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Regina Abreu

Tal antropologia qual


museu?1

Regina Abreu2 dências ou canais por onde este diálogo vem se


processando, abstraindo as inúmeras particula­
ridades da trajetória de cada uma destas áreas e
concentrando-me em algumas questões e impas­
ses importantes que as atravessam. Sei que corro
o risco da simplificação, mas também entendo
Apresentação: que esta é a única maneira de começar a circuns­
crever alguns temas recorrentes que caracterizam
a relação da Antropologia com os museus. No de­
O diàlogo da Antropologia com os mu­ correr do trabalho farei referência a alguns exem­
seus é antigo. Pode-se mesmo dizer que a Antro­ plos emblemáticos ou “bons para pensar”
pologia nasceu nos museus e com eles sempre Focalizando o caso brasileiro, partirei
conviveu de formas variadas. Entretanto, refletir do campo da Antropologia, procurando mostrar
sobre estes laços implica indagar sobre o cru­ as principais abordagens que se produziram e
zamento e as interfaces entre duas áreas de co­ indagando que tipo de museu correspondeu a
nhecimento e pesquisa com percursos próprios. cada vertente de Antropologia produzida entre
Muitas mudanças se fizeram sentir. A Antropo­ nós.
logia que praticamos hoje tem poucos pontos A tipologia construída por Marisa Pei-
em comum com a Antropologia que se praticava rano tem sido muito útil para pensar a história
no século XIX, assim como os museus contem­ da Antropologia no Brasil. Para esta autora, “a
porâneos em nada se assemelham às casas de sá­ alteridade é um aspecto fundante da antropolo­
bios do século XVIII. Evidentemente, que seria gia, sem a qual a disciplina não reconhece a si
uma tarefa irrealizável cartografar mudanças e própria” 3 Desse modo, a história da antropolo­
permanências de tão longo período. Não é esta gia é também a história de como os antropólo­
minha intenção. Mas, considero fundamental gos construíram diferentes tipos de alteridade.
partir da compreensão de que a Antropologia se Enquanto em outros países, os antropólogos
faz no plural, assim como os museus só exis­ construíram alteridades exóticas e distantes fora
tem no plural. Em seus movimentos de disputas de seus contextos nacionais de origem, no caso
internas, estas duas áreas expressam diferentes brasileiro, a construção das alteridades se deu
percepções e pontos de vista. Alguns se sobres­ em território nacional. Assim, ela estabelece
saem e afirmam-se por certos períodos. Outros quatro modalidades: “alteridade radical”, “alte­
são ofuscados ou perdem a potência e o poder ridade amenizada” “alteridade próxima” “alte­
explicativo. ridade mínima”
A História do diálogo entre a Antro­ Por “alteridade radical” a autora assi­
pologia e os museus é portanto uma história de nala os principais estudos de etnologia indígena
lutas e embates na confluência de três movimen­ predominantes do final do século XIX até me­
tos distintos: da Antropologia, dos museus e da ados do século XX quando os antropólogos de
relação entre as duas áreas. No espaço desta uma maneira geral priorizavam alteridades dis­
comunicação, procurarei salientar algumas ten­ tantes geográfica e culturalmente de seus con­
textos de origem.
1 Trabalho apresentado na Mesa 1: História dos museus
na interface com a Antropologia. 3 Peirano, Marisa “Antropologia no Brasil (alteridade
2 Antropóloga. Programa de Pós-Graduação em Memó­ contextualizada)”, in: O que ler na Ciência Social brasi­
ria Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. leira (1970-1995), SP. ed. Sumaré, 1999.

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A noção de “alteridade amenizada” O tema toma-se mais complexo se


compreende os estudos consagrados pela ex­ incluirmos outras variáveis. Como os antro­
pressão de Roberto Cardoso de Oliveira como pólogos vem conceituando a noção de cultura
de “fricção interétnica”, ou seja, onde se privi­ ao longo do tempo? Como ela vem se transfor­
legiou refletir sobre as relações entre diferentes mando? Este tema nos leva a uma outra questão
culturas, notadamente entre os povos indígenas fundamental na Antropologia: a relação entre a
e segmentos da população rural e a sociedade diversidade no plano da cultura e a igualdade no
nacional no processo de expansão das fronteiras plano da humanidade. Se todos somos iguais e
e incorporação de diferentes populações ao pro­ diferentes ao mesmo tempo, dependendo do foco
jeto nacional. Estes estudos eclodiram nos anos da análise teremos uma Antropologia relativista
50 e 60, transformando-se em objetos legítimos ou romântica (ênfase na noção de diferença) ou
do estudo acadêmico articulados com políticas uma Antropologia humanista ou universalista
sociais, como o indigenismo. (ênfase na noção de igualdade entre os homens).
Estudos de “alteridades próximas” re­ Este é um vetor que não deve ser subestimado
fletiram a guinada da Antropologia, a partir dos sobretudo na história da aproximação entre An­
anos 70, para a pesquisa no contexto de origem tropologia e museus.
dos próprios antropólogos, incluindo diferentes Deixando de lado certas particularida­
ambientes geográficos e culturais produzidos des, proponho agrupar as diversas Antropologías
pela sociedade nacional. Particularmente impor­ (ou construções de alteridades) em três chaves
tante foi o surgimento da Antropologia Urbana que me parecem centrais na história da relação
correspondendo a pesquisas que vão de estilos entre Antropologías e museus: “antropologías
de vida da classe média a hábitos culturais do reflexivas e museus de ciência”; “antropologías
psiquismo, consumo de drogas e violência, pas­ da ação e museus como instrumentos de políti­
sando por estudos de culturas populares, velhice, cas públicas”; “antropologías nativas e museus
gênero, prostituição, parentesco, entre outros. como estratégias de movimentos sociais”
A “Alteridade mínima” correspondeu Adianto que, com esta tipologia, po­
ao movimento auto-reflexivo da Antropologia a derei agrupar vertentes e abordagens teóricas
partir dos anos 80 quando antropólogos come­ que não raro partiram de tradições ou campos
çaram a refletir sobre a própria Antropologia e, de pensamento diferentes, mas quero reiterar os
em alguns casos colocaram os próprios antropó­ pontos em comum que vem fundamentando rela­
logos no lugar de “nativos” estabelecendo um ções singulares com os museus, espécies de mo­
olhar crítico sobre eles. É no contexto destes delos paradigmáticos que são encontrados: em
estudos de “alteridade mínima” que muitas pes­ primeiro lugar, os museus etnográficos enquan­
quisas sobre museus etnográficos ou antropoló­ to lugares essencialmente de produção e difusão
gicos vem sendo produzidas.4 de conhecimento científico; em segundo lugar,
A tipologia formulada por Marisa Pei- os museus etnográficos que foram criados com o
rano será tomada aqui como um guia inicial, intuito de subsidiar e instrumentalizar políticas
uma espécie de bússola para nossa orientação. públicas no âmbito estatal; em terceiro lugar, os
Evidentemente, que os movimentos da Antropo­ museus etnográficos que partem de iniciativas
logia sinalizam percursos que podem ser agru­ dos movimentos sociais ou da articulação entre
pados das mais variadas formas. As diferentes aqueles a quem chamamos de “nativos” e os an­
classificações da história da Antropologia não tropólogos. Evidentemente, que muitas destas
indicam momentos estanques e precisos. Alte­ experiências museológicas se interpenetram e
ridades radicais, próximas, amenizadas e míni­ configuram possibilidades sempre abertas a mu­
mas vêm convivendo no espaço da disciplina e danças e permanências.
muitas vezes estabelecendo pontos de contato Minha própria comunicação não pre­
entre si. tende ser conclusiva, pois ensaio aqui a apresen­
4 Em artigo recente apresentei um panorama destas pes­
tação de alguns resultados parciais de uma pes­
quisas no país. Ver “Antropologia e Patrimônio no Bra­ quisa em andamento, que muito particularmente
sil”, in: Livro da ABA 2006 se refere ao diálogo entre a Antropologia e os
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museus na França e no Brasil, a circulação in­ também pedagógica. Desde então, os museus
ternacional do pensamento na área dos museus têm sido importantes aliados nos processos civi-
etnográficos e o papel seminal da experiência do lizatórios nos diversos contextos nacionais. Os
Museu do Homem de Paris. rituais de freqüentar as exposições passaram a
ser concebidos como rituais importantes onde
diferentes segmentos de população vão grada-
tivamente entrando em contato com os novos
conhecimentos produzidos pelos especialistas
das diferentes áreas, a famosa difusão ou popu­
Antropologia reflexiva e museus de larização do conhecimento científico.
ciência Observemos que uma das definições de
museu divulgada pelo ICOM traz em seu bojo
estes aspectos: produção de conhecimento; prá­
Os museus antecedem a Antropologia tica de colecionamento; preservação; difusão,
como área de conhecimento e campo reflexivo. exibição, educação.
Nos livros dedicados às histórias dos museus, é
comum encontrarmos sua origem associada aos “Um museu é uma instituição permanente,
gregos que a consideravam “templos das mu­ sem fins lucrativos, ao serviço da socie­
dade e do seu desenvolvimento, aberta ao
sas” lugar de inspiração e imaginação poética. público e que adquire, conserva, pesquisa,
No Ocidente, o museu somente foi associado ao comunica e exibe evidências materiais do
saber muitos anos mais tarde, já na Renascença, homem e do seu ambiente para os propósi­
quando os sábios ligados às Cortes européias reu­ tos de estudo, educação e entretenimento”
niam suas coleções de relíquias para fins de estu­ (ICOM, 1974)
do. Neste período, as coleções dos museus per­ Por seu turno, a Antropologia surgiu
tenciam às Casas Nobres e não eram destinadas como área de conhecimento num contexto em
ao público em geral. Um marco importante na que predominavam as Ciências Naturais e uma
história dos museus ocorreu quando após a Revo­ visão positivista nas práticas científicas. Afirmar
lução Francesa, em 1793, o Governo republicano um estudo científico consistia em trabalhar com
decidiu abrir a Galeria do Louvre para a visitação provas, testemunhos, documentos, evidências
pública, isto é, para os cidadãos em geral. empíricas. Para a Antropologia em seus primor­
Durante o final do século XVIII e iní­ dios, estudar povos exóticos, pouco conhecidos,
cio do século XIX, constituíram-se os chamados implicava em formar coleções de estudo. Os pri­
museus de ciência ou museus enciclopédicos meiros antropólogos dedicaram-se a colecionar
voltados para a produção de pesquisa científi­ as culturas que estudavam, como observou Ja­
ca por parte de especialistas formados para este mes Clifford, pois os objetos retirados de seus
fim. Por outro lado, desenvolveu-se a idéia de contextos de origem representavam as provas
que os museus eram lugares também destinados vivas e materiais da existência de culturas dis­
a um público amplo que podia e devia se ilustrar tantes e pouco conhecidas que passavam a cons­
com visitas periódicas a estas casas de memória tituir o objeto de estudo dos antropólogos.
e saber. Em artigo anterior, refleti sobre o papel
O movimento iluminista e universalista dos grandes museus de ciência no Brasil enquan­
da ciência e as novas formas de governo pro­ to lugar privilegiado destes estudos num período
duzidas a partir do evento da Revolução Fran­
cesa geraram um modelo de instituição que em em que as poucas universidades existentes ainda
linhas gerais perdurou até os nossos dias. Esta não haviam incorporado estas novas esferas do
modalidade de museu pode ser definida como conhecimento.5 Nesta perspectiva, os museus
uma instituição com pesquisadores que produ­ de ciência abrigavam coleções de objetos de
zem conhecimento, praticam o colecionamen- 5 Abreu. Regina. “Museus Etnográficos e Práticas de Co­
to, divulgam o que é produzido e exibem suas lecionamento: Antropofagia dos sentidos”, in: Revista
coleções para um público amplo. Sua função é do Patrimônio, RJ. IPHAN. 2005.

