au sensible pour décrire un au-delà
du perceptible, une autre réalité, autrement dit une intuition sensible de l’espace.
Fig. 6 – Galion Machaquene-Rapozo N 338 G. TJB 16,600 et Senneur galeão (Dessin de l’auteur).
Fig. 7 – La flottille artisanale de Nazaré et Peintures des œuvres mortes des senneurs galeões
(Dessins de João D.E.).
29 Par la suite ces représentations ont été confirmées par d’autres témoignages. Car, bien
qu’ayant cessé leurs activités vers 1902-1905, ces galions avaient été vus et touchés. En
effet, même si ceux qui y ont embarqué ont depuis disparu, leurs enfants et petits-
enfants, jouant sur la plage à l’époque où les embarcations étaient encore échouées sur le
sable, y montaient sans hésitation pour imiter les gestes de leurs aînés, répétition jouée
de leur futur métier (Fig. 8). Mémoire d’enfants, de fils de pêcheurs et de pêcheurs eux-
mêmes, leurs souvenirs se sont renforcés longtemps après qu’ils ont été produits.
Fig. 8 – Espace d’apprentissage sur la plage de Nazaré : enfants jouant sur un galion (Auteur inconnu
Crédit DR).
30 Du souvenir construit à partir d’une image réelle d’un objet concret, à l’image produite
par l’esprit d’un objet invisible, une question se pose sur leur authenticité mais à des
degrés différents. Cette preuve d’authenticité est-elle d’ailleurs une nécessité absolue
quand il s’agit de décrire l’immatériel ? Pour tenter de répondre à cette interrogation, j’ai
mené deux autres expériences à partir d’objets moins palpables, voire inobservables et
demandé de rendre “visible l’invisible” par la transcription iconographique des
connaissances acquises empiriquement au cours des ans et des campagnes de pêche. Ces
dessins, qu’il s’agisse des coques de galions ou des plans de madragues 13 et des cartes des
fonds qui suivent, ont été réalisés sans aucune directive ni instruction émise
préalablement. La technique employée, le support et ses dimensions ont été laissés au
choix des dessinateurs et les projets exécutés hors de ma présence. Il s’agit donc de
productions libres.
Fig. 9 – Madrague à sardine valenciana. Auteur João D.E. (gauche) et Carlos A.D. (droite).
d’apprentissage. En écologie, il sert à étudier les écosystèmes (Çelik et all 2005). Il est “la
manifestation de la pensée irradiante” selon Buzan (1993). S’agissant d’une
représentation mentale qu’un individu se fait de l’organisation de l’espace dans lequel il
se trouve, son utilité ici est de mémoriser des savoirs ainsi que de révéler la création d’un
monde imaginaire. La connaissance et la représentation cognitive de la structure, des
entités et des relations à l'espace – reflet interne et reconstruction de l'espace dans
l'esprit – s’appliquent parfaitement au monde halieutique, et à ses reproductions que je
nomme ici cadastre marin. L'étude descriptive et analytique de ce patrimoine immatériel a
pour objet de capter les puissances de l’invisible, rendre lisible la pensée visuelle. Outil de
créativité, hautement structuré, il permet d’organiser intuitivement les données et de les
partager.
34 En théorie, la configuration générale des fonds est l'objet d'une représentation collective,
ayant valeur de fait établi. Or, quand les pêcheurs la retranscrivent sous forme de cartes,
on s’aperçoit que leurs interprétations comportent de nombreuses variantes.
L'illustration de leurs territoires respectifs révèle le ou les métiers qu'ils pratiquent. En
rapport avec la technique exercée, les pêcheurs affinent alors leur compréhension des
espaces spécifiques appropriés.
35 En tant que représentation mentale, cette image n’est donc pas fixée une fois pour toutes.
Il ne s’agit pas d’une photographie mais d’un ensemble d’informations compilées par le
pêcheur. Le contexte changeant, le cadastre (terrestre) est altéré en fonction de nouvelles
données. Ceci est particulièrement évident quand on fait l’inventaire des objets ayant la
fonction d’amer, des repères qui relient les hommes à la terre dans la navigation à vue. Le
pêcheur qui transmet à sa descendance son seul véritable patrimoine, ses connaissances
des fonds marins, ses pêcheries découvertes, exploitées et gardées jalousement, va
transmettre non pas une image, une carte, mais des renseignements, des propositions
verbales. L’ensemble de ces acquis transmis va être l’objet d’une nouvelle interprétation
qui donnera naissance à un nouveau cadastre marin, l’imaginaire de l’un ne pouvant être
hérité par l’autre. Bien qu’il puisse paraître utopique de chercher à représenter un
cadastre maritime mental, il apparaît cependant que c’est dans cet espace marginal et
complexe, qui se construit seulement par les pratiques, que repose l’un des fondements
identitaires des pêcheurs artisans. L’espace marin, aux structures occultes, immatérielles
et intériorisées, devient un élément de patrimoine, entre nature et histoire du groupe, lui
procurant un sentiment d'identité et de continuité.
Fig. 10 – Le canyon de Nazaré vu par le pêcheur hauturier João à partir de l’enceinte et de la côte
nazaréenne : 1,50 m × 0,83 m (gauche) et détails (droite).
Fig. 11 – Le canyon de Nazaré vu par le pêcheur hauturier João-Paulo (0,69 m × 0,56 m).
37 D’autres informations, liées à la biologie marine, figurent sur les cartes. À un espace, un
fond, est associée invariablement une espèce et la toponymie vernaculaire en fixe le
biotope : Cana da Donzela (julienne), Patão da Faneca (tacaud), Cana da Borda do Besugo
(pageot acarné) – les espèces pêchées. En conséquence, quand on demande aux pêcheurs
de faire l'inventaire de la faune locale, on saisit pourquoi ils le font selon une
classification reposant sur les biotopes – fond rocheux, propre, sableux – définissant
également le type d'engin utilisé pour la capture – ligne, filet, piège. Ainsi la carte de la
Fig. 10 replace le poisson dans son milieu, informe de la qualité des fonds et de la
profondeur des eaux, situe les amers qui permettent de localiser chaque pêcherie (cf. les
phrases soulignées). En somme, le dessin dit tout cela à l’instant de sa réalisation,
conservant une réalité cependant mouvante.
38 Cette méthodologie, basée sur “l’autoreprésentation” montre qu’une carte est avant tout
un support qui utilise comme canal de communication le visuel. Or, quand il s’agit de
cartes imaginées, la construction comme la lecture du message cartographique échappent
au champ disciplinaire traditionnel de la géographie, qui a défini une véritable sémiologie
du signe visuel c’est-à-dire une technique d’interprétation, ou de traduction, pour
comprendre les différents systèmes qui permettent aux individus de communiquer ; “La
science qui étudie la vie des signes au sein de la vie sociale” selon Saussure (1916), ou
encore une sémiologie graphique pour la pertinence des représentations cartographiques
de l’espace, comme l’étude des groupes sociaux qui le peuplent (représentations
paysagères, processus de construction de l’identité).
Fig. 12 – Canyon de Nazaré vu du phare (en bas à gauche) par le pêcheur à la petite palangre locale
Francisco V.
39 On voit donc ici que le principe de “faire parler” les informateurs s’applique parfaitement
à celui de les faire dessiner. L’exercice a pourtant été difficile à réaliser car les pêcheurs
artisans de Nazaré n’utilisent ni carte de navigation à bord de leur barque non-pontée, ni
aucun système d’orientation ou de détection des bancs. C'est par la seule pratique qu’ils
ont acquis tout leur savoir et cette capacité d’affiner analyse et compréhension.
L'apparence est l’élément décisif pour appréhender la mer et la répétition du geste pour
dominer la technique : “La vigie peut sentir, à l'approche du banc, le fumet qu'il exhale à
la surface de l'eau lorsqu'il est d'importance. Seul le sens olfactif de cet homme
expérimenté est éveillé et les autres membres de l'équipage attendent son signal pour la
mise à l'eau du filet.” (Pêcheur, 63 ans). Par conséquent, l'observation qui commande le
geste le plus simple procède d'un lent apprentissage dont la fonction, le contenu et les
modalités ont pour finalité le succès de l’entreprise. L’expérience nourrit cet imaginaire
que les pêcheurs dessinent et cette coopération étroite et volontaire des acteurs du
terrain, le chercheur comme l'informateur, se prolonge également dans la production
d’images plastiques fixes ou en mouvement dans les pratiques de mémorisation des
objets.
Fig. 13 – Enceinte de Nazaré vue par le pêcheur à la senne de plage Carlos (0,61 m × 0,56 m).
42 Dans un premier temps, la photographie a été considérée par les naturalistes et les
archéologues comme un moyen d’archiver des éléments visuels, d’attester de la réalité de
faits observés et de faciliter la prise de note sur le terrain. Pour les anthropologues elle
est rapidement devenue un outil nécessaire, voire indispensable. Malinowski est l’un des
premier à l’utiliser dans son étude chez les Trobriandais comme témoin et Mauss, comme
méthode d’observation, la conseillera fortement dans son Manuel d’Ethnographie : “Tous
les objets doivent être photographiés, de préférence sans pose. La téléphotographie
permettra d'obtenir des ensembles considérables. On ne fera jamais trop de photos, à
condition qu'elles soient toutes commentées et exactement situées : heure, place,
distance.”(1967:14). Après un séjour à Bali, Margaret Mead et Gregory Bateson publient
Balinese Character: A photographic analysis (1942) où figurent plus de 700 photographies :
“Ces auteurs tournèrent durant les années 1936-1938 à Bali et en Nouvelle-Guinée près de
6000 m de film en format 16 mm et prirent 25000 photos” (Stork 1986: 57).
Fig. 14 - Les cinq grandes étapes du mouillage de la senne tournante (La barque décrit un cercle
autour de l’annexe porte-feu ; les bras du filet sont réunis ; positionnement des acteurs pour le halage
des cordes ; fermeture de la senne ; les poissons sont halés à bord). Dessins de l’auteur.
43 Cette démarche est innovatrice car elle prône l’utilisation de la photographie non pas
comme simple preuve mais comme un authentique matériau de recherche. C’est ce que
Edward T. Hall (1986) fait en questionnant la photographie comme un objet-témoin. Elle
n’est pas un artefact artistique mais un document à analyser ; de ce fait elle doit être prise
selon une méthode qui implique que le cliché ne soit pas orienté – chercher à lui “faire
dire” – alors que le but est, en quelque sorte, de l’écouter se raconter. Comme tout objet
technique, la photographie est une narration ethnographique.
44 Pour l’ethnographe des techniques, le passage du dessin à la photographie ou de la
photographie au dessin n’est qu’une étape d’un même processus. L’image
photographique, qui serait perçue comme une amélioration du dessin, est en fait une
autre technique périphérique tendant à nourrir ou à étendre l’activité du dessin. Par
exemple, dans l'étude d’une succession de mouvements, de gestes, il faut prêter une
attention particulière aux points morts (Mauss 1967: 56). Chaque mouvement a un point
de commencement et un point d’arrêt. Il convient de décrire ces phases intermédiaires
ainsi que les mouvements corporels associés. Là réside, notamment, toute la difficulté du
dessin dans sa représentation et interprétation de la réalité. Le dessin 14, qui illustre les
cinq principales phases de la mise à l’eau d’une senne tournante, à partir d’une barque et
avec l’appui d’une annexe, est de l’ordre de l’instantané racontant un moment précis
qu’une photographie aérienne capterait sous un angle identique.
45 Il n’en est pas de même pour la figure 15 qui décrit la technique de navigation de la
barque xávega, au départ du port et puis du rivage à des fins comparatives, suivie de la
mise à l’eau d’une senne de plage et de son relevage. Or seul le dessin permet de suggérer
la présence du filet, de la position de sa poche (a) et de ses cordes (b) tous immergés,
invisibles à l’œil nu, et donc sur un cliché photographique.
Fig. 15 – a) Mise à l’eau de la senne de plage xávega au départ du port (1re phase) et de la plage (2e
phase) et b) Halage de la senne de plage et déplacement des hommes. (Dessins de l’auteur).
46 Si l’on prend également pour exemple le lancement d’un filet épervier, il est important de
fixer la méthode de positionnement des bras, la torsion du buste, l’emplacement des pieds
aux divers moments. Ces postures sont essentielles pour la réussite de l’action technique
et bien plus contraignantes que celles adoptées pour relever une palangre à partir d’un
treuil manuel ou électrique. Dans ce cas précis, la coopération dessin-photographie est
essentielle. Le dessin du filet (Fig. 16-a) offre les détails sur sa construction, invisibles
dans le mouvement que les photographies développent (b et c). Ainsi, différents plans
peuvent être représentés – de côté, séquences par séquences –, pour toute la chaîne
opératoire technique.
Fig. 16 – Épervier (a). Rotation du tronc, appui sur la jambe droite (b). Libération de la corde de jet (c).
(Dessin et photos de l’auteur.)
48 Les illustrations sont les traits marquants des travaux et monographies ethnologiques.
Même si le dessin a pu précéder la photographie dans l’histoire des sciences, il faut
souligner que nombre d’entre eux sont souvent réalisés d’après des photographies. Ce fait
renforce l’idée qu’il n’existe pas qu’une seule technique de reproduction mais plusieurs,
chacune offrant une possibilité d’analyse et de représentation complémentaire du réel.
49 Il semble logique que les pionniers de la photographie ethnographique l’aient été
également dans l’utilisation du cinéma car le film ethnographique permet “de
photographier la vie” (Mauss op. cit.: 149) comme l’ont fait les frères Lumière, dès 1895, en
filmant La sortie de l'usine Lumière à Lyon.
50 C’est également en France que l’ethnologue cinéaste Jean Rouch offre sa plus importante
contribution à l’essor du cinéma ethnographique. Prônant la proximité physique entre les
personnes filmées et le cinéaste, il encourage l’apprentissage par les anthropologues-
cinéastes d’une technique du corps adaptée au tournage caméra à la main et Le Breton,
sociologue de la gestuelle du corps, fera dans ce contexte le lien entre le dessin et la
Réflexion finale
51 L’originalité d’une anthropologie dite visuelle est d’aller à l’encontre du paradigme
anthropologique traditionnel : “La place de l’image mouvante dans une discipline de
mots”, selon l’expression de Mead (cité par Colleyn 1999: 4) se doit d’être justifiée en
avançant que le langage verbal d’une culture est mal adapté pour décrire une autre
culture. La méthode visuelle élargit un vocabulaire verbal considéré comme
insuffisamment précis pour décrire les émotions, les gestes, les postures, les interactions,
comme par exemple une danse. Les images peuvent montrer toute la poésie des
mouvements des corps, l’harmonie des couleurs, l’originalité des vêtements ; en allant
plus loin, le film apportera des informations sur les changements de rythmes et la
musique qui les accompagne. L’image est un autre regard qui traduit, hors des mots,
l’importance que l’ethnologue porte à l’objet animé ou inanimé qu’il représente ou saisit.
Le contexte le lie au sujet et le résultat dépend étroitement du regard et de la technique
du chercheur (compréhension du rituel et choix des mises en perspective, des cadrages,
des objectifs). L’imagerie pallie donc les obstacles rencontrés dans la forme descriptive,
textuelle.
52 L’ethnologue, dessinateur-photographe-cinéaste, est un capteur d’instants et d’histoires
dont le regard est confronté à la complexité de la représentation de l’Autre.
Représentation picturale, mentale, sociale ou de l’intime, et qui a pour objet de proposer
une lecture et contre-lecture du regard posé sur l’objet mis en lumière. L’image n’est pas
une preuve. Elle est une hypothèse. C’est une forme de description, de donnée
d’observation qui suggère et provoque d’autres images, d’autres hypothèses, d’autres
interprétations et bien d’autres représentations encore. Walter Benjamin l’a définie
comme une “dialectique à l'arrêt”. Elle est un lieu où “[…] l'Autrefois rencontre le
Maintenant […]” (1993: 478). Elle suspend le temps et permet une relance discursive, une
lecture renouvelée. Le dessin est donc loin d'avoir dit son dernier mot en anthropologie.
BIBLIOGRAPHIE
Anati, Emmanuel. 2000. L’Art rupestre dans le monde. L’imaginaire de la Préhistoire. Paris: Larousse.
Baldaque da Silva, António Artur. (1891). Estado actual das pescas em Portugal compreendendo a pesca
marítima, fluvial e lacustre em todo o continente do Reino, referido ao ano 1886. Lisboa, Impressa
nacional.
Balfet, Hélène. 1975. “ Technologie ” Pp.44-79 in R. Cresswell (ed.), Éléments d’ethnologie (2). Paris:
Armand Colin.
_____.1991. Observer l’action technique. Des chaînes opératoires, pour quoi faire ? Paris: CNRS.
Bateson, Gregory, Mead, Margaret. 1942. Balinese Character: A Photographie Analysis. New York:
Academy of Sciences.
Benjamin, Walter. 1993. Paris, capitale du XIXe siècle. Le livre des passages. Paris: Cerf.
Breton, Yvan 1981. “L’anthropologie sociale et les sociétés de pêcheurs. Réflexions sur la
naissance d’un sous-champ disciplinaire”, Anthropologie et Sociétés, 5(1): 7-27. Québec : Université
Laval.
