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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

ESTUDOS DE GÊNERO, HISTÓRIA E A IDADE MÉDIA:


RELAÇÕES E POSSIBILIDADES

GENDER STUDIES, HISTORY AND MIDDLE AGES: RELATIONS AND


POSSIBILITIES

Carolina Coelho Fortes


Universidade Federal Fluminense

Resumo: Nesse artigo, pretende-se discutir Abstract: In this article, we intend to


a categoria gênero e refletir sobre sua discuss the gender category and reflect on
adequação ao estudo da História Medieval. its suitability for the study of Medieval
Para tanto, buscaremos delinear os History. We will try to outline the main
principais aspectos da definição do aspects of the definition of the concept, in a
conceito, em uma primeira possibilidade de first possibility of approach. Then we will
abordagem. Em seguida buscaremos seek to legitimize its use for the study of
legitimar o seu uso para o estudo do the Middle Ages, and finally, we will discuss
Medievo, e por fim, discutiremos sua its application in two recent researches,
aplicação em duas pesquisas recentes, que which have led to a repositioning regarding
levaram a um reposicionamento quanto às the hypotheses defended by the author in
hipóteses defendidas pela autora no the past.
passado. Keywords: Gender Studies – Medieval
Palavras-chave: Estudos de Gênero – History – Theory of History
História Medieval – Teoria da História.

Nesses tempos em que vivemos, pensar sobre gênero – até mesmo pensar
cientificamente – tornou-se um ato de resistência. É por conta disso que pretendo1
retomar aqui, uma questão que me coloco desde o início de minha trajetória como
pesquisadora: é possível aplicar a categoria, ou conceito, gênero ao estudo das
sociedades medievais? Essa pergunta me parece ainda pertinente não só por conta
da avassaladora onda de negacionismo científico e violência de gênero que
caracterizam os dias atuais, mas tem também um fundamento acadêmico. Qual
seja, é ainda comum ouvir nos corredores de cursos de História, Brasil afora, que
nós, medievalistas, vivemos em constante anacronia porque usamos ferramentas

1 Permita-me, leitor, usar a primeira pessoa do singular neste artigo. Parto sempre da ideia de que o
conhecimento só pode ser construído coletivamente, por isso sou adepta da utilização do plural em
textos acadêmicos. Ocorre que, ao se tratar especialmente, de questões de gênero, este mesmo deve
estar à frente da reflexão que, neste caso, é feita por alguém que se identifica com o sexo feminino.

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conceituais hodiernas para analisar um passado demasiado distante.


Esse tipo de argumento é, no mínimo, raso e, certamente, machista. Em
muitos casos, os mesmos que entendem Gênero como mera perfumaria, não se
incomodam, por exemplo, em lançar mão de conceitos como classe e ideologia,
também instrumentos de análise construídos na contemporaneidade, para
compreender um passado que não se pensava nesses termos. Como percurso para
questionar esse posicionamento, e questionar a própria forma como tenho
entendido Gênero, debruçar-me-ei sobre uma primeira definição dessa categoria, e
as críticas que podem ser feitas a ela. Em um segundo momento, apresentarei dois
trabalhos recentes, de jovens pesquisadores - Wendell dos Reis Veloso2 (UFRRJ) e
Carolina Niedermeier Barreiro3 (UFRGS), que trabalham com os Estudos de
Gênero, para então, partindo de suas considerações, reavaliar as hipóteses que
defendi ainda na minha dissertação de mestrado, nos idos de 2003.
Um dos principais elementos dos Estudos de Gênero é seu caráter
relacional, ou seja, a necessidade de uma análise baseada ao mesmo tempo nos
aspectos femininos e masculinos estudados. Mas como esse caráter relacional pode
se estabelecer quando o período no qual se aplica o conceito é a Idade Média, que
dá ao homem o monopólio quase absoluto sobre a escrita? Responder a essa
pergunta é um dos nossos objetivos nesse artigo, juntamente com re-
considerações a respeito do próprio conceito, à luz de novas pesquisas sobre a
questão de gênero no Medievo.
Porque a questão “é possível uma história medieval de gênero” é uma
pergunta epistemologicamente válida? Principio admitindo que essa não é a
primeira vez que me faço essa pergunta. Em 2009 refleti mais detidamente sobre
ela pela primeira vez, ao apresentar uma comunicação no congresso Fazendo

2 VELOSO, Wendell dos Reis. Os Continentes, os Conjugati e os Outros: Identidade Cristã e a


Instituição da Sexualidade Divina nos Escritos de Agostinho de Hipona (Séculos IV e V). Tese de
Doutorado. Seropédica: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, 2019.
3 BARREIRO, Carolina Neidermeier. Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de

textos escritos por mulheres (Inglaterra, s. XIV). Projeto de Doutorado. Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019.

