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Anais | II Seminário Latino-Americano de Estudos em Cultura - SEMLACult

Actas | II Seminario Latinoamericano de Estudios en Cultura - SEMLACult


26, 27 e 28 de setembro de 2018, Foz do Iguaçu/PR, Brasil | claec.org/semlacult
Resumos Expandidos

Tornando-se homem: tessituras do falar de ‘nós’ a partir de ‘si’


Tornando hombre: tesitos del hablar de ‘nosotros’ a partir de ‘si’

Nelson Soutero Coutinho Neto1

Resumo

A presente proposta de trabalho tem como objetivo refletir sobre como se articulam as tessituras de construções
de masculinidades e homem entre três sujeitos-autores que se expressam por meio de suas autobiografias sendo
elas: Eu, de Ricky Martin (2010); Viagem Solitárias: memórias de um transexual trinta anos depois, de João W.
Nery (2011); e Na Minha Pele, de Lázaro Ramos (2017). Para tanto, será apresentada como instrumento à
reflexão a etnobiografia considerando que ao ‘falar de si’ no campo da micro-sócio-político-cultural há também
um ‘falar de nós’. Junto a esta etnobiografia estarão outros textos que auxiliarão quem lê a compreender como
pode ser possível a identificação dessas articulações que tecem e/ou rasgam os sentidos de homem e
masculinidade em cada uma das obras sugeridas

Palavras-Chave: autobiografia, gênero, masculinidades, etnobiografia, sexualidade

Resumen

La presente propuesta de trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre cómo se articulan las tesis de
construcciones de masculinidades y hombre entre tres sujetos-autores que se expresan por medio de sus
autobiografías siendo ellas: Yo, de Ricky Martin (2010); Viaje solitario: memorias de un transexual treinta años
después, de João W. Nery (2011); y en Mi Pecho, de Lázaro Ramos (2017). Para ello, será presentada como
instrumento a la reflexión la etnobiografía considerando que al 'hablar de sí' en el campo de la micro-socio-
político-cultural hay también un 'hablar de nosotros'. Junto a esta etnobiografía estarán otros textos que ayudarán
a quien lee a comprender cómo puede ser posible la identificación de esas articulaciones que tejen y / o rasgan
los sentidos de hombre y masculinidad en cada una de las obras sugeridas

Palabras claves: autobiografía, género, masculinidades, etnobiografía, sexualidad

1. Introdução
Habitualmente as categorias ‘mulher’ e ‘feminino’ foram2 tratadas, e talvez
ainda na atualidade sejam, como categorias misteriosas que precisam de uma certa iluminação
à descoberta e compreensão das relações de poderes entre os sexos. Com tal desenvolvimento
e, em algum aspecto a emancipação, do Estudos de Gênero tencionando o debate em torno

1
Mestrando no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-americanos e pós-graduação lato
sensu em Direitos Humanos na América Latina ambos pela Universidade Federal da Integração Latino-
americana. Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Paulista. Foz
do Iguaçu, Paraná, Brasil; nelsonscneto@gmail.com
2
Brevemente destaca-se alguns dos importantes nomes que discutiram as categorias de gênero e sexualidade em
que, por vezes, discute-se a questão da mulher e do feminino na sociedade: Bronislaw Malinowski (1884-1942),
Margaret Mead (1901-1971), Ruth Benedict (1887-1938), Carole Pateman (1940 -).

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26, 27 e 28 de setembro de 2018, Foz do Iguaçu/PR, Brasil | claec.org/semlacult
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das (micro e macro) relações de poderes entre ‘homens’ e ‘mulheres’, entretanto, a