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diferentes culturas. Mas, por trás de cada obje­ das por questões de antropologia física baseadas
to havia um cientista que coletava, observava, sobretudo em modelos de craniometria. O pri­
classificava, descrevia e, por fim, exibia suas co­ meiro curso de antropologia oferecido no país
leções. As exposições configuravam-se como o foi ministrado em 1877 por João Batista Lacer­
resultado das pesquisas. O olhar do pesquisador da e tinha como programa a análise da anato­
sobre uma cultura era o olhar dominante. O “ou­ mia humana. Os estudos de Antropologia Física
tro” era visto apenas como objeto de pesquisa, levaram à prática de colecionamento de ossos
um “outro construído”, um “objeto de conheci­ humanos, sobretudo de crânios. Batista Lacer­
mento” Neste contexto, e legitimados por uma da comentou em artigo publicado na revista do
vertente teórica evolucionista, nas primeiras Museu Nacional sua satisfação em poder levar
pesquisas antropológicas geradas nos museus, adiante trabalho sobre os botocudos uma vez
não encontramos as vozes dos povos estudados, que já conseguira reunir onze cérebros de “espé­
estes configuravam-se “outros passivos” de um cies dessa tribo” 6 Lacerda se inseria no amplo
discurso científico. debate evolucionista que procurava encontrar
Os casos mais extremos deste proces­ em culturas afastadas exemplos de estágios mais
so eram a exposição de índios em carne e osso atrasados, que comprovassem uma “infância da
que eram exibidos, da mesma forma que os civilização” A prática de colecionar vestígios
botânicos exibiam suas plantas ou os zoólogos de outros povos iniciou-se, portanto, no Brasil
suas espécies animais. Na esteira das grandes como uma prática ligada à Antropologia física
exposições internacionais, o Museu Nacional, com a proliferação de coleta de ossos humanos
por exemplo, em 1882 protagonizou a primeira entre os nativos. Nesta primeira fase da Antro­
grande Exposição Nacional onde índios boto- pologia, o ideal de todo antropólogo era orga­
cudos do interior do Espírito Santo e de Minas nizar uma “coleção sistematicamente e cientifi­
Gerais foram exibidos ao lado de objetos indí­ camente classificada” como dizia o naturalista
genas e pinturas retratando índios de diferentes Emílio Goeldi.7
procedências no país. Outro fator determinante nas práticas
Por este período, havia sido criada de colecionamento nos primeiros anos da An­
(1876) no Museu Nacional a seção de Antro­ tropologia consistiu em políticas de museus es­
pologia, Zoologia Geral e Aplicada, Anatomia trangeiros que fomentaram grandes expedições
Comparada e Paleontologia Animal, marco dos científicas ao Brasil para coletar acervos de po­
estudos de Antropologia no país. A criação des­ vos indígenas. Apreender o exótico era, antes
ta seção era conseqüência da influência exercida de tudo, salvar o que irremediavelmente iria se
na segunda metade do século XIX pela Socie­ perder daí a significação de relíquia ou de teste­
dade de Antropologia de Paris, sendo o homem munho expressa pelo recolhimento de artefatos
primitivo o principal centro de interesse. produzidos por estes povos.
Além do Museu Nacional, os primeiros O personagem emblemático desse
antropólogos brasileiros trabalhavam também período é Curt Nimuendaju, que se tomou a
em outros grandes museus fundados no século maior autoridade no campo da etnologia indí­
XIX, como o Museu Paraense Emílio Goeldi gena durante toda a primeira metade do século,
(1866) e o Museu Paulista (1894). Nestes mu­ mantendo relações com praticamente todas as
seus predominava o caráter enciclopédico das instituições e órgãos importantes de seu tem­
pesquisas sob a hegemonia das Ciências Natu­ po. Sua vida e obra relacionam-se diretamente
rais. A criação no Museu Nacional de uma se­ com a emergência da etnologia como discipli­
ção de Antropologia ao lado de Zoologia Geral e na no Brasil e a institucionalização do indige­
Aplicada, Anatomia Comparada e Paleontologia nismo nacional, ocorridos no início do século,
Animal nos fornece uma idéia de como a Antro­ chegando a ser considerado o “pai da etnologia
pologia estava mesclada com outras especialida­ brasileira”,8
des das Ciências Naturais. 6 Citado em Schwarcz, Lilia. Op cit, pág. 74.
Os novos pesquisadores eram em gran­ 7 Schwarcz, op cit, pág. 87
de parte naturalistas. As pesquisas eram pauta­ 8 Curt Nimuendaju emigrou para o Brasil em 1903 aos 20

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Até os anos 60, a tônica nos museus da cultura material. Muitos chegaram ao ponto
etnográficos era a prática de colecionamento de de nem mesmo freqüentar museus etnográficos.
grupos exóticos e radicalmente diferentes dos O caso do Museu Nacional é exemplar. Com um
ocidentais. Nos museus brasileiros, esta prática curso de pós-graduação em Antropologia Social
só foi levemente alterada pela busca de artefatos funcionando desde os anos setenta, muitos são
dos sertanejos, considerados nossos ancestrais os relatos de alunos que jamais tiveram a curio­
por excelência, espécie de degrau do primitivis­ sidade de entrar no prédio das exposições ou das
mo para o mundo civilizado numa visao evolu­ reservas técnicas, freqüentando apenas as salas
tiva da cultura. de aula e as bibliotecas.
Exposições que enalteciam a fábula
das tres raças tiveram lugar em museus etno­
gráficos, especialmente no Museu Nacional e
levaram também à coleta de objetos dos grupos
afro-brasileiros. Ainda durante a primeira meta­
de do século XX, o etnólogo Edison Carneiro, “Antropologia da Ação” e museus
especialista em estudos afro-brasileiros chegou como instrumentos de políticas
a organizar vitrines com os principais orixás do sociais.
candomblé, novidade para uma época onde ape­
nas se iniciavam os estudos das contribuições
dos negros no Brasil. A partir de um determinado momento
Em meados do século XX, os grandes da história da Antropologia, alguns antropólo­
museus científicos perderam a hegemonia na gos começaram a se sensibilizar com questões
pesquisa etnográfica ou foram redimensionados. sociais enfrentadas pelos grupos estudados. Al­
A institucionalização das Ciências Sociais nas guns artigos começaram a ser produzidos, para­
Universidades e o surgimento de novos mode­ lelos aos estudos principais destes antropólogos,
los de museus etnográficos, como o Museu do como o artigo de Herbert Baldus intitulado “A
Homem em Paris, deslocaram para outros pla­ necessidade do trabalho indianista no Brasil”,
nos a relação entre a Antropologia e os museus. publicado em 1939, na Revista do Arquivo Mu­
As coleções de estudo, antes primordiais para nicipal 5(57) ou o artigo de Egon Schaden, “As
a pesquisa etnográfica, foram ressignificadas. A culturas indígenas e a civilização” publicado
introdução de novos paradigmas na pesquisa an­ em 1955 nos Anais do Io Congresso Brasilei­
tropológica conduziram os estudos da cultura e ro de Sociologia.9 Enquanto Baldus dedicava-
as construções de alteridade para aspectos imate- se ao estudo dos índios Tapirapé, Schaden era
riais e simbólicos, onde não era mais tão impor­ estudioso da cultura guarani. Estes dois artigos
tante reunir objetos e documentos de cultura ma­ expressavam uma preocupação crescente dos
terial. Para as novas vertentes do conhecimento antropólogos com o inter-relacionamento dos
antropológico, os antropólogos deviam produzir grupos estudados com outros grupos e, especial­
seus próprios documentos com diários de cam­ mente com a sociedade nacional. Como salien­
po, registros de observações participantes e pes­ tou Peirano, “hoje uma literatura considerável
quisas de campo qualitativas. Estes deslocamen­ é herdeira direta das preocupações indigenistas
tos físicos, teóricos e metodológicos, sobretudo que por muito tempo, eram geralmente explici­
da Antropologia Cultural, levou muitos antropó­ tadas somente em artigos publicados à parte da
logos a passarem ao largo do colecionamento e obra principal dos antropólogos.”
Darcy Ribeiro centrou suas preocupa­
anos de idade e aqui viveu até sua morte em 1945. Par­ ções na direção do indigenismo e Roberto Car­
ticipou de dezenas de expedições científicas e relacio- doso de Oliveira cunhou a expressão “fricção
nou-se com diversos povos indígenas. Como assinalou interétnica” para se referir aos estudos que foca­
Grupioni, “seu trabalho abarcou domínios do indigenis­
mo. da Lingüística, da Etnografía e do colecionamento." lizavam a situação dos índios com a sociedade
Ver: Grupioni, Luiz Donisete Benzi. Coleções e Expedi­
ções vigiadas, SP. ed. Hucitec. 1998. pág. 250. 9 Citado por Peirano. Marisa, op. cit.

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nacional. Nascia assim uma espécie de “Antro­ arquiteto Aldary Toledo, já estava concluído
pologia da Ação”10, onde o antropólogo se colo­ com o desejo de representar, de acordo com os
cava ao lado do grupo estudado e engajado com termos do Relatório, “uma inovação na técni­
suas questões. Particularmente o tema do conta­ ca da museologia do Brasil” Assim, no dia 19
to dos índios com os não índios revestiu-se de de abril de 1953, como parte das comemora­
preocupação central. ções oficiais do “Dia do índio” foi inaugura­
Para Darcy Ribeiro, o “problema in­ do o Museu do índio. Durante a cerimônia de
dígena” tornou-se um dos principais focos de inauguração da Instituição, cuja direção ficaria
análise e de atuação política. Neste contexto, a cargo de Darcy Ribeiro, estiveram presentes
atuando na Seção de Estudos do Serviço de Candido Rondon, o diretor do SPI José Maria
Proteção ao índio (SPI), idealizou a criação do da Gama Malcher e o diretor do Museu Paulis­
Museu do índio - cujo lema era “um museu ta, o etnólogo Herbert Baldus.
contra o preconceito” 11 O projeto do Museu do Em artigo escrito na Revista da UNES­
índio já vinha sendo gestado na Seção de Estu­ CO, em 1955, Darcy discorre sobre o recém
dos do SPI desde sua criação em 1942. Mas, foi criado museu associando-o a uma nova orienta­
somente em 1952, ano em que Darcy Ribeiro ção da etnologia que “deveria descartar os anti­
assumiu a chefia da Seção que a idéia do mu­ gos preconceitos e se interessar sobretudo pelos
seu foi ganhando corpo.12 Em janeiro de 1953, problemas humanos da população focalizada”
o projeto de adaptação do prédio da rua Mata Darcy contrapunha-se à visão evolucionista que
Machado para a função de museu, feito pelo estudava os chamados povos primitivos como
“fósseis da espécie humana” e que, segundo ele,
10 Marisa Peirano considera que a conceitu- “cujo único interesse consistia em oferecer um
ação teórica proposta por Roberto Cardoso exemplo das condições arcaicas que teria conhe­
de Oliveira sobre a “Antropologia da Ação” cido a nossa sociedade” Darcy opunha o novo
que apareceu como bricolagem de preocupa­ museu do índio aos “tradicionais museus de
ções indigenistas e inspiração teórica socio­ etnologia” Ele almejava com seu novo museu
lógica, revelando uma situação na qual dois inspirar “o sentimento de solidariedade com os
grupos são dialeticamente unidos através de povos de um destino trágico e estimular a com­
seus interesses opostos, foi uma inovação preensão de suas criações artísticas” O Museu
importante da Antropologia feita no Brasil. do índio criado pelo Serviço de Proteção aos ín­
11 As bases da política indigenista brasileira foram lança­ dios teria como propósito “despertar a simpatia
das durante o Governo de Nilo Peçanha (1909-1910), face aos índios, apresentados como seres huma­
com a criação em 1910 do Serviço de Proteção ao ín­ nos que, dentro dos limites de suas culturas e
dio que teve em Cândido Rondon seu pai fundador, seu
primeiro diretor e seu grande ideólogo. Foi durante os dos recursos de seu ambiente trouxeram solu­
Governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) ções próprias a problemas humanos universais”
e de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) que a política in­ A idéia era sublinhar o que os índios poderiam
digenista do SPI ganhou visibilidade, densidade e enrai­ oferecer “de mais característico em suas vidas
zamento na vida social brasileira, (ver Chagas, Mario. A
Imaginação Museal, tese de doutorado UERJ, 2003, pg, cotidianas, em suas lutas pela existência, no
212 ) comportamento que adotavam em família, em
12 Quando assumiu a chefia da Seção de Estudos do SPI, suas atitudes com relação às crianças, na alegria
Darcy Ribeiro procurou incentivar as atividades de pes­ de viver e na busca da beleza que (segundo ele
quisa, reorganizar e atualizar a biblioteca e o arquivo ci- seriam) características que se (exprimiriam) em
ne-fotográfico, ampliar o setor de registro sonográfico,
incrementar o intercâmbio com instituições nacionais e todas as suas obras” 13
internacionais e fortalecer o contato com antigos aliados Darcy reforçava o objetivo de utilizar o
como Oracy Nogueira, Egon Schaden, Eduardo Galvão, museu como instrumento de luta “combatendo
Herbert Baldus e outros. No final do ano de 1952, em os preconceitos mais correntes” como “a convic­
seu relatório anual, Darcy fazia referência à previsão de
criação de um museu “dotado de instalações modernas” ção de que os índios (eram) incapazes de execu-
e informava que o que até então existia era “um simples
depósito onde o material etnográfico colhido em dez 13 Ribeiro, Darcy. “Le Musée de 1’Indien, Rio de Janei­
anos de atividades do SE era meramente conservado” ro”, in: Museum vol VIII n° I, Paris, UNESCO, 1955,
1”. (Chagas, Mario, idem, pg, 214) pág. 8-10.

