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Diário Acadêmico

Stéphane Malysse
Prefácio do autor

“Nossas convicções mais sagradas, nossa fé mais inabalável em termos de valores superiores são julgamentos dos nossos
músculos. O homem é algo que deve ser ultrapassado. O que você fez para ultrapassá-lo?”
Friedrich Nietzsche

“Eu me amarrava às minhas próprias tarefas. Escrevia, malhava... Escrevia, malhava...”


Nathalie Gassel

Meu corpo, Mea-culpa... Confesso que demorei uns dez anos, e por muito tempo resisti à
idéia de retomar o caminho da academia. Eu sempre tive dificuldade de me ligar a tarefas de ordem
física, fazer exercícios, sobretudo de forma regular. Eu pensava nisso constantemente, e a presença
espetacular de músculos à minha volta funcionava como uma mensagem de culpa, um chamado à ordem
muscular. Mas de alguma forma eu não sentia necessidade disso e pensava: fazer musculação, para quê?
Para agradar a quem? Para mudar o quê? Meu corpo? Minha vida? Meu gênero? Vou completar 36 anos
dentro de algumas semanas e nunca senti necessidade de desenvolver a musculatura para ressaltar minha
masculinidade ou simplesmente minha personalidade.

No Brasil, sou tratado pelo meu sobrenome já que meu primeiro nome, Stéphane, é um
pouco difícil de pronunciar em português e, além disso, eu não gostaria de virar Stéphanie por causa de
um acento mal colocado... Quanto à questão do envelhecimento, eu não me preocupo, ou melhor, deixo
tranqüilamente que ele chegue. Sinceramente, minha motivação para retomar a musculação é bem mais
de ordem intelectual do que propriamente física ou sexual. Esta é a razão pela qual, após anos de pesquisa
no Brasil, sem me dedicar a novas abordagens sobre a questão do músculo, nem acadêmica nem
fisicamente, decidi retomar essa temática, realizando o que se poderia definir como um retorno ao
campo da pesquisa que eu abandonei dez anos atrás. Retomo, então, corpo a corpo, o doloroso caminho
da academia. Pergunto-me se esse longo caminho de pesos - tendo eu já dois anos a mais do que Cristo na
cruz - me conduzirá à elevação social e sexual almejada por quem tem um corpo ideal...

As páginas a que se tem acesso, aqui, cobrem um período curto, mas intenso, de atividade
física, seis meses de treino corporal, de musculação voluntária ou de prática acadêmica, vivida pelo autor
deste diário. Para escrever este ensaio de auto-antropologia do corpo, comecei a freqüentar uma
academia de musculação próxima à minha casa, na Avenida Angélica, em São Paulo.

A Runner é uma academia freqüentada por um público relativamente privilegiado, uma


classe social equivalente à que eu observei dez anos atrás na zona sul do Rio de Janeiro. Trata-se,
portanto, de uma experiência de volta ao meu campo de pesquisa anterior e de inversão metodológica,
pois, desta vez, a experiência implicará desenvolver voluntariamente minha própria musculatura, e não
somente observar o corpo e os músculos dos outros.

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Neste reposicionamento, meu corpo torna-se um objeto de pesquisa. Com inspiração em
Nietzsche, para quem as convicções mais sagradas, a fé inabalável em relação a valores superiores são julgamentos dos
nossos músculos, minha atenção e minhas reflexões antropológicas se voltam justamente para eles, meus
pequenos músculos. Ao mesmo tempo sujeito e objeto desta nova pesquisa em Antropologia do Corpo,
proponho, aqui, um olhar sobre o meu próprio viver corporal e espero que essa narrativa narcisista e
egoísta – no sentido que lhe confere Stendhal quando define o estudo analítico que um escritor faz de sua
personalidade – leve o leitor a um outro reposicionamento.

Este diário acadêmico (no sentido estrito e duplo do termo) nasceu de uma releitura do famoso
Diário de etnógrafo, de Bronislaw Malinowski (setembro de 1914 a julho de 1918) – que ele escreveu à mão
por ocasião de sua permanência na tribo dos Mailus, na Nova Guiné –, publicado após sua morte por sua
filha. Em alguns momentos retomarei passagens desse diário antológico que se tornou referência quando
se fala no aspecto antropológico do campo de pesquisa no que se refere a seus aspectos subjetivos e
reflexivos. O exemplo do diário de Malinowski é significativo já que diz respeito à verdadeira intimidade
do autor, que não pretendia publicá-lo. O que mais me interessa nesse diário é o fato de que ele se tornou
referência internacional com relação à prática de campo na Antropologia, mostrando pela primeira vez
na história da Antropologia as transferências, do ponto de vista psicanalítico, vividas pelo pesquisador.

“Todo dia, o balanço do dia anterior, um espelho dos acontecimentos, um exame de consciência, a
determinação dos princípios essenciais da minha existência, um projeto para o dia seguinte”
(MALINOWSKI, 1967, p. 113). Essa primeira citação do diário de Malinowski é muito importante, pois
diz respeito diretamente ao meu campo de pesquisa sobre a musculação voluntária: meu corpo se
transforma no espelho da minha tentativa de ganhar musculatura, na prova da minha resistência cultural
às séries de exercícios físicos. Escrever o diário na seqüência do exercício físico – musculatura aquecida,
vigor mantido, energia corporal –, leva a um contínuo exame de consciência, estabelece a visão do corpo
como um projeto de si mesmo, para si próprio. Este projeto muscular e literário procura mostrar que “a
imagem do espelho não é sempre um simples reflexo” (MERLEAU-PONTY), assim como o jogo das
identificações, perpetrado pelo sujeito, não passa de um efeito de máscaras, de representações.

“Eu escrevia, malhava, escrevia, malhava ...” Utilizando ao pé da letra a estratégia literária de
Nathalie Gassel, desejo estabelecer entre mim e ela uma intertextualidade carnal, um diálogo íntimo e
muscular. Neste ensaio, sua presença, à minha volta, é permanente, seja nos momentos em que me
exercito, seja nos momentos em que escrevo. Nathalie Gassel é uma mulher, ainda jovem, que nega seu
corpo e questiona sua feminilidade. Uma mulher que, num arroubo de divindade, pratica a musculação
para forjar um corpo de atleta e estabelecer para si mesma uma nova identidade sexual: uma mulher viril.
Nascida em Bruxelas, em 1964, é fisiculturista e ex-campeã de boxe tailandês. Sem saber que ela se
tornaria minha musa muscular, meu alter ego trans-gênero, como ela mesma se define, eu me dei conta de
que ela havia se transformado na minha melhor informante ao reler e analisar seu ensaio corporal A
construção de um corpo pornográfico, e ao iniciar a troca de e-mails com ela. Nathalie Gassel tornou-se meu
modelo, encarnando pessoalmente os conceitos antropológicos e as tensões presentes nesta nova pesquisa
empírica sobre a construção do corpo e do gênero. Nós nos tornamos quase um casal acadêmico,
pesquisador/deformando-se e a pesquisada/deformada.

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Neste seu ensaio sobre a construção do corpo – exercício literário e muscular de uma jovem mulher que
faz musculação para forjar uma nova identidade trans-gênero – conseguimos perceber suas motivações, seus
desejos e suas resistências, inúmeras revelações de sua intimidade que são uma mina de ouro e de ferro
para o antropólogo que resolve interrogar o corpo na sua trajetória, na sua construção consciente... Na
sua vontade “de amplificar a anatomia, dar-lhe uma aura e deixar que se manifeste seu caráter de
reflexividade” (GASSEL, 2005, p. 13), eu posso observar, como num reflexo invertido, meu próprio
caminho da musculação e da introspecção e me sentir apoiado finalmente nessa nova empreitada.

“O homem é o espelho do homem” dizia Merleau-Ponty, e desta vez é essa mulher, desejosa de ter um
corpo de homem, que se tornará meu espelho e me lançará lampejos antropológicos que me ajudarão a
transcender as categorias opressoras de masculino e de feminino e a observar a construção do sexo social
(ou gênero) nas academias. Ao trabalhar meus músculos e minhas referências teóricas, dialogando com
Nathalie Gassel, tenho um duplo objetivo: retomar as reflexões sobre a musculação voluntária, objeto da
minha tese de doutorado (1999), e propor ao leitor que observe os diferentes reflexos das metodologias
antropológicas presentes em duas situações distintas: uma tese, cujas reflexões serão aqui trazidas e um
diário. A tese foi publicada alguns anos atrás (MALYSSE,2002), logo, antes do diário. De qualquer
forma, o que desejo com a publicação deste diário é enfatizar os problemas da reflexividade que
fundamentam a experiência antropológica. Neste ponto, a referência a Malinowski torna-se mais
importante e mais representativa, pois ela inaugura um reposicionamento: de observador, o antropólogo
torna-se observável e se desmascara a si mesmo.

“Colocar o impacto da sensibilidade – de preferência ao do espírito de análise ou código social – no


centro da etnografia, remete a um problema de construção textual específica: tornar a narrativa crível por
meio da credibilidade da pessoa... para se tornar um eu-testemunha convincente, é preciso, antes de mais
nada, parece, tornar-se um eu-convincente” (GEERTZ,1996, p.83). O problema do uso da primeira
pessoa na Antropologia me parece essencial, pois mostra até que ponto a antropologia do outro é uma
antropologia de si mesmo. Mostrando o eu-testemunha em ação, desejo colocar o problema da construção
textual da antropologia numa situação real de pesquisa. Acho que, para fazer surgir o eu-convincente, a
complementaridade desses dois estilos textuais clássicos na Antropologia, assim como a continuidade
temática e geográfica desta pesquisa, serve como catalisador de credibilidade e apela à sensibilidade do
leitor que é convidado a cruzar e descruzar as narrativas. Se, como explica Yves Winkin, o diário de
campo é um “corpo a corpo” com a pesquisa, o meu deveria tornar-se o esboço de um corpo novo, atual,
literalmente: do corpo-testemunha ao corpo-malhado, o eu-convincente deverá aparecer sob a minha
própria pele.

Em última análise, no que diz respeito à metodologia de pesquisa que adotei, a ligação com
Jeanne Favret-Saada se faz bem presente. Profundamente dialógico e intertextual, este diário propõe ao
leitor uma familiarização com certas metodologias da Antropologia e um aprofundamento das minhas
reflexões sobre os aspectos musculares da ritualização do gênero na cultura ocidental. Se, na experiência
de campo apresentada numa publicação anterior (2002), eu encarnava um antropólogo que observa o
outro nas suas relações com o corpo, desta vez, neste diário, eu deveria me observar a mim mesmo ao
longo do meu treino acadêmico.

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Nesta antropologia do antropólogo, eu passo de observador-participante, centrado na observação do
outro, a observador-participante autocentrado. O próximo desafio é, então, o do músculo, do esforço
físico contínuo e dos jogos dissimulados da vontade. Seguindo, então, os conselhos de Jeanne Favret-
Saada no sentido de “fazer da participação um instrumento de conhecimento antropológico” (FAVRET-
SAADA,1990, p.3), eu decidi me deixar afetar pela musculação voluntária ou, como se diz no Brasil, pela
malhação: “Experimento por minha própria conta – não em função da ciência – os efeitos reais dessa
rede particular da comunicação humana em que consiste a musculação” (FAVRET-SAADA,1990, p.3).
A modalidade de se deixar afetar pelo seu campo, física, emocional e socialmente, constitui o objetivo
central deste novo olhar sobre a musculação: “como se vê, o fato de um antropólogo aceitar ser afetado
não implica que ele encare o fato social como algo natural, nem tampouco que ele aproveite da
experiência de campo para estimular seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, por outro lado, correr o
risco de ver seu projeto de conhecimento evaporar. Este método supõe que o pesquisador admita viver
numa espécie de esquizofrenia – dependendo do momento, ele deixa transparecer aquele, dentro dele,
que é afetado, maleável, modificado pela experiência de campo; ou, por outro lado, daquele, dentro dele,
que deseja registrar essa experiência, compreendê-la, considerá-la um objeto de ciência” (FAVRET-
SAADA,1990, p. 7).

O que me parece ser o mais importante (e o mais difícil) nesta pesquisa é me render à musculação sem
estimular meu narcisismo, já que o exercício e a conseqüente modificação física que ele provoca estão
intimamente ligados ao narcisismo e à imagem de si, para si mesmo e para o outro. Definir-se (do ponto
de vista muscular), ainda que opondo-se a isso do ponto de vista antropológico, significa, de uma certa
maneira, pressupor que meu corpo não mente, não dissimula e que, portanto, mecanicamente,
progressivamente, ele mudará de forma. É a esta esquizofrenia, a esquizofrenia de incorporação, que eu
devo me render, deixando-me modificar, modelar pelas representações musculares e os exercícios em
voga nas academias. Meu projeto de conhecimento passa, portanto, desta vez, pelo caráter tortuoso de
uma reflexão autocentrada (conhece-te a ti mesmo) e invertida (do conhecimento e construção do outro
ao reconhecimento e construção de si mesmo). Nesse vaivém antropológico, entre Rio de Janeiro e São
Paulo, entre o próprio corpo e o corpo do outro, o corpo masculino e o feminino, minha intenção é criar
não somente meu corpo atual, mas uma teoria antropológica do músculo como extensão sexual do
gênero. Minha meta é descrever e compreender, não apenas o que é preciso fazer e saber para tornar-se
membro de uma academia de musculação, mas, sobretudo, ressaltar o que se esconde nas entrelinhas das
significações culturais dos músculos, sejam eles femininos, masculinos, brasileiros ou europeus.

Quando as atitudes tornam-se formas, quando os gêneros tornam-se músculos, voltamos


incontestavelmente às teses de Marcel Mauss e “nessas condições, é preciso simplesmente dizer: nossos
objetos de pesquisa são as técnicas corporais. O corpo é não só o primeiro, mas também o mais natural
dos instrumentos do homem”(MAUSS, 1950, p.372). Instrumento de pesquisa, instrumento de
codificação do gênero, instrumento de prazer, tenho que admitir que não sei se serei capaz de fazer do
meu corpo um reflexo das minhas novas representações.

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10 de setembro de 2006

Sinto-me pronto para começar este novo campo de pesquisa. Unidade de lugar (este campo terá um local
fixo): a Academia Runner. Unidade de tempo: seis meses de prática acadêmica. Unidade de ação:
malhar. Uma tragédia ou uma comédia? A idéia do campo como lugar destaca o fato de que meu próprio
corpo torna-se o topos de uma prática ritualizada. Agora, um pouco liberto da interação com o outro
enquanto motor de pesquisa, eu devo me concentrar no aprendizado das “técnicas corporais”
(MAUSS,1950, p. 365-372) específicas da musculação e no estabelecimento de uma rotina muscular
(técnicas de si mesmo). Constato, também, que este retorno ao campo acadêmico é uma reflexão sobre as
diferentes formas de manipulações das aparências físicas. Longe de ser um retorno para simples
verificação, deverá esta nova pesquisa revelar: o que mudou em dez anos nas minhas observações, minhas
análises, no meu corpo?

Quando eu realizava meu campo de pesquisa no Rio de Janeiro, entre 1996 e 1998, meus
objetivos e minhas resistências se ligavam à formação e ao aprendizado,em campo, da profissão de
antropólogo. Dez anos mais tarde, eu me proponho a passar de uma observação-não-participante
centrada no outro, a uma observação-participante autocentrada. A partir de (re)identificações culturais e
outras “transferências do ponto de vista psicanalítico” (DEVEREUX, 1980, p. 112), será que o meu eu-
testemunho se tornará completamente outro? Nesta nova prática social, vejo, também, uma integração
cultural, uma incorporação que vem se dando nesses últimos dez anos. Do ponto de vista da expressão em
língua portuguesa, de gestos do cotidiano, da cor da pele, do tom de voz, minha transformação é
profunda. Nesse sentido, também, sinto-me pronto a me pôr em forma, à brasileira.

12 de setembro de 2006

“Li um pouco, escrevi um pouco.”


Malinowski, Diário de etnógrafo

Li, uma vez mais (talvez a última), as páginas de David Le Breton sobre o culto do corpo, como
que para retomar as pistas teóricas e corporais que eu seguira dez anos atrás. Minha relação com a
antropologia do corpo de David Le Breton, que foi presidente da banca na minha defesa de tese de
doutoramento, remonta à minha estréia na Antropologia, momento de iniciação no qual todo apoio
revestido de calor e de generosidade é muito importante. De certa maneira, esta volta ao campo é,
também, uma volta à minha biblioteca... No seu livro Adeus ao corpo, Le Breton diz que: “nas nossas
sociedades, a bricolagem simbólica expandiu-se, o repositório de conhecimento e de serviço oferecido aos
indivíduos enriqueceu-se enormemente. A maleabilidade de si mesmo e a plasticidade do corpo tornam-se lugar-
comum. A anatomia não é mais uma destino mas, sim, um acessório de presença, uma matéria-prima a
moldar, a redefinir, a submeter ao design em voga... Entre o homem e seu corpo, há um jogo, no duplo
sentido da palavra1” (1999, p. 23). Como, realmente, eu quis me confrontar com esse jogo, relacionando-
me com o outro num primeiro momento e, comigo mesmo, agora, parece-me importante rever as suas
regras desse jogo e reexaminar a discussão de David Le Breton sobre o corpo-acessório dos fisiculturistas.

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Para ele, no mundo contemporâneo, “a relação do indivíduo com seu corpo se dá sob a égide do
domínio de si mesmo. O homem de hoje é chamado a construir seu corpo, manter a forma, trabalhar a
aparência, esconder os traços de envelhecimento e a fragilidade, cuidar do seu potencial de saúde. O
corpo é hoje a manifestação do eu interior” (1999, p. 26). Eu vejo, mesmo antes de começar meu
treinamento, que a questão do domínio da vontade é essencial. Não se molda o corpo da mesma forma
que se constrói uma tese de doutorado, o jogo é bem mais tenso, os resultados esperados são muito mais
profundos, tanto quanto a pele, para Paul Valéry.

Pensando bem, eu me pergunto até que ponto estou preparado para modificar minha
aparência com o objetivo de experimentar um outro ponto de vista antropológico, se é que não se trata do
contrário. Será que minha antropologia do corpo será a mesma quando eu tiver um outro corpo?

15 de setembro de 2006

Acabo de me matricular na Academia Runner. Por que ela e não outra? Primeiro, porque é a
que fica mais perto de casa e é freqüentada pelo mesmo público de classe média alta, equivalente ao que
estudei dez anos atrás no Rio de Janeiro, campo de pesquisa da minha tese de doutorado. A mensalidade
é R$ 190,00 (cerca de 80 euros), o plano, de seis meses. Primeiras impressões e sensações de déjà vu, já que
todas as academias se parecem... Esta tem um ar de hospital, tudo branco, limpo, higienizado, até o ar-
condicionado é sem cheiro, não há oscilação de temperatura...

