Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nesses tempos em que vivemos, pensar sobre gênero – até mesmo pensar
cientificamente – tornou-se um ato de resistência. É por conta disso que pretendo1
retomar aqui, uma questão que me coloco desde o início de minha trajetória como
pesquisadora: é possível aplicar a categoria, ou conceito, gênero ao estudo das
sociedades medievais? Essa pergunta me parece ainda pertinente não só por conta
da avassaladora onda de negacionismo científico e violência de gênero que
caracterizam os dias atuais, mas tem também um fundamento acadêmico. Qual
seja, é ainda comum ouvir nos corredores de cursos de História, Brasil afora, que
nós, medievalistas, vivemos em constante anacronia porque usamos ferramentas
1 Permita-me, leitor, usar a primeira pessoa do singular neste artigo. Parto sempre da ideia de que o
conhecimento só pode ser construído coletivamente, por isso sou adepta da utilização do plural em
textos acadêmicos. Ocorre que, ao se tratar especialmente, de questões de gênero, este mesmo deve
estar à frente da reflexão que, neste caso, é feita por alguém que se identifica com o sexo feminino.
7
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
textos escritos por mulheres (Inglaterra, s. XIV). Projeto de Doutorado. Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019.
8
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
Gênero,4 o maior no Brasil sobre essa área de estudo. Àquela altura, começava
ainda minha pesquisa para o doutorado, e a questão me motivava na medida em
que pretendia perceber as marcas identitárias de gênero na formação da Ordem
dos Frades Pregadores, os dominicanos.
Embora, desde a graduação, eu não tenha deixado de estudar e refletir
sobre gênero, consciente do papel que esse tipo de estudo tem para a sociedade e,
consequentemente, para a academia, foi em 2018 que me aferrei de forma mais
plena a suas premissas. O contexto político no qual estamos inseridas exige, do
meu ponto de vista, que nós, historiadoras e educadoras, tomemos posição clara a
respeito da centralidade do pensamento científico para a construção de uma
sociedade mais justa. E isso requer, entre outros conhecimentos e práticas, que
discutamos e reflitamos sobre as diferenças sexuais atribuídas culturalmente aos
corpos biológicos. Por isso acredito ser fundamental continuar me perguntando
sobre a pertinência dos estudos de gênero e sua aplicação à história medieval.
A pergunta permanece, mas as respostas têm variado ao longo desses anos.
Acredito que as mudanças se devam a um conjunto de fatores, que já adianto:
primeiro o aprofundamento das leituras sobre a categoria gênero; segundo, o atual
contexto político que me fez assumir o feminismo como bandeira de luta,
contrariando o que as pioneiras na área entendiam como o correto; e, por fim, o
diálogo com jovens pesquisadoras e pesquisadores, que atuam na área e já
nasceram em um contexto de maior igualdade de gênero, o que dá a elas e eles,
creio eu, uma perspectiva mais lúcida sobre o assunto.
Começo, então, atestando o óbvio, necessidade recorrente nos dias atuais:
acredito que a reflexão sobre gênero seja legítima pois as diferenças de gênero
ainda estão profundamente enraizadas na sociedade contemporânea. É crença
generalizada que a biologia determina nossos sentimentos, nossos gostos, nossos
comportamentos, nossa forma de pensar, falar, enfim, nossa forma de existir. E
essa constatação coloca um outro problema, que precisa ser enfrentado com
4FORTES, Carolina Coelho. É possível uma história medieval de gênero? Considerações a respeito
da aplicação do conceito gênero em história medieval. In: Anais do Seminário Internacional fazendo
Gênero 7. Florianópolis, 2006. Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/fg7/artigos/C/Carolina_Coelho_Fortes_50.pdf
9
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
cuidado: as relações entre presente e passado. Problema que enseja uma miríade
de outros problemas, os quais não tenho competência para resolver, mas que nos
alerta para um dilema metodológico. Existem diferenças de gênero na sociedade
contemporânea e as percebemos como tais; a categoria teórica gênero é também
uma invenção contemporânea que, justamente, é resultado dessas diferenças.
