Você está na página 1de 21

Guilherme Sá

NO MESMO GALHO
Antropologia de coletivos
humanos e animais

~ 0
C A P E S
iiLETRAS]
CAPÍTULO 1
QUEBRA- GALHOS

Era só o que me faltava! Uma mono fêmea acaba de atirar


um galho de árvore em mim. Catarina me disse que Salomé
está me ameaçando e que eu não devo olhar para ela.
Permaneci encolhido com os olhos fixos no chão, mas nada
disso evitou o meu batismo com urina de !!1:_acaco.
Caderno de campo (23/4/2002)

Por ser fruto de pesquisa de campo com um grupo de primatólogos no


Brasil, inicialmente tratarei de abordar três situações que foram determi-
nantes na forma como foi conduzida a minha pesquisa de campo, que
servirão para preparar o leitor para questões posteriormente abordadas
aqui, e que norteiam algumas de minhas opções acerca do método ado-
tado para escrever este texto. Partindo do relato destas situações procuro
refletir sobre o que cada uma delas representou para a relação estabele-
cida com as pessoas com quem convivi.
Comecemos pelo princípio. Tendo defendido em fevereiro de
2002 minha dissertação de mestrado, no Programa de Pós-graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, sobre as relações
entre biologia e cultura no discurso público acerca do Projeto Genoma
Humano, eu já flertava, temerariamente, com o campo da antr~gia
da ciência. Mestrado concluído. Ingressei no doutorado, na mesma ins-
tituição, decidido a continuar na área, mas convicto, ainda que influen-
ciado por um ideal romântico de pesquisa malinowskiana, de que que-
ria.:fazer- ti:aba-lhe--de-Ga-mp?,v-i:v:er_o "anthropological blues" (DaMatta,
1981), "pegar malária", 1 enfim, ser submetido a todos os ritos de pas-
s_agem a que eu tinha direito como etnólogo. Mas como fazer isso com
antropologia da ciência? O máximo que conseguiria seria contaminar-

Ainda que tenha me esforçado para pegar uma "xistose" [esquistossomose], doença endê-
mica na região ribeirinha do leste de Minas Gerais, terminado o meu período em campo
tive que me resignar em ter adquirido apenas alguns bichos-do-pé.

21
-me por algum tipo de vírus mutante de laboratório, pensava eu. E isso consiste na marcação e ident
não era muito compatível à imagem idílica e desprendida construída coleta de fezes para controle e
em torno dos grandes etnógrafos. Bom, "vou estudar cientistas durante das áreas utilizadas pelos anirr
seu trabalho de campo", pensei. Como a ideia de acompanhar cientistas cioso do comportamento dos a
em seus laboratórios, em meio a pipetas e tubos de ensaio, não me fazia bilidade do ecossistema para a
muito a cabeça, O_J>tei por pesquisar cientistas cujo campo acontecia fora dos trabalhos fornece dados q
do laboratório ou em cuja atuação transpunha as bancadas. 2 pesquisas semelhantes com 01
De uma conversa acerca de meus interesses que alinhavam a von- amplas sobre teorias evolucior
tade de realizar trabalho de campo às questões das relações entre natu- Os "muriquis" ou "mono
reza e cultura, biológico e social, surgiram então os primatólogos. Foi Américas e ainda figuram cor
nessa época que conheci aquele que seria meu primeiro e principal con- população de muriquis pesqui
tato com o grupo que iria estudar: Jonas,3 brasileiro, professor visitante res de Mata Atlântica preserva
em uma instituição de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro. Ele havia, ros (Santo Antônio do Manh
recentemente, terminado seu doutorado em primatologia no exterior e "Matão" e "Jaó''. 8 Estes dois gr
acabara de ganhar um grant de pesquisa de uma fundação norte-ameri- regiões geográficas da fazenda
cana para estudar ecologia de primatas em Minas Gerais. Desta forma, e Jonas.
Jonas tinha verbas para gerir seu próprio projeto de pesquisa e contratar Aceitei o convite de Jona:
funcionários e estagiários. O projeto de Jonas estava inicialmente ligado que pesquisavam e residiam 1
ao de uma primatóloga norte-americana, Kira, que havia cerca de vinte A EBC na época em que pese
anos trabalhava com primatas na região estudando questões como com- quisas composto de alojamen
portamento e alimentação dos "muriquis-do-norte" [Brachyteles hipo- viveiro de mudas para replan1
xanthus] e trabalhando em prol da preservação desta espécie. Claros que fora transformada 1
Tanto Jonas como Kira trabalhavam com um tipo de pesquisa em (RPPN) Feliciano Miguel Abda
primatologia denominada "socioecologia de primatas''. 4 Este modelo é Em 2002, durante minh
calcado em pesquisas de acom anhamento e monitoramento de_p_rima.:_ alguns dos primatólogos quer
tas em longo pr<!_zo. A socioecologia entende que os fatores ecológicos, ocasião segui durante alguns ,
tais como o meio ambiente e a nutrição, são determinantes para as carac-
terísticas comportamentais das espécies (Strier, 1992) e o trabalho do 5
Os muriquis ou mono-carvoeiros a
primatólogo consistiria em coletar uma ampla gama de dados acerca da qui-do-norte) e Brachyteles arachm
6
"A reserva é marcada pela paisagem ,
alimentação e do comportamento dos primatas. A análise deste material
como floresta mesófila. Essa fisiono
geralmente integra o trabalho de botânicos, etólogos e bioquímicos, e sas bem marcadas, e constituída po1
do ano} e semi-caducifólias (que p
Pertencente aos domínios da Flores
Em artigo intitulado "Amostragem do solo da floresta Amazônica': Bruno Latour (2001), ção secundária devido a cortes sele
analisa a pesquisa de cientistas (botânicos e pedólogos) que transpôem práLicas e técnicas arroz que ocupavam a área hoje cot
de laboratório levando-as a seu trabalho de campo. 7
Distrito de Caratinga - MG.
3
Todos os nomes de personagens humanos aqui citados são fictícios.
• "São os córregos Jaó e Matão, que ta
' Tratarei da "socioecologia de primatas" com mais detalhes em capítulos posteriores. de muriquis da reserva: o "grupo d

22
e de laboratório, pensava eu. E isso consiste na marcação e identificação in loco de fontes alimentares, na
n idílica e desprendida construída coleta de fezes para controle da variação hormonal, no monitoramento
)m, "vou estudar cientistas durante das áreas utilizadas pelos animais, além de um acompanhamento minu-
10 a ideia de acompanhar cientistas cioso do comportamento dos animais na mata e da avaliação da sustenta-
~tas e tubos de ensaio, não me fazia bilidade do ecossistema para aquela população de primatas. O resultado
:ientistas cujo campo aconteçja fora dos trabalhos fornece dados que podem ser comparados aos obtidos em
anspunha as bancadas.2 pesquisas semelhantes com outros primatas embasando hipóteses mais
us interesses que alinhavam a von- amplas sobre teorias evolucionárias e ecológicas (Strier, 1992).
1s questões das relações entre natu- Os "muriquis" ou "mono-carvoeiros"5 são os maiores primatas das
1rgiram então os primatólogos. Foi Américas e ainda figuram como uma espécie ameaçada de extinção. A
seria meu primeiro e principal con- população de muriquis pesquisada por Jonas e Kira habita os 890 hecta-
onas,3 brasileiro, professor visitante res de Mata Atlântica preservada6 que compõem a Fazenda Montes Cla-
quisa do Rio de Janeiro. Ele havia, ros (Santo Antônio do Manhuaçu7) e divide-se em dois macrogrupos:
rado em primatologia no exterior e "Matão" e "Jaó". 8 Estes dois grupos de muriquis correspondem às duas
uisa de uma fundação norte-ameri- regiões geográficas da fazenda e são respectivamente estudados por Kira
1tas em Minas Gerais. Desta forma, e Jonas.
prio projeto de pesquisa e contratar Aceitei o convite de Jonas para conhecer o grupo de primatólogos
de Jonas estava inicialmente ligado que pesquisavam e residiam na Estação Biológica de Caratinga (EBC).
cana, Kira, que havia cerca de vinte A EBC na época em que pesquisa foi realizada era um centro de pes-
:ião estudando questões como com- quisas composto de alojamento, laboratório, centro de visitantes e um
riquis-do-norte" [Brachyteles hipo- viveiro de mudas para replantio, localizado dentro da Fazenda Montes
reservação desta espécie. Claros que fora transformada na Reserva Privada do Patrimônio Natural
1vam com um tipo de pesquisa em (RPPN) Feliciano Miguel Abdala.
,logia de primatas''. 4 Este modelo é Em 2002, durante minha primeira incursão ao campo, conheci
unento e monitoramento de prilllil= alguns dos primatólogos que no ano seguinte eu iria acompanhar. Nesta
! entende que os fatores ecológicos, ocasião s~gui durante ª1.guns dias Catarina_, u.ma b.iólog.a-/ pr:imatóloga
ão, são determinantes para as carac-
:cies (Strier, 1992) e o trabalho do 5 Os muriquis ou mono-carvoeiros agregam duas espécies: Brachyteles hipoxanthus (muri-
ma ampla gama de dados acerca da qui-do-norte) e Brachyte/es arachnoides (muriqui-do-sul).
6 ''A reserva é marcada pela paisagem da Floresta Estacionai Sernidecidual, também conhecida
,s primatas. A análise deste material como floresta mesófila. Essa fisionomia vegetal é condicionada por estações secas e chuvo-
)tânicos, etólogos e bioquímicos, e sas bem marcadas, e constituída por árvores perenifólias (que mantém a folhagem ao longo
do ano) e semi-caducifólias (que perdem parte da folhagem na seca)" (Veado, 2003:12-3)
Pertencente aos domínios da Floresta Atlântica, esta área possui grande parte como forma-
da floresta Amazônica': Bruno Latour (2001). ção secundária devido a cortes seletivos de madeira, pastagens e antigas lavouras de café e
pedólogos) que transpõem práticas e técnicas arroz que ocupavam a área hoje coberta por vegetação florestal (Dossiê da EBC).
campo. 7 Distrito de Caralinga - MG.
qui citados são fictícios. 8 "São os córregos Jaó e Matão, que também inspiraram os nomes dos dois principais grupos
1 mais detalhes em capítulos posteriores. de muriquis da reserva: o "grupo do Matão" e o "grupo do Jaó" {Veado, 2003:12).