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tar qualquer trabalho delicado, que eles (eram) grariam o elenco de soluções encontradas pelos
seres inferiores de nascimento, que eles (eram) indígenas para os problemas com que se defron­
inaptos à civilização ou (eram naturalmente aco­ tavam diante das necessidades de subsistência
metidos) de uma preguiça invencível” em florestas tropicais ou regiões áridas.
O antropólogo fornecia alguns exem­ Por fim, a exposição deveria trazer pai­
plos de como poderia combater o preconceito néis ilustrativos das contribuições dos indíge­
contra os índios: alguns guias especialmente nas à sociedade brasileira, como por exemplo,
treinados evidenciariam para os visitantes o os instrumentos e culturas agrícolas que se ex­
virtuosismo dos objetos executados (peneiras, pandiram como o milho, a mandioca, o tabaco.
cestas, cerâmicas). O guia levaria os visitan­ Darcy finalizava dizendo que diante das contri­
tes a concluir que o desejo de perfeição que se buições indígenas, o visitante deveria perceber
exprimia em todas as atividades dos indígenas nos índios as mesmas qualidades essenciais que
frequentemente transformava os objetos do co­ veria em si próprio, ou seja, as qualidades ine­
tidiano (arco, flecha, vaso) em obras de arte. rentes a qualquer ser humano que tem direito à
Darcy sublinhava a preocupação estética dos liberdade e à busca da felicidade.
indígenas como demonstração da riqueza de O surgimento do Museu do índio, em
suas culturas. Assim, ele afirmava ter se pre­ 1953, pode ser visto como marco de uma muse-
ocupado em colocar em vitrines especiais es­ ologia engajada no contexto antropológico bra­
culturas de argila de grande beleza estética e sileiro. O museu era visto como instrumento de
coleções de ornamentos plumários que ele con­ luta para afirmação de um lugar para os povos
siderava esplêndidos pela combinação de cores indígenas. Além disso, percebe-se uma visão
e pela habilidade técnica dos artesãos que os antropológica humanista e universalista, onde
confeccionaram.14 a ênfase estaria mais nos aspectos de igualda­
Levando os visitantes a observar um de entre os povos e de pertencimento das etnias
outro painel, que abrigava machados de pedra, o indígenas ao conjunto da humanidade do que
guia explicaria que a alimentação da maior parte propriamente em suas diferenças culturais. É
dos índios do Brasil repousaria sobre a cultura interessante perceber como nesta modalidade de
da mandioca e do milho e que por este motivo museu, o tema da arte era colocado em evidên­
eles precisavam abrir largas clareiras nas flores­ cia. A estetização das culturas indígenas serviria
tas. O guia deveria falar dos esforços extenuan­ para atribuir um valor positivo aos objetos que
tes necessários às derrubadas de árvores com os os arautos do cientificismo evolucionista ha­
machados de pedra. Assim, todos seriam levados viam relegado ao lugar de “fósseis” de estágios
a concluir que a “famosa preguiça” dos índios inferiores de evolução humana. Darcy propunha
seria muito mais uma “reação à dominação es­ a inversão do sinal diacrítico na apresentação
trangeira ou uma repugnância natural a executar das contribuições culturais, especialmente da
trabalhos nos quais os índios não (encontravam) cultura material indígena.
nenhuma satisfação de ordem emocional.” Este movimento de valorização pela
O museu deveria privilegiar informa­ arte dos povos ditos primitivos estava na or­
ções sobre as condições de vida dos povos in­ dem do dia nos anos 40 e 50. André Bretón e os
dígenas na sociedade brasileira, os graves pro­ pintores surrealistas chamavam a atenção para
blemas sociais e o fato dos índios não terem a o valor estético de objetos confeccionados nas
propriedade de suas terras asseguradas. Darcy chamadas sociedades tradicionais. Na Europa,
propunha que a exposição fugisse da tendência pintores modernos colecionavam objetos reco­
em mostrar os objetos indígenas como exóticos lhidos em viagens a lugares longínquos. Desde
para se fixar na idéia de que estes objetos inte­ a década de 20, quando novas correntes artísti­
cas explodiram com vigor na Europa (Fovismo,
14 Para maiores detalhes sobre a relação de Darcy com Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo, Purismo,
a arte, especialmente arte plumária, ver a dissertação Construtivismo) e entraram na América Latina,
de Mestrado de Ione Couto produzida no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Memória Social, RJ, os conceitos de arte (belas-artes, artes decorati­
2005. vas, utilitárias) e as próprias fronteiras entre as
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diversas linguagens artísticas (pintura, escultu­ peculiar criação, em barro, existente em várias
ra, arquitetura) foram questionadas.15 partes do país” É importante assinalar que, em
Por outro lado, o fim da Segunda Guerra 1947, logo 6 anos antes da inauguração do Museu
havia lançado novos desafios para o mundo in­ do índio, Augusto Rodrigues havia organizado
telectual, notadamente os antropólogos. A cria­ no Rio de Janeiro, a primeira exposição da arte
ção da UNESCO em 1945, com o objetivo de popular pernambucana. Esta exposição tomou-
construir a paz entre os povos por intermédio do se referencial para todos aqueles que passaram
estímulo ao encontro das culturas foi um divisor a trabalhar com a chamada arte popular, valori­
de águas neste sentido. Projetos de pesquisa so­ zando “obras produzidas em meios periféricos e
bre a noção de cultura e a idéia de diversidade surgidas em comunidades em que (prevaleciam)
cultural foram postos em prática. A UNESCO os modos de vida e culturas tradicionais” 17
congregando 171 países, com sede em Paris, Foi ainda no contexto dos anos 40 e
centrava sua atuação em projetos de educação, 50 que se consolidou, em Paris, como grande
ciência e cultura. De acordo com Ângela Masce- novidade, o projeto do Museu do Homem. An­
lani, “a arte, tomada como linguagem universal, tropologia universalista e Humanismo conjuga-
desempenhava papel importante - denominador vam-se num museu cujo objetivo era mostrar a
comum através do qual os homens podiam se unidade da espécie humana em sua diversidade
entender e reforçar seus elos. A difusão destas cultural. O homem era o centro deste mega em­
idéias - do homem universal - tocava o meio preendimento que conjugou esforços de antro­
artístico e intelectual que delas compartilhava pólogos como Paul Rivet, Alfred Métraux, Mar­
na maior parte dos países do Ocidente. Tal con­ eei Mauss e Claude Lévi-Strauss. A perspectiva
cepção favorecia uma visão menos rígida sobre iluminista da paz entre os homens representava
os conceitos de arte e estimulava a percepção de o fio condutor da proposta de um museu onde
novas formas expressivas. (...) E justamente essa os antropólogos deveriam mostrar as diferen­
maleabilidade das fronteiras que vai possibilitar tes culturas em relação umas com as outras. De
que se olhe de maneira diferente para a ativida­ forma bem diversa dos museus enciclopédicos
de criativa em geral, permitindo a identificação onde cada cultura era estudada e exibida em
do caráter artístico em obras que não obedeciam separado, fruto de sólidas pesquisas de estudio­
aos grandes estilos reconhecidos, como é o caso sos dedicados unicamente a cada uma delas, no
das obras feitas pelos artistas populares.”16Desse Museu do Homem, o objetivo era conjugar pes­
modo, além do campo da Antropologia, o campo quisas e exposições de culturas que se relaciona­
da Arte estava se renovando com a valorização da vam umas com as outras. A idéia da relação, da
chamada “arte primitiva” ou “arte naif’ troca, do intercâmbio das culturas predominava
Darcy Ribeiro era contemporâneo de numa intenção clara de enfatizar a unidade do
uma geração de artistas brasileiros que, como homem num contexto em que as diferenças cul­
seus pares na Europa, buscavam inspiração na turais enriqueciam o conteúdo da humanidade.
produção artística das etnias indígenas ou dos Um dos conceitos fundantes desta modalidade
segmentos populares, como Cândido Portinari, universalista de museu antropológico era pois o
Di Cavalcanti, e Augusto Rodrigues, este últi­ conceito de humanidade.
mo responsável pela descoberta do ceramista O antropólogo Paul Rivet (1876-1958),
Vitalino Pereira dos Santos, o mestre Vitalino contemporâneo e amigo de pais fundadores da
(1909-1963), “cuja obra - como assinala Ângela Antropologia Cultural como Franz Boas e Mar­
Mascelani” viria a chamar a atenção para uma eei Mauss, membro do Instituto de Etnologia
desde 1925, professor da cadeira de antropolo­
gia do Museu Nacional de História Natural da
15 A esse respeito ver: Lynton, Norbert. Arte Moderna.
Enciclopédia das artes plásticas em todos os tempos.
França desde 1928, havia assumido desde 1928,
Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1966 e Masce­ juntamente com Georges Henri Rivière, a tare­
lani, Maria Ângela “A Casa do Pontal e suas coleções de fa de reorganizar inteiramente o velho museu
arte popular brasileira”, in: Revista do Patrimônio n. 28,
RJ, Brasília, IPHAN, 1999.
16 Mascelani, MariaÂngela, op. cit., pág. 131-132. 17 Mascelani, MariaÂngela, o. cit. Pág. 133

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Regina Abreu

de Etnografía do Trocadero. Assim, em 1938, seus consagrados à Antropologia, pois estes


os dois haviam transformado este velho museu museus dispõem de condições para difundir
no Museu do Homem. Os principios norteado- noções que são a base para a paz entre os
res eram aqueles formulados por Boas de urna povos. O nome que nós damos a estes mu­
Antropologia que buscava contextualizar os seus, “museus do homem” exprimem por
si só seus objetivos que são a um só tempo
objetos atribuindo a eles uma visão etnográfica. culturais, educativos e morais.” 19
O objetivo era divulgar uma etnologia progres­
sista, atenta aos fatos da língua e da cultura e, Paul Rivet pregava assim que se fundas­
fundamentalmente, atingir um público ampio. sem por toda a parte “museus do homem” que
O Museu do Homem deveria expor os objetos, ele classificava como “museus para a paz” A
mostrando como a cultura era produzida, como Antropologia detinha papel decisivo nesta cru­
o homem representava um elemento transforma­ zada, pois por meio do conceito antropológico
dor da natureza, do mundo à sua volta e de si de cultura e da noção de diversidade cultural, a
próprio. 18 O foco do museu concentrava-se na humanidade poderia compreender que suas dife­
cultura material das sociedades não ocidentais. renças e particularidades nada mais eram do que
Paul Rivet e os antropólogos envol­ expressões variadas de uma mesma unidade: a
vidos com o Museu do Homem também esta- unidade da espécie humana. Por meio do co­
vam articulados com a proposta da criação da nhecimento de culturas diferentes, os indivíduos
UNESCO. A tragédia da Segunda Guerra Mun­ aprenderiam a respeitar e admirar as diferenças
dial provocou nesta geração de pensadores uma entre sua cultura e a de outros povos.
reflexão importante sobre o papel dos intelec­ Rivet se contrapunha aos museus como
tuais na construção da Paz Mundial. Diversos “centros reservados unicamente para uma elite
combates centrados na luta contra o fascismo e de intelectuais e de pesquisadores”, ou seja, mu­
o racismo foram travados por esta geração de seus voltados apenas para a produção científica.
antropólogos que conjugavam pesquisa e ação, Os “museus do homem” deveriam “ser aces­
ciência e militância. No final da guerra, o Museu síveis a todos os trabalhadores - intelectuais e
do Homem iria assumir-se como veículo estraté­ manuais - em horários em que estes estivessem
gico no combate a todas as formas de racismo e disponíveis, ou seja, após o jantar. Somente des­
na afirmação do conceito antropológico (leia-se te modo, voltados para um público amplo, os
boasiano) de cultura. museus antropológicos cumpririam suas extra­
Em 1948, no primeiro volume da Re­ ordinárias vocações para a difusão cultural. Este
vista Museum da UNESCO, Paul Rivet escre­ projeto incluía a propagação para as massas
veu um artigo intitulado “Museus do Homem populares do que ele julgava como “as noções
e Compreensão Internacional” Neste artigo, indispensáveis para a felicidade da humanidade
Rivet propunha que a experiência do Museu do inteira” pois, “ainda que o racismo tenha sido o
Homem se difundisse para todas as nações do grande derrotado na última guerra”, os povos,
Ocidente como instrumentos na luta contra o segundo ele, viviam o temor do seu ressurgi­
fascismo e o racismo. Para ele, a equação que mento esporádico ainda que “sob formas me­
unia a Antropologia e a instituição museológi- nos brutais que o hitlerismo” “As medidas de
ca era o único mecanismo capaz fazer frente discriminação racial, que (sobreviviam) aqui e
ao obscurantismo que havia levado à Segunda ali, ou (tendiam) a renascer, os comportamen­
Guerra e que ainda assombrava o Ocidente. tos colonialistas de certas nações, as tendências
anti-semitas que (brotavam) com tanta facilida­
“Nenhuma ciência pode rivalizar com a de por todo o lado (eram, na sua visão,) provas
ciência do homem ou etnologia no sentido
de fazer triunfar a compreensão interna­ de que o racismo condenado tantas vezes pelos
cional entre os povos e as nações. Nenhum homens de boa vontade ainda (encontrava-se)
instrumento tem maior eficácia que os mu- latente.”
18 Ver: Laurière, Christine. Paul Rivet (1876-1958), le 19 Rivet, Paul "Musées de l’homme et comprehension
savant et le politique, tese de Doutorado apresentada à internationale”, in: Revista Museum, Paris, UNESCO,
École des Hautes Études en Sciences Sociales, 200 1948

