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Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
1. A CRIAÇÃO DE UM ROTEIRO
Para iniciarmos esta oficina de roteiro, vamos recordar alguns passos importantes para a
concepção de um filme.
O primeiro passo é o argumento. Um filme começa no argumento, que significa uma história
desenvolvida para o audiovisual. Como segundo passo, escolhido o tema e desenvolvido seu
argumento, vamos ao que de fato nos interessa: o roteiro.
Escrever um roteiro é basicamente desenvolver uma história para cinema ou TV. Mas essa
narrativa, diferente das que se fecham em um livro, será montada, editada, transformada em filme e
veiculada nos espaços audiovisuais de comunicação. Portanto, ao invés de se ocupar basicamente
do texto, o roteirista deverá considerar as imagens, os sons, os cortes, os diálogos e a forma como
as personagens ficarão na pele de um ator. Por isso mesmo, o roteirista, assim como o dramaturgo,
é um escritor de índole diferente, pois escreve pensando em imagens. Não dá para conceber roteiros
fora disso.
Para conseguir escrever uma história que será montada ou editada, não se pode esquecer dos
diferentes aspectos técnicos que fazem parte desse tipo de dramaturgia. São eles:
A criação técnica de um roteiro não é fácil, mas ainda assim é uma das fases mais simples do
aprendizado. Difícil mesmo é o desenvolvimento do conteúdo, ou seja, realizar um filme que tenha
razão de ser, que possa contar uma história interessante, que acrescente algo à vida do público
que vá assisti-lo. Um filme que, mesmo sendo apenas de entretenimento, provoque alguma reação
ou emoção no público pagante.
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A composição de personagens é talvez um dos aspectos mais importantes para o desenvolvimento
de uma boa história de literatura ou de cinema. Essa é a razão pela qual, nesta oficina de criação,
a atenção ao desenvolvimento e à criação deles será especialmente importante. As personagens
são o principal tema quando se trata de desenvolvimento do roteiro.
Vamos lembrar que, sem personagens, não se cria um filme, uma novela ou uma minissérie.
São eles, suas vidas, a forma como se realizam no tempo e no espaço, seus atos e a consequência
deles que fazem a grandeza de um filme. Assim também é na literatura.
Imagine, por exemplo, dois personagens exemplares criados pelo escritor Miguel de Cervantes
no Renascimento: Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança, os românticos e
emblemáticos casais de Shakespeare cuja história se passa na Idade Média, como Romeu e Julieta,
o grupo de monstros famosos da literatura do século XIX que reinam até hoje no cinema moderno,
como Frankenstein e Drácula, ou mesmo as personagens trágicas gregas vindas lá da Antiguidade,
como Édipo, Antígona e Hércules. Ou personagens de quadrinhos que ganharam vida no cinema,
como Batman, criado por Bob Kane, Super-Homem, da dupla de autores Joe Shuster e Jerry Siegel,
ou ainda os que foram do cinema para os quadrinhos, como Mickey Mouse, a mais famosa criação
de Walt Disney. Trata-se de criações tão fortes que ultrapassaram seu tempo histórico, mantendo
o mesmo vigor de quando foram criados. Tornaram-se mais importantes, ou pelo menos mais
conhecidos e imediatamente reconhecidos por seu público do que seus criadores.
Coube a eles todos dar vida e tornar-se a razão de ser de seus enredos. Sustentam-se sozinhos,
pois são o ponto alto da criação de suas narrativas. Não é fácil criar personagens emblemáticas
como nesses exemplos, mas, mesmo que o roteirista não consiga criar seres tão especiais, o que
houver de personagens em uma história deverá ser um dos principais pontos de criação de uma
obra. Para o bem e para o mal, elas são os pontos luminosos de qualquer história, tanto faz se para
a escrita, a literatura, o teatro, o cinema ou a TV.
O grande dramaturgo Luigi Pirandello, brincando com esse aspecto tão importante da criação de
uma história, fez uma peça que se chama “Seis personagens à procura de um autor”, o que mostra a
importância deles. A brincadeira está em que, se não existe história sem personagens, é possível, no
entanto, existir personagens sem enredo. E isso já aconteceu: é o caso exemplar do poeta Fernando
Pessoa, que criou um grupo de personagens – heterônimos – sem enredos para sustentá-los e que,
no entanto, existem completamente na vida literária universal: Ricardo Reis, Alberto Caieiro, Álvaro
de Campos e Bernardo Soares. Quem conhece literatura sabe bem quem são eles.
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E no Brasil, como estamos? Temos grandes personagens literários, a começar por Diadorim e
Riobaldo, de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Temos as personagens emblemáticas
de José de Alencar, como Iracema, a índia dos lábios de mel, ou a portuguesa Ceci e o nobre índio
Peri. Temos as adoráveis personagens infantis de Monteiro Lobato: Pedrinho, Narizinho, Emília e
Visconde de Sabugosa; as de Érico Veríssimo, como o capitão Rodrigo e Ana Terra, da saga “O tempo
e o vento”; as famosas personagens de Jorge Amado, como Gabriela, Tieta do Agreste, Dona Flor etc.
Fonte: <http://www.epgrupo.com.br/producao-da-mixer-desenho-sitio-e-exibido-pela-1a-vez-na-america-latina/>.
Apesar disso, quando se trata de roteiros, nossas produções de personagens têm sido muito
falhas. Tirando algumas poucas novelas de TV e as importantes peças de teatro de Nelson Rodrigues
e de Plínio Marcos, muitas vezes adaptadas para o cinema, com suas personagens sofridas e
marcantes, esse é um dos pontos negligenciados da filmografia nacional. Erramos muito. Nossas
personagens de cinema, em quase todos os argumentos e enredos, têm sido mal construídas, soando
falsas, inexpressivas, incompletas e extravagantes. E, como depende delas o sucesso ou o fracasso
de uma obra, muitas produções brasileiras com bons argumentos acabam tendo comprometida a
qualidade dos roteiros por causa da má construção de personagens.
Vamos, nesta apostila, tentar preencher com informações essa falha de criação brasileira e,
para que isso ocorra, além do argumento e da sinopse, serão dados todos os detalhes que podem
ajudar na concepção de personagens.
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Lembre-se de que uma personagem começa pela concepção física, que deve ser coerente
com a sua concepção psicológica. Essas duas características juntas são determinantes para a
construção de diálogos.
Falar da importância das personagens não quer dizer que os fatos ocorridos num roteiro não
sejam também fundamentais. A vida e as ações mostradas numa história são realmente muito
importantes. Mas é praticamente impossível separar esses aspectos da criação de um roteiro de
suas personagens. Isso porque as ações, o tempo e o espaço que uma história determina estão
intrinsecamente ligados a elas. As ações existem em torno e por causa das personagens. Estes
muitas vezes gravitam em torno de suas ações, outras vezes as impulsionam.
Como diz o ensaísta Antônio Candido, em seu excelente texto “A personagem no romance”
(CANDIDO, 2003, p. 53), “O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo”.
Por isso, quem sabe criar bons personagens saberá com certeza desenvolver bons enredos,
excelentes argumentos e notáveis roteiros. Está aí toda a literatura brasileira e universal para ajudar,
inspirar e tornar-se recurso de criação. Lembre-se sempre: não existe escritor que não seja um
bom leitor, e não existe roteirista que seja apenas um cinéfilo. Em geral, os maiores roteiristas do
audiovisual, além de adorar cinema e teatro, são vorazes consumidores de literatura.
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2. O CINEMA BRASILEIRO E MUNDIAL Figura 2 – Cinema brasileiro
SAIBA MAIS
“A primeira exibição de cinema no Brasil aconteceu em 8 de julho de 1896, no Rio de Janeiro, por
iniciativa do exibidor itinerante belga Henri Paillie. Naquela noite, numa sala alugada do Jornal do
Commercio, na Rua do Ouvidor, foram projetados oito filmetes de cerca de um minuto cada, com
interrupções entre eles e retratando apenas cenas pitorescas do cotidiano de cidades da Europa. Só a
elite carioca participou deste fato histórico para o Brasil, pois os ingressos não eram baratos. Um ano
depois já existia no Rio uma sala fixa de cinema, o ‘Salão de Novidades Paris’, de Paschoal Segreto.
Os primeiros filmes brasileiros foram rodados entre 1897-1898. Uma ‘Vista da baia da Guanabara’ teria
sido filmado pelo cinegrafista italiano Affonso Segretto (irmão de Paschoal) em 19 de junho de 1898,
ao chegar da Europa a bordo do navio Brèsil - mas este filme, se realmente existiu, nunca chegou a ser
exibido. Ainda assim, desde os anos 1970, 19 de junho é considerado o Dia do Cinema Brasileiro. Hoje
em dia, os pesquisadores consideram que os primeiros filmes realizados no Brasil são ‘Ancoradouro
de Pescadores na Baía de Guanabara’, ‘Chegada do trem em Petrópolis’, ‘Bailado de Crianças no
Colégio, no Andaraí’ e ‘Uma artista trabalhando no trapézio do Politeama’.”
Estão, neste capítulo, falaremos sobre alguns filmes fundamentais da história do cinema brasileiro
e mundial situados nos movimentos estéticos a que pertenceram. Começamos pelos pioneiros do
cinema mundial, pois, sem eles, a linguagem cinematográfica tal como a conhecemos hoje não
existiria. Esses diretores são tão fundamentais que se torna quase impossível querer trabalhar com
cinema sem conhecê-los. Seus filmes serviram de matriz para novos filmes.
Se puder, depois de assistir aos filmes indicados, escolha os diretores com que melhor se
identificar e tente se aprofundar na vida e obra de cada um deles. Preste atenção aos roteiros, à
criação de personagens, à trilha e ao enredo. Veja se são filmes em que o roteiro é do próprio diretor
e, quando não for dele, veja de quem é. Observe ainda se os atores estão adequados dentro das
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personagens e se estas são planas (tipos caricaturais) ou esféricas (complexas, com características
psicológicas conflitantes ou mesmo antagônicas) e por quê. Esse tema das personagens planas e
esféricas será tratado nos próximos capítulos, e nada impede que, depois de aprender o que vem
a ser isso, você volte para esta lista e retome a análise com mais critério. Tudo isso será útil para
sua educação cinematográfica e poderá servir de inspiração para alguns de seus roteiros. Espero
que possa apreciar a lista e aprender com ela.
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CURIOSIDADE
“Algumas pessoas ainda não sabem porque o cinema é considerado a sétima arte. Para quem
ainda não sabe, esse termo surgiu em 1911, dado por Ricciotto Canudo no ‘Manifeste des Sept Arts’
(Manifesto das Sete Artes), documento que foi publicado apenas em 1923.
Fonte: RIBEIRO, E. Por que o cinema é considerado a sétima arte? NTRLH, 17 maio 2013. Disponível
em: <http://entrelinhablog.com.br/porque-o-cinema-e-considerado-a-setima-arte/>. Acesso em: 25 abr. 2017.
D. W. Griffith, pioneiro do cinema clássico de entretenimento. “Eu gostaria que meu filme fosse uma
onda pulsante de emoção” (XAVIER, 1984, p. 12).
Filmes mudos:
• Intolerância
• O nascimento de uma nação
Filmes:
• Encouraçado Potemkin (mudo)
• A greve (mudo)
• Ivan, o terrível (falado)
• Dziga Vertov
Filme documentário:
• Um homem com uma câmera
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Cinema alemão - 1920/1930 (expressionismo alemão)
Os cineastas desse período são mestres do jogo de sombra e luz, o que empresta a seus filmes um
tom dramático e poético.
F. W. Murnau
Filmes mudos:
• Nosferatu
• A última gargalhada
• Tabu
• Fritz Lang
Filmes:
• Metrópolis (mudo).
• M - o vampiro de Düsseldorf (início do cinema falado)
Charles Chaplin: fez filmes mudos e falados e foi praticamente o inventor das personagens em
cinema. Sua criação, o vagabundo Carlitos, é talvez a primeiro grande personagem da sétima arte.