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Gênero,4 o maior no Brasil sobre essa área de estudo. Àquela altura, começava
ainda minha pesquisa para o doutorado, e a questão me motivava na medida em
que pretendia perceber as marcas identitárias de gênero na formação da Ordem
dos Frades Pregadores, os dominicanos.
Embora, desde a graduação, eu não tenha deixado de estudar e refletir
sobre gênero, consciente do papel que esse tipo de estudo tem para a sociedade e,
consequentemente, para a academia, foi em 2018 que me aferrei de forma mais
plena a suas premissas. O contexto político no qual estamos inseridas exige, do
meu ponto de vista, que nós, historiadoras e educadoras, tomemos posição clara a
respeito da centralidade do pensamento científico para a construção de uma
sociedade mais justa. E isso requer, entre outros conhecimentos e práticas, que
discutamos e reflitamos sobre as diferenças sexuais atribuídas culturalmente aos
corpos biológicos. Por isso acredito ser fundamental continuar me perguntando
sobre a pertinência dos estudos de gênero e sua aplicação à história medieval.
A pergunta permanece, mas as respostas têm variado ao longo desses anos.
Acredito que as mudanças se devam a um conjunto de fatores, que já adianto:
primeiro o aprofundamento das leituras sobre a categoria gênero; segundo, o atual
contexto político que me fez assumir o feminismo como bandeira de luta,
contrariando o que as pioneiras na área entendiam como o correto; e, por fim, o
diálogo com jovens pesquisadoras e pesquisadores, que atuam na área e já
nasceram em um contexto de maior igualdade de gênero, o que dá a elas e eles,
creio eu, uma perspectiva mais lúcida sobre o assunto.
Começo, então, atestando o óbvio, necessidade recorrente nos dias atuais:
acredito que a reflexão sobre gênero seja legítima pois as diferenças de gênero
ainda estão profundamente enraizadas na sociedade contemporânea. É crença
generalizada que a biologia determina nossos sentimentos, nossos gostos, nossos
comportamentos, nossa forma de pensar, falar, enfim, nossa forma de existir. E
essa constatação coloca um outro problema, que precisa ser enfrentado com

4FORTES, Carolina Coelho. É possível uma história medieval de gênero? Considerações a respeito
da aplicação do conceito gênero em história medieval. In: Anais do Seminário Internacional fazendo
Gênero 7. Florianópolis, 2006. Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/fg7/artigos/C/Carolina_Coelho_Fortes_50.pdf

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cuidado: as relações entre presente e passado. Problema que enseja uma miríade
de outros problemas, os quais não tenho competência para resolver, mas que nos
alerta para um dilema metodológico. Existem diferenças de gênero na sociedade
contemporânea e as percebemos como tais; a categoria teórica gênero é também
uma invenção contemporânea que, justamente, é resultado dessas diferenças.
Desta forma, como poderíamos querer aplicá-la a uma outra realidade, a esse
Outro medieval, tão distante do nosso próprio mundo? Pensar a esse respeito é ao
que me proponho agora.

1. O Conceito Gênero
Para tanto, buscamos uma tentativa de definição, fundamentada nas
considerações da historiadora Joan Scott, que entende gênero como o termo
utilizado para teorizar a questão da diferença sexual.5 Primeiramente utilizado
pelas feministas, especialmente a partir da década de 1970, para acentuar o
caráter social das distinções baseadas no sexo, rejeitava o determinismo biológico
implícito em palavras como "sexo", por exemplo. A categoria gênero surge, então,
priorizando o caráter relacional entre mulheres e homens, e pode ser entendida
como a organização social da relação entre os sexos. Desta forma, a compreensão
dos sexos não se dá pelo estudo dos dois separadamente. Ou seja, mulheres e
homens são definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão destes seria
possível se fossem estudados em separado.
Para Joan Scott, gênero como categoria de análise se baseia na relação entre
duas proposições: “gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira
primária de significar relações de poder.”6 Enquanto a primeira proposição se
refere ao “processo de construção das relações de gênero” e sublinha a
importância “dos procedimentos de diferenciação pelos quais, em cada contexto
histórico, são formuladas e reformuladas, em termos dicotômicos, os conteúdos

5 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, v. 20, n.
2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
6 SCOTT, Op. Cit., 1995, p. 86.