Careri, Giovanni, Severi, Carlo and Denis Vidal. 2010. “Traditions iconographiques et mémoire
sociale”, Annuaire de l’EHESS: 415-416.
Çelik, Filiz Dadaser, Ozesmi, Uygar & Akdogan, Asuman. 2005. Participatory ecosystem management
planning at tuzla lake (turkey) using fuzzy cognitive mapping. http://arxiv.org/pdf/q-bio/0510015.pdf
Collet, Serge. 1993. Uomini e Pesce: la Caccia al Pesce Spada tra Scilla e Cariddi. Milano: Giuseppe
Maimone.
Colleyn, Jean Paul. 1999. “L'anthropologie visuelle comme pratique discursive”, Réseaux, 17(94) :
19-47. Hhttp://www.cairn.info/resume.php?ID_ARTICLE=RES_P1999_17N94_0047.
Cresswell, Robert. 1972. “Les trois sources d’une technologie nouvelle”, in J. M. C. Thomas et
L. Bernot (eds), Langues et techniques, nature et société, t. 2:21-27. Paris: Klincksieck.
Diegues, Antônio Carlos. 1995. Povos e Mares: leitura em sócio-antropologia marítima. São Paulo:
NUPAUB-USP.
Escallier, Christine. 1995. L’Empreinte de la mer. Identité des pêcheurs de Nazaré-Portugal, thèse de
doctorat en ethnologie, Paris-Nanterre.
Geistdoerfer, Aliette. 1973. “Leroi-Gourhan : méthode d’analyse des techniques”, La Pensée 171:
60-74.
_____. 1987. Pêcheurs acadiens/Pêcheurs madelinots. Ethnologie d’une communauté de pêcheurs. Paris:
CNRS-PUL.
Gille, Bertrand. 1978. Histoire des techniques : Technique et civilisations, technique et sciences (dir).
Paris: Gallimard.
Hall, Edward T. 1986. “Visual Anthropology: Photography as a Research Method” in John Collier.
Revised & enlarged Edition
Handelman, Don. 1990. Models and Mirrors. Towards an Anthropology of Public Events. New York-
Oxford: Berghan Books.
Jolly, Éric. 2011. “Écriture imagée et dessins parlants. Les pratiques graphiques de Marcel
Griaule” in L’Homme, 4(200). Paris: EHESS.
Julien, Marie-Pierre, Rosselin, Céline. 2005. La culture matérielle. Coll. Repères. Paris ; La
Découverte.
Le Breton, Daniel. 2006. La saveur du monde. Une anthropologie des sens. Paris: Métailié.
Lemonnier, Pierre. 1976. “La description des chaînes opératoires : contribution à l’analyse des
systèmes techniques”, Techniques et culture (1):100-151.
Lopes, Ana Maria Simões da Silva. 1975. O vocabulário marítimo português e o problema dos
mediterrâneos, Sep. da Revista Portuguesa de Filologia, vol. 16-17. Coimbra: Universidade de
Coimbra / Instituto de Estudos Românicos.
Leroi-Gourhan, André. 1964. Le Geste et la parole. 1. Techniques et langage. Paris: Albin Michel.
Oliveira, Ernesto Veiga, Galhano, Fernando & Pereira, Benjamim. 1975. Actividades agro-marítimas
em Portugal. Instituto de Alta Cultura. Lisboa: Centro de Estudos de Etnologia.
Peltre, Christine. 2005. “Les "géographies" de l'art : physionomies, races et mythes dans la
peinture "ethnographique"”. Romantisme 35(130): 67-79.
Penone, Giuseppe. 2011. Le regard tactile. Entretiens avec Françoise Jaunin. Lausanne: La Bibliothèque
des Arts.
Stork, Hélène. 1986. “Psychologie culturelle et ses méthodes : l’apport de l’audiovisuelle” Pp.
53-62 in Socialisation et culture, Interculturels. PUM.
Valerio, Théodore. 1858. “Essais ethnographiques sur les populations hongroises”, L’Artiste, vol. 3,
Paris : [s.n.]: 214-220. Hhttp://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2208358/f225.item.r=.zoom.
NOTES
1. De l’origine de l’écriture, conférence présentée par Emmanuel Anati, Musée de l’Homme, Hors les
murs, le 15 janvier 2015.
2. Marco Polo décrit dans Livre des Merveilles (1295) les richesses de l'Orient, Christophe Colomb
dans Journal de bord (1492-93) les habitants, la géographie des lieux, leurs richesses naturelles
ainsi que des mythes (sirènes, démons, paradis terrestre) et Vasco de Gama la découverte des
Indes dans O Descobrimento da Índia (1497).
3. Le florentin Verrazzano, missionné par François I e pour explorer la côte est de l’Amérique,
relate le 17 avril 1524, la découverte du port qui deviendra New York, in Manuscrit Cèllere, Del
Viaggio del Verazzano... fatto nel 1524 all' America settentrionale.
4. Le fait technique est un fait social qui étudie la manière dont la technologie est utilisée par une
société. Il faut donc situer le fait dans son milieu, un « milieu technique » c’est-à-dire humanisé
qui se caractérise par la production d’objets et de machines.
5. L'Homme et la matière (1943) compte 577 dessins ; Milieu et techniques (1945) 622 et des centaines
dans Le Geste et la parole I-Technique et langage (1964) et II-La mémoire et les rythmes (1965).
6. De cette influence est née une école française dont on peut citer les nombreux chercheurs qui
y ont poursuivi son œuvre, tels Robert Cresswell, Hélène Balfet, Christian Pelras, Pierre
Lemonnier, Christian Bromberger, Aliette Geistdoerfer, Bruno Martinelli, en autres. L'analyse
présentée ici s'inscrit dans la continuité de ces travaux.
7. The Kwakiutl of Vancouver, 1909.
8. Le littoral, la côte, la mer et l’océan étaient simplement des extensions du continent et les
populations qui vivaient dans ces écosystèmes étaient associées à des “paysans” et des salariées
maritimes (dans le cas de navigation côtière et hauturière) pour lesquels les villes littorales et les
zones côtières représentaient des espaces de logement. (Trad. de l’auteur)
9. Le rôle d’équipage est un registre sur lequel figure la liste des membres de l'équipage, la
fonction de chacun, ainsi que l’identité du bateau (immatriculation, nom, etc.).
10. Les œuvres vives sont les parties immergées de la coque; les œuvres mortes les parties
visibles.
11. Dispositif constitué d’une ligne le long de laquelle sont attachés des fils munis d’hameçons.
12. Large filet muni d’une poche permettant la capture de banc de poissons dont le relevage se
fait à bord d’une embarcation ou depuis une plage.
13. Piège constitué de filets verticaux, placé sur le chemin des bancs de poissons.
14. L’éloignement des bancs de sardines des zones côtières, la mécanisation à outrance et
l’utilisation du sonar vont rendre obsolètes les techniques traditionnelles, obligeant les pêcheurs
à abandonner leurs filets improductifs.
15. Un port artificiel a été construit à Nazaré en 1987, à l’entrée du Portugal dans la CEE.
16. En 1948, Tolman utilise le premier ce terme pour décrire comment le rat, et par analogie
l'humain, se comporte dans un environnement.
RÉSUMÉS
L’image – fixe, en mouvement ou virtuelle – est devenue un moyen de communication et de
représentation qui s’impose dans tous les domaines, aussi bien scientifiques qu’artistiques. Sa
permanente évolution technique pourrait paraître frapper d’obsolescence des formes
traditionnellement mobilisées par l’ethnographie, comme le dessin. L’image graphique reste
pourtant un outil fondamental pour les ethnologues-anthropologues. Cet article s’interroge sur
la place et la force du dessin ethnographique dans le rendu des données issues de l’enquête de
terrain et qui s’impose au cours de la recherche. Peut-il supplanter le discours, dépasser les mots,
ou collaborer avec d’autres formes représentatives dont le but initial est de rendre l'objet
présent ? Et qu’en est-il du dessin fait par l’informateur lui-même, à la demande de l’observateur,
et de son interprétation ? C’est dans le cadre d’une anthropologie des techniques et maritime que
l’auteur situe cette problématique particulière en s’appuyant sur une méthode utilisée sur son
terrain – la communauté de pêcheur de Nazaré, au Portugal – où l´étude graphique domine. Cette
expérience permet de mettre en évidence le rôle et les apports spécifiques de ces techniques de
description et d'analyse, démontrant ainsi que l’image plastique – autrement dit la photographie
et le film – ne peut être exclue des pratiques de mémorisation de l’objet dans l’histoire des
sciences humaines.
Images – still, moving or virtual – have become a means of communication and representation
that can be applied, at the same time, in science and arts. The development of techniques of
image production seem to make obsolete some traditional forms mobilized by ethnography, like
drawing. The graphic image remains, however, a fundamental tool for ethnologists-
anthropologists. This paper discusses the role and potential of ethnographic drawings as a tool
for the collection and analysis of field research data. May ethnographic drawings evoke
discourses, exceed the words, or collaborate with other types of representations which seek to
give visibility to the objects of research? And what about the drawing made by the informant
him/herself? The author discusses these question in view of an ethnographic study of fishing
techniques of a fishing community from Nazaré, Portugal. It is suggested that the images should
not be excluded from the object-memories within the history of the human sciences.
INDEX
Mots-clés : dessin ethnographique, objet technique, terrain, anthropologie maritime
Keywords : ethnographic drawing, material culture, fieldwork methods, maritime anthropology
AUTEUR
CHRISTINE ESCALLIER
UMa/CRIA, Funchal/Lisbonne, Portugal
Ethnologue, Universidade da Madeira; Chercheur, Centro em Rede de Investigação em
Antropologia.
chrisesc@uma.pt
EDITOR'S NOTE
Recebido em: 2016-01-31
Aceitado em: 2016-05-18
Introdução1
1 Desenganem-se aqueles que creem que a articulação do pulso perfaz o movimento do
desenho. Não é verdade, aprendi-o há cerca de dez anos. O desenho faz-se da dança, do
corpo que se move em busca da linha, do ombro que se faz à amplitude, do cotovelo que
movimenta o antebraço, o pulso, a mão, os dedos que se firmam com suavidade no lápis.
“Não segurem o lápis com força, os dedos não são garras, deixem-nos fluir com o
movimento” – lembro-me desse primeiro dia passado a desenhar à janela daquela sala
onde ao fundo se avistava o Tejo. Aquela era uma sala na penumbra – perfeita para a
sombra e o contraste de luzes esbatidas – exalando à decomposição dos legumes que nos
serviam de modelo, à tinta-da-china apodrecida que teimávamos em continuar a utilizar
em aparos de bambu ou metálicos, em pincéis chineses de caligrafia.
2 “Não afiem, cortem a madeira com uma navalha, angulem o lápis” – golpeei os dedos uma
imensidão de vezes, mas só o corte anguloso me certifica as linhas e as manchas que
ambiciono. Curiosamente, ainda o faço, retalho a madeira como quando mo ensinaram,
incorporei, tornou-se uma espécie de performance privada que antevê a prática do
desenho. “Iniciem o desenho pelo geral, só depois procurem o particular” – estreitem,
afunilem, agucem, passem do macro para o micro, analisem, observem, se necessário
voltem atrás, pensem o desenho através de escalas – não é também assim em
Antropologia (Dewalt e Pelto 1985; Bernard 2006)?
This media file cannot be displayed. Please refer to the online document http://
3 cadernosaa.revues.org/1122
4 “Eu prefiro desenhar a falar. Desenhar é mais rápido e deixa menos espaço para
mentiras”, diz-se que afirmou um dia Le Corbusier. Não tendo a ousadia nem a sapiência
dos anos para me colocar a níveis altaneiros de mestria, parto apenas da minha (ainda
curta) experiência e humildemente direi que não concordo com a declaração do afamado
arquiteto francês. O desenho “composto” demora, necessita de esboço sobre esboço, de
estudo sobre estudo, encimado pela observação que desconstrói paisagens em perspetivas
e linhas e manchas. Também não sei se o desenho não mente de todo, ou se apenas omite
ou se é espelho fiel do real – tudo isso passa por quem sustém o lápis. Recordo-me da
técnica radiográfica que utilizaram com A Madonna dos Rochedos pertencente à coleção da
National Gallery em Londres2: vão ver que, por trás do que conseguimos percecionar a olho
nu, esta não passa de camada sobre camada de esboços e omissões constantes, de um
desenho inicial completamente diferente que se transfigura na Virgem enlaçando o
Menino, ladeada por uma figura angelical e São João Baptista ajoelhado.
5 O meu desenho omite. Ou melhor, o desenho tem sempre uma carga de abstracionismo
que pode ser confundido com a mentira ou o ato de omissão. Mais do que isso, talvez
possamos considerar que o desenho é sempre interpretativo: acho que é isso. Há quem
desenhe comprometido com o hiper-realismo, quem pinte e esculpa também nessa senda
pela fidelidade ao real; há quem faças juras ao surrealismo, ao realismo, cubismo, mais
estilos acabados em ismo, mas tudo passa inexoravelmente pela forma de interpretar. Não
há como fugir da interpretação na arte – posso aqui apropriar-me de Clifford Geertz (1977
[1973]), perpassar as suas “teias de significados” para o desenho? Será que o desenho, tal
como a antropologia geertziana, não se constituirá somente como uma formalização
interpretativa do objeto em busca de significado?
6 Digamos que para falar do que me trouxe aqui, talvez tenha de me reportar ao passado e à
minha relação com o desenho. Primeiro, admito imediatamente que deixei de desenhar
há cerca de três anos – o que coincide, mais ou menos, com a data em que comecei a
estudar antropologia. Não que uma coisa esteja sintomaticamente associada à outra, mas
já lá chegaremos. Antes de ter abandonado o desenho – ou qualquer prática artística,
sejamos desde já honestos – este sempre me tinha acompanhado. Guardados
religiosamente pelos meus pais, os meus desenhos infantis e totalmente livres de
constrangimentos preenchem agora um número elevado de pastas A43 plastificadas.
Depois, o meu desenho seria formatado na escola dentro de linhas e esquadrias, “não
passem o desenho para fora dos limites!”, em matizes de cores condizentes e bastante
cor-de-rosa que era menina e era assim que tinha de ser. Durante algum tempo foi assim,
pulso “preso” na mesa de desenho, mão direita agarrando o lápis e o marcador moLin com
vigor contra a folha (que não excederia jamais o A3, mais que isso seria um perfeito
exagero).
7 Seria numa escola artística, durante o ensino secundário, que descobriria o prazer de
desenhar acima do A3, com gradações de grafites subindo a escala dos B’s 4, folhas de
gramagem a mais de 100g5. Ensinaram-me a levantar o cotovelo da folha e a rodá-lo em
busca do movimento, a desenhar sombras renegando o esfuminho, a nunca utilizar
borracha – “admitam os vossos erros”. Aqui encontrei o meu traço, apliquei o desenho em
cerâmica e ourivesaria (se bem que para esta última prática me faltasse a vontade). É um
cliché, mas não importa: foi aqui que me “encontrei” dentro do desenho, tendo sido
também aqui que fui definindo um estilo próprio o qual, acima de tudo, me comprazia.
Quis ser artista, “uma artista a sério”, e fui para Belas-Artes achando que o caminho
seguiria naturalmente por ali. Estudei escultura: o desenho é omnipresente na prática
escultórica, mas desiludi-me. A rigidez de um ensino de desenho académico, em
contraposto ao foco conceptual inerente às outras disciplinas artísticas, crivou-me de
uma ambiguidade que se traduziu na forma como passei a desenhar:
desinteressadamente, desapaixonadamente. Senti que me cortavam a liberdade,
fundamentalmente aquilo que mais havia prezado na prática artística e sobretudo no
desenho. Fui esmorecendo. Desisti.
8 Quando iniciei a minha formação em antropologia essa última experiência estava ainda
muito presente. Deitei praticamente tudo fora, reneguei que algum dia tivesse desenhado,
esculpido, pintado, porque me dava prazer, quis esquecer-me de que um dia ambicionara
vir a entrar nos círculos artísticos. Todavia, pendurei o meu último desenho na parede do
meu quarto: uma figura antropozoomórfica, lúgubre e a preto e branco, em género de
memória dolorosa do adeus. Tinha-se acabado. Porém, iria para antropologia avisada por
uma professora de escultura, “o processo artístico tem tudo a ver com o processo
etnográfico”, mas não acreditei que essa relação fosse simétrica. Na realidade a afirmação
pareceu-me, na altura, perfeitamente irreal. Em antropologia, supunha, a arte estava de
fora – metodologicamente, enquanto objeto, na minha conceção muito inicial do que se
trataria a antropologia não existia qualquer espaço para a vertente artística. Estava
“descansada”, nunca iria ter de me confrontar outra vez com algo que tinha
“ultrapassado”. Até que “tropecei” na arte dentro da antropologia.
