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Veiga, Juracilda. Aspectos fundamentais da cultura Kaingang.

Campinas, SP: Ed. Curt Nimuendajú


NDAi\lENTAJS DA CULTURA KAJNGANG

seu povo. Na divisa da AI-


na Independente distribui
aos que freqüentarem seu
elecerarn-se nas aldeias de
ria, as seitas "Só o senhor é
·-obreiro da própria cornu-
,g, com suas velas, cânticos V. ORGANIZAÇÃO SOCIAL
ngang pentecostais são ve-
-ópria família, seguindo os
; de pesar e solidariedade,

; próximas, também rnan-


s apoia igualmente as ma-
Adotarei, corno se verá adiante, a designação "metades clânicas" para a
divisão que marca a distinção mais importante entre membros na sociedade
Kaingang. Com esse uso, busco destacar a associação das rnetade_s KAME e_
KANHRU com seus respectivos ''pais ancestrais», epónimos dasm~tades.
-~A discussão sobre a ;x:;;tê;;-~i;
d~-aã~ n".:. América do Sul foi p~aticarnen-
te abandonada a partir da década de 70, quando o conceito de descendência
passou a ser considerado corno não relevante para a discussão sobre organi-
zação social dos povos autóctones das terras baixas da América do Sul.
Dois textos, entre outros, são sempre referidos nas discussões sobre
o tema: a conclusão de Maybury- Lewis em Dialectical Societies (1979) e o
texto 'f\_ construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras", de See-
ger, Da Malta & Viveiros de Castro (1978). No primeiro, Maybury-Lewis
considera tanto o conceito. de ''descerzf' quanto o de 'àlliance systet115"._iI1-
suficientes para explicar a realidade Jê (Maybury-Lewis 1979:305-307). No
segundo texto, por sua vez, os autores assumem crítica semelhante, pro-
pondo corno de "maior rendimento" a aplicação, ao material sul-americano,
da "noção de pessoa, ligada à simbologia do corpo ( Seeger et alii [1978]
1987:16). Nos dois casos, os autores estão preocupados com a generaliza-
ção dos conceitos e com a impossibilidade de aplicá-los de maneira ampla
e uniforme ao variado material etnográfico sul-americano. Nos dois casos
os autores optam por desviar-se dos conceitos clássicos, restritivos, procu-
rando encontrar outros mais relevantes e abrangentes.
80 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÀO SOCIAL

Se conseguiram fugir aos conceitos e modelos forjados em outras re- com motivos redondos (râ
alidades, como a África e a Melanésia, que muitas vezes se vestia à força cada metade con:1P_Cl1:ta_ciua
na realidade sul-americana, as soluções propostas (partindo das ideolo- WonhÚky;;-;-~etade KAN
gias nativas no primeiro caso; e da noção de pessoa, no segundo), embora Afiliação aurn.;~~tad
pertinentes para a discussão das sociedades estudadas, também não dão de ambos os sexos, pertenc
col_l!a_de toda a realidade~ Vários autores têm encontrado semelhanças en- mento contínuo, através d,
tre realidades sul-americanas e as de outras partes do mundo. A partir dos sociedade Kaingang.
estudos de Dumont, por exemplo, Viveiros de Castro (1993) e Overing Ka- Os Kaingang, ao cont
plan (1984), entre outros, recuperam a teoria da aliança como eficaz na existêr1da -~~ mais de um t
análise dos povos sul-americanos. E antores com Lea (1986) e Lopes da mental para se adquirir um
Silva (1986) retomam a discussão sobre a noção de descendência como antes de dar um nome, per
importante também para as terras baixas da América do Sul. criança, de modo que possa
Q 111'1teria!Kaingang, que pas_sarei a analisa_r, ap_o11ta 2a_r.ia pertinên- tema de Nominação). PostE
cia tanto da noção de descendência - uma vez que podemos identificar Kiki, a criança acompanhai:,
metades dânicas - quanto da teoria da aliança, uma vez que tais metades de uma mesma metade são
são também exogâmicas. primo), em oposição a Íi7_111J
os membros da metade opc
J , METADES CLÂNICAS
KANHRU
O aspecto fundamental da organização social dos Kaingang é a divisão marcas re<

nas metades exo_gâ!ll_icas KAME e KANHRU, que se opõem e se comple~~n- Kanh


Vote
tam, enfetxa;;d-o instituiçõ~; qne, -;~t~e ~s Timbira, por exemplo, tendem a
ser distribuídas em vários pares de metades. As metades Kaingang não são As metades são hom,
espacialmente localizadas, isto é, não implicam em "posiç_ões" definidas da
muendajú:
moradia no espaço geográfico da aldeia. Como já dito, em capítulo anterior,
os Kaingang não constróem aldeias circulares ou semicirculares, comuns a a tradição dos Kai
todos os outros Jê e aos Bororo, e portanto não demarcam a oposição espa- chão( ... ) Saíram em do,
cial entre centro e periferia, masculino/feminino, público/privado, indivi- e Kamé, sendo que aqu
dual/coletivo que se têm apresentado como característica dos demais Jê (cf. gente de ambos os sexo
Seeger et alii [1978] 1987:21-3). Embora os Kaingang estabeleçam uma rela- po fino, peludo, pés pes
ção entre as metades KAME e KANHRU com os pontos cardeais (respectiva- su-;;s resoluções, cheios d
mente, Oeste e Leste), essa relação não transparece nas ações cotid_iª_nª~111as companheiros, ao contrt
ape1.1as na cerimônia do Kiki e nos enterramentos, como veremos adiante. seus moy_fm_entos e resa/
Os KAME estão relacionados ao Oeste e à pintura facial com motivos
Os seres e objetos do
compridos (râ téi) e os KANHRU relacionados ao Leste e à pintura facial
des, conforme a aparência
~UNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZACAO SOCIAL 81

:!elos forjados em outras re- com motivos redondos (râ rôr). Como veremos no tópico seguinte (V.2),
uitas vezes se vestia à força cada metade comp_o_rtaduas seções: na metade KAME,as seções Kame e
ostas (partindo das ideolo- Wonhétky; na metade KANI-IRU, as seções Kanhru.e..Votor.
~ssoa, no segundo), embora -- - A filü1çiio a uma metade e seção é definida patrilateralmente: os filhos,
studadas, também não dão de ambos os sexos, pertencem à metade e seção de seu pai. Esse procedi-
ncontrado semelhanças en- mento contínuo, através das gerações, estabelece o caráter patrilinear da
tes do mundo. A partir dos sociedade Kaingang.
:astro (1993) e Overing Ka- Os Kaingang, ao contrário dos Kayapó, por exemplo, não admitem a
da aliança como eficaz na e_xistência de mais de um genitor. Ter a paternidade reconhecida é funda-
Jm Lea (1986) e Lopes da mental para se adquirir um nome Kaingang e um lugar social. O nominador,
ão de descendência como antes de dar um nome, perguntará a que metade e seção pertence o pai da
térica do Sul. criança, de modo que possa escolher um nome apropriado (Ver cap. VII: Sis-
ir,_a,popJA para a pertinên- tema de Nominação). Posteriormente, quando se realiza uma cerimônia do
'. que podemos identificar K~ki, a criança acompanhará o grupo d~;~~paI:Oe modo geral,os
membros
uma vez que tais metades de uma mesma metade são referidos pelos Kaingang como taitk!l_ (parente,
primo), em oposição a iambré (cunh_a__do), C<Jmo são referid()s_genericamente
os membros da metade op<:'sta (Ver cap. VI: Parentesco e Casamento).

KANHRU (Leste) KAMÊ (Oeste)

---
l dos Kaingang é a divisão
e opõem e se complemen-
marcas redondas
Kanhru
Vetor
marcas compridas
Kamê
Wonhétkv
a, por exemplo, tendem a
ietades Kaingang não são
As metades são homônimas dos heróis míticos, conforme relata Ni-
trl_)_()sJ[ões" definidas da
muendajú:
iito, em capítulo anterior,
,emicirculares, comuns a a tradição dos Kaingang conta que os primeiros desta nação saíram do
narcam a oposição espa- chão (... ) Saíram em dois grupos, chefiados por dois irmãos por nome Kaíierú
público/privado, indivi- e Kamé, sendo que aquele saiu primeiro. Cada um já trouxe um número de
,rística dos demais Jê (cf. gente de ambos os sexos. Dizem que Kaíierú e sua gente toda eram de cor-
1g estabeleçam uma rela- po fino, peludo, pés pequenos, ligeiros tanto nos seus movimentos como nas
1tos cardeais (respectiva- suas resoluções, cheios de iniciativa, mas de pouca persistência._ J(amé e os seus
1as ações cotic.iianas, mas companheiros, ao contrário, eram de CQ[PQgrosso,pésgrandes, e vagarosos nos
omo veremos adiante. seus movimentos e resoluções (Nimuendajú [1913] 1993:58-9).
tura facial com motivos
Os seres e objetos do mundo natural estão relacionados a essas meta-
Leste e à pintura facial
des, conforme a aparência que tenham, para os Kaingang, os objetos, coisas