Filmes:
• Luzes da cidade (mudo)
• O garoto (mudo)
• Tempos modernos (falado)
• O grande ditador (falado)
Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5a/Dictator_charlie3.jpg>
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John Ford (faroeste)
Filme:
• No tempo das diligências
• John Huston (suspense, o chamado filme noir)
Filme:
• Relíquia macabra
Filmes:
• Psicose
• Janela indiscreta
• Vertigo – Um corpo que cai
Filmes:
• Cidadão Kane
• O terceiro homem
Filmes:
• Oito e meio
• A doce vida
• Noites de Cabiria
• Amarcord
Fonte: <http://cinezencultural.com.br/site/2017/01/24/critica-blow-up/>.
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Cinema francês - anos 1960 (Nouvelle Vague)
Filme: Filmes:
• A regra do jogo • De repente, num domingo
• O homem que amava as mulheres
Alain Resnais
Jean Luc Godard
Filmes:
Filmes:
• O ano passado em Marienbad
• Hiroshima, meu amor • Acossado
• A chinesa
Luis Buñuel
Filmes:
• A idade do ouro (mudo)
• Um cão andaluz (mudo)
• A bela da tarde
• O anjo exterminador
• O discreto charme da burguesia
Fonte: <http://lounge.obviousmag.org/zoom_nas_
visceras/assets_c/2015/03/El%20%C3%A1ngel%20
exterminador-miniatura-800x1133-98610.jpg>.
• Os sete samurais
• Trono manchado de sangue
• Dodeskaden
Cinema mexicano
Filme:
• Rio Escondido. O fotógrafo desse filme chamava-se Gabriel Figueroa e foi considerado um dos
maiores diretores de fotografia da história do cinema. Mais tarde, trabalhou com Luis Buñuel.
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2.2 Lista de filmes brasileiros com seus respectivos
diretores e movimentos/importância
Apesar de muitas vezes menosprezado pelos próprios brasileiros e das reais dificuldades de
construção de bons argumentos e desenvolvimento coerente de personagens, ao longo de sua
história, o cinema do Brasil já produziu clássicos. Realizou movimentos importantes, como o chamado
Cinema Novo, e vem tendo iniciativas diversas para se tornar uma indústria. Os empreendimentos da
Companhia Vera Cruz e da Companhia Maristela Filmes, nos anos 1940, são exemplos consideráveis
de tentativas de fomentação do cinema nacional.
Ainda hoje temos um cinema desigual. Temos apenas três gêneros cinematográficos bem
definidos, graças aos seus diretores: terror, desenvolvido exemplarmente pelo cineasta José Mojica
Marins, os filmes caipiras de Mazzaropi, que tanto sucesso fizeram no país, e os chamados filmes
de cangaço, gênero inaugurado pelo diretor Lima Barreto com O cangaceiro, de 1950. Ainda assim,
mesmo sendo poucos, existem importantes realizadores brasileiros em todas as áreas.
Na direção, temos grandes diretores, como Lima Barreto, Anselmo Duarte, Humberto Mauro,
Mário Peixoto, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, entre outros. Na fotografia, tivemos o
grande Edgar Brasil; na atuação, sempre tivemos grandes atores cômicos e dramáticos, entre eles
Oscarito, Grande Otelo, José Lewgoy, Norma Benguel, Glauce Rocha, Anecy Rocha, Odete Lara,
ente outros. Existem filmes, mesmo sendo poucos, que valeram prêmios importantes fora do país,
por exemplo, “O cangaceiro” e “O pagador de promessas”, verdadeiros acontecimentos no Festival
de Cannes dos anos 1950. Hoje, o cinema brasileiro dá sinais de que está renascendo e merece
nosso respeito. De lá para cá, muita coisa mudou. Ainda não somos uma indústria, mas nomes de
novos autores já despontam no exterior. A seguir, você encontrará uma lista de filmes e diretores
brasileiros que todo aluno de roteiro deve conhecer.
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Formação de uma indústria cinematográfica
Companhia Atlântida: tinha como trunfo a famosa e genial dupla das chanchadas, que eram os
atores Oscarito e Grande Otelo.
Carlos Manga
Filmes:
• O homem do Sputnik
• Matar ou correr
Lima Barreto
Filme:
• O cangaceiro.
Filmes premiados
Anselmo Duarte
Filme:
• O pagador de promessas. Filme de 1962 com roteiro baseado Figura 7 – “O pagador de promessas”
em peça de Dias Gomes. Principais prêmios e indicações:
Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Ficheiro:Pagador_Promessas_CN_0092B.jpg>
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Autores influenciados pelo neorrealismo italiano Figura 8 – “Vidas Secas”
Filmes:
• Rio, 40 graus
• Vidas secas
• O amuleto de Ogum
Um dos principais movimentos de cinema brasileiros. Teve como seu principal ideólogo o cineasta,
agitador cultural e diretor baiano Glauber Rocha. O movimento, no início bastante influenciado pelos
princípios cinematográficos do neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa, logo buscaria
trilhar seus próprios caminhos de solução para o cinema no Terceiro Mundo.
Fonte: <http://www.scielo.br/
Rui Guerra scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0103-40142012000300020>.
Filmes:
• Os fuzis
• Os cafajestes
Roberto Santos
Filme:
• A hora e a vez de Augusto Matraga
Glauber Rocha: um dos grandes gênios do cinema brasileiro, foi o mentor do Cinema Novo, um dos mais
expressivos e fecundos movimentos de arte cinematográfica que tivemos. Ao desenvolver suas ideias
sobre cinema brasileiro, buscava criar roteiros e uma estética fílmica próprios para o terceiro mundo.
Filmes:
• Terra em transe
• Deus e o diabo na terra do sol
• O dragão da maldade contra o santo guerreiro
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Cinema marginal paulista
Filmes:
• O bandido da luz vermelha
• A mulher de todos
Filmes:
• Esta noite levarei sua alma
• Esta noite encarnarei em teu cadáver
Fonte: <http://www.historiadocinemabrasileiro.
com.br/wp-content/uploads/2010/05/POSTER-A-
Mulher-de-Todos.jpg>
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3. AS PERSONAGENS NO CINEMA E NA LITERATURA: PERSONAGENS
PLANAS E ESFÉRICAS
Vamos recordar que o cinema, quando surgiu em Paris, em 1895, ainda era um conjunto de
imagens documentais. Assim faziam em seus filmes os inventores do cinema, que são os fantásticos
irmãos Lumière. Mas o cinema também era utilizado para espetáculos de mágica, como bem fazia
seu outro inventor, o genial francês Georges Méliès, que foi um pioneiro das trucagens e dos efeitos
especiais tão utilizados nos filmes de entretenimento de nossos dias.
SAIBA MAIS
Méliès, além de ser considerado o ‘pai dos efeitos especiais’, fez mais de 500 filmes e construiu o
primeiro estúdio cinematográfico da Europa. Também foi o primeiro cineasta a usar desenhos de
produção e storyboards para projetar suas cenas. Era proprietário do Théatre Robert-Houdin, em
Paris, que havia pertencido ao famoso ilusionista francês Jean Eugène Robert-Houdin.” Saiba mais
clicando aqui.
Depois desse primeiro momento, rapidamente o cinema foi sofisticando suas imagens e
narrativas na busca de uma linguagem própria. Foi quando surgiu o grande diretor americano D. W.
Griffith e logo depois outro genial diretor russo chamado Serguei Eisenstein. A partir deles, o cinema
nunca mais seria o mesmo. Primeiro, Griffith começou a descobrir planos e enquadramentos que,
somados, resultariam nos chamados filmes de ficção. Depois disso, os filmes tornaram-se cada vez
mais ousados, com a construção de roteiros cada vez mais complexos. Para isso, foi necessário
que começassem a utilizar todos os recursos disponíveis na literatura e no teatro. Estava criado o
cinema clássico de entretenimento. O próximo passo seria dado por Eisenstein, que, a partir desses
avanços griffitianos, descobriu o que chamou de cinema ideológico, baseado na montagem. Surgiu
então o cinema de arte.
Os filmes, que antes desses dois cineastas eram apenas quadros de efeitos, captação de exóticas
paisagens urbanas ou rurais, filmes de viagens e documentação fotográfica de costumes, passaram
a criar narrativas de fôlego e personagens consequentes. Surgiram então as grandes histórias
do cinema, e essa arte transformou-se no que seria o cinema clássico e de arte dos nossos dias.
Isto é, um cinema predominantemente de ficção com longas e sofisticadas narrativas, histórias
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complexas, enredos intrincados, em que a imitação da vida é parte intrínseca de sua estrutura. O
cinema passou a se admitir numa busca incessante, mas nem sempre consequente, de mostrar a
vida como ela é.
Figura 10 – Griffith
Fonte: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/93/David_Wark_Griffith_portrait.jpg>.
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A partir de Griffith, a criação de personagem passou a ser uma das características fundamentais
dos filmes de ficção. Não existe roteiro sem personagem nem personagem sem bons argumentos,
enredo e roteiro que possam exprimi-lo em suas angústias, alegrias e todo o tipo de emoções. Com
a evolução do cinema clássico, as personagens tornaram-se o que há de mais vivo num filme. E,
apesar de serem uma invenção total, assim como na literatura, eles têm uma capacidade muito
grande de exprimir todos os anseios, dúvidas, alegrias, lutas, aspirações e tristezas do espectador.
A personagem é aquele elemento que, por mais fictício e fantástico que seja, paradoxalmente
é capaz de comunicar a mais legitima, sólida e universal verdade existencial, mesmo quando essa
verdade for tratada de forma burlesca ou caricatural. Por isso mesmo, tome-se como primeira lição
que as personagens devem ter sempre e obrigatoriamente a capacidade de conter os mistérios do
ser a que representam. E isso não é tarefa fácil de realizar, na medida em que os roteiros devem
conter toda uma coerência entre a criação física e psicológica desse novo ser vivente.
Os aspectos físicos das personagens devem ser tão coerentes com os aspectos psicológicos
que muitas vezes o grande cinema tem usado aqueles como apoio destes em suas criações. Um
bom exemplo desse tipo de procedimento são os mocinhos e bandidos de um clássico do Velho
Oeste feito pelo mestre do cinema de westerns Sergio Leone. Em seu filme “Era uma vez no oeste”,
dos anos 1960, o principal bandido da história é um aleijado que, quanto mais perverso se mostra,
mais se deforma em seu aleijão, até se arrastar pelo chão como um verdadeiro verme.
Diz o ensaísta Antônio Candido, ainda no seu artigo “A personagem no romance” (1968, p. 60),
que “[...] a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo
complicado com personagens simples, para o enredo simples com personagens complicadas”.
O autor completa afirmando que essa é a base do romance moderno do século XX, no qual “[...] o
senso da complexidade da personagem, ligado ao da simplificação dos incidentes da narrativa e à
unidade relativa de ação, marca o romance moderno” (CANDIDO, 1968, p. 61).
Nesse aspecto, o cinema tornou-se muito próximo da literatura. Entre os muitos movimentos
cinematográficos, um dos que mais se utilizaram desses recursos de criação de personagens
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como base de seus enredos foi o chamado neorrealismo italiano. É um movimento que influencia
o cinema universal até hoje, pelo menos nesse aspecto em que o mínimo de ação está quase que
diretamente ligado ao máximo de complexidade das personagens. Foi o movimento que deu origem
ao chamado cinema de autor. Diretores como o grande autor de cinema sueco Ingmar Bergman
tornaram-se mestres nesse tipo de construção estilística. Bergman, por exemplo, com seus filmes
sérios, introspectivos, como “O casamento”, “Persona” e outros, desenvolveu personagens cada
vez mais abertos, que são baseadas na forma como cada um de nós de fato interpreta as pessoas
ao redor e que, por isso, passam a impressão de que em tudo se assemelham à vida em sua forma
mais complexa.
Por outro lado, nos filmes de muita ação, a regra é outra. Quanto mais ações vemos nos filmes de
entretenimento, por exemplo, a série “Indiana Jones”, do diretor Steven Spielberg, mais caricaturais
são suas personagens. Por isso seus filmes são puro entretenimento, que não pretendem em nada
se assemelhar a algo possível da vida real.
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Apesar das diferenças muitas vezes abissais, se observarmos atentamente, constataremos
que a força motriz tanto de um estilo como de outro para realização, quer seja do cinema de autor,
quer do cinema de entretenimento, concentra-se igualmente na criação das personagens, cada
qual idealizada para o padrão que seus diretores desejam desenvolver.