23
que estudava o grupo de muriquis do "Matã,o" e trabalhava na pesquisa "meus pesquisados". Catarina fix,
de Kira. Jonas havia assumido recentemente o trabalho com o grupo do conhêd-da .g_1.1.~ ll.<JS permitisse retor
"Jaó" e àquela altura ainda estava ocupado abrindo trilhas na mata para ficamos andando em círculos dura
então iniciar o trabalho de observação dos primatas. precariamente, via rádio, com Jona1
que conseguíssemos sair da mata. C
O ANTROPÓLOGO CURUPIRA a menor ideia de onde estávamos, e
em torno das 16h30min decidimos
Catarina era reconhecida como uma das melhores guias na mata devido tara anteriormente e ir até a sede d
à sua dedicação ao trabalho com os 1nuriquis e sua experiência naque- famintos - pedimos informações se
las trilhas do "Matão". Ela estava acostumada - embora admitisse não gentilmente convidados a entrar p
gostar muito - a levar jornalistas e fotógrafos pela mata para ver os logo e "cara de pau" que se preze, ,
macacos. Pensei: "ótimo, terei a oportunidade de acompanhar mna das companheira a tiracolo. Depois de
melhores 9 primatólogas em ação!" Inician10s nossa caminhada e1n torno retornamos exaustos à EBC. Lá che:
das 7 horas da manhã e somente às 8h40m encontramos os primeiros Cícero (todos primatólogos da Es1
muriquis. Era a época do florescer da "mabea'' [Mabea fistulifera], cuja carismático, querido por todos e t
flor possui um pólen extremamente adocicado muito apreciado pelos acabado de chegar de uma "pelada·
muriquis, e por isso estes se deslocavam com muita frequência em busca bém tínhamos sido convidados, ma:
de novas fontes deste alimento. Esta época em particular, que vai de abril não foi possível comparecer.
a maio, é considerada pelos primatólogos do local um período bastante Naquela noite, durante o jan1
difícil e desgastante para acompanhar os muriquis. das gozações j_ie_Jodos. O fato de 1
~~-·""·"·"-
Retornando à 1ninha primeira incursão na mata seguindo primató- constrangimento para Catarina, pc
logos, ficamos, Catarina e eu, pouco tempo com os muriquis - que logo ria desde que ela havia chegado ali
se desvencilharam da nossa companhia. Decidimos, então, lanchar em curupira''. 10 Fiquei impressionado c
torno das 12 horas. Sentamos no topo de um morro e comen1os nossos iüa;~g1.1.Ínte já fazia parte dos com,
sanduíches e frutas. ConversamCls Pastante para''qut:b_rar O gelo''. esbo- me conheciam, na cidade mais pró,
çando alguns paralelo; entr_e_n~ssos trabalhos, dentre eles o tema da soli- fatos "extraordmários" nutriam as f.
dão do pesquisador no momento de sua pesquisa de campo, e lá pelas 14 No ano seguinte (2003), quai
horas Catarina comunicou-me: "Estamos perdidos''. Sorri diante daquela nuar meu trabalho de campo, perc
situação e respondi: "Não há problema. Nós temos um mapa da região, locaJ:Alguns não recordavam o m,
basta que usemos a sua bússola!" Catarina me respondeu dizendo que dos: "Você não é aquele que se pe
não tinha bússola, pois aquilo não era necessário já que jamais havia anti-herói, envergonhado e resigna
se perdido na mata. Voltamos a caminhar e depois de um tempo per- sim. Aos-poucos fui percebendo q,
cebi que havia um acesso ao pasto de uma fazenda vizinha, mas decidi campo, aquilo me havia sido de ai
me calar conservando o pressup()sto de não intcrfer_ir_ nas decisõ_es dos
10
Em alusão ao personagem lendário que l
9
Título atribuído e reconhecido pelo próprio grupo, segundo pude constatar através de derem. O curupira com seus pés inverfo
várias conversas. floresta,

24
'Matão" e trabalhava na pesquisa meus pesquisados': Catarina fixava-se em encontrar alguma trilha
nente o trabalho com o grupo do conhecida g_ue f!2~Rermitisse retornar à Estação. Resumindo a história,
ado abrindo trilhas na mata para ficamos andando em círculos durante toda a tarde, nos comunicando,
dos primatas. precariamente, via rádio, com Jonas, que iria nos resgatar de carro assim
que conseguíssemos sair da mata. Como nem Jonas e nem nós fazíamos
a menor ideia de onde estávamos, e naquela época do ano anoitecia cedo,
em torno das 16h30min decidimos descer através do pasto que eu avis-
as melhores guias na mata devido tara anteriormente e ir até a sede da fazenda. Lá chegando - sedentos e
LUriquis e sua experiência naque- famintos - pedimos informações sobre como retornar à Estação e fomos
;tumada - embora admitisse não gentilmente convidados a entrar para tomar um café. Como antropó-
otógrafos pela mata para ver os logo e "cara de pau" que se preze, aceitei prontamente e arrastei minha
unidade de acompanhar uma das companheira a tiracolo. Depois de um belo cafezinho e bolo mineiros,
iamos nossa caminhada em torno retornamos exaustos à EBC. Lá chegando, encontramos Jonas, Regina e
h40m encontramos os primeiros Cícero (todos primatólogos da Estação). Cícero era um sujeito muito
"mabeà' [Mabea fistulifera], cuja carismático, querido por todos e também muito brincalhão. Ele havia
:1docicado muito apreciado pelos acabado de chegar de uma "pelada" de domingo, a qual Jonas e eu tam-
n com muita frequência em busca bém tínhamos sido convidados, mas que em função do ocorrido na mata
oca em particular, que vai de abril não foi possível comparecer.
gos do local um período bastante Naquela noite, durante o jantar, Catarina e eu fomos o !!1otivo
os muriquis. ~as gozações de todos. O fato de ter se perdido na mata era razão de
:ursão na mata seguindo primató- constrangimento para Catarina, pois era a primeira vez que isso ocor-
:mpo com os muriquis - que logo ria desde que ela havia chegado ali; e eu era visto como o "antropólogo
1ia. Decidimos, então, lanchar em curupira':'º Fiquei impressionado com a repercussão do evento, que no
1 de um morro e comemos nossos
dia seguinte já fazia parte dos comentários de pessoas, que nem sequer
;tante para "quebrar o gcl_o': esbo- me conheciam, na cidade mais próxima. As notícias corriam rápido e os
1balhos, dentre eles o tema da soli- fatos "extraordinários" nutriam as fofocas locais.
ia ~s~sa de campo, e lá pelas 14 No ano seguinte (2003), quando retornei à Estação para conti-
10sye_rdidos': Sorri diante daquela nuar meu trabalho de campo, percebi que já [azia_parte do anedotário
a. Nós temos um mapa da região, local. Alguns não recordavam o meu nome, mas perguntavam intriga-
:arina me respondeu dizendo que dos: "Você não é aquele que se perdeu na mata com a Catarina?': Eu,
ra necessário já que jamais havia anti-herói, envergonhado e resignado com aquela fama, respondia que
inhar e depois de um tempo per- sim. Aos poucos fui percebendo que apesar da atrapalhada entrada no
uma fazenda vizinha, mas decidi campo, aquilo me havia sido de alguma forma útil. Ter protagonizado
de não interferir nªs deci_sões Q_Q~
'º Em alusão ao personagem lendário que faz os caçadores que adentram na mata se per-
, grnpo, segundo pude constatar através de derem. O curupira com seus pés invertidos desencaminha os humanos que invadem a
floresta.

