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DOI: 10.

17666/bib8703/2018

Chefia e política na América do Sul indígena:


um balanço bibliográfico para além do modelo clastreano1

Antonio Guerreiro2

Introdução novos contornos, pois sua caracterização das


sociedades ameríndias como dotadas de uma
Os debates sobre chefia e política na espécie de “intencionalidade sociológica”
América do Sul indígena têm uma história contrária ao surgimento do Estado, não só
considerável. Não muito tempo depois da esclareceu instituições marcadas por aparente
publicação de African Political Systems por ambiguidade, como chamou a atenção para
Meyer Fortes e Evans-Pritchard (1950), que uma dimensão filosófica da existência desses
inaugurou uma das principais orientações coletivos. Na última década, a obra de Pierre
etnográficas e teóricas da história da antro- Clastres tem sido retomada em diálogo com
pologia, Lévi-Strauss publicava seu clássico ar- importantes avanços etnográficos e teóricos
tigo sobre os aspectos sociais e psicológicos da da etnologia sul-americana, evidenciando
chefia Nambikwara (LÉVI-STRAUSS, 1944). que muitas de suas intuições permanecem
Quatro anos mais tarde, surgia o clássico de boas para pensar – conferir, por exemplo, o
Lowie sobre organização política entre os povos dossiê Pensar com Pierre Clastres, publicado na
indígenas americanos, responsável por cunhar Revista de Antropologia (PERRONE-MOISÉS;
a categoria de titular chiefs: chefes meramen- SZTUTMAN; CARDOSO, 2011).
te titulares, sem poder coercitivo (LOWIE, O objetivo deste artigo é realizar um
1948). De modo geral, algumas das questões sobrevoo por trabalhos que, de diferentes
levantadas nesses dois trabalhos – sobre a falta maneiras, marcam os debates sobre chefia e
de poder do chefe, seus deveres em relação ao política nas terras baixas da América do Sul nas
grupo, as complexas relações de dependência últimas décadas, a fim de oferecer um panora-
entre chefia e sociedade – ainda estão entre ma da diversidade de abordagens do problema
as mais relevantes quando o assunto é chefia da política no subcontinente. Não pretendo
indígena, mas elas passaram e ainda passam retomar os debates clássicos a respeito das
por reformulações consideráveis. formas ameríndias de organização social, o que
Após os trabalhos de Pierre Clastres não caberia nos limites deste artigo3. Também
(2003a, 2003b, 2003c, 2004a, 2004b), a decidi não iniciar este texto com uma revisão
problemática do poder e da política ganhou dos trabalhos do próprio Clastres (o que me

1 Este artigo resulta do projeto Sistemas regionais ameríndios em transformação: o caso do Alto Xingu, apoiado
pela Fapesp na modalidade Jovem Pesquisador (processo 2013/26676-0).
2 Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador
do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
(IFCH/Unicamp). E-mail: agjunior@unicamp.br
3 Para um balanço das principais discussões, ver Coelho de Souza (2002), Fausto (2000) e Sztutman (2012).

BIB, São Paulo, n. 87, 3/2018 (publicada em dezembro de 2018), pp. 41-70. 41
obrigaria a um recuo temporal maior do que e a etnografia. Na terceira, discuto algumas
o proposto neste número), nem restringi-lo releituras contemporâneas da obra de Pierre
a trabalhos dedicados especificamente à sua Clastres e tentativas de redefinição dos pro-
obra (o que exigiria um artigo à parte). Preferi blemas postos por – e para – as políticas ame-
adotar a estratégia de tomar as principais teses ríndias, em particular as formas de articulação
de Pierre Clastres, amplamente conhecidas entre os problemas da política com os temas da
entre os leitores brasileiros, como pano de pessoa e da corporalidade. Na quarta e última
fundo e ponto de partida para debates que se seção, apresento algumas discussões sobre o
desenvolveram a partir da década de 1980, a envolvimento das políticas ameríndias com
fim de oferecer ao leitor um panorama algo instituições estatais, chamando a atenção para
heterogêneo, no qual seja possível visualizar transformações em curso e questões em aberto.
tanto movimentos de afastamento quanto
de aproximação em relação a Clastres. Este Pierre Clastres: alguns
balanço não pretende ser exaustivo, mas apenas impactos e reações
apresentar um panorama de questões que se
levantaram em conjunto com a ampliação de Nos anos 1980, pode-se dizer que houve
conhecimentos etnográficos, arqueológicos um conjunto de “reações etnográficas” a
e linguísticos sobre a Amazônia indígena, o Clastres. Estas reações tomaram como ponto
que colocou às abordagens sobre a política de partida a positividade das políticas indí-
ameríndia um conjunto de problemas de es- genas apontada por ele, e se aprofundaram
cala: o que se transforma quando mudamos a em sua investigação etnográfica. Contudo,
escala das análises, seja de um ponto de vista esse movimento propiciou a emergência de
temporal (no caso das relações entre o pre- divergências em relação a algumas teses clas-
sente e o passado pré-colonial) ou espacial treanas, marcadamente quanto à diversidade
(com o deslocamento do foco de grupos locais de formas possíveis do poder (que não precisaria
para conjuntos multiétnicos e multilíngues)? ser visto apenas como coerção) e seus espaços de
Há algo que pareça capaz de permanecer, se manifestação (pois o político não se restringiria
reproduzindo de forma autossimilar indepen- à chefia, nem à relação entre chefe e grupo).
dentemente da escala (STRATHERN, 2014)? Uma questão que marcou o debate e ainda
Este artigo está dividido em quatro partes, se faz presente diz respeito à importância do
que seguem uma organização parcialmen- xamanismo e do ritual para se pensar as rela-
te temática e parcialmente cronológica. Na ções de poder na América do Sul indígena.
primeira, discuto os termos em que algumas Santos-Granero (1986), por exemplo, chama a
das principais hipóteses de Clastres foram atenção para a frequente coincidência entre as
debatidas em contextos etnográficos parti- posições de chefe e xamã ou especialista ritual,
culares, que tanto produziram refinamentos e argumenta que o poder político estaria ligado
quanto levantaram problemas descritivos e a conhecimentos rituais e suas capacidades de
conceituais. Na segunda, apresento uma sín- doação de vida, que implicariam a interferência
tese do debate aberto pelo aprofundamento decisiva em processos de reprodução natural,
dos conhecimentos sobre a história de longa social e cósmica. Partindo do exemplo dos lí-
duração da Amazônia, proporcionados pelo deres Piaroa, que também são xamãs, Santos-
avanço de arqueologia e sua articulação com Granero afirma: “O xamã Piaroa desempenha
disciplinas operando com diferentes escalas um papel mediador entre a sociedade e o am-
temporais, como a linguística, a etnohistória biente, assegurando não só as condições de vida

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de seus seguidores individuais, mas também Essa formulação traz à tona o clássico
as condições naturais para sua reprodução so- problema da reciprocidade entre o chefe in-
ciobiológica” (SANTOS-GRANERO, 1986, dígena e o grupo, que Santos-Granero aborda
p. 662)4. Dessa perspectiva, haveria relações criticando tanto Lévi-Strauss quanto Clastres.
diretas entre os poderes místicos do ritual e a Segundo ele, Lévi-Strauss teria se enganado ao
condução de processos econômicos (SANTOS- considerar a reciprocidade entre chefe e grupos
GRANERO, 1986, p. 657). nos Nambikwara como simétrica. Já Clastres
No mundo ameríndio, esta relação intrín- teria cometido o erro oposto, por identificar
seca entre poder e processos econômicos teria uma assimetria, mas tratá-la de forma unidi-
uma conotação distinta da conhecida pelas recional, a ponto de anular a reciprocidade.
sociedades capitalistas. Se no capitalismo o Isso se deveria ao fato de Clastres suposta-
fundamento do poder é a propriedade privada mente não ter dado atenção à importância
de modos materiais de produção, nas socieda- das ações rituais dos chefes, em paralelo aos
des ameríndias esta seria a propriedade pessoal outros dons que ele deve oferecer ao grupo5.
de modos místicos de reprodução (Ibidem, p. Se Clastres vê o chefe como um devedor do
663). Esta comparação contém três oposições: grupo, Santos-Granero argumenta que, do
entre propriedade privada e propriedade pesso- ponto de vista das condições metafísicas da
al; entre material e místico; e entre produção e reprodução econômica e social, o grupo é
reprodução. Este conjunto de diferenças faria quem ocuparia a posição de devedor. Desse
com que o poder não assuma necessariamente desequilíbrio emergiria uma relação de poder,
a forma da força individual de produção a mas que não implicaria necessariamente em
partir de meios materiais, mas a influência coerção física, e sim em formas de controle de
pessoal e imaterial sobre processos de repro- forças imateriais com potencial impacto sobre
dução em que há um grau de reciprocidade o mundo material (a economia).
entre os agentes envolvidos. Assim, a relação O caso dos antigos sacerdotes Amuesha
de poder entre o líder Piaroa e seus seguidores (Arawak) merece destaque, pois se refere a
seria representada como uma troca recíproca, um ponto de confluência entre características
porém assimétrica (Ibidem, p. 664): a posse de políticas e religiosas dos povos das terras baixas
capacidades que permitem ao líder garantir a e das terras altas sul-americanas. Os antigos
reprodução da vida para todos os seus seguido- sacerdotes Amuesha (chamados cornesha ou
res lhe daria o direito de solicitar trabalho em cornanesha) foram pessoas cuja influência
grande escala para atividades cerimoniais, bem política e moral se estendia a vários grupos
como a possibilidade de proteger ou deixar locais, e cujas atividades eram realizadas em
de proteger alguém que viva no território sob centros cerimoniais que funcionavam como
seus cuidados. Contudo, em consonância com locais de peregrinação. A atividade desses sa-
Clastres, Santos-Granero reconhece que este cerdotes seria fundamentalmente moral: além
poder deve ser sempre voltado para o benefício de servirem de exemplo de conduta, pediam
dos seus seguidores, caso contrário ele pode ser a compaixão dos deuses, que infundiam o
abandonado ou substituído (Ibidem, p. 666). alimento ritual com vida.

4 Todas as citações de textos em língua estrangeira foram traduzidas livremente para o português.
5 Para discussões sobre a possibilidade de se considerar ações rituais como análogas a dádivas, conferir Harrison
(1992) e Guerreiro (2015b).