Aproveitando esses exemplos, vamos à segunda lição deste capítulo. As personagens de cinema,
adequando-se a conceitos puramente literários, também surgidos nos romances italianos e franceses
dos séculos XVIII e XIX, podem ser divididas, em termos de dramaturgias e idealizações, em dois
tipos básicos. As chamadas personagens de costumes ou planas contrapõem-se às chamadas
personagens de natureza ou esféricas. Mas o que vem a ser isso?
A literatura do século XVIII, segundo Candido (1968, p. 61), buscou trabalhar com esses dois
tipos de personagens. Diz o ensaísta que os dois tipos são muito diferentes entre si:
As personagens de costumes são muito divertidas, mas podem ser mais bem
compreendidas por um observador superficial do que as personagens de natureza,
nas quais é preciso saber mergulhar nos recessos do coração humano.
Tanto para a literatura quanto para o cinema, as chamadas personagens de costumes são na
verdade o que o ensaísta Antônio Candido define hoje como as personagens planas: apresentadas
por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados. São na verdade caricaturais.
Adéquam-se mais, por isso mesmo, ou têm sua eficácia máxima na caracterização de personagens
cômicas, pitorescas, invariavelmente sentimentais. Já as chamadas personagens de natureza,
para o crítico, equivalem ao que hoje os escritores entendem por personagens esféricas, que,
ao contrário de traços superficiais, são apresentadas pelo seu modo íntimo de ser. Não são
imediatamente identificáveis ou acentuadamente trágicas, e isso impede que tenham a regularidade
dos outros. Ocorre que essas personagens complexas exigem que seus roteiristas observem
cada mudança do seu modo de ser, criando para elas uma característica diferente, geralmente
analítica, mas nunca pitoresca.
As personagens planas veem os homens pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das
suas relações e pela visão que temos do próximo. Para Candido (1968), que trouxe essa definição à
literatura, elas são tipos, por vezes caricaturais. Por sua vez, as personagens esféricas mostram-se
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à luz de sua existência profunda, que não se explica pelo mecanismo das relações. Ao contrário
das outras, estas têm mais de duas dimensões, são organizadas com mais complexidade e são
capazes de surpreender o espectador.
Não dá para definir qual dessas duas formas de criação de personagens foi mais utilizada no
cinema ao longo de sua história. O que se pode considerar, no entanto, é que a utilização de um tipo
em detrimento de outro faz parte do estilo de cada grande roteirista e diretor. Na atualidade, por
exemplo, tanto Woody Allen quanto Quentin Tarantino trabalham basicamente com personagens
planas, tipos, verdadeiras caricaturas humanas que utilizam exemplarmente em suas sátiras de
costumes. Por outro lado, temos na atualidade um diretor como Martin Scorsese, que, influenciado
pelo grande diretor hollywoodiano Elia Kazan, mestre da criação das personagens esféricas, trabalha
com personagens complexas, cuja existência profunda é muito acentuada, como são as de “Cabo
do medo” (1991), com Robert de Niro.
O fundamental, no entanto, é que, pelo menos num primeiro momento, o roteirista domine essas
duas formas de construção de personagens, mas que vá aos poucos se definindo por uma delas, de
preferência por aquela que melhor se enquadre com seu temperamento ou com o estilo que deseja
adotar para si e o gênero com que escolher trabalhar em seus roteiros e argumentos.
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Exercício 1
Vamos agora à primeira prática de exercícios para seu desenvolvimento como roteirista.
a) Assista a um filme de Alfred Hitchcock – por exemplo, “Um corpo que cai”, de 1958, e
depois ao filme “Brancaleone nas Cruzadas”, de 1970 – e veja que tipo de personagens
é utilizado em cada um. Examine atentamente as personagens principais de cada um
deles. Veja em qual filme elas são planas, em qual são esféricas e por quê. Enumere suas
características físicas e psicológicas. Observe seus figurinos e diálogos e a maneira como
os atores se adéquam a suas personagens.
b) Escolha uma personagem de cada filme assistido e tente fazer sua descrição física e
psicológica. Imagine ainda, se você fosse o diretor desses filmes e eles fossem realizados
no Brasil. Quais atores você escolheria?
c) Faça uma pequena narrativa com uma personagem plana. Depois desenvolva essa
narrativa com a mesma personagem, mas agora sendo esférica. Descreva como
seriam essas personagens que você desenvolveu. Não se esqueça de colocar tanto as
características físicas como as psicológicas de cada uma delas.
d) Refaça esses exercícios com outras personagens, com quantos filmes quiser e quantas
vezes for necessário para que possa compreender completamente de que forma
funcionam as personagens no cinema.
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4. O PROTAGONISTA E SEUS ARQUÉTIPOS
Como já sabemos, escrever roteiros é uma função que se depura pela prática. Já sabemos
também que a criação das personagens e suas funções dramáticas é um dos aspectos mais
importantes da criação de roteiros. Portanto, vamos aprender como realizá-la.
O escritor Christopher Vogler, autor do livro “A jornada do escritor” (2006), lançou em sua obra
algumas considerações sobre o tema que podem ajudar. Como não existe fórmula fixa para processos
de criação, nem todas as suas ideias sobre a construção de um roteiro podem interessar. Devemos
ler seu livro ou qualquer outra obra que fale de criação de roteiro com senso crítico, aproveitando
o que serve e descartando o que não se aplica a nossa produção.
Vogler não tem a fórmula mágica da criação, no entanto, a abordagem que faz sobre a questão
dos arquétipos e das jornadas em etapas de um protagonista é muito interessante. Como podem
realmente ser úteis, vamos a ela para as próximas fases de criação desta oficina. Mas, antes, vamos
compreender o que são arquétipos.
Fonte: <http://images.huffingtonpost.com/2014-08-20-clareza-thumb.png>.
O termo arquétipo é utilizado na filosofia desde a Antiguidade. Para Platão, por exemplo,
significava que o modelo de todas as coisas existentes já está no mundo das ideias. Portanto, os
arquétipos são de propriedade coletiva e pairam no ar, podendo ser captados por qualquer um. Mas
essa concepção não foi usada só pelos platônicos: no cristianismo, por exemplo, foi retomado por
Santo Agostinho, que considerava arquetipal tudo o que vinha da mente de Deus. Trata-se, portanto,
de tudo o que faz parte da criação e que o homem pode vir a conhecer em qualquer parte do mundo.
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SAIBA MAIS
“Christopher Vogler é um roteirista de Hollywood. É famoso por ter escrito o “memorando The writer’s
journey: mythic structure for writers” (“A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas”), como
um guia interno para os roteiristas dos estúdios Walt Disney.
[...]
Vogler trabalhou para os estúdios Disney, Fox 2000 Pictures, e para a Warner Bros., sempre nos
departamentos de desenvolvimento de ideias. Também já foi professor da Escola de Cinema e
Televisão da Universidade do Sul da Califórnia, na Divisão de Animação e Artes Digitais, bem como na
extensão da UCLA. Atualmente, Vogler é presidente da empresa Storytech.”
Mas a forma como vamos utilizar a concepção de arquétipos nos roteiros vem do psicanalista
Carl Jung. Para ele, arquétipos são a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se
moldar. Isto é, são as estruturas matrizes de qualquer ser humano que, sendo inatas, servem de
modelo para a expressão e o desenvolvimento da psique. Arquétipos são as imagens sedimentadas
profundamente no que o psicanalista chamou de “inconsciente coletivo”. Portanto, são imagens
arcaicas que existem na mente da humanidade desde sempre. Por isso, são universais, como os
sonhos ou mesmo algumas imagens primordiais: uma mesma experiência humana que se repetiu
por muitos anos e foi se tornando conhecida de todos os povos em gerações contínuas. Podem ser,
por exemplo, os símbolos, visto que são instintivamente compreensíveis por toda a humanidade.
Para Jung, os arquétipos constituem uma unidade que, ao mesmo tempo em que não pode ser
esvaziada, modifica-se de cultura para cultura ou de uma época para outra, sem no entanto deixar
de ser arquétipo. Temos, segundo ele, os arquétipos da morte, do herói, do si mesmo, da grande
mãe e do espírito ou velho sábio; outros conhecidos e recorrentes, para o psicanalista, são a anima,
a persona, a sombra etc.
Diz ainda Jung que, se todos os arquétipos são sistemas dinâmicos autônomos, alguns deles
evoluíram tão profundamente que se encontram separados da personalidade. Encontram-se nas
fantasias do ser humano e aparecem por meio de imagens simbólicas que se repetem em qualquer
época ou lugar do mundo - mesmo quando não se sabe de que forma chegaram até lá. E não se
explicam nem por transmissão de gerações, nem como resultado de imigrações e mistura dos povos.
Para o psicanalista, os arquétipos estão tão profundamente ligados à psique que podem se
expressar justamente pela narrativa oral, especialmente os ligados a mitos, ou até mesmo pelos
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contos de fadas. O cinema, que em larga medida recuperou a narrativa oral, também vai trabalhar
com arquétipos.
Para compreendermos melhor a questão dos arquétipos no cinema, vamos adotar a visão dos
intelectuais Joseph Campbell e Christopher Vogler, que adotaram a definição junguiana, chamando
a atenção para o fato de os arquétipos surgirem numa narrativa independentemente de seu caráter
ser fantasioso ou não. Para Campbell (1995), os arquétipos fazem parte de todo ser humano como
órgãos de um corpo, fenômenos biológicos.
Fonte: <http://publicinove.com.br/wp-content/uploads/2015/06/lemas-dos-arquetipos.jpg>.
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SAIBA MAIS
“O conceito de arquétipos, do jeito que conhecemos hoje, surgiu em 1919 com o suíço Carl Gustav
Jung, discípulo de Freud.
[...]
Até mesmo quando consumimos produtos e serviços, somos influenciados pelos arquétipos. Uma
cerveja, por exemplo, além de ‘matar a sede’, também pode satisfazer a necessidade de pertencer a
um grupo, já que, para muitas das pessoas, o simples fato de sair para beber cerveja significa estar
com os amigos, familiares ou colegas de trabalho. Portanto, nesse caso, a marca de cerveja que
souber usar o arquétipo certo, vai conseguir transmitir essa mensagem muito melhor.”
Fonte: CALMON, Pedro. O que é arquétipo? O arquétipo, 28 set. 2011. Disponível em: <https://oarquetipo.
wordpress.com/o-arquetipo>. Acesso em: 25 abr. 2017.
Vogler (2006), por sua vez, influenciado pela obra de Vladimir Propp, estudioso das narrativas
a partir das funções desempenhadas pelas personagens, acredita que os arquétipos possam ser
tomados como máscaras das quais estas dispõem, utilizando-as temporariamente conforme a
necessidade do andamento do enredo.
O autor sugere que, em se tratando dos protagonistas, devemos considerá-los como facetas da
personalidade do herói, com possibilidades (boas ou más) em relação a este, o que nos faz entendê-
lo como personificação das diversas qualidades humanas. Vogler (2006) vê o protagonista como
um herói ou anti-herói que deve seguir uma longa jornada feita por etapas até o fim.
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5. UMA IDEIA NA CABEÇA E UMA PERSONAGEM NAS MÃOS
É bem verdade que toda história pode começar a ser imaginada a partir de uma situação ou de
uma imagem, mas vamos tentar aqui começá-la pela construção de seu protagonista. Primeiro,
vamos idealizar quem será esse protagonista. Para isso, eu lanço algumas questões. Começaríamos
a construção de uma personagem principal por sua personalidade ou por suas características
físicas? É possível separar uma coisa da outra? Podemos ter um protagonista conquistador, do
tipo convencido e senhor de si, sendo baixinho, barrigudo e careca? Não? Mas e se ele fosse cheio
de charme, bastante culto? E ainda se quiséssemos um protagonista fora dos padrões de beleza
adotados pela estética ocidental? É possível separar a razão da emoção?