A ambientação é neutra, assim como a música comercial, de fundo, volume baixo, quase
inaudível. Primeira varredura visual da sala, observação mais aguda em relação a corpos e aparelhos que
se confundem, aqui estou eu, meio perdido nesse lugar. No local da matrícula, fica-se de costas para o
pessoal que está se exercitando, não fazemos parte, ainda, do grupo. Paga a mensalidade, hora de se
encaminhar à avaliação física e médica para, enfim, adentrar as portas da academia. Se eu considero a
academia um espaço de competências, isto é, de conhecimentos que técnicos, profissionais e usuários
comuns detêm –, dentro da tradição do interacionismo simbólico da Escola de Chicago –, eu, como novo
usuário, devo zerar meus conhecimentos sobre musculação voluntária e me dispor a aprender, tal qual
um aprendiz de ferreiro, a lidar com os meus próprios músculos. Para me convencer (para que eu me
matricule), a secretária diz que não parece que eu não freqüento academia e que eu tenho uma boa
constituição: Ah! A genética! diz ela, por fim, com um certo azedume...

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17 de setembro de 2006

“Hipertrofia
Crescimento excessivo ou desenvolvimento de um órgão ou tecido dentro do corpo;
a inteligência do corpo.
A alquimia do corpo.
O atleta é o alquimista.
O atleta é o artista.
O artista é o atleta.”
Matthew Barney, Drawing restraint

A avaliação físico-médica é uma verdadeira sessão de antropometria, método próprio da


antropologia física que consiste em estudar o homem, tirando suas medidas. Como se eu fosse um
selvagem, medem-me, observam-me como a um estrangeiro, um homem da tribo normanda. A avaliação
acontece numa sala semelhante à do médico generalista, dá uma certa tranqüilidade, limpa, científica...
Antes do início dos testes, o avaliador me explica que esta primeira avaliação servirá para que ele
selecione e quantifique os exercícios para montar o meu programa. Demonstrando o caráter de
personalização do serviço, ele acrescenta que o treinamento será totalmente individualizado e virá ao
encontro dos meus objetivos específicos... Quais são os meus objetivos? Primeira armadilha...

Eu me lembro que, dez anos atrás, na mesma situação, eu respondi que eu era um
antropólogo e que não queria mudar meu corpo. Na época, eu tinha decidido fazer musculação sem
nenhum peso adicional e essa estratégia excêntrica acabara me ajudando a fazer minha pesquisa de
campo sem mudar a minha aparência, como também a chamar a atenção dos freqüentadores da
academia, que achavam estranha aquela musculação light, caindo na minha armadilha antropológica: a
entrevista espontânea. Desta vez, mais decidido e preparado, pincei algumas frases feitas nos arquivos da
minha memória. Respondo sem pensar: tonificar minha musculatura, definir sem aumentar, me sentir em
forma, me sentir bem com o meu corpo... Ele me olha com um olhar indulgente... Parece um pouco
decepcionado. Nenhum anseio de hipertrofia, é pouco, meu caro... Ele escreve no seu relatório que meus
objetivos são melhorar minha forma física, minhas condições cardiovasculares e a função pulmonar.
Regime de base para qualquer atividade física. Eu acrescento que não pratico nenhuma atividade física
há alguns anos e que fumo um maço de cigarros por dia. Ele anota essas informações sem pestanejar.

Primeiras medidas: altura 191,70 cm; peso atual: 91,05 kg. Para calcular minha taxa de
gordura corporal ele me diz que vai utilizar o protocolo de Pollock... Eu penso no pintor Pollock e numa
versão gordurosa do action-painting... ele, com um tipo de alicate estica minha pele em sete lugares... Esse
protocolo utiliza sete pregas... e a que mais interessa nesse momento é a abdominal... eu pergunto qual o
resultado: 21,30 mm. Minhas medidas são imediatamente introduzidas no computador e, em poucos
segundos, surge um pequeno esquema. Para chegar ao corpo ideal, não falta muito, me diz ele. Eu
deveria pesar 92,50 kg, um ganho de aproximadamente 1 kg... O programa estabelece o percentual de
gordura ideal em 16% e o meu é de 14,90%...

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Esses valores antropométricos parecem bons. Ele continua com as medidas e calcula agora as
relativas às minhas circunferências: tórax 100,30 cm, cintura 96,50 cm, quadril 107 cm. Resumindo, um
grande retângulo. Eu descubro também que minha coxa esquerda é mais fina que a direita. Bem... Por
fim, eu faço os testes de flexibilidade = fraco; força abdominal= fraca e flexão dos braços= fraca também.
Nenhuma novidade. A avaliação da minha postura me reserva surpresas: tenho uma lordose lombar e
cervical e ombros assimétricos.

O avaliador parece contente de ter descoberto esses defeitos. Eu olho para ele, atento, sinto
que vai usar esses últimos dados para me impor um treinamento pesado... Imaginei que estivesse tudo
terminado, mas ele me pediu para tirar a camisa e se aproximou, com um barbeador descartável na mão.
O quê? As modificações já vão começar? Ah, não se preocupe, é só para colocar os eletrodos, não dá para
fixá-los com os pêlos e o suor... Eu digo que não transpiro muito e que vou tentar grudá-los sem que seja
necessário me tosquiar. Subo bufando numa bicicleta ergométrica e começo a pedalar a fim de medir
minha resistência cardiovascular. Passeio longo, penoso, monótono. Por diversas vezes eu faço sinal para
saber se já é possível parar... mas, não, é o meu primeiro esforço físico e eu tenho que ir até o fim para
que os testes sejam concluídos. Ufa!, acabou, eu transpirei, mas os eletrodos resistiram. Estou meio sem
fôlego. Ele me diz que está tudo bem, fui aprovado. O ideal, ele me diz, seria vir três vezes por semana e
fazer um pouco de musculação, um pouco de atividade aeróbica e trabalhar a flexibilidade. Eu concordo
com a prescrição, sem discutir (coisa rara). Mas, antes de ir embora, eu pergunto, maliciosamente, se é
mesmo preciso vir três vezes para ganhar apenas um mísero quilo. Nesse momento, eu me pergunto: para
que sofrer e me deformar se eu já tenho um corpo quase ideal, sem fazer exercício? Na hora, eu quase
esqueci que queria, desta vez, entrar de corpo e alma na musculação. Ele sorri e me diz que esse cálculo é
só uma referência e que, como eu não preciso queimar gordura, devo ganhar massa muscular
rapidamente e, assim, esses números fatalmente mudarão.

Desta vez, de novo, eu me sinto em perigo muscular, em risco de mutação... Há dez anos, eu
tinha pedido uma receita adaptada aos meus objetivos e a avaliadora me aconselhara ironicamente a
fazer musculação sem peso, uma forma de não provocar nenhuma mudança no meu corpo, praticando
exercícios três vezes por semana. Eu seguira sua orientação ao pé da letra, pois ela tinha me contemplado,
sem saber, com uma excelente estratégia de desestabilização do campo: agir de tal forma que o outro
demonstrasse uma certa curiosidade com relação a mim, pelo simples fato de eu não respeitar as regras,
de fazer como se... como a frase e o pensar tem uma suposta coninuidade... MARCIA posso mudar de
parágrafo????

Desta vez, eu não digo uma palavra. Pego minha pasta e vou em direção à porta. Simpático e
demonstrando entusiasmo, ele diz que eu devo estar querendo começar logo os exercícios, mas que eu
preciso marcar hora com um personal trainer para detalhar a minha série de musculação; caso encontre
algum disponível, posso começar já. Sinto-me enquadrado e vigiado por essa equipe.

Na verdade, já decidi e a resposta é: não, merci. Estou muito cansado, ele disse que eu estava
em forma, e eu volto direto para casa. Chegando, releio Breton e me deparo com essa frase: “O
fisiculturista faz do próprio corpo uma máquina, uma forma viva do andróide. O Eu se fixa fortemente na
superfície do corpo, a identidade se molda nos músculos como uma produção pessoal e controlável. O

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fisiculturista agarra seu corpo às próprias mãos e, desta forma, controla sua existência. O fisiculturista se
preocupa apenas em obter massa muscular, a gordura é, aos seus olhos, um parasita que mobiliza uma
estratégia permanente de eliminação” (1999, p. 37). Sem dúvida alguma, eu consigo perceber o que há de
comum entre essa primeira avaliação e o imaginário do andróide. Decodificado e avaliado pelo
computador, senti-me verdadeiramente um andróide durante meu passeio virtual de bicicleta. Quanto ao
fisiculturismo, eu sinto que, de fato, minha performance não convenceu. Eu deveria ter insistido na minha
vontade de adquirir músculo em lugar de me vangloriar da minha baixa taxa de gordura. Sem parasita,
impossível pensar numa estratégia permanente de eliminação. Sem desejo de músculo, impossível lidar
com os objetivos acadêmicos. Bem, sorte que a equipe de treinamento está aí para cuidar de mim...

18 de setembro de 2006

“No primeiro dia, eu nem fui...” Malinowski

Tenho encontro com meu personal às 14 horas. Chego na hora. Com roupa de ginástica.
Fantasiado e animado. Entrego-lhe meu relatório, ele dá uma olhada rápida, eu o observo com um canto
do olho enquanto ele dedilha, já, no computador. Sai uma ficha da impressora... Ele me olha e diz: Aqui
está! Está bom. Veja só, eu sou uma versão viva do andróide! Mas... mas, eu achava ... que nós iríamos
escolher, juntos, os aparelhos e os músculos... No começo, não é fundamental, a gente começa com uma
série básica, ele retruca, e acrescenta: é um período de adaptação... você sabe ... o mais importante é
manter o equilíbrio entre a parte alta e a baixa do corpo, assim como alternar as repetições de exercícios.
Nunca se trabalham dois músculos próximos, um após o outro. É muito simples e lógico.

Ele me estende uma ficha impressa na metade de uma folha A4. Estou curioso, e quase a
arranco das mãos dele, é a minha ficha. Nesse momento, sinto necessidade de um assistente. Não entendo
nada do que está escrito. Supino vertical? Leg press? Rosca alternada? São os aparelhos, ele me diz. Vou mostrar
para você, e nós vamos fazer a série juntos. Desta vez, eu não escapo. Faço dez minutos de bicicleta para
me aquecer. Durante esse tempo, meu supervisor pessoal circula de corpo em corpo, como uma abelha.
Depois de 15 minutos, ele volta... eu ainda estou pedalando. Nenhuma gota de suor; desta vez, devo estar
em descida virtual, devo ter regulado mal... Não gosto muito dessa sensação de pedalar no vazio, mas não
falo nada. Não quero começar a chamar a atenção. Eu o sigo, e ele me coloca no supino vertical, ajusta o
aparelho às minhas medidas, coloca 25 kg de carga, e eu começo, teleguiado pela máquina. Faço duas
seqüências de 20 movimentos. Não sinto nada. É normal, ele me diz, é o começo... depois vamos
aumentando as cargas... Tudo bem? Tudo bem... continuamos Leg press (prensa-perna???)... 20... 20...
Tudo bem? Continuamos... Em 40 minutos eu tinha terminado minha série.

Eu me sentia bem, um pouco desconfortável talvez como qualquer iniciante que se preze,
mas trabalhei bem (meu corpo) e tive a oportunidade de espionar um pouco os outros nos momentos em
que não estava eu mesmo sendo observado. Penso no que diz Remo Guidieri na introdução ao diário de
Malinowski: “O aprendiz é como o vidro maleável e incandescente soprado pelos vidreiros de Murano.
Essa plasticidade diz respeito mais a uma experiência do que a uma disciplina”. Começo a entender como
vai ser difícil tornar-me esse vidro, esse vidro de academia. Minha plasticidade está em jogo e eu
vislumbro, com uma certa angústia, os personal trainers como aqueles vidreiros de Murano a me trabalhar

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(ou a me fazer trabalhar), soprando-me conselhos de musculação nos ouvidos. Quando preparava minha
tese, descobri que esses personal trainers eram, em alguns casos, personal dealers, mas acho que não passo a
imagem de alguém que consome suplementos alimentares ou anabolizantes, pois ninguém veio falar sobre
isso comigo.

20 de setembro de 2006

Hoje, eu decidi pelo Pilates. Sigo os conselhos do médico da academia que me recomendou
essa atividade para as costas e para melhorar a flexibilidade. Chego, então, um pouco mais cedo do que o
normal, roupa de esporte. Como é a minha primeira sessão, concentro-me na atividade e não guardo
muitas lembranças desse momento. A lembrança virá mais tarde, sob a forma de uma tensão muscular no
abdômen... disso eu me lembro, todos os exercícios se concentram na região dos abdominais (não é o meu
forte) e, agora à noite, eu sinto algumas dores... Primeiros sintomas do meu tratamento. Durante toda a
aula (45 minutos), não falei com ninguém. Tensão muscular e social se alimentam uma da outra. Não
posso fazer tudo ao mesmo tempo.

Na seqüência, fui fazer minha pequena série de musculação de base, mas não consegui
guardar a localização dos aparelhos previstos no meu programa. Assim, eu procurava, desesperadamente,
os nomes nos aparelhos... supino, pulley... parecia um pouco perdido, e estava, e me perguntava algumas
vezes o que estava fazendo naquele lugar... Perdia tempo e me irritava sozinho. Pedi ajuda a um personal
que passava. Chateação e perda de tempo. Chateação e musculação. Não consigo sair disso, a conversão
mental é tão difícil como a física. Voltei para casa sem completar o programa impresso na minha ficha.
Lá chegando, fui direto para o diário. Mea-culpa: eu tenho, mesmo, dificuldade de me concentrar e sinto
que eu a demonstro... até nas sessões de musculação.

Depois, para compensar, “Tento me concentrar. Penso sobre as questões de método. Analiso
a natureza da minha ambição. Uma ambição que se nutre da minha paixão pelo trabalho: eu me deixei
envolver pelo meu próprio trabalho, pela crença na importância da ciência e da arte – os olhos postos na
obra não vêem o artista – a ambição que nasce do olhar sobre si mesmo – o romance da sua própria vida;
a atenção ao seu próprio personagem” (MALINOWSKI, 1967, p. 280). Eu construí um personagem para
mim mesmo, mas ele ainda não colou na minha pele. Como eu não me encontro mais somente na
posição de observador, acho difícil a volta à participação, divido-me em dois e perco de vista meu objetivo
principal: criar um personagem de músculos, esquecer o antropólogo. Pensar em outra coisa, em outra
pessoa... Nathalie? Acabo de encontrar na internet o e-mail de Nathalie Gassel, vou escrever para ela,
pois acho que seria muito interessante conversarmos ao longo dessa minha iniciação acadêmica e,
supostamente, estou precisando de ajuda... Acho que esses e-mails a serem trocados podem integrar meu
diário de pesquisa, seguindo um outro conselho de Jeanne Favret-Saada: abrir-se ao diálogo. Na minha
primeira mensagem, a de contato inicial, digo que sou seu leitor e falo do meu projeto acadêmico. Espero
que ela me responda rápido.

11
23 de setembro de 2006

“Desprezível ou gloriosa, a empreitada etnográfica pode conter


fraquezas, desvirtuamentos, fracassos e equívocos.”
Remo Guidieri

Decido bater para valer, para não me deixar abater tão facilmente. Vou bater em Bob, um
boneco de plástico mole, tipo látex que, curiosamente, faz lembrar as barbies, como é chamado um grupo
de gays cariocas. Ele é bem musculoso, careca, pele lisa e bronzeada, um meio-corpo até a cintura. Um
tronco sem braços. Versão pós-moderna das esculturas romanas. A aula começa com um aquecimento ao
som de música, uma corrida na sala que me lembra a louca corrida em círculos concêntricos de Alice no
País das Maravilhas, para se secar mais rápido. Sinto-me ridículo... e é somente o começo. Na seqüência,
o combate começa e é “quente”, cada participante se posiciona diante de um Bob, e começa a desferir-lhe
bons socos... O aquecimento continua. O contato com Bob é bem agradável, pois ele é totalmente
revestido de látex leve, imitando pele. Risos bobos, concentração difícil, e eu percebo que estou
simplesmente atrás de uma grande vitrine, ao alcance, portanto, dos olhos e da observação dos outros
membros da academia. Estou começando a gostar dessa cabeça de socar, mas o professor nos pede para
formar duplas. Volto-me para uma jovem que sorri para mim. Que bom, achei meu par. Nós todos
colocamos luvas de boxe e dois a dois reproduzimos defesas e ataques. Um ataca, outro se defende e vice-
versa. É muito físico, já estou transpirando. Mas não consigo me concentrar: tudo me faz rir... riso de
defesa ou de ataque? Por fim, a vez do Bob. Eu prefiro, isso corresponde mais ao que eu imaginava.
Coloco-me diante de seu corpo inanimado, pronto para ser esbofeteado sem jamais poder dar o troco. A
música, gênero dance music, dá ritmo aos nossos movimentos. A música me atrapalha.

Como numa dança de guerra, é preciso respeitar o encadeamento, a coreografia. Acho difícil.
Para camuflar meus passos débeis, ensaio um passo de dança. O professor se aproxima e me sopra no
ouvido que eu estou no boxe, não na dança. Ops... Encaro o dito como uma brincadeira e continuo
pulando, batendo em Bob algumas vezes. Finalmente, a aula termina. Foi bom, eu estou transpirando
bastante, e isto é um sinal... Minhas mãos sentem a luva úmida (outro sinal): isto me faz lembrar dos
esportes de inverno. O professor é muito simpático, sorridente e muito sexy na sua roupa de boxeador.
Com um sorriso no canto da boca, ele me pergunta se eu gostei. Eu respondo que não, sorrindo. Ele me
pergunta se foi duro demais... Bob, não, ele é, eu diria, meio passivo ... Cansado da iniciação ao boxe, eu
volto para casa. Várias vezes pensei em desistir da aula de Bob Circuit antes do fim da sessão, mas me
mantive firme.
“O abandono, tema sussurrado de forma recorrente nesse diário seria, melhor dizendo, uma
quebra de hábitos. É o que sentimos quando tudo ou quase tudo – as coisas de maior solidez ou as mais
banais – vacila, as representações que o meio ambiente nos comunica confundem nossas percepções. O
caráter estranho dos lugares, nudez e técnicas corporais, faquirismo cotidiano e desânimos de percurso,
tudo toma conta daquele que não esta nem aí, isto é da parte essencial de cada viajante, fazendo com que
ele sinta euforia simplesmente pelo fato de que atingiu seu objetivo de estar onde ele está” (REMO
GUIDIERI, 1985, p.9). É isto, eu sinto, é difícil quebrar meu hábitos não-esportivos, é exatamente isto o
que acontece, e é normal, é o começo, eu vou me adaptar. As questões do abandono, da fuga, da má-fé
estão, todas, à flor da pele nesse diário muscular. Meu corpo, como se estivesse submetido ao meu
interior, não se doa senão superficialmente, meus nervos de aço francês parecem montar uma barreira a

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qualquer possibilidade de intumescência por meio do aço dos halteres. De qualquer forma, para mim, é
difícil obedecer aos conselhos dos personal e respeitar as séries que eles carinhosamente prepararam (com a
ajuda do computador) para me auxiliar na minha (re)construção física (o que eles traduzem por
manutenção, para não me assustar mais). Mais uma vez uma metáfora da rigidez que não me escapa... mas
é duro ficar duro!