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Santos-Granero adota um argumento de significaria a ausência total de poder: a repre-
Schapera, segundo o qual uma organização sentação ideológica da assimetria em relação
política deve ser definida pelas formas de aos meios místicos de reprodução seria uma
“manutenção da cooperação interna e da in- fonte de poder mais eficaz que os meios de
dependência externa” (SANTOS-GRANERO, coerção física, justamente por se basear no
1993, p. 217). Partindo desta definição, ele consentimento (ainda que frágil e variável).
analisa em maiores detalhes os sacerdotes Outro ponto interessante de sua análise
Amuesha, que “realizavam todas as funções é a tentativa de aproximação ao idioma sim-
características de um sistema político, isto é, bólico dos Amuesha sobre a relação entre os
a garantia de: 1) ordem interna, harmonia e sacerdotes e seus seguidores, que seria como
cooperação; 2) independência externa; e 3) o uma combinação de amor/compaixão, medo/
sucesso das atividades produtivas e reprodu- respeito e fé/obediência. O primeiro termo se
tivas da unidade política” (Ibidem, p. 218). referiria a uma relação recíproca e assimétrica
Diferentemente dos líderes e xamãs Amuesha, entre dois parceiros; o segundo, a um “medo
cuja influência é limitada a suas localidades e reverencial”, sentido por jovens em relação aos
costumam estar envolvidos em disputas políti- adultos, seguidores em relação a sacerdotes, e
cas locais, os cornanesha oficiavam em templos humanos em relação a divindades; o terceiro,
nos interstícios do espaço social e geográfico por fim, implicaria crença e obediência aos en-
Amuesha, colocando-se acima das questões sinamentos de um superior (Ibidem, p. 225).
dos grupos locais. Descreve-se, assim, uma relação assimé-
Santos-Granero retoma o problema da trica, de feições políticas claras, que envolve
assimetria e da dívida entre líderes e grupo a uma forma de poder marcada por matizes
partir de uma peculiaridade dos cornanesha: mais complexas do que a forma explícita da
diferentemente dos chefes polígamos descritos coerção. O poder dos cornesha, mesmo baseado
por Clastres, os sacerdotes Amuesha seriam em uma relação privilegiada com os deuses e,
obrigatoriamente monogâmicos. Isso, segundo por meio deles, com a economia, não os trans-
o autor, eliminaria o “argumento ideológico” formava em tiranos. A emergência do Estado
sobre o qual a função política seria tornada exigiria uma combinação especial entre religião
impotente (Ibidem, p. 216). Assim, além da e aparelho guerreiro, como seria possível su-
posse dos “poderes místicos de reprodução”, a gerir a partir do movimento messiânico e da
exigência da monogamia provocaria uma espé- revolta contra os espanhóis, liderada por Juan
cie de inversão da balança clastreana (Ibidem, Santos Atahualpa, que liderou os Amuesha
p. 220). Além de realizarem atividades rituais e segmentos dos Asháninka como uma es-
das quais dependem a reprodução econômica pécie de super-cornesha, entre 1742 e 1761
e social dos Amuesha, a monogamia não colo- (SANTOS-GRANERO, 1993, p. 226). Na
caria os cornanesha na posição de “prisioneiros ausência dessa conjunção, o sistema político
do grupo”, como argumentara Clastres, mas, Amuesha alternaria entre forças centrípetas
ao contrário, aprofundaria a assimetria da e centrífugas, como no caso das estruturas
sua relação. Santos-Granero argumenta que gumsa/gumlao descritas por Leach (Ibidem).
a renúncia à poligamia parece a única forma Cabe mencionar o que ocorreu no Alto
dos chefes amazônicos acumularem poder Xingu há alguns anos, quando um jovem
(Ibidem, p. 222). Contudo, este seria um chefe se transformou, de forma atípica, em
poder não coercitivo, baseado no consenso um grande xamã. Ele fazia discursos diários em
(o que o tornaria frágil), mas ele também não sua aldeia, ao mesmo tempo em que realizava

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curas coletivas e dizia garantir a vitalidade de deixasse de lado a comparação com os Andes.
todos; demandava às pessoas que pescassem A situação no passado pré-colombiano deve ter
para ele e sua família, como pagamento pelos sido ainda mais complexa, e os debates sobre
trabalhos diários de cura; e forçava pacientes os casos contemporâneos deveriam levar em
mulheres a manterem relações sexuais com conta os efeitos destrutivos da colonização.
ele, também como “pagamento” por seu tra- Comentando sobre os fundamentos filosó-
balho. Muitas de suas técnicas de cura eram ficos do “igualitarismo” ameríndio, Descola
nada usuais, envolviam formas de violência argumenta que tal igualitarismo não seria “o
e humilhação pública. É como se ele tivesse fruto de uma vontade coletiva e obstinada
invertido o sentido dos três circuitos de trocas de se opor à emergência do poder coercitivo”
focalizados por Clastres: se tornou um doador (DESCOLA, 1988, p. 819), mas o efeito de
de palavras ouvidas com atenção, um receptor uma tragédia demográfica, territorial e social.
de bens (peixes) e forçou o acesso a mulheres Diferentemente, as polities pré-colombia-
sem que isso tivesse como contrapartida qual- nas teriam sido marcadas pela existência de
quer forma de afinidade. Contudo, quanto aldeias fortificadas por paliçadas, com grupos
mais seu poder crescia, mais aumentavam as hierarquizados de especialistas, eventualmente
desconfianças, e seu destino foi o de todo chefe com uma aristocracia hereditária capaz de mo-
que se torna “grande demais”: de homem de bilizar trabalho para grandes atividades de ma-
prestígio passou a acusado de feitiçaria, sendo nejo do espaço (como a construção de estradas,
obrigado a fugir de sua aldeia (CARDOSO; canais de irrigação e drenagem, montes eleva-
GUERREIRO JÚNIOR; NOVO, 2012). dos para residência ou finalidades rituais etc.)
A perspectiva de Santos-Granero provoca (Ibidem). Organizações sociopolíticas com tais
pelo menos dois deslocamentos. O primeiro é características não foram excepcionais, tendo
o da perspectiva sobre o que seria o poder, mos- sido encontradas no Panamá, na Nicarágua,
trando que este não precisa assumir a forma no norte da Venezuela, nas Antilhas, ao norte
da coerção, mas pode representar influência e a leste da Colômbia, entre outras regiões
econômica ou moral. O caso dos sacerdotes (Ibidem, p. 820).
Amuesha demonstra como uma ideia de amor Mesmo desconsiderando as organiza-
poderia ser um operador de relações assimétri- ções sociais ditas “hierárquicas” (pois em que
cas baseadas em alto grau de consenso. Outro consistiriam tais hierarquias permanece um
deslocamento diz respeito ao espaço em que a problema em aberto, como ainda veremos),
política parece ser relevante: sem ser algo que se Descola se pergunta se seria correto falar em
restringe ao interior do grupo local, ela parece “chefia sem poder” e, mais ainda, se não ha-
ser exercida nas interseções com o exterior, seja veria outras formas de poder além do coer-
ele ecológico, sobrenatural ou social. citivo (DESCOLA, 1988, p. 820). Descola
Philippe Descola também questiona a traz uma questão adicional a partir do caso
uniformidade do modelo de Clastres, cha- Jivaro, em que considera inadequado chamar
mando atenção para uma drástica mudança seus “grandes homens” (juunt) de chefes. Estes
no panorama etnográfico proporcionada pelo são guerreiros valorosos que, por seu carisma
incremento do conhecimento sobre as formas e inteligência tática, são capazes de constituir
políticas da Amazônia (DESCOLA, 1988, coalizações militares temporárias. Mais do
p. 818). A etnohistória e a arqueologia, so- que uma sociedade com “chefes sem poder”,
bretudo, sugeririam que a noção de “chefia os Jivaro seriam mais bem descritos como
sem poder” não seria legítima, mesmo que se uma “sociedade sem chefes” (Ibidem, p. 822).

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Também partindo do ponto-chave que politie (entendida como uma entidade política
faria do chefe um prisioneiro do grupo – a autônoma) sem instituições supralocais, e vê na
poligamia –, Descola argumenta que esta chefia uma forma de regulação de fronteiras.
seria uma prática bem mais generalizada do A perspectiva de Menget é interessante, por
que supunha Clastres e, onde é reservada aos apresentar um deslocamento do foco: o chefe
chefes, ela também seria praticada pelos xamãs não é visto (apenas) como uma figura do grupo
(Ibidem, p. 821). Se o chefe impotente, ge- local, mas sim como um mediador. Com isso,
neroso e bom orador existe em certos lugares o foco se desloca parcialmente do problema
e épocas, ele não é a única figura em que se do poder. Segundo Menget, a tese de Clastres
exprimiria a esfera do político (Ibidem). remeteria a certa noção de politie, mas sem
Ainda segundo Descola, uma definição defini-la explicitamente. Uma politie, para
exclusiva do poder como “poder coercitivo” Menget, seria o quadro necessário à distinção
seria uma “dedução transcendental etnocên- entre um interior e um exterior (Ibidem).
trica”, pois implicaria em dotar os ameríndios Como se sabe, esta será uma dualidade dura-
de uma ideia do poder idêntica à que dele mente criticada pela etnologia americanista
fazem os europeus. O poder dos xamãs seria (COELHO DE SOUZA, 2002; VIVEIROS
mais imaginário, mas menos abstrato, do que DE CASTRO, 1986, 2002), mas por enquan-
a negação da autoridade política pela chefia to cabe explorar o uso feito dela por Menget e
impotente (Ibidem, p. 822). Ainda assim, apontar as questões que ele permite levantar.
caberia perguntar: esse poder de agir sobre o Toda politie teria mecanismos para
mundo invisível, supostamente menos ma- garantir graus relativos de concórdia em
terial que o mundo da economia e da vida seu interior e segurança perante o exterior
cotidiana, seria propriamente político? “Em (MENGET, 1993, p. 61). Ao lidar com o
suma, pode-se dizer que o poder dos xamãs caso do Alto Xingu, um complexo multiét-
ameríndios é em sua essência político, mesmo nico e multilíngue que se define pela evitação
quando ele não está ornado com os atributos da guerra entre grupos ligados por casamen-
do comando?” (Ibidem, p. 824). tos, trocas econômicas e rituais intercomu-
Há várias afinidades entre os argumen- nitários (BECKER, 1969; FAUSTO, 2007;
tos de Descola e Santos-Granero, pois para FRANCHETTO, 2011; GUERREIRO,
o primeiro o caráter político do xamã tam- 2015a), Menget se pergunta sobre as forças e
bém se deve ao seu controle simbólico sobre formas de persuasão que permitem distinguir
meios materiais ou ideais dos quais depende a os “residentes” (aqueles que se identificam
existência coletiva (DESCOLA, 1988, p. 825). como membros de uma mesma “comunidade
Este não seria um verdadeiro poder político moral”) (HECKENBERGER, 2001, 2002)
do ponto de vista de Clastres, por não se tratar dos estrangeiros (MENGET, 1993, p. 61).
nem do exercício, nem do exorcismo da co- A aliança matrimonial seria uma peça-chave
erção. Porém, ele seria propriamente político desta formação política, pois teria a capacidade
“se pensarmos que a faculdade de aparecer de gerar um mecanismo informal de defesa
como a condição da reprodução harmoniosa contra os outros e, ao mesmo tempo, viabilizar
da sociedade é um componente fundamental a sua eventual incorporação (Ibidem, p. 63).
do poder em todas as sociedades pré-moder- O cerimonialismo intercomunitário mar-
nas” (Ibidem). caria ao mesmo tempo a participação comum
Patrick Menget (1993) se pergunta sobre a em um sistema, e as diferenças entre os grupos
manutenção da sociedade xinguana como uma locais e tensões inerentes à aliança, tendo os