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aparentemente fixos e coerentes do masculino e do feminino”,7 a segunda


proposição se refere à pertinência do gênero como categoria de compreensão e
explicação histórica de outras relações de poder. Scott acredita que o historiador
de gênero deve desconstruir os conteúdos fixos do masculino e do feminino,
mostrar sua fragilidade e polissemia, expor a seletividade dos procedimentos pelos
quais eles adquiriram um sentido único. O aspecto essencial do gênero formulado
por Scott é expor as estratégias de dominação que sustentam a construção
binária da diferença entre os dois sexos.
Gênero também é o “saber a respeito das diferenças sexuais”.8 Scott entende
saber como foi definido por Foucault, ou seja, como compreensão produzida pelas
culturas e sociedades sobre as relações humanas, nesse caso, sobre as relações
entre homens e mulheres. Tal saber é sempre relativo, nunca é demais lembrar. Os
usos e significados desse saber nascem de uma disputa política, e são os meios
pelos quais as relações de poder (de dominação e subordinação) são construídas.
“O saber é uma forma de organizar o mundo e, como tal, não antecede a
organização social, mas é inseparável dela.” 9
Dessa afirmação segue-se que gênero é a “organização social da diferença
sexual”. O que não quer dizer que gênero se baseie nas diferenças fixas e "naturais"
entre homens e mulheres, mas que este é o “saber que estabelece significados para
as diferenças corporais”.10 Esses significados variam de acordo com as culturas, os
grupos sociais e o tempo, já que o corpo não determina univocamente como a
divisão social será definida. Nosso saber sobre o corpo se reflete nas diferenças
sexuais, “e este saber não pode ser isolado de suas relações numa ampla gama de
contextos discursivos.”11 Logo, a organização social não se baseia unicamente na
diferença sexual – a diferença sexual não é o único motor da organização social –
mas, sem dúvida, é um dos fatores que a estrutura.
Tendo escrito seu artigo seminal a respeito há mais de três décadas, Joan

7 VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott.


Cadernos Pagu, 3, 1994. p. 67.
8 SCOTT, Joan W. Prefácio à Gender and Politics of History. Cadernos Pagu, 3, 1994, p. 12.
9 Ibidem, p.13.
10 Idem.
11 Idem.

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Scott já via então uma tendência perigosa, porque limitadora e, ouso dizer, até
mesmo misógina, nos estudos que aplicavam o termo gênero: eram
demasiadamente descritivos, como sói ocorrer ainda hoje. 12 Além disso, em muitos
casos, gênero era – e continua sendo - utilizado como sinônimo de mulheres, ou
mesmo de mulher, no singular indistinto e restritivo. Sendo descritivas apenas, as
abordagens de gênero referem-se à existência de fenômenos sem interpretá-los,
explicá-los ou atribuir-lhes uma causalidade. Já a abordagem teórica defendida por
ela implica na apresentação de uma ordem causal, na formulação de teorias sobre a
natureza dos fenômenos.13
Um dos questionamentos da História de Gênero se refere a como as
hierarquias são construídas e legitimadas. Esta forma de abordar a História indica
um estudo que se preocupa com processos, postos em movimento por causas
múltiplas, e que se evidenciam através da retórica e dos discursos. Voltando-se,
assim, contra o estudo das origens, as explicações baseadas em causas únicas, e as
ideologias. Para as estudiosas de gênero, é uma perspectiva interessante entender
a identidade política – tal como as instituições sociais e os símbolos culturais –,
como forma de produção do saber, e como fazendo parte do mesmo projeto
político o feminismo e os estudos acadêmicos de gênero.14 Desta forma, as análises