Ah! Nathalie me enviou uma curta mensagem e, para dar início ao nosso diálogo, eu escrevo:

Cara Nathalie,

Espero que você esteja bem. Hoje, tentei boxear um pouco com um boneco
chamado Monsieur Bob, coisa de americano... Pensei em você, no seu professor de boxe (que
aparece no seu livro). Francamente, eu não agüentei, e meu professor de Bob Circuit disse que
eu deveria me concentrar. Bem, é só o começo, mas, para dizer a verdade, o boxe não é
para mim... Estou relendo “A construção de um corpo pornográfico” e fazendo anotações;
penso destacar algumas das suas reflexões para que possamos conversar sobre elas. Posso
enviar-lhe minha tese sobre a construção dos corpos no Rio de Janeiro, caso lhe interesse.

Sinceramente,

Stéphane Malysse

26 de setembro de 2006

Nesses últimos dias, não fui à musculação. Estou com dor na consciência, mas estava
simplesmente sem coragem. No fundo, o fato de não desejar mudar de corpo representa um dos grandes
limites dessa nova experiência. Vejo o quanto sou diferente de Nathalie. Não sinto vontade de parecer
mais viril do que sou naturalmente.

Minha resistência passiva à musculação me remete aos estereótipos da feminilidade ligados a


sonho acordado, pensamentos furtivos, leveza de espírito. Minha postura em relação à musculação parece
fazer surgir em mim um homem trans-gênero, cuja ligação com o corpo e com o esforço físico é
tipicamente feminina. Voltarei ao tema. A disciplina de Nathalie e sua vontade de ferro só vêm realçar o
impasse em que me encontro. Acaba de chegar uma mensagem:

Caro Stéphane,
Seu texto me interessou bastante. Andei, nesse meio tempo, um pouco consumida, preocupada devido a problemas de
hipoglicemia; a tão ambicionada performance do corpo tem seus limites.
Cordialmente,

Nathalie

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Pela sua resposta, vejo também que as coisas não são fáceis; das altas performances do corpo
ao corpo abandonado a si mesmo, os limites são os que nos impomos a nós mesmos. Seria eu firme o
suficiente nas minhas resoluções? Seria eu firme o bastante para viver sem musculação?

2 de outubro de 2006

A semana passou rápido demais. Acabo de voltar da academia, e a impressão é de que


recomecei do zero. Continuo perdido no meio dos aparelhos. Ao fazer a série, me pus a pensar no meu
corpo, na sua evolução nos últimos dez anos ... Um corpo de 25 anos não é a mesma coisa que um de
35... Devo eu começar a me preocupar de fato e me deixar absorver pela lógica da manutenção? Essa
antropologia da musculação é uma antropologia da dor ou da sua negação. Se doer, se forçar demais...
faço uma pausa. Sei que é justamente nesses momentos que alguma coisa acontece nos meus músculos.
Este estudo sobre a construção muscular do gênero evidencia minhas transferências de ordem sexual:
seria feminina a minha personalidade corporal?

6 de outubro de 2006

Pergunto-me se o existencialismo é um culturismo... Continuo com Pilates, duas vezes por


semana. Tento pensar músculo, mas é difícil. É mais fácil escrever sobre eles, ou descrevê-los, do que
construí-los. Considerando-se o músculo como um signo de gênero, um elemento que, tal qual uma
máscara, como teria dito Mauss, revela a pessoa, começo a compreender quem eu sou e quem eu não
quero ser. Ver, observar-se... Sinto-me um pouco frustrado de não ter contato com as pessoas da
academia. Desde que me inscrevi, não encontrei ninguém. Por outro lado, quando faço musculação,
sinto-me muito só; cada um com seu corpo, cada músculo considerado de forma solitária, fragmentado,
isolado. Eu não imaginava minha prática acadêmica como sendo o início de uma crise existencial... “A
astúcia da etnografia, essa aparente ausência do ego, essa dissociação entre sujeito participante e
experiência, consiste em apresentar interpretações – ricas ou pobres, tortas ou hábeis – como descrições,
dependendo do caso e, como teorias, julgamentos que repousem totalmente na comparação, termo que
diz tudo” (GUIDIERI, 1985, p.12). Meu diário descreve bem essa luta, esse corpo a corpo, essa
maiêutica. Quando me comparo a Nathalie (o que acontece o tempo todo), baixo os braços. Tal qual uma
raposa que se deixa abater por uma de suas presas, eu me abandono a uma experiência que não tem nada
a ver comigo. Literalmente, sinto–me diminuindo à medida que realizo as séries de contrações
musculares. Estaria eu perdendo peso?

“Na realidade, encontram-se no testemunho etnográfico três tipos de ambigüidade. A que diz
respeito ao papel (espião-intruso); a que remete à relação (a questão, por outro lado, de reflexo, é: quem é
você?); a que diz respeito à experiência (terei eu, de fato, compreendido, apreendido)” (GUIDIERI,
1985, p 12). Durante as repetições, em vez de simplesmente contrair meus músculos, de não pensar em
nada, ou melhor, de pensar simplesmente no que estou fazendo para fazê-lo com consciência, eu me
comporto como o espião-intruso de que fala Remo Guidieri. Mergulhado na ambigüidade etnográfica,

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minha relação com o espelho fica falseada. Pensar em Proust no momento da musculação não ajuda nada
na concentração... Mas é minha memória involuntária, mais ativa que meus músculos, que me faz voltar às
vezes à minha adolescência, única fase da minha vida em que fui um pouco esportista. No intervalo entre
dois movimentos musculares, penso nas pequenas rãs que eu eletrocutava, na aula de biologia do colégio,
com o objetivo de testar seus reflexos musculares ...

10 de outubro de 2006

“Seria o caso de falar de forma ordenada sobre tantos detalhes insípidos, insignificantes? ... O fato de serem necessários
tantos esforços e gastos inúteis para atingir nossos objetivos não confere nenhuma importância ao que se poderia chamar de
aspecto negativo da nossa profissão. As verdades que buscamos tão longe só valem se desvestidas dessa capa.”
Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos.

Relendo algumas páginas deste diário, eu me pergunto se esta não é uma pesquisa do Tempo
Perdido. Tempo perdido com a musculação, período esse em que não sinto nada, andróide antropólogo
à procura de verdades antropométricas. Perdido no meio de tantos detalhes insípidos, tanto esforço de
repetição, tenho dificuldade em fazer as séries de acordo com a minha ficha de rotina muscular. Na
verdade, em duas semanas, só cheguei ao fim uma vez... Quando estou na sala principal da academia,
tenho a impressão de estar numa sala de espera. Esse universo tem, definitivamente, um quê de hospital.
Desta vez, começo pela musculação e tento trabalhar a respiração. Concentração, musculação. Não posso
nem mesmo fazer os exercícios de olhos fechados... “Não se deve enxergar um músculo como uma parte
de si, mas como um objeto. Tal parte deve ser mais desenvolvida, outra mais afinada, etc., tal qual um
escultor, você dá os retoques como se o corpo não fosse seu” (RAHMOUNI, 1993, p.45).

É nessa separação que eu preciso trabalhar. Preciso me dividir em dois. Observo a forma
como os outros se olham nos espelhos e verifico uma espécie de desprendimento, como se eles saíssem de
seus corpos ao entrar neles mais profundamente. Verifico, também, que seus rostos se contorcem de dor
a cada puxada de ferro. Máscaras estranhas, monstruosas, fariam musculação, também, esses rostos?
Penso nas teorias de Jean-Paul Sartre sobre o olhar. Musculação e existencialismo. No que se refere ao
músculo, certamente a existência precede a essência? É indubitável, não se nasce musculoso, a gente se
torna musculoso...

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Quinta-feira, 12 de outubro de 2006

“Sexta-feira, 15 de outubro.
Ontem, trabalhei bastante no meu diário.”
Malinowski, Diário de etnógrafo.

Ontem, decidi cavalgar num dos aparelhos que me despertava curiosidade desde o início do
meu treinamento, por causa dos movimentos nada naturais a que ele obriga. Quando estava prestes a me
instalar, um personal chegou até mim e disse que eu deveria reservar um horário para utilizá-lo... Numa
perspectiva micros-sociológica - a academia sendo um território situacional -, esse aparelho faz parte do
equipamento colocado à disposição dos usuários, um bem de uso comum. Nesse quadro, percebe-se um
“aluguel temporário, medido em segundos, em minutos ou horas, formalizado ou não, e que suscita
constantemente problemas de começo e de fim” (GOFFMAN, 1974, p. 44). O autor define “a vez” como
“a ordem segundo a qual um detentor de direito recebe um bem qualquer em relação a outros que detêm
o mesmo direito na mesma situação” (GOFFMAN, 1974, p. 49). No fim, como não há ninguém, eu não
estou tomando o lugar de nenhum detentor do direito, posso utilizá-lo. Já cavalgando, eu pergunto a uma
vizinha de aparelho semelhante ao meu quais as virtudes desta máquina... Emagrecer... Ah... Ok,
obrigado... (Subentendido: não é para mim).

Fiquei ali cinco minutos e resolvi deixar o lugar, “espaço devidamente limitado ao qual o
indivíduo pode ter acesso temporariamente, cuja posse baseia-se no princípio do tudo ou nada”
(GOFFMAN, 1974, p. 47) a qualquer outra pessoa... a quem tivesse necessidade (de emagrecer). Depois,
eu fiquei com um pouco de dor na consciência, pensando na minha vizinha, muito gorda, que pode ter se
sentido mal com a minha parada súbita. Mas ela não parecia estar pensando de maneira mais profunda
naquele momento. Aí, disse para mim mesmo: Não vou à academia para emagrecer, mas para aumentar
minha massa muscular. A cada um seu corpo, a cada um sua merda...

Sexta-feira 13 de outubro de 2006

“Quinta-feira, 24 de janeiro. Pela manhã, ginástica; estado de


confusão sentimental.”
Malinowski, Diário de etnógrafo.

Ainda não fui fazer ginástica, devo ir à noite. Ontem, trabalhei bastante no meu diário. Para
mim, é bem mais fácil ficar sentado e escrever do que pôr meus músculos em ação. Procuro manter o
equilíbrio entre o tempo de escrever e o tempo de fazer exercícios, mas, na realidade, resisto à dor
muscular o mais que eu posso. Por outro lado, mantenho a atualização do meu diário com uma disciplina
que gostaria de ter na academia.

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Respondo à mensagem de Nathalie:

Cara Nathalie,

Estou muito feliz em tê-la como leitora. Continuo meu campo/treinamento na


Academia Runner, mas resisto intensamente ao esforço físico, tento sempre escapar... Não
se muda tão fácil! Espero que você esteja bem e gostaria muito de conversar com você
sobre esse tema que interessa a nós dois.

Até breve,
Com amizade,
Stéphane Malysse

Segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Ontem, fui fazer uma sessão de Pilates... Dessa vez, concentrei-me no meu próprio esforço
físico e não estive sob a mira de ninguém. O curso de Pilates é muito tranqüilo, pouca luz, pouca música e
repetições de gestos que parecem bem naturais... A caminho do vestiário para pegar minha sacola, reparei
que havia uma pequena sauna na academia... Mas eu não gosto de saunas.

O método Pilates visa a aperfeiçoar o rendimento muscular. A técnica, que surgiu nos anos
20, leva o nome de seu inventor, Joseph Pilates, um alemão que emigrou para os Estados Unidos no início
do século. Por meio de uma série de exercícios variados, aprende-se a ativar os músculos fracos e a relaxar
os tensos demais a fim de equilibrar a musculatura. É também uma forma de se tomar consciência do
próprio corpo e do funcionamento dos músculos. Alongando-os, o iniciado aprende a isolá-los para
fortalecê-los. O objetivo é estabelecer o equilíbrio no corpo, a partir do abdômen, da bacia e da parte
posterior. A postura, o alinhamento adequado do corpo e a respiração continuamente exigida na
execução de cada movimento constituem a base da técnica. O resultado é uma melhoria na força, na
flexibilidade, na coordenação e na própria postura. O método pode ser utilizado como esporte completo,
como complemento a qualquer outro exercício físico ou como método de reeducação. Em resumo, é
rígido e torna rijo... O que é bom para o corpo, mas a chance de eu continuar é pequena... Bem, veremos
amanhã.

Terça-feira, 17 de outubro de 2006

“Hoje, segunda-feira 19/09/14, tive um sonho diferente, um


sonho homossexual em que o meu parceiro era eu mesmo.”
Malinowski, Diário de etnógrafo

Hoje, corrida na esteira e musculação. Fiquei 45 minutos, transpirei bastante, e tentei me


concentrar nas minhas sensações... Por outro lado, observo que, desde que comecei, eu pouco mergulhei
na interação; definitivamente, essa prática de campo é bem diferente da que realizei anteriormente

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quando coloquei em marcha estratégias de socialização inspiradas por Harold Garfinkel. Desestabilizar a
situação para chamar a atenção e fazer contatos, fazer perguntas... Desta vez, trata-se de uma observação
muito mais independente, interiorizada e não-socializante... Até os personal trainers parece que
abandonaram o novato, e devo dizer que não fiz nenhum esforço nessa linha... Algumas vezes, mantenho
trocas cordiais com os que desejam revezar os aparelhos, em geral, cedo meu lugar e troco de máquina
com muita desenvoltura...

Minhas sensações são certamente as mesmas de há 15 dias... Primeiro, a questão do


deslocamento, sinto-me um pouco tolo, ridículo com a cobrança pelo fato de aplicar ao meu próprio
corpo técnicas que eu desprezava... outras sensações, diria, desagradáveis... transpiração incontrolada...
Pergunto-me se é uma boa idéia começar pela corrida, pois molho todos os aparelhos com o meu suor...

O suor, a dor, a labuta, sensação de corpo, de corpo de um mártir... Faço o possível para não
fazer caretas demais (em geral, diminuo a carga ou mato o final da série...). Já avisei o personal que não fui
até o fim... com relação ao cigarro, é a mesma coisa, sempre a possibilidade da fuga do objetivo, um
entrave à minha decisão, uma fraqueza passageira... A sensação é a de dor muscular, como se uma pessoa
acordasse dez anos mais tarde com dor no corpo inteiro... Quando penso que Nathalie escreve no seu
livro que ela goza das costas (de tanto malhar...). Eu sou totalmente diferente dela, em todo o caso meus
objetivos e minhas sensações corporais são diametralmente opostas às que ela descreve... A idéia ou o
conceito de ter uma vontade de ferro, no meu caso, está ainda em estado embrionário. Meu
desprendimento de mim mesmo não é fácil. Não me destaco do meu corpo e não o vejo como uma terra
a ser esculpida. Pergunto-me se o sonho homossexual de Malinowski não tem algo a ver com essa
dificuldade de tornar-se outro no seu campo de pesquisa, de se arrancar de si mesmo, de se violentar, de
se auto-estuprar...

Nathalie acaba de me escrever:

Bom dia,

Lendo seu interessante trabalho, descubro valores novos, não imagináveis no “nosso” contexto ocidental (belga ou
francês). Aqui, a prática do fisiculturismo é marginal, acontece no meio proletário e se iniciou há pouco tempo no meio gay.
Minha trajetória como mulher, ao contrário, vem ao encontro dos critérios tanto ocidentais como brasileiros – teria mais a ver
com um forma de “trans-gênero”, mas ultrapassando-o e chegando à masculinidade. Simplificando, eu forjei meu corpo à
maneira e motivação dos homens daqui: impacto de poder sexual e virilidade no relacionamento com o outro. Não sei se, desta
forma, respondo às perguntas que você quer me fazer. Acho que uma minoria singular de mulheres caminha nesse sentido,
como Renée Toney – quanto ao seu impulso e motivação primeira, elas não se referem ao Desejo de masculinidade. Num
segundo momento, nós somos praticamente obrigadas a levar em conta uma parcela desse olhar social para não sermos
percebidas, na nossa singularidade, como algo monstruoso, estranho. Existe, portanto, uma espécie de ambivalência motivada
por um instinto de sobrevivência no seio de uma dada sociedade. É possível “ser de fora”, na margem, mas é preciso também
poder parecer, de repente, quase dentro para estabelecer a comunicação (que interessa, isto é, diz respeito um tanto, ainda que
pouco, aos “outros”). Aí está um “pas de deux” complicado e antagônico, uma “triste” estratégia de sobrevivência, pois ela
trai a vontade própria para poder existir no meio dos outros.

Até breve,
Nathalie
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Relendo esse texto, eu me sinto ao mesmo tempo comprometido e aliviado. Eu, como gay,
nunca senti essa necessidade de construir meu corpo, minha aparência, meu gênero. Que gênero de
homem seria eu, definitivamente? Acho que existe o feminino no meu masculino assim como o masculino
no feminino de Nathalie, mas nós não vemos isto da mesma maneira. De qualquer forma, uma coisa é
antropologicamente clara: não existe gênero puro, mas, sempre, misturas de gênero. Se o sexo social, tal
qual imposto pela sociedade, torna-se uma gramática muscular, minha relação de espelho com Nathalie
nos faz mergulhar na essência do tema. Eu me vejo, me miro às vezes no espelho e sei muito bem com o
que pareço (e o que minha imagem suscita), sem dúvida, mas isto não me cria nenhum problema. Sinto
que existo no meio dos outros, que sou visto e observado, mas nunca me coloco a questão dessa recepção
no sentido do masculino ou do poder sexual. Sei que um traço de feminilidade é igualmente perceptível
na minha pessoa, mas eu não o rejeito, ele está aí, em alguns momentos presente, em outros, não. O que
me toca nessa mensagem e me fascina em seus livros é a sinceridade de Nathalie. Lembro-me que num
determinado ponto ela se libera: “Eu me evado do corpo feminino, eu ganho vida...” (GASSEL, 2005, p
39) e eu me recolho sobre meu corpo masculino como numa concha: eu preciso me sentir bem nele e
isto acontece naturalmente, sem esforços.

Seu estilo me remete à função catártica e emotiva do Diário de etnógrafo e toca no ponto
nevrálgico da nossa diferença. Com relação à questão do gênero, nossas vivências corporais são
diametralmente opostas: não sou um homem em busca da masculinidade, mas um homem que se deixa
levar pela ambigüidade masculino/feminino; ela é uma mulher em busca da masculinidade e do impacto
de poder sexual e de virilidade contidos nela. A dimensão sexual das construções corporais já tinha me
chamado a atenção por ocasião da minha experiência acadêmica no Rio de Janeiro, e eu cheguei a
trabalhar a noção de hiper-ritualização do gênero por meio da musculação, mas, a partir desse encontro, sei
que a minha reflexão está se enriquecendo, pois me sinto na obrigação de colocar em marcha uma auto-
análise do ponto de vista sexual e de gênero. Cada vez mais comprometido com essa relação, retomo a
leitura crítica de seu ensaio.