9 Diga-se que, potencialmente, me terá calhado a “pior” etnografia para quem estava num
processo de afastamento da prática artística. Ironicamente, os Tristes Trópicos (2011)
vieram parar-me às mãos logo no primeiro ano em antropologia, todo ele fotografias
belíssimas e alguns desenhos autorais em junção com uma escrita profundamente
etnopoética. Depois Fernando Galhano (1985a; 1985b), os seus desenhos de espigueiros,
uma predileção minha por estes. Porém, comparativamente, fui-me apercebendo de que a
prática do audiovisual em antropologia – em especial o vídeo, o filme e a fotografia –
assumir-se-ia muito mais premente no trabalho etnográfico do que o desenho (Bateson e
Mead 1942; Costa 2012; Antunes 2014). Aliás, a captação de imagem nestes moldes tornou-
se tão popularizada no seio da etnografia que foi provocando um desapego exponencial,
mas gradual, da antropologia face ao segundo (Afonso 2004; Gama e Kuschnir 2014; Ramos
2015). Tal como questionado por Michael Oppitz:
será o desenho etnográfico uma metodologia fora de moda? Se sim, o que é que
constitui uma forma adequada na contemporaneidade para documentar? Esta
questão mordaz nunca (no meu conhecimento) foi colocada diretamente, mas tem
sido silenciosamente respondida uma e outra vez no decorrer do último século –
pela prática de publicação. (Oppitz 2011:118)6
Mercado
18 Entrei pela primeira vez no 1º de Maio quando criança. Vinha da escola com a minha mãe,
entrámos naquele espaço por pórticos agigantados em formato de fechadura.
Assomaram-se-me imediatamente os odores pungentes dos peixes, olhos leitosos e
guelras avermelhadas, expostos nas bancadas de pedra, a água do seu degelo a pingar-me
os pés. Legumes e fruta, coelhos esfolados nas vitrinas envidraçadas, a ocasional tasca
recheada de garrafas de vidro. Lembro-me sempre dos sons e dos cheiros, das texturas, a
luz do fim de tarde a exacerbar as cores das mercadorias. Não havia, como ainda não há,
qualquer possibilidade de fugir dos estímulos e da omnipresente sinestesia a que somos
sujeitos constantemente neste tipo de espaços (Black 2012).
19 Há um par de anos, num impulso de reabilitação do centro histórico, o mercado seria
recuperado, diga-se “devolvido à cidade”11 – foi nessa altura que retornei ao local. Lá fora,
onde antes uma emblemática figura estatuária encimava uma fonte de repuxos, existe
hoje uma praça calcetada – a estátua ainda presente, marcando o compasso do tempo e os
encontros de amigos. No verão, as esplanadas são montadas paralelamente, em
concorrência direta umas com as outras, cadeiras metálicas ardentes ao sol, os cafés às
quais pertencem como artérias exteriores ao espaço interno do mercado. Os pórticos em
formato de fechadura permanecem também – para mim, o traço arquitetónico mais
marcante das fachadas.
20 É certo que, na altura, aquando da minha primeira visita pós-reabilitação, as minhas
preocupações estavam longe daquelas que permeiam a antropologia. Quedei-me a olhar
para os tetos agora forrados com toros de madeira escura, para o chão antiderrapante e
para as vitrinas aprovadas pelas altas instâncias regulamentadoras. Comprei das bancas,
num ato saudosista que não me pertence originalmente, habituada que estou ao consumo
de grande superfície – praticamente substituinte deste género de comércio (Craveiro
2006; Quartilho 2011). De uma banca para a outra mantêm-se conversas; há ainda uma
ambiência quase familiar entre comerciantes, esta estendendo-se até à relação com os
próprios consumidores (Gonçalves e Abdala 2014) – extravasa-se o espaço: “o mercado,
além do ato comercial que o sustenta, é a nítida expressão de uma cultura.” (Rossi
2001:74).
21 Em mim, o 1º de Maio encontra-se num limiar permanente entre o exotismo e a
familiaridade, talvez por isso tenha escolhido desenhá-lo, torná-lo o meu objeto de cisma.
Ele esteve sempre ali, uma figura como que encravada na cidade, quase à distância de um
olhar; por outro lado, excetuando esporádicas incursões ao seu interior, sempre se
Preocupações
22 Sempre tive dificuldade em desenhar pessoas na rua ou em outros espaços públicos. Nas
aulas desenhei pessoas vestidas pelo estudo dos panejamentos nos corpos, nus em
posições de contorcionista, mulheres grávidas sem qualquer roupa a cobrir a barriga
protuberante, desenhei pessoas em diferentes idades, indivíduos de fisionomia diversa.
Porém, desenhar pessoas desconhecidas, em espaços públicos, sempre me provocou um
imenso mal-estar.
23 Pensem em alguém a desenhar as vossas feições numa viagem de metropolitano, uma
sensação de voyeurismo constante desde o Cais do Sodré a Telheiras 12; rabiscando num
diário gráfico, à vossa frente, um jovem aluno de uma qualquer escola artística. Fi-lo
várias vezes, sem autorização prévia desenhei quem se sentou defronte a mim: era um
exercício muito requerido em diário gráfico, cumpri-o tensa, sabendo que ao mesmo
tempo que observava fixamente o meu modelo incauto, este estaria provavelmente
constrangido pelo meu olhar e pelo lápis riscando o papel. Durante anos foi assim que
procedi. Todavia, quando tentei fazê-lo com o 1º de Maio, mostrei-me totalmente incapaz.
24 Não é que não o fosse fazer, colocar-me a um canto com a minha parafernália de blocos de
papel, lápis e canetas, desenhar simplesmente. Tinha toda a intenção, pareceu-me
“natural”, sempre o tinha feito assim, porquê mudar agora? Apesar de estar preparada
para desenhar o mercado, comerciantes e consumidores, o que estava inconscientemente
preparada para fazer consistia numa “expropriação” imagética dos mesmos, onde a
reciprocidade estaria aparentemente fora da ordem do dia. Mas não consegui.
25 Talvez a causa desta minha renitência esteja assente naquilo que me foi sendo inculcado
enquanto estudante de antropologia: na importância da ética e da confiança nas relações
humanas, na relevância do face-a-face, da mutualidade (Viegas e Mapril 2012) e da
reciprocidade – no próprio “gesto etnográfico” (Pina Cabral 2007). O ato de desenhar não
está isento; melhor, o meu ato de desenhar já não consegue isentar-se destas questões,
porque ao imiscuir-me na antropologia coloquei-me imediatamente numa posição de
questionamento sobre os meus próprios atos em relação ao “outro”.
26 Ao contrário do que cheguei a pensar, a antropologia não “me” subsumiu as artes
plásticas, mas amalgamaram-se uma na outra, metamorfosearam-se, mesclaram-se,
uniram-se: “[...] o “researcher as artist” baseia-se na reconciliação entre práticas
artísticas e pesquisa académica enquanto atividade crítica e criativa que utiliza modos de
expressão artística como ferramenta metodológica e como forma de representação (Given
2008:765). Arte e antropologia deram azo a novas e necessárias preocupações, às quais dei
obrigatoriamente voz quando com elas me confrontei no 1º de Maio.
Desenhar
27 Sentei-me do lado de fora, na praça calcetada. Era de manhã cedo e estava um nevoeiro
cerrado, os transeuntes caminhavam de sacos de compras equilibrados nas mãos. Fiquei
Conclusão
Na ciência como na vida, só encontramos aquilo
que procuramos. Não teremos respostas se não
soubermos quais são as questões. (Evans-Pritchard
1991 [1937]: 240)13
32 Três meses após a minha última avaliação de escultura, a última antes de se “acabarem”
as artes e entrar no desconhecido – estava decidida, acabara-se. Era setembro e
iniciavam-se novamente as aulas. A sessão de apresentação aos novos alunos de
antropologia iria começar ao meio-dia. Cheguei cedo à faculdade, depois atrasei-me numa
correria pela procura da sala. Fiquei em pé, atrás dos meus novos colegas, a olhar para as
costas das pessoas que me iriam acompanhar nos próximos tempos. Senti um profundo
receio – “porque é que estou aqui?”. Na mochila, apenas um caderno e uma caneta bic de
tinta preta.
33 Era total novidade, os últimos anos tinham sido passados a transportar um macacão verde
fluorescente empoeirado e sujo de barro vermelho, uma máscara com filtro para o pó da
rebarbadora de pedra e para que as nuvens de gesso não se instalassem nos brônquios,
uma maceta de 3 kg, um ponteiro para o mármore. Por vezes, misturados com as
ferramentas, alguns manuais para as aulas de anatomia, Erwin Panofsky (2007) para
história; em estética, Susan Sontag (2012) e Walter Benjamin (2012), o “Sculpture in the
Expanded Field” de Rosalind Krauss (1979). No fundo da mochila, canetas japonesas da
marca sakura e grafites da alemã staedtler; um diário gráfico da inart, mas sempre
ambicionando os moleskines de folhas grossas finamente concebidos para o desenho e a
aguarela. Nesse setembro, deixei tudo em casa. Os materiais de desenho e os blocos de
folhas foram engavetados numa escrivaninha antiga de madeira escura, “longe da vista,
longe do coração”. Naquele momento estava a despedir-me do que conhecia e a “partir
para outra” – até um dia.
***
34 O que é que faz com que o desenho seja etnográfico? Talvez devesse ter sido essa a minha
pergunta de partida; porém, tornou-se uma questão de chegada. Na verdade, não parti
sequer com um questionamento, parti para desenhar como sempre tinha feito, o meu erro
residindo exatamente aí – no “como sempre”. O desenho não é inerentemente
etnográfico; nem é inerentemente analítico, arquitetónico, escultórico, etc. O desenho
faz-se, torna-se, constrói-se, a partir dos paradigmas, dos modos de ver o mundo do seu
autor. Se antes desenhara com as preocupações inerentes a um aluno de artes, hoje o meu
desenho embebe-se no meu comprometimento de ver, interpretar e entender o mundo a
partir da disciplina antropológica. Talvez seja este o caminho para que o desenho se torne
etnográfico. O problema foi aperceber-me disso, chegar até aqui.
35 Segundo Evans- Pritchard, “ninguém pode estudar algo sem uma teoria acerca da sua
natureza.” (1991: 242), pois só a partir da premissa teórica é que conseguiremos alcançar
eficazmente a empiria. A teoria é elemento fulcral para a entrada e permanência no
terreno, para que não caiamos nas malhas do nosso próprio senso-comum. Eu parti para o
terreno sem a teoria de como abordar o espaço e as pessoas a partir do desenho e da
antropologia; tudo o que sabia estava condicionado a um tempo prévio, e seguindo essa
experiência ulterior, tentei encaixá-la forçosamente no presente.
36 Eu tinha “crescido”, mas o desenho tinha-se cristalizado no momento em que nos
havíamos “despedido” – quando o recuperei continuou igual ao que sempre fora, eu
nunca lhe tinha dado qualquer oportunidade para se imiscuir no conhecimento
antropológico que fazia agora parte da minha vida. Posto isto, estive praticamente a ir
contra uma das maiores premissas da antropologia face às relações humanas, entre
investigadores e investigados, entre pessoas: a confiança, responsabilidade e
racionalidade que advém do encontro face a face pautado pela ética – “(…) por “ética”
quero dizer essa relação de co-responsabilidade baseada no reconhecimento de
identidade comum causada pela co-constituição das pessoas humanas” (Pina-Cabral
2007:208).
37 Talvez tenha achado que não seria necessário estabelecer algum tipo de relação formal
com o que, e, sobretudo, com quem pretendia desenhar. Mas o desenho, apesar de ser
metodologicamente e concetualmente díspar de uma entrevista ou de um inquérito, de
uma história de vida, apesar de ser desenvolvido pelo olhar e pela mão riscando papel na
procura pela forma, não está isento de reflexividade, da confiança, de tudo aquilo que
compõe as relações humanas – “o processo é de uma construção gradual de confiança.”
(O’Reilley 2009 cit. in Madden 2010: 16). O desenho é uma forma de inquirição, ao invés de
palavras, perguntas e respostas, utilizando o gesto, o movimento, a linha que tanto serve
para desenhar como para escrever (Ingold 2007) – em simultâneo perguntando e
respondendo a si próprio, na mesma medida em que vai despontando na folha.
38 Todavia, não medi a forma como o meu posicionamento inicial poderia transitar para o
meu trabalho, não medi o peso e consequências das minhas ações no terreno (Madden
2010). Ao não ter olhado para o desenho como uma metodologia etnográfica como “outra
qualquer”, ao tê-lo percecionado somente a partir de um posicionamento artístico –
“como sempre” – criei uma ambiência de suspeita que poderia ter minado pela raiz os
meus intentos para este exercício. Não foi premeditado, não foi pensado que viesse a ser
problemático – provavelmente não o pensei de todo, tendo tomado como certo que iria
somente retirar graficamente os dados necessários e que tudo findaria por ali. Será que
julguei alguma vez que as Histórias Etíopes (Ramos 2000), os Carnets de Papouise (Garnier
1999), ou que os desenhos etnográficos de Marion Wettstein (2008, 2014) tivessem sido
apropriados sem qualquer pudor ético? Desenhar é como conversar. É como estar num
diálogo constante com o espaço, com as formas, as perspetivas; mas é também estar e
conversar com as pessoas – um pouco na senda das “entrevistas como conversas”,
potencializadas por Robert Burgess (1997) e James Spradley (1979), mas numa amplitude
virada para o grafismo.
39 Apesar do “dead-end” em que alguns investigadores colocam o desenho etnográfico
(Ramos 2015), talvez seja altura de o resgatar e de o pensar novamente como um
mecanismo válido de “registo de dados etnográficos” e de “difusão do conhecimento
antropológico” (Almeida 2013: 81). Mais, teorizar o desenho etnográfico, tal como se tem
feito com a fotografia, o vídeo e o filme, poderá prevenir para que os investigadores não
sejam “[...]colhidos na voragem de uma pulsão escópica, em múltiplos sentidos voyeurista,
que o consumo e produção de imagens suscitam” (Campos 2011:256). Eu sei que o fui –
pelo menos até ao momento em que me apercebi de que não o poderia ser.
40 No final, reconciliei-me com o desenho pelo entremeio antropológico. É engraçado que
assim o tenha sido, que tenha “transformado” o desenho num “apoio” ao etnográfico
BIBLIOGRAPHY
Afonso, Ana Isabel 2004. “New graphics for Old Stories. Representation of local memories
through drawings” (com desenhos de Manuel João Ramos) In Working Images, Visual Research and
Representation in Ethnography edited by Sarah Pink, Ana Isabel Afonso, Kurti László, London, New
York: Routledge, 72-89.
Almeida, Sónia Vespeira de. 2013. “Antropologia e práticas artísticas em Portugal”. Cadernos de
Arte e Antropologia, 2 (1): 73-83.
Antunes, Pedro. 2014. “Insomnolências” e notas de campo do filme “P’ra irem p’ró Céu”. Cadernos
de Arte e Antropologia, 3 (1): 31-48.
Appadurai, Arjun. 1986. “Theory in Anthropology: Center and Periphery. Comparative Studies in
Society and History, 28: 356 – 61.
Bateson, Gregory, Mead, Margaret. 1942. Balinese Character: a Photographic Analysis. New York: New
York Academy of Science.
Benjamin, Walter.2012. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’Água.
Bernard, H. Russel. 2006. Research Methods in Anthropology – Qualitative and Quantitative Approaches.
Lanham, New York, Toronto, Oxford: Altamira Press.
Black, Rachel E. 2012. Porta Palazzo. The Anthropology of an Italian Market (Foreword by Carlo Petrini).
Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
Craveiro, Maria Teresa. 2006. “Tentativas de Urbanismo Comercial nos Planos Municipais de
Ordenamento”. s.p. Consultado a 22 de Dezembro de 2015 (http://tercud.ulusofona.pt/
index.php/pt/documentos-on-line/category/8-2006?download=170:craveiro-2006).
Dewalt, Billie R., Pelto, Pertti J. 1985 Micro and Macro Levels of Analysis in Anthropology: issues in
Theory and Reasearch. Boulder, Colorado: Westview Press.
Evans-Pritchard, Edward Evan. 1991 [1937]. Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande. Oxford:
Clarendon Press.
Galhano, Fernando. 1985a. Desenho Etnográfico de Fernando Galhano – Vol. I, Portugal. Lisboa:
Instituto Nacional de Investigação Cientifica, Centro de Estudos de Etnologia e Instituto de
Investigação Tropical, Museu de Etnologia.
-------- 1985b. Desenho Etnográfico de Fernando Galhano – Vol. II, África. Lisboa: Instituto Nacional de
Investigação Cientifica, Centro de Estudos de Etnologia e Instituto de Investigação Tropical,
Museu de Etnologia.
Gama, Pedro Ferraz e Kuschnir, Karina. 2014. “Contribuições do desenho para a pesquisa
antropológica”, Revista do CFCH. Consultado a 24 de Dezembro de 2015 (http://revista.cfch.ufrj.br/
index.php/edicao-atual/138-contribuicoes-do-desenho-para-a-pesquisaantropologica).
Geertz, Clifford. 1977 [1973]. The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books.
Given, Lisa M. (ed.). 2008. The Sage Encyclopedia of Qualitative Research Methods, Volumes 1 & 2. Los
Angeles, London, New Delhi, Singapore: Sage.
Gonçalves, Alexandre Oviedo, Abdala, Mônica Chaves. 2013. “Na banca do ‘Seu’ Pedro é tudo mais
gostoso – Pessoalidade e Sociabilidade na Feira-Livre”, Ponto Urbe, 12: 1-14.