Só por essas questões, vocês podem perceber que existem infinitas possibilidades de criação
de uma personagem. Portanto, vai depender exclusivamente do roteirista e de sua capacidade
criativa o quanto será desenvolvido e de que forma entrará em cena. Podemos usar para isso uma
lista com algumas dessas características básicas. São elas:
• Parcimonioso – pródigo
• Sujo – imaculado
• Gentil – violento
• Inteligente – estúpido
• Alegre – lânguido
• Gracioso – apático
• Delicado – bruto
• Valente – covarde
• Claro – confuso
• Obstinado – dócil
• Generoso – avaro
• Fanfarrão – humilde
• Gregário – solitário
• Justo – injusto
• Moral – imoral
• Otimista – pessimista
• Crédulo – incrédulo
• Tranquilo – nervoso
• Saudável – doente
• Sensível – insensível
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• Ingênuo – malicioso
• Arrogante – cortês
• Cruel – benevolente
• Extravagante – comedido
• Indeciso – impulsivo
• Simples – complexo
• Vulgar – nobre
• Pretensioso – modesto
• Lúcido – alienado
Figura 15 – Muitas são as personalidades humanas
• Natural – afetado
• Misterioso – evidente
• Torpe – hábil
• Impetuoso – sereno
• Astuto – franco
• Egoísta – altruísta
• Histérico – plácido
• Leal – desleal
• Galante – rude
• Loquaz – taciturno
• Ativo – preguiçoso Fonte: shutterstock.com/Nuttapong
São tantas as características encontradas na personalidade humana que fica difícil enumerar.
Pensemos em algumas:
Sofrido, temível, amado, puro, sagaz, inteligente, modesto, raro, cordial, eficiente, puro, sagaz,
criterioso, equilibrado, rude, virtuoso, mesquinho, corajoso, vil, incapaz, trabalhador, irrecuperável,
velho, altivo, popular, eloquente, mascarado, gordo, hilário, impopular, preguiçoso, romântico,
malévolo, infantil, sinistro, inocente, ridículo, atrasado, deleitável, hostil, incrível, maravilhoso,
abominável, ressentido, tarado, amargurado, egocêntrico, capaz, mordaz, palerma, ingênuo,
poderoso, volúvel, indecente, atarantado, perseguido, paranoico, recorrente, malcriado, biltre,
birrento, fugitivo, sonhador, sorridente, covarde, minucioso, atento, clandestino, maricas, oportunista,
gentil, obscuro, falacioso, mártir, cultíssimo, sábio, masoquista, agitador, atrapalhado, mirabolante,
bonito, feio, simpático, irresistível, pesado, arrogante, demagogo, áspero, viril, prolixo, afável,
trepidante, rechonchudo, mavioso, bronco, esfomeado, espantado, bruto, palavroso, impoluto,
magnânimo, incerto, inseguro, bondoso, pegajoso, impotente, confidente, peludo, besta, gago,
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acintoso, errado, marginal, insinuante, melífluo, solerte, hipocondríaco, malandro, mole, correto,
lépido, acanalhado, pérfido, contundente, santinho, soturno, impecável, misericordioso, voluptuoso,
machão, hospitaleiro, cafajeste, imprestável, amoroso, beijoqueiro, surdo, valente, faquir, pirata,
desmiolado, presente, bigodudo, feroz, cruel, expulso, mau, doente, ferido, idiota, moralista, alienado,
gasto, racista, amordaçado, medonho, colaborador, insensato, vulgar, ciumento, idoso, fingido,
idealista, falso, aldeão, lavrador, pobre-diabo, enjoado, bajulador, voraz, alarmista, incompreendido,
vítima, contente, adulador, coitadinho, farto, progressista, civilizatório, emperrado, acuado, farto,
programado, imbecil, acomodado, prejudicado etc.
Vejam quantas opções de caráter as personagens podem ter, principalmente se pensarmos que
uma delas pode ter mais de uma característica, além de poder se deixar influenciar e virar outro ser
até o final do filme, mudar seu modo de vida e personalidade no transcorrer da história.
Essa dinâmica da diversidade leva à ideia de conflito e faz observar que as personalidades
mais interessantes são as mais complexas, já que o conflito num roteiro surge muitas vezes em
função das características das personagens ou, pelo menos, elas devem ter características que as
encaixem tanto na história quanto propriamente nos conflitos.
Fonte: shutterstock.com/fabiodevilla
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Vamos imaginar algumas outras personagens importantes, além do protagonista, que participarão
do enredo. Todos deverão ter algumas dessas características latentes ou suas variantes. O que o
determinará será a história desenvolvida.
Exercício 2
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6. PERSONAGEM, IMAGEM E FUNÇÃO DRAMÁTICA
É bem verdade que, quando tratamos de cinema, a primeira coisa que nos vem à mente são as
imagens, afinal, cinema é movimento imagético. Sempre houve um conceito por detrás de cada
imagem de um filme, nem sempre determinando uma dualidade, no entanto, no mínimo, acrescentando
um recheio indissolúvel à forma.
No filme “Um corpo que cai” de Hitchcock, por exemplo, não interessam os motivos, mas o
fato de a personagem principal carregar consigo uma terrível carga dramática, que é o conceito
de morte. O filme é um drama. Mas vale perguntar: o que seria da personagem se fosse comédia?
como ficaria esse aspecto do protagonista? A resposta será que, mesmo assim, a personagem
carregaria consigo o conceito de paródia da morte.
Vemos com isso que o gênero não modifica a qualidade principal das personagens – apenas dá
nova forma como elas serão desenvolvidas. Portanto, não dá para pensar em imagem desvinculada
de conceito, do mesmo modo que, ao imaginarmos uma personagem, não importa por onde vamos
começar, se pela parte física ou pela personalidade, o que vale é o conjunto da obra. Afinal, o que
teremos é a unicidade, mesmo porque é comum dizer, como forma de definição geral, que determinada
pessoa nos deixou uma boa “imagem” ou fez uma boa “figura”, que são na verdade terminologias
que sintetizam a complexidade que compõe a personalidade por meio da imagem.
Isso também ocorre com a personagem, então, em seu processo de criação, pode acontecer
que você primeiramente a enxergue. Portanto, imagine-a em toda a sua imagem, dando-lhe uma
aparência antes até de pensá-la em conceito, mesmo que depois a produção vá optar por um ator
que nada tenha a ver com o que você visualizou. Isso não importa, porque o momento de criação
é seu, exclusivo.
Devo acrescentar, no entanto, que estamos tão acostumados a conceitos que o mais normal
em uma criação é que apareçam ao roteirista primeiro as características intrínsecas e funcionais
da personagem mesmo antes de se enxergá-la.
Como exemplo, imagine que você tivesse que compor uma personagem irmã da Gabriela do
livro “Gabriela, cravo e canela”, de Jorge Amado. Como faria? Quais seriam as suas características
físicas e psicológicas? Ela seria semelhante à irmã, um belo tipo moreno, faceiro e sensual? Ou seria
o oposto de Gabriela, isto é, uma mulher baixinha, sem graça, de voz esganiçada e profundamente
invejosa da beleza da irmã, que de fato ela não tem? Veja por aí quantas possibilidades de criação
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existem. Como são muitas, provavelmente você iria pensar de que forma essa moça entra na história
e só então teria condições de imaginar seu tipo físico e psicológico.
A irmã de Gabriela, se a tivesse, poderia ser alta, baixa, bonita, com óculos, maquiada, morena,
branquela (por algum motivo) ou mesmo um tipo intelectual que de pequena foi para a cidade grande
estudar com parentes abonados e se tornou um ser absolutamente diferente da cabocla simples e
sensual que se manteve na cidade pequena e provinciana de Ilhéus do início do século XX.
Pode ser também que, no processo de criação, a irmã de Gabriela venha quase pronta, necessitando
apenas de uma lapidação que será feita no desenrolar da história, de seus fatos e ações. É aí que
entra a fundamentação da personagem, o que ela é na sua história. Você teria que saber, para criá-
la, qual a sua função dramática.
Fonte: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=4014631>.
A definição da função dramática de sua personagem pode parecer, à primeira vista, uma coisa
superficial, desnecessária e até mesmo arbitrária. De certa forma é, se formos encarar sob o ponto
de vista da escrita direta. O problema é que, ao desenvolvermos o roteiro, como nele se insere a
proposta de contar uma história, teremos alguns elementos que exercerão uma função dramática.
Lembre-se de que toda trama conta uma história, visto serem todas as coisas do universo que
contemplamos na narrativa presas ao tempo e ao espaço que desenvolvemos. Dessa forma, todas
as ações que ocorrem nela desenrolam-se nessas dimensões.
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Mesmo num filme avant-garde em que temos uma linha amarela que traça sua trajetória
sobre uma tela negra ao som de Debussy, ainda assim essa linha tem a história de seu trajeto. A
pergunta que fazemos durante a projeção é: que caminhos ela traçará? É claro que nem todas as
personagens se prendem a padrões preestabelecidos, mas de qualquer forma encontraremos nelas
determinadas características dessa ou daquela função. No caso de nossa linha, se é ela que se
movimenta, se nos leva em sua trajetória, não será difícil entendê-la como a protagonista, sendo
a música e a tela negra os panos de fundo da narrativa. Se por acaso a tela começar a vibrar em
diferentes tonalidades, isso pode induzir a sensação de que a linha atravessa uma área de conflito.
O mesmo se daria com a variação rítmica e melódica da música.
Temos que aceitar também o fato de que, desde as narrativas em volta do fogo da Pré-História
até nossos dias, pouco mudou sobre a forma de contar uma história. Quando eram narrados os
atos de heroísmo de cada clã ou tribo, estava-se criando uma maneira de contar histórias que
atravessaria o tempo e permaneceria semelhante ao que se faz até hoje.
Vejam que estamos tratando aqui dos conteúdos, e não das formas, pois estas variaram por
conta da estética e das diferentes linguagens empregadas. Grosso modo, as narrativas orais ou
escritas não são as mesmas do cinema, muito embora a imagem e o movimento possam impregnar
as primeiras pela força da imaginação.
Nesse sentido, temos que aceitar o fato de que a personagem protagonista será sempre o herói
do filme. Isso leva a uma conclusão que fortalece a noção de que o conceito de herói pode variar
bastante. Então, como defini-lo de forma conclusiva?
Podemos dizer que o herói será aquele que nos conduzirá, por intermédio de suas ações, pela
história narrada. Será a personagem do protagonista, e todas as outras poderão, por esse balizamento,
ser definidas como aliadas ou inimigas na trajetória a ser seguida por ele. E a imparcialidade? Ela
estará a cargo do observador imparcial, uma personagem que estaria inserida na personalidade
do autor, que frequentemente se faz representar pela câmera – não que isso signifique que não
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possa existir uma personagem que circula por determinados planos apenas como mero observador
curioso. Tirando isso, todas as outras estarão auxiliando na narrativa para que se conte a história,
algumas ao lado do herói e outras contra ele. Terão, portanto, todas elas uma função dramática.
Porém, além das personagens, existem outras funções dramáticas que servem de pano de
fundo de sua história e que estão diretamente ligadas à trajetória do protagonista. São etapas
pelas quais ele terá que passar até atingir seu objetivo. Do mesmo modo que não podemos ser
cartesianos com relação à criação de suas personagens e funções, não deveremos sê-lo com
relação às etapas. Veremos mais adiante que existe um mapeamento destas, mas isso varia muito
de acordo com o contexto.
É consenso que, em toda narrativa, o protagonista é aquele que, ao viver seu cotidiano, é levado
à ação pelo surgimento de algum conflito. Também é verdade que ir muito além desse conceito é
abrir portas para o erro. De modo algum é certo que o herói tenha que cumprir determinadas etapas,
excetuando-se a primeira, para atingir seu status dentro de uma história, menos ainda que essas
etapas tenham que estar todas inseridas dentro da narrativa. Lembre-se de que todo filme é um
recorte da realidade e cabe nele exatamente o que o escritor estipular.
É simples assim: o roteirista deve buscar o recorte de sua história, assumi-lo totalmente desde
o argumento e não perder esse foco até o final. Se vamos contar, por exemplo, a história imaginária
de uma possível irmã de Gabriela que esta nunca conheceu e que foi separada dela quando ainda
eram bebês numa espécie de brincadeira imperfeita de “Os irmãos corsos”, obrigatoriamente teremos
que manter a espinha dorsal desta narrativa do começo ao fim.
Para nos ajudar a compreender melhor de que forma se dá a criação da narrativa a partir das
personagens, vamos analisar algumas colocações sobre isso no livro “A jornada do escritor”, de
Christopher Vogler (2006), uma obra bastante interessante ao se tratar dessa construção. No entanto,
devemos estar sempre atentos com relação aos exageros e fechamentos em torno de uma ideia.
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Figura 18 – Não perder o foco até o final do roteiro
Minha abordagem aqui se dará mais pelo caráter ilustrativo do que propriamente pela receita.