25
um "causo" lo~ermitiu que me tornasse prontamente conhecido e O material etnográfico sobre
p,o ssibilito~onversa~ mais descontraídas com as r-essoas. Ao mesmo pre o resultado da atividad
tempo em que eu era inspiração para as piadas, também era visto com momento específico de sua t
de saúde e do contexto dado
alguma admiração e curiosidade, pois tinha ido a um lugar da mata até social que se encontra num
então pouco visitado: "No morro da mabéa, pra lá da taquara-virada 11 •• :'. transformação( ... ).
A essa altura, eu já me via "afetado': enredado no fluxo de informações
_ _ e relações que compunham o meu ca~o. Ao aceitar, ainda que de É desta forma que vejo a:
maneira involuntária e sem intenção, "ser afetado" por meus nativos, eu grafia como resultante vetorial ,
abria um z:iovo tipo de ~omunicação experimentando o pt:Q.Prio sistem-ª nativas, e do imponderável.
que ia estudar (Favret-Saada, 1990).
É importante frisar que o ocorrido não foi resultado de erro ou OBSERVANDO OBSERVADORE/
incapacidade da primatóloga, mas uma decorrência normal da intensa
Voltando das minhas primeira~
movimentação dos macacos e de nossa vontade de acompanhá-los. Pos-
<lido a retornar para uma estac
teriormente, conversando com Catarina a respeito, ela confessou ter se
preciso, então, formalizar a pn
sentido um pouco nervosa com o fato de estar sendo acompanhada por
que seria avaliado pelo admir
alguém que iria observá-la, e, segundo Jonas, esta poderia ser uma expli-
tinga, pelos proprietários da Fa
cação para o descaminho.
sadores-chefe: Jonas e Kira. Co
Esta primeira situação expõe alguns pontos com os quais me depa-
Inicialmente, fiquei preocupad
rei ao longo de todo o trabalho de campo. No que diz respeito à especi-
realizar um estudo de caso con
ficidade da pesquisa com cientistas, este evento tornava claro que meus
do local, aquele coordenado p<
colegas estavam acostumados a pesquisar e não ~erem_J)esguisados.
ti~as dad~ por Kira para o irg
Para lidar com esta realidade, OJ>tei por utilizar exclusivamente o méto~o
estas eram "boas para pensar"
de observa_ção P!!::.!icipante,, abandonando a ideia inicial de alia.Le.sJe à
nha: observar observador~s.
realização de _entrevistas pré-estruturadas. Assim sendo, o processo de
A resposta negativa de Kira
produção etnográfica a que me submeti assemelhava-se a um balão que
dentro do quadro dos four fieM
necessitava perder peso para levantar voo. Dia após dia, eu ia deixando
"iria atrapalhar o trabalho [de~
coisas para trás: laptop, gravador, livros ... Tudo isso era "peso morto"
que, mais tarde, ficou claro seu
mofando entre as paredes úmidas do meu quarto. Só restaram meus
"linha de antropólogos pós-m
cadernos azuis, uma caneta e a memória. Só assJm a etn2_grafia alçou
sentido, dando continuidade i
vo~. E como qualquer balão não dirigível, a etnografia dependia que os
vento, parecia que em certos e.:
ventos do acaso a guiass~n:i: por rumos incertos. Foi assim durante todo o
trabalho de campo, onde cheguei com hipóteses iniciais (destinos que eu
12
Refe.rência aos quatro campos consl
acreditava certos) além de alteridades a priori (portos seguros) e acabei nos EUA: Antropologia Cultural, LiJ
por visitar outras searas. Tal qual entende Seeger (1980:25): 13 Uma clara insinuação ao livro de De
descobri que para se trabalhar com
não é conveniente mencionar. Sob
11
Localidade longínqua dentro da região do "Matâo". acerca da produção da ciência.

26
ornasse prontamente conhecido e O material etnográfico sobre o qual a Antropologia trabalha é quase sem-
aídas_gim as Ressoas. Ao mesmo pre o resultado da atividade singular do pesquisador no campo, num
momento específico de sua trajetória pessoal e teórica, de suas condições
1 as piadas, também era visto com
de saúde e do contexto dado, e essa atividade é exercida sobre um grupo
s tinha ido a um lugar da mata até social que se encontra num certo momento de seu próprio processo de
11abéa, pra lá da taquara-virada 11.. :'. transformação( ... ).
enredado no fluxo de informações
ca~o. Ao aceitar, ainda que de É desta forma que vejo a situação de campo como dada, e a etno-
"ser afetadó' por meus nativos, eu grafia como resultante vetorial das ações do etnógrafo, das performances
experimentando o próprio sistema nativas, e do imponderável. J

rido não foi resultado de erro ou OBSERVANDO OBSERVADORES


na decorrência normal da intensa
Voltando das minhas primeiras incursões ao campo de pesquisa, e deci-
;a vontade de acompanhá-los. Pos-
dido a retornar para uma estadia mais prolongada no ano seguinte, era
ina a respeito, ela confessou ter se
preciso, então, formalizar a proposta através de um projeto de pesquisa
::, de estar sendo acompanhada por
que seria avaliado pelo administrador da Estação Biológica de Cara-
o Jonas, esta poderia ser uma expli-
tinga, pelos proprietários da Fazenda Montes Claros e pelos dois pesqui-
sadores-chefe: Jonas e Kira. Consegui o aval de todos, exceto da última.
uns pontos com os quais me depa-
Inicialmente, fiquei preocupado e questionei-me sobre a viabilidade de
mpo. No que diz respeito à especi-
realizar um estudo de caso com apenas um dos grupos de primatólogos
:ste evento tornava claro que meus
do local, aquele coordenado por Jonas. Contudo, ao avaliar as justifica-
iuisa~ e não a serem_pesquisados.
!ivas dadas por Kira para o impedimento de meu trabalho, percebi que
>r utilizar exclusivamente o método
estas eram "boas para pensar" a natureza da pesquisa a que me propu-
ando a ideia iniciaLde...aliar e.ste à
nha: observar observadores.
radas. Assim sendo, o processo de
A resposta negativa de Kira, primatóloga e antropóloga por formação
.eti assemelhava-se a um balão que
dentro do quadro dos four fields, 12 apoiava-se em sua convicção de que eu
· voo. Dia após dia, eu ia deixando
"iria atrapalha~rabaJho [de seus estagiários] com Rergyntas·: além do
rros... Tudo isso era "peso morto"
que, mais tarde, ficou claro seu temor de que eu pertencesse a uma certa
lo meu quarto. Só restaram meus
"linha de antropólogos pós-modernos que estudavam ciência". 13 Neste
11ória. Só assim a etnografia alçou
sentido, dando continuidade à imagem da etnografia como balão ao
gível, a etnografia dependia que os
vento, parecia que em certos casos balões etnográficos causavam grande
s incertos. Foi assim durante todo o
L hipóteses iniciais (destinos que eu
12
Referência aos quatro campos constituintes do currículo de graduação em Antropologia
s a priori (portos seguros) e acabei nos EUA: Antropologia Cultural, Linguística, Antropologia Biológica e Arqueologia.
:nde Seeger (1980:25): " Uma clara insinuação ao livro de Donna Haraway, Primate Visions (1989). A este respeito
descobri que para se trabalhar com primatólogos existem autores/antropólogos os quais
não é conveniente mencionar. Sobretudo, aqueles adeptos de uma visão construtivista
/latão''. acerca da produção da ciência.