“O corpo homossexual carrega em si o sentido da exibição, ele se preocupa com a sua beleza,
com o fato de ser um corpo que se quer possuir, ele cultiva a própria harmonia, se auto-deseja.”
(GASSEL, 2005, p. 35). Gay-jà vu? A visão que Nathalie tem do corpo homossexual me parece muito fiel
e muito sincera. Ela confirma meus estudos sobre a musculação no Rio de Janeiro e me faz vislumbrar
perspectivas generalizantes e interculturais. A sedução é o centro das exibições homossexuais, aconteçam
elas num bar, numa discoteca ou numa sauna. E chegamos, aqui, ao ponto que mais me interessa. Para
alguns, essa pesquisa do desejo do outro passa por uma (re)construção do corpo, uma construção
motivada pela vontade de se transformar em um corpo que se quer foder. Para outros, essa vontade de marcar,
de fazer boa figura no espaço do desejo não passa por uma modificação das aparências, contentando-se
com o potencial físico já adquirido, com sua aparência tal e qual. Trata-se, evidentemente, de uma
escolha que depende mais do mercado sexual que do próprio sujeito. Eu sei que meu tipo físico faz mais
sucesso no mercado sexual do Brasil do que no da França. E, não sei se não seria tentado a modificar
minha aparência, caso tivesse que atravessar o deserto sexual europeu durante um longo período. O que
prova que o problema da construção da aparência é o da identificação com certas formas de desejo
sexual.

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A aparência, ao mesmo tempo emissora e receptora de signos sexuais, reage de forma
particular, dependendo dos contextos sócio-sexuais e das trocas de poder. Como diz Nathalie, “o poder
enquanto expressão é uma preocupação constante, uma loucura, uma tontura, uma vertigem do eu. No
espaço de um dia, que atos postados? A caça, o sexo. Atividade ancestral. Isto substitui o resto, a atividade
promocional de si, todos os campos de interação onde testamos nossa importância, nossa autoridade,
nosso peso ... Eu desnudo os corpos através das roupas. Da mesma forma que comemos, transamos, a
mesma atitude canibalesca: nosso prazer” (2005, p. 33). Com a declaração “transar é a minha atividade
social mais comum”, Nathalie assume a relação entre construção do corpo e atividade sexual. Aí está, na
minha opinião, o nó antropológico da relação que o sujeito tem com seu corpo que deseja, e o nó com o
qual ele constrói uma armadilha ao olhar desejante do outro.

A noção de intersexualidade é uma pista interessante: descreva-me quem você deseja


sexualmente e eu lhe direi qual é sua expressão sexual e com quem você quer parecer. Sexualidade como
projeto, como projeção. Parece-me que a sexualidade de uma pessoa não é fixa, ela se fixa no outro. Na
verdade, a sexualidade de uma pessoa depende de quem ela deseja (sexualidade fantasiada), de como ela
mostra socialmente sua opção sexual (sexualidade assumida) e do que ela faz realmente com a pessoa
escolhida (sexualidade praticada). A sexualidade de uma pessoa, sempre em evolução entre esses pólos
sexuais instáveis, não se pode definir fora do contexto da interação sexual.

Segunda-feira, 23 de outubro de 2006

“Falo com um chinês do qual não se pode tirar nada.”


Malinowski, Diário de etnógrafo

Fui treinar antes de almoçar. Recapitulando minha série de musculação, conversei um


pouco com um outro personal trainer (ou treinador impessoal pago pela academia para ajudar os inscritos
na sua mutação voluntária) que me disse que se eu não fizesse o programa ficaria todo curvado, e
confirmou minha tese sobre a atenção que os membros superiores despertam nos homens e, os inferiores,
nas mulheres. Em última análise, ele fez com que eu tomasse consciência de uma coisa... o quer que eu
faça, como desta vez estou colocando meu corpo em risco, representa a possibilidade de fazer bobagens
irreversíveis e visíveis... Daí, marquei uma nova sessão de personal para amanhã, às 14 horas, para pôr em
prática meu programa individualizado. Na verdade, eu já o fiz com um outro, mas ele não montou uma
rotina muscular personalizada, simplesmente apertou algumas teclas do computador e imprimiu uma
série básica... Devo sair desse patamar.

Após alguns minutos de esteira, utilizei cinco aparelhos de musculação e, na seqüência, fiz
45 minutos de Pilates... Uma sessão bem calma, serena, só uma outra aluna, e repetições de gestos
simples... mesmo com calma, o trabalho é bem difícil... diante do público escasso, a professora explicou
que as pessoas querem sempre atividades para transpirar, mais rápidas... e que os cursos de Pilates sofrem
deserção...

As sensações durante o exercício são sempre as mesmas: inaptidão, decalagem, tensão, dor...
Penso nas esculturas forjadas no espírito dos aparelhos de musculação... um aparelho para desenvolver os

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músculos de quem tem três braços, aparelhos para crianças, uma cruz de madeira no lugar do aparelho
crucifica(dor) de musculação e um vídeo com os rostos sofridos dos seres corpulentos... uma nova versão
musculosa do martírio da Bíblia.

Volto para casa e para Nathalie. “Nós nos aventuramos por outros caminhos, fortalecidos
pela verdade imperativa do corpo. Aprendemos a facticidade, nos assustamos com esse segundo sopro de
vida. Um vento fresco de corpo novo nos vivifica. Uma massa de corpos de propaganda exerce às vezes
suas tentações. A lei do lucro está posta. Nós vigiamos nossa mais-valia...” (GASSEL, 2005, p. 37). No
espaço acadêmico, esses corpos midiáticos estão presentes nos espelhos e nos televisores dispostos para os
que querem correr vendo tevê. Eu os observo, de tempos em tempos, e calculo automaticamente sua
mais-valia antes que eles se ponham a imaginar a minha. Nessa nova aventura, sinto-me perdido na
encruzilhada de todos esses caminhos que levam ao músculo. Não sinto nem o ar fresco (à exceção do ar
condicionado) nem esse segundo sopro de que fala Nathalie. Estou ausente fisicamente e minha mais-valia
não está adaptada a este espaço. Como poderia eu chamar a atenção pela minha musculatura: eu não
tenho e não quero ter. Os outros percebem que minha presença é singular: eles me enxergam como um
vidro transparente, somente os ossos visíveis.

“Na massa anônima de corpos, cruzando-se no cotidiano das cidades, alguns mais belos, mais
sublimes, se destacam e arrancam faíscas dos nossos olhares. Pode-se perfeitamente projetar um olhar
transversal e, invertendo o processo, ver-se por sua vez vítima das múltiplas oportunidades ofertas pelos
olhares seletivos do outro. A solução mais narcisista, na essência, é sair do anonimato em direção a um
status transcendente” (GASSEL, 2005, p. 38). É na rua, nas baladas que a minha mais-valia (mais-vadia)
se destaca. Existem pessoas mais sedutoras vestidas do que nuas, e se eu posso sair do anonimato sem
fazer musculação...

A ausência, a invisibilidade que eu experimento na academia é compensada quando eu vou


embora, quando eu saio à noite. Meu status transcendente é definitivamente noturno. Minha solução mais
narcisista é sair à noite. É à noite que eu vejo as faíscas que eu provoco e que me entusiasmo rapidamente
por alguém que está me atacando. Será a noite menos anônima? Pena, é segunda-feira, não posso sair,
não há nada para fazer numa segunda-feira à noite, mesmo em São Paulo. Antes de dormir, respondo à
ultima mensagem de Nathalie:

Cara Nathalie,

Obrigada por sua reposta. Estou retomando lentamente o trabalho de musculação...


Em compensação, li, com certeza, pelo menos cinco vezes, seu livro, e ele me ajuda muito a
entender o que está se passando (ou não) comigo. Eu me agarro a essa pista freudiana do
corpo ideal forjado no modelo do falo ereto. Isto mais me intriga do que estimula ... Bem,
decidi citar seu livro no meu diário de uma forma muito simples, seguindo o curso das
minhas leituras e dos meus comentários... Espero que você esteja melhor.
Com amizade,
Stéphane Malysse

21
Terça-feira, 24 de outubro

“No auge do combate, descubro eu, o lento trabalho de criação do


músculo, por meio do qual a força cria a forma e a forma, a força,
repetindo-se isto com tanta rapidez que se torna imperceptível ao
olho.”
Yukio Mishima, O sol e o aço

Acho que o personal trainer tem a função de um superior hierárquico , um “chefe corporal”, ele
põe o aluno em frente, motiva-o, constrange-o... A disciplina que se consegue obter por meio do olhar
vigilante do outro... Após minha confissão, novo recomeço, forma física recuperada... Esta manhã, a
academia me ligou para saber se eu estava satisfeito com os serviços... Verificação da minha rotina, desta
vez personalizada... Acho que é melhor reproduzir minha conversa com esse personal:

SM– Desculpe a demora...


PT – Não há problema... Vamos ver sua ficha...
SM – Ah! Não sei o meu número de inscrição de cor. Só sei que estou ainda no treinamento A, o
do computador...
PT – É Stéphane Malysse ou Malysse Stéphane?
Qual o número de inscrição?
Encontrei 23656805...
SM – Thiago, um outro personal, montou minha primeira série... na verdade, eu só o vi apertando
uma tecla do computador.
PT – Sim, é assim no caso dos que estão iniciando...
Vou imprimir sua nova série...
SM – Em geral, faço dez minutos de corrida, como venho a pé, já chego aquecido.
PT – Mas seria melhor fazer a bicicleta ergonômica, aquece mais...
SM – Mas, andando, eu também faço exercício, não?
PT – Não, não é suficiente, pois você só aquece a parte inferior do corpo.
SM – Quando esses aparelhos ficam velhos, o que vocês fazem com eles? Vão para o cemitério?
PT – Não, nós os vendemos para uma outra academia... Um academia de bairro... dá para
utilizar... o aparelho é usado, ultrapassado, mas dá para aproveitar. Digite seu nome e número de
inscrição no computador que eu vou imprimir sua ficha...
SM – Você já montou a minha nova série? Mas eu não mostrei os aparelhos que eu quero
experimentar ... É de novo o computador que decide tudo! Já que é assim, vou montar eu mesmo minha
série, à la carte!
PT – Não há problema, se você quiser mudar alguma coisa, nós o faremos antes de passar a
limpo a série definitiva... Certo?

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SM – Ok, então, vamos lá... Bem, para os abdominais ... Acredito que as sessões de Pilates são
suficientes.
PT – Quantas vezes por semana?
SM – Três.
PT – Então, como o Pilates já cobre 99% dos exercícios abdominais, podemos retirá-los da sua
série... Malysse, vamos fazer uma série de 30 em cada aparelho e em seguida passaremos as informações a
limpo no computador... Ok?
SM – Não há problema, acho que é melhor assim, pois se eu continuar a fazer qualquer coisa
inadvertidamente, durante seis meses... vou ficar estropiado.
PT – Isto mesmo, se você não fizer a série de forma adequada, você pode se machucar.
SM – Ok, esta é a nova série, então, série B?
PT – Sim.
SM – Ah... Começamos mal... Eu não gosto deste aparelho... não estou com a mínima vontade
de começar por este exercício.
PT – Por quê?
SM – É um gesto primitivo demais...
PT – Mas você já tentou...
SM – Sim, sim... Bem, eu não quero parecer chato, mas prefiro dizer, já, o que eu vou querer
fazer e o que eu não vou fazer de jeito nenhum, estamos aqui para montar meu treinamento, não para
mentir para si mesmo...
PT – Bem, se eu entendi, você não quer fazer este exercício pois o gesto é primitivo demais
(sorriso nos lábios). É a primeira vez que eu ouço isto, mas, bem, cada um é como é... Mas, veja bem, os
gestos que você acha “primitivos” são os que funcionam melhor, pois eles trabalham o equilíbrio e a
resistência... Bem, enfim, a decisão é sua.
SM – O que acontece é que existem gestos menos agradáveis do que outros, e como eu vou
precisar repeti-los 30 vezes, prefiro escolher...
PT – Vamos lá...
SM – O outro personal me explicou (e eu segui à risca sua orientação) que se deve sempre alternar
um exercício que trabalha a parte superior com um da parte inferior...
PT – Como você é muito alto, é importante ajustar o aparelho ao seu tamanho, certo?
SM – Ah, sim, é bem mais confortável...
PT – E, assim, você não faz movimentos errados.
SM – Na outra série, eu não trabalhava esses músculos...
PT – Se você quiser aumentar um pouco a carga, é você quem manda...
SM – Já que eu fiquei cinco anos sem fazer nada do ponto de vista muscular, prefiro começar de
leve, senão vou ficar com dor no corpo todo no dia seguinte...
PT – Então, vá aumentando aos poucos...
SM – É preciso limpar o aparelho antes de usá-lo...
PT – É por causa do pessoal que transpira muito...
SM – É também para tirar o sal...
PT – Veja, faça assim.
SM – Você colocou bastante peso... Entendi o exercício. Pode tirar a metade.
PT – Quando você terminar, pode ir para aquele aparelho, lá.
SM – Aie!... a cabeça para baixo, o sangue vai me subir à cabeça...

23
PT – Não tanto...
SM – Acho que prefiro o do lado. Dá para mudar?
PT – Ok...
SM – Ah, bem melhor... além do mais, dá para ver tudo o que se passa na academia, enquanto
que de cabeça para baixo...
PT – Mas você está aqui para trabalhar seus músculos... ou para ficar vendo o movimento? Bem,
aqui, você trabalha a parte posterior da coxa.
SM – Está bem, mas a posição é meio esquisita ...
PT – Então, podemos tentar aquele outro... Não é nada fácil orientar você, você não gosta de
nenhum aparelho...
SM – Sinto muito, mas eu prefiro os mais modernos, mais confortáveis... Pelo menos, naquele lá,
fico melhor instalado, já é um ganho... Não vou dizer que é agradável, mas dá pra fazer... desta vez, está
mais leve.
PT – Coloquei 20 kg, mas, se você quiser, pode aumentar.
SM – Depois...
PT – Você precisa respeitar seus limites, depois pode aumentar o peso e diminuir as repetições...
SM - 1...2...3...4...5...6...7. Sinto que estou ficando firme... 8...9...10...11... fim. Não se preocupe,
não sou do tipo que exagera no exercício...
PT – Terminou?
SM – Sim.
PT – Até 15...
SM – E...
PT – E pode começar a segunda série...
SM –1.......7.......9.......16.......19.......
PT – Oh... Está bom, vamos trabalhar um outro músculo em outro aparelho ...
SM – Grande ou pequeno?
PT – Como?
SM – O músculo. Há os grandes e os pequenos ... Os pequenos me interessam menos do que os
grandes: tipo bíceps ou tríceps, não estou nem aí... Não quero aumentar demais o volume... do volume
deles.
PT – Mas não é dessa forma que você deve pensar “músculo”. Todos eles são importantes, você
sabe... se você trabalha os ombros e as coxas e descuida dos músculos que considera “pequenos”, você
terá problemas de circulação e até de lesões ... Não agora, mas no futuro. Veja, precisa pôr o banco um
pouco mais baixo.
SM – Assim?
PT – Certo. Não está muito pesado? 20kg?
SM – Está bom... Na verdade, no começo da série, nunca acho, mas depois ..... Arghhhhh .....
Agora, está pesado ....
PT – Vá mais devagar, então....
SM - ......3............5..........15.
PT – Está bom, faça uma pequena pausa entre as repetições e recomece...
SM – 1............... 6............... 7...............8...............9..............12..... pronto.

24
PT – Você sabe que pode sempre diminuir... mas tente fazer a série completa. Agora, vamos
trabalhar este pequeno músculo, a panturrilha. Eu sei que você não simpatiza com ele, mas é importante
para o equilíbrio corporal.
SM – Ok...
PT – Veja, dessa máquina, dá para ter uma boa visão de conjunto do que se passa na
academia...
SM – Sim, e o assento é muito confortável.
PT – A ponta dos pés fica aqui e você empurra ...
SM – O espaço é um pouco curto, acho que minhas pernas são compridas demais para este
aparelho...
PT – Não, veja, você pode empurrar mais.
SM – Ah, sim, é melhor assim... 3 vezes 15, então?
PT – 30 kg
SM – E eu que achava minhas pernas mais resistentes do que meus braços.
PT – Sim, é normal.
SM – 1........8........15........
1........4........7........15........
Faltam ainda muitos aparelhos?
Os dos braços. 1........3........8........15.
PT – O ideal seria trabalhar um músculo a cada sessão. Por ora, coloquei o mínimo do mínimo...
Mas é preciso fazê-lo, certo?
SM – Ok.
PT – Você empurra, sobe, e desce devagar... É para os bíceps...
SM – Está doendo um pouco...
PT – É normal, você se acostuma.
SM – E o rosto, ele também trabalha os músculos?
PT – O rosto?
SM – Claro, eu vejo que as pessoas fazem caretas, e fico com a impressão de que eles se inflam
também.
PT – É claro...
SM – Eurk... vou tentar manter a serenidade para não ficar com o rosto inflado... não quero
malhar meu rosto...
PT – Você se preocupa demais com detalhes..., concentre-se no exercício e tente não pensar
demais...
SM – Não é fácil ... mas, e daí, fazemos musculação com o rosto, ou não?
PT – Sim, de certa forma, mas isto não muda a cabeça das pessoas...
SM – Ele continua contente... risos...
PT – Neste aparelho, tente fazer uma série de 15...
SM – 1 ........5........10........15... estou pegando, me recupero. Esse sistema de duas vezes 20 ou
três vezes 15... é meio complicado...
PT – Mas é dessa forma que você trabalha a resistência... Respire bem entre as séries e
recomece...
SM – Ok, compreendi. É justamente essa rotina muscular que estamos tentando estabelecer...
Isto dura quanto tempo, uma meia hora?

