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ISSN: 0103-4979
revcrh@ufba.br
Universidade Federal da Bahia
Brasil
Gondim, Linda M. P.
A INVENÇÃO DA FAVELA: do mito de origem a favela.com
Caderno CRH, vol. 18, núm. 45, septiembre-diciembre, 2005, pp. 485-488
Universidade Federal da Bahia
Salvador, Brasil
RESENHA
al, a reflexão teórica e um cuidadoso trabalho
empírico conduziram seus passos no estudo da
questão habitacional e, em particular, das favelas.
VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da Numa época (1967-68) em que pesquisa social era
favela: do mito de origem a favela.com. Rio de sinônimo de “survey”, Lícia Valladares, sob a ori-
Janeiro: FGV, 2005. 204 p. entação de Carlos Alberto Medina, realizou “ob-
servação participante” na favela da Rocinha, onde
residiu por nove meses. Essa experiência, como
ela relata na Introdução, motivou-a a elaborar sua
Linda M. P. Gondim
tese de doutorado sobre a política habitacional do
governo do então Estado da Guanabara, centrada
na remoção de favelados para conjuntos
habitacionais longínquos e mal equipados, como
A invenção da favela é uma daquelas obras
“Cidade de Deus”. A tese, defendida na França
que já nascem clássicas, no sentido de representar
em 1974, foi publicada pela Zahar Editores, (Rio
um marco, pela originalidade, abrangência e pro-
de Janeiro, 1978), com o título Passa-se uma casa.
fundidade, no estudo de um tema ou campo do
Não caberia, aqui, reconstituir a carreira da
conhecimento. O livro é referência obrigatória para
Autora, da qual, provavelmente, o ponto culmi-
os pesquisadores do fenômeno favela, qualquer que
nante é o livro resenhado, originado na sua tese
seja o enfoque adotado – haja vista a maestria com
de Habilitation à Diriger des Recherches, trabalho
que Lícia Valladares consegue articular a análise
exigido de candidatos ao ingresso como professo-
das ideologias com a discussão do contexto histó-
res efetivos no sistema universitário francês.2 Ao
rico, dando conta, simultaneamente, das dimen-
mencionar a trajetória de Lícia Valladares, meu
sões material e simbólica que constituem a reali-
objetivo é destacar uma característica da obra em
dade social.
pauta, pertinente à sociologia do conhecimento:
A Autora explicita, nos primeiros parágra-
trata-se de seu caráter de “meta-invenção”, ou seja,
fos do texto, que seu objeto são as representações
o estudo da favela como fenômeno “inventado” é
construídas por diversos atores ao longo dos cem
ele mesmo uma “invenção”. Esse termo tem o va-
anos de existência das favelas, não se detendo em
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na mídia na primeira metade do século XX. ro de Geografia e Estatística (IBGE) que elaborou a
A invenção da favela contrapõe-se à tendên- definição da categoria favela, pesquisada no Re-
cia, identificada entre os estudiosos do fenômeno, censeamento Geral de 1950.
de fazer tábula rasa do conhecimento produzido No Capítulo II, Lícia Valladares “escava” as
desde as primeiras décadas do século XX. Daí o representações sociais sobre as favelas, construídas
ambicioso trabalho de arqueologia intelectual que nos primórdios do processo de institucionalização
transparece desde o primeiro capítulo, onde se das Ciências Sociais no Brasil (décadas de 1950 e
revelam sucessivas “camadas” de discursos sobre 1960). Discute a influência do Padre Lebret e do
a favela, inicialmente produzidos por médicos, movimento Economia e Humanismo, sob a égide
jornalistas, engenheiros, reformadores sociais e dos quais foi realizado o estudo “Aspectos huma-
outros intelectuais, engajados em discussões so- nos das favelas cariocas”, conduzido pela
bre os destinos da então capital federal e da pró- SAGMACS (Sociedade de Análises Gráficas e
pria nação. Na base dessas “camadas” encontra-se Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais),
a “Tróia Negra” de Euclides da Cunha: a palavra publicado, em 1960, no jornal O Estado de São
favela, no final do século XIX, designava um as- Paulo. Tal estudo, que influenciou a produção dos
sentamento formado no Rio de Janeiro por ex-com- principais estudiosos da favela nos anos subse-
batentes de Canudos que ocuparam o Morro da qüentes – Carlos Alberto Medina, José Artur Rios,
Providência, onde se encontrava uma planta cha- Anthony Leeds e Janice Pearlman, entre outros –
mada favela, também existente no arraial situado encontra-se ausente, lamentavelmente, das biblio-
em Monte Santo, Bahia. grafias sobre o tema.
A pesquisa revela uma razão menos prosai- A análise desvenda conexões inusitadas,
ca para a associação entre Os sertões e o mito fun- como a semelhança de métodos e princípios utili-
dador da favela. Se, como realidade histórica, esta zados no estudo da SAGMACS e aqueles da Esco-
remonta aos últimos anos do século XIX – sendo, la de Chicago: ênfase no trabalho de campo de
portanto, anterior à publicação da obra de Euclides natureza qualitativa, utilizando múltiplas fontes,
da Cunha (1902) – no plano do imaginário essa em conjugação com métodos quantitativos; articu-
obra forneceu aos intelectuais a “matéria prima” lação entre pesquisa e ação social, tendo o bairro
que lhes permitiu “compreender e interpretar a como foco de intervenção; adoção de uma aborda-
favela emergente” (p. 30): aglomeração de excluí- gem multidisciplinar, associando aportes da Soci-
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dos rebeldes, formando uma comunidade coesa e ologia, Antropologia, Geografia, Economia e ou-
pondo em perigo a ordem social. tras Ciências Sociais.
O Capítulo I analisa, ainda, a transforma- A arqueologia intelectual feita no Capítulo
ção da favela em problema urbanístico e social a II abrange, também, atores como o Peace Corps,
desafiar a administração pública nas primeiras que estudaram a favela numa perspectiva menos
décadas do século XX, motivando estudos e pes- sofisticada, marcada por uma visão
quisas que culminaram na sua inclusão no Plano homogeneizadora dos favelados e por um ativismo
Agache (1930) e no Código de Obras de 1937. O reformista alienado do contexto político repressor
texto desvela personagens esquecidos como o mé- da época (décadas de 1960 e 1970). A “escavação”
dico Victor Tavares de Moura e a assistente social evidencia a complexidade da questão, pois o Peace
Maria Hortência do Nascimento e Silva, autores Corps contava com a colaboração de Anthony
de estudos que viriam a subsidiar a pioneira expe- Leeds, um competente pioneiro do trabalho de
riência de política habitacional para favelados, na campo antropológico nas favelas do Rio de Janei-
forma de Parques Proletários, no início da década ro, que iria contribuir decisivamente para a im-
de 1940. Destaque especial é concedido a Alberto plantação do Programa de Pós-Graduação em An-
Passos Guimarães, dirigente do Instituto Brasilei- tropologia Social do Museu Nacional (UFRJ).
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