12 Embora a própria Scott se furte a apontar os exemplos a que se refere quando menciona o
tratamento descritivo em obras que lançam mão da categoria gênero, elencamos aqui alguns que
tratam do Medievo, na língua materna da autora: BENNETT, Judith. Women in the Medieval English
Countryside: Gender and Household in Brigstock Before the Plague. New York: Oxford University
Press, 1987; BITEL, Lisa. Land of Women: Tales of Sex and Gender from Early Ireland. Cornell;
University Press, 1996; HOWELL, Martha. The Marriage Exchange: Property, Social Place, and
Gender in Cities of the Low Countries, 1300-1550. Chicago: University of Chicago Press, 1998;
MORRIS, Kathleen. Sorceress or Witch? The Image of Gender in Medieval Iceland and Northern
Europe. Lanham: University Press of America, 1991; VAN HOUTS, Elisabeth. Memory and Gender in
Medieval Europe, 900-1200. Londres: Macmillan, 1999.
13 SCOTT, Op. Cit., 1995, p.75.
14 Alguns exemplos de obras historiográficas sobre o período medieval em que relações políticas de

gênero são abordadas: ERLER, Mary & KOWALESKI, Maryanne. Women and Power in the Middle
Ages. Athens: University of Georgia Press, 1988; SHADIS, Miriam. Berenguela of Castile (1180-1246)
and political women in the High Middle Ages. New York: Macmillam, 2009; PARSONS, John. (ed.)
Medieval Queenship. New York, Palgrave Macmillan, 1998; TINKLE, Theresa. Gender and Power in
Medieval Exegesis. New York: Macmillam, 2010; JANTZEN, Grace. Power, Gender and Christian
Mysticism. Cambridge; University Press, 1995; KARRAS, Ruth Mazo. From Boys to Men: formations of
masculinity in Late Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003;
KITCHEN, John. Saint´s Lives and the Rhetoric of Gender. Male and Female in Merovingian
Hagiography. Nova York: Oxford University Press, 1998.

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críticas do passado e do presente tornam-se continuadas, e as historiadoras podem


não apenas interpretar o mundo, como transformá-lo no processo, ao lançar luz
sobre as motivações para o estabelecimento de diferenças sexuais. É evidente que
tal perspectiva torna necessário o exame de gênero como um fenômeno histórico,
concreto e contextualizado, que se transforma ao longo do tempo. Assim, a História
de Gênero preocupa-se em compreender “como os significados subjetivos e
coletivos de homens e mulheres, como categorias de identidade, foram
construídos”.15
Gênero assim estabelecido, a partir da perspectiva de Scott, no entanto, vem
sofrendo críticas duras. Uma das principais críticas que se faz às suas formulações
é de que a historiadora assume que as categorias homem e mulher, ou homens e
mulheres, estão dadas e não são, elas também, construídas.16 E mais, a dicotomia
de gênero, segundo autoras como Butler17 e Preciado,18 é também falaciosa e
inadequada. Determinar que existem apenas dois gêneros, definidos ou não pelos
corpos biológicos, é uma imposição do homem universal: branco, identificado com
o masculino, ocidental e heterossexual. Se tomamos como base nosso objeto
específico de estudo, por exemplo – os frades dominicanos do século XIII –
percebemos que, embora se utilizem das categorias homem e mulher, atribuem a
elas características distintas do que nossa própria sociedade entende como
feminino e masculino. Eu diria, ainda, que há uma certa flexibilidade no tratamento
que dão ao que hoje chamamos de questões de gênero, particularmente atribuindo
características femininas a corpos biologicamente entendidos como masculinos e
traços masculinos a corpos biologicamente lidos como femininos.

2. É possível uma história medieval de gênero?


Pergunto-me se é possível fazer uma história de gênero voltada para a visão
de um sexo sobre o outro, e não suas inter-relações? Essa, de fato, é uma falsa

15 SCOTT, Op. Cit., 1994, p.19.


16 TARRÉS, Maria Luisa. A proposito de la categoria género: ler a Joan Scott. Sociedade e Cultura,
Goiânia, v. 15, n. 2, p. 379-391, jul./dez. 2012, p. 380;
17 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003.