Não é de maneira alguma certo que tudo que se lê na obra de Vogler deva ser seguido ao pé da
letra. Existem inúmeros filmes que jamais cumpriram esses parâmetros ou, pelo menos, não em
sua integralidade. O estudo de “A jornada do escritor” é interessante pela pertinência de algumas
abordagens, principalmente pela análise lúcida de cada tópico, sem que isso represente o único
caminho. No entanto, é fato que existem os arquétipos e as etapas apontadas pelo autor. É também
verdadeiro que podemos encontrá-los num grande número de filmes – acredito que, na maioria
deles, sem a consciência do roteirista e do diretor.
O que Vogler fez foi analisar, em seu estudo, o que já estava impresso na tela ou nas páginas
de roteiros. Partiu dos estudos de Joseph Campbell sobre o mito e chegou a algumas conclusões
que são verdadeiramente úteis a qualquer um que queira escrever histórias. É bem claro que, de
fato, podemos encontrar um determinado padrão narrativo desde as primeiras histórias contadas.
Há os que acreditam que foi criado um número extremamente pequeno de narrativas, as quais
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foram desdobradas em todas as outras que nos chegam. Não podemos comprovar tal afirmação,
mas podemos dizer que a grande maioria segue, mesmo que por instinto, um determinado padrão.
Todos que lidam com a criação estão cansados de saber que, se você não põe em prática ideias
que pensou, em breve estará se deparando com elas na obra de outro autor e, aí, será muito tarde e
só restará o arrependimento. Digo isso não apenas como um alerta, mas também para afirmar que
a atmosfera e as condições que lhe permitiram “enxergar” alguma coisa não estão somente à sua
disposição, mas, ao contrário, estão no ar para todos. Talvez daí advenha o fato de que a maioria
das histórias é contada seguindo um padrão.
Seguiremos com as conclusões de Vogler (2006), pois suas reflexões irão ajudar no processo
de criação de um roteiro.
CURIOSIDADE
O americano Robert McKee é conhecido como o mais importante consultor de roteiros da indústria do
cinema. Em visita ao Brasil, ele deu dicas para o cinema brasileiro. Entre essas dicas, sugeriu: “Vocês
têm de parar de canibalizar romances e criar histórias para fortalecer a indústria”. Veja a matéria
completa clicando aqui no site
Fonte: FRAGA, Plínio. Para Robert McKee, importante consultor de roteiros, cinema brasileiro
canibaliza romances. O Globo, 28 jan. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/para-robert-
mckee-importante-consultor-de-roteiros-cinema-brasileiro-canibaliza-romances-7411158>. Acesso em: 26 abr.
2017.
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7. O HERÓI DO CINEMA E SUA JORNADA
Vamos analisar o que Vogler (2006) chamou de “mundo Figura 19 – O herói do cinema
comum”, que vem a ser o cotidiano do qual o protagonista
é retirado para ser lançado em sua “aventura”, sendo este
conceito, no nosso caso, entendido como qualquer história
que possa ser criada. De qualquer forma, é a ideia de que
o herói será lançado, pelo surgimento de um conflito, num
mundo no qual ele não vive cotidianamente.
É inegável que, nesses casos, os roteiristas têm que encontrar um caminho. O que eles fazem é
transferir a quebra da vida cotidiana para a personagem, que deverá ser socorrida pelo protagonista.
Vamos imaginar que o herói está com a sua vida atribulada por vários casos até surgir uma
ocorrência que atingiu determinada pessoa ou pessoas em sua vida comum. Acontece que esse
artifício é camuflado para pegar sempre o protagonista cumprindo suas tarefas diárias, mesmo
que essas, em si, já sejam um desafio, para dar a impressão de que algo realmente novo surgiu na
vida do herói, o chamado para algo até então nunca vencido.
Esse, na verdade, é um grande desafio para os roteiristas da série, maior ainda do que para
os heróis: estar sempre criando novas situações que possam jogar seu protagonista numa nova
aventura. Saindo do caso específico das séries, não é muito difícil imaginar alguém sendo atingido
em sua vidinha normal por algo que lhe desafie.
Todo ser vivo sobre a Terra, e talvez no Universo, é constantemente desafiado. O que ocorre
é que, na maioria das vezes, esses desafios não são aceitos. Ou, ainda, são corriqueiros, comuns
à sobrevivência, como a luta de uma planta para atingir a luz do sol ou de um cervo para escapar
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das garras de um lobo. Essa luta cotidiana não se configura no que poderíamos considerar um
chamado, mas está em todos nós.
Pode ser, por outro lado, que o seu roteiro consista exatamente em trabalhar sobre esse aspecto
da luta de um homem em seu dia a dia enfrentando como qualquer um a luta pela sobrevivência.
Acontece que, ao inseri-lo em sua narrativa, você já estará emprestando a essa personagem um
caráter exclusivo, por mais que se tente dissimulá-lo. A personagem em foco estará carregando a
narrativa do roteirista, e não há como escapar disso.
É possível, no entanto, que as pessoas digam que seu filme é chato e que não apresenta coisa
alguma de extraordinário. Afinal, onde está o desafio, o conflito, o chamado? Elas farão essa pergunta
em seu íntimo, sem que necessariamente o façam por conhecimento técnico, mas sim pelo simples
fato de que aquela personagem não está fazendo algo diferente do que ela faria, portanto, essa
seria uma história comum.
Daí a importância de jogar o protagonista numa jornada que o coloque no hall das pessoas
especiais, aquelas que, em determinado momento de suas vidas, são atingidas por algo que as
jogue numa “aventura”, seja ela de caráter externo ou interno.
Como já disse, vários de nós de vez em quando se deparam com alguns chamados que estão
além da rotina. A questão é se você se lançará no rio para salvar alguém que pede socorro ou se
ficará na margem olhando. No segundo caso, ainda assim, você poderá ser o protagonista que se
deparará com a dúvida sobre as implicações de sua imobilidade diante dos apelos de uma criança,
o sentimento de culpa e a questão sobre a coragem. O que queremos dizer é que, ocorrido o fato,
o conflito, a pessoa – a personagem que está sendo criada – que o vivencia estará inserida na
jornada, não importando o rumo que se dará à história.
Uma vez ocorrido o conflito, o chamado faz-se presente, e haverá quebra do cotidiano. Cabe ao
autor criar conflitos e chamados que sejam interessantes e que, na medida do possível, tragam algo
de novo. Também é importante ter em mente que eles devem seguir a noção de verossimilhança.
Não quero dizer com isso que seu herói não possa enfrentar a Hidra de Lerna – animal que jamais
existiu –, mas que você possa convencer as pessoas de que ela poderia de fato estar ali como um
desafio real. Para tanto, é preciso criar em sua narrativa elementos que possam corroborar o fato
narrado, não importando o quão fantasioso ele seja: a hidra existe por causa disto, disto e disto. Dê
verossimilhança a suas personagens. É bem natural que Hércules enfrente o animal mitológico. Já
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se fosse Pedro saindo de seu trabalho no centro da cidade, o roteirista teria que explicar o porquê
de a hidra estar ali.
Como estabelecer o conflito e gerar um chamado é a parte inicial de sua história. Dedique-se
a ela com cuidado e pense bem em que tipo de aventura estará jogando seu protagonista. Vogler
(2006) fala dos arquétipos e sua presença em toda história. Ele faz uma analogia com o que é
apresentado nas teorias da psique. Assim, compara o arquétipo do herói ao ego na visão freudiana,
que o apresenta como a figura que se separa da mãe e transcende os limites da ilusão.
Por um lado, podemos argumentar que o protagonista, na figura do herói, também cria para si
um estado ilusório que o leva a acreditar estar imbuído de uma missão e, dessa maneira, amplia
seu ego. Por outro lado, também podemos afirmar que nem todo protagonista tem vocação para ser
herói. De qualquer forma, ele se destaca dos demais em suas ações e tem que aceitar o chamado e
o enfrentamento do conflito, vivenciando uma ruptura com seu cotidiano, daí a ideia da separação
do materno.
Aquiles escolhe partir para Troia apesar dos avisos e apelos de sua mãe, a deusa Tétis. Ela lhe
diz que a guerra o transformaria num herói, mas que o mataria, e ele jamais voltaria a vê-la. Apesar
disso, o semideus parte para cumprir seu destino, apesar de ter a chance de ficar e morrer velho:
poderia apenas cuidar de seus netos, mas ser esquecido com o passar do tempo. Nada o move
além do orgulho.
Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:J_G_Trautmann_Das_brennende_Troja.jpg>.
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Nem todo herói é movido pela ambição: muitos lutam apenas para sobreviver. Outros, apenas
por se sentirem obrigados por sua própria consciência, e há ainda aqueles que o fazem em auxílio
às pessoas amadas ou a causas com as quais se identificam.
SAIBA MAIS
A jornada do herói embasa uma variedade de temas roteirizados para telona. A jornada do herói é um
arquétipo narrativo comum, ou modelo de história, que envolve um herói que parte em uma aventura,
aprende uma lição, alcança uma vitória com esse novo conhecimento e então retorna para casa
transformado em um grande herói. Saiba mais sobre esse paradigma em: https://rockcontent.com/br/
talent-blog/jornada-do-heroi/ > Acesso: 28nov. 2021.
Prefiro então pensar a personagem principal sob a perspectiva do protagonista. Parece-me mais
plausível que se possa dar a ela algumas características heróicas, mas impregná-la de humanidade,
com todas as suas limitações e defeitos.
Vogler (2006) também humaniza os heróis a tal ponto que talvez fosse mais simples chamá-los
de outra coisa. Um herói não é um super-herói, então pode ser que seu protagonista seja apenas
uma pessoa comum. Mas por que chamá-lo assim?
Antes de tudo, ele é o protagonista, mas este pode ser o vilão. E, se o vilão é o protagonista,
qual o status do inimigo do protagonista? Seria o herói? Claro que não: se o vilão é quem conduz
a história, quem o combate é simplesmente o antagonista. Então, nesse caso, o vilão é o herói, o
que vem contra a ideia que se tem, pois, em sua jornada, deve seguir as etapas que o herói cumpre.
Temos a figura do anti-herói, mas não é disso que estamos falando. Este surge como aquele
esquisitão, preguiçoso, trapaceiro, volúvel e, por vezes, até mesmo medroso. Essa personagem faz
de tudo para negar seu destino, mas no final acaba como um herói. Já o protagonista vilão é mau,
perverso, cruel, covarde etc. Hannibal Lecter, do filme “O silêncio dos inocentes” de Jonathan Demme,
baseado no livro de Thomas Harris e com roteiro de Ted Tally, é um vilão terrível, mas no final ajuda
a detetive a vencer um serial killer, o que lhe empresta algo de herói. Mas aí vem a complicação:
seguimos toda a história sob a perspectiva de Clarice Starling, a detetive, então, quem nos conduz
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é ela. A pergunta que se lança, no entanto, é se, sendo assim, ela é a heroína ou a protagonista. É
certo que protagoniza, mas então o que seria Hannibal? Pela visão defendida por Vogler (2006),
este seria o mentor.
Na verdade, transfere-se o arquétipo de vilão para Buffalo Bill Gumb, que é o assassino à solta.
Podemos, no entanto, perceber a sutileza na divisão das funções dramáticas em determinados
filmes. Por isso, repetindo, prefiro chamar meus possíveis heróis de protagonistas, simplesmente.
Dessa forma complexa, podemos perceber que criar uma história tem tantas variantes que
fazer algo realmente profundo exige muita coerência e compreensão do que são as personagens
da trama a ser desenvolvida.
Em “A jornada do escritor”, o que Vogler (2006) quer dizer é que todo protagonista segue certas
características arquetipais, quer seja de herói ou de vilão, e que elas serão criadas a partir de
etapas/jornadas dentro da longa caminhada que toda personagem principal deve seguir, se assim
a história desenvolvida exigir.
CURIOSIDADES
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8. ROTEIROS COM EXERCÍCIOS
A partir de agora, você lerá trechos de roteiros escritos pelo professor Luís Moreira Filho e, a
partir deles, terá uma série de exercícios que, ao ser resolvidos, podem ajudá-lo na criação. Quando
houver dúvidas, pode fazer seus questionamentos nos chats da disciplina. Esses exercícios não
são para nota nem para ser entregues, mas servirão para a preparação dos exercícios pedidos na
avaliação final da disciplina.
