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ISSN: 0873-6561
etnografica@cria.org.pt
Centro em Rede de Investigação em
Antropologia
Portugal
Fradique, Teresa
MIGUEL VALE DE ALMEIDA. OUTROS DESTINOS: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA E
CIDADANIA. Porto, Campo das Letras, 2004, 253 pp.
Etnográfica, vol. 10, núm. 2, noviembre, 2006, pp. 402-404
Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Lisboa, Portugal
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Recensões
MVA: “Para um antropólogo é provável que a cida- Mas voltemos à citação de abertura e às ra-
dania constitua uma responsabilidade acrescida, pois zões da sua escolha. Para quem vem acompa-
a prática de uma ciência social é caracterizada por dois nhando o trabalho de MVA, não surpreende esta
traços complexos: por um lado, ela é reflexiva, isto é, o capacidade de pensar a partir de si, mais como
conhecimento produzido pelo cientista social é incor- partilha e impulso ético de compromisso pessoal
porado pelos actores sociais, mudando o comportamen- com o mundo e com a antropologia, do que como
to destes, gerando assim um infinito círculo forma de autocentramento pessoal. Nesse senti-
hermenêutico; e por outro lado, a natureza do objecto do, a imagem que nos oferece (a da figura de S.
de estudo é parte integrante dos interesses e preocu- Sebastião no seu escritório que o leva à reflexão
pações do antropólogo enquanto membro de uma socie- sobre a necessidade de utilizar a sensibilidade e
dade, isto é, enquanto cidadão.” (p. 45) instrumentos de cientista social para proble-
Outros Destinos – Ensaios de Antropologia e matizar temas socialmente relevantes) remete-
Cidadania é um caso raro — na antropologia pro- -nos para o que esta obra tem, a meu ver, de mais
duzida em Portugal — de voo rasante, intenso e central: a concretização de um estilo e de uma
honesto (à falta de melhor expressão) a um per- forma incorporar a antropologia que, embora não
curso de investigação. Uma viagem que percor- seja isolada e inigualável, destaca-se no panora-
re praticamente todos “lugares”, ou “destinos” ma actual.
— para parafrasear o título —, visitados por este Outros Destinos encontra-se estruturado em
antropólogo ao longo de uma prática já com duas quatro partes que abarcam ensaios que resultam
décadas. Esta revisitação de paragens através da das grandes áreas de investigação de MVA: 1)
reunião de textos dispersos (inéditos e publica- “A Antropologia, a cidadania e os desafios do
dos em revistas e colectâneas nacionais e inter- mundo contemporâneo”; 2) “Etnicidade, políti-
nacionais) constitui uma oportunidade para per- ca da identidade e hegemonia cultural”; 3)
ceber subtilezas, insistências, compromissos e “Género e sexualidade”; e 4) “O projecto criou-
reflexões do seu autor, por um lado, mas igual- lo”.
mente, percebê-las como reflexo da multiplici- O texto de abertura é, a meu ver, exemplar
dade de níveis e abordagens que a prática antro- das mais-valias deste projecto. Intitulado “An-
pológica, em particular, e as ciências sociais, em tropologia: tomar balanço para o século XXI”,
geral, implicam. Talvez um dos aspectos mais trata-se de um ensaio que resultou de uma me-
interessantes neste traçar dos mapas geográficos morável conferência proferida na Culturgest a
dos projectos de investigação seja a forma como, propósito do ciclo “O fundamental do século
mais uma vez, damos conta da complexidade, XX”, organizado por António Pinto Ribeiro em
polifonia e capacidade de “regeneração reflexi- 1996. Embora com dez anos, é um texto útil para
va” dos resultados do trabalho de campo antro- pensar as preocupações surgidas nos finais dos
pológico (que surgem em Outros Destinos sob a anos 90 e entretanto algo atenuadas, ou mesmo
forma do registo pessoal, do diário de campo, secundarizadas, pela própria viragem do milé-
da etnografia recuperada ou mesmo reciclada, nio e pelos embates criados pela sucessão de
do diálogo com outras áreas de saber/discur- acontecimentos arrebatadores que o inaugura-
sivas e com públicos diversos). A concentração ram. Seguindo a proposta do contexto que lhe
de produção dispersa e alguma já publicada e deu origem, é um texto de balanço, mas com pro-
traduzida exige necessariamente a definição de jecção para diante, já que MVA aproveita a revi-
um fio condutor que lhe confira novos sentidos são para afirmar a importância da disciplina —
e pertinências. Esse trabalho assume aqui duas pelas suas especificidades clássicas — como uma
vias: por um lado a afirmação da prática an- das mais produtivas formas de entendimento das
tropológica como lugar de cidadania pelas complexidades e perplexidades da contempora-
possibilidades acrescidas de experiência éti- neidade: “O futuro da antropologia está na recupe-
ca que convoca; por outro, e mais indirecta- ração da herança etnográfica e desse carácter híbrido
mente, a ideia de que em cada projecto de ou bastardo do tipo de conhecimento especial obtido
investigação antropológica há desvios, vias nesse encontro. Assumindo os aspectos políticos do
paralelas e, por vezes, reencontros que vale passado da sua fundação, o seu futuro poderá e deverá
a pena serem revisitados. ser mais engajado na elucidação das relações entre os
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sistemas de dominação ou constrangimentos (incluin- habitus que, sediados no sujeito incorporado, repro-
do as gramáticas culturais) e as acções das pessoas e duzem o género e o potenciam a ‘falar’ do poder nou-
grupos na busca de sentido para as suas vidas.” tras relações sociais, como o trabalho, a política, as
(p. 25). expressões emocionais.” (p. 180).
