Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SS
IÊ
RESUMO ABSTRACT
Este artigo tem como objetivo analisar o This paper aims to analyze the debate
debate sobre a ideologia de gênero e o about gender ideology and teaching in
ensino no Brasil contemporâneo, com Brazil emphasizing its articulation with
ênfase na sua articulação com aspectos some aspects of the rationality of neo-
da racionalidade neoliberal. Partimos da liberalism. Concerning Wendy Brown’s
crítica de Wendy Brown sobre o papel da critic about the role of “family” in the
família na afirmação do projeto político affirmation of neoliberal’s political proj-
neoliberal e avaliamos como a defesa da ect we will consider how the defense of
liberdade e da família se tornaram funda- liberty and family has become funda-
mentos da alegação de que existiria uma mentals for the allegation of the exis-
ideologia de gênero na educação, amea- tence of a gender ideology on education
çando a moral e a tradição. Esta pesquisa threatening the moral and tradition.
foi realizada por meio da análise do de- This research was achieved by the anal-
bate parlamentar na Assembleia Legisla- ysis of the debates in the Assembly of
tiva do Estado do Rio de Janeiro the State of Rio de Janeiro (ALERJ), be-
(ALERJ), entre os anos de 2014 e 2018. tween 2014 and 2018.
Palavras-chave: Ideologia de gênero; Keywords: Gender ideology; Neolibera-
Neoliberalismo, Planos de Educação; lism; Educational plans; Democracy.
Democracia.
* Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. gessicagg@yahoo.
com.br
como uma visão de mundo, que precisava ganhar a opinião pública por meio
da atuação dos intelectuais, professores, jornalistas e quem mais pudesse con-
tribuir para a divulgação dessas ideias. Hayek concebeu teoricamente o neoli-
beralismo como um Estado “natural”, onde a liberdade emanaria de institui-
ções orgânicas, como o mercado e a moral, cuja forma de funcionamento seria
transmitida pela tradição. Na sua concepção, a tradição seria como um con-
junto de normas e condutas que as pessoas não se opõem a cumprir e que são
estabelecidas numa relação temporal, de maneira na qual a compulsão ao cum-
primento de uma determinada norma não seria vista como impositiva, caso
esta fizesse parte da tradição da comunidade e fosse reiterada como tal ao
longo dos anos. Vejamos como Brown entende a questão:
Embora a visão de Hayek não fosse a única entre aqueles que defendiam
uma orientação econômica liberal no pós-guerra, seu entendimento sobre co-
mo deveria ser o papel do Estado teve grande aceitação (ONOFRE, 2018). Sua
crítica foi dirigida ao Estado como promotor de políticas que atingem as liber-
dades dos indivíduos, interferindo na dinâmica natural da sociedade, sobretu-
do quando são criadas leis e programas que reconhecem e promovem os di-
reitos de grupos minorizados politicamente como as mulheres, os negros e os
homossexuais. Como solução, a agenda neoliberal da escola austríaca propôs
que o exercício do político deveria ser substituído por uma gestão técnica e a
ideia de sociedade foi esvaziada em prol da valorização da família e da vida
privada, com a finalidade de garantir a esfera pessoal protegida. “Para Hayek o
maior erro da democracia jaz em sua tentativa de substituir uma ordem espon-
tânea, evoluída historicamente, suportada pela tradição e instalada no costume,
por projetos racionais mestres para a sociedade” (BROWN, 2019, p. 131). Por-
tanto, nessa perspectiva liberal, o projeto de privatizações não se encerraria no
âmbito da economia, seria também ampliado como valor moral, resultando
Mais do que uma convicção ideológica, a justiça social – a modulação dos pode-
res do capitalismo, colonialismo, raça, gênero e outros – é tudo o que se põe entre
manter a promessa (sempre não cumprida) da democracia e o abandono genera-
lizado dessa promessa. O social é o local onde somos mais do que indivíduos ou
famílias, mais do que produtores, consumidores ou investidores econômicos e
mais do que meros membros da nação. (BROWN, 2019, p. 38)
cola sem Partido no Brasil, elaborado pelo advogado Miguel Nagib, em 2004.
Baseado no direito do consumidor, o projeto de lei concebia a educação como
um bem e não como um direito, e assim tinha como pressuposto a ideia de que
as crianças seriam propriedades de seus pais. Por isso, a família deveria ter
absoluto controle sobre o tipo de educação e os conteúdos que deveriam ser
apresentados aos seus filhos, a fim de garantir que a formação escolar fosse
idêntica às concepções de mundo, ideologias e preconceitos arraigados nas
estruturas familiares e sociais nas quais os estudantes estavam inseridos. Assim
como o programa do ESP, o projeto de Flávio Bolsonaro sugeria que a educa-
ção sofria com a “doutrinação política e ideológica em sala de aula” e com o
ensino de “conteúdos que [poderiam] estar em conflito com as convicções
religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais” (ALERJ, PL 2974/2014,
2014). No texto do projeto é afirmado que
(...)
III- liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da
liberdade da consciência;
IV- liberdade de crença;
(...)
VI- educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em
sua liberdade de consciência e de crença. (ALERJ, PL 2974/2014, 2014)
E no Artigo 5º,
Os conteúdos morais dos programas das disciplinas obrigatórias deverão ser re-
duzidos ao mínimo indispensável para que a escola possa cumprir sua função
essencial de transmitir conhecimento aos estudantes.
Parágrafo único. A Secretaria de Estado de Educação poderá criar disciplina fa-
cultativa para a educação de valores não relacionados ao cumprimento da função
referida no caput deste artigo, cabendo aos pais ou responsáveis decidir sobre a
matrícula de seus filhos. (ALERJ, PL 2974/2014, 2014)
ção do Estado às famílias e aos indivíduos. Vejamos como esse aspecto é apre-
sentado no texto do PL 2974/2014:
cou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) como uma impor-
tante referência para pensar a questão. Segundo o deputado, a CNBB
nos chama a uma reflexão neste momento, quando ela, que sempre foi a guardiã
dos direitos humanos e das conquistas sociais, jamais negaria a oportunidade de
um debate que se faz necessário. Estou falando da proposta da ideologia de gêne-
ro, que se tentou avançar no Plano Nacional de Educação e que hoje se tenta in-
corporar aos planos municipais e ao Plano Estadual de Educação. A CNBB
chama a uma reflexão para os riscos da ideologia de gênero, daquilo que se pro-
põe convencionar ‘deixamos de nascer menino ou menina e vamos formar, ao
longo da vida, aquilo que seremos’. Chama a atenção a CNBB para o fato de as
próprias lutas dos homossexuais, das lésbicas e travestis podem se encerrar com
o princípio da ideologia de gênero, pois o homem heterossexual e o homem ho-
mossexual deixam de existir, pois não se nasce homem, não se nasce menino.
(ALERJ, Discurso na sessão de 06/06/2015, 2015)
Para terminar, o combate que vamos fazer a partir de agosto: tiramos do Sistema
Estadual de Educação o termo “ideologia de gênero”. Agora, nossa luta é retirar
do Plano Estadual de Educação, que virá para esta Casa em agosto. Certamente,
com a participação dos Deputados vamos mostrar que a ideologia de gênero não
colabora com iniciativa de fortalecer a infância, a criança, a educação e a família.
(ALERJ, Discurso na Sessão de 30/06/2016, 2016)
Como parte de sua estratégia, para sair da crise, para redefinir os seus padrões de
acumulação, o capitalismo avança com agendas conservadoras no campo da eco-
nomia. Isso explica, em muitos países, o recrudescimento de políticas macroeco-
nômicas de cunho mais monetarista, que tentam avançar na direção de direitos
dos trabalhadores, de conquistas sociais, como aqui falava, agora há pouco, a
Deputada Enfermeira Rejane, agendas conservadoras no campo da política, e
isso explica uma série de intervenções autoritárias e de golpes de Estado que se
sucederam na América Latina nos últimos anos.
Quero lembrar o golpe em Honduras; no Paraguai; o golpe em curso no Brasil,
governado hoje por um chefe de um Executivo interino provisório e golpista, e
uma agenda conservadora também no campo da cultura, no campo simbólico, no
campo dos valores, modos e hábitos. E é neste último aspecto, nesta última gaveta
que se encerra e se insere esse debate que vem sendo apresentado sob a alcunha de
“escola sem partido”. (ALERJ, Discurso na sessão de 06/06/2016, 2016)
tismo que pode ser notado nos discursos anti-ciência, o espaço público ainda
é terreno em disputa, no qual os valores democráticos para a educação têm
sido defendidos pela comunidade escolar, pela comunidade científica, por par-
lamentares e por muitos grupos da sociedade. Em 2024 o atual Plano Nacional
de Educação deverá ser finalizado, teremos como tarefa elaborar uma profun-
da avaliação do PNE vigente, apontando avanços e problemas, e, mais do que
isso, precisamos disputar em 2024 – e a cada dia – os espaços de produção
coletiva de projetos para nosso futuro.
Para finalizar, destaco que um de nossos maiores desafios consiste em
fortalecer os espaços coletivos de produção, validação e divulgação do conhe-
cimento, uma vez que um dos objetivos da racionalidade neoliberal consiste
exatamente na destruição do político, da sociedade e dos espaços de construção
coletiva e de justiça social. Por isso, uma das grandes contribuições que a edu-
cação e o ensino de história em particular podem nos oferecer é a consolidação
de nosso compromisso com os outros, para além de nosso círculo familiar,
para além de nossa “esfera pessoal protegida”, reforçando laços de solidarie-
dade e respeito, para podermos imaginar e construir outros futuros.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Viviane. Não se Meta Com Meus Filhos: gênero, família e discurso conser-
vador na crise democrática latino-americana. Revista Transversos. Rio de Janeiro,
n. 18, abr., p. 86-106, 2020.
BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan marco.
Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.
BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de
austeridade. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática
no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.
COOPER, Melinda. Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Con-
servatism. Nova York: Zone Books, 2017.
CORRÊA, Sonia. A “política do gênero”: um comentário genealógico”. Cadernos Pagu,
n. 53, p. 1-16, 2018.
FARIA, Ana Lúcia; CHAIA, Vera. Os institutos liberais e a consolidação da hegemonia
neoliberal na América Latina e no Brasil. Cad. Metrop., São Paulo, v. 22, n. 49, p.
1059-1080, set/dez 2020.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. Editora Elefante: São Paulo, 2019.
FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Boitem-
po, 2019.
GUIMARÃES, Géssica; SOUSA, Francisco Gouvea de. Desmonte ou reconstrução da
Universidade? Entre o capital e a democratização. Revista Hydra. v. 4, n. 7, p. 103-
131, 2019.
ONOFRE, Gabriel da Fonseca. O papel dos intelectuais e think tanks na propagação do
liberalismo econômico na segunda metade do século XX. Tese de Doutorado em
História. Instituto de História. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro,
2018, 368p. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/2042.pdf. Acesso
em: 10/08/2021.
NAJJAR, Jorge; MOCARZEL, Marcelo; MORGAN, Karine. Os Planos Municipais de
Educação do Estado do Rio de Janeiro: um mapeamento de metas, estratégias e
desafios. Ensaio: aval. Pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 28, n. 109, p. 1033-1053,
out./dez. 2020.
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os pla-
nos de educação brasileiros. Educ. Soc., Campinas, v. 38, n. 138, p. 9-26, jan.-mar,
2017.
SILVA, Silas. Ideologia de gênero e seus sentidos: Embates hegemônicos acerca do
ensino ediscussão de gênero na educação. Revista Diversidade e Educação, v. 8 , n.
1 , p. 400-426, jan./jun. 2020.
Documentos do Vaticano
VATICANO. Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da
mulher na igreja e no mundo. 2004.
VATICANO. Carta do Papa João Paulo II às mulheres. 1995.
VATICANO. “Homem e mulher os criou” para uma via de diálogo sobre a questão do
gender na educação. 2019.
Documentos da ALERJ
ALERJ, Ata da Sessão de 06/06/2015, sobre o Projeto de Lei 2054/2013, 2015.
ALERJ, Ata da Sessão de 16/06/2016, sobre o Projeto de Lei 3289/2014, 2016.
ALERJ, Discurso do Deputado Jânio Mendes na Sessão de 06/06/2015, 2015.
ALERJ, Discurso do Deputado Márcio Pacheco na Sessão de 30/06/2016, 2016.
NOTAS
1
O IL é considerado por Gabriel Onofre como um dos primeiros institutos que podem ser
caracterizados como think tanks de orientação econômica liberal no Brasil, atuando de
maneira pioneira e influente nas décadas de 1980 e 1990 (ONOFRE, 2018, p. 332).
2
Gabriel Onofre afirma que as inscrições seriam em torno de $1.500,00, em valores atuais.
3
VATICANO. Carta do Papa João Paulo II às mulheres. 1995.
4
Alguns dos documentos onde essa posição da Igreja Católica pode ser verificada são:
Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na igreja e
no mundo, de 2004, e “Homem e mulher os criou” para uma via de diálogo sobre a questão
do gender na educação, de 2019.
5
Essa pesquisa foi realiza no escopo do projeto “Teoria de gênero e o ensino de história:
por uma prática pedagógica democrática”, que recebeu financiamento da FAPERJ de outu-
bro de 2019 a setembro de 2021, e contou com a atuação da pesquisadora bolsista de Inicia-
ção Científica Bianca Costa Matos. A pesquisa sobre os debates na ALERJ foi realizada de
maneira totalmente remota, por causa da exigência de isolamento social em decorrência da
pandemia da Covid-19.
6
Em 11 de junho de 2015, a Regional Sul 1 da CNBB, que corresponde ao estado de São
Paulo, lançou uma nota sobre a ameaça da ideologia de gênero sobre os Planos Municipais
de Educação. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/regional-sul-1-divulga-nota-sobre-
-ideologia-de-genero-nos-planos-de-educacao/. Acesso em: 17/09/2021. Tal posiciona-
mento foi confirmado por uma Nota sobre a inclusão da ideologia de gênero nos Planos de
Educação, assinada pelo Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), reunido em Brasília (DF), entre 16 e 18 de junho. Disponível em: https://
www.cnbb.org.br/cnbb-divulga-nota-sobre-a-inclusao-da-ideologia-de-genero-nos-pla-
nos-de-educacao/. Acesso em: 17/09/2021. Outras regionais como a Leste 2 (MG) também
lançaram notas com o mesmo conteúdo.