FIGURA 21 – Roteiros
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abrindo caminho entre a densa vegetação. De repente o vazio, o abismo, a
perda do equilíbrio e o pavor em seus olhos.
Miguel acorda de seu pesadelo. Deitada com a cabeça em seu ombro, está
Xana. Ambos são iluminados por uma fogueira.
Xana
- Miguel!
Miguel
Xana
- Outra vez?
Miguel
- …Vontade de voltar logo pro Rio, ver o Fabinho... É meu único filho,
Xana, único. Fiquei longe tempo demais. Tenho medo de ter perdido ele... A
Marta tá cada vez mais fria... Quando telefono, é só assunto de dinheiro,
a educação do garoto...
Xana aconchega-se mais ainda nos braços de Miguel, faz cafuné. O olhar
perdido nas estrelas.
Miguel
- Amanhã de manhã estou com eles... Já deveria ter pego este avião há
tempos... Mas fui ficando.
Miguel
Xana
Miguel
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- Você é da vida, morena, vai ficar bem. O que te deixei vai dar pra
você se arranjar por um bom tempo. Depois aparece outro... Com sorte até
se casa. É tão bonita, tão novinha... Fica comigo a lembrança de teus
carinhos e a saudade.
Denise
Carlos
Carlos
- Dá uma boa olhada... Me diz, cadê aquela mulher linda que eu conheci?
Denise
Carlos
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Denise
Carlos
- Nós dois... Somos só nós dois. Era isso que a gente queria, liberdade
para enfrentar o mundo, conquistar os espaços, sem filhos por opção, se
lembra? Nada para atrapalhar… E agora isso, um pouco ainda vai lá, mas
quase todo dia? Você está estragando tudo. O que nós ganhamos? Vamos
acabar perdendo tudo, inclusive sua vida.
Denise se atrapalha com o garrote de látex que usa para fazer saltar
suas veias.
Denise
- Hum... Já que você está tão pragmático hoje, meu bem, me ajuda a
apertar isso aqui.
Carlos
- Vai à merda!
Denise
Carlos
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Exercício proposto 1
Vimos que o roteiro apresenta quatro personagens: Miguel e Xana, Denise e Carlos. Há conflito
entre eles. Miguel diz que vai voltar para o Rio, deixando Xana, e Carlos fala em abandonar Denise
se ela continuar a se drogar.
Agora procure, se possível sem ler o desdobramento dado pelo roteiro, escrever duas sequências
que apresentem uma solução imediata para esses conflitos, mostrando os quatro já em outra posição.
Considere:
Aproveite para criar também duas personagens que vivem um momento de conflito em suas
vidas. Faça isso por meio de apenas uma sequência. Dê-lhes nome e tente passar um pouco de suas
personalidades por intermédio de suas ações. Seja breve, tentando sintetizar o máximo possível.
Figura 22 – Roteiros
FONTE: shutterstock.com/mrmohock
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Continuação do roteiro
Débora
Charles
Débora
Charles
Débora
- Leva mesmo?
Charles
Débora
Charles
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- Escuta, Débora, é o que eu sei fazer. Eu sou soldado, sou guerreiro.
São eles contra nós... É matar ou morrer, não são eles que falam bandido
bom é bandido morto?
Débora
- Para, tá me assustando!
Charles
Débora
- O brilho da lua cheia não pode viver sem o mar... E é assim que eu te
amo, Charles.
Charles
Débora
Charles
- Meio-dia eu tô passando.
Dantas
Dantas
Dantas
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- Minha filha, tem tanta gente boa morando aqui, uma garotada que
estuda, trabalha, meninas ótimas para serem suas amigas, e você foi se
meter logo com esse cara. Se ele ficar sabendo que eu sou cabo da PM,
eles me matam...
Débora
- Eu sei, pai.
Dantas
Débora:
- Eu sei, pai.
Dantas:
- É por isso que nós vamos embora pra o interior. Esse emprego de
vigia que me arrumaram é bom, e o salário não é ruim, o serviço é
tranquilo, você estuda à noite, quem sabe vira advogada e se casa com um
sujeito decente, sua mãe...
Débora
Dantas:
- Ia ficar orgulhosa...
Exercício proposto 2
Muito embora esse roteiro tenha sido escrito em 2000 e dê um tratamento que podemos definir
como inocente diante da problemática das comunidades assoladas pelo tráfico, podemos tirar de
proveitoso o desenvolvimento da história, que abre três núcleos dramáticos. Os dois primeiros já
foram apresentados – o primeiro, tendo André e seu conflito com relação à sua volta para o Rio
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para tentar reconquistar sua família, e o segundo, o de Denise e Carlos, que vivem uma profunda
crise diante do vício de Denise.
Agora o terceiro grupo aparece, com o cabo Dantas, as dificuldades e os perigos que enfrenta
para criar sua filha adolescente numa favela, ainda mais depois que ela se apaixona por um dos
traficantes.
• criar três sequências que resolvam o conflito a favor do cabo Dantas e outras três que determinem
sua derrota.
• fazer também uma descrição detalhada das personagens Dantas, Charles e Débora.
• criar, num contexto completamente diferente, uma sequência que determine, como essa do
roteiro, um conflito que provoque um choque de interesses três personagens.
• criar umas três sequências que resolvam esse conflito.
Continuação do roteiro
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Professor
-... E vocês, o que são? São o braço armado da miséria urbana... É...
É isso aí! De que adianta aquela plaquinha lá na minha mesa... Professor
Fernando, doutor em sociologia, se eu não venho aqui meter as caras para
entender?... De que adiantam teorias insípidas forjadas por intelectuais
igualmente insípidos, se não se dignam a tirar seus catedráticos
traseiros dos gabinetes, hem? Se querem defender teses, pois que venham
fazê-lo aqui! Aqui passamos a entender que o matraquear das armas pesadas
que rompe o silêncio das noites vazias nada mais é do que o grito de
uma parcela da sociedade tentando sobreviver ao esquecimento a que
foi legada. Ah, desconcertantes aldeias que vivem essa ética niilista!
Operários, biscates, peões, donas de casa, estudantes, empregadas
domésticas, profissionais liberais, artistas e músicos... Por que não
marginais e traficantes? Somos a escória da escória, somos o comércio que
movimenta os milhões que mantêm o poder.
Charles
Professor
- Agora me diz qual é o crime que se comete aqui que não se comete
em Brasília. São todos uns corruptos, já pensou a PM entrar no Congresso
atirando... Hahahaha.
Charles
- Tão dizendo que agora é o exército que vai peitar a gente. Não
interessa se tiver farda, eu mando bala pode ser quem for... Até o senhor
(sorrindo).
Traficante
Charles
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- Vamo nessa... Professor, o senhor vem com a gente?
Professor
Exercício proposto 3
Primeiro, temos que considerar o anacronismo do presente roteiro. Embora tenha sido premiado
no festival de São Gonçalo, é uma leitura evidentemente naïf da realidade das favelas do Rio.
Personagens interessantes, o Professor, o traficante Charles, Débora, a filha do cabo PM e o próprio
cabo Dantas apresentam potencial para o desenvolvimento da trama. Mesmo que se trate de um
curta-metragem, podemos trabalhar algumas questões.
• Como ficará a situação do cabo na sua comunidade? Charles vai descobrir que ele é PM,
selando sua morte?
• Dantas vai conseguir que Débora se afaste do traficante?
• Débora vai ser feliz ao lado de Charles?
• Charles vai ser morto pela polícia?
• O professor pode ser mais que uma personagem emblemática? Dá para, no pouco tempo de
um curta, desdobrar essa personagem?
• Criar um texto mais atualizado para a longa fala do professor ao discorrer sobre as relações
numa favela.
• Criar uma sequência em que apareça um desfecho para o conflito de Dantas.
• Criar a personagem de um protagonista (“herói”) que resolva o conflito estabelecido entre
essas personagens. Insira-o numa sequência ou mais resolvendo a trama.
Você percebeu que até agora, nesse curta, não há a presença de um herói. Na verdade, são três
núcleos, cada um liderado por uma personagem, que pode ser definida como protagonista:
1. Miguel.
2. Denise.
3. Dantas.
Pense por que não são Carlos ou Débora. Crie sequências que possam transformá-los em
protagonistas.
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SEQ. 6 - Int. – Noite – Loja de aeroporto
Vendedor
- É excelente, corta mato que nem manteiga, aço sueco. Peça de coleção,
gravo o nome do menino antes da chamada para o seu voo.
Miguel
Numa sala, em outro canto da casa, algumas pessoas acompanham tudo por
um televisor plugado à câmera por meio de um cabo. Entre elas, Cláudia,
que é a anfitriã, e uma outra mulher. As duas estão num sofá e rola um
clima entre elas.
Cláudia
Cláudia
- Liga, não Carlos... Você sabe que não precisa procurar muito para ter
coisa melhor.
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SEQ. 9 - Int. – Dia – Aeroporto
Fabinho
- Pai... Pai...
Miguel
- Fabinho...
Fabinho
Miguel
Fabinho
Miguel
Fabinho
Miguel
Dantas
Colega
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-... É foda.
Dantas
- Muito tempo dando duro e fodido, tem gente lá com carro importado.
Colega
- É foda.
Dantas
Colega
- É foda...
Miguel
Marta
Miguel
- A gente agora pode ficar junto, vou montar uma loja de materiais de
construção. Vamos morar perto da praia.
Marta
Miguel
- O garoto vai ser meu amigo... Vou levar pra pescar, acampar, vai
trabalhar comigo.
Marta:
- Eu tentei te esquecer.
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Miguel:
Denise
- Cara, e o Carlos?
Cláudia
Denise
- Viu o quê?
Cláudia
Denise
- …?
Cláudia
- Se esqueceu?
Cláudia pega a câmera que foi usada para fazer as imagens na noite
anterior sobre a mesa. Passamos a ver Denise pela câmera.
Cláudia
Denise
Cláudia
- Olha a baixaria, minha filha... Eu até que tentei manter ele aqui.
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Denise dá um tapa e derruba a câmera, sai correndo, pegando a chave do
carro e um celular que estavam sobre a mesa. Começa uma perseguição que
termina com Denise entrando no carro e partindo em velocidade.
Denise
- Carlos... Alô, Carlos... Não desliga não… Não faz isso, escuta, eu te
amo... Não me lembro de nada... Olha, eu quero... Droga.
Marta
Miguel
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Denise
- Seu desgraçado, você não olha para onde anda, não! Porra, avançou o
sinal, cara, desgraçado.
Charles
RJ, sábado
Fim 11/03/2000
FIGURA 24 – Filmes
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Exercício proposto 4
Como podemos notar, é um roteiro feito e rodado no ano 2000. De fato, muita coisa mudou, mas
já havia uma expectativa quanto à intervenção do exército. O interessante também é que, no mesmo
ano, o mexicano Alejandro Iñárritu dirigiu “Amores brutos”, com roteiro de Guillermo Arriaga, que
abre o conflito com um acidente de carro que vitima as personagens da trama. Mesmo que seja no
caminho inverso de “Assunto encerrado”, não deixa de ser algo para se pensar. É evidente que os
dois roteiristas não tiveram acesso às respectivas histórias, no entanto, a ideia de desenvolvimento
em núcleos separados a partir de um acidente é a mesma, o que não deixa de ser um ponto para a
noção de inconsciente coletivo.
“Assunto encerrado” é um filme com três protagonistas: Miguel, Denise e Dantas. No entanto,
não há muito espaço para o desenvolvimento de outras personagens que possam interferir na
trama. Podemos pensar em Carlos como aliado de Denise? Acho que ele estaria mais próximo
de um algoz, uma espécie de alter ego que acabou involuntariamente disparando o processo de
sua morte. Já Miguel tinha como objetivo reconquistar sua família, e de certa maneira o fez, mas
não teve tempo para desfrutar de sua vitória. Dantas, por sua vez, acabará nas mãos do tráfico, e
o destino de Débora, assim como o de Charles, é incerto. Vejam que muitos elementos, funções e
etapas apontadas por Vogler (2006) não se encaixam nesse roteiro. Isso se deve principalmente a
tratar-se de um roteiro de curta-metragem. O filme, numa visão mais aprofundada, trata da questão
do acaso e do destino. Qual seria o paradigma que levou ao acidente, uma corrente de causas e
efeitos ou o simples e trágico acaso? Os destinos das personagens já estariam traçados? Por esse
ponto de vista, podemos inferir que nem sempre a resposta a todas as questões da história está
inserida num roteiro.