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chefes como seus pivôs (MENGET, 1993, em que a distinção entre residentes e não re-
p. 67). Menget define o poder político como sidentes seria a chave para a definição de um
“a capacidade de fazer fazer” (la capacité de espaço comum em que as pessoas poderiam
faire faire, no original) (Idem, p. 70). Além transitar seguras de encontrar hospitalidade em
de promover mobilizações coletivas ao tra- suas redes de consanguinidade e afinidade, ao
balho, o chefe também poderia ordenar, ou invés de emboscadas de inimigos.
simplesmente permitir, a execução de pessoas Assim como Santos-Granero e Descola,
acusadas de feitiçaria – o que, como se sabe Menget atenta para a importância do ritual e
pela etnografia, tendem a ser rivais fragilizados do xamanismo. Mas, diferentemente dos dois,
no jogo político (BASSO, 1973). Se o chefe vê neles formas complementares de exercí-
tem a capacidade de fazer matar, pode-se dizer cio político: o xamanismo permitiria exercer
que ele detém algum poder coercitivo, mesmo mais poder no jogo faccional (e haveria um
que sua fala não seja um comando. Assim, poder informal dissimulado nas obrigações
a visão de Clastres sobre a “fala edificante” entre afins), e o cerimonialismo seria uma
também seria questionável, pois ela poderia função mediadora que torna a politie xinguana
dissimular o exercício verdadeiro de um poder possível. Talvez não seja exagero considerar
(MENGET, 1993, p. 68). estes trabalhos como “críticas etnográficas”
Ainda assim, a chefia não seria uma insti- do modelo clastreano, pois todos se baseiam
tuição centralizada. Os chefes podem ocupar em um argumento semelhante: a despeito do
posições diversas como patrocinadores, coor- alcance do modelo, seria preciso encontrar
denadores ou destinatários de rituais, respon- idiomas analíticos que dessem conta de ou-
sáveis por iniciativas de trabalho coletivo etc. tros aspectos do político. Ao mesmo tempo,
Essa tendência à multiplicação das funções de todos reconhecem que as linhas mestras do
chefia resultaria de uma “vontade clastreana de argumento não deixam de se atualizar em cada
recusar o poder de coerção?” (Ibidem, p. 69); caso particular. O refinamento demandado
seria ela uma desconfiança absoluta do poder, por esse debate passa por uma rediscussão
ou do poder absoluto? A resposta de Menget do que se entende por poder e, nesse sentido,
é negativa, pois todo chefe que se torne um a distância em relação a Clastres não é tão
representante legítimo da comunidade deve, grande quanto poderia parecer: o problema da
além de herdar o título, possuir uma paren- política continua sendo o problema do poder,
tela sólida, uma casa produtiva e exercer um que se não assume a forma da coerção, pode
controle efetivo de seu povo, suas mulheres, assumir as formas mais brandas e capilares da
seus aliados e seus dependentes (Ibidem, p. influência direta ou indireta, ou do controle da
69). Desse modo, qualquer chefe teria alguma territorialidade (como se sabe, outro elemento
forma de controle, que poderia ou não se tra- central para a antropologia africanista).
duzir em poder, a “capacidade de fazer fazer”
(MENGET, 1993, p. 71). A política amazônica na
A origem do título de chefe seria a condi- longa duração: repensando
ção de “mestre do território”: aquele respon- complexidade, hierarquia e poder
sável por abrir uma aldeia em um lugar seria
seu primeiro chefe e transmitiria o título a A partir da década de 1980, o avanço das
seus descendentes (Ibidem). Esta seria uma pesquisas arqueológicas deu início a profundas
posição condizente com a ideia de que a politie mudanças nas imagens sobre o passado da
xinguana configuraria uma territorialidade, Amazônia, com impactos nos debates sobre

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as formações políticas – passadas e presen- favor de um desenvolvimento local autôno-
tes – da região. As conhecidas pesquisas de mo, baseado em processos de crescimento
Anna Roosevelt (1993) no Orinoco, na Ilha econômico e demográfico, acompanhados
de Marajó e em Santarém demonstraram como do aumento da competição e complexificação
a Amazônia já sustentou grandes populações, sociopolítica. Cruzando dados arqueológicos
intensamente conectadas por vias ribeirinhas e com relatos etnohistóricos, Roosevelt sugere
terrestres, formando densas redes de circulação. que a maioria das aldeias naquele período
A existência de marcas de grandes modificações seriam partes de unidades culturais, políti-
na paisagem, como a construção de barragens, cas e territoriais mais amplas, sob o governo
açudes e locais elevados para plantio ou resi- de chefes gerais reclamando origem divina,
dência, é um indicativo de grandes sociedades, acompanhados de chefes regionais ocupantes
o que, por sua vez, traz à tona o problema da de cargos em função de formas estabelecidas
complexidade: como teria sido a organização de hierarquia social.
política de sociedades demograficamente vo- As interpretações iniciais de Roosevelt,
lumosas, que deixaram no ambiente marcas mesmo tendo transformado as imagens sobre o
de obras públicas que podem ter envolvido passado amazônico, são bastante controversas e
trabalho coletivo em larga escala? permanecem muito próximas de modelos clás-
Segundo Roosevelt, as sociedades ama- sicos da ecologia cultural, como o argumento
zônicas contemporâneas seriam “populações a favor de relações causais entre produtivida-
dizimadas, aculturadas e deslocadas, que foram de, aumento populacional e necessidade de
parte de sociedades pré-históricas comple- centralização político-econômica. Contudo,
xas destruídas durante a conquista europeia” tempos depois, a própria Roosevelt revisou
(ROOSEVELT, 1993, p. 256). Por volta do algumas de suas hipóteses sobre centraliza-
final do primeiro milênio da era cristã, mudan- ção política, e relativizou a centralidade da
ças extraordinárias parecem ter acontecido na ecologia e da economia para o desenvolvi-
região, quando as populações aumentaram, a mento de sociedades complexas. Ao invés de
agricultura se intensificou e sociedades “com- associar complexificação e estratificação social
plexas” apareceram (Ibidem, p. 258). O que e política, Roosevelt propõe pensar as socie-
significaria, porém, “complexidade”? dades complexas amazônicas como sociedades
Em alguns de seus primeiros trabalhos, heterárquicas. A noção de heterarquia seria
Roosevelt entende a complexificação como a uma alternativa aos modelos materialistas da
ocorrência de intensificação econômica, di- cultura, e fundaria um argumento segundo
versificação social (sugerida pela existência o qual “comunidades complexas, de larga
de diferentes padrões residenciais, enterro e escala, poderiam ser organizadas por vários
produção artística, por exemplo) e centra- métodos não hierárquicos, não centralizados,
lização política. Ela argumenta que teriam implementados em comunidades locais […]”
aparecido na Amazônia “chefaturas”, em so- (Ibidem), e organizações heterárquicas desse
ciedades com “a construção em larga escala tipo seriam mais estáveis e duráveis que organi-
de estruturas terrestres para controle da água, zações hierárquicas, graças à sua capilaridade
agricultura, habitação, transporte e defesa” e plasticidade.
(Ibidem, p. 259). Questionando o modelo de As escavações na Ilha de Marajó não tra-
Betty Meggers, segundo o qual estas sociedades riam evidências de diferenciação hierárqui-
teriam resultado de migrações de populações ca, pois não haveria diferenças significativas
oriundas dos Andes, Roosevelt argumenta a entre os morros artificiais usados como área

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de residência, nem diferenças internas entre as bases em que são feitas as associações entre
tipos de residência e cemitérios em cada mon- certas práticas e hierarquia são muito frágeis. A
tículo em particular (Ibidem, p. 21). Já na despeito disso, também é preciso reconhecer que
região de Santarém, na boca do rio Tapajós, ela abre espaço para questões sobre as relações
a situação é diferente. Medições por carbo- entre o que se conhece das políticas ameríndias
no-14 indicam que a cultura em Santarém se pelos registros históricos e etnográficos, e o que
iniciou por volta de 500 d.C, atingindo seu se conhece pelo registro arqueológico.
auge no século XIV e início do XV, decaindo A partir de fontes históricas e etnográficas
com a conquista e a missionarização entre os de origens diversas, Neil Whitehead (1994)
séculos XV e XVI (Ibidem, p. 23). A maioria discute a existência de formas complexas de
das ocupações é mais rasa e muito maior organização social na região do Orinoco. No
em área. O sítio pré-histórico mais tardio que ele chama de “Antiga Ameríndia”, as
na cidade de Santarém, por exemplo, ocupa “‘sociedades’ foram anteriormente variáveis
cerca de 4km2. As escavações demonstram em suas composições étnicas e linguísticas,
que a população vivia em grandes estruturas regionais em sua operação econômica, e po-
oblongas, equipadas com poços em forma de liticamente sofisticadas na medida em que
sino para estocagem, e também há registro poderiam abranger dezenas de milhares de
da existência de poços, estradas elevadas e indivíduos” (WHITEHEAD, 1994, p. 35).
calçadas entre os sítios (Ibidem, p. 24). As Com articulações regionais de larga escala,
peças de arte de Santarém encontradas em muitas vezes as fronteiras étnicas não coin-
grandes sítios mostram figuras humanas com cidiam com sistemas políticos, econômicos
detalhes pessoais, não encontradas nos sítios e sociais em particular, mas se fundavam na
menores, que poderiam indicar alguma forma produção e troca de produtos especializados
de estratificação social (Ibidem, p. 25). A – como é o caso contemporâneo de povos
disposição funerária dos mortos também era das Guianas, do Alto Xingu e do Noroeste
mais elaborada do que na cultura marajoara, Amazônico. As chefias da “Antiga Ameríndia”
cujos corpos eram cuidadosamente prepara- teriam se constituído nos espaços para manu-
dos e depois descartados por cremação ou tenção ou ampliação de tais fronteiras e redes
por enterros secundários em urnas funerá- de comércio, fazendo com que a política fosse
rias. Segundo missionários que trabalharam menos um aspecto dos grupos locais do que de
na região no século XVII, o objetivo seria redes regionais, “com o poder político sendo
criar relíquias ancestrais para adoração, e exercido a uma distância geográfica por linhas
múmias de ancestrais importantes, chamados de interação econômica” (WHITEHEAD,
de “primeiro pai” e “primeira mãe”, seriam 1994, p. 38). Whitehead menciona como
mantidas em casas especiais e reformadas exemplo a história das chefias Lokono, que
para exposição pública em cerimônias anuais. até o século XVIII constituíram uma orga-
A comparação da cultura marajoara com nização política poderosa que articulava as
a cultura de Santarém, assim, seria uma evi- bacias do Amazonas e do Orinoco na área
dência de que haveria soluções diversas para de Sierra Acarai/TumucHumuc, conectando
a organização de grandes populações em áreas os rios Corentyne e Berbice com o Paru e o
densamente habitadas, e que o cenário político Trombetas (Ibidem).
da Amazônia pré-colombiana foi certamente Porém, como o próprio Whitehead reco-
muito heterogêneo. É preciso reconhecer as li- nhece, a antropologia ainda carece de métodos
mitações de tais hipóteses, na medida em que bem definidos para a crítica de documentos