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PT – Bem, como eu eliminei a série abdominal, por causa do Pilates..., se você fizer tudo sem
discussão, nem pausas demais entre os exercícios, dá para completar o programa em meia hora.
SM – E aquele aparelho, é o último?
PT – Aqui, você deve ficar bem de frente, e como você é alto, deve pôr o banco para a frente,
ok?
SM – É legal essa máquina. Tenho a impressão de estar diminuindo...
PT – Está bom...
SM – Sim, ao menos desta vez, trabalhei todos os músculos... Eu já tinha feito academia no Rio
de Janeiro, há dez anos, mas não usava pesos... malhava no vazio!
PT – Ah é? Mas, então, sem resultados...
SM – Bem, para dizer a verdade, o resultado era um doutorado.
PT – Mas, e teu corpo? Nenhum progresso? Você ficava observando sem fazer nada... isto
durante dois anos! Eu não conseguiria... sem peso nenhum ...
SM – Os outros ficavam um pouco perplexos, sim...
PT – Vamos lá, voltemos aos exercícios... mas, para você, isto não é muito importante, se eu
entendi bem.
SM – É isto, de qualquer forma, é a última série, certo?
PT – Você é francês?
SM – Sim.
PR – Você quer a continuar a série que acabamos de montar?
SM – Por hoje, chega, volto amanhã.
PT – Então, vou passá-la a limpo.
SM – No fim, são quantos aparelhos?
PT – Nove
SM – Tudo isso?
PT – É pouco, é só manutenção, por ora...
SM – Para mim está bom.
PT – Bem, no mais, se você precisar de orientações no futuro, estou à sua disposição...
SM – Ok, obrigado, vou tentar perguntar menos e levantar mais quilos...
PT – É melhor.
SM – Obrigado pela ajuda e pela paciência... vou tentar me concentrar nessa nova série...

Saí da academia, acabado, mais do ponto de vista psicológico do que físico. Fiquei lá por
exatamente 46 minutos, o que é pouco, mas o que, lá, parece uma eternidade. Fui para a casa de Bruno
que me hospeda enquanto meu apartamento está em obras. Ele parecia surpreso de me ver com roupa de
ginástica. Acho até que riu, vendo-me chegar suado. A ironia é, de fato, uma coisa de amigos. Relendo
Nathalie Gassel, o trecho em que ela fala em “criar sua própria ficção, depois se reformular, tocando a
carne imediata do ser – para realizá-la. A ficção é um projeto de realização” (GASSEL, 2005, p. 72), eu
me esvazio como um balão. Minha ficção corporal não toma corpo. Eu não vejo nem sinto nenhuma
diferença na minha carne. No fim, eu sou um pouco como Descartes, tenho dificuldade em integrar
minha carne a mim. Minha ficção é essencialmente antropológica. Meu corpo não é o problema: o
problema é me submeter a uma ficção corporal em que não acredito e à qual não quero estar associado.

26
Se, como Nathalie afirma mais para a frente, “a aparência significa, então, gozar do bem-
estar, da liberdade. Gozar do corpo, mesmo. Gozar sempre pelo fato de se mostrar por meio das roupas
adequadas, estudadas, escolhidas... Fazer do corpo um objeto de manipulação visual, de luxo, de glória”
(GASSEL, 2005, p. 80), aí está, justamente, o que eu não manipulo, meu corpo muscular. E isto é
exatamente o que eu havia constatado a partir do meu estudo sobre o culto do corpo no Rio de Janeiro e
as produções, ligadas às roupas, que o acompanham. “A estimativa que o olho faz da carne”, da minha
carne é uma estimativa noturna, glamurizada pelas luzes das discotecas, bares e restaurantes da noite e a
análise, a escanerização se dá, no meu caso, eu estando vestido. Então, quando ela acrescenta: “o corpo
torna-se vestido com os músculos à flor da pele, grandioso na sua sensibilidade, sábio na sua amplitude”.
Nu, estou completamente nu... com os meus músculos desencapados. E esta metáfora soa familiar. Há dez
anos, pensei o corpo malhado nesses termos... e constatei que, mesmo nus, os cariocas que eu despia com
o olhar, na praia ou na academia, permaneciam totalmente vestidos muscularmente. Nu&vestido. Escrevo
para Nathalie, pois não sei por que minha última mensagem ficou sem resposta.

Sexta-feira, 27 de outubro de 2006 (na casa de Bruno)

“Eu estava bastante deprimido, duvidando estar à altura da missão,


da tarefa que me aguardava”
Malinowski, Diário de etnógrafo

Não sei onde foi que eu li que o trabalho antropológico se aperfeiçoa na medida em que o
pesquisador passa a enxergar como um problema não só sua tarefa como a si mesmo. Relendo meu
diálogo com o personal, eu vejo até que ponto eu sou um problema para ele e como meu problema de
relação com essas coisas do músculo está longe de se resolver. Sou resistente à musculatura do ponto de
vista psicológico e antropológico.

Pronto, hoje, nada de academia, nada de energia. Ficar sem casa não é fácil. O equilíbrio está
em jogo. Além do mais, estou ficando gripado. Saí quarta à noite e voltei quinta de manhã. Isto explica
tudo. Não dá para fazer duas coisas ao mesmo tempo. A partir de amanhã, começo a investir em duas
partes do corpo: a boca e a minha casa. Revendo minha sessão de treinamento personal, observei que, no
caso dos pequenos músculos, minha má vontade é evidente. Estou com dor no bíceps desde ontem, uma
tensão desagradável que limita meus movimentos... Um endurecimento, uma dor muscular, uma reação
física. Para um homem que estuda o corpo, deixo a desejar quando se trata de cuidar do seu próprio... A
operação sem cigarro é um fracasso. Como, para o sexo do músculo, tenho Nathalie ao meu lado, acho que
preciso convidar Allan Carr para se juntar a essa aventura existencial e corporal do sexo do espírito, a
droga mental (e, também, extremamente fálica): o cigarro.

“Eu estou, desde então, próxima do músculo como idéia, ilusão do corpo, o equivalente, na
nudez, ao que seria ao mesmo tempo um traje de prestígio e uma espécie de cela na qual a gente se
aprisiona, uma idéia que nos governa” (GASSEL, 2005, p. 61). Revisando minha nova ficha muscular,

27
entendo melhor essa reflexão de Nathalie. A idéia da prisão é clara: para mim, minha prisão é a minha
série. Sem ficar um bom tempo nela, não terei meu traje de prestígio! Mais adiante, encontro esta frase:
“Como quando a gente levanta os pesos para nutrir os músculos com o afluxo de sangue, de si mesmo...
para ficar num contato mais estreito com eles. A gente sente firmemente sua presença e goza” (Gassel,
2005, p. 33). É justamente esse gozo que me escapa. Nunca senti a menor sensação agradável fazendo
musculação. Em vez de fazer musculação buscando um certo prazer, um gozo físico e um verdadeiro
contato com meu corpo, eu observo meus músculos que se inflam e desinflam, com um certo desprazer,
olhar de anatomista entediado, murcho... Sem notícias de Nathalie...

Cara Nathalie,

Mando notícias, já que não recebi nada desde o último envio em que selecionei
trechos de seu livro que mais me interessam. É estranho, e acho que é porque somos muito
diferentes. Pareço meio paranóico, talvez tenha cometido algumas gafes? Fui
inconveniente? Bem, não sei o que está acontecendo com você... Na academia, agarro-me
aos pesos como um gato às cortinas...

Até logo mais, espero...


Stéphane Malysse

Sábado, 28 outubro de 2006

"As idéias não enxergam aqueles que as miram;


as coisas, sim."
Yukio Mishima, O sol e o aço

De novo na academia, onde fiquei por alguns minutos, uma meia hora... A academia estava bem cheia.
Muita gente que eu nunca tinha visto estava lá, sem dúvida pessoas que têm um horário fixo de trabalho e
não podem, como eu, ir à academia durante a semana, à tarde ou pela manhã... Como sempre faço,
comecei com cinco minutos de marcha acelerada para despertar meu corpo e, na seqüência, parti para
três máquinas, ombros, peitorais... Acho que estou entrando no molde... Conscientemente, ou não, decidi
trabalhar e esculpir as partes mais visíveis do corpo masculino, as que representam a força, a virilidade, o
tônico...

Voltei a fumar. Voltarei a parar de fumar... Preciso voltar a ler o livro da receita fácil para parar de
fumar... Ler é sempre mais fácil para mim... parece que resolve tudo. Ainda não estou com a chave do
novo apartamento, minha primeira casa... Vou, temporariamente, para a casa de meu amigo Bruno,
enquanto aguardo a mudança. Almoço, aqui, pela última vez, bem à francesa, carne moída com alho
picadinho e flageolets à la crème (feijão verdinho francês, da Bonduelle...).

28
Enquanto como, penso nos meus músculos, no que essa refeição pode significar em termos de massa
muscular... será que o feijão é bom para os músculos? E o creme de leite? Lembro-me que a alimentação
é a base da musculação e percebo como são limitadas minhas noções de nutrição. Deveria eu fazer um
super-regime? Comer por dois? E se não tenho fome? E a cozinha francesa...

Mais tarde, recebo uma mensagem de Nathalie:

Caro Stéphane

Na verdade, essa mensagem tinha me escapado, eu não estava bem. Desmaios, crises diárias com palpitações. Ainda bem que
você me reescreveu, assim a encontrei. Seu projeto é muito interessante. Estou a fim de participar sim, me parece um bom
trabalho. Na realidade, o meu título "Construção de um corpo pornográfico" é simbólico (o livro não é pornográfico). Significa
efetivamente o corpo, na sua masculinidade, transformado em falo, em ereção. É um corpo fálico, com capacidade de ação e de
poder, numa mulher.

Com amizade,

Nathalie

Sexta-feira, 3 de novembro de 2006

"Quinta-feira, 24 de janeiro, ginástica; estado de confusão mental."


Malinowski

Após uma semana de intervalo, a volta à academia. Devo dizer, para me desculpar um pouco, que
acabo de fazer duas mudanças, uma para a casa de Bruno, outra para a minha, e que venho acordando
muito cedo todos os dias para encontrar o pessoal que está tocando a obra do novo apartamento. A
reforma (do apartamento) começou há dois dias, a do meu corpo, há dois meses... Indo para a academia,
meu objetivo
era fazer minha série ao pé da letra, já que eu a tinha montado e ainda não realizado... Cheguei, me
aproximei do computador... Havia duas pessoas na minha frente... paciência. Digito meu número de
série, de matrícula: 23656805 e meu ano de nascimento: 1971... em alguns segundos, sai da impressora
minha nova série, minha nova rotina. Eu tinha resolvido, de fato, não mudar nada na mínima série,
respeitar a ordem, os pesos... tudo. Ser um corpo dócil, como diz Michel Foucault. Fácil falar... difícil se
deixar reformar.

Bem, começo com um aquecimento de dez minutos na esteira... Em seguida, dirijo-me para meu
29
primeiro aparelho: o crucifixo... Na realidade, fui rapidamente obrigado a mudar para não ter que ficar
esperando até que um outro aparelho fosse liberado. Estava mudando a ordem estabelecida... Quando,
no desenrolar da terceira série, meus músculos começam a crispar de dor, diminuo discretamente a
carga... Não quero fazer caretas... No fim, pulei um aparelho e parti para uma série de abdominais, pois
nesta semana não fiz Pilates. Também experimentei um novo aparelho que faz subir um contrapeso
mediante a força conjunta dos braços e dos ombros... Difícil.

Hoje, encontrei um público bem diferente e bastante estereotipado... Saí da academia com um sorriso
no canto dos lábios... Devo admitir que adoro observar os estereótipos ou personalidades incorporadas.
Desenvolvi este hobby, assim como outros gostam de analisar quem fez ou não fez plástica, mudou a cor
do cabelo... No canto dos fortes, onde se concentram pesos, halteres e os corpos que chegam a
impressionar, um homem enorme, rosto muito feio, pele completamente tatuada, aguardava o adjuvante-
muscular, o personal, para ajudá-lo a levantar um haltere igualmente enorme... Gritos de dor, semelhante
aos do tenista gozando no esforço... Todos se voltam para observar esse grito primata... olhares cúmplices,
alguns sorrisos... não exatamente de encantamento, nem de admiração... Eu o observo e continuo meus
exercícios, espionando-o com o canto do olho.

Uma mulher, um pouco mais afastada, também chama minha atenção. Ela está ajoelhada no chão e
tem uma corda grossa ao redor do pescoço. Uma cena engraçada, esquisita de fato. As bruxas de Salem
se auto-enforcando. Ela se abaixa e se levanta de forma cadenciada para trabalhar... não sei qual
músculo. O personal disponível, que me ajuda na localização dos aparelhos da minha lista e me orienta
na adaptação ao meu tamanho GG, vê que eu a observo... Ele me diz: mulher forte, essa... Eu pergunto:
há muitos exercícios desse tipo? Tipo sadomasô no gestual e na posição? Ele me responde que sim e
pergunta se quero experimentar. Respondo que não, que já to sofrendo bastante...

Entre os exercícios de gestos primitivos, os sadomasoquistas, os dirigidos às coxas e glúteos femininos,


prefiro os que são realizados nos aparelhos pós-modernos, exercícios com movimentos tecnológicos. Preso
no imaginário do cyborg, fico com a impressão de sofrer menos, de expor menos meu corpo a posturas
estranhas e ganho em discrição, mas perco em musculação... Às vezes, tenho a sensação de que o
aparelho faz sozinho o trabalho de desenvolver meu músculo... Sem nenhum esforço, nenhuma
consciência, no piloto automático. Isso que é Hi-Tech! É esta forma de presença-ausência que eu
experimento aqui. Como um fantasma, sinto-me invisível e, ao mesmo tempo, faço de tudo para não ser
visto.

No meio desse estado letárgico, surge uma jovem que vem pedir um conselho. Respondo que sou novo
aqui... Na verdade, a resposta soa falsa e eu sinto vontade de dizer simplesmente que sou um zero em
músculos... Um jovem barbudo me olha de lado, me avalia... Se ele soubesse como isto me é
completamente indiferente!

30
7 de novembro de 2006

“Entretanto, meus sonhos, num determinado momento, tornaram-se meus músculos. Os músculos que eu havia
conseguido, que existiam, podiam servir perfeitamente à imaginação dos outros, mas não suportariam ser corroídos pela minha
própria imaginação. Eu atingira um estágio em que aprendia rapidamente a entender o mundo daqueles que são vistos.”
Yukio Mishima, O sol e o aço

Relendo essa frase de Mishima, me dei conta de que nunca sonhei com músculos, nem meus,
nem dos outros. Esta pesquisa parece aprofundar-se dia após dia, penetrando no mais profundo da minha
carne. Permanecendo alérgico à musculação, permaneço fiel à minha própria imaginação. Perguntei a
mim mesmo o que gosto de fazer com o meu corpo, fora dormir... o que faço dez horas por noite, no
mínimo.

Acho que o que me dá mais prazer, e me faz transpirar, é a dança. A dança é algo totalmente
diferente do ponto de vista de técnica do corpo. Por outro lado, só danço, é isto que me mantém em
forma. À noite, saio e danço... seria essa uma forma de musculação?

De volta ao campo, examinando e procurando os aparelhos que vou utilizar, penso


novamente no meu projeto de arte contemporânea: fabricar protótipos de aparelhos de musculação para
crianças... Esses perversos polimorfos vão ter com o que brincar... Acho essa idéia bem interessante, no
sentido em que ela põe em relevo uma das constantes antropológicas universais: deformar fisicamente
para formar culturalmente. Seria preciso trabalhar esta idéia... Discussão com meu pedreiro que,
digamos, tentou fazer musculação durante dois meses e acabou desistindo. Ele notou as diversas formas
do gênero muscular ou sexo social cortado pela metade: acima o homem, abaixo a mulher... e até
perguntou ao seu personal por que um homem não poderia fazer musculação para as pernas... Sua mulher
continua... Mas é para emagrecer... É diferente, me diz ele... E me pergunta por que as pessoas malham...
Eu respondo sem hesitar... para foder... Merci, Nathalie, por me permitir ver as coisas de forma tão clara.

Estou lendo As partículas elementares, de Michel Houellebecq, um excelente modelo de análise


comportamental. Que pensar das partículas musculares? Os músculos do pedreiro são diferentes dos do
banqueiro... Não têm as mesmas origens, nem as mesmas funções. Tenho que tomar uma ducha, a parte
que eu mais gosto, a que me dá as sensações mais agradáveis ligadas à musculação, eu que tomo banho
para acordar, para melhorar o astral... raras são as oportunidades que tenho de me lavar para eliminar o
sal... Bem, no início dessa sessão acadêmica, pensava poder retomar a rotina de musculação e não
consegui... mesmo considerando que, hoje, realizei minha melhor série...

31
13 de novembro de 2006

Assim que chego à academia, eu me concentro e me animo: corrida rápida de 15 minutos e


musculação durante 35 minutos. Desde o início desta pesquisa, tento forjar a mesma vontade do meu
(h)alter ego, Nathalie, a mesma disciplina, tanto em relação à musculação propriamente dita, como ao ato
de escrever neste diário. É difícil... mesmo com um bom modelo.

Hoje, no momento em que realizava minha série de musculação, tomei consciência de que,
ainda que malhando, não estava pensando nem um pouco nos meus músculos. Possuído pela
esquizofrenia descrita por Jeanne Favret-Saada, não estou me concentrando. Pergunto-me se este estado
de dispersão, ligado ao meu pensamento fugaz e antropológico, não afeta diretamente minha prática
muscular. Então, para mudar de personagem, ou melhor, para parar de incorporar o do antropólogo,
fechei meus olhos e me concentrei na sensação de malhar. Eu quero gozar do músculo... Arggggh...
Arggggggh... Estou quase sentindo algo...

Não. Era só a dor. Não gozei, sou frígido do músculo... Que tormento: o tempo não passa e eu
fico com a impressão paranóica de que os outros aproveitam para me observar. Danados! Eu me
pergunto se faço caretas por causa da dor, se serro os dentes ou se meu rosto, como uma máscara de
mármore italiano, permanece imóvel e inexpressivo tal qual um morto. Impressiona-me ver os semblantes
de dor muscular, fascina-me, me causa repulsa também... é uma exteriorização muscular da qual não
participo. Resultado: os outros devem pensar que não me esforço, nenhum grito de dor, nada de caretas,
de estiramento, os traços descontraídos, pareço estar em outro lugar, é o que me diz freqüentemente, em
todo o caso, meu treinador. Ainda não memorizei minha série, o que é bastante revelador: esta coisa não
entra nem na cabeça, nem na carne. Às vezes, entre um aparelho e outro, erro pela sala à procura do
próximo, como uma alma penada do teatro do absurdo. Dessa forma, a série é relaxada, meus músculos,
também, e o tempo passa. Pelo menos, não podem me acusar de ficar conversando entre os exercícios:
minhas interações são muito limitadas, em geral falo somente com os treinadores que me lembram bedéis.
Sua função é a de mandar fazer as séries, supervisionar, motivar, fiscalizar os movimentos.

Nesse espaço, minha libido parece congelada: em nenhum momento desejei algum membro
dessa academia. Vi, por acaso, a bunda de um dos treinadores no vestiário, nada mal, mas eu não vinculo
meu desejo a um fragmento de corpo, isto não funciona para mim: preciso de uma troca de olhar, uma
sedução, um algo que me faz sentir algo. Logo, não crio nenhuma fantasia sexual nesse ambiente. Pena,
teria sido bom retomar algumas passagens de um livro que me marcou porque descreve e analisa as
aventuras amorosas e sexuais de uma dezena de antropólogos nos seus respectivos campos de pesquisa
(Wilson M.&Don Kulick, Taboo, 1995).