Lillehammer, Grete. 2009. “Making them Draw: the use of drawings when researching public
attitudes towards the past». In Heritage Studies, Methods and Approaches edited by Marie Louise
Stig, Sorensen, John Carman. London: Routledge.
Madden, Raymond. 2010. Being Ethnographic – A Guide to Theory and Pratice of Ethnography. London:
Sage.
Malinowski, Bronislaw. 1983 [1922]. The Argonauts of the Western Pacific. London: Routledge.
Nieto Olivar, José Miguel. 2007. “Dibujando Putas: reflexiones de una experiencia etnográfica com
apariciones fenomenológicas”. Revista Chilena de Antropología Visual, 10, 54-84.
Oppitz, Michael (ed.). 2001. Robert Powell. Himalayan Drawings. Zürich: Völkerkundemuseum der
Universität Zürich.
Panfili, Giulia. 2012. O Vaivém do Tear – Etnografia urdida no Concelho de Abrantes. Dissertação de
Mestrado. Escola de Ciências Sociais e Humanas do ISCTE-IUL. Lisboa. Portugal.
Panofski, Erwin. 2007. O Significado nas Artes Visuais. Lisboa: Editorial Presença.
Parham, Susan. 2012. Market Place: Food Quarters, Design and Urban Renewal in London. Newcastle
upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing.
-------- 2015. Food and Urbanism: the Convivial City and a Sustainable Future. London, New Delhi, New
York, Sidney: Bloomsbury Academic.
Pina Cabral, João. 2007. “Aromas de Urze e de Lama”: reflexões sobre o Gesto Etnográfico”.
Etnográfica, 11 (1): 191-212.
Quartilho, Ana Teresa. 2011. Factos Urbanos – Os Mercados na Cidade do Porto. Dissertação de
Mestrado. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra – Departamento de
Arquitectura. Coimbra. Portugal.
-------2015. «Stop the Academic World, I Wanna Get Off in the Quai de Branly. Of sketchbooks,
museums and anthropology », Cadernos de Arte e Antropologia [Online], 4 (2). Consultado a 23 de
Dezembro de 2015 (http://cadernosaa.revues.org/989).
Spradley, James. 1979. “Interviewing an Informant” in Ethnographic Interview. New York, Holt,
Rinehart & Winston: 461- 474.
Taussig, Michael. 2011. I Swear I Saw This: Drawings in the Fieldwork Notebooks, Namely my Own.
Chicago: University of Chicago Press.
Wettstein, Marion. 2008. “Defeated Warriors, Successful Weavers: Or how Men’s Dress Reveals
Shifts of Male Identity among the Ao Nagas” In Naga Identities: Changing Cultures in the Northeast of
India edited by Michael Oppitz, Thomas Kaiser, Alban von Stockhausen, Marion Wettstein. Gent:
Snoeck.
-------- 2014. Naga Textiles: Design, Technique, Meaning and Effect of a Local Craft Tradition in Northeast
India. Stuttgart: Arnoldsche Art Publishers.
NOTES
1. O presente artigo resulta de um trabalho académico sobre metodologias de investigação em
antropologia, encontrando-se subordinado tematicamente à minha investigação doutoral sobre
mercados «tradicionais», discursos patrimoniais e reabilitação urbana (Ref.ª PD/BD/113911/2015)
financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia.
2. A Madonna dos Rochedos ou A Virgem das Rochas ou dos Rochedos, é a nomenclatura utilizada para
designar duas pinturas praticamente idênticas da autoria de Leonardo da Vinci (n.1452,
Anchiano, Itália – m.1519, Amboise, França). Uma das versões está atualmente exposta no Museu
do Louvre em Paris, tido sido pintada na década de 1480 (http://www.louvre.fr/en/oeuvre-
notices/virgin-rocks); a outra, como referido, é pertença da National Gallery, em Londres, tendo
sido pintada entre a última década do séc. XV e a primeira do XVI (http://
www.nationalgallery.org.uk/paintings/leonardo-da-vinci-the-virgin-of-the-rocks).
3. Existem dois sistemas de tamanhos de papel: o ISO 216 (na maioria dos países, adotado por
Portugal em 1954) e o sistema próprio dos Estados Unidos da América e do Canadá. No ISO 216 há
três séries (a A, a B e a C), sendo a mais comum a série A. O formato base é o A0, com 1m2 de área.
Os outros tamanhos vão-se obtendo pela dobra ou corte pela metade do tamanho acima daquele
pretendido (metade de uma folha A0=duas folhas A1, metade de uma folha A1= duas folhas A2, e
assim sucessivamente).
4. A escala das gradações de grafite foi criada por Lothar Faber (um dos fundadores da marca
alemã de materiais de desenho Faber-Castell) no século XVIII, sendo ainda hoje aceite como o
padrão internacional. Há três gradações padronizadas: a H (Hard), a F (Fine) e a B (Black) – 6H,
5H, 4H, 3H, 2H, H, F, HB, B, 2B, 3B, 4B, 5B, 6B, 7B e 8B. O padrão H é o mais duro e claro,
especializado para desenho técnico e para o traço fino. O padrão B corresponde a uma grafite
mais macia e mais escura, proporciona um traço grosso e é utilizado em desenho artístico. O
padrão F, mais o misto entre os padrões H e B (o HB) são geralmente utilizados para a escrita,
podendo ser também utilizados em desenho (para sombreados, por exemplo).
5. A gramagem do papel foi padronizada internacionalmente pela norma ISO 536,
correspondendo à medida de massa pela área de papel e sendo expressa em g/m2. Quanto maior
a gramagem do papel, mais grosso e pesado este será e mais custos acarretará para o consumidor.
Em termos comparativos e meramente indicativos (dependerá necessariamente de marca para
marca), o papel utilizado em impressoras domésticas tem entre 75 a 90 g/m2, o papel de desenho
da marca canson ascenderá a gramagens 180 g/m2 ou mais, as folhas de aguarela da Studio
Fabriano podem chegar aos 200 ou 300g/m2.
6. De forma a facilitar o encadeamento da leitura, todas as citações presentes neste artigo foram
traduzidas por mim para o português.
7. Chuck Close (n.1940, Monroe, EUA) é um artista norte-americano reconhecido pelos seus
retratos em larga-escala da face humana, num estilo próximo da fotografia mas em formato de
pintura. O seu trabalho está bastante imbrincado na estética do hiper-realismo (http://
chuckclose.com/index.html). Além de Close, Ron Mueck (n.1958, Melbourne, Austrália) também
se distingue nesta área, mas através de uma prática escultórica englobante de jogos de escalas
(aumentos e diminuições) em torno do corpo humano (http://www.hauserwirth.com/artists/52/
ron-mueck/images-clips/).
8. Webiste dos Urban Sketchers – http://www.urbansketchers.org (consultado a 26 de Abril de
2016)
ABSTRACTS
O desenho em processos de investigação tem permanecido, na contemporaneidade, numa
aparente posição de menor relevância em contraposto a outras metodologias visuais de recolha
de dados etnográficos. Este ensaio autorreflexivo – e de certo modo autobiográfico – procura
entrelaçar a experiência vivida em contexto artístico e académico com as potencialidades do
desenho na vertente da observação antropológica. A partir de um exercício de captação gráfica
de um mercado municipal, procurarei discutir em torno de questões metodológicas e éticas
prementes na prática antropológica, e do perigo potencial destas serem “mascaradas” através de
um ensejo voyeurístico de recolha incessante de imagens. Assumidamente um artigo que
sumariza um processo muito pessoal entre a antropologia e a arte – pleno de erros, incertezas,
desvios e correções ao longo do caminho – este texto é simultaneamente uma tentativa de
evidenciar as possibilidades múltiplas do desenho etnográfico enquanto metodologia de recolha
de dados e de observação do mundo.
Drawing in research nowadays appears to remain in a minor position, compared to other visual
ethnographic methodologies. This self-reflexive and, to a certain extent,
autobiographical article seeks to link the author’s artistic experiences with the potential of
drawing for anthropological fieldwork. Starting from a drawing exercise of a municipal market, I
will discuss methodological and ethical issues in anthropology, and the danger that those issues
may be obscured by processes of “voyeuristic” image gathering.
INDEX
Keywords: ethnographic drawing, ethics, anthropology, artistic practices, methodology
Palavras-chave: desenho etnográfico, ética, antropologia, práticas artísticas, metodologia
AUTHOR
INÊS BELO GOMES
CRIA/ISCTE-IUL, Lisboa
Doutoranda no Programa de Excelência FCT – Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e
Etno-artes
Ethno-arts
EDITOR'S NOTE
Recebido em: 2016-01-31
Aceitado em: 2016-07-19
Introdução1
1 O interesse pelo tema deste ensaio surgiu a partir de estudos na área das drogas e durante
o trabalho de campo realizado a partir de 2004 na região denominada “cracolândia”, no
bairro da Luz, centro de São Paulo.2 A partir da contribuição etnográfica apresento
trechos relevantes desta pesquisa descritivo-exploratória, em texto e imagens, que visam
investigar a relação entre saúde e ambiente. Apesar de atuar na região do bairro da Luz
desde 2004 como redutor de danos pelo Centro de Convivência ‘É de Lei’ 3, considerei
importante me aproximar do cotidiano deste território. Para isso frequentei a região por
oito dias e oito noites consecutivas, além de noites isoladas, num quarto de pensão,
durante o ano de 2014 e início de 2015.
2 A ideia de permanecer alguns dias no território provocava sentimentos dúbios. Apesar da
ambiguidade, encarei o desafio. E como num ato decisivo de ‘pular de paraquedas’, foi
assim que entrei em campo. De repente estava na rua, sozinho, e confortavelmente sendo
acolhido por pessoas que me reconheciam. A aproximação etnográfica possibilitou amplo
contato com a cultura local, proporcionando um “mergulho profundo e prolongado na
vida cotidiana desses outros que queremos apreender e compreender” (Uriarte 2012:04).
Além das observações decorrentes da imersão no campo, optei pelo uso de imagens.
3 Fotos sempre representaram um problema na cracolândia. Frequentemente o Centro de
Convivência ‘É de Lei’ recebe propostas de fotógrafos ou jornalistas, no sentido de facilitar
a obtenção de imagens da cracolândia por meio da ‘entrada’ que temos no campo. Porém,
com o passar dos anos é perceptível um certo receio coletivo que evidencia uma regra
local: fotos não são bem-vindas na cracolândia. Este incômodo em relação a fotografias
aparece por diversos motivos, seja pela preservação do anonimato, pela presença de
foragidos ao sistema penitenciário, por vergonha, por práticas ilegais, entre outros.
4 Assim, optei pelo uso de desenhos, que foram desenvolvidos a partir dos relatórios
etnográficos e da comunicação com os desenhistas convidados. A aproximação com os
desenhistas aconteceu de forma bastante variada. Marcelo Maffei, por ser amigo desde a
adolescência, foi o primeiro. A partir de uma experimentação inicial com somente um
desenhista, avaliei a potência e riqueza de diferentes olhares na produção das imagens.
Para isso, convidei outros desenhistas. Cada um, com seu traço e linguagem, colaborou na
criação de imagens e representações. Alguns foram convidados por eu já conhecer o
trabalho, outros chegaram por indicações de Maffei ou de encontros que,
surpreendentemente, surgiram no momento certo. Todos compreenderam a proposta do
trabalho e aceitaram prontamente encarar este desafio4.
5 Este contato com os desenhistas me instigou a desenhar. Os rabiscos no caderno e o
aprofundamento no estudo da utilização de imagens para além de meras ilustrações foi
dando forma à ideia de inserir também desenhos meus no corpo do texto. Sendo assim,
celebrando minha iniciação na produção de desenhos como elementos do campo, em uma
atitude autobiográfica (Kuschnir 2012), me coloco também nesta pesquisa por meio de
imagens ao desenhar os objetos da cracolândia.
6 A intenção é estimular o imaginário, e os desenhos são capazes de fazer emergir novas
camadas de informação, um material pleno de significados produzidos a partir da
interação entre pesquisador, desenhistas e contexto. (Kuschnir 2014). Vale ressaltar que
os desenhos aqui utilizados são dados secundários, afinal foram produzidos
posteriormente ao trabalho de campo. Sendo assim, com caráter interpretativo, os
desenhos visam ampliar as representações possíveis sobre a realidade local.
7 Assim, este ensaio visual compreende um conjunto de relatos e desenhos que ilustram
situações cotidianas observadas durante trabalho de campo. São episódios, fragmentos de
vozes dos interlocutores e de pensamentos variados, que explicitam a diversidade das
manifestações de vida neste espaço urbano.
outro lado da rua, como um detalhe, percebo que algumas pessoas estão sentadas e
encostadas no muro pelo acender dos isqueiros. (Diário de campo, 18 de abril de
2013.)
Sobrevivência criativa
Objetos da cracolândia
10 A falta de um local fixo e a necessidade de circulação diária faz com que as pessoas não
possuam muitos bens materiais. Carrega-se o que é possível transportar junto ao corpo.
Considerando raras exceções, muitas pessoas que frequentam a cracolândia possuem
algum dos objetos presentes nesta ilustração. Cachimbo, isqueiro, cigarro, cachaça,
lâmina - para a partilha da pedra de crack - e a cinza de cigarro, que é armazenada em
embalagens variadas para auxiliar na queima do crack.
Estávamos próximo ao fluxo na Rua Barão de Piracicaba, esquina com a Rua Glete. É
começo de ano e mais uma vez o grupo de pessoas que usam crack era
coercitivamente deslocado de um canto para outro. Achamos estranho o
`Cabelo`, outro usuário que muitas vezes está cozinhando chega com quatro galões
de 20 litros de água e despeja rapidamente em cima de Gilson. Outra mulher começa
a passar sabão também na pele de Gilson. Alguém trouxe a informação de que sabão
neutralizaria o solvente.
Um verdadeiro caos se instala no meio da rua. Seu Ulysses, um senhor de 58 anos
que conversava comigo fica atordoado. Ele grita: “temos que levá-lo ao hospital
imediatamente, este tipo de coisa é gravíssimo, ele pode ficar cego!” Seu Ulysses vai
em direção aos guardas da GCM6 que estão do outro lado da rua, exatamente na
frente disso tudo, e começa a solicitar o auxílio dos guardas, alegando que isso é
omissão de Socorro! O caos se intensifica, e os guardas iniciam um processo para
conter Ulysses.
Penso que ficar no sol seria pior, e enquanto os guardas nada fazem para ajudar e
seguem tentando conter seu Ulysses, sugiro carregarmos Gilson até a sombra de um
muro do outro lado da rua. Agentes de saúde da prefeitura enfim se aproximam e
trazem mais água. Gilson está mais calmo, sentado no chão, na sombra, menos
ofegante e ainda esfregando os olhos extremamente vermelhos. “Meus olhos ainda
ardem muito...”. Enfim, a gritaria diminui (ver figura 6).
Consigo me aproximar e sento ao lado de Gilson. Ouço-o um pouco e ele diz estar
bem e não quer ir ao médico. Quer ficar ali mesmo. Consigo informá-lo da
importância de ele ir ao médico passar por uma avaliação, tanto pelos olhos, pois
existe um risco de agredir a visão, ou pelo risco caso tenha engolido thinner. Ele diz
que realmente ingeriu um pouco e entende que a avaliação é importante. Decide me
acompanhar ao médico. Eu e uma agente de saúde do programa Recomeço 7 o
ajudamos a andar até o SAE Campos Elíseos (Serviço de assistência especializada
DST/HIV/Aids) na Al. Cleveland, a uma quadra dali. Ele está cambaleando, fraco,
abalado e com a visão prejudicada. Neste trajeto me conta que não é a primeira vez
que a moça tenta matá-lo. “Agora estou esperto, ela vai se ver comigo”. Sinto um
tom de vingança e digo que entendo sua raiva, e que neste momento precisa se
preocupar em se cuidar, atravessar este momento. Ele é acolhido no SAE e levado
para a Unidade básica de saúde para avaliação. Fico pensando na ideia de
vulnerabilidade e risco. Bastou se permitir descansar um pouco que no fechar dos
olhos acordou nesta situação, fritando no sol em um banho de thinner. Tudo parece
possível de acontecer no ‘fluxo’ da cracolândia.
Meses depois vejo Gilson com a perna quebrada. Foi atropelado por um carro
enquanto andava de mobilete. Onde? No mesmo lugar, no cruzamento entre as ruas
Cleveland e Helvetia.
Lembramos juntos do episódio do thinner: Gilson olha para mim e diz: “Caramba,
aquele dia eu fui salvo né?” (Diário de campo, 11 de setembro de 2014).
Ao meu lado, dentro do bar, um homem também se abriga da chuva. Negro, alto,
magro e com os cabelos enrolados. Sei que já o vi por ali algumas vezes entre as
pessoas que fazem uso, provavelmente também usa crack. Ele se aproxima de mim e
inicia a conversa com um argumento curioso.
Comenta sobre a dificuldade dos pássaros em um tempo como esse, pois ficam
molhados e sem ter para onde ir, sem ter um lugar para ficar. “Imagina! O mundo
caindo em volta dele e ele fica ali, firme!” Acrescenta que os pássaros têm uma
proteção nas penas que não deixam a água entrar até a pele, uma proteção natural.