‘(hiper)problematização’ do tornar-se mulher tendeu o tornar-se homem, como aponta
Sampaio e Garcia (2010, p. 82), ‘a ser compreendido como sendo mais simples e menos
misterioso, apresentando um processo de constituição subjetiva teoricamente menos
engenhoso”. Neste sentido, o presente trabalho não pretende traçar uma historicidade sobre os
Estudos de Gênero e suas transformações de pensamento no percorrer desta história. Mas,
trazer ao debate as categorias homem e masculino. Como categorias também necessárias para
uma contribuição ainda mais profunda aos Estudos de Gênero, considerando que, mesmo com
pesquisas aqui e acolá sendo produzidas sobre masculinidades, ainda há muito terreno a serem
explorados.
Se se torna mulher, assim como torna-se homem, este trabalho também se torna
algo. Pode-se, portanto, dizer que esta pesquisa é interseccional por não considerar uma
construção universal sobre os sentidos do que é ser ‘homem’ e do que é ser ‘masculino’,
portanto revela-se a perspectiva de que outras categorias fundantes que atravessam as
construções do sujeito social como raça/etnia e classe. Não obstante, a presente pesquisa
torna-se interdisciplinar por considerar a etnobiografia como um suporte adequado para
analise proposta pelo autor, mas também por considerar que, para além da metodologia
antropológica, olhares dos Estudos de Gênero e do próprio acumulo de conhecimento do
campo da psicanálise podem colaborar para uma reflexão mais rica e singular sobre as
construções para tornar-se homem e masculino.
Como é possível ser apreciado, o labor sobre este debate se constrói a partir de
uma complexa caixa de ferramentas para a ampliação reflexiva sobre as construções desses
homens e masculinidades. A etnobiografia apresenta-se, neste contexto, como uma chave de
fenda útil ao problematizar o pensamento sociológico clássico entre o individual e o coletivo,
o sujeito e o a cultura. Desse modo, a questão primeira que se apresenta ao dar luz uma obra
biográfica é: ao falar de ‘si’, nosso autobiógrafo também fala de ‘nós’? Este trabalho caminha
por um sentido de compreender que:
o conceito de indivíduo que se opera [...] não parece ser uma percepção estrita da
fórmula durkheimiana, em que o indivíduo se opõe à sociedade e à cultura. Pelo
contrário, pensa o indivíduo enquanto potência de individuação que, acionada a
partir da chave de uma relação entre pesquisador e pesquisa, produz uma relação
entre sujeitos. É neste sentido que emerge a conceituação de etnobiografia que
parece dar conta deste tratamento do sujeito, do indivíduo e da cultura.
(GONÇALVES, 2012, p. 29-30)

É descartada, aqui, a questão se uma obra biográfica fala de uma não-ficção ou


está no campo da literatura ficcional em torno de uma narrativa de vida. Ou seja, não interessa
à presente pesquisa se nosso autobiógrafo da própria vida diz a verdade sobre sua trajetória,
mas como escapam dessa narrativa uma construção mais ou menos comum em tono da ideia
de ideal de homem e de masculino. Se respondida a pergunta e justifica a escolha dessa
ferramenta antropológica, cai-se em outra questão, por qual motivo estas autobiografias? É
nela, tão somente nela, que se esconde nas palavras todas as chaves universais sobre o que é
ser homem e o que é masculinidade? Berenice Bento (2012, p. 47) traz à luz a interpretação
de que “a verdade dos gêneros não está no corpo, já nos diz a experiência transexual, mas nas
possibilidades múltiplas de construir novos significados para os gêneros”.

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É neste sentido que este artigo pretende abordar as três obras autobiográficas de
Lázaro Ramos (2017), João W. Nery (2011) e Ricky Martin (2010). Ou seja, compreender
não só as tessituras, suas convergências, mas também seus rasgos sobre masculinidades e
como estas categorias são operadas em suas narrativas de vida para a construção de cada
sujeito.