18 PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1, 2015.

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questão, já que, discursivamente, a inter-relação entre gêneros se coloca


inerentemente. Um frade que toma a pena para escrever seja uma vida de santa,
seja uma ata de capítulo geral de ordem religiosa, o faz impregnado por sua
convivência com homens e mulheres, com aspectos do mundo que ele considera
ser femininos e masculinos. Além do que, é necessário sempre ter em mente que a
História de Gênero não é a História das Mulheres e que, por isso, dedica-se também
aos homens enquanto seres genderificados, e não universais. No caso da minha
pesquisa mais longeva, uma análise de gênero da coletânea hagiográfica mais
copiada da Idade Média, a Legenda Aurea, escrita na década de 60 do século XIII,19
temos em mãos uma fonte que nos permite avaliar o que um homem acredita ser
uma mulher perfeita. Mas dessa mulher temos somente a imagem, o ideal
imaginado por um homem. Logo ela não está em relação direta com ele, mas é
construída por ele.
É possível, afinal, uma história medieval de gênero? Para responder a essa
pergunta valemo-nos, sobretudo, da abordagem historicista. Tal método aponta
para a escolha do lugar, da situação, da posição relativa ao grupo social ou
mulheres e homens a serem estudados no conjunto de uma sociedade. A partir daí
deve-se assumir a temporalidade do tema e problematizar até mesmo o próprio
conceito de mulher ou a categoria mulheres. Ou seja, em termos mais simples,
precisamos proceder à operação mais básica do fazer historiográfico, a
contextualização.
Para que seja possível uma história medieval de gênero é necessário que se
temporalize este categoria, e que esta seja inserida no contexto histórico do
Ocidente cristão, no nosso caso. Assim, gênero pode servir como uma referência
instável, mas crítica, pois é uma postura teórica que se constrói como “processo de
conhecimento movediço num mundo transitório”.20 A própria Scott já afirmava que
gênero é uma categoria vazia e transbordante.21 Vazia porque cabe ao analista

19 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea: vidas de santos. [Tradução do latim, apresentação, notas e
seleção iconográfica de Hilário Franco Júnior]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
20 SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma

hermenêutica das diferenças. Estudos Feministas, 2, 1994. p. 376.


21 SCOTT, Op. Cit., 1995, p. 93.

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perceber como configurá-la, e transbordante porque ultrapassa a questão


meramente sexual e se espraia pelos mais variados domínios da vida social. É
imprescindível que se rompa com os conceitos preexistentes e que se adapte
conceitos já existentes, temporalizado-os. Partimos de referências nos conceitos já
formulados para criar nossos próprios conceitos, que se baseiem e adequem-se a
nossa produção. Os conceitos preexistentes são ponto de partida para a formulação
de outros, relativizados. A sociedade é transitória, logo não se pode trabalhar com
conceitos estáticos. Deve-se conectar o objeto com o mundo, com o seu contexto.
Portanto, o que advogamos aqui para uma história medieval de gênero nada
mais é do que o principal exercício da historiadora, conforme já afirmamos, ou seja,
a contextualização também do instrumental teórico do qual lançamos mão para
entender o passado. Levando em conta que toda história é história do presente,
todo olhar para o ontem parte do agora, e que a nossa é uma ciência
contemporânea, não há como nos furtarmos de usar formulações atuais para
inquerir o passado, inclusive o remoto medievo.

3. Dois exemplos recentes


Senão vejamos a aplicação da categoria gênero em duas pesquisas recentes
acerca da sociedade medieval, e uma mais antiga. Passemos a analisar brevemente
a tese de doutorado de Wendell dos Reis Veloso, defendida em abril de 2019, pela
UFRRJ; o projeto de doutorado de Carolina Niedermeier Barreiro, submetido ao
processo seletivo de 2019 do PPGH da UFRGS e uma reconsideração feita
especialmente para esta fala acerca da minha dissertação, defendida em 2003 pelo
PPGHIS da UFRJ.
Na tese “Os Continentes, os Conjugati e os Outros: Identidade Cristã e a
Instituição da Sexualidade Divina nos Escritos de Agostinho de Hipona (Séculos IV
e V)”,22 Wendell Veloso tem como principal objetivo analisar a criação de uma
sexualidade que ele nomeia de sexualidade divina, a partir de cinco tratados

22 VELOSO, Wendell dos Reis. Os Continentes, os Conjugati e os Outros: Identidade Cristã e a


Instituição da Sexualidade Divina nos Escritos de Agostinho de Hipona (Séculos IV e V). Tese de
Doutorado. Seropédica: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, 2019.