,cz:j;j;;
82 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL

e animais: se _siio_i:edondos (proporcionalmente semelhantes nas suas di- pondem rapidamente, class
mensões d;~ltura e -largura) sii9 dassi~cados como rôr (KANHRU) !_!_e dúvida quanto a um ou ot
são compr\d9s (desproporcionais nas dimensões de altura e largura) são afirmando não saber a met,
téi (KliME.). Submeti uma listagem de nomes Kaingang a alguns velhos mente, que ''decerto eles nã,
para saber se eram nomes KAME e KANHRU. No Anexo 4 pode-se ver, marcados com os sinais clâ
por exemplo, no item 59: "Ngrâ é nome KANHRU, é a samambainha; não sar de eventualmente não d
vê que ela vive fechado, é KANHRU". De fato, esse tipo de samambaia tende (o que é a mesma coisa que
a enrolar suas pontas, ganhando uma aparência arredondada. Parece que é ça entre seres compridos e
a isso que os Kaingang referiram como "fechado''. que sua língua possui verl
Os termos rôr e téi são também glosados em português como "baixo" rôr ou téi 62 • E, de maneira
e "alto" respectivamente (cf. Vai Floriana 1920: 171 e 184). classificados em KAMÊ ot
Na interpretação de Nimuendajú, por terem sido criados pelos "pais de Nimuendajú.
fundadores" KAJ\1_F,_e KAJYHEU,tQclQs_ º~-
seres da nat11rei'1.)2s'~m Os conceitos Kaingan
às duas metades, com exceção da terra, do céu, daágua e do fogo. ---- fins comparativos com as
turas dos Xavante e Xeren
Todos ainda manifestam sua descendência ou pelo seu temperamento ou
redondas e compridas, os
pelos traços físicos ou pela pinta [pintura]. O que pertence ao clã Kaííeru é
listas verticais que, se pern
malhado, o que pertence ao clã Kamé é riscado. O Kaingang reconhece essas
termos Kaingang rôr e téi.
pintas tanto no couro dos animais como nas penas dos passarinhos, como tam-
bém na casca, nas folhas, ou na madeira das plantas. Das duas qualidades da
• SEÇÕES KAINGANG
onça pintada, o acanguçu é Kaííeru, o jaguareté60 é Kamé. A piava é Kaííeru,
e por isso ela vai também adiante na piracema. O dourado é Kamé. O pinheiro Autores importantes
é Kaííeru, o cedro é Kamé, etc. (Nimuendajú [1913] 1993:59) 61 gang, Nimuendajú e Bak
Quanto ao pinheiro e ao cedro, mencionados por Nimuendajú, é pro- "divisões" internas às mel
vável que tenha ocorrido uma inversão na anotação daquele autor, pois é concôr<les quanto ao cará
consensual, entre os Kaingang, que o pinheiro é Kame e o cedro é Kanhru. Independent ofth1
Em minha experiência de campo pude verificar que, se perguntarmos aos consists off1Jur_ cla~ses; J
Kaingang sobre cada animal ou pássaro daqueles presentes nos mitos, res- the others are ceremoni
guished by a type ofbo,
60
No texto da publicação, nessa passagem aparece escrito 'jagnareté", que substituímos por "jaguareté". that class and moiety a
Trata~se, evidentemente, de erro na transcrição dos manuscritos de Nimuendajlt.
61
Baldus, embora não seja categórico com relação ao assunto, transcreve a resposta do velho cacique
Kõikãng quando questionado por ele sobre isso: "as estrelas são filhos do sol e da lua, mas não são Aniky,
não são Kamé, não são Kadnyerlt, não são Votôro. Cada estrela tem um nome, mas as estrelas não são
separadas umas das outras como Kamé e Kadnyerlt. E as plantas e os animais não são Aniky. não são 62Exemplos disso são os pares de
Kamé, não são Kadnyerú, não são Votôro, porque eles não foram pintados por nossos primeiros velhos, objetos redondos, e watin e wakõti
e porque eles têm pinturas completamente diferentes" (Baldus [1937] 1979:29). pessoal).
UNDAMEi\'TAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZAÇÃO SOCIAL 83

te semelhantes nas suas di- pondem rapidamente, classificando-os numa metade ou outra, ficando em
como rôr (KANHRU) e se dúvida quanto a um ou outro animal que os mitos não mencionam, ou
ies de altura e largura) são afirmando não saber a metade a que pertencem. Eles explicavam, evasiva-
: Kaingang a alguns velhos mente, que "decerto eles não foram ao Kiki", o que significa que não foram
. No Anexo 4 pode-se ver, marcados com os sinais clânicos e, portanto, não foram classificados. Ape-
'RU, é a samambainha; não sar de eventualmente não classificarem algum animal em uma das metades
se tipo de samambaia tende (o que é a mesma coisa que classificá-lo nas categorias rôr ou téi), a diferen-
arredondada. Parece que é ça entre seres compridos e achatados é tão importante entre os Kaingang,
}",
que sua língua possui verbos distintos para o ato de carregar um objeto
m português como "baixo" rôr ou téi 62 • E, de maneira geral, objetos, plantas e animais tendem a ser
171 e 184). classificados em KAME ou KANHRU, o que corresponde às informações
m sido criados pelos "pais de Nimuendajú.
_d_<1I1a!_ure_z;il_p_s,rt~m Os conceitos Kaingang rôr e téi são de fundamental importância para
fa_água e do fo_go. fins comparativos com as pinturas rituais de outros Jê. Enquanto as pin-
ou pelo seu temperamento ou turas dos Xavante e Xerente, como as dos Kaingang, são diferenciadas em
ue pertence ao clã Kaneru é redondas e compridas, os Krahô, Suyá e Apinayé opõe listas horizontais a
O Kaingang reconhece essas
listas verticais que, se pensadas como baixo e alto, seriam equivalentes aos
s dos passarinhos, como tam- termos Kaingang rôr e téi.
otas. Das duas qualidades da
0 SEÇÕES KAINGANG
é Kamé. A piava é Kaneru,
dourado é Kamé. O pinheiro
Autores importantes para o estudo da organização social dos Kain-
13] 1993:59) 61
gang, Nimuendajú e Baldus foram. osprimeiros estu<.ii9.s9satratar<ias
s por Nimuendajú, é pro- "divisões" internas às metades, sem que, no entanto, suas opiniões sejam
1ção daquele autor, pois é éõncordes quanto ao carát~;d~ssas divisões. Para Nimuendajú,
,ame e o cedro é Kanhru.
Independent ofthe moietie_s, there is another type of division which today
1ue, se perguntarmos aos
consists ofJour classes; formerly there were probably more. One class is general;
presentes nos mitos, res-
the others are ceremonially inferior or superior to this one. Bach class is distin-
guished by a type ofbody painting which is a variant of the moiety paintings, so
·, que substituímos por ']aguareté".
~lmuendajú.
that class and moiety are simultaneously expressed by the body painting.
creve a resposta do velho cacique
do sol e da lua, mas não são Aniky,
um nome, mas as estrelas não são
,s animais não são Aniky. não são 62Exemplos disso são os pares de verbos mbatin e mbakõtin, respectivamente "levar" e "trazer" para
·ados por nossos primeiros velhos,
objetos redondos, e watin e wakõtin, "levar" e "trazer" para objetos comprídos (D'Angelis - comunicação
J 1979:29).
pessoal).

li_.
0_ /-~C! ,A:.c..X ..±±.ii.,i,fiC'.FTX'"-::½ ", y s.0:. e- ,_ ·--~"·ª' PU . · · · · · " 0
ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCTAL

The three specific classes are: the Paí, the Votóro and the Pénye. (apud As pinturas variantes
Métraux 1947:149). 63 gundo Baldus, as categori,
soas de ambos o_s sexos, r
Ainda segundo Nimuendajú, essas classes
Baldus, essas categorias rei
Não são classes sociais, mas seus membros só se diferem pelas funções poderes no contato com e
que eles são obrigados a exercer por ocasião de enterros, danças e outros atos dos mortos. Sobre a relaçã
religiosos. A diferença ou identidade de uma classe nunca impede o casamento, votoro é ajudante e substit
como acontece em caso de identidade do clã (Nimuendajú [1913] 1993:61-2). "um votoro pode se torna
se votoro". Sobre os iendl
As me_tades, para Nimuendajú, possuem caráter dânic()64, e é o pertenci-
ment~ e-; identidade oriunda delas qiie
i~t~;ferirá ~;; ;~gras de casamento, e
os votara. Os iendkíby' p,
cemitério ''como derradeir
não a identidade ou diferenciação de classe porque, para aquele autor, as clas-
terem feito três a quatro vo
ses existem em ambas as metades e suas funções são apenas cerimoniais.
enterrado no cemitério, "s
Baldus, em sua pesquisa na aldeia de Palmas, PR ([1937] 1979:18),
Na seqüêncLi,-Bâldii
afirma que os Kaingang estão divididos em metad~s - sem, no entanto,
em cada aldeia:
nominá-las - e que cada metade está subdividida_e111_doü;_g:n1j20s: em uma
metade, Kamé e Aníky; e na outra, Kadnyerú e Votôro. Em trabalho poste- um chefe que poa
rior, sobre os Kaingang do Posto Indígena Ivaí (PR), o mesmo autor passa exceção do paímbogn,
a considerar que tão grande de sinais típ
nua do corpo. Os país
as metades Kaingang chamam-se Kanieru e Kamé. Os nomes do indiví-
relação a perigos de qi
duo indicam a metade à qual ele pertence. Outro indício é a pintura cerimonial
mágico (Baldus 1947a:
que consiste em pontos entre os Kanieru e em traços entre os Kamé (Baldus
1947a:80). Vemos, assim, que a
No mesmo trabalho, Baldus destaca: tóro e pénye e mais uma,

ainda que a pintura dos pontos caracterize os Kanieru e a de traços ver- 65Conforme Baldus, os pénie usam
ticais os Kamé, há certas variantes em cada tipo de pintura que assinalam e forma, aos da maioria dos memb
Por sua vez, "a pintura dos votorc
distinções entre indivíduos de cada metade (Baldus 1947a:80).
ou traços verticais da respectiva
respectiva metade, trazem em am
63
"Independentemente das metades, existe um outro tipo de divisão que atualmente consiste de quatro horizontal a cada lado da boca e de
classes; antigamente eram provavelmente mais. Uma classe é geral; as outras são cerimonialmente Ver, adiante, minhas observações 5
inferiores ou superiores àquela. Cada classe é distinguida por um tipo de pintura corporal, que é uma 66A citação de Baldus parece indi,
variante das pinturas das metades, de modo que a classe e a metade são simultaneamente expressas pela reconheça que tais chefes, "em gm
pintura corporal. As três classes especificas são: os Paí, os Votóro e os Pénye" (apud Métraux 1947:149 põ'í) é chefe político, sendo que er
- trad. dos editores}. dialetais explicam o fato de que .:
64
Veja~se, por exemplo, a seguinte passagem: "No só/o toda la tribu Kaingygn, sino toda la naturaleza, Kaingang de São Paulo e do Cenm
desde e/ Tieté hasta e/ lyhuy, está dividida entre estas dos danes exogámicos, según su ascendencia e paí (Vai Floriana 1920:156; Nim
patrilineal" {Nimuendajú [1914] 1978:142). pronúncia típica é põ'i.
!NDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZAÇÃO SOCIAL 85