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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

Paul Rivet acreditava que divulgando as ra européia (era) em grande parte resultante de
novas concepções da ciência antropológica, as contribuições vindas de todos os continentes, de
massas populares compreenderiam que o racis­ todas as latitudes, de todas as longitudes.”
mo era desprovido de “base científica” e que a Rivet considerava pedagógicamente
ciência o condenava definitivamente. Cabia ao necessário que o homem do chamado Velho
“Museu do Homem” demonstrar o caráter mes- Mundo, que teria se apropriado magníficamen­
tiçado de toda a humanidade e a impropriedade te de muitos elementos culturais considerados
da noção de raça, uma vez que já não se encon­ exóticos conhecesse a origem destes elementos
traria mais nenhum agrupamento populacional e compreendesse o quanto ele era devedor dos
que assim pudesse ser chamado. O “Museu do povos do Novo Mundo, pois “o seu orgulho o
Homem” e seus congêneres espalhados por dife­ conduzia frequentemente a considerá-los como
rentes países deveriam exibir os tipos humanos inferiores” Citava exemplos destas contribui­
constitutivos da população mundial, focalizan­ ções do Novo Mundo para o Velho Mundo, en­
do as múltiplas misturas que teriam dado origem tre elas, o milho, a mandioca, a batata doce, a
aos homens modernos. batata, o cacau, a vagem, a pimenta, o fumo, o
“(...) desde a época quaternária superior, tomate, o abacaxi, a coca, a borracha.
os tipos humanos que povoavam a Europa O Museu do Homem e seus congêne­
Ocidental eram oriundos da raça negra (tipo res espalhados pelo mundo teriam pois função
negroide de Grimaldi), da raça amarela eminentemente pedagógica de conhecimento
(tipo de Chancelade), da raça branca (tipo mútuo entre as culturas para o entendimento e
de Cro-Magnon) que fizeram cruzamentos colaboração entre elas. Por fim, ele chamava a
entre si, como fizeram cruzamentos poste­ atenção da necessidade de evidenciar nestes mu­
riormente com os invasores neolíticos, isto seus “a maravilhosa ascensão de nossa espécie”
é os homens que introduziram na Europa a
técnica da pedra polida, a cerâmica, a agri­ Cuidadoso, buscando fugir aos estereótipos evo­
cultura, os animais domésticos e as plantas lucionistas, Rivet não abria mão de pensar o hu­
cultivadas. Estas populações mestiçaram- mano como uma espécie com percurso próprio.
se com os invasores bárbaros, depois com Para ele, era preciso que os visitantes compre­
os conquistadores romanos, que eram eles endessem que o ser humano enquanto espécie
mesmos mestiçados, e, posteriormente havia alcançado conquistas importantes para a
mestiçaram-se com os invasores bárbaros sobrevivência de toda a humanidade. Esta com­
e assim por diante. (...) Na Ásia oriental, preensão elevaria a auto-estima dos indivíduos,
no quaternário superior, freqüentavam-se
os negroides, os mongolóides e homens funcionando como um “imenso hino de fé e de
apresentando características do homem esperança que se propagaria e amplificaria no
de Cro-Magnon. Na América, este quadro curso dos anos, seguindo todo o percurso que
não é diferente. Os índios pré-colombianos a humanidade (teria) percorrido.” A execução
são descendentes de emigrantes vindos da deste hino nos museus sensibilizaria os visitan­
Ásia do Nordeste e da Oceania, mongolói­ tes para entender a eficácia dos esforços empre­
des e negroides, e a este substrato veio a endidos por toda a humanidade para uma cons­
agregar-se, depois da conquista, o elemen­ trução ascendente, animando os indivíduos nas
to branco.” horas de dúvida ou de tristeza.
Se do ponto de vista da Antropologia É interessante observar como Rivet
Biológica, a demonstração da evidência da mes­ conciliava a Antropologia Cultural com a Antro­
tiçagem deveria ser enfatizada, do ponto de vis­ pologia Biológica e como seu pensamento esta­
ta da Antropologia Cultural, Paul Rivet entendia va marcado pelos propósitos de contribuir para a
que os “museus do homem” (ou o que ele tam­ construção de uma via pacífica de compreensão
bém chamava de “novos museus de etnologia”) entre os povos. O museu que ele propunha de
deviam “demonstrar com clareza que todos os maneira alguma era eurocêntrico, hipervalo-
povos da terra, quaisquer que (fossem) as cores rizando as conquistas da chamada civilização
de suas peles ou de seus cabelos, contribuíram ocidental. Pelo contrário, num estilo boasiano
para o progresso da civilização e que (a) cultu­ de Antropologia, com fortes pitadas de difusio-
130
Regina Abreu

nismo, o sentido do museu antropológico con­ aos índios no Brasil. Para atingir seus obje­
sistia em valorizar as contribuições de todas as tivos, Darcy propunha um museu estetizado.
culturas para o projeto do humano, da humani­ Os objetos indígenas chamariam a atenção
dade. Esta via não abolia a preocupação com os pelo belo, pela elaboração estética complexa
ideais de progresso e de enunciação do percurso que os envolveria. Darcy queria combater os
da espécie humana. Aqui o estudo e a exibição preconceitos específicos no Brasil da época
das culturas em suas particularidades deviam vir que qualificavam as culturas indígenas bra­
combinados com a demonstração de uma rela­ sileiras como inferiores com relação a suas
ção permanente entre as culturas, de uma mes­ congêneres da América Latina. Não eram
tiçagem dinâmica entre as populações e de uma poucos os intelectuais que no contexto das
marcha comum de toda a humanidade. aquisições humanas enalteciam contribuições
“Em resumo, o estudo do homem pode e notáveis dos incas, astecas e maias, conside­
deve, por intermédio de nossos museus, rando poucas e frágeis as contribuições dos
demonstrar que os agrupamentos huma­ índios brasileiros. Darcy estava pois irmana­
nos atuais são o resultado de múltiplas do a Paul Rivet nos mesmos ideais de uma
mestiçagens, e que será inútil procurar em Antropologia humanista e universalista, mas
suas composições um argumento em favor seus objetivos com o Museu do índio eram
de um racismo. Ele pode e deve provar a mais específicos, voltados para a construção
solidariedade de todos os povos da terra,
exaltar e fortificar o sentimento de inte­ positiva da relação da sociedade brasileira
rações culturais que, no curso dos anos, com as etnias indígenas.
são produzidos entre diversos continentes; O Museu do índio estabeleceu desde
ele pode e deve estimular a confiança do o início relações com o Museu do Homem. No
homem no seu destino e provar que é na Relatório de Atividades do Museu do índio, de
via da compreensão internacional e da so­ 1954, mereceram destaque a recepção a Paul Ri­
lidariedade humana que os homens podem vet, que veio ao Brasil representando o Instituto
caminhar confiantes num futuro melhor.” de Etnologia Francesa e a conferência do Prof
Museus para o combate aos pre­ Alfred Metraux do Departamento de Ciências
conceitos e para a construção de solidarie- Sociais da UNESCO.
dades, este parecia ser o lema do fundador A proposta de criação de museus do ho­
e diretor do Museu do Homem no final dos mem no Brasil encontrou boa acolhida em Darcy
anos quarenta e início dos anos cinqüenta. Ribeiro e também em Gilberto Freyre. Gilberto
Este também parecia ser o lema que ins­ Freyre (1900-) era também como Paul Rivet um
pirou Darcy Ribeiro a fundar o Museu do admirador de Franz Boas. 20 Em 1922, havia
índio. Os museus de cunho antropológico concluído Dissertação de Mestrado na Univer­
eram pensados como instrumentos de polí­ sidade de Colúmbia sob orientação do eminente
ticas públicas e práticas sociais. Vinculados antropólogo, intitulada Social Life in Brazil in
a instituições estatais e de pesquisa, tanto o the Middle ofthe 19th Century. No mesmo ano,
Museu do Homem quanto o Museu do índio, embarcou para a Europa em viagem de estudos
foram idealizados para atingir um público percorrendo alguns museus de antropologia sob
amplo disseminando informações capazes orientação de Franz Boas.
de modificar mentalidades arraigadas de pre­
conceitos e discriminações. No caso do Mu­ 20 Durante os anos de 1920/1930, Paul Rivet e Franz
seu do Homem, a intenção era fortalecer a Boas nutriram forte relação epistolar. Analisando esta
idéia da mestiçagem e valorizar as diferentes correspondência, Christine Laurière sinaliza que os dois
homens partilhavam de uma mesma concepção de enga­
contribuições culturais para o progresso da jamento científico. Travaram em comum muitos com­
humanidade. No caso do Museu do índio, bates e dialogaram sobre muitos projetos. Franz Boas
o objetivo era fortalecer as etnias indígenas morreu em 1942 em Columbia justamente num jantar
numa perspectiva também humanitária. Por oferecido em homenagem a Paul Rivet, onde se encon­
trava também Claude Lévi-Strauss. na época ainda um
diversas vezes, Darcy Ribeiro utilizou a ex­ jovem etnólogo pouco conhecido. Ver: Laurière, Chris­
pressão “humanidade índia” para se referir tine, op. cit.

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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

“Paris e agora Berlim - nos seus museus Nabuco de um museu de antropologia, “um mu­
etnológicos e etnográficos - como aqui se seu de etnografia matuta e sertaneja, de arte po­
diz - ou do Homem, isto é, antropológicos, pular, de indústria caseira” 23
tenho cumprido meu programa de estudos, O foco do Museu do Homem do Nor­
a seu modo pós-graduado e segundo su­ deste deveria ser a cultura regional. Freyre enu­
gestões do europeu Boas. Pois na Europa,
pedi a orientação do grande Boas para es­ merou em seu projeto os objetos que deveriam
ses contatos com museus vivos como são constar no museu:
os da Alemanha, os ingleses e franceses. “Será obra de maior interesse científico e
Boas, como antropólogo, é um entusiasta prático a de reunir-se, com critério científi­
de museus desse gênero. Pensa que neles co, o material mais relacionado com a vida
se pode aprender mais do que em simples e com o trabalho das nossas populações
conferências abstratas em puras salas de regionais. Tipos de habitação, de redes de
aula. Esses três museus - o de Paris, o de dormir, de redes de pesca, de barcos como
Oxford, o de Berlim - pedem dias segui­ os do Rio São Francisco - cuja figura de
dos de estudos panorâmicos. Panorâmico barqueiro reclama estudo especial - de
sem se considerar o que pode ser realizado brinquedos de menino, de mamulengo, de
em qualquer deles como estudo especiali­ louça, de trajo, de chapéu, de alpercata, de
zado”. (Gilberto Freyre)21 faca, de cachimbo, de tecido, de bordado,
Gilberto Freyre alimentava o sonho da de renda chamada da terra ou do Ceará,
criação de um museu do homem no Brasil, “es­ receitas de remédios, alimentos, doces,
bebidas, crendices, superstições, tudo isso
pecializado na apresentação sistemática, didáti­ tem interesse científico, artístico, cultural,
ca, cientificamente orientada, de material antro­ social, prático. Enganam-se os reforma­
pológico relativo à gente brasileira - aos seus dores de gabinete que vêem em tudo isso
físicos, às suas etnias, às suas culturas (entrando apenas divertimento para os olhos dos tu­
aqui uma reorientação dos nossos estudos antro­ ristas ou dos antiquários.”24
pológicos sob inspiração de Boas, de Wissler, O Museu do Homem do Nordeste, pre­
de Kroeber) - nas suas várias expressões regio­ conizado por Gilberto Freyre em seu discurso
nais.” Ainda em 1922, ele comentava em seu di­ de 1947 só foi aberto ao público em 1964 com
ário, que se pudesse, quando voltasse ao Brasil, a denominação de Museu de Antropologia. Até
organizaria um museu antropológico segundo a esta data, o Instituto Joaquim Nabuco de Pes­
orientação de Franz Boas.22 quisas Sociais priorizou a consolidação de suas
Anos mais tarde, quando com o fim do práticas de documentação, preservação, divul­
Estado Novo, em 1945, Gilberto Freyre foi elei­ gação científica e promoção cultural. O Museu
to deputado federal pela União Democrática Na­ surgiu como um desdobramento das atividades
cional (UDN) para o período de 1946-1950, ele do Instituto sob a supervisão de Gilberto Freyre,
propôs a criação do Instituto Joaquim Nabuco a direção de Mauro Mota e contando com os an­
de Pesquisas Sociais aproveitando o centenário tropólogos René Ribeiro e Waldemar Valente na
de nascimento de Joaquim Nabuco. No discurso equipe de organização museal. Em 1978, o Mu­
de defesa do projeto, referiu-se longamente aos seu de Antropologia foi fundido a dois outros
museus que conhecera no exterior e à impor­ museus pernambucanos, o Museu de Arte Po­
tância desses órgãos no âmbito da pesquisa, do pular e o Museu do Açúcar dando origem final­
desenvolvimento social e da defesa dos valores mente ao Museu do Homem do Nordeste. É in­
regionais. Com essas referências, procurou jus­ teressante observar como a tradição dos museus
tificar a inclusão no corpo do Instituto Joaquim de arte popular foram caminhando lado a lado
21 Freyre, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: tre­
chos de um diário de adolescência e primeira moci­ 23 Biblioteca Virtual Gilberto Freyre (http://prossiga.
dade, 1915-1930, RJ, José Olympio, 1975 a, pág 88, bvgf.fgf.org.br). Fonte: Freire, Gilberto. Necessida­
citado por Chagas, Mario. A imaginação museal, op. cit. de de institutos de pesquisa social no Brasil. Discurso
Pág.148 proferido na Câmara Federal, Rio de Janeiro, 4 dez.
22 Freyre, Gilberto, op. cit., citado por Chagas, Mario, 1948, citado por Chagas, Mario, op. cit., pág. 167.
op.cit. 24 Idem. Citado por Chagas, Mario, op cit, pág. 168.