27
temor. Possivelmente porque balões quando caem acesos podem causar a observação e o acompanhamento
incêndios difíceis de controlar. 14 entre primatólogo e primata na flor
Por ora me interessa dar maior destaque a uma terceira razão ale- das diferenças é que os macacos n<
gada contra o meu trabalho: esta dava conta de que e~eria um "indiyí- os prirnatólogos pretendem ou ignc
duo estranho na mata" e ~e os muriquls não me reconheceriam. Esta parceiros primatas. Esta disposição
interferenciano-comportamento dos muriquis, logo, afetaria a coleta de ção dos pro_cedimentos científicos e
dados dos primatólogos e, consequentemente, geraria um viés na minha O sistema que relaciona obser
própria pesquisa. e primatas pode ser expresso em et
Felizmente, Jonas permitiu que eu acompanhasse todas as ativida- ainda não haviam sido contatados, e
des de seu grupo (Projeto Jaó), o que tornou viável minhas idas à mata. em "correr atrás dos macacos" - vist<
Entretanto, as observações feitas por Kira sobre o meu trabalho não - até acostumá-los à companhia do
haviam se esgotado. Durante minha estadia na EBC tive a oportunidade é extremamente cansativa para os p<
de conhecê-la pessoalmente durante uma de suas viagens anuais ao Bra- terra17 os macacos (muito mais hát
sil para monitorar o trabalho de seus estag_iários. 15 Eu já estava há alguns copa das árvores. Esse momento t,
meses .residindo na Estação, com a pesquisa em andamento, quando os macacos, que frequentemente ai:
conversamos algumas vezes. Kira explicou-me o porquê de sua negativa
Esta reação dos primatas à ação d◄
afirmando que eles "já tinham problemas suficientes para arcar ainda
animais habituam-se à presença e
com uma pessoa fazendo perguntas, entrevistas e aplicando questioná-
narrativas de contato, "quan__9.o_ elei
rios com seus pesquisadores na mata''. Entretanto, ela mostrou-se sur-
grupo" de macacos. A partir da não
presa diante do que vinha observando, dizendo que, ao contrário do que
nova fase no trabalho. Assumindo
ela pensava, eu "trabalhava como eles: observando''. Esta situação dava
tólogos observam os macacos aginc
conta de um problema e de uma constatação. O problema dizia respeito
sível agora cada ação dos primata5
a uma limitação inusitada da experiência etnográfica: minha presença,
que pudesse "contaminar" os dado
,., tal qual afirmavam meus pesquisad;;s, era mais invasiva aos pesquisados
gos este é o modelo ideal: observai:
deles do que aos meus próprios. Este dilema remete ao que chamarei de
agindo como se nunca tivessem sic
Jstratégias do olhar.
que estão sobre as árvores, se é qu 1
Quando primatólogos estão na mata, observando os macacos, têm
ação, após o contato, torna-se uma
por princípio não interagir com seus objetos de pesquisa. Esta não inte-
fazia antes, mas agora com alguém
ração tem como desejo - ainda que utópico - a invisibilidade dos obser-
vadores. Este interesse está diretamente ligado à intenção de deixar os que os macacos continuam observa
macacos inteiramente à vontade em seu habitat natural. A ideia de efi- de habituação / pacificação dos ani
cácia dos dados científicos coletados está condicionada à crença de que reconheçam aqueles que não lhes o
os macacos devem ter uma performance natural. Macacos devem ser
macacos, como se estivessem sozinhos na mata; mas de fato, durante
16
Procedimento conhecido como "habituai
17
Muitas vezes através de mata fechada por
" O trabalho sob a perspectiva conservado
" Não seria esse o caso das chamadas "guerras da ciência"? (que não lhes oferecem risco) de caçadc
15
Kira era professora em uma universidade estrangeira. plica-se quando é aclicionada uma terceil

28
uando caem acesos podem causar a observação e o acompanhamento científico, eles não estão. A relação
entre primatólogo e primata na floresta é mutuamente percebida. Uma
estaque a uma terceira razão ale- das diferenças é que os macacos notam que estão sendo observados e
conta de que eu seria um "indiví- os primatólogos pretendem ou ignoram que foram percebidos por seus
quis não me reconheceriam. Esta (parceiros primatas. Esta disposição em não ser visto faz parte da execu-
nuriquis, logo, afetaria a coleta de ção dos procedimentos científicos em primatologia.
emente, geraria um viés na minha O sistema que relaciona observar e ser observado a primatólogos
e primatas pode ser expresso em etapas. No início, quando os primatas
u acompanhasse todas as ativida- ainda não haviam sido contatados, o trabalho dos primatólogos consistia
tornou viável minhas idas à mata. em "correr atrás dos macacos" - visto que eles fogem da presença humana
Kira sobre o meu trabalho não - até acostumá-los à companhia do pesquisador. 16 Esta fase do trabalho
;tadia na EBC tive a oportunidade é extremamente cansativa para os pesquisadores, que têm que seguir por
ma de suas viagens anuais ao Bra- terra 17 os macacos (muito mais hábeis e velozes) locomovendo-se pela
stagiários.15 Eu já estava há alguns copa das árvores. Esse momento também é bastante "estressante" para
>esquisa em andamento, quando os macacos, que frequentemente ameaçam seus perseguidores bípedes.
icou-me o porquê de sua negativa Esta reação dos primatas à ação dos primatólogos tem fim quando os
-mas suficientes para arcar ainda animais habituam-se à presença dos cientistas ou, segundo algumas
ntrevistas e aplicando questioná- narrativas de contato, "quando eles [os primatólogos] são aceitos pelo
'. Entretanto, ela mostrou-se sur-
grupo" de macacos. A partir da não reação dos macacos tem início uma
dizendo que, ao contrário do que
nova fase no trabalho. Assumindo uma postura de não ação, os prima-
: observando". Esta situação dava
tólogos observam os macacos agindo "naturalmente" como se fosse pos-
1tação. O problema dizia respeito
sível agora cada ação dos primatas arborícolas não conter uma reação
•eia etnográfica: minha presença,
que pudesse "contaminar" os dados. Do ponto de vista dos primatólo-
~ra mais invasiva aos pesquisados
gos este é o modelo ideal: observar, sem serem percebidos, os primatas
üema remete ao que chamarei de
agindo como se nunca tivessem sido contatados. Do ponto de vista dos
que estão sobre as árvores, se é que é possível inferir acerca deste, toda
1ta, observando os macacos, têm
ação, após o contato, torna-se uma reação, visto que se faz tudo o que se
Jjetos de pesquisa. Esta não inte-
fazia antes, mas agora com alguém te olhando. É importante deixar claro
pico - a invisibilidade dos obser-
que os macacos continuam observando os primatólogos, pois o processo
·e ligado à intenção de deixar os
de habituação / pacificação dos animais pressupõe que estes percebam e
u habitat natural. A ideia de efi-
;tá condicionada à crença de que ,reconheçam aqueles que não lhes oferecem perigo. 18
1ce natural. Macacos devem ser
•• Procedimento conhecido como "habituação''.
; na mata; mas de fato, durante
17
Muitas vezes através de mata fechada por cipós, "capim-navalha'; "unha-de-gato" etc.
18
O trabalh o sob a perspectiva conservacionisla intui q ue os macacos distinguam cientistas
ciência"? (que não lhes oferecem risco) de caçadores (ameaça em potencial). Esta equação com-
1geira. plica-se quando é adicionada uma terceira variável: o turismo ecológico.

29
E o etnógrafo, onde estaria neste triângulo? Traduzindo/ etnogra- A necessidade de sedimentar o
fando as ações de seus pesquisados ou causando distúrbios na tradução sição ao das ciências naturais criot
/ Ciência dos pesquisadores? Talvez eu não fizesse uma "metaetnografià', elas. Um deles diz respeito à diferer
tampouco uma "metaciêncià', mas devo admitir que às vezes, no meio sador) e objeto: alega-se que o cient
da mata, pensava sobre aquela situação: lá estava ~u_(antropólogo e pri- objetividade com aquilo que estuda
mata) observando biólogos (primatas) observando prigrntas. A ordem ciências sociais é sempre subjetiva. <
das classificações complicava ainda mais o sistema: seria o antropó- tistas naturais não pode contestar si
logo um primata porque biólogos, igualmente primatas, o classificaram se repete na relação entre pesquisad
assim? Seria o antropólogo algo mais que um "metaprimatólogo", pois (DaMatta, 1981). Entretanto, consi<
observava primatas que observavam primatas? Estariam os primatas objetivo destas relações, supostame1
biólogos para o primata antropólogo assim como os primatas estavam Ainda que não se vejam "pensadm
para os biólogos? O que estariam pensando os primatas, da copa das diretamente com as questões do ' <
árvores, sobre tudo aquilo? 19 Desconsiderando as literatices que tal qual cientistas naturais pensam sobre si F
acredita Viveiros de Castro, são ingredientes que acrescentam diversão objetos. Creio que sim. Este pensan
ao leitor e ao autor não nutro nenhuma ilusão de que estas representem um posto unilateral nesta relação, se
as indagações de "meus" primatólogos, mas sim, que seja simplesmente a vam em si algum tipo de "agência" (
leitura das sensações deste etnógrafo (Viveiros de Castro, 1992). com seus parceiros humanos. É sob1
A procura pela objetividade dos dados, pela não influência, a busca a compreensão naturalista acidenta
pela Qaturali~ad~ ações dos objetos de estudo (primatas e primatólo- tura - que pretendo situar a minh
gos) evidenciava progressivamente a subjetividade das relações entre pes- pontos de vista de pesquisadores e e
quisador e objeto. De um problema objetivo entre termos relacionados O grupo de primatólogos com
emerge a constatação da subjetividade desta relação. Cada primatólogo mente modelos para falar de uma n
tinha uma forma particular de relacionar-se com seu objeto de estudo. uma ancestralidade comum, nem t::
Lidar com os macacos diariamente implicava em estabelecer ~lações nização ou culturalização de primat
com eles que passavam pelo crivo do cientificismo, mas muitas vezes deste grupo, a noção de "animalidad1
não se mostravam tão objetivas quanto se esperava delas. Absorvendo a eles [pesquisadores] estabelecem co1
noção de "tradução com pequenas traições" (Velho, 2002), a tradução da tam sobre si. Inversamente, esta rela,
Ciência parecia abrir espaço para pequenas traições subjetivas no curso animais. As relações entre pesquisa<
do trabalho dos cientistas. Pequenas traições do cotidiano articulam-se a reza e cultura, neste caso, confundt
uma "Verdade" epistemológica residente na grande empresa da Ciência. pesquisadores dão nomes humanos ;
sonalidades individuais e específica
1
• Uma interessante leilura acerca da não reação dos macacos me foi oferecida pelo colega como seus os gestos de um macaco;
antropólogo Jayme Aranha. Inferindo sobre o ponto de vista dos macac~, a floresta seria nhece" um primatólogo a ponto de 1
com posta de diversos seres animados presentes no cotidiano dos macacos. Os observadores
humanos (primatólogos), por sua vez, assegurados na categoria de não predadores, prova- quando se cria um "sujeito-objeto" i
velmente n ão seriam percebidos (pelos muriquis) com o uma ordem muito diferente dos Um exemplo interessante de i
pássaros, insetos e m esmo árvores que os cercam. Tendo a concordar com este "perspcc-
tivismo animal", embora reconheça ser difícil suplantar nosso raciocínio antropocêntrico. primatas não humanos é apresenta