49
históricos, o que coloca uma questão: até que os pontos cardeais. Ampliando-se a escala
ponto a referência de viajantes e dos primei- geográfica, o fenômeno se repete: os maiores
ros etnógrafos a “reis” ou “elites indígenas” é conglomerados parecem se organizar segundo
fiável? Em que medida essas “elites”, ligadas os eixos Norte-Sul e Leste-Oeste. Há o caso
ao comércio com o exterior, seriam diferentes de um sítio central não habitado, que poderia
(índices de uma “complexidade sociopolítica” ter funcionado exclusivamente como centro
supostamente maior) das chefias ameríndias cerimonial (HECKENBERGER, 2005).
contemporâneas? Persiste em Whitehead uma O modelo de organização regional em
visão da política como uma forma de gestão conglomerados parece ter começado a decair
da escassez de pessoas ou bens – que o leva antes mesmo da chegada dos colonizadores
a falar em um caráter “feudal” dessas forma- europeus, mas elementos básicos da organiza-
ções políticas (Ibidem, p. 40), que tem como ção do espaço permanecem, como a estrutura
horizonte a centralização dessa gestão sob a circular das aldeias ao redor de uma praça
régua de alguma forma de poder coercitivo e/ cerimonial, ligadas entre si por caminhos es-
ou de controle de recursos escassos – em suma, peciais voltados para a circulação dos grupos
trata-se de uma variação de nossas próprias para atividades rituais. Essas estruturas, por
ideias sobre economia política (GUERREIRO sua vez, são associadas aos chefes hereditários,
JÚNIOR, 2012). tidos como seus “donos”, isto é, responsáveis
As pesquisas de Michael Heckenberger pela organização e patrocínio (com comida,
(2001, 2002, 2005, 2011) sobre o Alto Xingu, bebida e festas) do trabalho necessário para
iniciadas na década de 1990, enriqueceram sua construção e manutenção (GUERREIRO,
o debate de forma marcante. Por terem sido 2015a). Além disso, a distinção entre chefes e
realizadas em uma área de ocupação inin- não-chefes é marcada por relações diferenciais
terrupta, na qual é possível reconhecer uma no espaço, como onde alguém mora, por onde
clara continuidade entre os povos do passado alguém anda com frequência, onde se fala,
pré-conquista e os do registro histórico-etno- onde se ouve, como se posiciona nos rituais etc.
gráfico, suas pesquisas permitem vislumbrar de (HECKENBERGER, 2011). Heckenberger
forma mais complexa as possíveis relações entre argumenta que haveria, no Alto Xingu, uma
formações políticas do passado e do presente. inversão do argumento de Clastres sobre a
A pesquisa em diversos sítios da região do inscrição da igualdade no corpo: ao contrário,
Alto Xingu demonstrou a existência de aldeias este seria o objeto de elaboração da desigual-
até dez vezes maiores do que as atuais, algu- dade (HECKENBERGER, 2005, p. 296).
mas das quais eram cercadas por uma ou duas Em função dessa relação íntima entre
paliçadas de madeira construídas em fossos de a política e o envolvimento com o espaço,
até 2km de extensão, 10m de largura e 3m de Heckenberger desenvolve o conceito de eco-
profundidade, ligadas por grandes caminhos. logia do poder, segundo o qual o espaço e o
Durante o auge do crescimento populacional, controle sobre ele seria um importante ins-
entre os séculos XIII e XVII, as aldeias eram trumento do poder e da centralização ritual,
organizadas em conglomerados formados por mesmo na ausência de centralização econô-
um sítio principal e outros dispostos ao seu mica ou administrativa (HECKENBERGER,
redor segundo os pontos cardeais, como “al- 2005, p. 25). Nos vemos novamente às voltas
deias satélites”. Alguns desses sítios, por sua com uma relação entre ritual e poder, que
vez, funcionavam como centros em relação a aqui não assume uma feição necessariamente
outros satélites, também dispostos segundo econômica, mas ecológica em sentido amplo:

50
a hierarquia seria um modo pelo qual os al- é um indício de organizações centralizadas, e
to-xinguanos pensam suas relações entre si e as evidências sugerem que “mesmo se gran-
sua inserção no ambiente. Esse pensamento des quantidades de trabalho tiverem sido
hierárquico também estaria presente em for- recrutadas para construir essas estruturas,
mas de organização do conhecimento ritual, estas foram mobilizações de curta duração”
como a divisão de repertórios musicais em (NEVES, 2009, p. 149), desvinculadas de
suítes ordenadas, tanto internamente quan- qualquer sistema de controle permanente sobre
to entre si (FAUSTO; FRANCHETTO; a força de trabalho.
MONTAGNANI, 2011). Casos como os do sítio Açutuba, na
Eduardo Neves (2009) também desen- Amazônia Central, e de um sítio Tariano, do
volve articulações importantes entre arqueo- Noroeste Amazônico, sugerem a existência de
logia e etnologia, em seus trabalhos no Alto uma guerra endêmica pela presença de estrutu-
Rio Negro e na Amazônia Central. Neves ras defensivas, mas as evidências contradizem
questiona qual teria sido o papel da guerra a hipótese clássica de Carneiro. No caso de
no desenvolvimento de sociedades complexas Açutuba, a guerra parece ter sido muito mais
na Amazônia, um problema colocado em boa intensa do que em Lago Grande, pela presença
parte pela recorrência de estruturas defensivas de um fosso com uma dupla paliçada – porém,
identificada em diversos sítios arqueológicos. trata-se de um ambiente ecologicamente muito
Com uma abordagem crítica à ecologia cultu- mais pobre do que o primeiro. No caso dos
ral, e articulando as descobertas arqueológicas Tariano, eles teriam forçado sua entrada na
às concepções propriamente ameríndias sobre região à força, mas os casamentos provoca-
a guerra, Neves argumenta que “a guerra pré- dos pelo rapto de mulheres Arara permitiram
-colonial pode ser entendida como parte de que eles se incorporassem ao sistema regional
um processo de construção de identidades rionegrino como mais um grupo exogâmico,
pessoais entre os indígenas amazônicos que sem estabelecer qualquer tipo de hegemonia
também pode ser identificado no presente” política sobre outros (Ibidem, p. 160).
(NEVES, 2009, p. 140). A chave para entender essas aparentes
Desde os trabalhos de Robert Carneiro contradições seria deslocar o foco de uma eco-
(apud NEVES, 2009), tem sido feita uma logia de grupos para uma política interpessoal:
associação causal entre a guerra e a emergên- “Assim, a explicação para as razões, mecânicas
cia de desigualdades sociais características de e resultados da guerra amazônica devem ser
chefaturas ou estados. A teoria de Carneiro buscados no reino do político, mais especifi-
– conhecida como teoria da circunscrição ge- camente nas políticas internas de diferentes
ográfica – propõe que as áreas férteis da várzea formações sociais, nas quais pessoas, mais do
amazônica proporcionariam um crescimento que grupos, devem ter sido os jogadores-cha-
populacional elevado, mas a condição restrita ve” (Ibidem, p. 161). Para compreender as
desse tipo de ambiente geraria pressão demo- dinâmicas da guerra, seria preciso deslocar o
gráfica e competição pelo acesso a recursos foco das sociedades para as pessoas que atua-
aquáticos e solos férteis. Em tal ambiente de riam como motores das atividades guerreiras.
competição, a guerra teria sido um importante Poderíamos dizer que se trata de um desloca-
mecanismo de dominação, alavancando a for- mento da “lógica das classes” para a “lógica
mação de organizações regionais hierarquiza- das relações”, ou um deslocamento de uma
das e potencialmente centralizadas. Contudo, perspectiva em que a política é tomada como
nem sempre a existência de “grandes obras” um atributo do corpo social para uma na qual

51
a política é um atributo de corpos de pessoas sul-americanas, cujas políticas seriam baseadas
singulares – tema ao qual dedicaremos boa nas comunidades locais. Esta correlação entre
parte da seção seguinte. paisagens sagradas compartilhadas e integração
O próprio Carneiro teria sugerido que regional daria origem a fenômenos como a
a guerra também poderia ser uma força de troca cerimonial de riquezas, estruturas simila-
dispersão, evocando a perspectiva de Clastres res a templos em lugares sagrados e hierarquias
da guerra como força centrífuga e de impe- entre especialistas rituais. Em correlação com
dimento de divisões internas à sociedade as características anteriores, estariam a forma-
(CLASTRES, 2003b, 2004b). A guerra po- ção de “sociedades regionais” ou “comunida-
deria, assim, ter tido múltiplos papéis nas for- des morais” multilíngues, com tendências a
mações políticas amazônicas pré-coloniais, suprimir formas endógenas da guerra.
tanto favorecendo a produção de hierarquias Essa supressão da guerra enquanto me-
sociais quanto alimentando movimentos cen- canismo de produção de identidades supos-
trífugos que impediam a manutenção a longo tamente destacaria as formas políticas dos
prazo de qualquer tipo de centralização política povos Arawak de outras (Ibidem, p. 18), o
(NEVES, 2009, p. 163). que sugeriria, segundo os autores, a existência
Os trabalhos de Heckenberger e Neves de uma “ontologia Arawak” própria, na qual
dialogam com debates recentes sobre o lugar poder ritual e trocas cerimoniais predominam
de povos de matriz cultural Arawak na forma- sobre a predação e o conflito como prin-
ção de organizações políticas de larga escala cípios básicos de organização da socialida-
populacional e territorial, eventualmente mar- de. Contudo, esta é uma hipótese bastante
cadas por formas de hierarquia. Ao examinar questionável, pois desconsidera as relações
comparativamente processos de etnogênese e de transformação estrutural amplamente de-
diferenciação sociocultural em áreas habitadas monstradas entre os povos ameríndios desde
por povos falantes de línguas Arawak, Hill as Mitológicas, bem como as complexas so-
e Santos-Granero identificam “um padrão breposições entre troca e guerra, atestadas
distintivo de fluxo sociogeográfico, conec- não apenas nas terras baixas sul-america-
tividade, abertura, e expansividade” (HILL; nas, mas alhures (CODERE, 1950; GOW,
SANTOS-GRANERO, 2002, p. 16). 2002; GUERREIRO JÚNIOR, 2012; LÉVI-
O primeiro ponto seria um padrão de STRAUSS, 1942; STRATHERN, 1971).
tendência à expansão. Em estreita relação Por fim, registros históricos e etnográ-
com ele estaria a ampla ocorrência de “for- ficos sugerem a recorrência de princípios
mas sociais regionais e mesmo inter-regionais hierárquicos de diferenciação, baseados em
ou macrorregionais organizadas ao redor de noções de descendência, ancestralidade e
lugares sagrados compartilhados” (Ibidem). consanguinidade. Estes princípios levariam
Se a existência de locais de referência comum à formação de organizações políticas e rituais
parece amplificar um senso de pertencimento estratificadas, com “elites” praticando formas
aos participantes dessas redes, está associado de casamento diferenciadas de acordo com
a isso um caráter aberto e inclusivo, “que ge- sua posição (HILL; SANTOS GRANERO,
ralmente se expressa no estabelecimento de 2002, p. 18). Expressões de hierarquia social
amplas alianças entre grupos locais e regionais estão quase sempre associadas a privilégios ou
nos níveis intraétnico e interétnico” (Ibidem, especialidades rituais (uso de objetos, registros
p. 17), o que contrastaria com outras for- linguísticos, performances etc.).
mas de organização social das terras baixas