Votóro and the Pénye. (apud As pinturas variantes que aparecem nos cerimoniais distinguem, se-
gundo Baldus, as _categorias pénie, votoro e iendkib)I', _que podem ser pes-
soas de ambos os _sexos, _!iavendo-as nas duas metades65 • Ainda segundo
Baldus, essas categorias referem-se a indivíduos a quem se atribuem certos
,s só se diferem pelas funções
-
poderes no contato _mm o sobrenatural, nomeadamente
"
com os_ espíritos
-~--------- ----- ---- ----· ____________ ---
.. -·-----
,.. . . . ..
enterros, danças e outros atos
dos mortos. Sobre a relação entre essas categorias, Baldus diz apenas que o
se nunca impede o casamento,
votoro é ajudante e substituto dos pénie no tratamento com o morto, e que
muendajú [1913] 1993:61-2). "um votoro pode se tornar inteiramente pénie, mas este não pode tornar-
64
iter d!11_ic_o , e é o pertenci- se votoro". Sobre os iendkiby ', diz que são "muito mais raros ainda" que
i nas regras de casamento, e os votara. Os iendkiby' participariam na danças cerimoniais entrando no
e, para aquele autor, as das- cemitério "como derradeiros, sendo chamados para isso só depois dos outros
;ão apenas cerimoniais. terem feito três a quatro voltas". () cadáver de um iendkiby' nãopoderia ser 1

nas, PR ([1937] 1979:18), enterrado nocemitério, "senãomorre~t;dos ligeiro" (Baldus 1947a:81),


tades - sem, no entanto, - Na seqüênciá;.Bâid;~;;fer;~;~a quarta distinção, o paí, um único
aeII1_doi§_gmpos: em uma em cada aldeia:
ótôro. Em trabalho poste-
um chefe que pode usar a pintura de qualquer um de sua metade com
ºR), o mesmo autor passa
exceção do paímbogn, chefe grande de subtribo que se pinta com um número
tão grande de sinais típicos da sua metade que dá para encher o rosto e a parte
, Kamé. Os nomes do indiví- nua do corpo. Os paí são considerados como mais sensíveis
ndício é a pintura cerimonial relação a perigos d~ qualquer espécie que, natur~l;:,;ente, sempre têm ~;~áte;
aços entre os Kamé (Baldus mágico (B~i<l~; 1947~:s1J66 - - --

Vemos, assim, que aquilo que Nimuendajú chamou "classes" paí, vo-
tóro e pénye e mais uma, "geral" ou ''comum", não corresponde exatamente

1s Kanieru e a de traços ver-


65
Conforme Baldus, os pénie usam uma pintura "cujos traços ou pontos assemelhavam-se, na disposição
o de pintura que assinalam e forma, aos da maioria dos membros da respectiva metade, sendo porém, consideravelmente maiores".
lS 1947a:80). Por sua vez, "a pintura dos votoro se distingue da dos outros pelo acréscimo de círculos aos pontos
ou traços vertícais da respectiva metade". Por fim, os íendkiby', que "além da pintura típica de sua
respectiva metade, trazem em ambas as metades dois traços horízontais em cada bochecha, um traço
que atualmente consiste de quatro horizontal a cada lado da boca e dois traços horizontais em cada uma das têmporas" (Baldus 1947:80-1).
d; as outras são cerimonialmente Ver, adiante, minhas observações sobre as pinturas rituais no Xapecó.
,o de pintura corporal, que é uma 66
A citação de Baldus parece indicar a existência de uma quinta distinção, paímbOgn, embora o autor
10 simultaneamente expressas pela
reconheça que tais chefes, "em geral são eleitos pelos velhos". Sabemos, pelos Kaingang atuais, que pai (ou
s Pénye" (apud Métraux 1947:149
1

põ'i) é chefe político, sendo que empregam hoje esse termo para referir-se aos seus cacíques. Diferenças
dialetaís explicam o fato de que autores como Vai Floriana e Nimuendajú (que trataram com grupos
Kaingygn, sino toda la natura/eza, Kaingang de São Paulo e do Centro-Norte paranaense) tenham anotado, respectivamente, o termo pahí
'.Xogámicos, según su ascendencia e pai (Vai Floriana 1920:156; Nimuendajú in Métraux 1947:149), enquanto nos dialetos mais ao Sul a
pronúncia típica é põ'i .

. L_c_c.~-✓--- .r ' c,_½',-.li -~~~ -"~~ ·--~,aLc,2/LW


,--·x • .
86 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL

ao que Baldus identificou corno ''distinções de pintura" paí, pénie, votoro e Quadro li -
iendkiby ', embora se recubram parcialmente. No quadro abaixo, os nomes Kain!
Corno vimos, para Baldus o paí não é senão um indivíduo~111cad.i exógamas, e os nomes em minúsc
"toldô' [aldeia], enquanto que para Nirnuendajú trata-se de urna classe da respectiva marca e pintura,comp

qual saem os xarnãs e líderes cerimoniais (apud Métraux 1947:149). AUTOR ANO
A divergência mais significativa entre ambos é que Nirnuendajú COIT

identifica duas metqdes e três (ou quatro) cla_sses_cerirno11iais presentes NIMUENDAJÜ 1912
nas duas, enquanto Baldus ([1937] 1979:18) afirma serem duas metades, 1947
1937 Anil
sem informar seus nomes, e dois subgrupos em cada metade e, posterior- BALDUS
1947
mente (1947a:80) conclui, corno Nirnuendajú, que as duas metades são 1977
HELM*
"Kamé e Kanieru", reconhecendo a existência de9.t1a~rCJJ1mções cerj1110-
niais, presentes em ambas. Baldus acrescenta que o nome dQi_11.divid_uo 1964 !
WIESEMANN
indica a metade a que ele pertence e que há "entre os nomes_p_ertencentes a 1971 Fot
FàgJ
cada parentela" os peculiares dos pénie que ''já em criança são designados
como tais". Sinônimo de pénie, segundo ele, seria o termo "vuiji-koregn"
Vãkre-
('nome ruim').
MELATTI 1976
Os autores que estudaram os Kaingang em anos recentes - alguns de-
les baseados em Baldus - são concordes em afirmar que os Kaingang estão
divididos em metades, assim como há unanimidade em atribuir à metade
dos KAME a pintura corporal de listas (marcas compridas) e à metade dos
VEIGA 1994
KANHRU a pintura de pontos (marcas redondas). Ka'
Apesar dessa unanimidade, cada autor relaciona a cada urna dessas ('') Para Helm (1977:101) "os clãs ti
pinturas urna série de subgrupos, nem sempre coincidentes. Para urna vi- (... ) em São Paulo: Pervi,)apeji, \
os dass'ifica nas metades ou pc
são de conjunto apresento na página seguinte um quadro de Metades e Sub-
grupos, como proposto pelos diferentes autores. Essa tabela é ilustrativa da Os dados de campo
<:()11füsãorei11a11te na}i_teratt1r.i,_reflexo do desconhecimento das categorias das relações de oposição '
relevantes para a organização social Kaingang. hav~ndo-troca de serviç•
Considerando pertinentes muitas das informações de Nirnuendajú e alguns casos:t;ocas de n
Baldus para a cultura Kaingang, à luz dos meus dados de campo, ainda Qual o papel, então
assim era necessário encontrar ''peças" que pudessem dar coerência a este rnes idênticos aos das m
quebra-cabeça, resolvendo algumas contradições e respondendo a muitas Nirnuendaju registr
perguntas. des consider;~do, no en
Para começar, era necessário explicar a duplicação dos nomes atribu- funções cerímÕniais e, l
ídos às metades, KAME e KANHRU, também referidos às seções Kame e de casamento, enquanto
Kanhru, internas à elas. garnia (cf. Nimuendaju
FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANlZAÇÃO SOCIAL 87

· pintura" paí, pénie, votoro e


Quadro li - Metades e Subgrupos l<aingang
No quadro abaixo, os nomes Kaingang em letras maiúsculas e negrito referem-se às metades
,não um indivíduo em cada
-"----------·-"-•·-·--- exógamas, e os nomes em minúsculas referem-se a subgrupos de cada metade, associados à
tjú trata-se de urna classe da respectiva marca e pintura, comprida ou redonda.
d Métraux 1947:149).
ambos é que J\Jim11~ndajú AUTOR ANO KAME ' METADES : KANHRU
comprida ou riscos : MARCAS redonda ou pomos
a_s_s_escerimonjais presentes
NIMUENDA)Ü 1912 KABMÉ KAUERÚ
:firma serem duas metades, KANYfRÚ
1947 KAMÉ
1 cada metade e, posterior- BALDUS 1937 Aníky Kamé Votôro Kadnyerú
' que as duas metades são 1947 KAMÉ KANIERU
de quatro funçõescerirno- HELM' 1977 inominadas
reraio recuru
que o nornec!Qj,ridiy_icluo rereie renevi

tre os nomes_p_e1}e11ççnfes_ ª WIESEMANN 1964 KABME KRE KAYRO KRE


1971 Fogkru ou Vogkru Jag-pi
em criança são designados Fàgpràg ou Vogpràg Kanhru
ria o termo "vuiji-koregn" Jãky Pãvi ou Pevi
Vãrenh Votar
Vãkre-kuvar ou Venhkre-k.
anos recentes - alguns de- MELATTI 1976 lnhagampi Wókrôn
Wàprêg Kanheru
nar que os Kaingang estão Venrei'd Penvi
lade em atribuir à metade Venkrikoára
lanku
ornpridas) e à metade dos Votoro
). VEIGA 1994 KAME KAiRU
Kamê e Wonhétky Kalru e Votar
ciona a cada urna dessas
(*) Para Helm (1977:101) 'Os clãs tem denominações específicas: Kandnyeru, Votara, l<amé, Aniky, Dorim
)incidentes. Para uma vi-
(... ) em São Paulo: Pervi,Japeji, Venreie, Foerekukron, que não encontramos no Paraná". A autora não
quadro de Metades e Sub- os classifica nas metades ou por pinturas, embora afirme que opõe redondos a compridos.
:ssa tabela é ilustrativa da
Os dados de campo não deixam dúvidas quanto ao papel fundamental
hecimento das categorias
das r~laç~es_de ()posição e de complementaridade entre KAME e Kl\NHRU,
havendo _t_i-oc:1deserviços funerário.s erituais,aliança matrimonial e, em
1ações de Nirnuendajú e
alguns casos, trocas der1CJ_n1es.
dados de campo, ainda
Qual o papel, então, das seções e por que existem seções que têm no-
,em dar coerência a este
mes idênticos aos das metades?
e respondendo a muitas
Nimuendaju registra uma assimetri.t~ntreosgrnpos internos às meta-

:ação dos nomes atribu-


des considerando, no
ent;~to, que paÍ,~odôro, péiie e iantky-by sáoaperias
funções cerimoniais e, por essa razão, não teriam interferência nas regras
,ridos às seções Kame e
de casamento, enquanto que o pertencimento aos clãs-metades exige a exo-
garnia (cf. Nimuendaju [1913] 1993:61-2).