30
e triângulo? Traduzindo / etnogra- A necessidade de sedimentar o campo das ciências sociais em opo-
,u causando distúrbios na tradução sição ao das ciências naturais criou diferenciais epistemológicos entre
u não fizesse uma "metaetnografia': elas. Um deles diz respeito à diferença na relação entre sujeito (pesqui-
,evo admitir que às vezes, no meio sador) e objeto: alega-se que o cientista natural constrói uma relação de
ão: lá estava ~~(antropólogo e pri- objetividade com aquilo que estuda. Em contrapartida, esta relação nas
lS) observando primatas. A ordem ciências sociais é sempre subjetiva. Ou seja, o objeto de estudo dos cien-
mais o sistema: seria o antropó- tistas naturais não pode contestar seus pesquisadores, fato este que não
;ualmente primatas, o classificaram se repete na relação entre pesquisador e pesquisado nas ciências sociais
is que um "metaprimatólogo", pois (DaMatta, 1981 ). Entretanto, considero importante questionar o status _
n primatas? Estariam os primatas objetivo destas relações, supostamente "objetivas" das ciências naturais.
) assim como os primatas estavam Ainda que não se vejam "pensados" por seus objetos, e confrontados
•ensando os primatas, da copa das diretamente com as questões do "outro", seria relevante perguntar se
siderando as literatices que tal qual cientistas naturais pensam sobre si próprios através do contato com seus
:edientes que acrescentam diversão objetos. Creio que sim. Este pensamento reflexivo não estaria restrito a
ma ilusão de que estas representem um posto unilateral nesta relação, se considerarmos que os objetos reser-
>s, mas sim, que seja simplesmente a vam em si algum tipo de "agência'' (Gell, 1998) que os permite interagir
, (Viveiros de Castro, 1992). com seus parceiros humanos. É sobre este tipo de relação que corrompe
dados, pela não influência, a busca a compreensão naturalista ocidental - dicotômica entre natureza e cul-
os de estudo (primatas e primatólo- tura - que pretendo situar a minha abordagem acerca dos diferentes
subjetividade das relações entre pes- pontos de vista de pesquisadores e objetos.
objetivo entre termos relacionados O grupo de primatólogos com que trabalhei não procura explicita-
de desta relação. Cada primatólogo mente modelos para falar de uma natureza humana advinda da ideia de
ionar-se com seu objeto de estudo. uma ancestralidade comum, nem tampouco estuda processos de homi-
implicava em estabelecer relações nização ou culturalização de primatas. No entanto, no discurso informal
do cientificismo, mas muitas vezes deste grupo, a noção de "animalidade" humana é percebida na relaçã1> que
1to se esperava delas. Absorvendo a eles [pesquisadores] estabelecem com o~prirnatas que estudam e a proje-
aições" (Velho, 2002), a tradução da tam sobre si. Inversamente, esta relação também projeta o "humano" nos
quenas traições subjetivas no curso @imais. As relações entre pesquisador e obj~to, hQm~In_e_animal,_natu-
traições do cotidiano articulam-se a reza e cultura, neste caso,confundem-se. A confusão acontece quando
!nte na grande empresa da Ciência. pesquisadores dão nomes humanos aos seus animais atribuindo-lhes per-
sonalidades individuais e específicas; quando seres humanos entendem
çâo dos macacos me foi oferecida pelo colega como seus os gestos de um macaco; quando um objeto de estudo "reco-
; o ponto de vista dos macacos, a floresta seria
nhece" um primatólogo a ponto de não mais fugir dele ou ameaçá-lo, ou
,tes no cotidiano dos macacos. Os observadores
:urados na categoria de não predadores, prova- quando se cria um "sujeito-obLeto" influenci!vel mediante contato.
,riquis) como uma ordem muito diferente dos Um exemplo interessante de intersubjetividade entre humanos e
:ercam. Tendo a concordar com este "perspcc-
il suplantar nosso raciocinio antropocêntrico. primatas não humanos é apresentado no trabalho de Loretta Cormier,

31
"Kinship with Monkeys" (2003), que aborda as relações simbólicas e eco- ele. Isso pode impor limitações ou o
lógicas entre os Guajá e os macacos que coabitam a floresta amazônica. minhamento da pesquisa dependerá
A autora vê semelhança entre o olhar dos Guajá e o dos primatólogos no grafo em perceber, incorporar ou re_
que concerne aos objetivos de ambos: _9lhar os primatas não humanos fruto da relação do etnógrafo com ca
para entender a si prÓP.!:ÍO. De acordo com Cormier, tanto os primató- isso é recolocar mesas na varanda.2 1 <
logos quanto os Guajá reconhecem as similaridades físicas e compor-
(...) não é apenas ele [o antropólc
tamentais entre humanos e primatas não humanos e creditam isso aos universo cultural do grupo no qu.
seus próprios construtos culturais. A despeito das diferenças que regem seu sistema de classificação para
as ontologias ameríndia, "animista", e ocidental, "naturalistà' (Descola, 'estrangeiro' em uma "pessoa de
1992; Viveiros de Castro, 2002b ), o trabalho de Cormier acena para um reconhecido.

desejado diálogo simétrico entre dois campos aparentemente distantes: a Mesmo depois de ter sido aceit,
etnologia indígena e a antropologia da ciência e tecnologia. de que cada uma das pessoas com ,
nião própria sobre quem eu era, e s
ROUPA SUJA NÃO SE LAVA EM CASA belecíamos uma relação particular.
"professor': "espião': "companheiro ,
Ser reconhecido pelas pessoas cujas vidas pesquisamos é importante em
histórias''. Pelos primatólogos fui vis
qualquer tipo de trabalho, mas, sobretudo nos estudos de caso, onde o
logo humano': "conselheiro': "incon'
universo de pesquisados em geral é reduzido, a percepção mútua torna-se
sinuca e cervejà: "o homem dos pr
bastante evidente. O que pode ser visto como múltipla identidade do
étnicas" e "o maluco que vem estuda
etnógrafo pode também ser entendido como uma "identidade fluidà'
além de angariar definições como "te
deste. Tenho certeza de que cada uma das pessoas com quem eu convivi
com gente" e o "que lê muito" como
em campo tinha uma opinião própria e uma concepção pessoal do que
ainda outras, foram formas como el
eu fazia. Assim como eu tinha um imaginário e hipóteses elaboradas
çaram a manter as particularidades
sobre eles, eles também tinham as suas sobre mim.2º Creio que o et nógrafo
Contudo, toda esta pluralidade era s
que fui em campo é, em certa medida, muito mais fruto da intervenção
que os primatólogos me apresenta\
dos meus interlocutores e da construção da pessoa e da imagem que eles
fazendo uma pesquisa na área de an
exigiram de mim, do que da proposta que eu tinha para a minha per-
O reconhecimento como "pes
formance em campo. Neste sentido, o~grafo em campo é traduzid.Q_
varo e frequentavam o local, embor
po.J _s~us "nativQ§'.'._e, se a etnografia for tradução, não passa da tradução
rentes, como segue.
de uma experiência em que ele próprio é traduzido de várias f~mas por
Tão logo cheguei à Estação pr
várias pessoas. Por mais que o etnógrafo deseje ser visto de determinada
para mata com os primatólogos. F
forma pelos outros, ele sempre será o conjunto de visões dos outros sobre
21
Referência ao que se convencionou chan
20 "(... ) O segundo grupo de questões sobre o trabalho de campo de um pesquisador deve início do século XX, onde antropólogos e
gravitar em torno de respostas e perguntas como: 'Por que lhes foi importante responder balho de campo, recebiam seus informan
as suas perguntas?: 'Por que foram eles tão pacientes?: 'O que os fez aceitá-lo?' e 'O que é alojamentos (Kuper, 2000) e (Stocking Jr,
que representava para eles?" (Secger, 1980:26). 22 Referência ao meu desempenho, pífio, n,