Mas com esse vento, ele diz: “devem estar todos molhados” (Diário de campo – 07
de junho de 2011).
11 Terminamos com a cena do pássaro. Esta surge como uma metáfora interessante para
ilustrar o modo de vida na cracolândia. A resistência e a resiliência, assim como no caso
do pássaro, são histórias de vida que se misturam em situações de extrema
BIBLIOGRAPHY
Kuschnir, Karina. 2012. “Desenhando cidades”. Sociologia & Antropologia, 2(4), Pp. 295-314.
Uriarte, Urpi. M. 2012. “O que é fazer etnografia para os antropólogos”. Revista PontoUrbe. Edição
11. Ano 6.
NOTES
1. Este ensaio é produto da dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo em setembro de 2015 (“Condições do lugar: Relações entre saúde e
ambiente para pessoas que usam crack no bairro da Luz, especificamente na região denominada
cracolândia”), orientado por Rubens de Camargo Ferreira Adorno.
2. Não se tem clareza da origem do termo ‘cracolândia’. Apesar de as pessoas que usam drogas se
apropriarem do termo, e em alguns momentos fazerem referência à Disneylândia, uma matéria
de jornal de 1995 já utilizava o termo. http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19950807-37182-
nac-0015-cid-c3-not/busca/Cracol%C3%A2ndia.
ABSTRACTS
Registra-se neste ensaio, uma narrativa visual de fragmentos da vida na “cracolândia” em São
Paulo. Esta narrativa é composta por desenhos, executados por diferentes ilustradores, tendo por
fonte de inspiração o trabalho de campo realizado neste território.
This essay presents narratives and images of the life of crack users in “Cracolândia”, São Paulo. It
is composed of drawings by different illustrators, based on the author’s observations in the
course of his fieldwork.
INDEX
Keywords: environment, cracolândia, drug use, drawing
Palavras-chave: ambiente, uso de drogas, antropologia, desenho, cotidiano
AUTHOR
THIAGO GODOI CALIL
FSP-USP, São Paulo, Brasil
thiguitto@hotmail.com
EDITOR'S NOTE
Recebido em: 2016-01-29
Aceitado em: 2016-07-12
Introdução
1 A cidade de Piracicaba fica a 152 km da capital do estado de São Paulo e possui 364.571
habitantes (IBGE s.d.). Essa cidade é uma referência para os moradores das demais cidades
da região que buscam bens e serviços especializados, como comércio, serviços de saúde,
atividades artístico-culturais e de lazer. Diferentemente da cidade de São Paulo, que teve
o seu processo de urbanização iniciado no século XIX, Piracicaba é uma cidade de médio
porte e suas transformações espaciais são fruto de processos recentes, a partir da metade
do século XX. Isto se deu, entre outros fatores, pela política federal de incentivo à
interiorização da industrialização realizadas nos anos de 1973 e 1975 (Sposito 2004). Essas
transformações ocasionaram a proliferação de condomínios fechados, edifícios verticais,
shopping centers etc., que ofereceram à cidade formas de sociabilidade que incorporaram o
que Simmel (1973) chamou de “modos de vida da metrópole” e, ao mesmo tempo,
“preservaram modos de vida interioranos”,1 criando uma forma de sociabilidade
específica.
2 A Rua do Porto está localizada na margem esquerda do rio Piracicaba e a três quarteirões
do centro comercial da cidade. Ela é palco de inúmeras formas de sociabilidade que se
transfiguram com a passagem do tempo e do espaço. Ora é ocupada por aposentados
jogando caxeta ou dominó, ora serve de palco para apresentações e exposições artísticas;
algumas vezes, vira trajeto de procissão, outras vezes é local de confraternização; também
é lugar de turismo gastronômico ou, então, local de passagem para chegar à pista de skate.
É ponto de encontro de jovens e local de admiração das águas do rio Piracicaba e de
edifícios antigos, reconhecidos como patrimônios históricos da cidade. Já abrigou um
engenho de cana de açúcar, olarias, uma indústria de tecidos e fabriquetas de pamonha.
Foi local de prostituição, venda de drogas e de crimes que marcaram a cidade. Também é
local de estudos históricos, arqueológicos, antropológicos, geográficos, arquitetônicos e
urbanísticos. Essa multiplicidade de vivências que a rua oferece motivou a pesquisa de
mestrado.
conhecer o mundo. Construí narrativas imagéticas que mostram meu percurso pela Rua
do Porto.
This media file cannot be displayed. Please refer to the online document http://
8 cadernosaa.revues.org/1139
9 Como não encontrei um caderno ideal como suporte para essas imagens decidi construir
um caderno costurando suas páginas. A capa foi feita com uma espécie de papelão
encapado com um tecido quadriculado, cinzento. Para as páginas internas utilizei papel
Canson (180 gramas) e, para costurar, utilizei uma linha de costura grossa, marrom, de
polipropileno.
10 As fotografias, todas de minha autoria, foram impressas em papel couché e em papel 100%
algodão. Imprimi uma dezena de imagens e recortei alguns elementos, por exemplo,
pescadores, casas, janelas, pedras, barcos etc. Depois, dispus os elementos sobre as
páginas, testando composições e conexões.
11 A escolha de construir um diálogo entre fotografia e desenho em meu caderno de campo
partiu do diálogo entre mim e Laura, minha esposa. Os desenhos, feitos por minha esposa,
foram esboçados com lápis grafite 6B e depois contornados com caneta nanquim. 4
Algumas vezes os desenhos surgiram primeiro, para depois as páginas serem completadas
com os pedaços das fotografias; outras vezes, os recortes vinham primeiro e os desenhos
preenchiam os espaços vazios. Algumas vezes pedia a Laura que desenhasse o que eu não
havia fotografado e gostaria que estivesse na imagem; outras vezes ela desenhava aquilo
que sentia faltar na imagem. Nas composições, muitas vezes foi necessário criar relações
entre as páginas. Dessa forma, criei alguns “vazados” de uma página para a outra.
Também precisei sobrepor imagens. Para isso utilizei papel de arroz, que depois de
receber os traços, foi colado sobre algumas páginas do caderno.
12 As sobreposições de papeis e desenhos sobrepõem também temporalidades e
espacialidades da Rua do Porto. As linhas desenhadas unem momentos distantes e
também distanciam aqueles de maior proximidade. As montagens fizeram com que eu
deslocasse meu caminhar direcionado, até então, “para as margens”, para um caminhar
“nas margens”. Eu que sempre andei pelo meio, olhando para as margens, encanto-me
com a ideia de andar pelas margens.
13 No exercício de “montagem, desmontagem e remontagem”, procurei explorar as fissuras
temporais, os movimentos dos frequentadores e os meus sentimentos, significados e
emoções diante da Rua do Porto. As montagens trazem as camadas temporais dessa rua
sem esquecer minhas camadas e limitações diante dela. As imagens oferecem
possibilidades de explorar, imaginar, sentir, ordenar e desordenar a Rua do Porto. Elas
evocam visões, olhares, fantasmas que, por sua vez, despertam lugares e tempos. Os
pescadores, que já haviam se destacado em minhas fotografias, ganharam ainda maior
destaque. É com eles que eu vou em minhas novas caminhadas.
BIBLIOGRAPHY
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Dados gerais do município de Piracicaba. s.d.
Retrieved July, 20, 2015 (http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=353870).
Simmel, G. 1973. “A metrópole e a vida mental.” Pp. 11-25 in O fenômeno urbano, edited by O. G.
Velho. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Sposito, M. B. E. 2004. “Novos conteúdos nas periferias urbanas das cidades médias do estado de
São Paulo, Brasil.” in Investigaciones Geográficas, 54: 114-34.
Taussig, Michael. 2011. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely may own.
Chicago e Londres: The University of Chicago Press.
NOTES
1. Por “modos de vida interioranos” compreendo as relações e vínculos de longa data
estabelecidos entre moradores da cidade. Vínculos estes que contribuem para o comércio que
vende “fiado”, para a troca de bens e serviços. Além disso, em Piracicaba a coluna social dos três
jornais locais tem grande valor simbólico para os habitantes da cidade e tantos outros traços
materiais e comportamentais.
2. O caderno surgiu a partir de um exercício proposto por minha orientadora, Profa. Dra. Andrea
Barbosa, no âmbito do Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas na Unifesp (Visurb). Dei
continuidade à construção desse caderno durante todo o percurso de pesquisa ocupando lugar
central em meu estudo sobre a Rua do Porto. A tarefa iniciou-se no segundo semestre de 2014.
3. A Derrubada de Barcos é um evento da Festa do Divino Espírito Santo de Piracicaba que ocorre
anualmente no primeiro domingo de julho, marcando o início da festa. Nesse evento, após uma
missa realizada no salão da Irmandade do Divino de Piracicaba, dois barcos seguem em procissão
e, após a bênção de um padre, são colocados nas águas do rio Piracicaba pelos barqueiros do
Divino.
4. Laura não é antropóloga nem desenhista profissional, apenas gosta de desenhar e das
pesquisas em antropologia.
ABSTRACTS
O objetivo dessa publicação é o de apresentar o Diário de Campo Visual desenvolvido durante
minha pesquisa de mestrado, que tem como tema o estudo das relações que diferentes atores
estabelecem na e com a cidade. O estudo foi desenvolvido na Rua do Porto, na cidade de
Piracicaba, SP, Brasil. No processo de pesquisa, utilizei o equipamento fotográfico e o desenho
como recursos para elaborar uma cartografia de minha experiência. Em minha experiência
imagética, descobri o pescador, personagem que reúne presente e passado e que sobrevive no
barranco do rio Piracicaba.
This article presents a visual field diary which was elaborated in the course of the author’s
research on the relationships of different actors with and within the city. The study took place in
Rua do Porto in the city of Piracicaba, São Paulo, Brazil. During the research, photography and
drawings were employed as resources to develop a mapping of the fieldworker’s research
experience. One of the characters discovered during the author’s “imagery experience” was a
fisherman, an informant who embodies both the city’s past and present, surviving on the banks
of Piracicaba river.
INDEX
Keywords: anthropology and drawing, Brazil, visual anthropology
Palavras-chave: antropologia e desenho, antropologia visual, Brasil
AUTHOR
FERNANDO MONTEIRO CAMARGO
UNIFESP, São Paulo, Brasil. Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas da Universidade Federal de São
Paulo (Visurb).
camargo.fmc@gmail.com
Artigos
Articles
EDITOR'S NOTE
Recebido em: 2016-07-07
Aceitado em: 2016-09-13
Introdução
1 Em geral, artigos científicos antropológicos apresentam e discutem resultados de alguma
experimentação empírica. Contudo, poucos são aqueles que apresentam e discutem
resultados de uma experimentação de natureza didática (Sanabria 2005: 15). Grande parte
de nosso tempo enquanto acadêmicas é passado em sala de aula, mas pouco somos
estimuladas a refletir sobre o conhecimento que produzimos em companhia das
estudantes1. Por enquanto, há poucos espaços específicos nos periódicos da área para esse
tipo de relato, embora alguns textos tenham sido publicados (Grossi et al 2006; Tavares et
al 2010; Fleischer 2012; Fleischer et al 2014; Gama e Kuschnir 2014; Schweig 2015; Sanabria
2005) e, de modo mais expressivo, eventos tenham sido organizados nesse sentido
(Sanabria 2005: 12).
2 Sanabria lembra que um dos principais interesses “no ensino atualizaria a capacidade de
auto-reflexão atribuída com freqüência à antropologia” (2005: 13) e Schweig (2015: 18),
baseando-se em Ingold (2014), aponta para o fato de que a educação é uma dimensão do
inventar saídas criativas e ajustadas diante de cada caso. Nosso objetivo foi formar
estudantes em técnicas de pesquisa que partissem dos usos dos clássicos gravadores e
cadernos de notas, mas que os ultrapassassem ao serem atualizados e contrastados com
outras formas de perceber, documentar e experimentar o mundo. A seguir, o artigo fará
uma apresentação geral da disciplina. Depois, descreverá as cinco idas a campo 3 e
discutirá os principais resultados dessas atividades. Por fim, apontará alguns benefícios
desse formato didático.
fosse menor. Fomos percebendo, à medida que a disciplina avançava, que partir para a
prática, discutindo de modo muito singelo técnicas de pesquisa, poderia ser uma
ferramenta potente para desconstruir certezas. Ao menos permitir que algumas balizas
pudessem ser testadas e construídas para uso futuro.
9 A disciplina contou com seis diferentes tipos de aulas: 1) leitura prévia e discussão em sala
de aula de textos de autoras externas; 2) leitura prévia e discussão em sala de aula de
monografias de egressas do DAN; 3) participação nos “Seminários do DAN”; 4) oficinas de
desenho, fotografia e vídeo; 5) saídas de campo; 6) discussões sobre as saídas. Cada tipo de
aula exigia certo tipo de tarefa. Diante dos textos, monografias e seminários, esperávamos
que participassem individualmente, atentas à discussão, tomando notas e colocando suas
impressões sobre o que fora lido e ouvido. Aproveitamos para convidar as autoras das
monografias para que contassem como haviam realizado a pesquisa e a escrita do texto.
Como se espera uma monografia ao final da graduação, era preciso que as estudantes
tivessem referências sobre como produzir esse artefato. No caso dos “Seminários do
DAN”, que aconteciam mensalmente no departamento, teriam contato com autoras
conhecidas, com ampla diversidade temática e que tinham partido da pesquisa empírica e
artesanal para chegar às suas conclusões mais ousadas.
10 Para as saídas de campo, que aconteciam a cada duas ou três semanas, elegemos uma área
comercial próxima ao campus Darcy Ribeiro, o “Setor Comercial Local Norte 408/409”. O
Plano Piloto de Brasília é organizado em espaços residenciais e comerciais. No primeiro
tipo de espaço, há pouca circulação de pessoas, sobretudo por conta da cultura
automobilística que predomina na cidade. No segundo tipo, há uma intensificação de
circulação e interação social, atmosfera propícia para a observação e interpelação
antropológicas. Uma “quadra comercial”, como dizemos, consiste em dez blocos de três
andares com dezenas de lojas (salões de beleza, farmácias, botequins, mercearias,
butiques, petshops, etc.) e pequenas quitinetes residenciais. Há espaços com bancos e
pequenos jardins, canteiros e murais, centro de saúde, bancas de jornal, supermercado,
ONGs, quiosques de chaveiros e sapateiros. Queríamos um espaço que fosse fora dos
limites do campus, para que deixássemos a familiaridade da vida universitária e
encontrássemos um mínimo de estranhamento e, ao mesmo tempo, que não fosse
distante demais e inviabilizasse a grade horária das estudantes, já que teriam aulas antes
e/ou depois de MTAS.
11 Essa quadra comercial era próxima o bastante para que, a partir do campus, se chegasse a
pé, de bicicleta ou de carro em poucos minutos. E distante o suficiente para que a turma
pudesse perceber que nem tudo que era familiar era conhecido (Velho 1981), como
lembraram alguns estudantes: “Eu fiquei atordoado com o fato de as saídas de campo
serem na 408. ‘Que tema vou escolher ali?’, pensei”, contou Fernando Launé. “Eu
frequentava há 15 anos essa quadra. Achava que a conhecia. Mas agora vejo que não”,
percebeu Matheus Sousa. Por fim, queríamos que as saídas acontecessem no período da
aula para que se tornassem uma rotina, para que pudéssemos ali mesmo partilhar a
experiência, vertendo os resultados para a consecução da aula, e para evitar onerar as
estudantes ao terem que acionar outro turno para realizar a minipesquisa. E como as
aulas aconteciam em diferentes espaços da universidade e de seus arredores, utilizamos o
Moodle (e também e-mail, WhattsApp etc.) para manter uma comunicação fina e evitar
desencontros.
12 A disciplina foi desenhada tendo a experimentação empírica como espinha dorsal. Isso
quer dizer que o conteúdo que embalaria as discussões das aulas partiria, sobretudo,
13 Usamos novas e velhas tecnologias para registro e apresentação dos dados: caneta, papel e
cadernos (para anotações, diários e desenhos), câmeras fotográficas e aparelhos de
telefone celular (para gravar áudios, fazer fotos e produzir vídeos) e a Internet (para
trocar textos, imagens, realizar pesquisas bibliográficas e eventualmente trabalho de
campo de modo remoto). Além das referências teóricas, as discussões durante a disciplina
também foram motivadas pelos depoimentos, diários de campo, entrevistas transcritas,
desenhos, fotografias, vídeos – todos produzidos pelas estudantes. Aqui, estava em curso o
que chamamos de “aprendizado horizontal”, já que o conhecimento lido e aprendido
tinha sido gerado pelas colegas da disciplina. Apostamos que muito já era aprendido de
modo tácito e informal entre elas, mas nosso intuito foi oficializar esse tipo de
conhecimento na disciplina. Esse aprendizado era também recíproco, já que aquela que
lesse o texto da colega hoje, teria seu texto lido por essa mesma colega amanhã. Notamos
que era muito mais fácil criticar o texto de alguém com quem dificilmente se
encontrariam do que o de uma colega. Portanto, estávamos a estimular formas de
questionar um texto na frente da autora, olhando em seus olhos e percebendo suas
reações. Não só empatia, gentileza, paciência e respeito eram estimulados, mas a real
Imagem 2: Trecho do diário de campo de Ana Clara Damásio, comentado por vários colegas.