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Regina Abreu

com os novos museus antropológicos. O Museu “reconstituir os caminhos milenares pelos


de Arte Popular de Pernambuco tinha sido cria­ quais nos viemos construindo como reben­
do por iniciativa do pintor Abelardo Rodrigues to derradeiro de uma romanidade, de uma
em 1953, no contexto de valorização por parte negritude e de uma indianidade mestiçadas
dos artistas modernos da arte produzida pelos na raça e na cultura, primeiro na Ibéria e
depois na África e, finalmente, no Aquém-
segmentos populares. Contava com obras de Vi- mar. Reconstituição que se fará não para
talino, Zé Caboclo, Zé Rodrigues, Porfirio Faus­ afirmar passadas glorias alheias de que
tino, Severino de Tracunhaem, além de coleções fomos as vítimas, mas para nos tomarmos
de imagens, brinquedos populares em madei­ capazes, amanhã, de expressar melhor que
ra, couro, pano e palha, de ex-votos. O Museu nossas matrizes, as potencialidades huma­
do Açúcar tinha sido criado pelo Instituto do nas comuns pela criação de uma sociedade
Açúcar e do Álcool em 1961 e contava em seu afinal mais criativa e mais solidária” 27
acervo com representações dos processos tecno­ Como observou Mario Chagas, a pro­
lógicos de plantio, corte, colheita, transporte e posta conceituai do Museu do Homem de Mi­
manufatura do açúcar em épocas distintas, além nas Gerais constituía uma forma de musealiza-
de requintadas coleções de alfaias referentes às ção do livro O processo civilizatório de Darcy
famílias tradicionais de Pernambuco.25 Ribeiro, cuja primeira edição data de 1968. O
Mario Chagas destaca que em folheto projeto consistia em exibir “a grande aventura
denominado “Sugestões em tomo do Museu de luso-brasileira de criar uma civilização tropi­
Antropologia do Instituto Joaquim Nabuco de cal e mestiça” Os oito circuitos de exposição
Pesquisas Sociais, Freyre sistematizou seu pro­ eram assim descritos: “1 .0 fenômeno humano
jeto de museu. Este deveria reunir, “sob critério e o surgimento do homo sapiens; 2. A evolução
antropológico, documentação quanto possível cultural do homem e suas sucessivas revoluções:
significativa acerca do passado, da vida e da agrícola, urbana, do regadio, metalúrgica, pas­
cultura de uma região tradicionalmente agrária toril, mercantil, industrial, termonuclear; 2. O
do Brasil como a que se estende da Bahia ao homem americano: suas origens, seus níveis de
Amazonas.” Em outras palavras, tratava-se de desenvolvimento evolutivo e suas civilizações;
um Museu de Antropologia Regional. 4. O índio brasileiro: seus graus de desenvolvi­
Passados mais de vinte anos da criação mento, suas línguas e culturas; 5. A civilização
do Museu do índio, Darcy Ribeiro também viu- brasileira: suas matrizes lusitana e africanas e
se envolvido com um projeto de criação de um seus ciclos civilizatórios; 6. A civilização do
“museu do homem” Em 1976, ele foi convida­ ouro: Minas Gerais o contexto histórico, a ex­
do a colaborar num projeto da Universidade Fe­ pressão barroca nas artes e na economia indus­
deral de Minas Gerais para criar um Museu do trial moderna. 7. O Brasil no mundo e 8. A cul­
Homem de Minas Gerais. O plano diretor deste tura caipira e a tecnologia da vida rural.”28
museu seria “a coleta, o estudo, a exposição e a O Museu do Homem de Minas Gerais
difusão de expressões culturais “das populações não chegou a se efetivar, mas o seu projeto aca­
que viveram ou vivem no território brasileiro, lentado nos anos 70 representava a permanência
especialmente em Minas Gerais, situando-as no do paradigma do Museu do Homem enquanto
contexto geral da evolução do homem” 26 Para uma idéia-força que congregava o tema da di­
Darcy, o Museu do Homem do Nordeste teria versidade das culturas humanas com a unidade
a mesma função político-pedagógica do Museu da espécie humana, que pretendia por intermé­
do índio, devendo também ser instrumento no dio dos museus afirmar diferentes processos
combate ao preconceito e na afirmação de uma civilizatórios e contribuir para a solidariedade
sociedade mais criativa e solidária. entre os povos e para a paz mundial. Além dis­
25 Para a história em detalhes da criação do Museu do Ho­ 27 Ribeiro, Darcy, in: Fundação de Desenvolvimento da
mem do Nordeste, ver: Chagas, Mario. A Imaginação Pesquisa (Fundep). Projeto do Museu do Homem (Ar­
Museal, op. cit., pág. 173-178 quivo Fundação Darcy Ribeiro). Belo Horizonte, 1978,
26 Ribeiro, Darcy, 1997a, p. 466. citado por Chagas, Ma­ citado por Chagas, Mario. Op. cit., pág, 241.
rio. Op. cit., pág. 239. 28 Citado por Chagas, Mario, op cit, pág. 242

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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

so, assim como o Museu do índio e o Museu plicar que um agrupamento humano fundado
do Homem do Nordeste, o projeto do Museu em relações tradicionais, onde se esperava uma
do Homem de Minas Gerais representou mais memória coletiva coesa, fosse precisar de um
um exemplo de iniciativas vinculadas a institui­ museu? Não diziam os clássicos que nas socie­
ções estatais, protagonizadas por antropólogos dades tradicionais a memória permearia o pró­
renomados, com claros objetivos de intervenção prio tecido social, sendo essas sociedades, so-
social e política na construção de novas menta­ ciedades-memória por excelência? Para que os
lidades na luta contra o preconceito, o racismo, índios iriam querer museus contrariando todas
a intolerância e na afirmação e valorização da as expectativas da literatura antropológica?
mestiçagem como via para o desenvolvimento
nacional e regional.29

O museu Máguta
Antropologías e museus nativos
como estratégias de movimentos O pequeno museu, instalado numa casa
sociais de arquitetura simples, com varandas ao redor,
cinco salas de exposição e uma pequena biblio­
teca, foi criado no bojo da luta pela demarcação
No início dos anos 90, uma surpresa in- de terras. Algumas lideranças ticuna perceberam
sinuou-se no horizonte das experiências muse- que o direito dos ticuna à terra dependia, em
ológicas vinculadas ao campo da Antropologia. grande parte, de serem reconhecidos como índios
Ouvia-se dizer que um pequeno museu havia pela sociedade brasileira. Muitas vezes, eles eram
sido criado em Benjamim Constant, uma cidade identificados como “caboclos” pela população
de aproximadamente 12 mil habitantes, localiza­ local. Do ponto de vista das lideranças indígenas,
da na confluência dos rios Javarí e Solimões, na era preciso fortalecer a identidade ticuna, muitas
região do Alto Solimões, Amazonas, próximo à vezes escondida pelos próprios índios e negada
fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia por sempre pela população regional. A idéia de cria­
índios ticuna. Como explicar este fenômeno? Se ção do museu surgiu como um instrumento de
os estudos sobre memória social apontavam que luta, num momento crítico de mobilização políti­
o “museu” era sobretudo uma instituição oci­ ca, quando os ticuna estavam mobilizados na luta
dental, produto das sociedades letradas que há pela defesa de seu território, confrontando-se até
muito haviam perdido o sentido espontâneo da mesmo com grupos armados. Em março de 1988,
memória, uma instituição destinada a arquivar, pistoleiros atacaram um grupo de índios no igara­
catalogar, classificar, lembrar o que a memória pé do Capacete, matando catorze deles, entre ho­
dos modernos teimava em esquecer, como ex- mens, mulheres e crianças, ferindo 23 e deixando
29 Sobre a relação entre Museus e Antropologia é impor­ dez desaparecidos, num massacre que teve ampla
tante também levar em conta a fundação, em 1968, no repercussão nacional e internacional.30
Rio de Janeiro, do Museu de Folclore Édison Carneiro A idéia de criação de um museu surgia
como um dos resultados do movimento folclorista, em como uma estratégia de organização da memó­
especial, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro
que congregou diferentes intelectuais, e teve forte atu­ ria e revigoração da identidade étnica. Com o
ação de 1947 a 1964. Outras iniciativas museológicas, apoio de ongs, destacadamente da CGT, algu­
como a formação da Coleção de Arte Popular de Jac- mas lideranças indígenas converteram-se subi­
ques Van de Beuque durante os anos 40 até sua morte tamente em profissionais de museu, aprendendo
nos anos 90 também tem relação direta com as novas
tendências da Arte e da Antropologia, particularmente algumas técnicas de museologia e museogra-
nos contextos de fundação da UNESCO e das “Antro­
pologías da Ação” que animaram os antropólogos do 30 Oliveira Filho e Lima, 1988, citado por Freire, 2003,
pós-guerra. pág. 220.