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polêmicos de Agostinho (A Verdadeira Religião, Confissões, Da Santa Virgindade, A


Cidade De Deus e Sobre o Bem do Casamento). O autor defende que, naquele
contexto de sistematização da religião cristã como um sistema de crenças e
práticas adotadas voluntariamente, o bispo de Hipona propôs uma identidade
cristã específica, estável, substanciosa e fixa em contraposição às identidades
múltiplas. Agostinho, assim, forja uma sexualidade orientada para a continência,
antagonista do prazer, e que entende como fixa e natural. Esta sexualidade divina
se opõe à sexualidade plástica (orientada para o prazer) que caracterizava as
comunidades tradicionais do Império Romano.
Embora não tenha como fio condutor teórico propriamente a categoria
gênero, Veloso se ocupa em discutir aspectos pertinentes a ela ao refletir sobre o
conceito de sexualidade, informado sobretudo pela Teoria Queer, por sua vez
derivada, em grande medida, dos Estudos de Gênero e associada a estes. É possível
perceber as reflexões sobre gênero na própria definição de Teoria Queer que,
segundo Baileiro, considera “os amplos aspectos históricos e sociais que moldam
as relações afetivo-sexuais nos contextos contemporâneos, colocando relevo na
construção discursiva da sexualidade bem como de gênero.”23 Em outras palavras,
a Teoria Queer pretende evidenciar e questionar o dualismo com que sexualidade e
gênero são tratados.
Para demonstrar como o modelo de sexualidade estabelecido por Agostinho
é apenas uma possibilidade em meio a muitas, que nega o prazer e se pretende fixo
e natural, Veloso se vale também das ponderações de Judith Butler. A pensadora
americana é uma das fundadoras da teoria queer e tributária, assim como Joan
Scott, da filosofia foucaultiana sobre o poder. Em sua já clássica obra “Gender
Trouble”,24 Butler defende que a questão de gênero só pode ser pensada como
relação de poder. Mais do que isso, ela considera que o poder cria, produz, forja,
inventa as supostas diferenças de gênero. Para ela, a dinâmica empreendida por

23 BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Introdução. In: ______. A Pedagogia do Sexo em o Ateneu:


Gênero e Sexualidade no Internato da “Fina Flor da Sociedade Brasileira.” São Paulo: Annablume,
2015, p. 29.
24 BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 14 ed. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

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determinada tecnologia de poder estabelece aquilo que será o sujeito, a referência


confundida com os homens cisgêneros, e o Outro, compulsoriamente associado às
mulheres cisgêneras, além de operar nas supostas estabilidade e coerência deste
sistema binário e hierárquico que se pretende não interdependente.25
Outra grande contribuição da tese de Veloso é defender que a historiografia
está profundamente eivada de uma percepção de gênero binária e hierarquizada, o
que muitas vezes pode falsear as conclusões a que chegamos em nosso ofício de
analisar o passado.26 Isso torna premente uma reavaliação cuidadosa de toda, ou
quase, a produção historiográfica, seja ela relativa ou não a questões de gênero,
porque esta parte de um ponto de vista “viciado”, que se sustenta tão somente no
binarismo e muitas vezes no machismo estrutural.
Desde sua graduação, Carolina Barreiro vem se dedicando a pesquisar
gênero na Inglaterra da Baixa Idade Média. Seu projeto de doutorado, de título
Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de textos escritos por
mulheres (Inglaterra, s. XIV)”,27 tem como problemática central a constituição do
gênero na Idade Média. Ou seja, ela indaga, baseando-se sobretudo em fontes
literárias escritas por mulheres na Inglaterra do século XIV (Julian de Norwich
(1343-1416) e Margery Kempe (1373-1438), como os diferentes gêneros são
discursiva e performativamente conformados. Foca sua análise mais na
configuração identitária dos gêneros e menos nas relações de poder. (Muito
embora, na minha perspectiva, o processo de estabelecimento da identidade seja
também uma forma de relação de poder). Mas é compressível que assim se
posicione, uma vez que sua leitura é profundamente informada pelos escritos de
Judith Butler,28 que tem como um dos pilares de suas reflexões a desconstrução da
ideia tanto de mulher, quanto propriamente de gênero. A doutoranda se preocupa
em entender quais são as fronteiras estabelecidas entre os gêneros e como essas