/1{,j''"fl'!t/•i:;}h~ " '.Y> · 0'. +· · 'L ±v,c_Lec> +~- "L cc_---0A· e - ·=""""""•"*-*-" % -.GA, --·A.. .
88 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Baldus também percebe uma "consideração diferente entre os grupos Uma explicação poss
dentro das 'metades"' , e para ele a origem da divisão e da própria diferen- (conforme o dialeto de e
ciação estaria "pendente de solução" : "se esta formação de grupos indica an- geral para designar "gente
tigas camadas sociais ou mesmo étnicas" (Baldus [1937] 1979:18). Jules Henry, que viveu er
No mito de origem dos Kaingang, registrado por Telêmaco Borba Kaingáng e os relaciona a,
(Anexo 1), verificamos que aparecem quatro grupos hummtos distintos: Kaingáng dialects" que "in
os de Kanhru (Cayurucrés 67 ) e Kamé (Camés); o dos Kaingang (Caingan- from the state of São Paul
gues), com quem os dois primeiros estabelecem também uma aliança; e Conforme Henry, na líng
os Kurutu 68 ( Curutons), "escra~osjugidos". Penso que, não por acaso, são grafa), significa "homem'
também quatro as seções Kaingang. [1941] 1964:209). Nesse,
Os KAME e KANHRU são, simultaneamente, os pais ancestrais, as Kaingang, como os que ,
metades clânicas e as duas seções numericamente majoritárias; Votar e Wo- mum - por razões de pr
nhétky são as seções minoritárias e exercem funções cerimoniais. eles todos se poderia recc
A resposta que encontro, portanto, para as questões que levantei, par- Anterior a Henry, Bc
tem de uma leitura que valoriza o mito de origem, admitindo que 110Js'mp9 se assumem como tal. N,
mítico os Kaingang organizavam-se simplesmente como.1netad~s (Kame e indígenas, um fenômeno
Kanhru) e que, num determinado momento, fizeram aliança com um tercei- o termo Kaingang (Caing
ro grupo, os Caingangues, e por fim, incorporaram também os Curut~ns. nação do povo todo. O te
Conta a narrativa mítica que, após o "dilúviô' e a saída dos pais fun- com o significado de "ínc
dadores (Kame e Kanhru) do centro da serra, seguiram-se noites em que ou algumas das "parciali,
aqueles pais criaram os animais. Depois desse trabalho - continua o mito O fato de que nem
como auto-designação F
marcharam a reunir-se aos Caingangues (... ) Chegaram a um campo
por Nimuendaju em 190
grande, reuniram-se aos Caingangues e deliberaram casar os moços e as mo-
Ao designar sua própria
ças. Casaram primeiro os Cayurucrés com as filhas dos Camés, estes com as
os identificou com o ter
daqueles, e como ainda sobravam homens, casaram-nos com as mulheres dos
rios 1948:222). O termo
Caingangues. Daí vem que Cayurucrés, Camés e Caingangues são parentes e
possa traduzir, chama a
amigos (Borba 1908:22)69 •
A'we!Auwe, autodenom
Mas, se atualmente todo o povo se identica ou reconhece como Kain- Maybury-Lewis 1984:4(
gang, de onde viria essa parcialidade que encontramos no mito sob esse Seguindo meu raci
nome: Caingang? ba, junto aos quais os 1
ser identificados, então,
67
Cayurucrés = KANHRU + krê: = "descendência de Kanhru".
68
Curutons = kuru (roupa; nome do tecido próprio dos Kaingang) + tú (negação). Kurutú = "sem roupa".
69
A primeira publicação dessa narrativa, pelo mesmo autor, aparece em Borba 1904:57~59. Naquela 7n"tribos falantes de dialetos Kai
versão, Borba grafa Cayngans, que em 1908 mudou para Caingangues. Estado de São Paulo, Brasil, à Arg
DAMENTAJS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZAÇÃO SOCIAL 89

, diferente entre os grupos Uma explicação possível é que, de fato, o termo kaingâg ou kaingang
isão e da própria diferen- (conforme o dialeto de cada grupo local ou região) seja o termo de uso
'ação de grupos indica an- geral para designar ''gente", "pessoa", "homem" ou "pessoa da nossa gente".
1937] 1979:18).
Jules Henry, que viveu entre os Xokleng entre 1932 e 1934 os denomina
.do por Telêmaco Borba Kaingáng e os relaciona ao conjunto que reconheceu como "tribes spealcing
upos humª11QL distintos:__ Kaingáng dialects" que "inhabit the highlands of southeastern South America
dos Kaingang ( Caingan- from the state of São Paulo, Brazil to Argentina" (Henry [1941] 1964:xxi)'º.
também uma aliança; e Conforme Henry, na língua desse grupo, o termo "kôinggegn'' ( como ele o
, que, não por acaso, são grafa), significa "homem'; daí ser tomado como autoclenominaçãc/ (Henry
[1941] 1964:209). Nesse caso, tanto os grupos que hoje conhecemos como
te, os pais ancestrais, as Kaingang, como os que denominamos Xokleng (Laklãnõ), teriam em co-
najoritárias; Votar e Wo- mum - por razões de proximidade lingüística - um mesmo termo que a
es cerimoniais.
eles todos se poderia reconhecer como "autodenominação".
estões que levantei, par- Anterior a Henry, Borba (1883) atribuiu o termo Caingangaos que hoje
1dmitindo que no tempo se assumem como tal. No entanto, todo termo geral é, em todos os grupos
comometade.s (Kame e indígenas, um fenômeno pós-contato. Um erro de Borba foi, talvez, propor
1 aliança com um tercei-
o termo Kaingang (Caingang) como denominação genérica ou autodenomi-
também os Curutons. nação do povo todo. O termo, hoje difundido entre eles próprios e assumido
e a saída dos pais fun- com o significado de "índio", poderia ser atribuído, conforme o mito, a uma
liram-se noites em que ou algumas das "parcialidades" que, através de aliança, compõe o povo.
ilho - continua o mito O fato de que nem todos os grupos Kaingang utilizavam esse termo
Chegaram a um campo como auto-designação pode ser constatado por um vocabulário recolhido
1 casar os moços e as mo- por Nimuendaju em 1909 com uma mulher Kaingang do Rio do Peixe (SP).
dos Camés, estes com as Ao designar sua própria gente (o grupo do Rio do Peixe), a índia Mariana
-nos com as mulheres dos os identificou com o termo "Yalcwii(n)dagtéye" (apud Nimuendaju & Gué-
,ingangues são parentes e rios 1948:222). O termo téye quer dizer 'comprido' e Yakwii(n), embora não
possa traduzir, chama a atenção pela proximidade com os termos Alcuen e
A'we/Auwe, autodenominação respectivamente dos Xerente e Xavante (cf.
reconhece como Kain-
Maybury-Lewis 1984:40).
mos no mito sob esse
Seguindo meu raciocínio, os "Caingangues" do mito anotado por Bor-
ba, junto aos quais os Kame e Kanhru foram buscar mulheres, poderiam
ser identificados, então, com o povo hoje denominado Xokleng (Laklãnõ).

~gação). Kururü:::: "sem roupa''.


m Borba 1904:57-59. Naquela 70
"tribos falantes de dialetos l<aingang" que "habitam as terras altas do Sudeste da América do Sul, do
Estado de São Paulo, Brasil, à Argentina" (trad. dos editores).

4' ••·:'/·- :,J§§fiiX< -'--'---"-~ U+ & • _ _j'


90 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇ4.0 SOCTA.L

Os Kaingang atuais do Xapecó ainda possuem, entre suas narrativas !adas porprQcessosjiferent
históricas, a memória das guerras e alianças (por casamentos) deles com c;tiveiro, no segundo.
outros grupos Kaingang e com Xokleng71, e nas genealogias traçadas no A prática docati.veiro
Xapecó encontrei diversas pessoas identificadas como "botocÚdÕ~l' 72 , u111a autores que conheceram ca1
das denominações genéricas usadas para referir<1()sXokl_eI1g. Na realidade, Kaingang. Um relatório de 1
são pessoas que têm um ascendente Xokleng, na terceira ou quarta geração encontrado três "botocudo
acima, e algumas dessas pessoas pertencem à seção Votar. gang do cacique Veigmon, :
Não deixa de chamar a atenção o fato de que, entre os Xokleng (que Assim, o status diferen1
interpreto como os Caingang do mito de Borba) existe um ''group" - ter- rarquia social que consider,
mo utilizado por Henry ([1941] 1964:175) - cujo nome é Kainlê73 e cuja pais ancestrais, KAME e KI
marca é um círculo, marca idêntica à da seção Votar entre os Kaingang atu- rados ao grupo por casame
ais, que pertence à metade KANHRU. Por outro lado, assim como entre os incorporados através de cat
Kaingang existe a seção Wonhétky, pertencente à metade KAME, de marca Como está dito acima
comprida 74 , entre os Xokleng existe um "grupo" denominado Wanyekí, cuja mito como ''escrat'os" dos~
marca, porém, é redonda, "scattered ali over" (Henry [1941] 1964:175). Po- tupi-guarani. Esse povo é'
deríamos sugerir a hipótese que os Votar teriam vindo dessa aliança entre também como "Botocudo
Kaingang e Xokleng. Os Votar seriam Xokleng agregados por casamento [1878] 1974, cap. XVI e X
à metade de marca redonda, isto é, aos KANHRU. E os Wonhétky (seção Kaingang, um mito pelo
Kaingang) e os Wanyekí (grupo Xokleng) tenham a mesma procedência, lhes fazem guerra (cf. An,
ou seja, vêm de um mesmo povo feito cativo, tanto por Kaingang como por ram os grupos Guarani cc
Xokleng, ou seja, os Kurutu. às influências da sociedac
Reconhecendo as relações assimétricas na
so_ci_e.dade Kaingang, com que os Kaingang não são
e
as posições relativas das ;~ções- Votar Wonh-étky, e somando-se isso ao brasileiros.
fato de que, para osmembros det<1is_seções, tolera ,!i~a endogamiaJJe !}!e~ Há, entre os Kaing:
tade (ver Cap.VI.4), parece__,,___aceitável sugerirque essas seções foram assimi- KAME com KANHRU. <
--------- ··---. . ----------
.