134
Regina Abreu

fia. Para a formação do acervo, essas lideran­ sidade do Amazonas e o Conselho de Reitores
ças mobilizaram cerca de 95 aldeias, com uma das Universidades Brasileiras (Crub) e à inter­
população de 28 mil índios, nos municípios venção do Comando Militar da Amazônia.31
de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo Na época em que foi fundado, o Museu
de Olivença, Amaturá, Santo Antonio do Içá, Máguta representou uma grande novidade no
Tocantins, Jutaí e Beruri. O principal trabalho panorama dos museus no país. Se, outrora, os
consistiu de um lado, em recuperar antigas tra­ gmpos indígenas eram representados nos mu­
dições e técnicas artesanais em desaparecimento seus etnográficos a partir de práticas de colecio-
e, de outro lado, estimular os artistas indígenas, namento de etnólogos-colecionadores, o Museu
especializados em diferentes artes (confecção Máguta teve desde seu início uma proposta de
de máscaras rituais, esculturas de madeira e de auto-representação indígena. Tratava-se de um
cocos de palmeira, pinturas de painéis decorati­ lugar de construção e de afirmação de uma iden­
vos de entrecasca, fabricação de colares, cestos, tidade étnica na primeira pessoa, ou seja, imple­
redes e bolsas). Para a recuperação das antigas mentada pelo próprio grupo interessado. A par­
tradições de artefatos ticuna foram consultadas ticipação dos índios no processo de constituição
fotografias antigas e registros feitos em 1929, das coleções e montagem da exposição, bem
pelo etnólogo Curt Mimuendajú. Em seguida, como as responsabilidades que eles próprios
foram realizadas entrevistas com anciãos das al­ assumiram na administração e dinamização do
deias e com a colaboração destes, oficinas com museu configuraram um dos aspectos da sin­
os mais jovens que reaprendiam a confeccio­ gularidade desta experiência. Segundo Jussara
nar os antigos artefatos. Durante três anos, de Gruber, antropóloga envolvida no processo de
1998 a 1991, os índios participaram ativamente constituição do museus, “os objetos escolhidos
na organização do acervo com a assessoria da foram os que têm para os ticuna maior signifi­
antropóloga Jussara Gomes Gruber. A definição cação cultural e afetiva. Essas particularidades,
dos objetos, o levantamento de dados sobre as portanto, fazem dessa iniciativa um instrumento
peças, a seleção dos objetos para a exposição, o de autogestão da cultura, opondo-se às concep­
desenho das ilustrações, tudo isto foi realizado ções mais tradicionais de museus etnográficos,
pelos próprios índios sob a liderança de Cons- onde os objetos são coletados e apresentados sob
tantino Ramos Lopes Cupeatücü, índio ticuna, a ótica da sociedade dominante, predominando,
que havia escapado do massacre do Capacete muitas vezes, o interesse pessoal ou a curiosi­
com um ferimento à bala e tomara-se respon­ dade de um de seus produtores. Por outro lado,
sável, depois de algum treinamento, pela guarda é um museu que não se afirma em princípios de
do acervo e sua dinamização. poder e autoridade, de luxo ou consumo. Sua
A experiência de criação do Museu força reside muito mais numa profunda e persis­
Máguta estava longe de constituir um evento tente vontade dos índios de se tomarem visíveis
cultural pacificado. No entender de Freire, essa como índios ticunas, de se comunicarem com os
singela instituição nas mãos das lideranças indí­ membros de outras sociedades e conquistarem o
genas adquiriu um “potencial explosivo” na luta espaço social e cultural a que têm direito.”32
pela auto-afirmação da identidade étnica dos ti­ Com o trabalho do museu, os índios
cuna e no confronto com os madereiros, políti­ ticuna passaram a ser mais respeitados e valori­
cos e latifundiários da região. No dia e na hora zados na região e mais conhecidos no país e até
da inauguração do Museu Máguta, o prefeito de internacionalmente. Em 1995, o museu sofreu
Benjamin Constant “convocou uma concorrida nova ameaça por parte dos madereiros que que­
manifestação de ma, carregada de hostilidade, riam incendiá-lo. Entretanto, estes não encon­
contra a demarcação das terras indígenas, em travam mais apoio junto à população local. Se­
frente ao museu”, provocando o cancelamento gundo Jussara Gruber, “o trabalho educativo do
da solenidade e seu adiamento. O museu só foi museu - através de um programa de interação
inaugurado três semanas depois, em dezembro 31 Dados citados por Freire, 2003, op cit.
de 1991, devido à ampla repercussão na impren­ 32 Gruber, Jussara “Museu Máguta”, in: Piracema -R e­
sa e de protestos de instituições, como a Univer­ vista de Arte e Cultura, n. 2 , ano 2, RJ, Fuñarte, 1994.

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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

com as escolas da cidade, que tem por finalidade estreita de sua prática de colecionamento com
aproximar as novas gerações da cultura e da his­ os objetivos das lutas do grupo ticuna.
tória dos ticuna - vem cumprindo a importante “Tudo começou com a luta pela demarca­
função social de promover uma maior harmonia ção de terras e pela conquista dos direitos
nas relações interétnicas na região, colaboran­ à educação e à saúde. Nós morávamos na
do para que sejam desfeitas, gradativamente, as terra, mas vivíamos como os animais que
idéias preconceituosas e discriminatórias a res­ podem ser mortos a qualquer momento,
peito das populações indígenas” 33 pois cada pedaço de terra tinha um patrão.
Em 1995, o museu foi premiado como Começamos a nos reunir para discutir o
“Museu Símbolo” pelo International Council of que fazer e procurar quem nos ajudasse. No
princípio, por volta dos anos 1972 e 1973,
Museums (Icom), realizado em julho do mes­ os mais velhos diziam que havia uma pro­
mo ano, em Stavanger (Noruega). No mesmo teção para os índios, que era o Serviço de
ano, obteve o prêmio Rodrigo Melo Franco de Proteção ao índio, mas não havia nada de
Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimô­ concreto para nós. A luta dos índios ticuna
nio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por começou pela demarcação das terras e de­
sua contribuição para a preservação da memória pois por educação e saúde. A educação na
cultural brasileira. região era pouca e de má qualidade. Mais
Desde o início, o ticuna Constantino tarde, foram aparecendo mais pessoas não-
Ramos Lopes Cupeatücü destacou-se nas ativi­ índias interessadas em ajudar. Por volta
de 1975, a PUC do Rio Grande do Sul se
dades de coordenação e de colecionamento de instalou em Benjamin Constant e fêz um
objetos para o museu. Guardando as devidas curso de extensão direto de Porto Alegre.
proporções, Constantino representou para o A educação melhorou um pouquinho. De
colecionamento ticuna no final do século XX o 1980 a 1983, eu fiz o curso de extensão
mesmo que Curt Nimuendaju no início do sé­ com o pessoal da PUC. Eles tinham tam­
culo em termos do objetivo de coleta de arte­ bém o curso de formação para professores
fatos e estudo da cultura material. Entretanto, leigos rurais que eu fiz em 1985. Quando
enquanto o primeiro procurava representar sua voltei, um mês depois, comecei a dar au­
las para os meus próprios parentes e entrei
própria cultura, o segundo integrava uma visão no curso de agentes de saúde. Em 1986,
de Antropologia e uma prática de coleciona­ os caciques e os professores começaram a
mento que retirava os objetos de seus contex­ discutir a questão da criação de um museu.
tos de origem para enviá-los para os grandes Algumas pessoas que estavam com a gente
museus etnográficos, onde diferentes culturas como a antropóloga Jussara Gomes Gru­
deveriam ser exibidas em conjuntos-síntese da ber, que chegou como aluna do curso de
diversidade cultural da humanidade. O museu ti­ extensão, e após um estágio com os ticuna
cuna emergiu como uma experiência articulada passou a se dedicar ao trabalho de apoio
aos índios, estimularam a criação de uma
aos próprios índios que, talvez pela primeira vez organização de caciques e, mais tarde,
na história do país, realizavam uma experiência dos professores e agentes de saúde. Então
museológica na primeira pessoa. Diversamente foram criadas três organizações: CGPT
do padrão dos museus etnográficos no país, este (Conselho Geral dos Professores Ticunas),
se constituiu como um museu engajado, articu­ CGTT (Conselho Geral da Tribo Ticuna)
lado com as lutas do grupo ticuna. Convidado e depois a OSPTS (Organização de Saú­
a participar do Seminário “Patrimônio Cultural: de do Povo Ticuna do Alto Solimões). Em
Coleções, Narrativas e Memória Social”, orga­ 1986, foi criado o Centro Maguta que ge­
rou a discussão sobre o museu. Na época,
nizado no Programa de Pós-Graduação em Me­ na região do Alto Solimões, os índios não
mória Social da UNIIRO, Constantino relatou tinham mais direito nem mesmo de falar a
sua experiência junto ao museu e ao Centro de própria língua que era proibida na escola.
Documentação e Pesquisa do Alto Solimões. A A intenção da criação do museu era que os
partir deste depoimento percebemos a relação índios não perdessem tudo o que tinham, já
que mesmo suas armas como a zarabatana
33 Gruber, J. 1995, citado por Freire, 2003. não sabiam mais fabricar, além de serem
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Regina Abreu

obrigados pelos patrões a plantar mandio­ dessas foram escolhidas as mais bonitas e
ca e fabricar farinha para ser vendida em 170 ficaram na exposição.”
Benjamin Constant, Tabatinga e Letícia
na Colômbia. A idéia de criar o museu foi A iniciação de Constantino na lin­
para preservar a arte e a língua ticunas, as­ guagem museológica reflete uma tendência de
sim como o mito e a história.”34 aproximação dos povos indígenas com os costu­
mes e hábitos do Ocidente. E interessante notar
Constantino revela seu processo de en- que o museu chegou para eles juntamente com
tronização à linguagem museológica, de como a chegada da Escola - modelo de Educação da
foi se convertendo pouco a pouco num coletor sociedade ocidental moderna. Mas, a adesão
de artefatos de seu próprio grupo: dos índios ao museu e ao processo de coleciona-
“No final de 1988, saí da aldeia para tra­ mento indica a eficácia desta instituição e seus
balhar como professor na cidade de Ben­ processos com as necessidades de construção e
jamin Constant. Mas, então, a Jussara me de afirmação de uma identidade étnica. Com a
chamou para que eu assumisse o museu. prática do colecionamento, tomava-se mais fácil
Ela me explicou o que eu iria fazer, o objetificar para si mesmo e para seu grupo uma
prédio onde eu ia trabalhar e me ensinou cultura que foi sendo modificada e, principal­
sobre o que era museu. Ela me mostrou mente, expoliada por madereiros, latifundiários,
uns livros que tinham fotos de exposições. políticos. O museu se inscrevia numa ação de
Com a orientação dela entendi o que era resistência ou até mesmo de re-existência. Por
museu e saí para fazer reuniões na aldeia meio do colecionamento de seus próprios arte­
e explicar para eles o que era museu, ex­ fatos, mitos e tradições, os ticuna inventavam
plicar que precisava das zarabatanas, da uma nova maneira de existir, com maior visi­
igaçaba, da arte em geral, de tudo o que bilidade, exibindo a si mesmos para não desa­
ia ser colocado dentro do museu. Os pa­ parecerem enquanto cultura singular e para não
rentes me perguntavam o porque disso e
eu respondia que era para o museu, que a serem trucidados por grupos fortes económica e
gente tinha uma casa onde seriam coloca­ politicamente. No relato sobre sua experiência
dos tudo o que eu estava pedindo. A antro­ no museu, Constantino explicita as tensões e ao
póloga Jussara tinha trabalhado no Museu mesmo tempo as vitórias advindas no processo.
Nacional, então ela tinha fotografias dos Com o museu aberto para os ticuna, para a po­
pentes que os índios faziam, dos colares pulação pobre da região e também para turistas,
de dentes que os antigos faziam, de uma ficava cada vez mais difícil ocultar ou apagar a
agulha que servia para os antigos tecerem existência dos ticuna enquanto grupo cultural e
panos de algodão. Ela me passou essas socialmente específico. Desse modo, o museu
fotografias e eu mostrei para os parentes, ticuna voltava-se para o presente e não para as
procurando quem fizesse aqueles objetos lembranças do passado. Ao contrário, das ex­
para colocar no museu. Eu dizia que iria periências dos grandes museus etnográficos do
colocar o nome de quem fizesse coisas bo­ século XDC e início do século XX, o Museu Má-
nitas no museu, o nome em português e na guta não estava interessado em fazer a memória
língua ticuna, o nome da aldeia e a idade do que não mais existia. Sua intenção era afir­
de quem doou. Eles perguntavam: -Por mar a existência dos artefatos, recolocá-los na
que você quer isso? E eu explicava que era
para a informação, porque cada peça teria vida cotidiana usando como instrumento o pro­
o nome da pessoa que fez e o número do cesso museológico. Musealizar para não apagar,
registro - coisas que eu aprendi. Isso du­ para não esquecer. Musealizar para que o grupo
rou três anos, de 1989 a 1994. Consegui pudesse ser visto, olhado, estudado. Ao contrá­
coletar do meu próprio povo 380 peças, rio dos objetos depositados nos grandes museus
etnográficos que serviam como testemunhos de
34 A entrevista de Constantino foi realizada em maio de um mundo fadado ao desaparecimento, a pro­
2001 e editada por mim. Agradeço a colaboração de posta do museu Máguta emergia como uma pro­
José Ribamar Bessa Freire e da equipe do Núcleo Pró- posta ativa de vida e construção de auto-estima
índio da UERJ para a viabilizaçao da participação de
Constantino no Seminário e no curso “Memória e Patri­ para um grupo indígena que acreditava poder
mônio” coordenado por mim e pelo Prof. Mário Chagas construir um futuro enquanto grupo com uma
no Mestrado em Memória Social da UNIRIO. identidade própria e peculiar.
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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