25 Ibidem. p. 8.
26 VELOSO, Wendell. Op. Cit., p. 125-141.
27 BARREIRO, Carolina. Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de textos escritos

por mulheres (Inglaterra, s. XIV). Projeto de Doutorado submetido ao PPGH/UFRGS. Porto Alegre:
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande Sul, 2019.
28 Barreiro se apoia, sobretudo, nas seguintes obras de Butler: BUTLER, Judith. Excitable speech: a

politics of the performative. Nova York: Routledge, 1997 e a já referida Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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categorias são elaboradas e reelaboradas a partir, especialmente, da perspectiva da


escrita feminina.
O interesse de Barreiro está em refletir sobre “os binômios
masculino/feminino, homem/mulher, suspendendo sua naturalidade e
questionando sua própria fundamentação binária.”29 Ela defende que gênero é
uma categoria contingente, sobre a qual devemos estar permanentemente atentos,
formulando, então, a seguinte hipótese: “gênero, no medievo, não pode ser
pensado a partir da rigidez binária da modernidade.” 30 Por mais ampla e ousada
que seja essa hipótese, vejo-a como bastante pertinente, necessária até, para
avançarmos na compreensão tanto das questões de gênero quanto do período
medieval.
Isso fica claro pelas perguntas que a pesquisadora elenca para inquirir sua
documentação: quais são as categorias de gênero que as autoras a serem
analisadas constituem em seus textos; o que significa ser mulher no século XIV; as
teorias contemporâneas sobre gênero se confirmam para o contexto baixo
medieval? Essas questões se amparam na crítica já mencionada à escola scottiana,
que estabelece um binarismo rígido dos gêneros, ou seja, há uma enorme fixidez
que opõe homens a mulheres, sujeitos masculinos a sujeitos femininos.
Para ilustrar sua desconfiança quanto à essa rigidez, Barreiro menciona
exatamente casos que eu mesma analisei em minha dissertação de mestrado: o das
santas crossdressed, isto é, daquelas santas que se passam por homens. Meu
estranhamento sobre essas figuras, suscitado há quase vinte anos, foi respondido
na medida das minhas possibilidades teóricas de então. Mas a jovem pesquisadora,
na seara aberta pelas reflexões de Butler e Preciado, aborda o problema de forma
muito mais satisfatória, perguntando-se se aquilo que considerei desvios dos
modelos de feminino e masculino não seriam a constituição de outro gênero que
escapa ao binarismo que a contemporaneidade atribui aos sexos. Ela se pergunta:
“Uma mulher crossdressed com vestimentas tomadas como masculinas estaria (1)
rompendo com seu gênero e movendo-se para o outro pólo de possibilidade? (2)

29 Ibidem.
30 BARREIRO, Carolina. Op. Cit, p. 4.

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Estaria configurando outro gênero possível que não masculino nem feminino? (3)
Ou estaria somente confluindo entre flexibilidades possíveis das margens?”31
Passo a apresentar uma releitura de minha dissertação de mestrado,
intitulada Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: Os casos de Maria e
Madalena (2003),32 à luz das propostas e aplicações da categoria gênero por
Wendell Veloso e Carolina Barreiro. Por incrível que pareça, no começo dos anos
2000, trabalhar com gênero ainda não era algo exatamente bem visto pela
academia brasileira. Os estudos de gênero eram tidos ainda com muita
desconfiança, porque reputados como, no mínimo, perfumaria e, no máximo,
preocupação de “feministas de butique”. Na minha inocência de mestranda, tinha já
alguma consciência desses preconceitos, mas era àquele estudo que eu realmente
queria me dedicar.
Tinha em mãos o próprio documento/monumento de que trata Le Goff.33 A
Legenda Aurea,34 essa compilação hagiográfica que conta com quase duzentas
vidas de santos, é uma obra extensa e, à primeira vista, enfadonha. Isso porque seu
autor, o frade pregador Jacopo de Varazze, segue à risca a fórmula literária que se
consagra ao longo da Idade Média, fazendo de seus personagens figuras
predestinadas desde o nascimento à salvação, à pureza, que se prestavam a
instruir com seus exemplos os fiéis em matéria de religião. Os santos, assim, são
modelos de perfeição cristã. E, portanto, dão a ver o que aquela sociedade entendia
como sendo o mais valoroso em termos de humanidade.
Tratando do lugar social do qual emitia seu discurso, na dissertação me
preocupei em estabelecer Jacopo como um homem que, até a primeira redação de
sua grande obra, mal havia tido contato com mulheres reais. Ingressou em um
convento por volta dos quatorze anos de idade,35 e ainda estava em um convento
quando escreveu sua Legenda Aurea. Minha inquietação era de que ele não falava

31 Ibidem.
32 FORTES, Carolina Coelho. Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: os casos de Maria
e Madalena. Dissertação de Mestrado: Rio de Janeiro, Programa de Pós Graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.
33 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. Memória e História. Campinas: Unicamp, 1990.
34 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
35 REAMES, Sherry L. The Legenda Aurea: A Reexamination of Its Paradoxical History. Wiscosin:

University of Wisconsin Press, 1985. p. 64.