52
Santos-Granero (2002) argumenta que cerimonialismo intercomunitário)”, marcada
não há, e talvez nunca tenha havido, um único por uma ideologia de pertencimento (in-ness)
“padrão Arawak” de organização social e cul- em uma comunidade moral regional (ou seja,
tura – ao contrário, a variabilidade é enorme. uma comunidade que partilha valores cul-
Porém, o exame de redes interétnicas, nas quais turais tanto no plano local quanto no plano
há grupos desta família linguística, parece das relações entre localidades) (Ibidem, p.
sugerir uma espécie de “matriz cultural” recor- 111). “Regionalidade” remete ao fato de que
rente, que se expressaria e tornaria visível no “a reprodução simbólica da sociedade depen-
que Santos-Granero chama de “ethos Arawak” de de rituais intercomunitários e interações
(SANTOS-GRANERO, 2002, p. 42): (1) institucionalizadas” (Ibidem, p. 115). Isto
repúdio implícito ou explícito da endoguerra; seria diferente da mera interação em redes
(2) uma tendência a estabelecer laços pro- regionais (o que seria a condição geral dos
gressivos de aliança entre povos relacionados povos amazônicos antes da conquista), pois
linguisticamente; (3) ênfase na descendência, implicaria especificamente trocas de elite, or-
consanguinidade e comensalidade como fun- ganizadas em torno de rituais de chefia. Este
damento da vida social; (4) uma predileção padrão contrastaria com aquele vigente, por
pela ancestralidade, a genealogia e status here- exemplo, entre os Carib – também famosos
ditários para a definição da liderança política; por sua participação em extensas redes de
e (5) uma tendência a dotar a religião de uma comércio (COUTINHO, 2011; RIVIÈRE,
importância especial na vida pessoal, social 1984) –, ou entre os Tupi – articulados
e política. pela vingança (CARNEIRO DA CUNHA;
Heckenberger se apoia na combinação VIVEIROS DE CASTRO, 1986), que,
de um número menor de características: mesmo envolvidos em relações supralocais
vida aldeã sedentária baseada na agricultura, de troca e aliança, são predominantemente
hierarquia social e organização social regio- autônomos de um ponto de vista simbólico,
nal (“regionalidade”) (HECKENBERGER, social e político. Ainda que estas redes tenham
2002, p. 100). A dispersão dos povos da tido uma grande extensão e variabilidade, elas
família Arawak foi uma das grandes di- não necessariamente formavam comunidades
ásporas do mundo antigo (comparável à morais (HECKENBERGER, 2002, p. 115).
dispersão dos povos Austronésios, Bantu e A despeito da dificuldade de estabelecer
Tupi-Guarani), com membros desta famí- conexões inequívocas entre o passado e o
lia linguística presentes desde a Amazônia presente na longa duração, as áreas em que é
meridional até a Flórida. A noção de di- possível observar alguma continuidade (como
áspora seria aplicável porque a dispersão o Alto Rio Negro e o Alto Xingu) permitem
geográfica destas populações não foi apenas que as teses em voga sobre as socialidades
uma questão de movimentação demográfi- ameríndias reverberem sobre os próprios
ca e linguística, mas também de dispersão modelos arqueológicos ou etnohistóricos.
cultural (Ibidem, p. 116). Além de apontar as fraquezas de modelos
Uma das características centrais para baseados em noções euro-americanas de so-
o argumento de Heckenberger é o que ele ciedade, economia e política, sugerem dois
chama de regionalidade, “ou integração deslocamentos que serão discutidos a seguir:
sociopolítica baseada em padrões forma- de uma lógica dos grupos para uma lógica
lizados (institucionalizados) de troca (por fractal das relações entre pessoas-e-grupos, e
exemplo, troca, intercasamento, visitação, e de uma concepção da hierarquia que a associa

53
com poder a outras que chamam a atenção seus acompanhantes e aparece como aquela
para formas ainda em debate. capaz de agir e ser o grupo ao mesmo tempo.
A assimetria resultante desse processo seria
Em direção a uma filosofia o efeito da apropriação da posição de sujei-
política ameríndia to por alguém, que coloca os demais como
“extensões” da pessoa ou mesmo objetos dos
Não me parece exagero dizer que o uso quais ela pode dispor.
alargado e controverso de conceitos de poder Isso tem um impacto importante
e hierarquia depende, em grande medida, de nas discussões sobre a chefia e a política.
seu enraizamento em uma sociológica com di- Diferentemente da representação política, que
ficuldades para se desvencilhar completamente supõe a existência prévia de uma unidade a
do discurso da coerção que funda a própria ser representada, este seria um fenômeno de
ideia de sociedade (lembremos que Durkheim personificação: um grupo só existe por meio
qualifica os fatos sociais como “exteriores e de um chefe ou dono; não há um coletivo
coercitivos”). Com o que se parece a política, anterior à ação daquele que ocupa a função-Eu,
porém, onde o que vigora no lugar do binômio não há uma realidade objetiva pronta para ser
indivíduo/sociedade é a pessoa e as relações das “representada” a posteriori. Ainda segundo
quais é composta? É preciso se perguntar quais Lima, não seria possível utilizar o conceito
as formas indígenas da assimetria, e como elas dumontiano de hierarquia para pensar os
diferem das nossas ideias “nativas” ou conceitos coletivos ameríndios, dada a impossibilidade
antropológicos sobre a questão. de se encontrar, entre estes, um conceito de
Ao investigar as formas sociais dos Yudjá, “totalidade”. De forma resumida, isso seria
um povo de língua tupi (Juruna) do Xingu, uma característica das ontologias perspecti-
Tânia Stolze Lima (2005) identifica uma vistas, nas quais não é possível encontrar um
forma recorrente de produção de pessoas e ponto de vista capaz de englobar todos os
coletivos, que ao mesmo tempo exige uma demais e produzir uma noção de totalida-
forma de assimetria e anula as condições de de (LIMA, 2005, 2008). Assim, apesar de
sua eventual cristalização. Entre os Yudjá, não haver assimetria na constituição mútua de
parece haver uma dicotomia clara entre pessoa pessoas-e-coletivos, esta seria sempre reversível
e grupo, e tampouco uma ideia reificada de ou “solúvel”. É fato que Dumont concebe
grupo. Ao contrário, o que existe é uma forma a inversão como uma propriedade de toda
social que “envolve a ação coletiva em ação relação hierárquica; porém, em seu modelo a
pessoal, torna equivalente a ação pessoal e a inversão é sempre resultado de mudanças de
de um grupo” (LIMA, 2005, p. 97). Não há níveis, enquanto no caso Yudjá (e certamente
forma coletiva sem que alguém assuma o que outros casos ameríndios) a reversibilidade é
Lima chama de “função-Eu”, a capacidade de uma propriedade das relações assimétricas na
ocupar a posição de sujeito (de enunciar um mesma escala. Por esse motivo, Lima prefere
“eu” ou ser tratado como interlocutor por falar em contra-hierarquia.
alguém) em um coletivo. Quando os Yudjá Também reencontramos os temas da
falam sobre “uma pessoa”, estão se referindo a personificação e das imagens indígenas da
alguém que assume a posição de sujeito de um assimetria no trabalho de Carlos Fausto (2008)
coletivo e aqueles que são “eclipsados” por sua sobre os “donos” ou “mestres” amazônicos.
posição. Assim, a pessoa que ocupa a função-Eu Estas figuras frequentemente são associadas
se coloca em uma relação assimétrica com a hipérboles dos seres que “possuem” ou

54
controlam, ou estão associadas à sua origem um grau de alteridade, ele pode tanto prote-
como criadores ou causadores. No caso dos ger quanto agredir, tanto ser apreciado como
donos dos animais, que muitas vezes são seus um “pai” quanto ser temido como uma onça.
criadores/domesticadores, estes contêm “em si Algumas etnografias têm mostrado em de-
um coletivo, eles representam e contêm uma talhes as formas de operação da relação de
espécie” (FAUSTO, 2008, p. 332). O traço maestria, incluindo modos pelos quais era
subjacente à relação de maestria seria a filiação mobilizada ativamente pelos povos ameríndios
adotiva, uma relação assimétrica de metacon- como formas de produção de relações com
sanguinidade – uma espécie de contrapartida, os não-indígenas (BONILLA, 2005, 2007;
no campo da consanguinidade, da afinidade COSTA, 2007; GUERREIRO, 2010, 2015b;
potencial simétrica vigente nas relações com a KOHN, 2007).
alteridade. A assimetria é muitas vezes pensada A tese de doutorado de Renato Sztutman
a partir de imagens de continente e conteúdo, (2012), posteriormente transformada em livro,
com os donos aparecendo como donos de é um marco nos debates. Uma de suas con-
currais, casas ou mesmo como predadores, tribuições mais importantes é a releitura dos
capazes de conter suas crias em seu próprio trabalhos de Pierre e Hélène Clastres, a partir
corpo (Ibidem, p. 334). dos quais propõe repensar problemas clássicos
As relações de maestria são chave para da política dos Tupi antigos em diálogo com
os debates sobre chefia, pois envolvem “um etnografias recentes (SZTUTMAN, 2012).
jogo entre singularidade e pluralidade”, sendo Em meio a uma sofisticada releitura e costura
o mestre “a forma pela qual uma pluralida- de trabalhos clássicos e contemporâneos, é
de aparece como singularidade para outros” preciso ressaltar ao menos três movimentos.
(FAUSTO, 2008, p. 334). Trata-se de uma Um é a reinserção dos problemas levanta-
relação semelhante à descrita por Lima entre dos pelas chefias ameríndias nos debates em
os Yudjá, em que uma pessoa assume o lugar torno das noções de natureza e cultura, que,
de um coletivo na relação com alguém. Mais segundo Sztutman, “sugerem que a noção de
do que um representante, “o chefe-mestre é ‘política’ dificilmente poderia ser dissociada da
a forma pela qual um coletivo se constitui noção de ‘natureza’ e, nesse sentido, qualquer
enquanto imagem: é a forma de apresentação ‘política dos homens’, aqui e alhures, deveria
de uma singularidade para outros” (Ibidem). ser compreendida como ‘política cósmica’ ou
Fausto também chama a atenção para a incom- ‘cosmopolítica’ […]” (Ibidem, p. 27). A partir
pletude do processo de identificação gerado dessa proposta, os temas da chefia e do xama-
pela filiação adotiva, em que o dono sempre nismo são reintegrados de forma inovadora,
permanece parcialmente outro: “a adoção apresentando as formas mútuas de implicação
é, por assim dizer, uma filiação incompleta. entre essas dimensões da vida ameríndia.
Ela não produz identidade plena, senão uma Outro ponto importante é a atenção
relação ambivalente, em que o substrato da dedicada aos duplos movimentos de criação
inimizade é obviado, mas não inteiramente e dissolução de coletivos, acompanhados da
neutralizado” (Ibidem, p. 352). Essa am- “mudança de escalas” das pessoas responsáveis
biguidade do dono/chefe seria responsável por agenciá-los, mantê-los e representá-los. Sua
tanto por sua saliência e eficácia ritual – pois leitura de Deleuze e Guattari também permite
seriam “personagens complexos” (SEVERI, chamar a atenção para a possível emergência de
2002, 2004) –, quanto por peculiaridades das focos de poder, ou forças centrípetas, nas socie-
chefias ameríndias: o chefe sempre mantém dades ameríndias, sem que isso seja sinônimo