“A nossa intenção com o museu era mos­ trabalhando com a questão da memória
trar a arte ticuna e com a biblioteca quería­ junto aos professores indígenas e dentro
mos chamar os alunos para dentro do mu­ das escolas. Não estou mais dentro do mu­
seu, aproximar os índios dos brancos. Isso seu, mas dentro das escolas ticuna, quem
a gente só conseguiu uns três anos depois sabe, de repente, criamos de novo um ou­
da abertura do museu. Durante esse tempo tro museu?!”
tivemos muitos problemas, pois a popula­
ção tinha raiva e o próprio prefeito tinha O Museu Máguta constituiu uma expe­
certeza de que a entidade era uma entidade riência nova no panorama dos museus etnográ­
de denúncia, por isso queria acabar com ficos. A experiência de um museu sobre índios
ela. A coisa melhorou com a chegada dos criado na confluência de um diálogo entre índios
turistas. Fizemos contato com as agências e antropólogos merece ser registrada como um
de turismo de Letícia e começamos a rece­ momento importante de passagem para um novo
ber uma média de trinta a cinqüenta turis­ estilo de museu etnográfico e de prática de cole-
tas. Como é uma cidade pequena, a prin­ cionamento. O falar sobre o “outro” é substituído
cipal avenida é a que dá acesso ao museu. por uma narrativa que mescla a construção da al-
Então, eles começaram a ver que o museu teridade com a auto-representação e construção
atraía os turistas. Depois começamos a fa­ de si, que identifico como “alteridade mínima”
zer palestras nos colégios estaduais e mu­ A relação dos ticuna com seus artefatos
nicipais. A coisa foi crescendo e, em 1994, vem sendo estudada por antropólogos em expe­
já tínhamos alunos visitando o museu, riências que relacionam as práticas de colecio-
onde dizíamos o que era o museu, mesmo namento de Curt Nimuendaju com as práticas
assim alguns alunos diziam que estávamos
falando grego pra eles, pois lá as pessoas de colecionamento dos próprios ticuna. Neste
não fazem idéia de que existem museus sentido, é expressivo o trabalho de Priscila Fau-
como o Nacional e o Imperial, assim como lhaber, comparando os dois tipos de acervos e as
os de ciências. Os alunos se aproximaram representações sobre eles.35
e a biblioteca foi muito utilizadas por eles.
Isso durou até 1997.”
Constantino relata que em 1997, houve
algumas divergências entre alguns dos não-índios
que apoiavam a causa ticuna e, por este motivo, a
antropóloga Jussara Gruber e ele deixaram o mu­ A exposição sobre (e dos) Wajãpi
seu para se dedicar a outras atividades. no Museu do índio
“O Museu Máguta foi escolhido como
museu símbolo do Brasil para representar O fenômeno do Museu Máguta enquan­
o Brasil na Conferência Mundial na No­ to primeira experiência de auto-representação
ruega que aconteceu de 01 a 07 de julho
de 1995. Nosso trabalho foi reconhecido dos “nativos” sobre si mesmos não se deu de
e, no final do ano recebemos o segundo forma isolada. Os anos 90 expressaram diver­
troféu. Hoje nós continuamos mostrando sos posicionamentos dos movimentos sociais
o trabalho, mas eu não faço mais parte do com relação às instituições de patrimônio e de
museu, eu saí em 1997 após alguns confli­ museus. Em diversas ocasiões, populações re­
tos internos. Hoje, eu faço parte de outra presentadas em grandes museus reivindicaram
organização, a OGPT (Organização Geral o repatriamento de seus objetos. Muitas destas
dos Professores Ticuna), onde eu sou se­ populações começaram a freqüentar instituições
cretário e coordeno um curso de formação patrimoniais e a reivindicar a afirmação de ou­
que foi premiado aqui no Rio de Janeiro tros olhares sobre si próprios. Estes movimentos
e pela Fundação Getúlio Vargas. A situa­ engendraram não apenas a criação de museus
ção do Museu Máguta é muito complexa. étnicos ou de expressões locais ligados a movi­
Depois que ele foi escolhido “museu-
símbolo”, houve uma divisão entre alguns 35 Faulhaber, Priscila “O etnógrafo e seus “outros”: infor­
assessores dos índios ticuna. Eu acabei mantes ou detentores de conhecimento especializado?”,
ficando na Ong dos Professores, continuo mimeo, 2004.

138
Regina Abreu

mentos sociais, mas provocaram mudanças nos Os Wajãpi moram no Amapá e vivem
quadros de instituições estatais consolidadas. numa terra demarcada, a Terra Indígena Wajã­
Desse modo, uma experiência particu­ pi, com 604 mil hectares. Cada grupo Wajãpi
lar no Museu do índio no início de 2000 expres­ mora em uma aldeia separada. Alguns moram
sa que uma nova configuração entre museus e muito longe, outros moram perto. E um total
antropologia estava em curso. O diretor da insti­ de 13 aldeias, e a população vem aumentando
tuição, o antropólogo José Carlos Levinho, esta­ sensivelmente. No mesmo ano que começou a
beleceu uma política de exposições que segundo demarcação da terra, 1994, os Wajãpi criaram
ele inseria-se “numa política do museu voltada uma organização não governamental, a APINA
para quatro metas principais. Em primeiro lu­ (Conselho das Aldeias Wajãpi). Através dessa
gar, realizar exposições que focalizassem cultu­ Ong, eles vêm promovendo projetos de desen­
ras indígenas particulares, questionando a visão volvimento sustentável ligados ao artesanato
que perdurou por muito tempo dentro e fora da e ao garimpo, com substâncias não poluentes,
instituição a respeito da representação de um ín­ além de produção e venda de produtos agrícolas,
dio brasileiro genérico. Em segundo lugar, rea­ como o cupuaçu, a copaíba e a castanha.
lizar exposições assinadas por antropólogos que O processo de idealização e montagem
trabalhassem com grupos indígenas específicos, da exposição no Museu do índio envolveu várias
valorizando as curadorias, ou seja, valorizando etapas e foi uma vivência rica, resultado do in­
a adoção de um ponto de vista particular, nome­ tercâmbio de experiências, conhecimentos e tra­
ando o sujeito do conhecimento, a perspectiva dições culturais entre a curadora, os técnicos do
a partir da qual cada cultura é construída. Em museu e os índios. Desde o início, todos firmaram
terceiro lugar, estimular a participação dos pró­ o compromisso de incorporar o ponto de vista
prios grupos cujas culturas eram representadas dos wajãpi sobre sua própria cultura. Este proce­
no museu, de modo a favorecer o intercâmbio dimento implicava a abertura para alterações de
entre estes grupos, os curadores da exposição e diversas ordens, inclusive na abordagem estética
os técnicos do museu e de modo que as exposi­ da própria museografia concebida pelo setor.
ções apresentassem resultados também para os A participação dos índios deu-se em to­
índios. E, em quarto lugar, inserir a exposição dos os momentos, tendo início com a confecção
num contexto de modernização da instituição, dos objetos para a exposição. Dominique Gallois
utilizando sofisticadas técnicas museográficas e explica que “os Waiãpi se mobilizaram para pro­
visando conferir a estas culturas particulares o duzir a coleção de mais de 300 objetos e todos os
mesmo status de outras exposições em museus materiais necessários para a casa que seria cons­
das chamadas “altas culturas” ”36 truída no Rio. Com apoio dos jovens que dirigem
Esta política trazia uma preocupação o Conselho das Aldeias/Apina, os produtores co­
absolutamente nova, ou pelo menos rara para municavam-se através da radiofonia, circulavam
um grande museu etnográfico: incluir a par­ listas, preocupados com os prazos e com a quali­
ticipação dos índios na montagem de uma ex­ dade dos objetos”. No entender da antropóloga,
posição. Para realizar a primeira experiência da “foi a primeira vez que um grupo indígena
nova política de exposições, o diretor do Museu da Amazônia participou tão intensamente
do índio convidou a antropóloga Dominique e, sobretudo, coletivamente, da preparação
Gallois, professora-doutora do Departamento de uma exposição. Eles se organizaram
de Antropologia e coordenadora do Núcleo de para que todos os diferentes grupos locais
História Indígena e do Indigenismo da Univer­ da área pudessem colaborar com o even­
sidade de São Paulo. Dominique Gallois traba­ to. Foi assim que eles fizeram a lista dos
lha com os índios Wajãpi há mais de vinte anos, objetos, distribuindo tarefas entre todos.
sendo também assessora de uma importante ong Durante três meses, trabalharam muito em
dedicada a programas de intervenção nas áreas todas as aldeias, selecionando as melhores
de educação e controle territorial, o Centro de peças, transportando tudo desde lugares
Trabalho Indigenista. muito distantes. Depois, escolheram as
pessoas que viriam para orientar a mon­
36 Jornal Museu ao Vivo (n. 20, ano XII. fev. 2001 a jan. tagem da mostra e os músicos que iriam
2002). RJ. Musu do índio, 2002. tocar suas flautas na festa de abertura.”4
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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

Sobre a participação dos waiãpi na produção da mostra. Sua preocupação era de


mostra, devemos destacar alguns aspectos im­ que o museu adquirisse peças de todas as al­
portantes. Em primeiro lugar, esta participação deias, para não gerar conflitos internos ao grupo
não se deu de forma isolada, mas organizada, e estimulá-los a produzir seus próprios objetos,
já que a troca com o museu foi mediada pela valorizando-os. Todos os objetos foram compra­
ONG APINA - criada a partir de trocas de infor­ dos em duplicata, visando produzir uma coleção
mações entre os índios, a antropóloga e outros para o acervo do museu e uma outra para a expo­
grupos e entidades. Cabe lembrar que faz parte sição, visando a itinerância da mesma.
do processo de luta e de afirmação dos grupos Além do processo de confecção dos
indígenas a criação de entidades próprias para objetos, os índios waiãpi participaram da mon­
a defesa de seus interesses. Os índios não se co­ tagem da exposição. Eles foram chamados ao
locam mais como objetos da tutela de organis­ museu em algumas ocasiões, nas quais puderam
mos estatais, mas falam em seu próprio nome expressar seus pontos de vista sobre a exposi­
de maneira organizada. Este é um dado novo, ção. Eles assistiram aos vídeos produzidos pela
importante de ser levado em consideração por equipe da mostra e externaram suas opiniões
museus e instituições congêneres. sobre o que estavam assistindo ao diretor do mu­
Em segundo lugar, a antropóloga tinha seu. Eles chamaram a atenção para o fato de que
um trabalho anterior com este grupo, o que a le­ o museu não poderia exibir nenhuma imagem
vou a conjugar múltiplos interesses na confecção de pessoas que já tivessem falecido, pois, no en­
da exposição. De um lado, era importante con­ tender deles, isto seria prejudicial aos espíritos
feccionar os objetos para a exposição. Mas, de dos waiãpi.
outro lado, era importante estimular a participa­ Ao chegarem numa sala onde estavam
ção coletiva dos índios na reflexão e na apropria­ expostas varas compridas confeccionadas para
ção de diferentes aspectos de sua própria cultura. a “festa de empurrar o céu” algumas índias dis­
Por exemplo, alguns objetos em cerâmica antes seram que seria necessário pintar um circo em
tradicionalmente confeccionados pelos waiãpi vermelho ao redor delas, pois senão não atingi­
não eram mais produzidos, em função de certas riam o objetivo de “empurrar e conter o mundo
facilidades de aquisição de objetos no comércio, de cima”
como as panelas de alumínio - grande sucesso Mas a participação mais ativa deu-se na
entre as índias. Espingardas industrializadas já montagem da casa waiãpi. Matapi, Noé, Mata e
há muito passaram a fazer parte do acervo de Emyra foram os índios designados para virem
objetos waiãpi; pentes de material orgânico fo­ ao Rio de Janeiro montar a jurá, uma casa tradi­
ram preteridos por pentes de plástico (em geral cional dos índios waiãpi. O detalhe importante é
vermelhos); suas vestimentas, antes confec­ que eles nunca tinham vindo ao Rio. O processo
cionadas pelos próprios, com algodão nativo e da montagem desta casa, com 5,5 metros de al­
tingido com sementes, deu lugar a aquisição de tura, 5 metros de largura e 9 metros de compri­
tecidos industrializados. Aproveitando o motivo mento, foi muito rico em termos de relações in-
da exposição, a curadora da mostra e as lideran­ terculturais, no que se refere aos e funcionários
ças indígenas estimularam em oficinas a produ­ do museu que colaboraram com eles.
ção dos objetos tradicionais. Em alguns casos, Além disso, o próprio processo de con­
como o da confecção de um vaso de cerâmica foi fecção da casa mostrou uma riqueza em tec­
preciso a consulta a índios mais velhos, pois os nologias arquitetônicas. A arquiteta Catherine
mais jovens já haviam perdido o conhecimento Gallois, consultora da mostra, acompanhou o
desta técnica de confecção. Então, neste sentido, processo. Palhas, troncos e cipós utilizados fo­
a exposição provocou um outro movimento que ram trazidos do Amapá por um caminhão. Os
foi além dela e cujos efeitos provavelmente ainda waiãpi cortaram os troncos de palmeira ao meio
devem se fazer sentir nas aldeias. e trançaram-nos para fazer a parte de cima, onde
A curadora da mostra teve também o fica a área íntima da família, com espaço para
cuidado para que todas as aldeias waiãpi fossem o fogo e para as redes. Bem adaptada às con­
contempladas, integrando-as coletivamente na dições climáticas da Floresta Amazônica, a jurá
140
Regina Abreu