Nos restantes capítulos desta primeira par- A última parte de Outros Destinos é integral-
te temos oportunidade de perceber (cap. 2) a mente dedicada a uma discussão sobre a noção
mitologia pessoal deste antropólogo e de como de “crioulo” e “crioulidade” a partir da produ-
ele descobriu (nas prateleiras de uma biblioteca ção antropológica de Almerindo Lessa sobre o
municipal americana) uma ciência que dava es- Cabo Verde colonial. Uma reflexão que aborda
paço à construção e questionamento identitário simultaneamente a história da disciplina, as fra-
do próprio cientista (pela mão das cartas de ter- gilidades da antropologia portuguesa de enfoque
reno de Margaret Mead). E ainda uma interes- colonial e que denuncia a construção, cultural-
sante visão pessoal sobre a antropologia portu- mente enraizada, das teorizações sobre a
guesa na viragem democrática. É também nes- crioulidade.
tes capítulos que surge de forma mais presente Apesar de a grande maioria dos textos pu-
o cruzamento entre objectividade/cidadania/ blicados em Outros Destinos não serem inéditos
/engajamento (cap. 3); ou que são ensaiadas for- e assentarem em dados etnográficos em parte já
mas mediatizadas de material etnográfico conhecidos a partir de outras obras de MVA, o
(cap. 4). exercício da sua compilação em torno de uma
A segunda parte cruza igualmente capítu- clara linha de abordagem antropológica, o esfor-
los de discussão teórica com reflexões a partir ço de reinvenção e compromisso com a
da revisitação de material etnográfico. No ensaio etnografia que reflectem, tornam este projecto
de abertura (cap. 5) MVA procura cruzar duas um importante fruto de maturidade académica.
noções — a de Estado-nação e a de multicultura-
lismo — com o objectivo de sistematizar as se- Teresa Fradique
melhanças entre os dois “artefactos culturais” a Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha
que deram origem — o nacionalismo e o
colonialismo — que se encontram na base das
comunidades “instáveis e contestadas” (p. 82) em
que vivemos durante todo o século XX. Um
preâmbulo importante para os textos seguintes ANTÓNIO MEDEIROS
que se centram sobretudo na etnografia recolhi- DOIS LADOS DE UM RIO: NACIONALISMO
da no Brasil (Ilhéus, Bahia) sobre políticas de re- E ETNOGRAFIAS NA GALIZA E EM PORTUGAL
presentação cultural e etnicidade. A experimen- Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, 389
tação das periferias da etnografia surge mais uma pp.
vez na abordagem da figura de Gabriela de Jor-
ge Amado (cap. 7) ou na análise de recortes de Dois Lados de um Rio es uno de los pocos, muy
jornais (cap. 8). pocos, libros escritos por un antropólogo
A terceira parte percorre algumas questões portugués en los que se aborda un estudio com-
cruciais do trabalho de MVA em torno da cons- parado de temas, ámbitos o territorios españoles
trução social do género e da sexualidade. Mais y portugueses. Pues bien, aunque lo que acaba-
diversificado no tipo de textos, na extensão do mos de anotar es objetivamente cierto y se
período das pesquisas abarcadas e nas formas comprueba con facilidad si revisamos la
de abordagem, o conjunto de cinco capítulos re- bibliografía antropológica disponible a uno y
flecte uma abordagem de etnografia diversi- otro lado de “la Raya”, la cuestión no es ni mucho
ficada ao serviço da já conhecida posição do au- menos tan evidente si se analiza desde una ópti-
tor: “Ora parece-me que o género é precisamente um ca nacionalista gallega. En efecto, el título de la
processo de objectificação das relações sociais, simpli- obra de Medeiros hace mención expresa a que
ficando a sua complexidade e localizando em homens su objeto de estudio es el “nacionalismo” y las
e mulheres características de agência e poder que não “etnografías” que se vinculan con Galicia y Por-
lhes são inerentes. Importa pois identificar esses tugal, no con España y Portugal. En este senti-
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