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sobre mulheres por experiência própria, mas as imaginava. Além disso, sua obra
fala sobre santos, criaturas virtuosas, preferidas da graça divina, idealizadas. Ele
sequer tinha em mente a mulher real como seu público direto. Contudo, escrever
sobre ela – e aqui ele fala sobre a Mulher, e não as mulheres – não seria também
uma forma de se relacionar com ela? Entendia-a como outra, como diferente, como
feminina. E, atribuindo-lhe características, discorrendo sobre ela e sobre suas
virtudes, de certa forma, entrava em contato com ela. É claro que este
relacionamento assume a forma unilateral, porque lidamos com uma fonte
literária, na qual a voz masculina abafa a feminina, mas nem por isso a exclui.
Marcadamente as identidades de gênero se constroem em relação uma com a
outra, dado a cultura diacrônica própria da sociedade medieval. E, sem dúvida,
gênero pode ser utilizado para o período medieval também como uma forma de
significar as relações de poder, sendo o masculino – ao menos na maioria das
fontes eclesiásticas – sempre entendido como superior ao feminino.
Com base na vida de dois santos (Domingos e Vicente) e duas santas (Maria
e Maria Madalena), defendemos a hipótese de que o compilador entendia a
santidade feminina como marcadamente masculinizada. Ou seja, para que
obtivessem papel de destaque como o ápice da perfeição cristã, as mulheres
deveriam apresentar alguns traços masculinos. Acreditamos, portanto, que o
padrão de santa privilegiado por Jacopo de Varazze é o da mulher, além de
caridosa, piedosa e casta, ativa – ou seja, aquela que tem iniciativa, toma decisões e
expõe com veemência suas idéias. Jacopo torna suas santas, desta forma, mulheres
masculinizadas. Tal formulação decorre da perspectiva predominante na
sociedade medieval de relegar as mulheres ao plano inferior. Masculinizando as
santas, Jacopo tornava-as dignas de serem veneradas, possibilitando, desta forma,
que sua imagem pudesse servir como a de uma personagem didática, que ensinaria
aos fiéis, através de suas virtudes e prodígios, a perfeição cristã.36
À luz das contribuições de Veloso e Barreiro, é possível pensar que o

36Estejamos atentos para o fato de que ensinar, instruir, não pressupõe o estabelecimento de
modelos. Assim, é perfeitamente coerente que a Legenda Aurea buscasse instruir seus
consumidores sem, no entanto, estabelecer regras de comportamento para eles.

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modelo que Jacopo estabelece para as santas escapa do que a própria Legenda
Aurea estabelece como o feminino corrente, mais comum. As santas de Jacopo mal
podem ser consideradas mulheres exemplares, na medida em que, não sendo
biologicamente masculinas, o são em parte em suas ações e características. Não são
inteiramente homens nem completamente mulheres, abrindo uma outra via de
identificação de gênero que quebra com a dualidade que tão pesadamente
impomos – hoje e no medievo – sobre os corpos sexuados.
Em suma, respondendo à questão que inicia nossa fala, não só é possível
uma história medieval de gênero, mas várias. Principiei essa trajetória de pesquisa
partindo de uma perspectiva de gênero exclusivamente binária que levava em
conta o caráter de construção e relacional de masculinidades e feminilidades. Esta
não atentava, no entanto, para as nuances em que a identidade de gênero se
expressa. Contribuições mais recentes, especialmente a aplicação da reflexão sobre
gênero a objetos de pesquisa inseridos no contexto medieval, abrem o leque de
possibilidades para análises que consideram a plasticidade, a flexibilidade e
riqueza das experiências e representações de gênero na Idade Média.

Artigo recebido em 25.05.2020


Artigo aceito em 15.06.2020

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