14 Essa estratégia se estendia também para os comentários escritos por nós e pelas colegas
nos textos produzidos (ver Imagem 2). Como um diário seria lido por duas ou três pessoas,
dentre elas a dupla, sugerimos que fizessem marcações com canetas de diferentes cores,
permitindo que cada leitora subsequente aprendesse com os insights da anterior. Ler e
reler diários de campo e entrevistas eram etapas de aproximação e compreensão dos
dados. Uma mesma entrevista, por exemplo, poderia gerar muitos comentários,
evidenciando, assim, a riqueza e densidade de um mesmo material. Recomendamos que
considerassem esses comentários como um diálogo, como mais um conjunto de ideias que
poderiam fazer avançar a reflexão sobre o tema de pesquisa.
15 No início dessa prática, notamos duas angústias. Por um lado, algumas estudantes
julgavam ter que responder a todas as perguntas escritas na margem de seus textos,
sendo que muitas dessas perguntas não tinham ainda respostas possíveis. Por outro lado,
algumas se intimidaram em comentar os exercícios, sabendo que depois seriam lidos
também pelas professoras. Estavam preocupadas de que esses comentários rebaixassem a
menção da colega. Foi preciso construir paulatinamente uma atmosfera coletiva de
confiança, reforçando que esperávamos que os comentários servissem para ampliar a
capacidade criativa das pesquisadoras em relação aos seus temas. Por exemplo, os
comentários visavam revelar lacunas de informações, sugerir perguntas a serem re/feitas
em campo, oferecer insights com chance de adensar a relação com a interlocutora.
16 Lemos também textos de outras autoras, mais ou menos canônicas, que haviam
consolidado conceitos-chave, sistematizado suas próprias experiências de pesquisa
empírica, oferecendo um panorama histórico sobre as discussões metodológicas na
Antropologia. Mas guardamos uma orientação importante: diminuir o número de textos
externos para abrir espaço para os textos das estudantes, as saídas de campo e, mais
importante, a discussão das intensas experiências das saídas. Cada encontro fora de sala
demandava uma ou duas seções subsequentes de debriefing dentro de sala de aula, seja a
partir dos relatos, seja pelos textos produzidos. Era comum, claro, que essas seções fossem
permeadas por ideias-chave anunciadas nos textos e monografias que íamos conhecendo.
Saída 1
Saída 2
24 A segunda saída de campo previa que as estudantes travassem seu primeiro contato com
pessoas. Conforme o tema, esse contato poderia ser em uma loja, um espaço de
sociabilidade, com transeuntes ou moradoras de rua etc. O objetivo era suave: identificar
e abordar alguém, apresentar a pesquisa e as pesquisadoras e convidar para uma conversa
despretensiosa, sem roteiro, sem planos prévios. Era uma primeira aproximação para
sentir o campo e o nível de abertura das pessoas. Aqui, a licença para ficar e o
consentimento para conversar foram assuntos centrais. Foram notando que as pessoas
consentiam sua presença por vezes clara e oralmente, outras vezes tácita e indiretamente.
Entenderam que as negociações para lograrmos autorizações para ficar eram
continuadas. Não eram necessariamente cumulativas e definitivas, mas deveriam
acontecer diante de cada nova ação como abordar, perguntar, olhar, anotar, fotografar,
gravar etc. Começaram a entender que o “não” poderia surgir de muitas formas e, embora
frustrante, também comunicava algo a ser interpretado.
25 Aos poucos, foram se questionando se deveriam concordar com tudo que lhes fosse dito
em campo, como condição para serem aceitas e permanecer. Também aventaram como
lidar com as controvérsias. Raquel Lustosa comentou sobre o seu “incômodo de
incomodar”. Muitas estudantes pensavam: “Eu já estou no espaço do outro. Já estou
atrapalhando a vida dele. Eu tenho que ceder”. Perguntamos à turma: Estamos mesmo
atrapalhando? Quanto devemos ceder? Esses dilemas ficaram mais graves quando
investidas sexuais foram relatadas por algumas pesquisadoras, quando quem atrapalhava
eram os interlocutores (ver Imagem 5). A turma começava a navegar, na prática, pelas
relações de poder que permeiam as relações de pesquisa. Era preciso cuidado com o outro,
mas também cuidado consigo mesma. “É preciso se respeitar em campo”, disse Raina
Cassemiro.
26 Pairava certa tensão em abordar as pessoas e, por isso, optamos por entrar em campo
paulatinamente, com poucas tarefas por vez. Tentávamos assoberbar menos as estudantes
para que lidassem a seu próprio tempo com a timidez e a inexperiência. Também por isso
o trabalho em dupla foi recomendado, para que esse primeiro trabalho de campo gerasse
menos desamparo. Reconhecemos, contudo, que propor momentos fixados de antemão
para realizar saídas de campo guarda bastante artificialidade. Essa foi apenas uma
estratégia para trazer as saídas de campo para dentro da disciplina. Lembramos à turma
como, em geral, a frequência e o horário das visitas são definidos em negociação com as
interlocutoras em questão. Esse timing mais natural poderia, inclusive, contemplar o
biorritmo da pesquisadora, sua agenda, nível de timidez e sensação de solidão.
27 O exercício foi tomar notas durante a saída (se fosse possível e desejado) e depois escrever
um diário de campo.4 Para muitas, seria o primeiro diário de campo produzido e havia
certo desconhecimento sobre esse tipo de texto. Por isso, visitamos a biblioteca central da
UnB e solicitamos que cada dupla encontrasse um diário de campo publicado, o folheasse
e escolhesse trechos a serem lidos durante a aula. Ao final, discutimos: Que tipo de escrita
é essa? Em que pessoa e tempo verbal acontece? É possível notar a presença da autora no
texto? Como situações, cenas e personagens são descritos? Os diálogos aparecem em voz
passiva, com travessão, aspas? Houve edição para que o texto fosse publicado?
28 Recomendamos que o diário fosse escrito tão logo o campo fosse deixado. De preferência
na mesma noite ou, no mais tardar, na manhã seguinte. Lembramos que a memória é um
ingrediente importante na recapitulação do que acontecera e que a tendência era que se
diluísse com o passar do tempo. Monique Batista, uma das egressas do DAN convidadas
para falar sobre sua monografia (Batista 2014), contou que aprendeu, ao escrever seus
diários, que tudo deveria ser registrado, mesmo quando se achasse que não era um
assunto relacionado ao seu tema de pesquisa.
29 Sugerimos que pensassem sobre a forma como o diário de campo seria escrito (no
computador ou à mão, com caneta ou lápis, em caderno ou em folhas separadas) e onde
conseguiriam se concentrar e se reconectar com a experiência vivenciada. Reforçamos
que é preciso terminar a escrita de um diário para, só então, voltar ao campo. O ideal era
não deixar os diários a serem escritos acumularem, pois arriscava-se esquecer detalhes
vistos e ouvidos e confundir os diferentes dias de pesquisa. Caso desejassem, também
poderiam registrar como se sentiam nas diversas situações, chamando a atenção para a
importância das emoções na experiência etnográfica (Beatty 2005; Favret-Saada 2005;
Grossi 2004).
30 A todo tempo, provocávamos cada aluna a inventar seu próprio jeito de escrever sobre a
pesquisa. Cuidar dos registros era um pleito por valorizarem as informações trocadas com
as interlocutoras e desafiarem uma aparente falta de peso que pode ser associada às
conversas que acontecem em tom mais informal, rápido ou fragmentado. Escrever o
diário de campo era uma forma de ritualizar a realização da pesquisa empírica, criando
Saídas 3 e 4
34 Nas terceira e quarta saídas de campo propusemos que conversassem novamente com a
mesma interlocutora, agora de modo mais aprofundado, com perguntas mais
estruturadas. Seria preciso estar preparada para não encontrar a mesma pessoa naquela
saída e/ou receber uma negativa em engajar-se de novo na pesquisa. Como iam
percebendo a cada saída, “jogos de cintura” eram importantes para contornar as “saias
justas” (Bonetti e Fleischer 2007). A dupla preparou e submeteu ao escrutínio da turma
um roteiro de perguntas e suas estratégias para fazer a nova abordagem. Novamente,
comentários foram feitos e o set de perguntas ganhou em coerência, prioridade e
flexibilidade. Atentaram para perguntas redundantes e fechadas (sim/não), para os riscos
da indução de conteúdo, dos pressupostos etnocêntricos e do valor de exemplos e
histórias para ilustrar pontos de vista muito abstratos ou filosóficos.
35 Para essas saídas, fizemos oficinas de fotografia e vídeo, investindo em formas menos
discursivas de construção e apresentação de dados etnográficos. Lemos textos da
antropologia visual, analisamos imagens, fizemos exercícios práticos. Algumas estudantes
utilizaram seus aparelhos de telefone celular, outras recorreram a câmeras simples ou
mesmo semiprofissionais. As duplas se filmaram e depois revisaram os resultados,
pensando em enquadramento, som, abordagem etc. Os exercícios de vídeo foram bem
simples: visavam apenas ensinar a como gravar entrevistas e realizar imagens dos
ambientes. Não pretendíamos realizar filmes, mas incitar as estudantes a atentar para
informações visuais e sonoras (barulhos e silêncios) durante as gravações, bem como para
as repercussões dos equipamentos sobre a interação.
36 Mas os exercícios de foto foram mais complexos. Após uma oficina de análise de imagens
(onde discutimos enquadramento, composição, foco, ângulo, planos, cores, etc.),
propusemos um exercício de construção de narrativa visual. As estudantes deveriam, no
pavilhão de aulas e depois na quadra comercial, tirar fotografias para elaborar um ensaio
fotográfico. Sugerimos que utilizassem do sequenciamento das imagens e da combinação
entre fotos e legendas para contar uma história. Imagens e textos deveriam ter
importância equivalente, ser independentes e dialogar de forma colaborativa (Mitchell
2002). Henrique Rocha, por exemplo, realizou o ensaio reproduzido nas imagens 6 a 8.
Imagem 6: Após a aula as jovens decidem passar pela cafeteria do Pavilhão João Calmon para
vender alguns ingressos para a festa junina da medicina.
Imagem 7: Após a aula das 16h muitos já encerram suas aulas na UnB e vão-se embora. O sol já se
encontra inclinado, próximo ao momento de se por.
Saída 5
seus trabalhos. Um estudante resolveu fazer suas refeições na lanchonete que vinha
frequentando. Cada dupla encontrou sua maneira de retribuir a atenção recebida e
valorizar a relação estabelecida.
41 Além disso, era hora de elaborar o “trabalho final”. Acordamos que deveria ser uma
autorreflexão do próprio aprendizado e desempenho ao longo do semestre. Propusemos
que as estudantes refletissem individualmente sobre o que haviam vivido. Que avaliassem
o que haviam aprendido com as leituras, seminários, oficinas, saídas de campo, exercícios,
com a companhia da dupla, da turma, das interlocutoras e das professoras, com a
produção individual e coletiva, dentro e fora da sala de aula, com escrita ou com outros
meios de expressão e registro. Deveriam considerar essa gama de experiências para
construírem uma comunicação de sete minutos a ser apresentada diante da turma. Assim,
o objetivo não foi analisar os dados construídos (como é comum ao final das disciplinas
temáticas) ou elaborar um projeto de pesquisa, mas realizar uma autoanálise
retrospectiva do trabalho empreendido ao longo de MTAS. Que técnicas funcionaram
melhor para a estudante? Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas? Quais as
descobertas mais importantes? O que imaginam poder ser útil quando empreendessem
sua pesquisa monográfica?
42 Cada apresentação foi uma surpresa: utilizaram diferentes mídias, aproveitaram de modo
criativo os exercícios elaborados, criaram poesia e colagens, usaram autoironia e
autocrítica para promover deslocamentos e rever hierarquias e certezas. Foi um momento
importante para que sistematizassem o vivido e percebessem os aprendizados comuns,
gerados individual e coletivamente. Também serviu para percebermos como é possível
produzir Antropologia com humor, arte e diferentes formas expressivas. Ficou clara a
aposta no aprendizado horizontal, em que o “conteúdo” de uma disciplina e a
“antropologia” de modo geral puderam ser produzidos com qualidade já por graduandas
e dentro, perto e nas redondezas da sala de aula.
Considerações finais
43 A possibilidade de vivenciar e partilhar uma primeira experiência etnográfica de maneira
coletiva foi ressaltada como produtiva por todas as estudantes, mas em especial pelas
mais tímidas. Se movê-las de uma posição de conforto gerava constrangimentos no início
e algumas faziam caretas quando convidadas a participar, ao interagirem com uma
desconhecida ou mesmo sentarem em círculo, ao final notamos uma mudança em suas
interações e comportamentos. Marina Fonseca avaliou positivamente que essa primeira
experiência de pesquisa empírica tivesse acontecido em dupla e com o suporte constante
da turma como um todo. Explicou que, até então, as leituras feitas no curso sugeriam
pensar a Antropologia como prática realizada sempre individualmente. Chamou de
“Síndrome de Indiana Jones”, aquele que tudo faz e tudo resolve sozinho. Dali em diante,
ela via a possibilidade de atuar em equipes de pesquisa, de construir redes de leitoras para
seus textos, de poder compartilhar as angústias do campo. Além disso, como Juliana
Kitayama lembrou, trabalhar em dupla permitiu que ela se percebesse como pesquisadora
por contraste e também por espelhamento com sua parceira.
44 Os exercícios individuais e coletivos estimulavam diferentes formas de se expor e
negociar ações. Assim, propor que MTAS fosse um curso coletivo foi também uma
tentativa de ajudar a preparar as estudantes para os próximos passos da sua atuação
pessoas presentes e não apenas pelas professoras. Embora tivéssemos objetivos a cumprir
em cada aula, não sabíamos ao certo por onde ela caminharia. Muitas vezes,
terminávamos a aula já pensando em mais materiais para subsidiar as discussões
seguintes. A falta de controle das professoras foi positivamente absorvida pela turma que,
mais e mais, passou a entender que também era responsável por fazer a aula acontecer.
Ficava difícil, portanto, as estudantes se dispersarem com seus celulares e computadores.
Precisavam estar atentas a cada nova rota que a aula tomava, muitas vezes implicando a
participação de sua experiência, opinião ou exercício produzido.
49 A forma como propusemos MTAS buscou ser leve, divertida e, sobretudo criativa. Foi um
convite a pesquisar, a olhar o mundo com curiosidade, a aprender em grupo, a
experimentar. Convidamo-nas a colocar a mão na massa, experimentar formas de escrita,
produzir desenhos, fotografias, vídeos, se relacionarem com pessoas e técnicas
desconhecidas etc. Em suma, incitamos a produção de um conhecimento de modo afetivo
(MacDougall 1994). Acreditamos que a sala de aula é um laboratório de criação (de
métodos, estratégias de pesquisa, conhecimentos, encontros e relações), de socialização
do ethos da Antropologia, de imbricamento entre pesquisa, extensão e ensino. Um local
propício para pensar sobre e fazer acontecer a “cozinha da pesquisa antropológica”, como
bem definiu a estudante Sarah Almeida.
BIBLIOGRAPHY
Batista, Jéssica Monique. 2014. Cabeça ruim, morrência do braço e perna esquecida: Convivendo e
cuidando do derrame na Guariroba, Ceilândia/DF. Dissertação [Graduação em Antropologia].
Orientadora: Soraya Fleischer. Brasília: UnB.
Beatty, Andrew. 2005. “Emotions in the field: What are we talking about?” The Journal of the Royal
Anthropological Institute, Vol. 11, No. 1 (Mar.): 17-37.
Bonetti, Alinne, Soraya Fleischer (Orgs). 2007. Entre saias justas e jogos de cintura. 2. ed. Santa Cruz
do Sul: EdUNISC.
Brandão, Carlos Rodrigues. 2007. “Reflexões sobre como fazer trabalho de campo”. Sociedade e
Cultura, 10(1): 11-27.
Cardoso de Oliveira, Roberto. 1998. “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever” Pp.17-35
in O trabalho do antropólogo. Brasília/ São Paulo: Paralelo 15/Editora UNESP.
Eco, Umberto. 1983 [1977]. “A pesquisa do material”. Pp.35-81 in Como se faz uma tese. São Paulo:
Perspectiva.
______. 2012. “Atenção básica de saúde, cronicidade e Ceilândia: O que tudo isso tem a ver com o
ensino da Antropologia?”. Percursos 13: 23-39.
Fleischer, Soraya e Ana Clara Damasio. 2015. “Quais são os desafios de escrever durante o curso
de graduação em antropologia?”. Entrevista com Soraya Fleischer por Ana Clara Damásio. Textos
Graduados: 1-14.
Fleischer, Soraya, Rosana Castro, Laísa Cardoso, Amanda Duarte Machado, Gíllian Arêa Leão Silva,
Nathan Lima Virgílio, e Géssica de Oliveira Motta. 2014. “Ensaio à la Nacirema: Relato de uma
experiência docente em Antropologia”. Café com Sociologia, 3(1): 18-40.
Gama, Pedro Ferraz e Karina Kuschnir. 2014. “Contribuições do desenho para a pesquisa
antropológica”. Revista do CFCH: 1-5.