Desta forma, como poderíamos querer aplicá-la a uma outra realidade, a esse
Outro medieval, tão distante do nosso próprio mundo? Pensar a esse respeito é ao
que me proponho agora.
1. O Conceito Gênero
Para tanto, buscamos uma tentativa de definição, fundamentada nas
considerações da historiadora Joan Scott, que entende gênero como o termo
utilizado para teorizar a questão da diferença sexual.5 Primeiramente utilizado
pelas feministas, especialmente a partir da década de 1970, para acentuar o
caráter social das distinções baseadas no sexo, rejeitava o determinismo biológico
implícito em palavras como "sexo", por exemplo. A categoria gênero surge, então,
priorizando o caráter relacional entre mulheres e homens, e pode ser entendida
como a organização social da relação entre os sexos. Desta forma, a compreensão
dos sexos não se dá pelo estudo dos dois separadamente. Ou seja, mulheres e
homens são definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão destes seria
possível se fossem estudados em separado.
Para Joan Scott, gênero como categoria de análise se baseia na relação entre
duas proposições: “gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira
primária de significar relações de poder.”6 Enquanto a primeira proposição se
refere ao “processo de construção das relações de gênero” e sublinha a
importância “dos procedimentos de diferenciação pelos quais, em cada contexto
histórico, são formuladas e reformuladas, em termos dicotômicos, os conteúdos
5 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, v. 20, n.
2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
6 SCOTT, Op. Cit., 1995, p. 86.
10
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
11
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
Scott já via então uma tendência perigosa, porque limitadora e, ouso dizer, até
mesmo misógina, nos estudos que aplicavam o termo gênero: eram
demasiadamente descritivos, como sói ocorrer ainda hoje. 12 Além disso, em muitos
casos, gênero era – e continua sendo - utilizado como sinônimo de mulheres, ou
mesmo de mulher, no singular indistinto e restritivo. Sendo descritivas apenas, as
abordagens de gênero referem-se à existência de fenômenos sem interpretá-los,
explicá-los ou atribuir-lhes uma causalidade. Já a abordagem teórica defendida por
ela implica na apresentação de uma ordem causal, na formulação de teorias sobre a
natureza dos fenômenos.13
Um dos questionamentos da História de Gênero se refere a como as
hierarquias são construídas e legitimadas. Esta forma de abordar a História indica
um estudo que se preocupa com processos, postos em movimento por causas
múltiplas, e que se evidenciam através da retórica e dos discursos. Voltando-se,
assim, contra o estudo das origens, as explicações baseadas em causas únicas, e as
ideologias. Para as estudiosas de gênero, é uma perspectiva interessante entender
a identidade política – tal como as instituições sociais e os símbolos culturais –,
como forma de produção do saber, e como fazendo parte do mesmo projeto
político o feminismo e os estudos acadêmicos de gênero.14 Desta forma, as análises
12 Embora a própria Scott se furte a apontar os exemplos a que se refere quando menciona o
tratamento descritivo em obras que lançam mão da categoria gênero, elencamos aqui alguns que
tratam do Medievo, na língua materna da autora: BENNETT, Judith. Women in the Medieval English
Countryside: Gender and Household in Brigstock Before the Plague. New York: Oxford University
Press, 1987; BITEL, Lisa. Land of Women: Tales of Sex and Gender from Early Ireland. Cornell;
University Press, 1996; HOWELL, Martha. The Marriage Exchange: Property, Social Place, and
Gender in Cities of the Low Countries, 1300-1550. Chicago: University of Chicago Press, 1998;
MORRIS, Kathleen. Sorceress or Witch? The Image of Gender in Medieval Iceland and Northern
Europe. Lanham: University Press of America, 1991; VAN HOUTS, Elisabeth. Memory and Gender in
Medieval Europe, 900-1200. Londres: Macmillan, 1999.