dos ancestrais-_::que, hav,


71
Entre os Kaingang do Rio Grande do Sul também ouvi relatos de guerras que tiveram com os Xokleng, as uniões possíveis, dent
e casos de rapto de mulheres entre uns e outros. deve-se buscar mulheres
n Os "botocudos" existentes no Xapecó são originários, segundo eles mesmos, de lratin. O Rio lratin e KANHRU faziam aliam
é afluente da margem esquerda do R'10 Iguaçu. Trata-se de antigo Toldo Xokleng assistido pelo SPI na
década de 191 O, na região de Palmas, desativado antes de 1920. Os próprios relatórios do SPl sobre esse todenominam "Kaingani
Toldo referem seus habitantes como "botocudos". Cf. Relatório de Paulino de Almeida a José Maria de ser, por fim, os Kurutíí,
Paula. Documento arquivado em Microfilme no Cendoc-Museu do índio, Filme nº 83, Planilha 917.
73
membros das outras seçê
Henry grafa "Kainlé"(l 964:175), com o acento agudo indicando a sílaba tônica da palavra e a letra /e/
devendo ser lida como "in German jehle"' (1964:xxv). Tomando-se em conta que o som /1/ em Xokleng isso não afeta o status d
substitui sístematicamente o /r/ do Kaingang (como "p/ü" para "prü" = esposa), o termo "Kainfê" seria
transposto para "Kainrê", que guarda proximidade com "Kanhru" (pronunciado ~ kaifiru).
74
Ver seção V.4, adiante. 75 D'Angelis, s/d (inédito)
:UND.4.MENTAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZAÇÃO SOCIAL 91

suem, entre suas narrativas !adas por _p_r_o_cessos diferentes, a_sa~er:p_oraliança,11o_ pri111eirocaso, , _ por
por casamentos) deles com cativeiro, no segundo.
las genealogias traçadas no -- A prátic'àcfo cativeiro é registrada por Borba (1904:62) e por outros
S como "_botó-c·uª~§)'72,_uma autores que conheceram cativos de grupos de língua Tupi-Guarani entre os
· aos Xokieng. Na realidade, Kaingang. Um relatório de um Inspetor do SPI, datado de 1911, informa ter
1 terceira ou quarta geração encontrado três "botocudos" "escravizados" há quatorze anos pelos Kain-
~ção Votor. gang do cacique Veigmon, na região do médio Tibagi (norte paranaense) 75 •
~ue, entre os Xokleng (que Assim, o status diferente atribuído às seções seria resultante de uma hie-
a) existe um "group" - ter- rarquia social que consideraria como mais importantes os descendentes dos
ujo nome é Kainlê 73 e cuja pais ancestrais, KAME e KANHRU, seguindo-se aqueles que foram incorpo-
?tor entre os Kaingang atu- rados ao grupo por casamento (ou seja, aliança) e, por último, os que foram
lado, assim como entre os incorporados através de cativeiro. Esses últimos seriam os Wonhétky.
t metade KAME, de marca Como está dito acima, Borba identifica os Curutons, que aparecem no
!enominado Wanyekí, cuja mito como "escravos" dos Kaingang, como sendo os Aié, um povo de língua
,nry (1941] 1964:175). Po- tupi-guarani. Esse povo é comumente referido na literatura do século XIX
vindo dessa aliança entre também como "Botocudos", pelo fato de usarem tembetá (cf. Bigg-Wither
agregados por casamento [1878] 1974, cap. XVI e XVII). Borba recolhe junto a um deles, cativo dos
IU. E os Wonhétky (seção Kaingang, um mito pelo qual justificam porque os outros povos sempre
m a mesma procedência, lhes fazem guerra (cf. Anexo 2, Mito Aré). Até hoje os Kaingang conside-
o por Kaingang como por ram os grupos Guarani como "mais atrasados" porque são mais resistentes
às influências da sociedade envolvente. Os Guarani, por sua vez, afirmam
g_cie_dade Kaingang, com que os Kaingang não são mais índios, porque aceitaram muitos costumes
cy, e somando-se isso ao brasileiros.
a,.se_aendogamia de me: Há, entre os Kaingang, portanto, uma aliança prescritiva: casar-se
ssas seções foram assimi- KAME com KANHRU. O mito parece indicar - co~o-costume herdado
-- - - "·--•-------------------
dos ancestrais -- que, havendo ainda homens solteiros depois de realizadas
erras que tiveram com os Xokleng, as uniões possíveis, dentro de um grupo, entre os KAME e os KANHRU,
deve-se buscar mulheres entre os que são Kaingang, de maneira que KAME
~s mesmos, de lratin. O Rio lratin
>ldo Xokleng assistido pelo SPI na e KANHRUfaziam aliança também com esses (qualquer um dos que se au-
óprios relatórios do SPI sobre esse todenominam "Kaingang", inclusive os Xokleng). Os Wonhétky poderiam
ulrno de Almeida a José Maria de
dia, Filme nº 83, Planilha 917.
ser, por fim, os Kurutu, que sendo capturados, acabam se casando com
aba tônica da palavra e a letra /e/ membros das outras seções. Se os membros incorporados forem mulheres,
conta que o som /l/ em Xokleng isso não afeta o status dos filhos, porque o pai lhes dará um nome e um
::: esposa), o termo "Kain{ê" seria
1uncíado ~ kaifiru).

75 D'Angelis, s/d (inédito}


92 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL

lugar social, mas se forem homens "estrangeiros'; ou seja, nãecK_aingang, a urna escolha feita no mon
esses filhos seria preciso dar um lugar na sociedade Kaingang. buída a alguém por um d
A partir desse momento, há a necessidade de marcar os que não são Kiki. Logo, a qualquer pes
verdadeiros KANHRU ou verdadeiros KAME, distinguindo-os dos que se função cerimonial como p
reconhecem como descendentes dos "pais ancestrais". pode atribuir o pertencim<
Dentro da metade KANHRU distinguem-se os Kanhru, cuja pintura Os Wonhétky são, pa
são pontos, dos Votor, cuja pintura são círculos. Dentro da metade KAME dos Votor. Isso aparece na;
distinguem-se os Kamê, cuja pintura são traços verticais, dos Wonhétky, consideram que os memb
cuja pintura é um traçocurvo, da boca até a orelha. matrimoniais preferenciai
Há portanto uma distinção hierárquica entre os que sãoosdescenden- ligadas à cura e às advi11ha
tes diretos dos pais fundadores Kamê e Kanhru, cujas seções reúnem atl que os "iendkiby"' (= nhét,
hoje a maioria da população de cada aldeia, e os queforam i11corporados <liam ser enterrados no ce
~ .. , --------~-------
ª cada metade, porém marcados como "não tão" KAME,ou seja, os Wo- Ouvi sobre isso uma
nhétky76, e "não tão" KANHRU, isto é, os Votor. As seções Votar e Wonhétky tky não podem ser enter
não são, porém, somente papéis cerimoniais, uma vez que o pertencimento Pelo contexto - da proib
tanto à seção Votar quanto à seção Wanhétky é patrilinea_r e, à semelhança seria um e~r_i_tocanibal ,
do que ocorre com Kamê e Kanhru, filho de pai Votor é Votor, filho de pai dos mortos. Na verdade r
Wonhétky é Wonhétky. do assunto ser tabu, a re
O que teria levado autores corno Nirnuendaju e Baldus a identificar Kaingang atuais enterram
Votor e Wonhétky com categorias ou classes cerimoniais é o fato de que re- Um dos rezadores d,
almente eles possuem obrigações na vida cerimonial e nos ritos funerários confirmou o fato, inforn
da sociedade Kaingang. Seriam de certa forma "auxiliares" dos péin, urna não podem) brincar corr
categoria cerimonial por excelência, havendo os péin dos KAME e os dos o primeiro nome do info
KANHRU. Eles são encarregados de lidar com os defuntos, com o cemité- pudesse "entrar no cemité
rio e com os viúvos! as. Esses serviços são sempre prestados corno recipro- a pessoa não deixa de ser
cidade à metade oposta (ver, adiante, 3. Papéis Cerimoniais). passa a ser râ réngrê, pes
A seção Votor têm urna função cerimonial específica de abrir e fechar <lição de origem ( Wonhé
um "buraco" no cemitério por ocasião do Kikikoi, segundo soubemos no nome que recebeu.
Xapecó. Conforme Baldus, os Votor podem ajudar os péin, e até tornar-se As seções Votar e Wí
totalmente péin, mas um péin não pode se tornar Votor (Baldus 1947a:81). tante definidas - possuerr
Esse fato encontra urna explicação quando entendemos que o pertenci- senças são irnprescindíve
rnento à seção Votar é herdado. Quanto à categoria dos péin, trata-se de
77Embora as relações jocosas entre
como essas relações aconteciam
76
Os Wonhétky são chamados, por Baldus, de Aniky, e por Nimuendaju, de /antky-by ([1913J 1993:62). indica essa possibilidade, o que
Nhétkyrnby é o nome da pintura dos Wonhétky, as vezes usado como sinônimo da mesma seção. opostas, da categoria "amizade fo
;UNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZAÇÃO SOCIAL 93