32
ele. Isso pode impor limitações ou conferir privilégios, mas o bom enca-
rninh3:IDento da pesquisa dependerá, sobretudo, da flexibilidade do etnó-
grafo em perceber, incorporar ou rejeitar estas dádivas. Dádivas que são
fruto da relação do etnógrafo com cada indivíduo seu pesquisado. l_gnorar
isso é recolocar mesas na varanda.21 Como explica Silva (2000: 88):

(... ) não é apenas ele [o antropólogo] que procura familiarizar-se com o


universo cultural do grupo no qual se insere. O grupo também mobiliza
seu sistema de classificação para tornar aquele que inicialmente era um
'estrangeiro' em uma "pessoa de dentro", isto é, um sujeito socialmente
reconhecido.

Mesmo depois de ter sido aceito como "pesquisador" tenho certeza


de que cada uma das pessoas com quem eu convivia possuía uma opi-
nião própria sobre quem eu era, e sobre o que eu fazia ali, e assim esta-
belecíamos uma relação particular. Fui entendido pelos mateiros como
"professor': "espião': "companheiro de pescaria" e "o que gosta de ouvir
histórias''. Pelos prirnatólogos fui visto como "repórter", "psicólogo': "etó-
logo humano': "conselheiro': "inconveniente': "sombra", "companheiro de
sinuca e cervejà: "o homem dos programas de índio e das experiências
étnicas" e "o maluco que vem estudar a gente (mais maluco do que nós!)";
além de angariar definições como "toco de braúnà'22, "aquele que sabe lidar
com gente" e o "que lê muito" como criam os funcionários. Todas essas, e
ainda outras, foram formas como eu fui percebido no campo que me for-
çaram a manter as particularidades nas relações interpessoais cotidianas.
Contudo, toda esta pluralidade era substituída pela recorrente forma com
que os prirnatólogos me apresentavam: "- Este é o Guilherme, que está
fazendo uma pesquisa na área de antropologia aqui na reservá'.
O reconhecimento como "pesquisador" veio de todos que habita-
vam e frequentavam o local, embora este tenha se dado de maneiras dife-
rentes, como segue.
Tão logo cheguei à Estação pretendia etnografar o local antes de ir
para mata com os primatólogos. Fazendo isto eu teria uma boa noção

21 Referência ao que se convencionou chamar de "antropologia de varanda", produzida no


início do século XX, onde antropólogos como Rivers, Haddon e Seligman, durante o tra-
balho de campo, recebiam seus informantes "nativos" sentados à mesa na varanda de seus
alojan1enlos (Kuper, 2000) e (Stocking Jr, 1983).
22
Referência ao meu desempenho, pífio, nas peladas.

33
das pessoas que circulavam por aquele espaço, enquanto os primatólogos com uma das senhoras para que lavas
saíam em busca de seus macacos. Quem eram aquelas pessoas (funcio- ainda não sabia é que entrando no ci
nários, visitantes, moradores)? Quais eram as suas funções? Que tipos de bém acabava de entrar para o rol do
relações mantinham com aquele lugar e com os outros que ali estavam? começou a figurar no quadro-negro
Procurando respostas para essas perguntas tracei um esboço das redes .9-e foi tornando-se cada vez mais fácil.
socialidade locais. Todavia, observei uma grande dificuldade em ter acesso que sujar a roupa significava~
a conversas com duas funcionárias que faziam a manutenção da casa. No bém a falta de tempo para lim_E_á-la.:
início era evidente o estranhamento daquelas senhoras a meu respeito: os "pesquisadores" da EBC. Eu acab,
''.Afinal, quem será este que chegou, dorme até tarde e não vai para a mata no processo de "adestramento do an1
ver macaco?!" Eu sentia que esta dúvida caminhava para uma descrença dente que ser visto como pesquisa<
acerca da seriedade do meu trabalho, pois "pesquisadores" estudavam na com o passar dos dias, mas credito a
mata e não ficavam "bisbilhotando" e anotando durante as convers_as no "briga de galos" (Geertz, 1989a) parti
café-da-manhã. Desta forma, achei melhor mudar isto de alguma maneira taneamente urna relação contratual e
que adquirisse credibilidade junto a elas sem passar-lhes uma falsa ima- nente fundamental ao trabalho de ca
gem do que eu fazia. Pensei muito. Tentei explicar-lhes através de conver- do imponderável, deve-se di~or de t
sas, mas logo vi que não seria através da retórica que me veriam como mais do que para usá-lo. A etnograf
"pesquisador''. Isso só seria possível se eu fizesse algo enquanto tal. Tentei bucólica viagem com algumas turbu
diversas coisas que iam da imitação mais simplória (usar colete, comprar lembrar o porquê de estar ali. Ao fi
perneira e facão) a exercitar a "língua nativa" (usando todos os jargões ordenados do que nos foi significativ
primatológicos que ouvia). Nada funcionou. Tendo disposto as minhas impr
Naquelas primeiras semanas eu costumava ficar a maior parte do imaginavam segundo seus pontos de
dia na Estação e tinha tempo suficiente para lavar minhas roupas. Eu como eu pretendi posicionar o meu I
era o único residente que fazia isso. Certo dia estava sentado, entediado, Diante da curiosidade dos mem
no sofá da sala frente a um quadro-negro que continha os nomes de culdade em explicar e tornar compn
todos os moradores da casa com números a eles associados. Perguntei que eu fazia, decidi optar por uma ,
a uma das senhoras do que se tratava. Ela respondeu que aquilo era o tos: os primatas "deles" e os "meus" f
controle do número de peças de roupa dos residentes lavadas por elas. brincadeira, mas foi associando inici,
Sendo assim, ao término de cada mês as pessoas pagavam a elas a quan- ção ao deles que me fiz inteligível e pt
tia referente ao número de peças limpas. que pontuam as relações intersubjeti
Além do nome inscrito no quadro da sala, cada morador tinha sua O princípio ideal de observação
própria sacola de roupa suja personalizada pendurada no banheiro, onde ferências do pesquisador sobre seus F
eram depositadas as peças a serem recolhidas e limpas pelas senhoras. as técnicas de sistematização dos dad
Apenas eu estava fora deste circuito. cias eram bem distintas. Apesar das e
Decidi arriscar, e admito que foi um golpe de sorte impulsionado campo não continham "scans" ou "
por uma boa dose de preguiça de ficar à beira do tanque. Fui para a
cidade comprar sabão em pó e amaciante de roupas e na volta acertei " Metodologias de coleta de dados em campc

34
com uma das senhoras para que lavasse também a minha roupa. O que eu
ainda não sabia é que entrando no circuito da lavagem de roura eu tam-
bém acabava de engar_2ªra o rol dos "pesquisadores': Logo meu nome
começou a figurar no quadro-negro e o diálogo com aquelas senhoras
foi tornando-se cada vez mais fácil. Com o tempo, fui compreendendo
que sujar a roupa significava estar trabalhand~ o que justificava tam-
bém a falta de tempo para limQ_á-la. Exatamente como procediam todos
os "pesquisadores" da EBC. Eu acabara de aprender mais um comando
no processo de "adestramento do antropólogo" (Seeger: 1980:31). É evi-
dente que ser visto como pesquisador foi uma condição consolidada
com o passar dos dias, mas credito a este evento, sem reificá-lo, a minha
"briga de galos" (Geertz, 1989a) particular. Este evento que expõe simul-
taneamente uma relação contratual e simbólica evidencia outro compo-
nente fundamental ao trabalho de campo do etnógrafo. Além da sorte e
do imponderável, deve-se dispor de tempo. É preciso ter tempo a perder,
mais do que para usá-lo. A etnografia não pressupõe atalhos, mas uma
bucólica viagem com algumas turbulências pelo caminho <}_l!_e te fazem
lembrar o porquê de estar ali. Ao fim do trajeto nos restam os relatos
ordenados do que nos foi significativo: turbulências, insights.
Tendo disposto as minhas impressões a respeito de como eles me
imaginavam segundo seus pontos de vista, resta agora falar um pouco de
como eu pretendi posicionar o meu ponto de vista acerca deles.
Diante da curiosidade dos meus interlocutores de campo e da difi-
culdade em explicar e tornar compreensível para eles o tipo de trabalho
que eu fazia, decidi optar por uma estratégia de aproximação de obje-
tos: os primatas "deles" e os "meus" primatas. Tudo começou como uma
brincadeira, mas foi associando inicialmente o meu método de observa-
ção ao deles que me fiz inteligível e pude, então, pensar em aproximações
que pontuam as relações intersubjetivas entre pesquisadores e objetos.
O princiPio ideal de observação, que pretendia minimizar as inter-
ferências do pesquisador sobre seus pesquisados, era semelhante. Porém,
as técnicas de sistematização dos dados e de administrar estas interferên-
cias eram bem distintas. Apesar das dúvidas deles, minhas cadernetas de
campo não continham "scans" ou "focais",23 tampouco eu me ocupava