13 SCOTT, Op. Cit., 1995, p.75.
14 Alguns exemplos de obras historiográficas sobre o período medieval em que relações políticas de
gênero são abordadas: ERLER, Mary & KOWALESKI, Maryanne. Women and Power in the Middle
Ages. Athens: University of Georgia Press, 1988; SHADIS, Miriam. Berenguela of Castile (1180-1246)
and political women in the High Middle Ages. New York: Macmillam, 2009; PARSONS, John. (ed.)
Medieval Queenship. New York, Palgrave Macmillan, 1998; TINKLE, Theresa. Gender and Power in
Medieval Exegesis. New York: Macmillam, 2010; JANTZEN, Grace. Power, Gender and Christian
Mysticism. Cambridge; University Press, 1995; KARRAS, Ruth Mazo. From Boys to Men: formations of
masculinity in Late Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003;
KITCHEN, John. Saint´s Lives and the Rhetoric of Gender. Male and Female in Merovingian
Hagiography. Nova York: Oxford University Press, 1998.
12
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
13
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
19 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea: vidas de santos. [Tradução do latim, apresentação, notas e
seleção iconográfica de Hilário Franco Júnior]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
20 SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma
14
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
15
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
16
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
25 Ibidem. p. 8.
26 VELOSO, Wendell. Op. Cit., p. 125-141.
27 BARREIRO, Carolina. Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de textos escritos
por mulheres (Inglaterra, s. XIV). Projeto de Doutorado submetido ao PPGH/UFRGS. Porto Alegre:
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande Sul, 2019.
28 Barreiro se apoia, sobretudo, nas seguintes obras de Butler: BUTLER, Judith. Excitable speech: a
politics of the performative. Nova York: Routledge, 1997 e a já referida Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
17
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
29 Ibidem.
30 BARREIRO, Carolina. Op. Cit, p. 4.
18
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
Estaria configurando outro gênero possível que não masculino nem feminino? (3)
Ou estaria somente confluindo entre flexibilidades possíveis das margens?”31
Passo a apresentar uma releitura de minha dissertação de mestrado,
intitulada Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: Os casos de Maria e
Madalena (2003),32 à luz das propostas e aplicações da categoria gênero por
Wendell Veloso e Carolina Barreiro. Por incrível que pareça, no começo dos anos
2000, trabalhar com gênero ainda não era algo exatamente bem visto pela
academia brasileira. Os estudos de gênero eram tidos ainda com muita
desconfiança, porque reputados como, no mínimo, perfumaria e, no máximo,
preocupação de “feministas de butique”. Na minha inocência de mestranda, tinha já
alguma consciência desses preconceitos, mas era àquele estudo que eu realmente
queria me dedicar.
Tinha em mãos o próprio documento/monumento de que trata Le Goff.33 A
Legenda Aurea,34 essa compilação hagiográfica que conta com quase duzentas
vidas de santos, é uma obra extensa e, à primeira vista, enfadonha. Isso porque seu
autor, o frade pregador Jacopo de Varazze, segue à risca a fórmula literária que se
consagra ao longo da Idade Média, fazendo de seus personagens figuras
predestinadas desde o nascimento à salvação, à pureza, que se prestavam a
instruir com seus exemplos os fiéis em matéria de religião. Os santos, assim, são
modelos de perfeição cristã. E, portanto, dão a ver o que aquela sociedade entendia
como sendo o mais valoroso em termos de humanidade.
Tratando do lugar social do qual emitia seu discurso, na dissertação me
preocupei em estabelecer Jacopo como um homem que, até a primeira redação de
sua grande obra, mal havia tido contato com mulheres reais. Ingressou em um
convento por volta dos quatorze anos de idade,35 e ainda estava em um convento
quando escreveu sua Legenda Aurea. Minha inquietação era de que ele não falava
31 Ibidem.
32 FORTES, Carolina Coelho. Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: os casos de Maria
e Madalena. Dissertação de Mestrado: Rio de Janeiro, Programa de Pós Graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.