Sexta-feira, 17 de novembro de 2006

“A vontade de construir o projeto do meu ser musculoso se inscrevia na minha carne. A


carne não deveria estar imune ao texto, nem o texto, à carne” (GASSEL, 2005, p. 21). Comigo, acontece
exatamente o oposto, a vontade de construir meu ser musculoso não cria raízes na minha carne. Este

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texto compensa a carne que eu não trabalho, que eu não quero despertar. A musculação serve bem de
alimento para este diário, mas de forma superficial, algo nada subcutâneo.

É um trabalho extenuante de resistência ao músculo em que me sinto mais uma cobaia


literária do que um Pigmalião muscular. Assim, ultimamente, vou à Runner somente às sextas-feiras, pois
preciso cuidar da forma do meu novo apartamento. Quando estou lá, considero como exercício... andar,
varrer, carregar pedras... e às quartas e quintas-feiras dou aulas na universidade. No mais, nesta semana,
trabalhei muito no meu projeto artístico Pré-Academia, um projeto importante para a minha auto-análise,
cujas linhas gerais darei aqui.

Se, como mostra Mary Douglas, “o que esculpimos na carne humana é a imagem da
sociedade”, minha intenção é questionar a prática acadêmica, transpondo-a para o universo da infância.
A instalação Pré-Academia pretende construir uma academia de musculação para crianças de 1 a 9 anos. O
projeto é concebido para ocupar a Galeria do Centro Britânico de São Paulo. As relações entre arte
contemporânea e atividades físicas ou esportivas, entre Antropologia do Corpo e Arte Corporal são
numerosas e complexas. Assim, essa proposta consiste em reduzir os aparelhos de musculação e de
ginástica, o mobiliário e o espaço acadêmico ao tamanho de crianças, a partir de adaptações artísticas das
instalações de uma academia tradicional para adultos e adolescentes baseadas em conceitos de ergonomia
e de antropologia do corpo.

A criação da instalação Pré-Academia se baseia na arquitetura interna das academias e nas


técnicas corporais aí utilizadas. Os elementos comuns a todas as academias tais como espelhos, cores
fortes, equipamentos... serão interpretados e adaptados ao tamanho de crianças de menos de 9 anos. Um
conjunto de gestos e de exercícios serão igualmente concebidos para orientá-los no uso dos aparelhos.

Uma placa luminosa pop sinaliza a entrada. Nas paredes, o azul-céu e o rosa prevalecem,
mas não delimitam a divisão entre os espaços reservados aos aparelhos para meninas e meninos, da
mesma forma que na academia para adultos. Aqui, a divisão se dá por meio dos diferentes exercícios. As
paredes serão pintadas até 1,50 m para reforçar a idéia de um espaço infantil. Espelhos serão instalados
nas paredes, à altura das crianças, deixando a cabeça dos adultos fora do espaço reflexivo. Na entrada,
no chão, balanços e espelhos milimétricos convidam as crianças para uma primeira avaliação física...

Com essa instalação multimídia, pretendo provocar uma reflexão sobre as lógicas da
manipulação das aparências físicas na sociedade brasileira, em particular, e na sociedade ocidental em
geral. Ao entrar na Pré-Academia, o adulto se vê num universo reconhecido, mas reduzido ao tamanho
do público infantil, o que possivelmente deverá provocar um choque ao mesmo tempo espacial, estético e
ético. As manipulações corporais das crianças deixam entrever uma violência física e simbólica
amplificada pela familiaridade com o lugar, tornando-se uma reflexão de espelho.

Para o público a partir de 12 anos, a relação com esse espaço, com os equipamentos e gestos
que eles implicam é ainda mais estranha e intrigante. Na Pré-Academia, a relação com a infância é clara,
mas as crianças de 12 anos se sentem grandes demais para utilizá-la. Jovens demais para malhar e fazer
exercício como os adultos, eles são velhos demais para se inscrever na Pré-Academia. Dessa forma, eles se
sentem excluídos, fisicamente, dos dois universos, o dos adultos e o das crianças. A partir dessa não-

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participação, eles são convidados a se questionar sobre seu lugar no mundo da ginástica (identificação) e,
na seqüência, iniciados na reflexão central da arte contemporânea: a relação entre o espaço, o corpo e o
tempo vivido. A partir dessa nova relação estabelecida entre cotidiano e arte contemporânea, eles
vivenciam uma estética relacional e corporal ao mesmo tempo.

Projetado a partir de observações em academias do Rio de Janeiro e de São Paulo, a Pré-


Academia evidencia a existência dos diversos gêneros que organizam as instalações acadêmicas: a visão
mecânica do corpo, os novos modismos corporais e finalmente a construção de imagens-corpos. Na
realidade, a perversidade, a crueza do body business é levada ao extremo, já que se trata de corpos de
crianças; a dimensão sexual da corpolatria se transfigura, se subverte, se perverte.

Inspirado nas diversas síndromes de Alice (dismorfobia/auto-erotismo...), esse projeto de


instalação não interativa é uma transposição do universo de Lewis Carol numa academia de musculação.
Esse trabalho é igualmente influenciado pelos artistas britânicos da coleção Saatchi e suas reflexões sobre
o status do corpo e da libido na nossa sociedade. Artistas como Sarah Lucas, Marc Quinn, Ron Mueck,
Dinos Chapman, Damien Hirst mostram a que ponto os corpos monstruosos e os corpos no cotidiano se
assemelham conceitualmente.

21 de novembro de 2006

Muito tempo sem exercício... não sinto falta nenhuma. Retomei o ritmo da academia, hoje, e
tenho a impressão de viver numa espécie de rotina corporal; mais uma impressão falsa, que me
tranqüiliza... Não a freqüento todos dias, não se tornou uma atividade cotidiana e comum, como tomar
banho ou escovar os dentes, não, continuo sempre começando... Como ainda é cedo, a academia está
bem calma, vazia, ninho mecânico de abelhas, sem as operárias. Um adolescente chama minha atenção,
não pelo seu físico, mas pelas poses narcisistas que ele faz a cada dois minutos, num diálogo permanente
com o espelho. Expor-se ou ser observado é fazer poses, e quando alguém se observa a si mesmo no
espelho, essas poses ganham em profundidade e revelam as motivações mais profundas dessa
reformulação. Ele parece trabalhar seu corpo com seu ego. Devo voltar ao estágio do espelho, de Lacan, para
entender melhor o que se passa na frente dele... Num período de seis minutos, ele verificou o design do seu
abdômen quatro vezes, levantando sua camiseta. Percebendo-se visto e observável, ele mudou de pose,
migrando para outro aparelho... Perdi-o de vista...

Se eu investisse no meu corpo a mesma energia que coloco no meu novo apartamento teria
certamente um corpo de cimento. Não seria meu corpo a minha casa?

Sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Voltemos à Runner. Vamos correr para lá. Por volta de 18h30, vou, passos decididos, para a
academia. Na entrada, previno as secretárias que vou viajar durante dois meses e pergunto o que devo
fazer para suspender as sessões nesse período. Elas me respondem que devo apresentar minha passagem
aérea, apenas. Começo com dez minutos de esteira... andando rápido, sem iPod... De repente, vejo-o

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aparecer, com seus músculos, ele, o homem acadêmico, Marco. Meu alter ego universitário faz, então,
suas séries na mesma academia que eu... Perco a concentração (e os pedais) e só penso numa coisa... me
aproximar dele e interagir com ele... Vejo-o dirigir-se ao bebedouro. Desligo a máquina e o sigo. Ele me
vê chegar mas não parece me reconhecer... a bem dizer, ele não deveria imaginar cruzar comigo num
lugar como esse. Eu também não; a última vez em que nos vimos foi numa defesa de tese...

- Olá, Marco, tudo bem?


- Olá, Malysse.
- Você malha aqui, também?
- Algumas vezes... aqui é legal... e, por fim, a gente acaba malhando... (Ele pensa que,
finalmente, eu me submeti à musculação e à lógica acadêmica).
- Mais ou menos...
- Como assim?
- Um pouco de musculação e muita antropologia.
- Ok... mas se você pensa criticar a musculação, bem, isto você já fez, certo? Na sua tese.
- Sim, você a leu e até escreveu um artigo em resposta a ela, mas desta vez é diferente, mudei de
metodologia e de olhar com relação ao assunto.
- Ah... E você, vai malhar, hoje?
- Sim.
- Quero ver. Ele ri com gosto...

Falamos um pouco sobre Mishima e a programação do Festival de Gays e Lésbicas MIX


Brasil. Em seguida, ele foi fazer exercícios no espaço reservado aos homens fortes, aquele que eu não
freqüento. Eu o havia encontrado na defesa da tese de Sergio. Naquele dia eu lhe falara de minha tese
(H)alteres-ego, texto que ele havia lido e criticado profundamente no artigo O homem forte. Eu o cito: “A
aparente ignorância de Malysse, relativa às práticas de musculação, leva-o a afirmar que os gays tendem a
se comprazer no exagero da prática física. Pouco importa se o autor não sabe qual a relação entre
número de horas de prática e proporção de musculatura. Vê-se perfeitamente que o ressentimento em
jogo, aqui, leva-o a ver nisso tudo tão somente uma forma de gueto gay.”

Não o tinha revisto desde então. Eu havia apreciado sua franqueza no artigo-resposta, e não
imaginava reencontrá-lo por acaso em uma sala de musculação. Após uma sessão de cinco minutos de
corrida, desci para deixar minhas coisas no vestiário e, ao subir, cruzo com ele, novamente.

- E aí, você curte essa droga?


- Que droga?
- A endomorfina... uma delícia!
- Não, ainda não senti seus efeitos...
- Então, você precisa trabalhar os músculos com mais força, você vai ver, você vai amar...
- Pego leve, sabe... se eu forço demais, no dia seguinte fico completamente acabado.
- Você vai pegar o ritmo e, na seqüência, verá que vai foder melhor. Sexo e musculação vêm
juntos, sabe... Não digo nada, mas claro que já sabia...

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Nisso, ele volta para as atividades. Então, para não ficar plantado no meio da sala, fui
instalar-me no primeiro aparelho da minha série. Decidido, motivado... Não sei se pela sua presença e,
também, porque ele me observava com o canto do olho, me animei, e comecei o exercício com energia e
entusiasmo. Meu objetivo era fazer boa figura e me concentrar na série, sem mudar sua seqüência. Mas,
como se estivesse perdido em um parque de diversões, precisei perguntar onde ficavam meus aparelhos a
vários personal que passavam por ali. Quando eu estava perguntando a um deles onde ficava o supino,
Marco apareceu e lhe perguntou:

- Você é o personal dele?


- Sim.
- Então, não se descuide por nenhum minuto, supervisione-o como um sargento ao seu pelotão.
Você vai ver. Ele é resistente ao exercício, é um bundão.

Ele me lançou um olhar de desprezo e retomou os exercícios no fundo da sala. Não o revi
mais. O personal ficou estupefato. Ele me perguntou se eu conhecia o tipo. Disse-lhe que era um colega da
universidade. Ele deixou o assunto de lado, e eu retomei minhas séries, com força. Ao mesmo tempo em
que me sentia um pouco humilhado, eu ria interiormente, pois não poderia sonhar com um reencontro
melhor. Levantando os halteres, comecei a imaginar como seria meu treinamento, tendo Marco como
personal trainer. Um inferno muscular. Pensei em Nathalie e me perguntei o que ela diria desse personagem
e de seu amante, igualmente musculoso. Será que Nathalie deseja ter o mesmo corpo de Marco?
Lembrei-me desta frase: “com esta estética devotada ao corpo, eu me via integrada a uma nova família: os
homossexuais” (GASSEL, 2005, p. 23).

Apesar de todos esses pensamentos, terminei minha série personalizada, e acho que foi um
pouco graças a Marco. Ele me motivou, é evidente. Mas que identidade estou forjando? A minha ou a do
Outro? Para Nathalie, na musculação, “deixamos de lado as celas, e encarnamos os impulsos mais
sinceros. Abandonamos os semblantes identificadores, queremos viver os instintos autênticos.” (GASSEL,
2005, p. 23). Impulsos? Instintos? Não sinto nada disso. Serei eu, de fato, cartesiano demais? Insensível
aos prazeres da fibra muscular, me vi um molenga... Felizmente, minha série foi cumprida. Rigidez
incorporada?

Saindo da academia, encontrei o jovem médico que havia feito minha avaliação inicial. Ele
me perguntou se eu estava me adaptando, e se os resultados já eram visíveis. Respondi que não, que não
forçava muito. Mea-culpa. Sem resultados. Psicólogo, ele me disse que, a partir do momento em que meu
corpo começasse a mudar, minha vontade se firmaria também. Venha, vamos tirar as medidas, disse-me
ele, pegando-me pelo braço. Sai à francesa...

Voltando para casa, procurei no livro de Nathalie uma espécie de antídoto para essa sensação
de fragilidade: “Uma ferocidade de ferro se estabelece, o treinamento torna-se impetuoso, ardente. O
frisson da vontade se encarna no ferro dos pesos a serem levantados, multiplica-se no suor dos exercícios.
E infla, infla, concentra-se, centra-se totalmente na sensação de estrangulamento, o prazer do sangue que
aflui, do poder que transborda; nosso espírito é atravessado por imagens que falam de outros momentos
em que corpos foram, nesse mesmo gozo, transportados por ele” (GASSEL,2005,p. 51). Definir-se
fisicamente, opondo-se radicalmente a isso, definir-se repousando-se, meu espírito não consegue nem

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visualizar os movimentos que faço na academia. Sem prazer, sem sensação de gozo, nenhuma gota de
suor brotou no meu rosto. Estou seco como uma múmia. Um verdadeiro saco de ossos sem nada dentro.

Terça-feira, 5 de dezembro de 2006

“Nesses últimos dias, minha vida tem estado, digamos, monótona.”


Malinowski, Diário de etnógrafo

Acabo de passar na academia, sim, passar, porque fiquei lá só 15 minutos. Queria só


suspender as sessões por dois meses, pois vou para a Europa daqui a uma semana, e pensava aproveitar
para fazer um pouco de musculação... Comecei, com um pouco de marcha acelerada, em seguida fui
para os aparelhos para recomeçar a série... Não terminei nem o primeiro exercício. Sem vontade, hoje,
definitivamente, não estava num bom astral... Voltei para a esteira... cinco minutos: STOP. Há dias
assim. Decidi não insistir. Como se fosse a primeira vez... Transferência não rima com haltere. Bem..., na
saída, uma secretária me disse que eu poderia retornar em fevereiro, deixando de fora o período da
viagem. Eis-me livre da academia. Estou radiante. Ela também me perguntou se havia parado de fumar...
não, também não... nem ginástica, nem cigarro... decididamente, não é fácil mudar hábitos corporais...
Fiz dois meses de academia, de prática literária e de musculação... Na volta, terei ainda quatro meses para
terminar com essa dupla confissão muscular.

12 de março de 2007

“Torne-se quem você é.”


Nietzche

Volta a toda para a Academia após três meses de pausa na Europa (perdi, portanto, um mês
de matricula). Nesse dia, o tempo estava ótimo, bem mais quente que o inverno de Londres. Fiz duas
vezes dez minutos de corrida e, em seguida, uma série, mais ou menos na ordem, como se a distância
tivesse ajudado na rotinização. Senti-me quase invisível, concentrado na retomada e bem menos
antropólogo do que nunca, pois estava concentrado nos meus músculos... Creio que essa sensação de
invisibilidade, ou de discrição, tão cara aos antropólogos de campo, é bem mais psicológica do que de fato
social. Minha ausência, durante três meses, teria sido notada? Duvido bastante, e só um personal trainer da
tropa de choque (muscular) me perguntou amavelmente onde eu estivera durante todo esse tempo e me
disse pensar que eu havia simplesmente abandonado tudo. Bem entendido, minha performance anterior
havia fornecido todos os elementos para que ele chegasse a essa conclusão. De qualquer forma, esse
distanciamento é bom, certamente, para o treinamento; em vez de fazer antropologia senti-me, pela
primeira vez, tomado pelo esforço... Teria sido o regime europeu de engorda e o aparecimento de alguns
centímetros a mais, ou demais, no abdômen? Pensando bem, creio que a disciplina se auto-impõe quando
se quer modificar ou recuperar a imagem ideal ou original e seu peso de equilíbrio. “Ah! Disciplina, como
você sangra”, dizia René Char...

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Relendo Nathalie Gassel, percebo até que ponto a falta de disciplina muscular me torna
impermeável a essa corpolatria... Quanto à tese do músculo como extensão sensual e sexual, creio ser
uma pista cultural que não se deve perder de vista. Na saída da academia, senti meus músculos
adormecidos e abandonados durante três meses, como que estirados por dentro, anunciando já as
curvaturas e as dores futuras...

Se, como diz Nathalie, “tudo acontece no nível das sensações, da eficácia e de uma nova
sensualidade, o corpo ocupa um lugar importante, apresenta-se sob formas duras, esculpidas com um
cinzel; uma carne condensada sobre si mesma, tensa e firme, poderosa na sua figura” (GASSEL, 2005, p.
51). Preciso tirar uma lição disso. Não posso permanecer no impasse da dor prevista e tenho a impressão
de que essa viagem à Europa me redisciplinou, me recompôs nos meus compromissos com essa pesquisa
ao vivo.

“Na gratuidade de atos em que corpos se enfrentam nesse face a face, manifesta-se uma
vontade de ser que estabelece nossa identidade como expansão. É se vangloriar do que se pode e quer, da
vontade que toma corpo em nossa carne” (GASSEL,2005, p.43). Essa identidade como expansão... Um
programa inteiro para um antropólogo magro e mole... Esse termo se integra totalmente à
microssociologia de Erving Goffman e creio que deveria pensar no que eu quero, e não quero, mostrar na
grande banca do mundo social...

Segunda-feira, 19 de março de 2007

Parece que vou à academia só às segundas. Na realidade, meu projeto de me pôr em forma
está sendo posto à prova pelo projeto de pôr em forma meu novo apartamento, o que ocupa quase todo
meu tempo livre... Casa, extensão do corpo. Na realidade, pintar, arrumar, suspender, decorar é tudo
muito físico... Fui à Runner, hoje; como na semana passada, parece que, finalmente, estou entrando no
mundo acadêmico. Faço minha série em silêncio, sem interações, protegendo-me de minhas inclinações
antropológicas por meio do plug sonoro do iPod...