Geertz, Clifford. 1995. After the fact: two countries, four decades, one anthropologist. Boston:
Harvard University Press.
Grossi, Miriam, Antonella Tassinari, e Carmen Rial. 2006. Ensino de Antropologia no Brasil: Formação,
práticas disciplinares e além-fronteiras. Blumenau: Nova Letra.
Günther, Luísa. 2013. Experiências (des)compartilhadas: arte contemporânea e seus registros. Tese
(Doutorado em Sociologia). Brasília: Universidade de Brasília.
MacDougall, David. 1994. “Mas, afinal, existe realmente uma antropologia visual?”. Pp. 71-75 in
Catálogo da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Rio de Janeiro.
Malinowski, Bronislaw. 1984 [1922]. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril.
Mauss, Marcel. 1993[1947]. Manual de etnografia, tradução de J. Freitas e Silva. Lisboa: Dom
Quixote.
Mitchell, William John Thomas. 2002. “O ensaio fotográfico: quatro estudos de caso”. Cadernos de
Antropologia e Imagem, 15(2): 101-131.
Peirano, Mariza. 2008. “Etnografia ou a teoria vivida”. Revista Ponto Urbe, 2(2): 1-10.
Rial, Carmen Silvia de Moraes. 2014. “Roubar a alma: ou as dificuldades da restituição”. Tessituras,
2(2): 201-212.
Sanabria, Guillermo Vega. 1995. O ensino da antropologia no Brasil: um estudo das formas
institucionalizadas de transmissão da cultura. Dissertação [Mestrado em Antropologia social].
Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina.
Schweig, Graziele Ramos. 2015. Aprendizagem e ciência no ensino de Sociologia na escola: um olhar
desde a Antropologia. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Porto Alegre: Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
Silva, Vagner Gonçalves da. 2000. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas
pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo, Edusp.
Taussig, Michael. 2011. I swear I saw this: drawings in fieldwork notebooks, namely my own. Chicago:
University of Chicago Press.
Tavares, Fátima, Simoni Lahud Guedes, e Carlos Cardoso. 2010. Experiências de ensino e prática em
Antropologia no Brasil. Brasília, Ícone Gráfica e Editora.
Velho, Gilberto. 1981. “Observando o Familiar”. Pp. 121-133 in Individualismo e cultura. Rio de
Janeiro: Zahar.
NOTES
1. Optamos pelo plural feminino tanto porque éramos duas professoras quanto porque a turma
contava com a maioria de estudantes do sexo feminino. Aproveitamos para agradecer a essa
turma pela disponibilidade em aceitar nossa proposta e permitir que utilizássemos aqui trechos
de seus depoimentos e materiais produzidos. Todas as fotos do artigo, com exceção das imagens
de Henrique Rocha, são de autoria de Fabiene Gama.
2. Para o programa da disciplina, ver http://dan.unb.br/images/pdf/graduacao/programas-
disciplinas/2015/1/Programa_MTAS_1_2015.pdf
3. Em um formato pouco usual, nesta disciplina fomos a campo como turma. “Sair”, assim, teve
múltiplos significados: deixar a sala de aula, entrar em outro ambiente e na pesquisa.
4. Nós, professoras, também adotamos essa prática, registrando nossas impressões e relatos
durante o semestre. Nossos “diários de aula” foram importantes para planejar atividades e
condutas e, ao serem revisitados, para elaborar este artigo.
5. Para uma discussão provocativa sobre a construção dos cânones conceituais nos cursos de
Antropologia no país, ver Sanabria (2005).
6. Inclusive, o DAN criou o prêmio anual “Martin Novion de Melhor Dissertação de Graduação”.
Para acesso ao último edital do prêmio, ver http://dan.unb.br
ABSTRACTS
Este artigo trata da experiência de realização de uma disciplina de graduação sobre métodos e
técnicas de pesquisa em antropologia social. A disciplina, comum a diversos cursos de Ciências
Sociais, foi desenvolvida de forma bastante prática, baseada em atividades de leitura e escrita,
oficinas (desenho, fotografia, vídeo) e também cinco saídas de campo realizadas conjuntamente,
que produziram materiais a serem discutidos em sala de aula. Nela, as etapas mais comuns de
uma pesquisa, assim como as diferentes técnicas para realizá-las, foram apresentadas e
desenvolvidas a partir de experiências muito concretas, com o objetivo de incentivar que a
realidade experimentada pelas estudantes respirasse com ares mais críticos e reflexivos. O artigo,
dessa forma, busca contribuir para a prática docente em antropologia.
This article presents the author’s experience of conducting an undergraduate course on research
methods and techniques in anthropology. The course, common to a number of degree course
schemes in social sciences, was carried out in a practice-oriented, based on reading and writing
activities, hands-on workshops in drawing, photography and filmmaking, and by means of five
collective field excursions which results were later discussed in the classroom. The usual stages
of fieldwork, as well as the different techniques to accomplish these stages, were equally
discussed. This all happened in a decidedly concrete manner, as to encourage the students to
experiment reality in a critical and reflexive way. In this sense, the article seeks to contribute to
the theory and practice of teaching anthropology.
AUTHORS
FABIENE GAMA
UnB, Brasília, Brasil
fabienegama@gmail.com
SORAYA FLEISCHER
UnB, Brasília, Brasil
fleischer.soraya@gmail.com
1 El subtítulo del libro clásico de Greil Marcus (2007) habla sobre un secreto que recorre el
siglo XX. A través de sus claves, traza una historia única del punk. Pero, ¿quería el punk
guardar un secreto o perseguirlo, asumiendo que se incluían en una ”sociedad basada en la
ciega convicción de que había un secreto que encontrar” (Marcus, 2007:46)? ¿Quería, por
el contrario, desvelar el secreto, el que había ocultado hasta entonces la lógica del capital,
aquel que podría dar con las cifras de una sociedad diferente?
2 Marcus dibuja, en su libro, una línea que une a los lollardos, los partícipes de la
pseudosecta del Espíritu Libre, el dadá, la Internacional Letrista y la Situacionista (IS) y,
finalmente, el punk. Todos ellos tienen en común, sobre todo, el ánimo destructivo, la
explicitado. No tanto porque los Sex Pistols, por ejemplo, hayan leído a Benjamin –algo
muy difícil de determinar- sino porque, al igual que Goethe nos hizo notar el espíritu
kantiano subyacente al siglo XVIII,1 el siglo XX está profundamente impregnado de lo que
Benjamin supo expresar en su filosofía. No se trata de que en el siglo XX haya seguido los
derroteros que él anticipó, sino porque en esa forma tan suya de hacer filosofía (que él
llamaba filosofar desde los posos del té) dio espacio en el ámbito de lo teórico a
fenómenos del mundo que, hasta ese momento, nadie había reflejado, no se había creado
el distanciamiento de su cotidianidad como para que surgiera el extrañamiento y con él la
reflexión. Es decir, de lo que se trata es de poner en entredicho la espontaneidad de estos
movimientos y ampliar esa praxis en la que se centra Marcus con la teoría subyacente a
ella.
5 Asimismo, propongo resituar la lectura amable del punk que participa de su idealización,
pasando por encima o tomando como daño colateral el componente de capitalismo
esencial que contiene. Ya no sólo por las intenciones, cuanto menos, estrictamente
publicitarias y economicistas del mánager de los Sex Pistols, Malcolm McLaren, sino
también porque las consecuencias del punk –como esa última parada europea en el
camino del cambio- hicieron un flaco favor al anticapitalismo. Las Doc Martens, las
tachuelas, los pantalones rotos y demás características del punk pronto encontraron su
sitio en los mejores escaparates. Igual que sucedió con las flores y las faldas (hace unas
temporadas leíamos en los grandes centros comerciales, esos centros ritualísticos del
capital: «ha vuelto el flower power, siéntete hippie» o algo similar), lo extramusical del
punk devino merchandising. La pregunta que surge en realidad a colación de este asunto es
si alguna vez estuvo fuera de la lógica del capital. Ahí, quizá, está el matiz más
importante, el cual cambia el secreto de Marcus, aquel que nos gustaría oír, el que habla
de la posibilidad de generar otro mundo posible, alternativo y crítico; por uno que
duramente se lleva silenciando un tiempo ya demasiado largo: la libertad fuera de la lógica
del capitalismo, es decir, la libertad en tanto emancipación y alternativa, no sólo es
inexistente sino también impensable. También ésta es integrada, es asumida y, sobre
todo, dirigida. Esto, sin embargo, no anula en absoluto los logros del punk, del
Situacionismo o de las líneas históricas que Marcus establece con estos movimientos y
otros anteriores. En cierto modo, se trata de un cambio de prisma, que relativiza ese
potencial que encuentra en ellos. Lo cual, por otra parte, serviría para explicar –o al
menos esbozar- porqué (casi) todo quedó en agua de borrajas. Sirvan las palabras de con
las que Walter Benjamin resumía el poema “El comunismo es el término medio” de
Bertolt Brecht para unificar lo dicho hasta ahora, pero cámbiese ‘comunismo’ por ‘punk’:
«El comunismo no es radical. Lo radical es el capitalismo». Detrás de los Sex Pistols, según
Marcus, estaban “Dios y el Estado, el pasado, el presente y el futuro, la juventud y el
trabajo” (Marcus, 2007: 22). Ésas serán nuestras líneas de análisis.
(Marcus, 2007: 65). Es decir, el rock ‘n’ roll era el lugar que la lógica capitalista aún dejaba
para crear la ilusión de libertad de expresión y de alteración de las buenas normas de
conducta. El Dios muerto se paganizó y se convirtió en ídolos que volvían a dar sentido a
la vacuidad de la vida de algunos jóvenes que, en los sesenta, con todo resuelto, se
lamentaban de la falta de alteraciones. De este modo, el rock ‘n’ roll se volvió contra sí
mismo y firmó la paz con aquello que presuntamente criticaba. En términos de Adorno, el
culto a los ídolos del rock ‘n’ roll era una reconversión de las formas de barbarie (Adorno,
2009, 597), en la medida en que se volvió una moda y redujo las posibilidades de lo
cualitativamente distinto, haciéndose así partícipe del endurecimiento del género. El rock
‘n’ roll «prudente, responsable y virtuosístico» que surgió alrededor de 1965 trasgredía el
trasfondo político que podía tener con respecto a las alternativas de ocio. Su cercanía a
esa ideología afirmativa del «entretenimiento necesario», que aliviara la locura cotidiana
de ir del trabajo a casa y viceversa, exigía una música poco molesta, cómoda o interesante
–pero sin entrar en excentricidades intelectualoides- para relajar (el espíritu). Ese era el
rock ‘n’ roll travestido que rechazaba el punk pues, finalmente, se estaba dando al
capitalismo vías de escape integradas.
7 Una de las rupturas que con más interés aborda Marcus es la temporal. El desgarramiento
del tiempo no sólo rompe con la ideología subyacente a la organización decimonónica del
horario de trabajo en las industrias y trenes, situado arbitrariamente en Greenwich, sino
que también lo hace con el concepto de tiempo en tanto organización social en términos
generales. De hecho, muchos procesos revolucionarios han tenido dentro de sus primeras
preocupaciones la destrucción del modelo temporal establecido hasta entonces. El mejor
ejemplo de ello, aunque terminara en agua de borrajas, fue el calendario republicano
francés, establecido entre 1792 y 1806, que trató de eliminar las referencias cristianas. En
el marco de los Sex Pistols, todas las categorías del tiempo quedaban suspendidas. En
“Anarchy in the UK”, se atacaba al presente. En “God sabe the Queen”, le tocaba al futuro
(evidentemente, con el “No Future”), pero también al pasado del que no se sentían parte
una generación, construido antes de y sin ellos.
8 Marcus señala en numerosas ocasiones que lo que ofrecían los Sex Pistols era “lo nuevo”:
“el sonido de los Sex Pistols era irracional; como sonido, parecía no tener el menor
sentido, no hacer otra cosa que destruir. Esta es la razón por la que era un sonido nuevo, y
por la que trazaba una línea divisoria entre él y todo lo que había aparecido antes”
(Marcus, 2007: 73). Hagamos el experimento de trasladar la crítica de Adorno del jazz al
punk. Su más importante rendimiento de la crítica contra el jazz es que rechazó su
novedad y, sobre todo, su autoinclusión como voz en la vanguardia. A nivel técnico, el
punk, al igual que el jazz en su fase embrionaria, utilizaba elementos musicales que ya
venían usándose de forma más o menos estable durante trescientos años (lo que ha
venido llamándose el “periodo de la práctica común”, según los términos del compositor
Walter Piston). La diferencia estaba en el cómo. Mientras la música, hasta mitad del siglo
XX, había sido un terreno para niños de buenas familias y se acotaba a reuniones donde se
mostraba la erudición y/o el dinero, con el auge y la extensión de la música pop se había
vuelto un terreno “democrático”. Pero mientras los rockers aún seguía estudiando escalas
y trabajando digitación, con el punk, como según Marcus dijo Paul Westerben, de The
Replacements, los Sex Pistols invitaban a replantarse lo que de autoritario seguía
teniendo la supuesta democratización de la música con el inicio del rock ‘n’ roll: “no
necesitas saber nada. Simplemente toca” (Marcus, 2007:74). Se trata de la inversión de
aquella odiada frase que ha marcado la recepción del arte contemporáneo, la de “esto lo
podría hacer incluso un niño”. Ahora, esa infantilización de las formas, el puro hacer, era la
impronta del punk (incluso, en ocasiones, de forma paródica, como en los ruidos que
Rotten hacía con el micrófono en “Submission”). Sin embargo, los Sex Pistols, en
concreto, y el punk en general, no hacían algo nuevo en un sentido enfático: a nivel
técnico su música estaba más cerca de la música de Mozart que de la música
experimental, aunque el punk tomaba elementos del fluxus pero sin la radicalidad de las
performances ni de algunos colectivos que diez años antes habían puesto las formas
preestablecidas patas arriba, como Zaj. Precisamente, la verdadera radicalidad de las
propuestas que surgían, según la lectura oficial, de John Cage (aunque cabría hacer una
filiación más larga, hacia Satie e incluso hacia la Marche funèbre pour les funérailles d’un
grand homme sourd de Alphonse Allais) se encontraba en la imposibilidad de ser masivo, en
la soledad, en su incomunicabilidad, en la incapacidad de decir “nosotros” (aunque
gritándolo a todas luces de forma mediada). El punk, en ese sentido, revivió viejas formas
-las tonales- con una puesta en escena disfrazada de radical y trató de hacerse masivo
pero, al mismo tiempo, de algún modo sectario. Sólo aquellos que renunciasen a lo
cómodo podrían entrar en la corte de los milagros. Pero hay algo que pesa más que las
intenciones. El punk, finalmente, a diferencia de lo que el propio Marcus señala, sí tenía
“sentido musical” (Marcus, 2007:79). Que tocasen mal, que tocasen con distorsiones, que
cantasen gritando, no les separaba en absoluto de las formas establecidas de música: el
acorde de quinta siempre resuelve en la fundamental, hay estribillo, incluso melodizan
con cierto gusto y, desde luego, afinan. Su “sentido musical”, ese silenciado acuerdo con
fórmulas tradicionales del componer les colocaba en una situación en la que quizá no se
sentirían del todo cómodos: la de que sólo la construcción de lo extramusical habla del
cambio social, mientras que lo musical claudica ante el establishment.
habla de que el dinero, algún día, también habrá pagado la inmortalidad. Benjamin
encuentra, de esta forma, filiaciones entre el concepto de tiempo y la herencia de las
religiones históricas: «a los judíos les estaba prohibido escrutar el futuro. […] en él cada
segundo constituía la pequeña puerta por la que el Mesías podía penetrar» (Benjamin
2003: 318). Y este es el primer modelo temporal del punk: el de la pura inmediatez, por si
la muerte llega demasiado pronto (como cuando le llegó el turno a Nancy Spungen o Sid
Vicious).
10 En el contexto cultural en el que surgió el punk, el terreno de los adultos es la
experiencia. Ellos son ya «seres experimentados». La experiencia les ayuda a no cometer
errores, a vivir según el camino recto: «La máscara de los adultos es la “experiencia” (
Erfahrung). Es una máscara inexpresiva, impenetrable, siempre igual a sí misma. Todo lo
han vivido ya estos adultos: juventud, ideales, esperanzas, mujeres» (Benjamin 1993: 56).