2. Conhecendo sujeitos autobiógrafos


Ainda hoje, em muitos campos das ciências humanas, a autobiografia é vista como
algo a ser explicado e não algo que pode explicar. Neste sentido, a etnobiografia proposta
neste trabalho tem por objetivo subverter esta ordem e colocar estes sujeitos-autores não
como um objeto de estudo, mas como indivíduos inseridos em uma sociedade onde um
complexo conjunto de tessituras e rasgos que compõem estes mesmos sujeitos enquanto
indivíduos na sociedade. Em síntese, o presente projeto tem como proposta não pensar a
construção de masculinidade ou o torna-se homem a parte de uma análise quantitativa de
dados colhidos por meio de entrevistas, ou até mesmo de outros lugares do meio digital. O
que se pretende aqui uma analise de como aparecem estas percepções e construções e
masculinidades a partir de narrativas que se propuseram, para além do exercício de narrar suas
vidas à um/a repórter ou antropólogo/a, tomaram para si o próprio livro e publicaram suas
vidas.
Assim, o que difere esta pesquisa das análises discursivas de obras literárias clássicas,
ou até mesmo de tradicionais etnografias está justamente em trabalhar com a investigação
interdisciplinar a partir do próprio discurso sobre masculinidade inseridas nas obras de Lázaro
Ramos, João W. Nery e Rick Martin:
A problematização das ideias de indivíduo e sociedade pela antropologia tem
propiciado novas conceituações que procuram dar conta das relações entre razão
cultural, construção de personagens etnográficos e sujeitos subjetivados. A partir
desse horizonte de reflexão, surge, a partir da tensão produtiva entre os temas
clássicos da biografia e etnografia, uma nova formulação teórica, qual seja, a de
etnobiografia. A partir de experiências individuais de cada um dos atores ancorados
em suas percepções culturais, estrutura-se uma narrativa que procura dar conta
desses dois aspectos na simultaneidade, propondo de uma só vez e a um só momento
a não mais antagônica relação entre subjetividade e objetividade, cultura e
personalidade. (GONÇALVES, MARQUES et CARDOSO, 2012, p. 9)

3. Sobre corpos narrados


O que segue nesta parte do trabalho é a exposição sobre uma possível costura entre
três trechos das obras que trazemos para a análise onde são abordadas as experiências dos
sujeitos-autores enquanto homens: homossexual cisgênero, heterossexual cisgênero e
transexual heterossexual.
Transformei-me literalmente num marginal, pois vivia à parte, à margem. Não
pertencia nem ao grupo majoritário heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo
minoritário e discriminado. Não me sentia mulher nem homossexual. Ainda
desconhecia todas as categorias "inventadas" em meados do século XX. Sabia que
não era aprovado pela maioria. Em que grupo existente me enquadrava? [...] Quando
sentia medo, pelo menos pressupunha um objeto, uma ameaça, algo que eu pudesse

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de algum modo contornar ou dele fugir. Porém, nessa angústia nada me ameaçava
claramente. Não havia um objeto a ser enfrentado para prosseguir minha
estranha caminhada existencial. Percebi, então, que o "sem sentido" e o "sem
valor" da minha angústia me tornavam um estrangeiro neste mundo tão cheio de
categorias. A ironia era precisar de um rótulo, do que todos tentam fugir. (NERY,
2011. p. 45 – grifo do autor)

Meu corpo vivia numa dúvida de até onde poderia ir. Eu pensava sempre em como
meu corpo devia ocupar os espaços. Eu me sentia dono dele, pela forma como a
minha família me tratava, e sabia que eu mesmo poderia definir meus limites, mas o
mundo começava a me dar sinais de que talvez não fosse simples assim.
(RAMOS, 2017. p. 36 – grifo do autor)