Js'; ou seja, nãQJ(aingang, a uma escolha feita no momento da nominação, ou mesmo pode ser atri-
dade Kaingang. buída a alguém por um dos kuiâ (xamã), no momento da realização do
e de marcar os que não são Kiki. Logo, a qualquer pessoa se pode atribuir, por motivos diversos, uma
distinguindo-os dos que se função cerimonial como péin (com o respectivo nome), mas a ninguém se
'Strais".
pode atribuir o pertencimento à seção Votar ou Wonhétky.
·se os Kanhru, cuja pintura Os Wonhétky são, para alguns, considerados como o par simétrico
,. Dentro da metade KAME dos Votar. Isso aparece nas pinturas e também em alguns depoimentos que
Js verticais, dos Wonhétky, consideram que os membros dessas duas seções seriam também parceiros
,lha.
matrimoniais preferenciais entre si. QsWonbétky podem cumprir funções
re os que são os descendeu- ligadas à cura e às advinhações. Alguns são kuiâ e rezadores. Baldus afirma
~, cujas seções reúnem até que os "iendkiby"' (= nhétkymby, nome da pintura dos Wonhétky) não po-
,s que foramincorporados diam ser enterrados no cemitério (1947a:81).
," KAME, ou seja, os Wo- Ouvi sobre isso uma explicação da Kaingang Niagtâe: que o__s Wonhé-
ls seções Votar e Wonhétky tky não podem_ ser enterrados no cemitério "porque ele come os outros".
a vez que o pertencimento Pelo contexto - da proibição do enterramento no cemitério - Wonhétky
>atrilinear e, à semelhança seria um e,sJ)Íri_to<=:~nibal_que devoraria, provavelmente, os outros espíritos
Votar é Votar, filho de pai dos mortos. Na verdade não consegui uma resposta satisfatória pois, além
do assunto ser tabu, a restrição já não é colocada em prática, porque os
aju e Baldus a identificar Kaingang atuais enterram também os Wonhétky no cemitério.
noniais é o fato de que re- Um dos rezadores de Palmas, Simplício da Silva, da seção Wonhétky,
nial e nos ritos funerários confirmou o fato, informando ainda que, os Wonhétky não podiam (ou
auxiliares" dos péin, uma não podem) brincar com os KANHRU77 , e por essa razão seu avô trocou
péin dos KAME e os dos o primeiro nome do informante, que era Katâe, para Wagtu, para que ele
defuntos, com o cemité- pudesse "entrar no cemitério". Nesse caso, o nome parece ser um atenuante:
prestados como recipro- a pessoa não deixa de ser o que herdou, mas em função do seu novo nome
rimoniais). passa a ser râ réngrê, pessoa com duas pinturas: uma pintura de sua con-
:pecífica de abrir e fechar dição de origem ( Wonhétky, por exemplo), e outra pintura relacionada ao
i, segundo soubemos no nome que recebeu.
.r os péin, e até tornar-se As seções Votar e Wonhétky - com funções cerimoniais e religiosas bas-
Votar (Baldus 1947a:81). tante definidas - possuem rezadores próprios na cerimônia do Kiki, cujas pre-
1demos que o pertenci- senças são imprescindíveis para a realização do ritual. Atualmente, os Kain-
ria dos péin, trata-se de
77
Embora as relações jocosas entre as metades sejam práticas corriqueiras, não pesquisei específicamente
como essas relações aconteciam entre as seções. Registro essa informação que, embora seja a única,
ju, de lantky-by ([1913] 1993'62). indica essa possibilidade, o que aproximaria ainda mais essas relações entre as seções, de metades
;inônimo da mesma seção.
opostas, da categoria "amizade formal" existente entre os outros Jê.
94 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANTZAÇÃO SOCTAL

gang admitem até mesmo urna posição definida no cemitério para os mem- e do KANHRU; se está fali
bros daquelas seções, ao lado das seções homônimas às metades (ver figura). Kame". Segundo ela, o Vol
Não sei se é por causa da í
Esquema ideal de um cemitério Kaingang
marca redondaF', ele pod,
L cruz mestre põkrf dele mesmo (sic)".

---- Segundo Iagni, outro


fandango" (Kiki); é uma 'í

N
Votar

~--------- ➔~---------
*1 1
1 1
1 1
1 1
Kai'ru

s
de voz com o Kanhru e o v\
significa que cantam em d
nia de enterro, fim de luto
'
1 1
1 A existência de seçõE
1 1
micas não é exclusividade
Wonhétky 1
1
1
1
Kame
1 1
caso Jê mais próximo do ,
1 1
clãs Xerente, Prasé e Kroz,
como tribos incorporadas
o
------ entrada pintura corporal é marca,
É possível que originalmente só existisse a divisão do cemitério em
é distinguida por traços.
duas partes: Leste, para KANHRU, e Oeste, para KAME. A figura é urna clãs não são consideradm
observância das regras d,
idealização e não corresponde necessariamente a todos os cemitérios exis-
tentes, embora os Kaingang afirmem que o correto deveria ser assim: a escândalo (cf. Nimuendaj
entrada no cemitério pelo lado Oeste, por uma rua que termina na cruz
mestre. Do lado direito ficam primeiro os Kame e depois os Kanhru. À
3 , pAPÉIS CERIMONIAIS
esquerda de quem entra no cemitério ficam primeiro os Wonhétky e, atrás
Os péin (tanto Kam,
desses, os Votar. Ao entrar com o morto no cemitério, os pés do defunto
exclusivamente ritual, ha
entram primeiro, na direção Leste, olhando para a cruz mestre, mas de-
êiôn,Çlos também;; ~i
pois o corpo tem que ser virado, para ser enterrado com os pés voltados
mórdios, associando-os ,
para Oeste, onde se encontra o mundo dos espíritos dos mortos (eles fazem
corno os animais que, dE
urna volta com o corpo de maneira a colocá-lo na posição correta).
çando-a à água que se ret
Uma índia da metade KANHRU, Divaldina Luiz Krukte, procurou ex-
encarregados de fazer as
plicar as funções cerimoniais dos Wonhétky e dos Votar da seguinte maneira:
e dà re§guai;do de luto.
'o nhétkymby é Kamê, mas ele é mais forte. Ele pode tirar o põkrf' do KAME recíproca, para a metade

78
Trata-se do ramo que marca, no cemitério, a sepultura sobre a qual se vai rezar no Kiki. Esse ramo é
tirado e jogado fora do cemitério, por pessoas com funções cerimoniais, num momento preciso da reza. Significa que ele possui a oraçã<
79

Veja-se adiante a descrição da cerimônia do Kiki. mais orações possui um kuíâ (ou'
r:::uNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG
ORGANIZAÇÀO SOCIAL 95

a no cemitério para os mem- e do KANHRU; se está faltando o péin do Kame, ele pode tirar o põkrf do
ilnas às metades (ver figura). Kame". Segundo ela, o Votar "é kaitkõ [da mesma metade] com o Kanhru.
io Kaingang Não sei se é por causa da reza dele, rândor com râror [marca buraco com
marca redonda]", ele pode vencer os três fogos. Ele pode pinchar [jogar] o
z mestre põkrf dele mesmo (sic) ".
Segundo Iagni, outro Kaingang do Xapecó, Votar é uma função "do
fandango" (Kiki); é uma "pessoa sensível, mais calma". "Votar tem enxerto
1ru de voz com o Kanhru e o Wõnhétky tem enxerto de voz com o Kame". O que
significa que cantam em dueto, como um contra-canto durante as cerimô-
s nia de enterro, fim de luto e no Kiki.
A existência de seções incorporadas ou agregadas às metades exogâ-
ne rnicas não é exclusividade dos Kaingang. Entre os Xerente parecem estar o
caso Jê mais próximo do que tenho encontrado para os Kaingang: os dois
clãs Xerente, Prasé e Krozaké, foram considerados por Nimuendajú (1942)
da corno tribos incorporadas, respectivamente às metades Siptató ou Doí, cuja
pintura corporal é marcada por círculos, e Sdakrã ou Wairí, cuja pintura
, divisão do cemitério em é distinguida por traços. No caso Xerente, parece explícito que esses dois
a KAME. A figura é uma · clãs não são considerados membros plenos da tribo, razão pela qual a não
t todos os cemitérios exis- observância das regras de exogamia de metade por eles não constitui um
:reto deveria ser assim: a escândalo (cf. Nirnuendajú 1942:25).
rua que termina na cruz
1e e depois os Kanhru. À 3. pAPÉIS CERIMONIAIS
1eiro os Wonhétky e, atrás
litério, os pés do defunto Os péin (tanto Kame corno Kanhru) são os únicos com urna função
a a cruz mestre, mas de- exclusivalllente ritual,llavendo-os11<t§clllasrnetades. Parece possível rela-
ado com os pés voltados ciõnf:los també~ ;o mito de ;rigem, como f~nção estabelecida nos pri-
JS dos mortos (eles fazem
mórdios, associando-os aos patos e saracuras que aparecem naquele mito
1 posição correta).
corno os animais que, depois do dilúvio, ''carregavam terra em cestos, lan-
uiz Krukte, procurou ex- çando-a à água que se retirava lentamente" (Borba 1908:20). Os péin são os
'otor da seguinte maneira: encarregados de fazer as sepultmas ecuidar de todos os serviçosfúnebres
: tirar o põkr(l' do KAME e do res-gii;id; de foto. Essas ~tividâêlis sã~-sernpre e~~;~ida~: d; f~;~~
recípr()ca, para a metade oposta àqualpertencern. Antigamente o trabalho

11 se vai rezar no Kiki. Esse ramo é


is, num momento preciso da reza.
Significa que ele possui a oração das duas marcas ou metades. A oração é um grande poder; quanto
79

mais orações possui um kuiâ (ou "rezador"), maior é o seu poder.


ORGANIZAÇÃO SOCIAL
ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KA.INGANG