protege contra as chuvas constantes sem deixar em maio de 2006. O museu trazia uma curiosa
de ser arejada. linguagem antropológica, sendo dividido em 12
Ainda assim, o processo de construção tempos como os meses do ano: tempo da água,
da jurá no museu foi bem diferente do mesmo da resistência, da casa, da festa, da brincadeira,
processo na aldeia. Na aldeia, é o dono da casa do medo, do futuro...
que a constrói sozinho com a ajuda da família e Moradores da Maré organizados numa
as mulheres ajudam a carregar o material. En­ ong expressavam o ponto de vista daqueles que
quanto na aldeia o waiãpi pode levar até um ano viviam numa comunidade de baixa renda e que
para construir a Juruá, - tendo ainda de dividir o foram os protagonistas de incansáveis lutas para
seu tempo entre outras atividades, como a roça, se manter no espaço de uma cidade plena de
a caça e a pesca -, no Museu do índio a am- conflitos e exclusões. O museu era fundamen­
bientação ficou pronta em uma semana, tanto talmente criado para fomentar a auto-estima de
por causa da dedicação dos quatro índios que trabalhadores que habitavam o lado considera­
vieram apenas para este fim como por causa da do feio e violento da cidade. Contar a história
disponibilidade da matéria-prima. da Maré, trabalhar com o público escolar (são
Nesse processo, aconteceram algumas várias escolas públicas no complexo da Maré)
situações inusitadas, como índios posando para para mudar a imagem do bairro para os próprios
fotos com funcionários do museu, dando entre­ moradores, propiciar a reflexão sobre as ten­
vista para a televisão, conversando com estudan­ sas relações entre a favela e a cidade, mas ao
tes, provando da comida da cantina do museu mesmo tempo lembrar com alegria e nostalgia
e passeando pela cidade. O que se passou em das festas, dos batizados, das redes de amigos
uma semana no Rio de Janeiro certamente foi e familiares que se teceram ao longo do tempo,
uma experiência muito rica, que afetou todas as estes têm sido alguns dos objetivos do Museu
partes envolvidas: os índios, os funcionários do da Maré.
museu, os visitantes e todos os que entraram em O grande ícone é a casa de palafitas,
contato com esses índios por algum motivo. símbolo maior da resistência e da insistência do
O entrecruzamento de pontos de vista próprio homem para sobreviver nas condições
diferenciados - o da curadora, da equipe do mu­ mais adversas.
seu, dos próprios índios - gerou como resultado “Um pequeno barraco de madeira susten­
final uma exposição onde a construção da alte- tado por estacas. ícone de uma paisagem
ridade waiãpi é também um processo de cons­ inexistente no presente, imagem simbólica
trução de identidades e de subjetividades. Em do passado. Surpresa nos causa pelo equi­
outras palavras, trata-se de um processo onde os líbrio, pela estabilidade, pela centralidade
diversos sujeitos são permanentemente afetados que ocupa no espaço onde está. Âncora da
entre si, transformando-se mutuamente. lembrança. Sua cor é azul. Não o azul mo­
nótono e frio das paredes lisas. É um azul
de muitos tons, roubado da cor das águas,
do céu e da vida, mutável conforme a lu­
minosidade dos dias, os anúncios de tem­
pestades, os fluxos do mar e os dramas da
existência.
O Museu da Maré O espaço é escasso. Uma pequena varan­
da é o que restou como porção do mundo
exterior. A porta se abre em duas, primeiro
Mas o movimento de mudanças na re­ para olhar quem chega, depois para convi­
lação entre Antropologia e Museus abarcava dar a entrar. Por dentro, a vida é rosa. As
paredes, de evidente estrutura, selada por
também outros agrupamentos sociais. Assim, taboas criam um cenário de móveis e obje­
no início do século XXI, um pequeno museu tos. Num único cômodo se escreve a vida,
instalado na Favela da Maré no Rio de Janeiro dividida em ambientes que propõem o ali­
chamava a atenção do Ministro da Cultura que mento e o repouso. Aqui os objetos falam,
fez questão de participar de sua inauguração feitos de metal, argila, madeira, tecido, pa-
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Museu, Identidades e Patrimônio Cultural.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 7, 2008.

pel, couro, eles têm vida. Isso nos assusta todas diferentes entre si, acabam por assim
na medida em que nos damos conta da re­ formar um conjunto interessante. Ali é um
flexão ali proposta, num convite para ver­ lugar de encontro, de celebração, ali se en­
mos adiante dos olhos. Esses objetos nos contram as individualidades que vivem na
falam porque são portadores de vidas. casa. Na mesa se expõem as angústias, nela
Na parede a lamparina, velhas fotos re­ se conversa e se silencia. Podemos ver a
tocadas, um calendário antigo. Quadros, família, os amigos, os vizinhos, tomando o
muitos quadros, do Sagrado Coração, São café da tarde, passando no coador de pano,
Jorge, Menino Jesus de Praga, Nossa Se­ com um pedaço de pão; a avó fazendo o
nhora da Conceição, todos acima da velha “capitão”, misturando o feijão cozido com
cama patente, geralmente preterida pela carne seca e a farinha crua de mandioca; os
rede dependurada sob o travessão. Ao lado, pais alegres no dia do batizado servindo o
um guarda-roupa, vestidos de chita, saias, macarrão com galinha.
blusas, calças e camisas usados com suas O telhado é pesado, de telhas de barro tipo
marcas e cheiros. Sobre o guarda-roupa há francesas, em duas águas, de acabamento
malas de couro e papelão, malas surradas, irregular. Não protege tão bem do sol e das
corroídas por inúmeras viagens, depósitos chuvas, tem frestas e goteiras. As telhas, o
de lembrança, denunciando que quem vive vento pode arrancar e expor os medos.
ali está constantemente de passagem. Esta casa é de todos e de ninguém. Um
Há um criado mudo. Num barraco, sim! barraco de madeira, razão de ser e centro
Duas gavetas que podem ser abertas, por­ da história de vida de milhares. É mais que
que aqui, os objetos dialogam e podem ser um lugar, é um lugar de memória!” (texto
tocados. E ao abrir se encontra mais vida: de um dos diretores do Museu, Antonio
grampos de cabelo embrulhados num tos­ Carlos)
co papel, bijuterias descoloradas pelo tem­ O Museu da Maré emerge assim como
po, orações já muito recitadas e antigas estratégia de um movimento social contemporâ­
notas de dinheiro, que não compram mais
nada, somente o passado. neo, onde os cidadãos apropriam-se de instru­
Um velho rádio emudecido que foi do “Seu mentos antes ligados a políticas públicas cons­
Carlos”, uma velha Bíblia com as marcas truindo novas possibilidades para suas próprias
do sebo e uma imagenzinha de Nossa Se­ vidas. O discurso antropológico, antes restrito às
nhora Aparecida dão conta das conexões academias e aos museus de ciência, é absorvido
necessárias nesse ambiente dedicado aos e reinterpretado por segmentos populacionais
sonhos e à fé. que lutam em defesa de novos projetos sociais.
No outro espaço da casa somos devorados. Os novos usos dos museus e, em particular dos
Um velho fogão a gás, da marca “cosmo­ museus etnográficos ou antropológicos, mere­
polita”, um paneleiro arrumado, com pa­ cem ser estudados pois configuram novidades
nelas brilhantes e areadas, bule e pratos de
ágata, garfos, colheres e facas desgastados interessantes para os impasses e questões do
pelo uso, despertam um apetite da alma. mundo contemporâneo.
Um pote de cerâmica sobre a aba do fogão
nos alerta que ali ainda se cozinha com
banha. Sobre o fogão uma prateleira, sin­
gelamente forrada por um papel cortado
de forma decorativa, com a geometria dos
balões. Ao lado, uma mesa revela que às Indagações para futuros
vezes se substitui o gás pelo querosene, o
fogareiro “jacaré”. Como não há geladeira,
desdobramentos
a água geladinha verte do filtro e da morin­
ga. E ali somos devorados pelo pensamen­ Em 2007, o tema oficial dos museus foi
to, do alimento ganho com o trabalho do
dia a dia, dos dias em que não há nada para definido pelo ICOM como a relação dos Museus
comer, nos devora a percepção da fome. com o Patrimônio Universal. Não é por acaso
O pequeno lugar ainda encontra espaço que o principal organismo de aglutinação dos
para uma mesa cercada por três cadeiras, museus traz o tema do Patrimônio Universal.
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Regina Abreu

Os museus, e muito especialmente os museus no museu do índio”, in: História representada: o dile­
antropológicos, vivem da conjugação entre o ma dos museus, MHN, IPHAN, Mine, RJ, 2003
singular e o universal. Se, de um lado, eles po­ ______________ O Enigma de Os Sertões, ed Rocco,
dem ser considerados patrimônios etnográficos Funarte, 1988
relacionados a grupos culturais específicos, por CHAGAS, Mário “A Imaginação Museal" tese de
outro lado, eles congregam patrimônios abran­ doutorado, UERJ, 2003, mimeo.
gentes. Podem ser locais, regionais, nacionais e
universais. Todas estas dimensões combinam-se CLEFFORD, James. “Colecionando Arte e Cultura”
nos museus. Resulta dessas combinações a ri­ in: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio­
nal, RJ, IPHAN
queza das instituições museológicas.
Por outro lado, novas experiências FAULHABER, Priscila “O etnógrafo e seus "out­
museológicas protagonizadas por movimentos ros”: informantes ou detentores de conhecimento es­
sociais vêm representando uma novidade in­ pecializado?", mimeo, 2004
teressante e plena de possibilidades. Contudo, FREIRE, José Ribamar Bessa “A descoberta do mu­
precisamos mais do que nunca ficar atentos. seu pelos índios”, in: Memória e Patrimônio, ed DPA,
Num contexto mundial onde a lógica de mer­ RJ, 2003.
cado tende a lançar as culturas e os povos em GRUBER, Jussara “Museu Máguta”. in: Piracema
regras competitivas em busca de financiamen­ -Revista de Arte e Cultura, n. 2 , ano 2, RJ, Funarte,
tos, subsídios, prêmios, distinções de vários ti­ 1994
pos, parece-me crucial refletir sobre a atuação e GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Coleções e Expe­
o pensamento de intelectuais como Paul Rivet, dições Vigiadas, SP, ed. Hucitec, 1998
Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre. Particularmen­
te importante me parece o papel que estes inte­ JORNAL Museu ao Vivo (n. 20, ano XII, fev. 2001 a
lectuais atribuíam ao Estado enquanto instância jan. 2002), RJ, Musu do índio, 2002
fomentadora do encontro e do relacionamento MASCELANI, Maria Angela. “A Casa do Pontal e
entre as culturas. Idealizando instituições muse­ sua coleções de arte popular brasileira”, in: “Revista
ológicas de grande porte, formulando políticas do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional" n.
públicas, estes intelectuais viam as diferentes 28/1999
culturas como expressões do humano. E estas MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva”, in: Mauss,
instituições como o lugar de troca e de reconhe­ Marcel. Sociologia e Antropologia, vol. 1, SP, Edusp,
cimento da igualdade na diferença. Ainda pode­ 1974.
mos e devemos crer que as culturas expressam a MICELI, S. (org.) O que lerna Ciência Social brasi­
unidade fundamental da espécie humana e que o leira I. Antropologia. SP. Ed. Sumaré, 1999
destino não apenas da humanidade mas da pró­ PEIRANO, Mariza G. S. “Antropologia no Brasil
pria vida depende do entendimento e da colabo­ (Alteridade Contextualizada)”, in: Miceli, S. (org.) O
ração entre elas. que ler na Ciência Social brasileira 1. Antropologia.
SP. Ed. Sumaré, 1999
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças.
SP. Cia das Letras, 1993
STOCKING, George. Objects and Others. Essay on
Bibliografia: Museums and Material Culture. London, The Univer-
sity of Wisconsin Press, 1985.
WALDECK, Guacira “Exibindo o povo: invenção ou
ABREU, Regina “Entre o universal e o singular, o documento?” ”, in: "Revista do Patrimônio Histórico
museu. Notas sobre a experiência dos índios waiãpi e Artístico Nacional” n. 28/1999

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