Agora voltando às personagens, será possível inserir pelo menos três que tenham as características
de arquétipos apontados por Vogler (2006) no espaço de uma curta metragem? Faça uma tentativa:
1. Desenvolva uma sinopse que tenha no mínimo três personagens com as características
dos arquétipos estudados. Idealize um protagonista, um mentor e um inimigo e insira-os
numa história para curta metragem.
2. Pense num final diferente para “Assunto encerrado” – talvez um que não tenha um final
trágico.
3. Crie uma escaleta que se desenvolve sobre três núcleos dramáticos diferentes.
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9. ROTEIROS COM EXERCÍCIOS – PARTE 2
Agora passaremos a trabalhar sobre um roteiro que tem características bem diferentes do
drama inserido em “Assunto encerrado”. Trata-se de “Cama de gato”, uma comédia romântica, no
espaço de um curta, que envolve duas personagens num jogo de reconciliação, em que o poder de
sedução terá um papel fundamental no desfecho da trama.
Cama de gato
Sinopse – Carla leva uma vidinha mais ou menos tranquila, num daqueles apartamentos antigos
da rua Alberto de Campos, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Mais ou menos porque Doca, seu marido,
embora sendo um cara maneiro, sabedor das coisas, bem empregado, respeitado e querido pelos
amigos, é totalmente desligado das coisas práticas e simples do dia a dia, as quais ele considera
superficiais. Pagar contas é uma delas. Dessa forma é que, numa tarde de sexta-feira, em pleno
verão, num calor de 40ºC, na ambiência do Aedes, a luz deles é cortada. Dali para a frente, começa
um jogo de acusações, desculpas, perdão, reconquista que a todo tempo é interrompido, seja pelo
ataque de um mosquito ou o ciúme. O casamento dos dois vai ser posto à prova, mas tudo acabará
bem nessa atmosfera de amor e paixão, afinal, os dois conhecem o poder da sedução.
Carla – É forçoso notá-la quando ela passa, não que seja um mulherão, mas é aquela graça que
a gente ainda encontra em alguns lugares. Esse é o jeito dela. O sorriso, a covinha, parece que está
sempre de bem com a vida, e quando olha pra teu lado, meu irmão, se segura, você vai jurar que tá
te dando mole, mas quer saber, não tá nem aí pra você. Quem tem a sorte de conhecê-la melhor
pode acompanhar suas ideias. Ela gosta de ler, cara, e sabe das coisas. Pra não dizer que tudo é
perfeito, quando alguma coisa tira a paciência dela, o tempo fecha. Não, nada de barraco, mas é
bom deixar ela em paz. Na verdade, quem sabe da vida dela é o Doca, marido dela. Sei não, mas eu
não sinto firmeza nessa relação, uma mulher dessas na mão de um cara daquele...
Doca – Quer saber, o Doca é um cara legal. Ele malha lá na academia, mas nunca vai... Quando
aparece, fica lá com aquela barriguinha, mas tem um papo bom, é enturmado, trabalha na empresa
do pai do Paulo há anos, tá bem. Sei não, a Carla que se cuide, ele, com aquele jeitão dele meio
desligado, acho um gato!
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Exercício proposto 5
Figura 25 – Exercício de roteiro
Você acabou de ler uma sinopse e a apresentação de duas personagens do filme “Cama de
gato”, de autoria de Luiz M. Gama. Nesses tópicos, você encontra informações suficientes para
começar a esboçar uma ideia sobre a trama. Faça o mesmo:
• Crie uma sinopse sobre um filme de curta-metragem que seja uma comédia romântica.
• Faça a descrição de suas personagens, nos moldes do que viu acima.
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voz de Dick Farney. Carla, em ritmo acelerado, trabalha em sua plataforma
desktop montada num canto de seu loft bem mobiliado. É fim de tarde em
Ipanema, e as primeiras luzes começam a ser acesas nas janelas lá fora.
Olhares sucedem-se, compondo um cativante jogo com os olhos da bela
montadora e com os da tela de seu computador.
Carla
- Merda!
Vai até a janela e percebe que luzes na rua estão acesas. Dirige-se
para o interruptor e aciona-o várias vezes, a princípio com calma e depois
já com um tanto de histeria.
Exercício proposto 6
O mesmo ocorreu na apresentação de Denise. Ficamos sabendo que ela era viciada e casada
com Carlos, ambos tinham um projeto de vida juntos, mas o vício estava começando a atrapalhar
seus sonhos. Carlos não aceitava essa situação, e Denise, aparentemente, preferia não ouvi-lo. Tudo
foi informado logo na primeira sequência que apresenta o casal.
Foi assim com Dantas, cabo da PM, morador de favela, pai de Débora, que está apaixonada por
um traficante.
Agora, neste roteiro “Cama de gato”, a personagem de Carla também é apresentada em poucas
linhas. Sabemos que ela trabalha com montagem de imagens e tem prazo para entregar um trabalho.
Essa situação começa a se complicar com uma repentina falta de luz.
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Field (1982) pondera, num dos seus livros sobre roteiro, que toda a trama e os conflitos de um
filme devem ser informados para o espectador até o fim dos dez primeiros minutos. Já num curta
metragem, se é possível estabelecer um paralelo básico, acredito que as duas primeiras sequências
são suficientes para isso.
• Revelar, por meio de suas personagens, os conflitos de sua trama em no máximo duas
sequências.
• Sem ler o restante do roteiro, criar uma sequência que desenvolva a situação de Carla diante
da falta de luz.
Continuação do roteiro
Doca está sentado no sofá da sala com cara de babaca (seus olhos
acompanham os movimentos de Carla). A seu lado, estão acesas algumas
velas.
Carla (fora)
Doca
Carla
- Tá aqui o aviso, Doca, mas quer saber, podia ser qualquer coisa que
fosse da esfera mortal, né, cara? Contas não fazem parte de seu universo.
Só que era para as contas ficarem sob sua responsabilidade, res-pon-sa-bi-
li-da-de. Tenho que entregar o trabalho daqui a dois dias.
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Carla mata outro mosquito. Doca mata um mosquito. Os dois já estão com
suas roupas grudadas de suor.
Exercício proposto 7
Mais uma vez, temos um afastamento das postulações de Vogler (2006). Não temos propriamente
um herói e outros arquétipos, mas tão somente protagonistas. No entanto, Carla é uma personagem
bem interessante.
• Tente acrescentar à personalidade e aos atos de Carla atitudes que a aproximariam mais de
uma mulher chata e possessiva.
• Transforme Doca num mentor que tenta acalmar Carla conduzindo-a para a solução de seu
problema. Crie uma sequência na qual ele se apresente com essas características.
Continuação do roteiro
Doca
Carla
Os dois vão curtindo, cada um, seus respectivos banhos. A ducha vai
deixando-os relaxados.
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Doca
- Aquele rio perto da casa do Mauro, com a ducha natural e a lua cheia
iluminando tudo, se lembra, amor?
Carla
- Você foi perfeito naquela noite, a copa das árvores, o céu, aquilo
foi deliciosamente mágico.
Doca
- Você estava linda, seus olhos, tudo em você, Carlinha, tua boca...
Carla
Exercício proposto 8
Nessa sequência, podemos notar que os dois estão cada um num banheiro diferente, e seu
diálogo dá-se através do duto de ar que liga os dois ambientes, mas de repente os dois estão no
corredor se abraçando. Trata-se de um lapso de tempo e espaço que fica explicitada no roteiro.
Veja que se trata de um roteiro técnico, mas mesmo assim o roteirista marcou essa passagem para
acentuar a sensualidade da sequência. Agora:
• Faça o mesmo numa sequência qualquer criada por você. Estabeleça com seu texto um lapso
tempo-espacial nos moldes da usada acima. Lembre-se de que esse artifício deve ser sempre
usado com inteligência e sensibilidade.
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Continuação do roteiro
Carla está derramando uma jarra d’água com pedras de gelo sobre sua
nuca na pia, Doca chega e passa a ajudá-la. Ele se insinua, e Carla
delicadamente o afasta sorrindo.
Carla
Doca tira a jarra das mãos de Carla e começa a jogar a água devagar na
sua própria nuca, também sobre a pia.
Doca
Carla
Carla
Doca
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- Eu vou fazer, meu amor, amanhã...
Carla afasta-o, despeja todo o resto da água com raiva sobre a cabeça
do marido e lhe entrega a jarra.
Carla
Carla (off)
- ...É, não aguento mais, é insuportável, me tira dessa, mas vem logo.
Tá bom, Marcel, daqui a meia hora. Te encontro lá.
- Marcel?...
Doca está deitado no chão da sala. Carla sai do quarto e passa por ele
em direção à porta da rua.
Doca
- Vai sair?
Carla
Doca
- Te espero?
Carla
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Ruas de Ipanema, é uma sexta-feira de verão, os bares fervilham, mesas
cheias de pessoas interessantes.
Carla vê pessoas conhecidas e acena, mas ela procura por Marcel. Doca
segue-a de longe, o clima é todo documental, distanciado. Sons, buzinas,
uma grande festa envolve as personagens. Carla encontra Marcel - CARA
INTERESSANTE. Os dois conversam observados por Doca. Carla acompanha o
homem até uma moto e monta em sua garupa. Doca observa incrédulo.
Carla
Marcel
Carla
Marcel
- O que?
- Conheceu a Débora?
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Carla
Carla
- Sabe, Marcel, tem outras pessoas nesse jogo, tem a Débora, que, não
esqueçamos, me deu teu telefone pra quebrar essa, e tem um cara muito
legal, que é meu maridão. Acabou?
- Não... na verdade ainda vai demorar um pouco, mas tudo bem, você
pode ir pra casa que eu termino aqui. Fala bem de mim pra tua amiga.
Carla
Tenta ligar do celular, mas não obtém resposta. Ouve o som de chaves
na porta, no entanto, permanece olhando para fora. Doca aproxima-se e a
abraça, os dois ficam um longo tempo em silêncio. Quem fala primeiro é
ele.
Doca
- Eu te trouxe um sorvete.
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Carla
- Doca, a gente tem que cuidar mais um do outro, cara. Dessa vez foi
difícil. Tem uma vida acontecendo.
Doca
- O que rola entre nós é muito especial, a teu lado o mundo para e
perde importância, só o que vale é você.
Doca tira o sorvete das mãos de Carla e começa a beijá-la. Os dois vão
para o chão já sem suas roupas, a luz das velas ilumina seus corpos.
De repente, a luz volta, mas como, quando acabara, não havia lâmpadas
acesas, os únicos sinais de energia são o bip do computador, o ar-
condicionado e, é claro, a música da vitrola.
Fim
Exercício proposto 9
Você observou o clima criado pelo roteiro, que leva até o espectador a pensar que está rolando
alguma coisa entre Carla e Marcel, mas na verdade não era isso. Esse jogo acrescentou uma leve
tensão e serviu para acrescentar aos sentimentos de Doca e Carla, fortalecendo o final. O roteiro
poderia ter entregado que se tratava de um eletricista desde o início, mas o suspense teve um efeito
melhor.
• Crie uma situação semelhante em quatro sequências, nas quais uma personagem estará
vivendo uma situação em que só ela e você saberão o que realmente está ocorrendo. Para
isso, a “verdadeira” situação só deverá ser revelada na última sequência.
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10. ROTEIROS COM EXERCÍCIOS – PARTE 3
Leve
O suor escorre pelo rosto de Alceu, que vai subindo uma ladeira
íngreme, cortando a mata. Ele arrasta amarrado a uma corda o corpo de
um homem. Um defunto com sapatos de couro e gravata, relógio de ouro e o
rosto triste. Ele, por sua vez, vai com as roupas rasgadas, pés descalços
e o rosto marcado por anos de trabalho pesado.
Um padre está sentado encostado a um cruzeiro. Ele tem a seu lado uma
mulher de seios fartos e generoso decote. De repente, ele vê Alceu, que
passa ao longe carregando o defunto.
Padre
Padre
- Mas o que é isso, homem, isso lá é jeito... Pra onde você tá levando
essa pobre alma?