Olhos fixos nos músculos a desenvolver, atenção extrema a gestos e movimentos... Quem me
visse agora não me reconheceria. Nesse embalo, percebo pontos se somando aos resultados no decorrer
das semanas... Tenho a impressão de que meus peitorais estão crescendo... Devo retomar o Pilates nesta
semana. No fim de semana na praia, uma amiga me disse que minhas pernas estavam visivelmente bem
torneadas... mais musculosas. Obrigado. De nada. Nem sei mesmo se isso me motiva, mas a perspectiva
da metamorfose, da mudança, é bastante excitante... Preciso pensar sobre essa nova pista, amplamente
aberta por Nathalie Gassel, do músculo enrijecido como extensão sexual, força da libido em direção ao
outro sexuado, fora da sombra, ao alcance das mãos... Vou tentar voltar amanhã aos exercícios... e devo
reler pela quarta vez o método fácil para parar com o cigarro... Decidi mandar uma pequena mensagem
para Nathalie.

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Cara Nathalie,

Espero que você esteja bem. Voltei para o Brasil e para a sala de musculação.
Percebo que vou ter dificuldade para recomeçar... Sinto muito não ter podido encontrá-la
na Bélgica, mas foi uma espécie de maratona entre Londres, Paris, Istambul e Barcelona.

Até mais,
Stéphane

Segunda-feira, 1o de abril de 2007

Encorajado pelos primeiros sinais corporais de uma transformação quase imperceptível a olho
nu (pelo menos ao meu) e por uma sensação de tensão, decidi aumentar as cargas em 10 kg em média.
Hoje estou firme. Faço minha série numa tacada. Sinto-me bem. Penso músculo, músculo (não veias,
ainda não...). Às vezes, passo rapidamente pela academia. Na volta, leio: “Não é um corpo escravo. Não
se trata da competência para realizar tarefas, para servir, mas de como conduzir a vida e a si mesmo, uma
força particular, pessoal, não funcional, uma presença fulgurante do ego” (GASSEL, 2005, p. 53).

Nesse sábio retorno do escravo ao domínio de si mesmo, identifico-me finalmente um pouco


com Nathalie, e penso no Mishima do Sol e aço. Passei meses gemendo como um escravo, pernas pesadas
carregadas de pesos simbólicos... Agora, é diferente, eu sinto que dobrei o cabo: aceitar o corpo é, de
certa forma, esquecê-lo. Sigo os passos de Nathalie. Ela me diz ainda: “cultivando meu corpo, cultivo
percepções terra a terra, manifesto uma vontade de dominação encarnada, sólida, que não se limitaria à
do intelecto... Possuo um poder de ação psicológica, uma eficácia carnal: minha identidade material e sua
expressão mutante” (GASSEL, 2005, p. 53). Bem, embora nossas motivações sejam diferentes, creio que
posso chegar lá. Pensar menos, forçar mais. Quanto mais penso nisso, menos transpiro... Acabo de
receber esta mensagem:

Caro Stéphane,

A gente se readapta facilmente, embora eu não tenha tentado parar (mais de uma semana) meu treino. Sinto, por
outro lado, com a idade chegando (42 anos, treinando desde os 18), menos vigor e força e, sobretudo, uma espécie de
fragilidade, um sinal de uma tendinite no ombro, algumas dores na ossatura aqui e ali. O caráter do efêmero, quando se é
obstinado, é contraditório. Ainda bem que não acontece essa tal fragilização no campo da escrita.
Bom retorno ao país ensolarado.
Nathalie

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Segunda-feira, 8 de abril de 2007

“Com relação ao que faço, minha pesquisa etnográfica me absorve


completamente, mas apresenta dois problemas fundamentais:
1. Não tenho muito o que fazer com os selvagens do lugar, e minha
observação é insuficiente
2. Não falo a língua deles.”

Malinowski, Diário de etnógrafo

De fato, é bem revelador, só faço malhação `as segundas-feiras, dia das grandes decisões, das
boas energias... Relendo Malinowski, sinto-me preso entre duas garras de uma mesa de tortura. Desta
vez, não tenho muito o que fazer com as pessoas do lugar; na academia, não interajo. Minha observação
se limita à musculação e à ordem predefinida das séries de exercícios. Mesmo que fale bem o português,
não falo a linguagem muscular, sou incapaz de falar sobre um movimento e seu efeito em relação ao
tecido muscular, e não sou bom em anatomia. Vejo bem os limites dessa experiência: sou um corpo
estrangeiro e, sem contato com o corpo dos outros, minha visão fica muito limitada.

Fiquei lá uma hora. Nada mal, não é? Fiz minha série com calma e com consciência, sem me
mostrar renitente ao esforço, até transpirei um pouco. Aumentei a dose (o peso), como havia previsto;
daqui para a frente, sempre acima dos 30 kg. Hoje à noite devo ir ouvir uma filósofa francesa que
discutirá o fisiculturismo... Sem mensagem de Nathalie e, voltando a Allen Carr, vou finalmente conhecer
o método fácil para parar de fumar, de cor... A sensação de se estar só é muito forte... Não paro de pensar que
já é tempo, agora, de tomar conta do meu corpo (como da reforma do meu espaço), extensão desta casa
ou vice-versa... Tenho 35 anos, e se a tosse e a gripe não me largam há três semanas é por que alguma
coisa está fora de lugar... Hoje de manhã, resolvi entrar numa prática radical (um mês sem cigarros, nem
álcool); vamos ver quais serão as conseqüências, do ponto de vista corporal e social. Sexualmente falando,
a única coisa que posso dizer é que a sensação de estar bem comigo mesmo, em casa, acabou com a
minha vontade de trepar... Na academia, reencontrei Edu, um ex, que me cumprimentou e me disse,
entre duas músicas do seu iPod: “estou morrendo...” (o que quer dizer na linguagem de academia que ele
está forçando demais nas barras); reencontrei, também, um personal trainer que me chamou para um
exercício em uma das bicicletas ergométricas... Não. Hoje, não.

Terça-feira, 10 de abril de 2007

“O repouso é parte essencial do trabalho.”


Malinowski, Diário de etnógrafo

Acabo de voltar da academia. Fiz somente os quatro primeiros exercícios da série.


Desmotivado. Acho que os resultados do teste físico têm alguma coisa a ver com isso. Como disse a

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médica da academia, Luiza, o resultado é estranho... Quatro meses depois, quando eu imaginava não ter
mudado nada fisicamente, meus testes antropométricos mostram que essa nova vida corporal deu frutos
de uma certa forma, frutos maduros ou... podres... afinal, murchei. Explico-me: no início do meu
tratamento acadêmico, minha taxa de gordura estava abaixo da média e meu peso, ideal para meu
tamanho. Quatro meses mais tarde, perdi 4 kg, minha percentagem de gordura passou de 15% para 19%,
meu peso magro diminuiu de 77 kg para 71 kg e meu peso gordo aumentou de 13 kg para 20 kg.
Resumindo, apesar de ter a impressão de que meu corpo não mudou, a distribuição entre massa magra e
gorda está diferente. O mais interessante é que enquanto eu imaginava ter ganho alguma coisa em
espessura, ao menos alguns centímetros, descubro, horrorizado, com enorme surpresa, que eu fundi e que
minhas circunferências diminuíram todas, com exceção do tórax que aumentou de forma impressionante
(5 cm!). Fiquei menos simétrico. Meu braço direito e meu braço esquerdo tinham o mesmo volume (30
cm) e, agora, o direito está medindo 32 cm e o esquerdo, 29 cm. Essas mini-transformações (nada grave,
me afirma Luiza) mostram a que ponto não dá para mudar de corpo sem mudar a constituição interna, e
mesmo que a minha imagem corporal permaneça inalterada (a meus olhos), os resultados são reveladores.
A partir dessa análise retroativa, perguntei a Luiza se ela achava que os exercícios de musculação criavam
uma dependência, no sentido de modificar o equilíbrio gordo/magro, assim como a distribuição corporal,
e condenavam os dependentes a um treino eterno... Ela me confirma essa pista, e eu confesso a ela que
sabia disso, e que era por essa razão que eu não exagerava nos exercícios e nas visitas à academia...

Em seguida, ela disse que, para ela, o que está em questão é meu regime. Eu falo, então, da
experiência do realizador do filme Super size me, e que eu cozinho todos os dias e não mudei em nada
minha alimentação... Ela acha estranho, e me diz que eu deveria repetir a avaliação com o outro médico,
Thiago, que havia feito a minha primeira, a avaliação de entrada na academia. Mais tarde, bem pouco
motivado a inflar (ou desinflar, no fim) meus músculos, começo a série e aproveito a oportunidade para
discutir meu caso com o personal trainer. Ele me diz que não é possível, e que devo refazer os testes com
Thiago... O que me incomoda em tudo isso é exatamente o fato de eu ter a impressão de estar fazendo
esforços musculares para nada, ou melhor, para o pior: não tenho mais o peso ideal, e ainda me
aconselham a emagrecer 4 kg para eliminar a gordura acumulada nas costas, na barriga e em volta das
coxas... O que é que eu vou virar? Estou condenado ao exercício ad aeternum!

Uma coisa é certa: sem mudanças na alimentação, eu só queimei a gordura que eu não tinha,
e recuperei a silhueta perdida (a da adolescência). Entretanto, eu havia lido isto: “Obviamente, o
iniciante, para forjar uma base suficiente deve, primeiramente, comer por quatro para desenvolver o
volume físico. Na seqüência, a gordura acumulada se converte em alimento do músculo por meio de um
exercício rigoroso e um regime apropriado. Sua alimentação, matéria pura de fabricação do músculo, está
fundamentada num rico cálculo da soma de proteínas a serem absorvidas. Ele se impõe cinco ou seis
refeições diárias, muito além da gastronomia, e assimiladas como uma outra forma de trabalho a fazer”
(LE BRETON, 1999, p. 37). É a própria síndrome de Alice: pensava ganhar massa e me encontro, no
fim, entrando em calças, estreitas demais, que eu guardava na cômoda como lembranças da adolescência.

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Quarta-feira, 11 de abril de 2007

Não sei mais se eu falei desta filósofa, aqui. Uma palestra bem íntima (somente três pessoas) e
extremamente interessante. Em seguida, fomos jantar, meu amigo Christian, eu e ela, Seloua Luste
Boulbina. Ela me deu seu texto Fisiculturistas: sobre um corpo que seria um reflexo. Ela fala do mutismo do
fisiculturista, de uma subjetividade carregada por um corpo coberto de estigmas (músculos e veias), e se
coloca a seguinte questão: em que contexto esse trabalho sobre si mesmo faz sentido? Esta é exatamente a
questão que eu me coloco ao longo deste diário. Na sua palestra, Seloua diz que este é um fenômeno
tipicamente ocidental. O objetivo é fazer o elogio da força e do poder, a criação do homem objeto: os fisiculturistas são
versões vivas dos estudos anatômicos.

Ela diz, então, que o corpo do fisiculturista é, ao mesmo tempo, um corpo anatomizado e
anatomista. De forma pertinente, ela estabelece relação entre o novo olhar sobre o corpo, que representa o
olhar do anatomista, e o aparecimento do fisiculturismo no século XX. A atenção vai para os detalhes. As
mãos, os pés e o rosto não são levados em conta pelo élan reformador que se contenta com músculos,
veias de extraterrestres e estrias musculares. Essa hipertrofia muscular deve ser relacionada com o ideal
dionisíaco do excesso e da desmedida. O regime alimentar é rabelesiano (dez refeições ao dia para um bom
ganho de massa). Essa prótese muscular, viva e natural, é como uma pele substituta, que estabelece a
diferença sexual e liga a vida com a morte. Para Seloua, esses corpos são anatomizados para serem
erotizados. Encontro, bem aqui, o texto de Nathalie: “dedicar cultos a corpos, significava intensificar
minha capacidade de desejar. Agradava-me dar à sexualidade uma dimensão vertiginosa de uma criação
quase mística. Um êxtase da apetência, uma exageração” (GASSEL, 2005, p. 28). E quando ela fala da
estética da morte, eu revejo cenas vividas na academia: rostos entortados, agonizantes, barulhos, gritos e
suspiros de dor. Thanatos e Eros confundidos, fundidos um no outro.

O corpo de músculos enrijecidos lembra o sexo congestionado, em ereção, de que fala Freud
em seu texto sobre narcisismo. Ele viu no pênis o protótipo do corpo humano, seu modelo por excelência.
Em seguida, à palestra fomos jantar, e eu disse a ela que eu considerava cada vez mais o músculo como
uma extensão sexual, uma espécie de prótese libidinosa que diz a quem nos observa que nós somos bons
de cama... Para Seloua, essa Arte do ver incita o tocar... A musculação é uma espécie de ereção, que se quer
permanente. Acho que esse encontro foi muito importante, não somente para confirmar minhas pistas
corporais, mas igualmente para retomar os exercícios com uma filosofia diferente.

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Segunda-feira, 16 de abril de 2007

Finalmente fui para a Runner por volta de 15 horas, após ter ido comprar algumas plantas
para o meu jardim e fumado cinco cigarros. Eu estava pensando, de fato, em não fazer mais musculação,
mas, no fim, conversando com os personal trainers, me deixei convencer a continuar.

Um dos personal trainners me perguntou se estava a fim de continuar... Respondi que não e
ele me disse que eu deveria procurar uma atividade que me desse prazer. Para ele, o princípio do prazer é
muito importante... Quanto a mim, tudo parece extremamente claro: não vejo nenhum prazer em
malhar.

O segundo apareceu enquanto eu fazia o exercício da cruz (meu favorito). Ele me disse:
você pensa demais, você deveria fazer o exercício e não pensar nele ou em qualquer outra coisa... Ok, ele
perguntou qual era a minha profissão. Eu respondi antropólogo, e ele disse: Ah! Isto explica tudo... e saiu
dizendo para eu ir para a esteira.

O terceiro a opinar sobre meu (estranho) caso é Thiago, que havia feito minha análise
inicial... Digo-lhe que perdi 4 kg de boa carne e ganhei 5% de má gordura... que estou decepcionado e
que penso deixar a academia. Ele me pergunta como era minha rotina, eu digo que, desde a volta da
Europa, eu só venho às segundas-feiras, faço minha série em 40 minutos... e dez minutos de esteira.
Perplexo, de início, ele esboça rapidamente um sorriso e me diz que eu não devo esperar resultados sem
me comprometer a fundo, e que eu provavelmente queimei gorduras que devo, agora, substituir por
músculos... 5 kg de músculos suplementares. O que você acha? Permaneço como uma bola murcha,
perplexo... Ele retoma o controle da discussão: quais eram seus objetivos ao chegar aqui? Perder peso?
Sentir-se melhor no seu corpo? Lutar contra alguma doença cardiovascular? Eu, não, eu queria parar de
fumar, sem engordar, e escrever um livro sobre minha resistência ao tratamento acadêmico...

Estética e saúde: dar-se prazer a si próprio, ter objetivos físicos e atingi-los, cultivar sua força...
Eis aí elementos que parecem faltar ao meu personagem... Para mim, tudo está na cabeça e eu não
consigo, de fato, me sentir bem com meus músculos... Finalmente, depois de tantos encorajamentos,
acabo por ceder... ao menos em tese; retomo o treino três vezes por semana, musculação e Pilates,
segunda, quarta e sexta durante dois meses... A prática de que fala Allen Carr deverá ser acompanhada
de uma prática acadêmica... Será preciso aproveitar os dois meses para ver o que vai acontecer e do que
meu corpo será capaz.

Terça-feira, 17 de abril de 2007

Mudar de corpo para mudar de vida? Decididamente, para mim, o problema não é de ordem
teórica. O problema é que, quando estou na academia, me pergunto o que estou fazendo lá. Minha
imaginação nunca se estimula com os halteres. Minha fibra muscular se tensiona e se distende
passivamente, como uma teia de aranha ao sabor do vento. Nessa teia muscular, não pretendo atrair
nenhum olhar, nenhum desejo. Não sei nem por que estou nessa, nem se esse trabalho voltado para mim

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mesmo vai me mudar. Estou no teatro do absurdo do corpo sem músculos... Se a pesquisa de campo é um
perfeito rito de passagem na vida do antropólogo, esse último tem se revelado um rito de pesagem. Pesado
na chegada e na saída, sei que alguma coisa a mais do que esses quilos de carne me escapou...

Quarta-feira, 18 de abril de 2007

Acabo de passar uma hora na Runner. Tento seguir meu novo programa, três vezes por
semana... segunda, quarta e sexta... musculação, Pilates, corrida... Deixei o Pilates para sexta e segunda...
Não havia muita gente ao meio-dia, talvez por causa do horário... Tento, como me aconselhou um dos
personal trainers, pensar menos e forçar mais... Aumentei o peso de todos os aparelhos (acima de 33 kg) e
remanejei minha série eliminando determinadas máquinas e tentando algumas novas... Precisamos ver o
que vão virar esses 4 kg perdidos. Observando de longe minha boa vontade, tão rara..., o personal trainer
veio, por duas vezes, corrigir meus movimentos e ajustar o aparelho ao meu corpo de 1,91 m. Ele diz,
toda vez, que esses aparelhos são pequenos demais para mim, ou talvez seja o contrário...

Quanto à nicotina, reduzi o consumo, mas ainda não estou livre desse pequeno monstro
adormecido, como diz Allen Carr. Hoje de manhã, uma tosse com catarro não me impediu de acender um
primeiro cigarro logo após o café e um outro, e outro... Essa cadeia é difícil de romper... Acho difícil
acreditar nessa dificuldade de mudar os hábitos do corpo; a motivação balança freqüentemente entre o
teórico e a prática, e a queda na rotina que envenena (comer, fumar, beber...) retoma seu caminho e a si
mesma... Penso, logo sou... minha própria rotina. Sinto minhas costas um pouco mais duras e firmes do
que habitualmente. É estranho, é como se estivesse o tempo inteiro sendo massageado.

Já em casa, retomo minhas anotações no curso das leituras do livro de Nathalie. Ela afirma:
“Escrevo com meu corpo ... Deixo meu espírito se impregnar dos movimentos da minha anatomia”
(GASSEL, 2005, p. 31). Não me identifico nem um pouco com essa unidade pensante. Se escrevesse
somente com meu corpo, não haveria grande coisa para se ler... Tomado por um dualismo radical,
bloqueio sem parar meu corpo, vejo-o bem, sei que ele está presente, mas não o sinto, e seus movimentos
são imperceptíveis. Quando estou levantando os pesos, tenho a impressão de forjar uma esquizofrenia
superficial.

“Músculos definidos, alertas, passíveis de mais alegria, de mais ser e de mais consciência do
corpo.” (GASSEL, 2005, p. 32). Não sei sobre qual corpo trabalho, mas minha consciência do corpo está
desencarnada. Meu ideal de virilidade é dissociado do corpo, do que é meu e do que é do outro. Sei que
os músculos que eu possa vir a incorporar não alterarão em nada minha sexualidade. Se, para ela, “o sexo
outorga uma entrada mais profunda na existência material e anatômica do corpo” (GASSEL, 2005, p.
32), para mim, o sexo não é uma questão de anatomia, mas de sedução e de projeção. A sedução das
formas de que fala Nathalie me remete a um sopro de imaginário. Não quero dizer, aqui, que sou
insensível à aparência física do outro, mas que essa dimensão é, para mim, tão-somente um fator de
cristalização existencial. O que me perturba profundamente, nessa troca com Nathalie, é a possibilidade
de pôr a nu nossas diferenças de gênero (em todos os sentidos do termo) e de aprofundar a noção de sexo
social.