55
da formação de um aparelho de coerção, sepa- de agir e dar forma a coletivos, quanto pelos
rado do corpo social (SZTUTMAN, 2012, p. riscos deles serem o motor de sua dissolução
52). O poder, ao contrário, pode muito bem e fragmentação (ou mesmo de serem expulsos
ser multicêntrico e coexistir com múltiplas li- ou mortos, quando identificados de forma
nhas de fuga e, à diferença das sociedades com desmedida com a alteridade).
Estado, que funcionam como “aparelhos de Por fim, outro de seus principais movimen-
ressonância”, as sociedades indígenas tenderiam tos é o uso da noção wagneriana de “magnifica-
a inibir a possibilidade da ressonância – como ção” (WAGNER, 1991), que funda análise em
também é argumentado por Viveiros de Castro uma perspectiva relacional do socius. Assim com
(2011). Este movimento se esclarece no foco os big men e greatmen melanésios, os persona-
de Sztutman sobre o que ele chama de formas gens da ação política ameríndia seriam pessoas
da ação política: “a ação política jamais pode- magnificadas, isto é, que conteriam em si mes-
ria ser reduzida à busca do poder político em mas outras pessoas e relações. O que varia não
si mesmo, devendo ser concebida como uma seria sua “natureza”, mas sua escala em relação
maneira de lidar com ele, o que pode significar a outras pessoas e coletivos (Ibidem, p. 74).
a sua pulverização” (Ibidem, p. 41). No mesmo movimento de ampliação
Sztutman chama a atenção para como dos diálogos e releituras de Clastres, Beatriz
a relação com a alteridade é central para o Perrone-Moisés (2011) chama a atenção para
exercício da ação política: “Tanto os profetas a necessidade de aproximação a uma “filosofia
como os chefes de guerra parecem mobilizar política ameríndia”, isto é, os termos pelos
forças exteriores ao mundo propriamente so- quais os povos indígenas concebem e prati-
cial (mundo das relações de parentesco e da cam o que chamam de política (PERRONE-
aliança política) e, assim, conferem para si uma MOISÉS, 2011). Recusando a oposição feita
espécie de prestígio, que os destaca dos demais” por Clastres entre mito e pensamento refle-
(Ibidem, p. 69). Ao se desprenderem de seus xivo, ela busca na mitologia ameríndia uma
contextos locais, estes personagens se apropria- reflexão propriamente indígena sobre o poder,
riam de qualidades do exterior humano (local suas (aparentes) contradições e o modo como
da afinidade potencial e da inimizade) e extra- os mitos associam a constituição simultânea
-humano (a sobrenatureza), “sítios carregados da chefia e de formas sociais. Trata-se, como
de capacidades – agências – necessárias para ela diz, “de experimentar a mitologia como
fazer pessoas e coletivos, necessárias para agir lugar de reflexão ameríndia a respeito do
sobre o mundo” (Ibidem, p. 70). Nessa dire- que chamamos política, via de acesso ao que
ção, Sztutman ajuda a esclarecer a frequente poderíamos nomear – ainda por inspiração
associação dos chefes à alteridade (uma espécie lévistraussiana – a armação de uma filosofia
de “alteridade interior”, ou uma capacidade política ameríndia” (Ibidem, p. 861).
interiorizante da exterioridade), bem como o Discutindo o surgimento efêmero de chefes
potencial dessas figuras se dissolverem umas poderosos em diferentes narrativas ameríndias,
nas outras: guerreiros serem potencialmente Perrone-Moisés mostra como estas narrativas
chefes de paz, chefes exemplares se converte- sugerem que poder e prestígio devem sempre
rem em feiticeiros em potencial etc. A con- ser separados, num movimento intencional de
dição fronteiriça desses agentes os situaria no se conjurar o efetivo exercício do poder (Ibidem,
limiar entre o interior e o exterior, criando p. 863-865). Porém, essas narrativas dizem algo
uma situação de ambiguidade que respon- mais: elas também falam sobre a necessidade do
deria ao mesmo tempo por suas capacidades poder, para que uma ordem social possa ser

56
erguida contra ele. A reflexão desses mitos “não pessoa: ele seria uma encarnação desse dualis-
se funda na recusa pura e dura do poder, pois mo dinâmico, foco de subversão dos circuitos
que ambos formulam igualmente sua necessida- de trocas que fundam a vida social, e condição
de. A paz só pode existir sobre fundo de guerra, mesma de sua existência; pessoa exemplar, mas
é preciso que algo permaneça – em nomes, em sempre marcada por algum grau de alteridade,
prerrogativas, em cantos [de guerra] – desse um poder que caracteriza um fora, mas que,
furor guerreiro fundante” (Ibidem, p. 866). sendo este o lugar de onde se pode extrair agên-
Essa persistência do poder como pano cia, é também a condição de criação de um
de fundo leva à complexificação de um dos dentro (Ibidem, p. 869-870). Perrone-Moisés
argumentos-chave de Clastres. A “sociedade conclui com uma proposição que impulsiona
primitiva” não recusaria apenas a divisão, mas novas investigações etnográficas: “Se a filosofia
também a “não divisão” – isto é, ela se recusaria política ameríndia é realmente feita de mo-
a decidir parar em um polo ou outro. Isso sim vimentos entre-dois, para compreendê-los e
seria estabilizar, estacionar, estatizar-se: preferir acompanhá-los será preciso abandonar as bali-
a permanência em um estado em detrimento zas costumeiras e descobrir quais são seus polos
das transformações constantes impostas pelo […]” (Ibidem, p. 877). Estes, conforme ela
movimento. Ao contrário, “Trata-se de mo- argumenta em sua tese de livre-docência, são a
ver-se no espaço-relação entre os polos, sem guerra e a festa (não o que chamamos de ritual
jamais fixar-se num deles, o que equivaleria a ou de festa, mas o que os ameríndios chamam
resolver (abolir) a diferença pela identidade” por este nome), duas “variações” sobre o tema
(Ibidem, p. 868). A imagem que inspira tal da política (PERRONE-MOISÉS, 2015).
formulação é, evidentemente, a do dualismo Os Jê são trazidos novamente para o cen-
em perpétuo desequilíbrio (LÉVI-STRAUSS, tro desses debates, pelo trabalho de Andrade
1991), em que cada oposição gera novas oposi- (2012), que busca mostrar as diversas formas
ções, em que cada polo de um dualismo pode assumidas pela “política” na etnologia Jê. Menos
se abrir para um ternarismo, desdobrar-se em do que a releitura da política como um ob-
uma nova diferença, criando um movimento jeto definido, seu trabalho consiste em uma
dinâmico no qual a identidade nunca é mais do análise da construção de objetos distintos que
que um momento passageiro, “que não pode respondem, para diferentes pesquisadores, por
durar” (COELHO DE SOUZA, 2008; LÉVI- “política” – uma “crítica etnológica”, como ele
STRAUSS, 1991). Se esta parece ser também mesmo diz, “da constituição do objeto ‘po-
a lógica das políticas ameríndias, algo impor- lítica jê(-bororo)’ e de suas transformações”
tante se ganha: “Entre Estado e não Estado, (ANDRADE, 2012, p. 26). Andrade argumen-
há lugar para toda a sorte de dosagens, que ta haver uma tradição etnológica ocupada com
as políticas ameríndias – vividas ou pensadas uma noção de governo distinta daquela à qual
nos mitos – exploram” (PERRONE-MOISÉS, estariam ligados os africanistas, e que marcaria
2011, p. 868). Além das formas de conjura- a etnologia jê-bororo. Enquanto os estrutu-
ção do poder em que se foca classicamente, ral-funcionalistas teriam sobreposto governo
também seria necessário investigar etnografica- e Estado – como o fazem Radcliffe-Brown e
mente as concepções ameríndias desse poder, Fortes na Introdução aos Sistemas Africanos de
seus repositórios, suas formas regulares ou Parentesco e Casamento –, Morgan e Steward
excepcionais de realização. “avançam noções de governo em ampla medida
Isso teria também implicações para as concordes: domínio por excelência do metas-
concepções do chefe enquanto um tipo de social, relação mediata da sociedade consigo

57
mesma, artificialização de seus mecanismos de chefe, mais aumentam as chances da emergência
integração institucional” (ANDRADE, 2012, de novos conflitos. Todos estes fatores dotariam
p. 40). A maioria dos jê-ólogos teria partilhado a liderança de uma ambiguidade inescapável:
de perspectivas semelhantes, vendo nas institui- quanto mais forte um líder, quanto maior sua
ções coletivas Jê formas de “relação mediata da competência em ser um generoso árbitro da vida
sociedade consigo mesma” por meios das quais social, menor a sua capacidade de manter-se
uma unidade política é produzida. em tal posição (ANDRADE, 2012, p. 62-63).
O que dizer do “faccionalismo”, tema clás- Ao discutir o talento oratório, Andrade
sico nos trabalhos sobre a organização social observa uma aparente dissonância em relação à
entre os Jê? Se as agremiações têm o potencial formulação clastreana, pois segundo ele “o chefe
de produzir coletivos em momentos específi- jê-bororo enuncia pragmáticas, empreende a
cos, como durante o ritual, elas permaneceriam organização social, governa […]” (ANDRADE,
algo “incompletas”, por sua “incapacidade de 2012, p. 79). Com efeito, a oratória política
transpor certos patamares demográficos, a be- talvez tenha sido um dos principais objetos de
licosidade, o faccionalismo impertinente, em etnografia e revisão da tese clastreana sobre o
suma, a carência de um Estado” (Ibidem, p. “discurso edificante”. Magnus Course (2011),
56). Essa relação entre governo e faccionalismo discutindo ideias Mapuche sobre a força das
seriam os polos entre os quais oscilariam as po- palavras e sua capacidade de agência, argu-
líticas Jê: “Revelam-se a dupla-face do político menta que o modelo de Clastres pressuporia
e as contradições que estruturam seu campo um entendimento da linguagem segundo uma
semântico: de um lado, governo, conjunção e ideologia ocidental, que focaliza em seus as-
concentração, artifício, vontade e consciência; pectos simbólicos (o que é dito sobre o que)
de outro, faccionalismo – desgoverno –, disjun- em detrimento de seus aspectos pragmáticos
ção e dispersão, natureza, pulsão” (Ibidem). (o que é feito por meio da fala) (COURSE,
Andrade propõe uma releitura interessante 2011). Cecilia McCallum (1990) também ob-
das ideias de Lévi-Strauss sobre a chefia entre serva como o discurso de um líder, por meio de
os Nambikwara. Em particular, retoma o argu- sua força moral, pode ser tomado como uma
mento de que a liderança não seria exatamente força na produção de pessoas e comunidades
uma instituição “do grupo”, na medida em que (MCCALLUM, 1990, p. 416). Os trabalhos de
este é feito existir (em sua forma, tamanho e ori- Franchetto sobre a “conversa de chefes” entre os
gem) por meio da ação do líder (ANDRADE, Kuikuro são uma das abordagens mais detalha-
2012, p. 62). Esta relação seria responsável pelo das desse estilo de oratória, demonstrando como
caráter instável da liderança, que quanto mais os chefes se produzem enquanto porta-vozes
eficaz se torna, mais suscetível fica a não con- do grupo (por meio de sua conexão com o
seguir realizar o que se espera dela. O prestígio passado) em situações de interação ritual, ou
teria “custos marginais” crescentes: quanto mais como no cotidiano executam falas que, mais
um chefe é generoso com seus seguidores, mais do que discursos “vazios” têm como objetivo
ele aumenta seu número, às custas de reduzir sua afetar diretamente as pessoas, visando reparar
capacidade de ser generoso; e quanto mais um fraturas no tecido social (FRANCHETTO,
grupo cresce graças à capacidade pacificadora do 1993, 2000)6.

6 Para discussões sobre a “conversa de chefes” entre outros povos do Alto Xingu, ver Basso (2009), Guerreiro (2011;
2015b) e Mehinako (2006).