[...] o problema não eram tanto os rumores sobre minha sexualidade. O problema
real era eu mesmo não saber como me sentia sobre o assunto. Apesar de ter tido
relacionamentos com homem depois de me separar do meu primeiro amor, ainda
não estava pronto para me aceitar como gay. Meu momento ainda não havia
chegado, e, apesar de todos sabermos agora que os rumores se baseavam na verdade,
na minha cabeça, ainda não era um fato. Era um assunto que constantemente eu
precisava enfrentar e me causava muito sofrimento e ansiedade. Toda vez que
alguém escrevia em uma matéria que eu era um homossexual, cada vez que me
perguntavam isso em uma entrevista - e não muito sutilmente -, eu me afastava
ainda mais da minha verdade. os rumores e as perguntas só aumentavam minha
insegurança e minha autorrejeição; eles me faziam lembrar todos os motivos pelos
quais não me sentia bem comigo mesmo. Às vezes, sentia que me odiava. Como isso
era apresentado sempre sob um ângulo tão negativo, como uma coisa escandalosa e
ruim, meu desejo de negar meus sentimentos era reforçado. E como naquele
momento eu estava longe de estar pronto para me assumir, o único resultado era que
tudo me causava uma enorme dose sofrimento. (MARTIN, 2010. p.148)
Sob uma rápida leitura e independente o leitor desapercebido poderia ler estes trechos
como narrativas de vida autobiografadas que tratam sobre particularidades em torno da
transexualidade, como no caso de João W. Nery; ou sobre a homossexualidade, no caso do
Ricky Martin; ou sobre ser heterossexual e negro – o que já daria um conjunto bastante
complexo para a análise, entretanto, o que se pretende é extrair não só as categorias:
sexualidade, identidade de gênero, raça e etnia das obras, mas como esses corpos, enquanto
masculinos, se narram no processo de escrita.
Observa-se então uma tessitura, ou seja, um encontro quando estas obras são cruzadas.
Há uma intersecção entre estas masculinidades não hegemônicas. Um desencontro, um não-
lugar por não se compreender e se aceitar enquanto homossexual; ou não encontrar o lugar da
opressão contra o próprio corpo que não se encaixa em si; ou quando os outros dizem que
onde se está não é o ‘seu lugar’ de fato.
Além disso: “[...] há uma estética da enunciação, que se abre a algo de novo e permite
emergir a potência do sujeito e o sujeito em sua potencialidade” (BUTLER, 2015, p. 199).
Esta estética da enunciação pode nos revelar como se dão construções particulares
atravessadas pelas mais diferentes relações, assim que se situa este trabalho.

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4. Concluindo
O pouco espaço que temos não há como nos aprofundar ainda mais sobre estes
trançados entre as masculinidades elegidas para a análise. Entretanto, acredita-se que é
possível deixar o caminho aberto para que mais reflexões sejam feitas dentro desse tornar-se
homem por perceber que:
Tornar-se homem tem cada vez menos se confundido com adotar uma identidade
uniforme, que remete a um conjunto igualmente uniforme de representações. A
abertura à pluralidade e à invenção de si têm sido projetos que paulatinamente têm
se tornados mais possíveis ao sujeito de sexo masculino. Nesse sentido, podemos
pensar que, em vez de instaurar uma crise no universo da masculinidade, o momento
atual pode ser especialmente profícuo por abrir novas possibilidades de se reinventar
o dito "sexo forte". O movimento de questionamento dos estereótipos da virilidade
clássica pode ser, então, particularmente válido por abrir aos homens novos meios
para a constituição de uma existência singular e para a emergência de uma
subjetividade mais criativa. O abandono do esforço diário para se auto afirmar como
viril, que tão marcadamente caracterizou o cotidiano dos sujeitos de sexo masculino,
pode favorecer o deslocamento dessa energia para o campo da afetividade e
possibilitar a maior exploração de funções antes menos valorizadas pelos homens,
como a paternidade. Desse modo, o momento contemporâneo pode ser benéfico para
os homens por permitir-lhe uma reinvenção mais livre dos estereótipos de gênero
aprisionadores por tanto tempo propagados pelas sociedades ocidentais. (SOUSA
SAMPAIO, AMORIM GARCIA, 2010, p. 98).

Referências

BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2017.

BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Autêntica, 2015.

GONÇALVES, M. A. Etnobiografia: biografia e etnografia ou como se encontram pessoas e


personagens. In. Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 19-42,
2012.

MARTIN, Ricky. Eu. São Paulo: Planeta, 2010.

RAMOS, Lázaro. Na Minha Pele. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

SOUSA SAMPAIO, R.; AMORIM GARCIA, C. Dissecando a masculinidade na


encruzilhada entre a psicanálise e os estudos de gênero. Psicologia em Revista, v. 16, n. 1, p.
81-102, 2010. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682010000100007>.
Acessado em 10 de mai. de 2018.

W. NEY, João. Viagem Solitária - Memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo:
Leya, 2011.

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