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“Para mim, a virilidade só se idealiza na medida em que se encontra encarnada em um corpo
de mulher. A matéria é redistribuída conforme os princípios da libido: mulheres fisiculturistas,
(hipercongestionadas). Culto do super-homem na mulher, do (hiperpoder)... transgredir o feminino
pelo/para o viril” (GASSEL, 2005, p. 31). Fazer a cartografia do desejo, do seu próprio desejo, é um
pouco o que me parece em jogo na musculação voluntária. Como que para atrair o reflexo de sua libido,
Nathalie pratica e administra um controle sobre si mesma que caminha junto com uma visão do outro.
Diga-me o que desejas, eu te reconheceria nessa imagem reflexiva...

“Os espelhos da sala em que o esporte, a amplitude do músculo são praticados reenviam ecos
que não paramos de contemplar entre as séries, face aos halteres, fusão suscitada, provocada pela carne
irrigada, avermelhada e desproporcionada, a ponto de arrebentar... Exalta-nos essa hiper-presença da
morfologia em que o sentido, a sensualidade são liberadas, feliz presságio de volúpia” (GASSEL, 2005, p.
54). Serei eu cego com relação a esse ponto? Insensível à carne irrigada, avermelhada e desproporcionada, nem
mesmo a vejo. Vejo poses, performances, gestos, mas essa hiper-presença se camufla pela minha
ausência, censurada pelo meu próprio desejo. Só posso ver o que eu desejo, então, é melhor me deixar
treinar pelo olhar carnal de Nathalie: “corpo-objeto, mostrado e visto sob todos os ângulos, exibição,
superfície de prazer e de desejo ... Uma anatomia hipersensível pela sua vontade de virulência, de
perenidade, de artifícios. Uma morfologia de arte, um corpo obra-prima, vibrante e luzidio de todos os
lugares, de todos os laços de seu desejo em que a vontade do colossal ocupa o primeiro lugar ... Carne e
sangue, fantasmas e valorização de si, projetados juntos no desejo, a fim de se apropriar de seus clichês”
(GASSEL, 2005, p. 55).

De um desejo a outro, acabo de receber uma mensagem de Nathalie, e pela primeira vez eu
me identifico, enquanto trans-gênero, com o que ela descreve. Ela quer um corpo viril e cheio de poder, e
eu sou como essas mulheres belgas resistentes à idéia de possuir músculos:

Bonjour, Stéphane,

Você pode me enviar o projeto de que você fala? Fui contatada por duas realizadoras de filme interessadas na
imagem da mulher malhada. Achei que seria interessante você entrar em contato com elas e falar do seu trabalho. Quanto a
mim, não conheço nenhuma mulher malhada, aqui. São raras, a maior parte das mulheres resiste à idéia de possuírem, elas
mesmas, músculos.

Com amizade,
Nathalie

Segunda-feira, 23 de abril de 2007

Hoje, segunda-feira, nada de academia, nem sexta ou sábado tampouco. Ontem, fui
maldosamente mordido, na mão, pelo cachorro de uma amiga. Nada grave, mas é estranho e doloroso
dar-se conta de que se é rasgável, mordível, comível, que um cachorro ou qualquer outra criatura
maldosa pode, se estiver com essa idéia em mente, simplesmente tirar um bom pedaço de mim. Tive uma
queda de pressão, não dor, nem mesmo no instante em que aconteceu, mas quando alguém perguntou se
as veias do punho tinham sido atingidas, eu olhei um pouco melhor; estava sangrando bastante e as
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marcas dos sujos dentes do maldito cão apareciam no meu braço... Comecei a transpirar, transpirar como
nunca antes havia transpirado na academia... Passei do rosa-baunilha ao branco, depois ao verde, depois
amarelo... Alonguei-me, esvaziado. Mais tarde, estaria melhor, mas não me sentia pronto para a
retomada. Se é isto a endomorfina... é uma sensação forte!

Aproveito para escrever para Nathalie ...

Cara Nathalie,

Sim, o músculo feminino não é tão raro no Brasil. Ele é fruto de uma vontade bem
feminina, vontade motivada igualmente pelos olhos masculinos, que gostam das mulheres
malhadas com coxas firmes e glúteos duros e grandes... Acho que é mais comum do que na
Europa. Às vezes, as mulheres são mais numerosas e ativas nas academias de musculação,
e algumas tomam gosto pela coisa... Há, aqui, um fenômeno bem recente, que está nas
mídias, a hipermalhação. Trata-se de um treinamento intenso para preparar o corpo,
tendo em vista os testes da praia. Trabalha-se no inverno para conseguir bons resultados
no verão. Acho que você gostaria muito de contemplar esses corpos no Rio de Janeiro... Vou
tentar terminar meu diário na próxima semana, e o envio para você...

Boa semana,
Stéphane

Terça-feira, 24 de abril de 2007

Acabo de passar 15 minutos na academia. Acho que desta vez, de fato, meu regime muscular
está chegando ao fim. Nunca gostei de fazer musculação. E, como não consigo, na prática, separar meu
corpo dos meus pensamentos, morro de tédio no meio das repetições musculares. Eu permaneço colado
aos aparelhos como uma mosca, o tempo todo batendo as asas do pensamento, sem mexer uma fibra. Os
outros, os que me observam, já acostumados ao meu dualismo radical, nem parecem pensar... Eles estão
lá pelos seus corpos, são mais corporais do que eu, concentrados de músculos e de veias e parecem ter o
poder de desligar o espírito, pelo menos durantes as séries.

O que me interessa, no fim, é a constatação do meu fracasso muscular, por falta de


motivação e por simples resistência a essa estética do músculo enrijecido. Tentei muito me convencer de
que eu poderia me recompor, malhar e me disciplinar, mas de qualquer forma, é preciso forçar...
Encontro, sempre, uma forma de fugir. O Pilates também não me convenceu... Não dá para se recompor,
e eu acho que somente atividades físicas que assumem a ligação corpo-imaginação em movimento, como
a dança, o yoga ou o tai chi chuan podem me seduzir. Quanto ao cigarro, é sempre a mesma história, eu
fumo contra todos os avisos e fumo sem trégua e sem parar, eu fumo... apesar de mim, sem mesmo pensar
nisso.

Se Spinoza se pergunta o que pode o corpo, eu me pergunto, então, o que eu posso fazer do
meu. Meus limites são bem visíveis, e a mudança não se fará visível... Então, quando eu encontro alguém

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que me diz que eu emagreci, quando, na verdade, eu tinha a intenção de me deixar esculpir
muscularmente, eu acho quase engraçado... grotesco, patético ao mesmo tempo. O trabalho do corpo não
seria uma maneira de se pôr a nu, de se descobrir para os outros? Se, para mim, o ato de escrever é uma
compensação, uma estratégia de fuga frente à musculação, isto mostra que meu eu-ideal não está em jogo
nessas atividades de modificação da aparência. Para Lacan, esse eu-ideal é o fruto de correspondências
“que unem o eu à estátua em que o homem se projeta como aos fantasmas que o dominam, ao autômato
enfim, onde, num relato ambíguo tende a se consumar o mundo da sua fabricação” (LACAN, 1949, p.2).
Sem projeto, nada de fabricação. E, “é suficiente compreender o estágio do espelho como uma
identificação, no sentido amplo que a análise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no
sujeito, quando ele assume uma imagem, - cuja predestinação com relação a esse efeito de reflexo é
suficientemente indicada pelo uso na teoria, do termo antigo imago” (LACAN, 1949 p.2). Sem
identificação com os modelos musculares e as modas corporais expostas nas academias, a transformação
não se produz no sujeito. Ele não assume que ele é, também, uma imagem.

Quarta-feira, 25 de abril de 2007

Ontem, refleti um pouco sobre meu comportamento de fuga muscular. Desta vez, eu não
me lançava num trabalho de pesquisa de campo, mas, sim, numa situação de trabalho de observação
participante. Queria simplesmente me observar nesse espaço, e é sintomático o fato de não restarem
marcas dessas atividades no meu corpo, tal a minha resistência a elas. Sem frustração estética, não estou
mais, desta vez, no corpo que “faz de conta”, como diz Seloua, tampouco na atitude do antropólogo que
esquece quem ele é... Permaneci eu mesmo, e essa questão de identidade e de integridade do antropólogo
me parece essencial. O observador não se transforma no observado (ainda bem).

A escolha do diário como gênero de etnografia está totalmente em consonância com essa
vontade de participar sem, por isso, passar por uma aculturação invertida, que, no meu caso, teria sido
uma musculação forçada. É bom confessar que, na academia Runner, fui vítima de uma pressão
constante, por parte dos personal trainers, das recepcionistas e dos assistentes que me repetiam a cada sessão,
como que para me culpar..., vemos pouco você, você precisa forçar um pouco mais... Você não entra no
molde que você não acha bonito. Cada pé com o seu sapato. Não quis enrijecer meus músculos. Sem a
identificação, impossível a ereção...

Sexta-feira, 28 de abril de 2007

De fato, eles nunca mais me viram nem me pegarão mais. No dia seguinte, decidi parar a
academia e continuar a fumar. Meu corpo precisará se contentar com alguns exercícios do cotidiano.
Acabo de reler o diário todo e de enviá-lo a Nathalie que será minha primeira leitora. De certa forma,
esses ritos de pesagem aos quais me submeti, no início e no fim do meu treinamento, não foram ritos
profundos de passagem. Minha personalidade corporal modal, retomando um conceito de Georges Devereux,
está bem mais firme, sólida e dura que meus músculos. Perdendo alguns quilos, recuperei calças nas quais
não entrava mais, e confirmei, com muita transferência do ponto de vista psicanalítico, que meu corpo
era e permaneceria um corpo magro.

47
Domingo, 30 de abril de 2007

Caro Stéphane,

Já li seu texto até à metade. Não conheço os personal trainers. Treino sozinha, é a minha rotina, com os aparelhos
que me agradam, escolhidos em função dos meus critérios de progresso e de forma. É simples, básico. Comecei, treinando num
meio muito popular (o único, aqui, ligado em músculo) e procurei entender como eles faziam isso. Cerquei-me de informações e
cheguei a conclusões que me pareceram apropriadas. Não poderia obedecer a comandos. No início, também treinei com a ajuda
de uma pessoa. Nada de computador, de programa escolhendo pela gente, mas o feeling, a sensação. Não tive dores, pois vinha
do boxe, e essa prática era mais fácil e confortável. Sempre uma motivação: minha identidade sexual. Tornar-me eu mesma,
um corpo que não seja exclusivamente feminino. Se não fosse por essa minha única verdadeira motivação... a imagem dos
homens musculosos, eu não investiria tanto do meu tempo nisso. Não me obrigaria a nada que não significasse uma
libertação... Isso, não poderia acontecer... Daí, comparando-me com você, o motor que me move nessa direção é diferente, é
meu estímulo. Daí, a atenção às sensações de transformações, e agora, aos 43 anos, com as contusões, simplesmente uma
tentativa de manter a aparência o máximo de tempo possível. Diminuí os pesos, o corpo se fragiliza, não devo mais perseguir a
performance, mas, sim, a manutenção de uma imagem que me é cara. Uma vez mais, não se trata de me conformar com os
critérios exteriores que me sejam aplicados, mas, ao contrário, de estabelecer os meus, o que pode significar uma maneira de ver
as coisas muito diferente; não poderia, igualmente, como indicam a você, obedecer a uma disciplina que não faz muito sentido
para mim. Acharia isso chato e inútil. Assim, compreendo sua lassidão nos exercícios, sem falar do lugar que não tem nada de
apaixonante, que lembra solidão, isolamento, falta de comunicação e de concentração, com a música impedindo de pensar. Eu
preferiria um lugar mais silencioso, com uma convivência mais agradável. Assim, eu só vou a esse tipo de lugar para perseguir
um objetivo preciso, essencial ao meu bem-estar psicológico, dar suporte ao meu corpo durante a sua transformação.

Com amizade,
Nathalie

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POST-SCRIPTUM (fim de agosto de 2007)

Gênero de músculo ou o músculo como extensão do sexo social.

“O sexo do observador desempenha um papel importante na pesquisa.”


Georges Devereux, 1980

Nessa nova experiência de campo, eu fiz como que um retorno às teses de Georges Devereux
(1970), etnopsiquiatra francês. Ele havia desenvolvido o conceito de personalidade modal, mostrando que a
sublimação individual que um indivíduo opera a partir de sua própria cultura é uma espécie de
confirmação cultural. Essa noção se aplica diretamente a esta volta ao campo que eu vivi durante seis
meses. Ela está presente em todos os meus momentos de resistência à musculação; essa transferência do
ponto de vista psicanalítico que perpassa este diário acadêmico é uma confirmação da minha
personalidade corporal modal. Assim, pude verificar em mim mesmo, tornando-me cobaia da minha
própria pesquisa, a hipótese culturalista de que o culto ao corpo é uma manipulação social das relações
pessoais com o corpo; a corporeidade modal (o que uma sociedade valoriza no corpo) é sempre
reinterpretada, re-encenada por seus membros: adaptada a cada caso.

Sem jogo, sem vontade de se deixar manipular e de se manipular, a personalidade modal


permanece fixa. Sem mudar minhas referências corporais modais, sem mexer na minha própria norma
francesa, acabei, no fim, não mudando meu corpo: como ele é, ele fica. Me cai bem, corresponde à minha
personalidade.

Mais uma vez, vejo-me diante das questões ligadas ao sexo social. O músculo é um signo de
gênero, uma extensão do sexo social. Já havia refletido sobre essa pista antropológica aberta por Nicole-
Claude Mathieu: se “em lugar de simplesmente traduzir ou simbolizar o sexo, o gênero não construísse o
sexo? Na realidade, a divisão hierárquica das funções sociais e das atitudes corporais e mentais (o gênero)
parece provocar modificações corporais e mentais do sexo”(1997, p.4). É a partir da minha relação em
espelho com Nathalie, que essa reflexão tornou-se uma evidência. Se eu não estou me sentindo motivado
a reafirmar ou transformar meu gênero (o músculo masculino), minhas motivações psicológicas não
bastam para me dar a vontade necessária para uma transformação física profunda. No caso de Nathalie,
sua vontade trans-gênero de tornar-se uma mulher forte, viril, masculina, provoca modificações corporais
e mentais do sexo. O gênero é, então, encarnado, incorporado, trabalhado.

O sexo social do observador desempenhou, assim, um papel preponderante nessa pesquisa


muscular. Minha masculinidade e minha feminilidade, uma dentro da outra, nas suas posturas corporais e
mentais, parecem ter completamente recusado as modificações corporais e mentais que a prática
acadêmica me propunha. Nesse sentido, mais do que um fracasso acadêmico ou um abandono do corpo,
descubro um certo equilíbrio corporal que mostra que eu estou simplesmente bem no meu gênero.

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Caro Stéphane,

Demorei para escrever, pois tive que cuidar de algumas urgências em função da publicação do meu novo livro
Discurso plástico, que está para ser publicado, aspectos técnicos, texto, fotos... Encontro no seu trabalho antropológico
não só a solidão das salas de musculação de Bruxelas, mas também grandes diferenças de abordagem e de motivações (aqui, o
músculo é marginal, tem um aspecto popular). O tempo da malhação é considerado como um tempo mal utilizado, um tempo
que seria para trabalhar... Logo, as pessoas que gastam tempo com isso são vistas como pessoas que não ocupam postos de
responsabilidade, que são incultas ou não encontram ocupação melhor para seu tempo que cultuar a imagem do corpo
hipertrofiado. Os únicos a terem essa preocupação fora das tradições populares são os gays.

Aqui, nenhuma mulher é musculosa. A feminilidade possui um corpo sem nervo e sem defesa e, sobretudo, sem
ataque. Sou uma exceção, sendo minha motivação, como você bem entendeu, a masculinidade sem a qual não posso suportar a
coabitação com o meu corpo. Isto é instintivo e, não, fruto de uma reflexão, que acabou vindo mais tarde. No meu quinto livro,
volto à gênese dos meus gostos e impulsos, à forma como tudo isso acabou revelando-se a mim desde a infância. A inadequação
ao gênero e aos “arbitrários sociais”; da mesma forma, meu gosto precoce pelas mulheres musculosas viris (como Renée
Toney). Entendo bem sua falta de motivação para malhar. É preciso não se sentir bem com seu corpo para querer mudá-lo e
ficar contente com essa mudança. O “problema” não representa, sempre, uma necessidade, como na cultura brasileira, que
você evoca, em que se trata mais de conformidade aos desejos sexuais dos outros (ou social). Mas como você se sente bem com o
que você representa, não existe necessidade de modificação para sobreviver, viver, experimentar prazeres. Resumindo, sorte sua.

Observo o “feminino” dos seus desejos. Você parece não reagir diretamente à exibição de um corpo (nos
vestiários), contrariamente à maior parte dos homens. Minha surpresa, ao lê-lo, vem do fato de que meus textos transgressivos,
de encontro aos valores impostos – uma apologia da liberdade –, tornam-se um exemplo constrangedor de gozo impossível. Há
uma inversão do ilegítimo ao legítimo, do condenável ao exemplar. Entre minha abordagem trans-gênero (encarnação fora da
norma) e o conformismo de gênero sexual (encarnação da norma) a questão do contexto cultural é crucial: os significados
parecem se inverter comparando a Bélgica com o Brasil. O que permite enfatizar melhor, e você o faz muito bem, tudo o que
existe de “arbitrário” ou de formal e habitual (cultural) nas diferentes sociedades.

Para mim, existe uma ausência de corpo na mulher sem músculo. Não falo do homem musculoso que não me
interessa. A mulher é um objeto carnal vazio, maleável, à mercê de... Com os músculos hipertrofiados, ela consegue, enfim, um
corpo. Ela se torna vontade e ação (em síntese, torna-se simplesmente um homem, ou se coloca como concorrente dele). Para
mim, a mulher musculosa não se constrói em relação ao desejo do homem (enquanto a mulher brasileira sabe que os homens
adoram suas coxas torneadas), mas em relação a tornar-se “homem” a partir da mulher no tronco, ombros, bíceps, tríceps,
dorsais musculosos, como Renée. É uma autodefinição, um desejo tipicamente masculino, ou seja, estou indo de encontro ao
desejo social de papéis atribuídos. É uma apropriação contra a regra. Nesse paradoxo, sua pouca vontade de músculo une-se
bem à minha vontade de músculo feminino. Incapacidade de se reconhecer em critérios impostos de fora e pela maioria. Acho,
portanto, seu ensaio muito interessante também nesse sentido. Estou contente com o nosso relacionamento e pelo seu trabalho
em conexão com meu livro, Construção de um corpo pornográfico.

Com amizade,
Nathalie.

50
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