23
Metodologias de coleta de dados em campo utilizadas por biólogos.

35
em preencher etogramas 24 para depois metamorfosear gestos em núme- i;ôes de alteridade presentes durante o
ros, números em planilhas, planilhas em artigos científicos, artigos em ,;u111u sujeito é a tônica do ofício de ,
palestras, e palestras em verbas para pesquisa. Mas, então, o que eu fazia possível encontrar etnografias nas qu
e como eu fazia? vê como sujeito. A crença na neutral
A desconfiança e a curiosidade acerca do meu trabalho foi uma levada as suas últimas consequências,
tônica no início da pesquisa. Este fato em princípio me incomodava, {) objétifj:ca. Um dos grandes mérito,
pois eu não sabia até que ponto explicar o que eu fazia poderia auxiliar S !i lmtropologia foi chamar a atenção ]
ou prejudicar influenciando nas ações daquelas pessoas. Parecia ser mais contexto de produção etnográfica. To1
fácil justificar minha pesquisa às agências de fomento que aos primató- significa pressupor que ambos os seus
logos. E1n determinado momento, decidi encarar os fatos como eram: personagens ativos dentro de um cont
s~ eles interessavam-se tanto por mim, isso não poderia ser descartado. Ao decidir e:,çplorar as semelhar
Esse interesse deveria ser significativo, e se não fosse importante, ao éerta simetria das práticas científicas,
menos relevante seria para eles. Para o bem ou para o ma] da minha pes- .<}~lslféón1ffieu~-ipt~rloç11tores de. cam
quisa - até hoje não cheguei a nenhuma conclusão - optei por assumir <procuro me posicionar como um "i1
que fazia um trabalho de campo elevado a uma dupla potência: o campo profundanientecom os outrospesqui
do campo, o observador do observador, o metaprimata. 25 d~r ênfase ao ~ará1:er posicional e nã
A tendência pós-moderna, que alcançou grande destaque nos círcu- eu quanto eles sabíamos que pertencí
los teóricos de nossa disciplina a partir da década de 1980, levantou diver- 1~ação ~e deu sob a alcunha de "pe,
sas frentes de reflexão acerca do ofício do antropólogo. O registro da sub- >i~!1,J1l!~ttªº•··"m.i11-imo m)íltiplo cc
jetividade do etnógrafo começa a ser um ponto importante dentro de sua ,'.foi sendo aceito como "mais um pes,
análise, sendo a etnografia vista como um tipo específico de narrativa na Desde o início eu buscava a neutrali,
qual a realidade relatada é, antes de qualquer coisa, o reflexo de determi- visto como um elemento estranho. Já
nado olhar sobre o mundo. O antropólogo, a partir de então, posiciona-se a pensar que o ato de pesquisar press1
como um sujeito ativo, um agente que observa e constrói estórias, que intencionalidade do pesquisador/suj<
não podem e ne1n devem ser tratadas como ficcionais, 1nas como uma objeto (-sujeito). Uma parceria.
forma muito particular de descrever a realidade. A concepção de "etno-
grafia como narrativa" (Bruner, 1986; Marcus, 1994; Rabinow, 1986) coa- .ANTROPOLOGIA DA APROXIJ\<
dunada com a ideia do "antropólogo como autor" (Geertz, 1989b) situa o
Se uma das hipóteses com as quais
p_esqu!sador ~omg um ageµte ativo no relato de sua própria ex_peri~nc_!a.
primatólogos entendiam seus objet,
Entretanto, o que poderíamos chamar de subjetivação do etnógrafo tam-
se projetavam sobre eles, pensei até
bé1n diz respeito à forma como este se posiciona em campo diante seus
aplicar a mim e, assim, ajudar a res,
pesquisados. Durante a pesquisa etnográfica encontramos interlocutores
gia, como lidar com os anseios de
privilegiados, que trazem em seu discurso dimensões que refletem rela-
w Segundo Marilyn Strathern "(., .) anthropol
:.1 Planilhas utilizadas no esludo dos hábitos dos animais. be decíded by whether they call themselves .i\
li
Expressão cunhada pelo saudoso colega Mario Guimarães Jr. durante um jantar cm sua in Essex; it is decided by the relationship be
residência. and how peopk organíze knowledge about t.
ções de alteridade presentes durante o trabalho de campo. Ver o "outro"
como sujeito é a tônica do ofício de antropólogo, todavia, ainda hoje é
possível encontrar etnografias nas quais o próprio antropólogo não se
vê como sujeito. A crença na neutralidade do pesquisador em campo,
levada as suas últimas consequências, não só anula o antropólogo como
o objetifica. Um dos grandes méritos da tendência pós-moderna para
a antropologia foi chamar a atenção para as relações intersubjetivas no
contexto de produção etnográfica. Tomar por intersubjetiva essa relação
significa pressupor que ambos os seus termos, "nativos" e etnógrafos, são
personagens ativos dentro de um contexto de contato e interação.
Ao decidir explorar as semelhanças dos nossos Qfícios, buscando
certa simetria das práticas científicas, eu preten~ia ver facilitado o diá-
k~go com meus interlocutores de campo. É a partir do momento em que
procuro me posicionar como um "igual" que com~ o a interagir mais
profundamente com os outros pesquisadores.26 Contudo, é fundamental
dar ênfase ao caráter posicional e não imanente desta igualdade: tanto
eu quanto eles sabíamos que pertencíamos a "clãs" diferentes. Esta apro-
ximação se deu sob a alcunha de "pesquisador". O fato de estar fazendo
pesquisa era o "mínimo múltiplo comum" entre primatólogos e eu, e
foi sendo aceito como "mais um pesquisador" que a simetria se impôs.
Desde o início eu buscava a neutralidade, mas até este momento eu era
visto como um elemento estranho. Já, optando pela aproximação, tendo
a pensar que o ato de pesquisar pressupõe uma interação que relaciona a
intencionalidade do pesquisador/sujeito (-objeto) à cumplicidade de seu
objeto (-sujeito). Uma parceria.

UMA ANTROPOLOGIA DA APROXIMAÇÃO

Se uma das hipóteses com as quais eu trabalhei dava conta de que os


primatólogos entendiam seus objetos de pesquisa, na medida em que
se projetavam sobre eles, pensei até que ponto isso também poderia se
aplicar a mim e, assim, ajudar a resolver a questão prática que me afli-
gia: como lidar com os anseios de nossos objetos de pesquisa, que de
26
Segundo Marilyn Strathern "(. ..) anthropologists are at home qua anthropologists, is not to
be decided by whether they cal/ themselves Malay, belong to lhe Travellers or have been bom
in Essex; it is decided by the relationship between their techniques of organizing knowledge
and how people organize knowledge about themselves" (Strathern, 1986:31).