Conforme Krukte, "qu


de fazer a sepultura era mais penoso, e os relatos falam de sepulturas de 5 a
car as sepulturas" dos mort
9 metros de diâmetro, por 1,5 m. de altura. A terra para essas sepulturas era
os põí devem ser três ou ql
carregada em cestos (ver Enterramentos Kaingang - Anexo 3). Um dos no-
Os donos do Kiki são;
mes péin é exatamente Ngatufi, "carrega terra" (nas costas, logo, em cesto).
por algum de seus familiar,
Os péin Kame e os péin Kanhru são encarregados de várias tarefas,
a comida e a bebida para o
como marcar, com os ramos de árvores (põkrí) relacionados a cada meta-
Os tampér são dança
de, as sepulturas sobre as quais os celebrantes do Kiki rezarão 80 • São igual-
via, outro~a, essafunçã~ d,
mente responsáveis por tirar esses ramos das sepulturas e atirá-los fora do
sexos e deveriam dançar <
cemitério no momento apropriado, marcando com esse ato o fim dessa
ritual do Kiki (não sei dize
parte do ritual. São eles também os que servem a bebida_aos~<mvidados e
e com a nominação). Os
acompanham os rezadores como "serventes", bebend~ parte da bebida que
onde a bebida é fermenta<
lhes era destinada. Esse procedimento, como me explicaram, tem a fina-
os espíritos não chegasse
lidade de impedir que os rezadores fiquem bêbados e impossibilitados de
có, nos anos 90, apenas é
terminar as orações cerimoniais, o que não pode ocorrer de forma alguma,
entrevistá-las. De qualqw
pois uma vez começada a cerimônia do Kiki ela deve ser conduzida até 0
1993, não se observaram 1
término. Há outros que afirmam que os péin deveriam abster-se de beber
já foi muito mais rico em
Kiki. Os péin são encarregados de cuidar dos viúvos em seu retiro de luto e
anos em que deixou de s
nos rituais de saída do luto.
ou reinterpretados 83 • Em
Outras funções exclusivamente cerimoniais são: põ'í (os donos do Ki-
Baldus refere a atuação dt
kikoi) e os tampér. Os põ'í são os mestres de cerimônia do Kiki. São eles
nome que recebiam (Bale
que determinam todas as tarefas que devem ser executadas para o bom
andamento da festa, como a coleta de mel e frutos para abastecer os con-
• PINTURA CORPORAL 1
vidados, a saída dos mensageiros para convidar outras aldeias, o dia que
deverá começar a cerimônia, a escolha do pinheiro para fazer o kõkéi 81 • As metades KAME ,
Os põ'í devem ser escolhidos numa reunião prévia especialmente convo- rimonial. Em termos Kai
cada para acertar como será a festa do Kiki. Segundo alguns, os põ'í devem
"marca redondà' (rª rôr)
ser escolhidos entre as pessoas que são râ réngrê (os de duas marcas) por- para os primeiros, e pont
que estes podem freqüentar os dois fogos e, portanto, verificar se tudo está
ocorrendo a contento.
82A não ser, muito brevemente, er
por um Kanhru não identificado e
83O Kiki deixou de ser realizado rn
80 Sepulturas Kanhru são marcadas com ramos de kénkfud ("sete-sangria"; Simplocus parviflora), uma
Atribui-se isto a uma ação desestir
~ la~ta ~º~,~iderad~ ?edonda''., e~quanto ,s:pultur~s ~ amê são marcada,~ com ramos ou grimpas defâg
1 primeira penetração de seitas eva
( pmhetro , Araucana angust1fol1a), que e compndo . Sepulturas de pem são marcadas com ramos de
1

então, converteu-se a uma religiã


samambaia.
celebração do Kiki, considerando-
81"Kõkéi" é geralmente glosado em Português pelo termo "cocho". Pela semelhança da forma e calvez, (que celebraram o "Kiki" em 93) h,
pelo modo de fabricação, também é o termo dos Kaingang para "canoa".
FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL 97

os falam de sepulturas de 5 a Conforme Krukte, ''quando falta um mês, os põ'í vão ao cemitério mar-
~rra para essas sepulturas era car as sepulturas" dos mortos para os quais celebrarão o Kiki. Segundo ela,
:ang - Anexo 3). Um dos no- os põí devem ser três ou quatro.
(nas costas, logo, em cesto). Os donos do Kiki são as pessoas que fazem acontecer a festa do Kikikoi
arregados de várias tarefas, por algum de seus familiares. Os "donos" são encarregados de providenciar
) relacionados a cada meta- a comida e a bebida para os rezadores e para os convidados.
do Kiki rezarão 80 • São igual- Os tampér são dançarinos. Um dos rezadores me informou que ha-
epulturas e atirá-los fora do via, outrori, essa função dos dançarinos, os tampér. Eram pessoas dos dois
) com esse ato o fim dessa sexos e deveriam dançar de mãos dadas em uma fila comprida durante o
1 a bebiçkaosLOI1llidados e ritual do Kiki (não sei dizer qual seria a relação dos tampér com as metades
cbendo parte da bebida que e com a nominação). Os tampér também cuidariam do kõkéi (recipiente
me explicaram, tem a fina- onde a bebida é fermentada para a realização do Kiki, ou Kikikoi) para que
)ados e impossibilitados de os espíritos não chegassem perto da bebida. Soube que havia, no Xape-
e ocorrer de forma alguma, có, nos anos 90, apenas duas pessoas dessa categoria, mas não cheguei a
a deve ser conduzida até o entrevistá-las. De qualquer forma, como durante a realização do Kiki, em
everiam abster-se de beber 1993, não se observaram tais danças82 , pode-se deduzir que o ritual do Kiki
ívos em seu retiro de luto e já foi muito mais rico em detalhes e que, em função do hiato de quase 20
anos em que deixou de ser realizado, diversos elementos foram perdidos
s são: põ'í ( os donos do Ki- ou reinterpretados 83 • Em seu ensaio sobre o ''culto aos mortos" em Palmas,
~rirnônia do Kiki. São eles Baldus refere a atuação de três dançarinos de cada metade, sem informar o
cr executadas para o bom nome que recebiam (Baldus [1937] 1979:24-6).
tos para abastecer os con-
r outras aldeias, o dia que 4, PINTURA CORPORAL RITUAL NO XAPECÓ
teiro para fazer o kõkéi 81 •
'via especialmente convo- As metades KAME e KANHRU são distinguidas por uma pintura ce-
mdo alguns, os põ'í devem rimonial. Em termos Kaingang, "marca compridà' (râtéi) pa;:;:;-;;;;-Kam.ê, e
'(os de duas marcas) por- "marca redondà' (râ rôr) para os Kanhru, correspondendo a traços ou riscos
anto, verificar se tudo está para os primeiros, e pontos para os segundos. As seções apresentam varian-

A não ser, muito brevemente, em uma das noites de "fogo': executada por um dos "cabeças" do Kiki e
82

por um Kanhru não identificado como tampér pelo rezador que me falou dessa função.
mgria"; Simplocus parviflora), uma 83
O Kiki deixou de ser realizado no Xapecó entre o final dos anos 50 e o ano de 1976 (ver Veiga 2000b).
adas com ramos ou grimpas de fâg Atribui~se isto a uma ação desestímuladora do próprio órgão do indigenismo oficial (SPI), ao lado de uma
; péin são marcadas com ramos de primeira penetração de seitas evangélicas. Contam os índios que um dos seus principais "rezadores" de
então, converteu~se a uma religião protestante, das que proíbem a participação dos seus membros na
)ela semelhança da forma e talvez, celebração do Kiki, considerando~o como "coisa do demônio". Em todo caso, entre os atuais "rezadores"
1oa". (que celebraram o "Kiki" em 93) há um que já foi membro de uma igreja evangélica e outro que ainda o é.

""'Ah½';,-,"·• ,~,-- ,_J"""'"'if •· w "~-"-' __ -, ; ;«>"' ,~;;,_cs·~c··-c· --ª" · ,_,21/-VU 1-.- --. < ,AL-
ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL

tes desse padrão nas suas pinturas. Na metade KAME, a seção Kame adota O fato de tomar a pinl
normalmente dois traços na testa e em cada uma das bochechas, enquanto a observado também entre o:
seção Wonhétky pinta-se com traços que sobem dos dois lados da boca (nhé- mais se lembram dos nom<
tkymby = rabo da boca). Na metade KANHRU, a seção Kanhru marca-se com a ampla maioria a
pontos (normalmente três) na testa e em cada uma das bochechas, e a seção reconhece-se pertencente
Votorpinta-se com círculos (râ ndor = marca buraco) (ver figuras à pg. 98). lineares. Isto se expressa
Quando se pergunta aos Kaingang, qual é a sua marca ou pintura, é corporal( ... ) Embora os
comum eles responderem com um gesto que indica precisamente a sua ca- indivíduos se reconhece,
tegoria: um movimento circular da mão direita sobre o pulso da esquerda, Wahirê - traços - (atril
para mostrar que é péin; com o dedo indicador sobre a face fazendo um ou como membros da m
risco de cima para baixo, se for Kame, ou da boca à orelha, se for Wonhétky; buto da metade Siptato,
ou ainda, com a ponta do dedo fazendo pontos pelo rosto, se for Kanhru,
As pinturas dos Kanh1
ou desenhando na face um círculo, se for Votar. Nas áreas Kaingang do Rio
água", sendo o carvão par:
Grande do Sul, Paraná e São Paulo as lembranças daquelas subdivisões estão
o carvão para pintar os KA
esmaecidas, mas prevalece uma memória gestual, que permite marcar o per-
Os pontos e riscos, com qt
tencimento ao grupo daqueles que se pintam com pontos ou daqueles que
três, dependendo apenas d,
se pintam com riscos. Na região central do Paraná os termos reconhecidos
que no passado o número ,
para as marcas (e, portanto, para as metades) são: râioio ou rei oi o ('risca-
tros aspectos da vida socia
do'), rânfve ou renfve ('pintado'), o que corresponde respectivamente a râtéi e
Um dos rezadores, c1
rârôr, utilizados ao sul do rio Iguaçú (Santa Catarina e Rio Grande do Sul).
Kiki de 1993, com apena
As pinturas faciais dos Kaingang são usadas atualmente, ap.~nas em
bochechas, mas sua pintu
ocasiões 'iiiíi~i;, ~as são paradigmaticamente usadas como identificação
nhru; ele me explicou qu
das seções. Quando perguntamos a um Kaingang: qual é sua marca? - ele
ser rezador, enquanto ou
pode responder apenas: téi ou rôr, significando comprida ou redonda (isto
diferente por ele ser péin e
é, metade KAME ou metade KANHRU), ou pode simplesmente fazer um
ou nomes trocados (ver <
gesto, levando a mão ao rosto e traçando um sinal comprido na face ou,
sinais dos dois grupos ao:
com a ponta do dedo, 'marcar' pontos sobre o rosto. Uma terceira respos-
ta possível é, referindo-se ao padrão de pintura, dizer: râ téi, nhétkymby,
Todas as referências bibliográficas
84

rârôr, râ ndor, râ réngrê, râ kutu ou taktéi. apenas de pinturas feitas a base d


Esse uso tem confundido alguns pesquisadores, por acreditarem que Nonoai, me assegurou que utilízav,
85 Nimuendajú informa que, no lvc
se trata de categorias diferentes, quando na realidade são somente os nomes
com carvão de pinheiro (ao contr,
das pinturas usadas pela seção ou categoria cerimonial a que a pessoa per- a pintura era feita com pó de carv
tence. Esse fenômeno é semelhante à descendência paralela considerada por carvão com cera derretida ((1913)

Nimuendajú como uma anomalia Apinayé. Da Matta descobriu serem no- 86Nimuendajú escreveu que "os K<
referência, por exemplo, à "píntur<
mes de enfeites e não grupos de descendência (cf. Da Matta 1976:133-5). 1993:62).
'UNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL 99

