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Etnográfica

ISSN: 0873-6561
etnografica@cria.org.pt
Centro em Rede de Investigação em
Antropologia
Portugal

Fradique, Teresa
MIGUEL VALE DE ALMEIDA. OUTROS DESTINOS: ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA E
CIDADANIA. Porto, Campo das Letras, 2004, 253 pp.
Etnográfica, vol. 10, núm. 2, noviembre, 2006, pp. 402-404
Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Lisboa, Portugal

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=372339148014

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mação para a sua tese de doutoramento (Vidas sobre os territórios colonizados por Portugal.
em Jogo. Cestas de Adivinhação e Refugiados Ango- Neste conjunto o livro de Sónia Silva merece um
lanos na Zâmbia, Lisboa, ICS, 2004). Na exposi- lugar de destaque. Pelo material recolhido. Pe-
ção este contacto privilegiado exprimia-se pelo los métodos seguidos. Pelos temas tocados, en-
carácter pessoalizado e sensório dos objectos ex- tre a apresentação detalhada de um período de
postos: fotografias de pessoas nomeadas, com constituição da antropologia e museografia por-
uma identidade afirmada no processo narrativo tuguesas, de história colonial, à apresentação de
dos vários registos; ao lado, um cesto luvale de um dos trabalhos mais íntimos sobre a questão
peneirar farinha pedia: “cheira-me”. No projec- dos refugiados. Mais do que um livro sobre
to expositivo a realidade e o vivido foram cestaria, esta é uma obra imprescindível sobre a
museografados como mais um momento num história de Angola, dos luvale, dos movimentos
percurso que não é imóvel. O chapéu, o cesto de de refugiados, e sobre o papel do Ocidente en-
transporte, as tigelas de plástico que vimos foto- quanto interveniente e testemunha destes pro-
grafadas no mercado, a tampa de pirão cuja exe- cessos.
cução seguimos num pequeno documentário,
foram expostas perante os nossos olhos e senti- Clara Carvalho
dos. Mas Sónia Silva não é mais atraída pelo ori- Departamento de Antropologia, CEAS-ISCTE, CEA-ISCTE
ginal ou pelo diferente: trouxe-nos antes as me-
didas em plástico utilizadas nos mercados, o pra-
to esmaltado made in China, os objectos do quoti-
diano. Nos filmes que acompanhavam a mostra,
cesteiros, adivinhos, homens e mulheres cons- MIGUEL VALE DE ALMEIDA
truíam cestos no tempo longo de quem rendilha, OUTROS DESTINOS: ENSAIOS
impondo um ritmo de normalidade às suas vi- DE ANTROPOLOGIA E CIDADANIA
das de refugiados, deslocados e despatriados. No Porto, Campo das Letras, 2004, 253 pp.
livro Sónia Silva alonga-se sobre estas relações.
As imagens permanecem, as palavras são agora “(…) Dei por mim a olhar para a estatueta de São
controladas pela autora que nos traz as expres- Sebastião que tenho no meu escritório. Sempre me fas-
sões de Rose Chikunga, Nyalokina e outros. O cinou como naquela imagem se misturam feminilida-
livro beneficia, sobretudo, do aprofundamento de e masculinidade, dor e prazer, sofrimento pelo pre-
teórico das questões colocadas na exposição so- sente e esperança pelo futuro. Sebastião lembrou-me
bre a autenticidade, o anonimato do objecto, a da razão porque escrevo publicamente sobre sexuali-
possibilidade de um corpo expositivo espelhar, dade e não me restrinjo à vida académica: porque é
mais do que uma pesquisa, uma vivência. O li- um assunto político. E quando comecei a escrever umas
vro transforma os objectos mumificados em ele- linhas tímidas sobre sida, foi sempre sobre os fantas-
mentos de intermediação, em pretextos de pes- mas culturais que a sociedade cultiva em torno de e a
quisa etnográfica. É esta a riqueza deste livro- propósito da sida: os comportamentos que não sejam
-catálogo, que se assume como um objecto autó- os da família heterossexual, reprodutiva, monógama.
nomo relativamente à exposição que lhe serviu Como antropólogo sinto que tenho a obrigação de mos-
de pretexto. Paradoxalmente, é também esta a trar que nem sempre as coisas foram como são, e nem
sua fragilidade. Sónia Silva coloca-nos questões em toda a parte são como entre nós.” (p. 237)
e entretece uma resposta, mas o tom coloquial É talvez injusto escolher como abertura do
que enriquece o catálogo e o liga à exposição que presente comentário ao último livro de Miguel
realizou, empobrece o livro das múltiplas refe- Vale de Almeida (MVA) uma citação retirada de
rências a que apela. Não deixando por isso de um dos poucos capítulos, de um total de cator-
lançar as grandes questões da antropologia e da ze, cujo texto original não é dirigido à academia.
museologia actuais, sobre a sua relação com o Mas, justamente, identificar uma hierarquização
vivido e o seu papel de intermediação. entre o texto académico e o texto para “fora” da
No actual panorama editorial português, academia talvez faça pouco sentido na forma
começam a surgir timidamente obras de pesqui- como a tarefa do antropólogo é apresenta por