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Ainda nesse conjunto de debates sobre Um dos pontos interessantes explorados
as concepções ameríndias da política, Diego por Pedroso é a variação de perspectivas entre
Rosa Pedroso (2013) discute as ideias de hie- os diferentes clãs Cubeo: clãs de baixa ou alta
rarquia entre os povos Tukano do Uaupés hierarquia têm perspectivas diferentes sobre
(em particular, os Cubeo descritos por Irving sua relevância na vida social e sobre a rigidez
Goldman) e as possíveis relações entre essas de seus princípios. A escala de senioridade não
ideias e o conceito dumontiano de hierarquia. é fixa, mas dinâmica, passível de reversões e
Como o autor adverte, não se trata de aplicar o competições (ANDRELLO, 2016). Pedroso
conceito de Dumont ao contexto do Uaupés, faz bem em observar que essas inversões não
mas de recuperar as formulações do autor e coincidem com a concepção dumontiana
contrastá-las com os materiais etnográficos, de “inversão hierárquica”: “se inversões há
para que desse contraste talvez emerjam as no modelo de Dumont, as mesmas operam
especificidades do conceito uaupesiano de em níveis distintos, nunca no mesmo nível”
hierarquia (PEDROSO, 2013). (PEDROSO, 2013, p. 137). Isso sugeriria
Entre os povos do Uaupés, a noção de uma inadequação do conceito de hierarquia
hierarquia se refere a uma ordem de relações de Dumont. No caso do Noroeste Amazônico,
entre pessoas no interior de grupos e entre
grupos. Essa ordem é definida em função da não há referência a uma noção de unidade última
senioridade, dando origem a uma distinção (que no caso indiano é a oposição puro/impuro
organizando todo o sistema). Ordem de gradação
entre irmãos mais velhos e mais novos. A for- descontínua sem referência a uma unidade superior:
mulação de Goldman do problema se tornou eis aqui justamente um dos sentidos de hierarquia
clássica, pois coube a ele argumentar que os criticado e abandonado por Dumont logo no início
Cubeo teriam o esqueleto de um sistema aris- de seu posfácio à edição “Tel” (2008:370); nesse
sentido, o Uaupés está longe da hierarquia dumon-
tocrático, revestido de um ethos igualitário tiana. (PEDROSO, 2013, p. 113)
(GOLDMAN, 1979). Se a hierarquia chama a
atenção por contrastar com a imagem clássica
das sociedades amazônicas de sua época, não As etnografias revelariam que a hierar-
menos notável é o fato da hierarquia parecer quia é variável segundo o ponto de vista dos
ter pouca efetividade para as relações cotidia- grupos, de modo que o sistema social aberto
nas. Em relação à chefia, a questão também do Uaupés, se for uma totalidade de algum
é complexa. Apenas os sibs têm um líder, que tipo, não é uma que implica relações entre
não necessariamente dispõe de autoridade: parte e conjunto. Segundo Rosa, “se tomamos
a posição de chefe resulta de um lugar na hierarquia no sentido dumontiano, no Uaupés,
estrutura social, mas a autoridade depende portanto, estaríamos diante de regimes contra-
de relações e habilidades pessoais. Além de -hierárquicos, no sentido de que recusam os
ser desprovido de uma função econômica, o pressupostos da noção dumontiana” (Ibidem,
chefe seria uma figura secular, sem qualquer p. 123; grifos do original). Seria preciso, por-
relação especial como sagrado. Ele até poderia tanto, extrair as consequências da noção de
ser também um chefe de guerra, mas isso não “ponto de vista”, ou perspectiva, para a noção
é necessário. A figura do chefe replicaria, na uaupesiana de hierarquia.
escala de uma pessoa singular, o mesmo tipo Em suma, um conjunto significativo de
de paradoxo expresso em uma escala coletiva trabalhos têm feito um percurso distinto da-
pela dicotomia entre armadura hierárquica e queles que, anos antes, optaram pelas “críticas
ethos igualitário. etnográficas” a Clastres. Tomando como ponto

59
de partida e inspiração as ideias de Clastres de aristocracia, teriam um especial interesse
sobre a “intencionalidade”, ou “vontade” das por longas genealogias, a partir das quais
sociedades indígenas de recusarem um poder seriam definidas as possibilidades de alguém
separado do corpo social, estas pesquisas têm ocupar posições importantes. Villar toma cui-
conseguido levar além o pensamento clastrea- dado ao colocar em questão o que se entende
no ao aproximar mais as suas teses clastreanas por “descendência”, esclarecendo que não se
aos idiomas ameríndios da política. trata de sucessão linear. A transmissão dos
cargos seguiria caminhos diversos entre os
Cosmopolíticas em transformação membros das famílias nobres, mas um ideal
de continuidade se sobreporia a tais variações,
As filosofias e práticas indígenas da políti- e Combès e Villar sugerem o uso do conceito
ca estão, evidentemente, entrelaçadas à história lévi-straussiano de casa para pensar a organi-
da colonização do continente americano, e zação social Chané (VILLAR, 2013, p. 22).
um número significativo de pesquisas têm se Em 1970, os jesuítas que atuavam na
debruçado tanto sobre os efeitos da domina- Bolívia criaram o Centro de Investigación y
ção colonial sobre tais formas de organiza- Promoción del Campesinato (CIPCA), buscan-
ção social, quanto as formas ameríndias de do articular as sociedades rurais e integrá-las
reinventar e indigenizar o que costumamos ao projeto republicano nacional. Seguindo
chamar de política. os princípios dos sindicatos agrários andi-
Saindo da Amazônia e do que geralmente nos, foram suprimidas as diferenças étnicas
é englobado pela expressão “terras baixas”, ou regionais da “classe campesina”, vistas
casos do Chaco argentino e boliviano levan- como residuais e problemáticas. Esse pro-
tam questões importantes sobre hierarquia cesso fortaleceu a ideia de uma identidade
e formas de interação entre a política indí- indígena “guarani”, que se sobrepôs a uma
gena e formas de ação política ligadas ao diversidade maior (Ibidem, p. 25). Além do
Estado. Diego Villar (2013) relembra que eclipsamento dos processos históricos de do-
Clastres havia apontado algumas poucas minação e hibridação, foi constituído um
exceções ao seu modelo da chefia indígena: modelo de organização política baseado em
os Taino (Arawak) das Antilhas, a simbiose assembleias comunitárias, no lugar da orga-
entre Guaykurú e Arawak no Chaco boreal nização dos caciques. No noroeste argentino,
e, claro, os Andes (CLASTRES, 2003c). Os também afetado por este processo, os Chané
Chané contemporâneos, apesar de sua origem recusam de forma explícita este processo de
Arawak, falam guarani e partilham em boa “guaranização compulsiva” (Ibidem, p. 26)
medida a cultura de seus colonizadores (com e, entre outras coisas, insistem na legitimi-
os quais formam o grupo conhecido como dade da posse do poder e das decisões pelos
Chiriguano). Porém, em certas regiões man- caciques “tradicionais”. O sistema das “casas”
tiveram viva a consciência de sua diferença. Chané entra em confronto com o “projeto
Villar observa que os missionários francis- guarani” que, apesar de propagar um prin-
canos do século XIX já haviam apontado “a cípio igualitário, induziu aos primeiros um
existência de uma organização política rela- processo homogeneizador. Curiosamente,
tivamente hierárquica entre estes indígena, o “anarquismo” e o igualitarismo guara-
chegando a falar de cargos ‘monárquicos e ni assumem, do ponto de vista dos Chané,
hereditários’” (VILLAR, 2013, p. 21). As uma espécie de função-Estado, enquanto
famílias de chefes, que formam uma espécie o sistema hierárquico Chané assume uma

60
função-contra-o-Estado, na medida em que ontológica própria? Podemos pensar nessas
opera, no plano supralocal, desestabilizações presenças como atores políticos – ou como
da unidade. Nesse caso, a hierarquia é que é questões políticas, no mínimo – ao invés de
o fenômeno menor e agencia linhas de fuga descarta-las como excessivas, residuais ou
(VILLAR, 2013, p. 27). infantis?” (Ibidem, p. 336).
Marisol de la Cadena (2010) chama a De la Cadena narra um episódio marca-
atenção para os enlaces entre ideias e prá- do por “entendimentos parciais” ligados aos
ticas indígenas a processos políticos mais protestos contra a construção de uma mina
amplos da América Latina, que além de em Sinakara, um dos picos de uma cadeia de
“perturbarem” a agenda política de setores montanhas à qual também pertence a monta-
conservadores, contribuem para produzir nha Ausangate, conhecida na região de Cuzco
“perturbações conceituais”. O modo como como um poderoso ser terrestre, fonte da vida e
os movimentos indígenas sul-americanos têm morte, riqueza e miséria. Durante um protesto
entrelaçado suas concepções sobre o cosmos, a que reunia agentes diversos – especialistas ritu-
agência e a história revelam que pode exceder ais, irmandades religiosas urbanas e rurais en-
o que costumamos entender por “política”. volvidas em um mesmo ato político -,em uma
Em particular, a “natureza”, em suas formas conversa com um interlocutor este chamou sua
subjetivadas, entra na arena política com atenção para algo além dos efeitos mais imedia-
um agente capaz de promover deslizamen- tos da mina sobre as terras das quais dependem
tos conceituais e práticos importantes. Um as famílias afetadas. Seria preciso considerar o
exemplo seria a constituição do Equador, na próprio Ausangate, que “não permitiria a mina
qual “a Natureza ou Pachamama, onde a vida em Sinakara, uma montanha sobre a qual ele
se torna real e reproduz a si mesma, tem o presidia. Ausangate ficaria bravo, ele poderia
direito a ser integralmente respeitada na sua até matar pessoas. Para prevenir tal matança,
existência, e à manutenção e regeneração de a mina não deveria acontecer” (Ibidem, p.
seus ciclos vitais, estruturas, funções, e pro- 339). Essa também era a opinião do prefeito
cessos evolucionários” (DE LA CADENA, do distrito de Ocongate, onde fica o complexo
2010, p. 335). de montanhas: elas, enquanto seres terrestres,
Não se trata de apenas mais um discurso exigem respeito, e seria sua responsabilidade
ecológico em que a natureza é tomada como como prefeito prevenir acidentes provocados
um domínio extra-humano, que pode ter por maus tratos a esses seres perigosos.
direitos apenas por analogia aos direitos das Fenômenos desse tipo criariam uma “po-
pessoas (humanas). A questão é a emergência lítica através de conexões parciais”, em que
de uma figura como Pachamama: o que ela elementos do mundo indígena se cruzam com
é, e o que aconteceu para que ela pudesse os estados-nação dando origem a instituições
figurar na constituição? De la Cadena mostra e práticas complexas. A noção de “conexão
que políticos que não se identificam como parcial” é tomada emprestada de Strathern, e
indígenas veem nesse tipo de introdução uma se refere a um agregado, ou um circuito que
espécie de “intrusão”, ou de “resíduo” exces- liga várias partes, mas que não forma uma
sivo de um mundo que deveria desaparecer, “unidade” (Ibidem, p. 347). As conexões e
uma espécie de estratégia para interpelar os efeitos mútuos entre as instituições estatais
sujeitos indígenas. Mas De la Cadena pro- e agentividades originadas das ontologias in-
põe um aprofundamento do problema: “a dígenas produzem uma “política pluriversal”,
estratégia em si pode ter uma explicação que adiciona dimensões adicionais de conflitos