Y, por eso, ven a los jóvenes como una parodia de su propia vida, de lo ya pasado. Los
adultos eran el efecto del abstracto del «porvenir», la idea de un futuro que tiene que ser
de una manera determinada para ser bueno. Esto es algo que casa perfectamente con la
idea de experiencia que había otorgado el positivismo acuciante del periodo
decimonónico: elaborar una idea de experiencia que pueda ser repetida por cualquiera,
que sea un hecho objetivable. El modelo que se esperaba de los jóvenes del siglo XX –y
especialmente de la II Guerra Mundial- era que se abrieran a ese nuevo mundo que
parecía surgir después del derrumbamiento que supuso el Holocausto y explotaran el
gran logro teórico de la humanidad que supuso el «Estado del bienestar». Éste creaba
unos patrones, perfectamente acotados en el American dream. Este sueño tiene un
problema que ya supo ver Platón: que las copias sólo participan de la idea, pero nunca son
tal, nunca superan al original. Y las copias –y por eso, fundamentalmente, expulsó a los
artistas de la República- siempre terminan siendo meras perversiones o deformaciones de
la idea. La experiencia que se le era dada a los adultos, en realidad, una no-experiencia, en
la medida en que ofrecía algo ya preparado para ser vivido. La felicidad tenía que ser
aquello que no se pudo alcanzar durante las dos Guerras Mundiales. Si bien las
condiciones sociales ahorraron a la juventud occidental la carga de la trinchera, también
les estaban ahorrando el formular su propia vida o, al menos, intentarlo. Ahí, quizá, se
cifra una de las posturas más poderosas de la línea cultural de Marcus. Los Sex Pistols
serían el perfecto contrapunto a la visión del adulto. El no futuro – que aún guardaba la
posibilidad de un futuro siempre en generación- devino en no hay futuro –el cual parece
carecer de todo optimismo y habla sobre la clausura del porvenir. A partir de los años 60,
‘la felicidad’, como promesa del futuro, había quedado lo suficientemente desacreditada
como para no poner en ella la meta: las promesas que no llegan es mejor no haberlas
pronunciado nunca. Así, el “no futuro”, que abría aún la posibilidad de que la promesa
llegara a cumplirse, se convirtió en la constatación de que no había nada que recuperar
porque nunca había existido eso que se daba por perdido. “Se tiene la voluntad de
liberarse del pasado”, decía Adorno, “con razón, porque bajo su sombra no es posible
vivir, y porque cuando la culpa y la violencia sólo pueden ser pagadas con nueva culpa y
nueva violencia, el terror no tiene fin; sin razón, porque el pasado del que querría huir
aún está sumamente vivo” (Adorno, 1998: 15). Por eso, la
11 Por el contrario, el ideario capitalista propone el «cualquier tiempo pasado fue mejor».
Según indica Benjamin en uno de sus más brillantes textos póstumos, «El capitalismo
como religión»:
«El capitalismo es celebración de un culto sans rêve et sans merci (sin tregua ni
piedad). En él no hay señalado un día a la semana, ningún día que no sea día festivo
[…] que constituiría el esfuerzo más manifiesto de quien adora. […] Probablemente
el capitalismo es el primer caso de culto no expiante, sino culpabilizante. En esto
estriba lo históricamente inaudito del capitalismo, que la religión no es reforma del
ser, sino su destrucción» (Benjamin 1991: 100).
12 Los logros sociales son, para el capitalismo, lacras que destruyen aquello que podía haber
sido y no fue el mundo. Los seres humanos no han conseguido librarse aún de sus cargas.
El pasado se sitúa como ideal que puede recuperarse, ya que el futuro no parece la baza a
la que aferrarse. Si el capitalismo era promesa, lo era del pasado. Cuando señala al futuro,
habla de esa posible «destrucción del ser». El pasado tuvo que ser mejor, como garantía a
la que regresar cuando se desmonten finalmente todas las creencias. Tomando libremente
las letras de Cesar Vallejo (las de, en concreto, “Cuídate España”), el capitalismo tuvo en
el pasado, y no en el futuro, su propio juicio final. Dio a cada uno su papel de víctima, de
verdugo o de indiferente. E incluso todo a la vez. El capitalismo postula la libertad «en la
elección de la ideología [donde] se revela en todos los sectores como la libertad para lo
mismo de siempre» (Adorno y Horkherimer 2008: 191). Según Marcus, uno de los logros
más importantes del punk fue la ruptura con la sociedad del sacrifício, con la espera hacia
algo mejor que llegará si nos esforzamos: «[Los Sex Pistols] eran horribles. Y me
parecieron grandiosos. Yo quería ponerme de pie y ser horrible también»6. Había que ser
punk, y también mostrarlo. Si no se mostraba, no se era (algo que adelanta las fascinación
por mostrarlo todo, que es marca de nuestro tiempo). Los demás, siguiendo las
prescripciones punkis, eran una suerte de señoritingos pasados de moda. Si no llevabas
un imperdible en el labio o te vomitabas a ti mismo eras antipunk. Si realmente Adorno
tuvo alguna influencia sobre esto –como defiende entre líneas Marcus- lo más punk
habría sido, en realidad, no ser nada.
13 Ese ‘ser horrible’ quiere participar de la posibilidad de vivir la vida como una obra de arte;
y en el cuestionamiento de la validez de lo «políticamente correcto». Esto pone sobre la
mesa en el contexto que nos ocupa, aquello que los escritores negros de la ilustración –en
cuya cabeza se encuentra, probablemente, Sade- dijeron entre líneas: que uno de los
límites de la razón se encuentra en que es incapaz de desarrollar argumentos a favor del
bien y en contra del mal, lo que se traduce en la igual irracionalidad para ambos polos,
más allá de las estructuras de lo convencional. Aunque muchos de ellos pagaron con la
cárcel o con ser alimento de las llamas, se abrió una brecha que a duras penas la
Ilustración pudo sanear. Ese legado es también parte del recorrido histórico de Marcus.
En el siglo XX volvieron a supurar las heridas más graves del XVIII, las que hablaban de
una razón limitada que ponía fronteras también a las posibilidades del ser humano (el
cual tenía que prescindir de una vez para siempre de sus pretensiones de conocerlo todo,
incluso a sí mismo como totalidad de sentido) y las que descorrían los velos de la
arbitrariedad de los acuerdos sociales. De ahí que lo «políticamente correcto» fuera algo
que no sólo iba a estallar por diversión o por transgresión, sino también por complicidad
con la historia de las ideas. En el Ice Age, los héroes eran los que «conservaban un empleo,
seguían casados, permanecían fuera de un hospital mental o sencillamente no morían»
(Marcus 2007: 58). Es decir, los «políticamente correctos», aquellos que trataban de
integrarse en el sistema, los que seguían los valores morales, los que eran «normales» (en
tanto la enfermedad mental es motivo de incluirse dentro de los «anormales», esa
categoría a la que ninguno queremos pertenecer y de la que, sin embargo, participamos
modestamente de un modo u otro) o los que vivían, aunque aquello fuera un sin-vivir. A
veces el instinto de supervivencia tiene eso, que se sobrevive pese a todo. La vinculación
de lo políticamente correcto con la idea de sacrificio se encuentra, quizá, brillantemente
expresado en los textos eslogánicos de la Internacional situacionista que se preguntaban
por las consecuencias del trabajo. Parecería que su versión más radical se encontraría en
el texto de Paul Lafargue, El derecho a la pereza, en el que lleva las conclusiones del
marxismo a su extremo. Si el trabajo es esencialmente alienación y enajenación
individual, el derecho a la pereza sería la utopía -en la medida en que el perezoso trabaja
si quiere- y no la sublimación del trabajo -es decir, una versión del trabajo más amable,
donde no se liquide finalmente la individualidad-. Por una parte, la pereza rompe con ese
pecado del que parte la lógica capitalista –que no en vano es el mismo que el cristianismo-
que sitúa el pasado en un paraíso perdido, cuya pérdida sólo puede ser redimida a base
del trabajo (la redención en el capitalismo es no ser expulsado de lo social). Y por otra,
firma la paz con uno de los tabúes marcados por la tradición, a saber, el no hacer nada
productivo. La pereza se encuentra en el mismo lugar del mundo en que el arte pudo ser ‘
l’art pour l’art’ y en donde las humanidades no consiguen ni predecir ni explicar ni cumplir
con un rendimiento económico para el liberalismo y su correlato en la ciencia, el
positivismo. Asimismo, la pereza es lo más opuesto al trabajo, a lo que exige la obediencia
y supeditación a un horario, una lógica, un mecanismo. En otras palabras, a la
integración. Por eso, las primeras palabras del Derecho a la pereza, de Paul Lafargue, dicen
así:
«En el seno de la Comisión sobre Educación Primaria de 1849, el señor Thiers decía:
"Quiero recuperar con toda su fuerza la influencia del clero, porque cuento con él
para propagar esa buena filosofía que enseña al hombre que está aquí para sufrir, y
oponerla a esa otra filosofía que dice al hombre lo contrario: 'Disfruta'”. El Sr.
Thiers formuló con esto la moral de la clase burguesa, de la que él encarnaba el
egoísmo feroz y la estupidez. […] La moral capitalista, mezquina parodia de la moral
cristiana, castiga con un solemne anatema la carne del trabajador; su ideal consiste
en reducir al mínimo las necesidades del productor, en suprimir sus goces y sus
pasiones, y en condenarle al papel de máquina redentora del trabajo sin tregua ni
misericordia» (Lafargue 1977: 35).
14 El ocio entendido como contrapunto a la oficina y a la fábrica, útil para la optimización
del trabajo después de una desconexión, paulatinamente fue adquiriendo un espacio que,
en apariencia, parecía desligado de ese mero «ser útil para» y próximo a alcanzar su
propio lugar dentro de lo lógica de lo social. Sin embargo, parecería que nunca dejó de
ser, ideológicamente, lo mismo. Frente al modelo cristiano, que preconiza el sacrificio, el
esfuerzo, el trabajo como ideales vitales, se oponen los valores del ocio que, aparte de la
pereza, genera apatía –quizá también rebeldía- por el trabajo, hedonismo, emancipación y
cultura. Tener ocio ayuda a comparar, de ahí que el ocio sea, en apariencia, abierto y
libre. Sin embargo, la oferta no depende de la demanda, sino al revés. Es como un kiosko,
en el que cada ocioso encuentra aquello que, a priori, estaba dirigido a querer comprar.
Según expresa Marcus, «a la gente se le hace pasar por alto el hecho evidente de que esta
información, este entretenimiento […] no están hechos para ellos, sino contra ellos y sin
ellos» (Marcus 2005: 152). El ‘¿qué quiero hacer?’, que se postula libre, es incluso más
peligroso que el ‘¿qué hay?’. En la medida en que se asume una mayor libertad se vela la
única libertad posible en la industria cultural: la explicitación de las determinaciones. Por
tanto, el salto hacia el ‘¿qué quiero hacer hoy?’ no es cualitativo, sino una mera
transposición de nombres, pero no de concepto. Se quiere hacer lo que hay que hacer. Si
en Auschwitz la consigna era «el trabajo os hará libres», las formas de represión
contemporáneas, mediadas, silenciadas, han reinscrito la consigna más terrible del siglo
XX en «el ocio os hará libres».
15 El carácter moral del ocio no sólo pasa por su existencia como contrapunto de la vida del
trabajador. Éste surge desde un principio de desigualdad social que debe mantenerse. Las
desigualdades en materia de ocio son la base de la oferta y la demanda cultural. El
American dream contiene un engaño estructural: “si haces “x”, tendrás “y”. Lo que no
explicita es que “x” es irrealizable (realmente no puede llegarse a lo más alto desde lo más
bajo: como han mostrado muchos sociólogos en los últimos años, la repetición de las
limitaciones sociales es un hándicap difícilmente superable en las sociedades
contemporáneas, especialmente porque muchas prácticas se ligan íntimamente con la
identidad de los sujetos) e “y” es la metralla ideológica de la publicidad y el modelo de la
meca del capitalismo. A fin de trasgredir lo hasta ahora indicado, se planteó vivir la vida
como si [als ob] fuera una obra de arte o, lo que es lo mismo según la relectura de esta
propuesta nietzscheana de los situacionistas, realizar el arte y, en concreto la poesía, en la
propia vivencia.
Apunte final
25 Aunque se han tratado de exponer algunas debilidades en los asuntos que quedan abiertos
en el libro cabe apuntar brevemente las virtudes de este ensayo. Su propia esencia
dadaísta (que en cierto modo es subyacente a cualquier texto con intención ensayística),
en la que se intercalan diferentes textos, citas y propios comentarios del autor –algunos
de absoluta brillantez- no solamente reivindican su lugar en la historia algunas voces que
se encuentran injustamente silenciadas, sino que recupera un secreto del que la teoría no
se puede olvidar nunca. Es el secreto de no dejar al lector indiferente, de no paralizar su
pensar, de no darle todas las claves. Quizá esas claves no existen, pero lo que es seguro es
que Marcus se cuida en no falsear el secreto mostrándolo como totalidad de sentido,
explicitando todas sus rendijas. Puede ser que muchos asuntos que nombra resulten
chocantes, exagerados, inexactos. Precisamente en el proceso de extremar lo extremo
puede salir, por contraste con lo normalizado, lo que el extremo tiene de verdad.
Asimismo, el enfrentarse a este fenómeno desde tan escasa distancia histórica es también
un logro: estamos tan cerca de lo que somos actualmente que es una verdadera afrenta
salir de la cotidianidad y someterla a estudio. Marcus, en lugar de hablar del reflejo en el
espejo, escribe desde la visión del propio espejo que mira a aquellos que pretenden
encontrarse a sí mismos en él.
26 Para Marcus, la potencia del punk se encuentra en que hizo estallar “las premisas de la
vieja crítica” sobre la cultura de masas, que se entendía como una pseudocultura o algo
por debajo de las formas culturales elevadas. El punk se regodeaba de ser anticultura.
Hoy, cuando se cumple el 30 aniversario del surgimiento de los Sex Pistols, parece que la
reflexión no se debería dirigir tanto a la cultura de masas que pretende o es incluso
antisistema de forma explícita, sino lo que de antisistema tienen las formas más
integradas del consumo del ocio. Que en la sociedad más feminista conocida hasta ahora
el reguetón sea la música más escuchada en muchos países abre preguntas que cuestionan
si, verdaderamente, la sociedad es tan feminista como presume o si existen
contradicciones profundas en la cultura de masas que quizá sólo puedan pensarse desde
la brecha de su contradictoriedad. Al igual que en el punk, que supo ser trinchera y
producto al mismo tiempo, que era retrógrado en lo musical y radical en lo extramusical,
que cambió la historia y la legitimó al mismo tiempo, los fenómenos de la cultura de
masas no son nunca inequívocos (aunque lo pretendan). Las formas antisistemáticas de lo
integrado a nivel masivo se oponen a las formas disruptivas de la cultura, que
supuestamente ofrecen espacios desde los que repensar la historia, al sujeto, al objeto, y
todas esas categorías que han enhebrado la filosofía. El problema, que hoy no sólo en
relaciones entre lo musical y lo extramusical, sino también en las redes sociales o en los
youtubers, es cómo articular un discurso no elitista y no peyorativo sobre aquello no
disruptivo, sobre aquello que repite explícitamente las prescripciones del capital. Porque
lo disruptivo es lo que aún no somos y se nos ofrece abierto, pero lo antisistemático de lo
integrado es, quizá, el secreto del presente.
BIBLIOGRAFÍA
Adorno, Theodor W. 2004. Teoría estética. Madrid: Akal, 2004.
Benjamin, Walter. 1991. Gesammelte Schriften,vol. VI, Frankfurt a. M.: Surhkamp [trad. Carlos
Marzán y Marcos Hdez.]
_____. 2010. Calle de dirección única, en Obras Libro IV, vol. 1, Madrid: Abada.
Debord, Guy. 1995. La sociedad del espectáculo. Santiago de Chile: Naufragio.
Lafargue, Paul. 1977. Derecho a la pereza (Refutación del derecho al trabajo de 1848). Madrid:
Fundamentos.
Marx, Karl y Engels, Friedrich. 1981. Obras escogidas en tres tomos, Tomo I. Moscú: Progreso.
Marcus, Greil. 2005. Rastros de carmín. La historia secreta del siglo XX. Madrid: Anagrama.
NOTAS
1. «Kant es el filósofo cuya doctrina se ha acreditado de más fecunda y la más honda ha arraigado
en nuestra cultura alemana. Aunque no lo haya leído, ha influido en usted» (Eckermann, J. P.,
Conversaciones con Goethe en los últimos años de s1u vida, en Goethe, J. W., Obras completas, Tomo III,
Madrid, Aguilar, 1951, p. 129).
RESÚMENES
El subtítulo del libro (ya) clásico Rastros de carmín. Una historia secreta del siglo XX de Greil
Marcus habla sobre un secreto que recorre el siglo XX. Es un secreto que trata sobre el punk y de
un discurso que no aparece en los libros de historia pero que espera poder destruirlos. En este
trabajo se pretende poner en entredicho la fuerza política del punk en los términos que él los
defiende y encontrar los conflictos teóricos que aparecen, en concreto, en su análisis del proyecto
de los Sex Pistols. Para ello, se articulará una filiación crítica entre el texto de Marcus y algunos
pensadores fundamentales de la cultura en el siglo XX, como Benjamin o Adorno.
The subtitle of the (already) classic book “Lipstick Traces: A Secret History of the 20th Century”
by Griel Marcus talks about a secret which traverses the past century. It is a secret related to
punk and the defeat of the left, to utopia and to a discourse which will never appear in history
books but seeks to destroy them. This article seeks to question the politic power of punk in
Marcus’ terms, and discuss the theoretical issues of his analysis of the Sex Pistols’ project. To that
end, For that, a critical link will be established between Marcus’ text and some of the outstanding
cultural critics of the XXst century, like Benjamin or Adorno.
ÍNDICE
Keywords: Sex Pistols, Greil Marcus, Punk, Benjamin, Adorno
AUTOR
MARINA HERVÁS MUÑOZ
Universitat Autónoma de Barcelona, España
Facultad de Filosofía
mhermu@hotmail.com