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Recensões

MVA: “Para um antropólogo é provável que a cida- Mas voltemos à citação de abertura e às ra-
dania constitua uma responsabilidade acrescida, pois zões da sua escolha. Para quem vem acompa-
a prática de uma ciência social é caracterizada por dois nhando o trabalho de MVA, não surpreende esta
traços complexos: por um lado, ela é reflexiva, isto é, o capacidade de pensar a partir de si, mais como
conhecimento produzido pelo cientista social é incor- partilha e impulso ético de compromisso pessoal
porado pelos actores sociais, mudando o comportamen- com o mundo e com a antropologia, do que como
to destes, gerando assim um infinito círculo forma de autocentramento pessoal. Nesse senti-
hermenêutico; e por outro lado, a natureza do objecto do, a imagem que nos oferece (a da figura de S.
de estudo é parte integrante dos interesses e preocu- Sebastião no seu escritório que o leva à reflexão
pações do antropólogo enquanto membro de uma socie- sobre a necessidade de utilizar a sensibilidade e
dade, isto é, enquanto cidadão.” (p. 45) instrumentos de cientista social para proble-
Outros Destinos – Ensaios de Antropologia e matizar temas socialmente relevantes) remete-
Cidadania é um caso raro — na antropologia pro- -nos para o que esta obra tem, a meu ver, de mais
duzida em Portugal — de voo rasante, intenso e central: a concretização de um estilo e de uma
honesto (à falta de melhor expressão) a um per- forma incorporar a antropologia que, embora não
curso de investigação. Uma viagem que percor- seja isolada e inigualável, destaca-se no panora-
re praticamente todos “lugares”, ou “destinos” ma actual.
— para parafrasear o título —, visitados por este Outros Destinos encontra-se estruturado em
antropólogo ao longo de uma prática já com duas quatro partes que abarcam ensaios que resultam
décadas. Esta revisitação de paragens através da das grandes áreas de investigação de MVA: 1)
reunião de textos dispersos (inéditos e publica- “A Antropologia, a cidadania e os desafios do
dos em revistas e colectâneas nacionais e inter- mundo contemporâneo”; 2) “Etnicidade, políti-
nacionais) constitui uma oportunidade para per- ca da identidade e hegemonia cultural”; 3)
ceber subtilezas, insistências, compromissos e “Género e sexualidade”; e 4) “O projecto criou-
reflexões do seu autor, por um lado, mas igual- lo”.
mente, percebê-las como reflexo da multiplici- O texto de abertura é, a meu ver, exemplar
dade de níveis e abordagens que a prática antro- das mais-valias deste projecto. Intitulado “An-
pológica, em particular, e as ciências sociais, em tropologia: tomar balanço para o século XXI”,
geral, implicam. Talvez um dos aspectos mais trata-se de um ensaio que resultou de uma me-
interessantes neste traçar dos mapas geográficos morável conferência proferida na Culturgest a
dos projectos de investigação seja a forma como, propósito do ciclo “O fundamental do século
mais uma vez, damos conta da complexidade, XX”, organizado por António Pinto Ribeiro em
polifonia e capacidade de “regeneração reflexi- 1996. Embora com dez anos, é um texto útil para
va” dos resultados do trabalho de campo antro- pensar as preocupações surgidas nos finais dos
pológico (que surgem em Outros Destinos sob a anos 90 e entretanto algo atenuadas, ou mesmo
forma do registo pessoal, do diário de campo, secundarizadas, pela própria viragem do milé-
da etnografia recuperada ou mesmo reciclada, nio e pelos embates criados pela sucessão de
do diálogo com outras áreas de saber/discur- acontecimentos arrebatadores que o inaugura-
sivas e com públicos diversos). A concentração ram. Seguindo a proposta do contexto que lhe
de produção dispersa e alguma já publicada e deu origem, é um texto de balanço, mas com pro-
traduzida exige necessariamente a definição de jecção para diante, já que MVA aproveita a revi-
um fio condutor que lhe confira novos sentidos são para afirmar a importância da disciplina —
e pertinências. Esse trabalho assume aqui duas pelas suas especificidades clássicas — como uma
vias: por um lado a afirmação da prática an- das mais produtivas formas de entendimento das
tropológica como lugar de cidadania pelas complexidades e perplexidades da contempora-
possibilidades acrescidas de experiência éti- neidade: “O futuro da antropologia está na recupe-
ca que convoca; por outro, e mais indirecta- ração da herança etnográfica e desse carácter híbrido
mente, a ideia de que em cada projecto de ou bastardo do tipo de conhecimento especial obtido
investigação antropológica há desvios, vias nesse encontro. Assumindo os aspectos políticos do
paralelas e, por vezes, reencontros que vale passado da sua fundação, o seu futuro poderá e deverá
a pena serem revisitados. ser mais engajado na elucidação das relações entre os