61
ontológicos que emergem de mundos parcial- foi analisada por Florbela Ribeiro (2009), e
mente conectados (Ibidem, p. 362). seu trabalho demonstra diversos cruzamentos
Salvador Schavelzon (2012) discute temas de questões da “política interna” tenetehara
muito próximos a partir da etnografia de um com a política indigenista e a política eleitoral.
caso particular: o processo constituinte da Ribeiro descreve, por exemplo, como divisões
Bolívia, no qual se criou a possibilidade de contemporâneas entre os Tenetehara foram
um projeto de descolonização do Estado produzidas em um dado momento da política
proveniente dos movimentos indígenas, cuja indigenista e como elas se perpetuam, tanto in-
imaginação alimentou a redação de uma ternamente quanto nas relações com o estado,
Constituição com propostas de autonomia, mesmo com as transformações dessa política.
territorialidade e um ideal de “viver bem” como A experiência de uma prefeitura indígena
alternativa ao ideal de “viver melhor” do desen- no município de São Gabriel da Cachoeira,
volvimentismo capitalista (SCHAVELZON, no estado do Amazonas, foi discutida por
2012). O encontro de povos das terras baixas e Aline Iubel (2015). A eleição de um prefeito
altas da América do Sul no decorrer do proces- (Tariano) e vice-prefeito (Baniwa) indígenas,
so também demonstrou um potencial criativo pertencentes a povos do Alto Rio Negro, ali-
singular, no qual demandas com origem em mentou a expectativa de se introduzir na ad-
distintas tradições políticas se influenciaram ministração municipal algo do jeito indígena
mutuamente: de se fazer política. A etnografia de Iubel faz
uma reconstrução etnográfica de elementos
A descolonização dos aimarás é ouvida nos discursos daquela gestão, explorando tanto a construção
políticos chiquitanos ou guaranis. A autonomia da aliança que constituiu a prefeitura quanto
como regime pensado para minorias aparece, no
direito internacional, como busca dos povos ma-
os conflitos que a marcaram. Sua tese de-
joritários quéchuas e aimarás. Aparecem, também, monstra que “a relação estabelecida entre os
tendências estatais nas terras baixas, que chegam índios do alto rio Negro e o Estado produz
a propor funcionários políticos nas secretarias do transformações tanto neles (índios), quanto
Estado; e tendências contra-estatais nas terras altas,
aproximando-se de outros povos para pensar o plu-
acaba por produzir uma perspectiva sobre o
ralismo. (SCHAVELZON, 2011, p. 117) Estado na qual sua apresentação como o ‘um’
ou ‘universal’ (como único modo possível de
organização da sociedade) é insuficiente, in-
O Brasil, em comparação com vizinhos completa e equivocada” (IUBEL, 2015, p. 14).
como Bolívia, Equador e Peru, ainda tem co- Marina Vanzolini (2010) também aponta
nexões mais frágeis entre as políticas indígenas para um envolvimento complexo dos povos do
e certas instâncias administrativas do Estado7. Alto Xingu com a política eleitoral. Apesar da
Apesar do crescente envolvimento dos povos demanda e do interesse dos povos da região em
indígenas com a política partidária, ainda pa- elegerem vereadores indígenas nos municípios
rece haver poucas pesquisas sobre o tema. A em cujos territórios se situa a Terra Indígena do
campanha de uma mulher Tenetehara ao cargo Xingu, parece haver uma grande desconfiança
de vereadora em um município do Maranhão em relação aos candidatos indígenas. Em 2008,

7 É claro que o envolvimento dos povos indígenas com diversas políticas públicas (em particular, as de saúde e
educação) é responsável por seguir moldando aspectos fundamentais das mesmas, mas não seria possível tratar
das relações entre políticas públicas e povos indígenas nos limites desse artigo.

62
três indígenas concorreram ao cargo de verea- emergência de cosmopolíticas nas quais está em
dor em Gaúcha do Norte, um dos municípios disputa uma diversidade de mundos possíveis,
da região. Por representarem cerca de um terço e o reconhecimento de uma multiplicidade de
dos eleitores do município, considerava-se que agentes para além dos humanos usuais, cujos
os indígenas tinham muitas chances de ter desdobramentos é preciso acompanhar de perto.
os três eleitos. Contudo, apenas um recebeu
votos suficientes. Vanzolini comenta que os Considerações finais
candidatos eram, respectivamente, um chefe,
o primogênito de um chefe e o sobrinho de Muito ainda poderia ser dito, e muitos
um chefe. Quanto mais estes se aproximam trabalhos importantes ficaram de fora por falta
de espaços de poder, menos apoio ganham: de espaço. Porém, espero ter conseguido ofe-
a política eleitoral tenderia a ser absorvida recer um panorama de algumas das principais
pela lógica da sociedade contra o Estado questões que têm estado em pauta neste campo.
(VANZOLINI, 2010). As formas ameríndias da chefia e da política
É indispensável evocar a trajetória de receberam tratamentos diversos ao longo das
Davi Kopenawa, importante xamã e porta- últimas décadas. As perspectivas etnográficas
-voz dos Yanomami cuja história de vida foi sobre o poder e seu exercício se refinaram, e
publicada em livro a partir de sua parceria a visão do poder como coerção deu lugar a
com Bruce Albert (KOPENAWA; ALBERT, outras perspectivas do poder como moralidade,
2015). Kopenawa é uma liderança notável, capacidade de agir e de fazer agir, persuasão,
cuja trajetória e visão de mundo são muito “mundiação” (DESCOLA, 2014). As teses
reveladoras sobre um modo Yanomami de clastreanas, mesmo quando sujeitas a críticas,
pensar e fazer cosmopolítica. A transformação saem fortalecidas do debate, pois demonstram
de Kopenawa em liderança se deu de forma que, a despeito de modulações etnográficas
inseparável com sua transformação em xamã: particulares, elas captam algo de fundamental
duas transformações radicais do corpo que das políticas ameríndias, e seu refinamento
conferem à pessoa capacidades específicas de tem permitido lidar de forma original com as
comunicação e agenciamento com a alteridade. formas de constituição de poderes, hierarquias,
Kopenawa revela de forma ao mesmo tempo engajamentos com a política estatal.
conceitualmente complexa e afetivamente car- Mesmo com tais avanços, ainda me parece
regada as imagens dos xapiri – imagens dos indispensável aprofundarmos a crítica a certas
ancestrais animais que se transformaram no imagens da política e do Estado que se repro-
primeiro tempo -, de onde provém cantos e duzem na etnologia americanista e aos idiomas
conhecimentos cujas diferenças são paulati- pelos quais tratamos o problema (por exemplo,
namente reveladas ao longo de sua narrativa. a noção do estado como “Um”, que coloca mais
Por meio de sua agência xamânica, Kopenawa problemas do que soluções, ou nossa tendência
é capaz de mobilizar agentes não humanos a associar hierarquia e dominação, algo que
como recursos interpretativo e recursos para a já havia sido criticado por Dumont). A meu
ação, construindo uma forma de ação política ver, uma saída necessária para esses dilemas é
em que a alteridade aparece claramente como a ampliação do entendimento sobre quais, e
fonte importante de agência. como, seriam as formas ameríndias de descrição
Em suma, no Chaco, nos Andes ou na e análise do que se possa chamar de “política”
Amazônia, as conexões parciais entre ontologias – sabendo que esse termo será, sempre, um
indígenas e instituições estatais evidenciam a equívoco (VIVEIROS DE CASTRO, 2004).

63
Digo isso em dois sentidos. Devemos, em pri- ameríndios de tornar a política visível e eficaz.
meiro lugar, tratar a noção de forma como um Outro sentido diz respeito, claro, ao modo
problema e uma ferramenta teórico-etnográfica como intelectuais indígenas (na universidade
potente. Conforme Strathern (1988), a capaci- ou fora dela) vêm formulando suas próprias
dade de influenciar o curso da ação de alguém questões, circunscrevendo os problemas e ofe-
depende das formas tomadas pelas pessoas ao recendo soluções originais a eles.
agir. A política, portanto, deve ter uma forma, Muitas questões permanecem em aberto:
uma estética, e que sua investigação, como já como lidar com as micropolíticas do cotidia-
sugeri alhures (GUERREIRO, 2015a), pode ser no, que eventualmente mobilizam complexas
uma importante visa de acesso para os conceitos técnicas de manipulação e vigilância dos cor-
e práticas indígenas da política. Demonstrei pos? Em que consiste isso que chamamos de
como parte dos problemas clássicos em torno “hierarquia”, sobretudo em contextos multico-
da chefia xinguana (como as relações entre cen- munitários (como no Alto Xingu, no Noroeste
tralização e faccionalismo, hereditariedade e Amazônico, entre o município de São Paulo e
fabricação, hierarquia e igualdade) poderia ser o sertão de Pernambuco…)? Como as filosofias
superada atentando para a estética assumida ameríndias da política têm produzido efeitos
pela chefia em diferentes socialidades, o que sobre seus envolvimentos com as políticas
permitiria dar conta tanto de movimentos de públicas? O que podemos esperar das ações
engrandecimento e produção de assimetrias políticas ameríndias nos próximos anos, espe-
quanto de movimentos de inversão ou disso- cialmente em processos eleitorais e situações de
lução de relações hierárquicas. Há ainda um crise? As respostas, como sempre, ainda exigi-
universo sobre a política a ser explorado nas rão muita etnografia e a crescente visibilização
artes verbais, nas artes visuais, na dimensão das formas ameríndias da política por seus
coreográfica das festas (ainda muito pouco próprios meios, que felizmente se multiplicam,
trabalhadas), na ornamentação corporal – as- ampliam suas esferas de influência e apontam
pectos da vida social que dariam acesso a modos alternativas aos projetos hegemônicos.

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Resumo

Chefia e política na América do Sul indígena: um balanço bibliográfico para além do modelo clastreano
Este artigo realiza um balanço dos principais debates sobre chefia e política nas terras baixas sul-americanas nas últimas
décadas. Tomando as principais teses de Pierre Clastres como ponto de partida, discute-se como elas influenciaram o
desenvolvimento de trabalhos que, a partir da década de 1980, realizaram aproximações e distanciamentos diversos
em relação à proposta clastreana. Em particular, o artigo explora como as abordagens das políticas ameríndias se
diversificaram a partir da ampliação dos conhecimentos etnográficos, históricos, arqueológicos e linguísticos sobre
os povos das terras baixas, marcada por um esforço de aproximação das filosofias sociais indígenas e de seus próprios
modos de descrição da política.
Palavras-chave: Chefia indígena; Políticas ameríndias; Pierre Clastres.

Abstract

Leadership and politics in indigenous South America: a bibliographic assessment beyond the Clastrean model
This article reviews the main debates about leadership and politics in the South American lowlands in the last decades.
Using Pierre Clastres’ main theses as a starting point, it was discussed how they have influenced the development of
studies that, from the 1980s onwards, produced different movements of convergence and divergence regarding the
Clastrean proposal. In particular, the article explores how approaches to Amerindian politics have diversified from the
widening of ethnographic, historical, archaeological and linguistic knowledge on lowland peoples, marked by an effort
to approach indigenous social philosophies and their own ways of describing politics.
Keywords: Indigenous leadership; Amerindian politics; Pierre Clastres.

Résumé

Leadership et politique dans l’Amerique du Sud indigène: une évaluation biliographique au-delà du modèle de Clastres
Cet article revue les principaux débats sur le leadership et la politique dans les basses terres d’Amérique du Sud au cours
des dernières décennies. En prenant les thèses principales de Pierre Clastres comme point de départ, on discute de la
manière dont elles ont influencé le développement d’œuvres qui, à partir des années 1980, ont produit des approches
et des distances différentes par rapport à la proposition de Clastres. L’article explore en particulier la façon dont les
approches de la politique amérindienne se sont diversifiées depuis l’élargissement des connaissances ethnographiques,
historiques, archéologiques et linguistiques sur les peuples des basses terres, marquées par un effort pour aborder les
philosophies sociales indigènes et leurs propres façons de décrire la politique.
Mots-clés: Leadership indigène; Politique amérindienne; Pierre Clastres.

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