Alceu
Padre
- ...Em nome de Deus, meu filho, para! ...Para com esse desatino, em
nome da santíssima virgem, para!
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de seios fartos que lava roupas numa bacia próxima ao cruzeiro. Cabelos
longos e encaracolados, ela retribui ao olhar de Alceu, dirigindo-lhe um
sorriso sedutor. Seu decote exibe um crucifixo que balança entre os seios.
Ele retoma a caminhada.
Alceu
- Tava caído na picada, é rico, num tem furo no corpo, passou foi
mal... Deve ter parente em Cardosinho. Lá eles pagam por ele.
Padre
- ...Mas você não pode sair por aí arrastando um defunto, meu filho...
É contra a lei dos homens... É contra a lei de Deus.
Alceu
Voz
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- Alceu... Ô, Alceu.
Voz
- Ô, Alceu.
Alceu
Alceu
- É Pedro!
Pedro (aparição) está agarrado nas costas de Alceu e fala com a boca
grudada em seu ouvido. Alceu, desesperado, berra enquanto atinge Pedro
(aparição) com sua peixeira. Este apenas sorri mostrando os dentes. Alceu
sai correndo, arrastando Pedro (defunto).
Alceu
Pedro (aparição)
Alceu
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Pedro (aparição)
Alceu
Pedro (aparição)
Pedro (aparição)
Alceu
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O homem de rosto magro e óculos escuros esporeia seu cavalo quando
passa em frente ao velho cruzeiro. A mulher de seios fartos observa à
distância.
Pedro (aparição)
Pedro
- País de merda mesmo... Como é que pode, querer comer minha orelha?
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Alceu
Pedro
- Alceu, você acha que alguém vai pagar pelo meu defunto? Vai não,
Alceu, eu tinha muito poder, muita grana passando na minha mão... Gente
quem nem eu não tem família nem amigos, não confia em ninguém, tá sozinho
no mundo... Só tem puxa-saco, vai ter muita gente comemorando minha morte.
Alceu
Pedro
Alceu olha e vê o homem. Tenta subir mais rápido, mas Pedro o puxa
para baixo.
Pedro
- Gente que nem você acaba assim mesmo... Achou o quê? Um cara de
terno no meio do mato ia tá fazendo o quê?... Catando abobrinha? Já ouviu
falar em queima de arquivo? Se liga, ô capiau... Eu tava fugindo. Presta
atenção... Eu devia, agora você deve... Vai morrer... Vou te levar comigo
para o inferno.
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A luta de Alceu é cada vez mais difícil. Pedro agarra-o pelo pescoço,
dando-lhe uma gravata. O cavaleiro vê a luta de Alceu para vencer a
montanha puxando tão somente o defunto. Alceu chega à exaustão e começa a
escorregar, caindo montanha abaixo levado pelo peso de Pedro. Descendo...
descendo, cada vez mais rápido. Alceu para aos pés do matador. O homem
vai pegar sua Winchester, Alceu rapidamente põe a mão na peixeira.
Alceu
- Diacho!
Som de tiro.
Alceu está sendo abraçado por Pedro, que tem um sorriso mostrando
todos os dentes. O Pedro defunto e o aparição estão juntos novamente no
mesmo corpo. Alceu tem um tiro na testa e o olhar apavorado.
Pedro
Alceu chora um choro sofrido quase mudo e fica ali abraçado a Pedro,
que sorri...
FIM
Exercício proposto 10
Esse roteiro foi bem no edital do Minc de 2008: ficou entre os 30 últimos da seleção, só saiu
na última etapa. O interessante é que, na versão enviada para o edital, Alceu sobrevivia e matava
o jagunço. A ideia na época foi criar um “herói” famélico andando pelo agreste. O roteiro tem
influência das obras de Guimarães Rosa, e pareceu-me que não haveria problema em mudar o final,
transformando a personagem de Alceu numa espécie de vingador, mas prefiro a versão original,
parece-me mais crua. Trata de questão do inevitável da vida, que é a morte. É forte na apresentação
do apodrecimento do corpo de Pedro diante da perseverança de Alceu em ganhar dinheiro com seu
defunto ao devolvê-lo a sua família. A questão da moral e da ética pessoal de Alceu contrapõe-se
ao terror de Pedro. No entanto, é este que leva Alceu à morte, selando seu destino. “Você acha o
que, Alceu, que um homem como eu...?”
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Não podemos deixar de pensar em Alceu como um herói aos moldes do que Vogler (2006)
defende. O cotidiano sendo interrompido pelo corpo caído de Pedro, a decisão de carregá-lo para
conseguir algum dinheiro, as etapas pelas quais Alceu passa, o inimigo, que não é propriamente o
matador, mas o próprio defunto que ele carrega, e o desfecho trágico caracterizam-no como herói.
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11. ROTEIROS COM EXERCÍCIOS – PARTE 4
O coletor
Ulisses repara numa casa que está com a porta aberta. Por alguns
instantes, ele fica parado olhando, até que se decide a entrar.
Ulisses entra na casa. Está escuro, e ele pega uma lanterna na mochila.
O facho de luz percorre as paredes da sala até chegar a várias telas
de diferentes estilos. De repente, no meio delas, o rosto pálido de uma
mulher. A luz passa e volta rápido, porém ela não está mais lá. Ulisses
leva o facho para vários pontos da sala, mas não é capaz de encontrá-la.
Ele vai até um interruptor e acende as luzes.
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SEQ. 8 - Int. – Noite – Corredor
Ele aproxima-se e vê que era a mulher que havia visto com a luz da
lanterna. Ulisses repara que ela está completamente imóvel e de olhos
abertos. Coloca os dedos sobre sua carótida, depois vai para o pulso,
nada. Ulisses fecha os olhos da mulher. Senta-se a seu lado na cama. Por
um tempo, fica parado, pensando. Olhar perdido. Até que resolve retirar
suas botinas. Deita-se ao lado da mulher, cruza os braços sob a cabeça
e fica olhando para o teto, até que se vira de lado, em posição fetal, e
pega no sono com a luz acesa.
Helena
- A Rô saiu?
Ulisses olha para ela de cima a baixo. Após tomar um gole no vinho...
Ulisses
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- Há pouco.
Helena
- Você é?
Ulisses
- Ulisses.
Ulisses está sentado a uma mesa muito bem posta. Há taças de cristal
para água e vinho. Vários talheres. Ulisses come com fidalguia. Helena
entra na sala e, servindo-se de vinho, senta-se à mesa de frente para
Ulisses. Ela observa suas maneiras, e ele observa seus fartos seios
que quase saltam para fora do decote, onde oscila provocativamente o
nome Helena gravado em ouro e preso a uma corrente. Segue-se um jogo de
sedução e de olhares sugestivo.
Ao sair pela rua em frente à casa, Ulisses vê um carro que passa por
ele com um homem ao volante. O carro para em frente à casa, o homem salta
do carro e observa Ulisses, que se afasta com um sorriso em seu rosto.
FIM
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Exercício proposto 11
Estamos aí com outro herói, Ulisses (Odisseu) em sua jornada. Não é à toa que ele pega a Ilíada
na estante da casa que invade. Sua postura diante das normas do convívio social é extremamente
anárquica. É de fato um coletor de experiências. A porta da casa aberta ao passar é que determina
essa etapa de sua jornada. Pegamos carona com o nosso herói nesse momento.
Crie um herói utilizando a ideia de um herói conhecido e transporte-o para os dias atuais,
adaptando sua postura diante da vida.
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12. A ADAPTAÇÃO DE UMA OBRA LITERÁRIA
A adaptação de uma obra literária requer prática. Como sempre, o que vai ajudar será o treinamento.
Avançar, gritou Ahab aos remadores e os botes laçaram-se ao ataque; mas, enfurecido
pelos ferros da véspera que lhe cortaram a carne, Moby Dick parecia possuído, ao
mesmo tempo, por todos os anjos caídos do céu. Os largos feixes de tendões ligados
que se espalhavam em sua imensa fronte branca sob a pele transparente pareciam
entrelaçados; quando apareciam de frente, sacudindo a cauda em meio aos botes;
e mais uma vez, desferiu mangualadas que os afastaram uns dos outros; fazendo
tombar na água os ferros e as lanças dos botes dos dois imediatos, estraçalhando
um lado da parte superior das suas proas, mas deixando o de Ahab quase sem um
arranhão (MELVILLE, 2009).
Ahab
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PLANO 5: Plano Médio acompanha o arpão cortando o ar até atingir a
pele branca da baleia.
SAIBA MAIS
“O Registro de Obras é um serviço prestado pelo Escritório de Direitos Autorais (EDA) da Biblioteca
Nacional, de acordo com a Lei nº 9.610 de 19/02/1998. O registro dos direitos autorais sobre uma
obra intelectual permite o reconhecimento da autoria, especifica direitos morais e patrimoniais e
estabelece prazos de proteção, tanto para o titular, quanto para seus sucessores.”
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CONCLUSÃO
Este módulo encerra-se, e espero que o objetivo de aprofundar-se na parte que tange à criação
tenha sido valioso para você.
Serão muitas as dificuldades que você encontrará para criar. Trata-se de treino, e acredito que,
com os exercícios propostos, que devem ser feitos, esta etapa poderá ajudá-lo. Você pode trocar
ideias e exercícios com os colegas do curso ou falar das dificuldades nos nossos chats. Querendo
um aprofundamento do curso, as referências bibliográficas irão ajudá-los. Boa sorte a todos, com
o desejo de que a imaginação floresça e ajude vocês a se tornarem grandes roteiristas.
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GLOSSÁRIO
Anacrônico: Que se opõe ao que é cronológico; em que há anacronismo; que não se adapta aos usos
ou aos hábitos de uma época; obsoleto; contrário ao que é moderno; que é antiquado, retrógrado:
pensamento anacrônico; que não obedece à sucessão normal do tempo; contrário à cronologia.
Arquétipo: “Primeiro modelo ou imagem de alguma coisa, antigas impressões sobre algo. É um
conceito explorado em diversos campos de estudo, como a Filosofia, Psicologia e a Narratologia.”
(Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Arqu%C3%A9tipo>).
Avant-garde: “Agente, grupo ou movimento intelectual, artístico ou político que está ou procura
estar à frente do seu tempo, relativamente a ações, ideias ou experiências. = VANGUARDA.” (Fonte:
<https://www.priberam.pt/dlpo/avant-garde>)
Biltre: “Que se comporta de maneira vil; que gosta de praticar vilezas (canalhices); canalha.” (Fonte:
<https://www.dicio.com.br/biltre/>).
Imagético: Que se consegue exprimir através de imagens; que se pode referir ao que contém imagens;
que demonstra imaginação.
Melífluo: “Que flui ou mana como o mel; agradável, suave, harmonioso: voz melíflua.” (Fonte: <https://
www.dicio.com.br/melifluo/>)
Unicidade: “Singularidade; característica ou condição de ser único, de não haver outros.” (Fonte:
<https://www.dicio.com.br/unicidade/>)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1995.
________. O voo do pássaro selvagem: ensaios sobre a universalidade dos mitos. São Paulo: Rosa
dos Tempos, 1997.
CALMON, Pedro. O que é arquétipo? O arquétipo, 28 set. 2011. Disponível em: <https://oarquetipo.
wordpress.com/o-arquetipo>. Acesso em: 25 abr. 2017.
CANDIDO, Antônio. A personagem no romance. In: ______. A personagem na ficção. São Paulo:
Perspectiva, 1968. Coleção Debates.
COMPARATO, Doc. O roteiro para TV. 4. ed. São Paulo: Globo, 2009.
CURIOSIDADES sobre 15 filmes clássicos. Guia dos curiosos, 15 ago. 2013. Disponível em: < http://
guiadoscuriosos.uol.com.br/>. Acesso em: 26 abr. 2017.
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FRAGA, Plínio. Para Robert McKee, importante consultor de roteiros, cinema brasileiro canibaliza
romances. O Globo, 28 jan. 2013. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/para-robert-mckee-
importante-consultor-de-roteiros-cinema-brasileiro-canibaliza-romances-7411158>. Acesso em: 26 abr. 2017.
MELVILLE, Herman. Moby Dick. Trad. Irene Hirsh e Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Cosac
Naify, 2009.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estrutura mítica para roteiristas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
XAVIER, Ismail. D. W. Griffith: o nascimento do cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984. Col. Encanto
Radical.
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