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sistemas de dominação ou constrangimentos (incluin- habitus que, sediados no sujeito incorporado, repro-
do as gramáticas culturais) e as acções das pessoas e duzem o género e o potenciam a ‘falar’ do poder nou-
grupos na busca de sentido para as suas vidas.” tras relações sociais, como o trabalho, a política, as
(p. 25). expressões emocionais.” (p. 180).
Nos restantes capítulos desta primeira par- A última parte de Outros Destinos é integral-
te temos oportunidade de perceber (cap. 2) a mente dedicada a uma discussão sobre a noção
mitologia pessoal deste antropólogo e de como de “crioulo” e “crioulidade” a partir da produ-
ele descobriu (nas prateleiras de uma biblioteca ção antropológica de Almerindo Lessa sobre o
municipal americana) uma ciência que dava es- Cabo Verde colonial. Uma reflexão que aborda
paço à construção e questionamento identitário simultaneamente a história da disciplina, as fra-
do próprio cientista (pela mão das cartas de ter- gilidades da antropologia portuguesa de enfoque
reno de Margaret Mead). E ainda uma interes- colonial e que denuncia a construção, cultural-
sante visão pessoal sobre a antropologia portu- mente enraizada, das teorizações sobre a
guesa na viragem democrática. É também nes- crioulidade.
tes capítulos que surge de forma mais presente Apesar de a grande maioria dos textos pu-
o cruzamento entre objectividade/cidadania/ blicados em Outros Destinos não serem inéditos
/engajamento (cap. 3); ou que são ensaiadas for- e assentarem em dados etnográficos em parte já
mas mediatizadas de material etnográfico conhecidos a partir de outras obras de MVA, o
(cap. 4). exercício da sua compilação em torno de uma
A segunda parte cruza igualmente capítu- clara linha de abordagem antropológica, o esfor-
los de discussão teórica com reflexões a partir ço de reinvenção e compromisso com a
da revisitação de material etnográfico. No ensaio etnografia que reflectem, tornam este projecto
de abertura (cap. 5) MVA procura cruzar duas um importante fruto de maturidade académica.
noções — a de Estado-nação e a de multicultura-
lismo — com o objectivo de sistematizar as se- Teresa Fradique
melhanças entre os dois “artefactos culturais” a Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha
que deram origem — o nacionalismo e o
colonialismo — que se encontram na base das
comunidades “instáveis e contestadas” (p. 82) em
que vivemos durante todo o século XX. Um
preâmbulo importante para os textos seguintes ANTÓNIO MEDEIROS
que se centram sobretudo na etnografia recolhi- DOIS LADOS DE UM RIO: NACIONALISMO
da no Brasil (Ilhéus, Bahia) sobre políticas de re- E ETNOGRAFIAS NA GALIZA E EM PORTUGAL
presentação cultural e etnicidade. A experimen- Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, 389
tação das periferias da etnografia surge mais uma pp.
vez na abordagem da figura de Gabriela de Jor-
ge Amado (cap. 7) ou na análise de recortes de Dois Lados de um Rio es uno de los pocos, muy
jornais (cap. 8). pocos, libros escritos por un antropólogo
A terceira parte percorre algumas questões portugués en los que se aborda un estudio com-
cruciais do trabalho de MVA em torno da cons- parado de temas, ámbitos o territorios españoles
trução social do género e da sexualidade. Mais y portugueses. Pues bien, aunque lo que acaba-
diversificado no tipo de textos, na extensão do mos de anotar es objetivamente cierto y se
período das pesquisas abarcadas e nas formas comprueba con facilidad si revisamos la
de abordagem, o conjunto de cinco capítulos re- bibliografía antropológica disponible a uno y
flecte uma abordagem de etnografia diversi- otro lado de “la Raya”, la cuestión no es ni mucho
ficada ao serviço da já conhecida posição do au- menos tan evidente si se analiza desde una ópti-
tor: “Ora parece-me que o género é precisamente um ca nacionalista gallega. En efecto, el título de la
processo de objectificação das relações sociais, simpli- obra de Medeiros hace mención expresa a que
ficando a sua complexidade e localizando em homens su objeto de estudio es el “nacionalismo” y las
e mulheres características de agência e poder que não “etnografías” que se vinculan con Galicia y Por-
lhes são inerentes. Importa pois identificar esses tugal, no con España y Portugal. En este senti-

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