33 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. Memória e História. Campinas: Unicamp, 1990.
34 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
35 REAMES, Sherry L. The Legenda Aurea: A Reexamination of Its Paradoxical History. Wiscosin:
19
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
sobre mulheres por experiência própria, mas as imaginava. Além disso, sua obra
fala sobre santos, criaturas virtuosas, preferidas da graça divina, idealizadas. Ele
sequer tinha em mente a mulher real como seu público direto. Contudo, escrever
sobre ela – e aqui ele fala sobre a Mulher, e não as mulheres – não seria também
uma forma de se relacionar com ela? Entendia-a como outra, como diferente, como
feminina. E, atribuindo-lhe características, discorrendo sobre ela e sobre suas
virtudes, de certa forma, entrava em contato com ela. É claro que este
relacionamento assume a forma unilateral, porque lidamos com uma fonte
literária, na qual a voz masculina abafa a feminina, mas nem por isso a exclui.
Marcadamente as identidades de gênero se constroem em relação uma com a
outra, dado a cultura diacrônica própria da sociedade medieval. E, sem dúvida,
gênero pode ser utilizado para o período medieval também como uma forma de
significar as relações de poder, sendo o masculino – ao menos na maioria das
fontes eclesiásticas – sempre entendido como superior ao feminino.
Com base na vida de dois santos (Domingos e Vicente) e duas santas (Maria
e Maria Madalena), defendemos a hipótese de que o compilador entendia a
santidade feminina como marcadamente masculinizada. Ou seja, para que
obtivessem papel de destaque como o ápice da perfeição cristã, as mulheres
deveriam apresentar alguns traços masculinos. Acreditamos, portanto, que o
padrão de santa privilegiado por Jacopo de Varazze é o da mulher, além de
caridosa, piedosa e casta, ativa – ou seja, aquela que tem iniciativa, toma decisões e
expõe com veemência suas idéias. Jacopo torna suas santas, desta forma, mulheres
masculinizadas. Tal formulação decorre da perspectiva predominante na
sociedade medieval de relegar as mulheres ao plano inferior. Masculinizando as
santas, Jacopo tornava-as dignas de serem veneradas, possibilitando, desta forma,
que sua imagem pudesse servir como a de uma personagem didática, que ensinaria
aos fiéis, através de suas virtudes e prodígios, a perfeição cristã.36
À luz das contribuições de Veloso e Barreiro, é possível pensar que o
36Estejamos atentos para o fato de que ensinar, instruir, não pressupõe o estabelecimento de
modelos. Assim, é perfeitamente coerente que a Legenda Aurea buscasse instruir seus
consumidores sem, no entanto, estabelecer regras de comportamento para eles.
20
Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.
modelo que Jacopo estabelece para as santas escapa do que a própria Legenda
Aurea estabelece como o feminino corrente, mais comum. As santas de Jacopo mal
podem ser consideradas mulheres exemplares, na medida em que, não sendo
biologicamente masculinas, o são em parte em suas ações e características. Não são
inteiramente homens nem completamente mulheres, abrindo uma outra via de
identificação de gênero que quebra com a dualidade que tão pesadamente
impomos – hoje e no medievo – sobre os corpos sexuados.
Em suma, respondendo à questão que inicia nossa fala, não só é possível
uma história medieval de gênero, mas várias. Principiei essa trajetória de pesquisa
partindo de uma perspectiva de gênero exclusivamente binária que levava em
conta o caráter de construção e relacional de masculinidades e feminilidades. Esta
não atentava, no entanto, para as nuances em que a identidade de gênero se
expressa. Contribuições mais recentes, especialmente a aplicação da reflexão sobre
gênero a objetos de pesquisa inseridos no contexto medieval, abrem o leque de
possibilidades para análises que consideram a plasticidade, a flexibilidade e
riqueza das experiências e representações de gênero na Idade Média.
21