KAME, a seção Kame adota O fato de tomar a pintura como referência da identidade de metade é
,a das bochechas, enquanto a observado também entre os Xerente. Segundo Farias ( 1990 ), os Xerente não
dos dois lados da boca (nhé- mais se lembram dos nomes de suas respectivas metades exogâmicas, mas
seção Kanhru marca-se com
a ampla maioria dos indivíduos Xerente, em qualquer de suas aldeias,
1ma das bochechas, e a seção
reconhece-se pertencente a uma das metades exogâmicas e a um dos clãs patri-
raco) (ver figuras à pg. 98).
lineares. Isto se expressa preferencialmente por meio da linguagem da pintura
§ a sua marca ou pintura, é
corporal( ... ) Embora os termos Sdakra e Siptato não sejam mais utilizados, os
,dica precisamente a sua ca-
indivíduos se reconhecem como membros da metade que se pinta com o motivo
, sobre o pulso da esquerda,
Wahirê - traços - (atributo da metade Sadkrã, nos termos de Nimuendaju),
)r sobre a face fazendo um
ou como membros da metade que se pinta com o motivo Doí - círculo - (atri-
:a à orelha, se for Wonhétky;
buto da metade Siptato, nos termos de Nimuendaju) (Farias 1990:84).
s pelo rosto, se for Kanhru,
Nas áreas Kaingang do Rio As pinturas dos Kanhru e dos Kame são feitas à base de carvão moído e
; daquelas subdivisões estão água , sendo o carvão para pintar os KAME feito da madeira de pinheiro, e
84

1, que permite marcar o per- o carvão para pintar os KANHRU da madeira conhecida como sete-sangria85 •
Jm pontos ou daqueles que Os pontos e riscos, com que se marcam os Kaingang, podem variar de um a
ná os termos reconhecidos três, dependendo apenas do gosto estético de quem está sendo pintado. Penso

---~--
,ão: r4ioio ou reio.ia ('risca-
de respectivamente a r4téi e
que no passado o número de pontos ou riscos estabelecesse relações com ou-
tros aspectos da vida social, como os nomes pessoais ou obrigações rituais.
rina e Rio Grande do Sul). Um dos rezadores, cujo nome é da categoria péin, estava pintado, no
las atualment~ apenas em Kiki de 1993, com apenas um ponto negro na testa e em cada uma das
1sadas como identificação bochechas, mas sua pintura tinha um tamanho maior que dos demais Ka-
1g: qual é sua marca? - ele nhru; ele me explicou que a diferença na sua pintura se devia ao fato de
comprida ou redonda (isto ser rezador, enquanto outras pessoas me explicaram que sua pintura era
:!e simplesmente fazer um diferente por ele ser péin do Kanhru 86 • As pessoas que possuem dois nomes,
inal comprido na face ou, ou nomes trocados (ver cap. VII, sobre Nominação) são pintadas com os
)sto. Uma terceira respos- sinais dos dois grupos aos quais pertencem: pontos e riscos. A pintura dos
' dizer: râ téi, nhétkymby,
84
Todas as referências bibliográficas e minha própria observação indicam a existência, entre os Kaingang,
apenas de pinturas feitas a base de carvão. No entanto, o velho João Maria Forces Ndorê, natural de
ores, por acreditarem que Nonoai, me assegurou que utilizavam também a tinta vermelha da madeira corticeira.
ade são somente os nomes 85Nimuendajú informa que, no lvaí (PR}, os Kame usavam carvão de canela e os Kanhru pintavam-se
com carvão de pinheiro (ao contrário da prática que observei no Xapecó). Ainda segundo ele, no !vaí
1onial a que a pessoa per- a pintura era feita com pó de carvão, mel e água, enquanto em São Paulo os Kaingang misturariam o
a paralela considerada por carvão com cera derretida ([1913] 1993:63).
!atta descobriu serem no- 86Nimuendajú escreveu que "os Kaflerú~pélle só têm três malhas (manchas), termo bastante usado em
referência, por exemplo, à "pintura" de uma onça: uma na testa e uma embaixo de cada olho" ([1913]
Da Matta 1976:133-5).
1993,62).
ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CUlTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL
100

dançarinos, os tampér, seria feita passando-se carvão na palma da mão e


fazendo um movimento circular sobre as bochechas e a testa.
KAME
Na cerimônia do Kiki, o que gera pinturas diferenciadas são as combi-
naçôes dos elementos: seção, nome e função cerimonial.
Nas páginas seguintes vêem-se representaçôes das pinturas faciais que
(um risco)
observei no Kikikoi de 1993. Primeiramente se representam as pinturas
observadas entre pessoas da metade KANHRU. Na seqüência, vê-se a re-
presentação das pinturas das pessoas de metade KAME e, na página que se
segue àquela, têm-se as pinturas dos péin das duas metades e das pessoas
com dois nomes (râ réngrê).
(dois riscos)
Denominação das Pinturas Cerimoniais

Metade KANHRU (marca redonda)

KANHRU nome da pintura WONHÉTKY

(traços curvos no canto

. .
-
(um ponto) râ ror da boca)
.,_,,.)

C,

(três pontos) râ róngror

PÉINKANHRU

VOTOR nome da pintura

râ ndor PÉINKAME
UNDAMENTMS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL 101

carvão na palma da mão e Metade KAME (marca comprida)


echas e a testa.
KAME nome da pintura
diferenciadas são as combi-
rimonial.
:ões das pinturas faciais que
,e representam as pinturas (um risco) râ téi

J. Na seqüência, vê-se a re-


' KAME e, na página que se
luas metades e das pessoas

~imoniais (dois riscos) râ tâktéi

/onda)

WONHÉTKY nome da p_intura

. . .._,.)
(traços curvos no canto
da boca)
nhétky mby

-1
Categoria Cerimonial dos PÉIN

PÉINKANHRU râ kutu

PÉINKAME

Ff'- --d-- ·,_·s;w -0 ·-- 0h -"-' pyCJ&-f A L = H \ Y -0v~ "_-;--·--;--= , . h,,,., .... ; .. ,,, ..,,.. ~
ORGANIZAÇÃO SOCIAl
102 ASPECTOS FUNDAMENIA1S DA CULTURA KAINGANG

Pessoas com dois nomes

râ réngrê (duas marcas)

Quando se pede aos próprios Kaingang que desenhem as pinturas fa-


ciais que distinguem as seções, alguns desenham a marca dos Votor (rândor)
como um círculo e outros como um quadrado, se bem que observamos no
ritual do Kiki que a pintura é feita com uma taquara que produz um círculo
perfeito". Algo semelhante ocorre quando desenham a marca dos Wonhétky:
os que desenham a marca dos Votor quadrada desenham a dos Wonhétky
(nhétkymby) como um meio-quadrado. Apesar de não observarmos marcas
com ângulos retos, o fato mostra uma simetria entre Votor e Wonhétky.
Os padrões abaixo foram reproduzidos a partir dos desenhos de al-
guns Kaingang.
A fotografia acima foi tirada pc
Retrata uma mulher s_endo_ pii
seccionado de taquara. (Baldus

No Kiki de 1982, no
pessoas tinham os pulsm
categoria péin). Durante 1
tada dessa maneira. Ques
Kanhru Votar Péin Kanhru Simplício Wagtü me res1
caso o péin esteja realiza
rezadores do Kiki vejam e
Nimuendajú refere e
para, no fim do resguarde
servido primeiro. A l'_i_lltt
gumacoisa imunda que"
Kamê Wonhétky PéinKamê (Nimuendajú [1913] 199:
A categoria péin é, n
87
Ver à página seguinte, foto de uma Kaingang sendo pintada com taquara, também no Xapecó, de servidor, ou ajudante
provavelmente na segunda metade da década de 1950 (foco de W. Kozak).
FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG ORGANIZAÇÃO SOCIAL 103

ies

!S)

ue desenhem as pinturas fa-


1 a marcados Votor (rândor)
se bem que observamos no
uara que produz um círculo
ham a marca dos Wonhétky:
desenham a dos Wonhétky
de não observarmos marcas
ntre Votor e Wonhétky.
partir dos desenhos de ai-

A fotografia acima foi tirada por'WI~1i~ir__K()_~~k \1a área indígena do )Çap~c_ó, na década de 1950.
Retrata uma mulher s~ndg __ pi11tada cotTl ã- marca de Vot_or. O círculo é feito com um pedaço
seccionado de taquara. (Baldus 1961/62: prancha li}.

No Kiki de 1982, no Pinhalzinho (Xapecó), observamos que algumas


pessoas tinham os pulsos pintados com carvão (pintura característica da
categoria péin). Durante o Kiki de 1993 nenhuma das pessoas estava pin-
tada dessa maneira. Questionado sobre esse fato, o rezador dos Wonhétky,
Péin Kanhru Simplício Wagtíí me respondeu que tal providência só se faz necessária
caso o péin esteja realizando esse serviço pela primeira vez, para que os
rezadores do Kiki vejam que ele pode realizar aquela tarefa.
Nimuendajú refere que os paí (põ'{) é que teriam os braços pintados
para, no fim do resguardo de luto da viúva, comer junto desta, quando era
servido primeiro. A~ntura dos pulsosern_''pax11J1fiq_syl,Jr.pdo,_braços al-
gumac~sa imunda qi;~ ai11dfijwdiahaver, quandosm1 sa.ber.pegam..neld'_.
Péin Kame
(Nimuendajú [1913) 1993:65).
A categoria péin é, muitas vezes, referida como "servente" no sentido
:om taquara, também no Xapecó,
:ozak). de servidor, ou ajudante do rezador. Quando perguntei se nunca usaram

Yf' · ;;,J+e ,< YNL~c. L §" -,+. • ±... ª· , ,-~ , ) "<• ____C\7?"'H!ú\G... /-dbv 0
104 ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA KAINGANG

pinturas no resto do corpo, uma das mulheres mais velhas da categoria péin
descreveu a pintura dos péin, usada no passado, conforme representado
abaixo.

l , Os KA1NGANG: uMA

A principal caracterí
tência de quatro seções r
relações sociais; antes, co
pre pares que se opõem ,
ganização social, uma bu
grupais, que aparenteme1
provenientes de uma hie1
A dicotomia fundai
que, por sua vez, justific:
tudo pode ser reduzido i
redondo, ou seja, nos te
dos animais como obra (
complemento do trabalh
Essa relação básica (
cotidiano das relações so
mentos de cerimõnias fi
neiro da Cunha (1978),
a relação entre a proibiç:
pela renúncia à irmã, in
bição de enterrar os pró

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