37
uma forma ou de outra nos questionam acerca de nossos atos e de nossa definidas a priori, e reelaborar o "fam
identidade? Observei nos primeiros contatos uma ansiedade recíproca e mutuamente contundentes entre ar
em definir papéis e esclarecer especificidades aproximando pesquisador Tendo a pensar que se os pes,
e objeto através de semelhanças ou oposições. É verdade que a maioria associando-me as suas identidades
dos antropólogos - eu mesmo inclusive - empat~am com se_us inter- fazer o mesmo. Como sustenta Silva
lc:_:>cutores e desejam obter deles sua simgatia. Isto faz parte da proposta
relativista e do ideal politicamente correto de nossa disciplina. Porém, (...) "nativos de carne e osso" exige:
é nessa condição que ambos se apn
o que pude observar dava conta de que "do ponto de vista dos [meus]
ou os valores dos quais são represen
nativos" o mais importante era "ser'~ "Ser" algo ou alguém identificável belecem.
e inteligível para eks era importantíssimo. É na hora em que eu, antro-
pólogo, me permito "ser" que são respondidos os "porquês" dos outros. Produzir este tipo de antropolc
Trata-se de um asso crucial, muitas vezes despercebido, ue J2.Q§.Slb.ilita emergência de evidências nativas, se
progredir na ~quisa d~ campo. Considero esse um rito de 12assagem, o vício da busca a priori por indícic
n~ontato entLe.J:IQs e eles, pois dimensiona toda a alteridade desta rela- teorias. Permitir que através da exper
ção: tanto cá como lá é preciso que haja primeiro certo estranhamento, condição de antropólogo, e nossas pr
\ depois alguma identificação (ou delimitação) para que, então, torne-se ideológicas), sejam "canibalizadas"29
(estranhamente) familiar. compasso. Ou seja, superado o estran
Sendo assim, se nos limitarmos ao primeiro nível - o do estranha- nificação do familiar resulte em algo ,
mento entre os termos, ou seja, nos contentando em apenas tornar exó- antropológica.
tico o que nos é de alguma forma conhecido27 - faremos sempre uma Logo, se queremos uma antropo
antropologia da assimetria, e porque não da desigualdade. No entanto, sejam levados a sério, estes deveriam
se
,--
o ultra assamos, e enfocarmos
----
as r~laçõe~_siroétricas entre pesquis'!::_
r
quecirnento epistemológico da própr
dor e obj~to, caminhamos para entender a antropologia comQ~SRQrte apenas como dados em sua descrição
de contat~,28 para a qual ~contato nem sempre pressupõe um_c_o[!.fUto proposta de aproximação seja desejá
entre alteridades, mas alguma simetria em suas relações. pensá-la a partir das questões relevar
A antropologia da aproximação, diferentemente da antropologia pressuposições de nossa (on)to(po)lo
do contato, dá ênfase às experiências e à experime.ntação. Trata-se de É nesse sentido que esclareço a
trans12-or o fetiche ~lo exótico, camuflado em relativismos e alteri.dades fugir da rigidez dos padrões usuais e
as antropológicas. Seria, no mínirnc
27
Acredito que seja possível transcender, em determinados momentos, as limitações
"(... ) intersubjetivas entre pesquisadores e
de origem do antropólogo e chegar a ver o familiar não necessariamente como exótico fazendo-o de uma forma que reificass
mas como uma realidade bem mais com lexa do que aquela reJ?_resentada pelos_maP-lJ.S
e códigos básicos nacionais e de ctãsse através dos guais fomos socializados.(...)" (Velho. "eles''. Se, de fato, uma das questões im
[978:45) a forma de estabelecer uma técnica e
" Inspirado na ideia de "sociologia como esporte de combate•; de Bourdicu, sou tentado a
e de experiências, esta seria o meu p
me opor a ela vendo a "antropologia como esporte de contato" no qual um acordo implí-
cito entre as partes rege suas eventuais assimetrias. Deixando de lado a belicosidade dos a escrita etnográfica alguns dos mo,
"combatentes•; os confütos passam a ser previstos. monitorados e mediados pelos próprios
"jogadores" dentro de uma lógica, intrínseca ao jogo. de relações simétricas. 29
No sentido modernista do termo. ou seja, de
1m acerca de nossos atos e de nossa definidas a priori, e reelaborar o "familiar" a partir de relações interativas
contatos uma ansiedade recíproca e mutuamente contundentes entre antropólogo e seus interlocutores.
1cidades aproximando pesquisador Tendo a pensar que se os pesquisadores buscaram entender-me
,posições. É verdade que a maioria associando-me as suas identidades e as suas relações, também posso
sive - ~mpatizam com seus inter- fazer o mesmo. Como sustenta Silva (2004:09),
impatia. Isto faz parte da proposta
arreto de nossa disciplina. Porém, ( ...) "nativos de carne e osso" exigem "antropólogos de carne e osso': pois
é nessa condição que ambos se aproximam e fazem aproximar as culturas
1ue "do ponto de vista dos [meus]
ou os valores dos quais são representantes no diálogo etnográfico que esta-
"Ser" algo ou alguém identificável belecem.
simo. É na hora em que eu, antro-
pondidos os "porquês" dos outros. Produzir este tipo de antropologia seria nos redirecionar para a
vezes despercebido,_qg_~ pos.sibilita emergência de evidências nativas, sejam elas quais forem, e abandonar
nsidero esse um rito de ~agem, o vício da busca a priori por indícios etnográficos aplicáveis às nossas
nsiona toda a alteridade desta rela- teorias. Permitir que através da experiência do trabalho de campo nossa
1aja primeiro certo estranhamento, condição de antropólogo, e nossas próprias teorias nativas (acadêmicas,
mitação) para que, então, torne-se ideológicas), sejam "canibalizadas"29 pelas possíveis teorias outras em
compasso. Ou seja, superado o estranhamenj:o, que~o processo de..ressig-
ao primeiro nível - o do estranha- nificação do familiar resulte em algo verdadeiramente novo para a teoria
ontentando em apenas tornar exó- antropológica.
mhecido27 - faremos sempre uma Logo, se queremos uma antropologia em que os modelos "nativos"
não da desigualdade. No entanto, sejam levados a sério, estes deveriam servir também como base de enri-
relações simétricas entre pesg_uisa- quecimento epistemológico da própria etnologia do antropólogo, e não
l}der a autropologia con:iL sp9rte apenas como dados em sua descrição etnográfica. Considerando que esta
em §emp_re pi:.essupõe um conflito proposta de aproximação seja desejável para a etnografia, é importante
ia em suas relações. pensá-la a partir das questões relevantes para os outros, e não restrita às
>, diferentemente da antropologia pressuposições de nossa (on)to(po)logia antropológica.
s e à experimentação. Trata-se de É nesse sentido que esclareço a opção aqui adotada por mim ao
fiado em relativisl!_los e alteridades fugir da rigidez dos padrões usuais de publicações "científicas': mesmo
as antropológicas. Seria, no mínimo, contraditório tratar de relações
, cm determinados momentos, as limitações intersubjetivas entre pesquisadores e objetos, humanos e não humanos,
familiar não necessariamente como exótico fazendo-o de uma forma que reificasse esse distanciamento entre "nós" e
~ do que ~ uela renr_çsçntada..pelos mapas
·és dos quais fomos socializados.(.. .)" (Velho, "eles': Se, de fato, uma das questões importantes para os primatólogos era
a forma de estabelecer uma técnica descritiva de organização de dados
>rtc de combate''. de Bourdieu, sou tentado a
e de experiências, esta seria o meu ponto de partida. Tento trazer para
sporte de contato" no qual um acordo implí-
nclrias. Deixando de lado a belicosidade dos a escrita etnográfica alguns dos modelos traçados pelos ~ Õ s pri-
istos, monitorados e mediados pelos próprios
1 ao jogo, de relações simétricas. " No sentido modernista do termo, ou seja, de se deixar ser "antropofagizado".

39
matólogos em seus li~ros, e acredito ser possível dissertar sobre nossos CAPÍTULO 2
personagens, humanos e animais, em uma linguagem que se aproxime
da prosa literária como alternativa a um discurso cientificista comba-
GRANDES CAFEZAIS COM
tido por primatólogas como Jane Goodall. Tomo a liberdade para falar NO MEIO REPLETA DE MA
das relações intersubjetivas entre primatólogos e primatas aproximando E BIÓLOGOS DENTRO
o método narrativo das histórias de vida dos primatas estudados por
Goodall à narração da minha própria experiência etnográfica entre os
"grandes primatas produtores de ciência''. Oi Guilherme,
Começo este livro com palavras de Flávia, uma das primatólogas, Pode vir sim. Seria recomei
complicado. De carro é sim
que marcaram a despedida do meu trabalho de campo.
-Salvador. Vá até Caratinga
Flávia: - Você é uma pessoa muito especial. Sabe por quê? Ipanema pela MG-111. É asj
Eu: - Não. Por quê? tir daí é terra por 24 km até
Flávia: - Porque você estuda o ser humano, que é o bicho mais difícil de 20 km, comece a perguntar
compreender e de lidar. 8 horas, portanto saia cede
que você confirme a sua vi~
Às vezes o fim da trilha pode ser o início do descaminho de um diárias a pagar que se não 1
etnógrafo que busca de uma ~troR..Q!Qgia da aproximação.

Acabara de receber a mensagem de ,


positivo para minha primeira ida a
mochila, trocando o óleo do carro
ria do programa de pós-graduação
Todas as partes desse ritual fascinar
neófitos assim que abandonam as
repetidas em minha cabeça durant
de Janeiro até o distrito de Santo Ar
Se é verdade que a viagem foi long~
Dirigindo, eu lembrava dos animai
partidas de futebol, sempre as quir
Vista, entre os pós-graduandos dos
do Museu Nacional. Qual não era ,
saber que um daqueles "esquisitões'
nada menos do que biólogos! Guan
em que parecíamos compartilhar a

40

Você também pode gostar