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Oficina de Vídeo I 2016 (Bertrand Lira)

Roteiro de documentário

Ônibus 174 (2002), José Padilha

1
Roteiro de documentário
“Uma das funções do documentário é contar
aquelas fantásticas histórias reais.” (Alan Rosenthal)

O roteiro para um filme documental, diferente da ficção, é feito ainda na fase


de pré-produção da obra. Resume-se, na maioria das vezes, a “uma estrutura
básica que servirá como mapa de orientação para o documentarista durante
as filmagens, com maleabilidade suficiente para que possa ser alterado no
decorrer da produção, em razão de possíveis imprevistos.” (PUCCINI: 2009, p.
24).
O discurso do filme documentário caracteriza-se por uma ancoragem no real.
E por isso, segundo Puccini, “trata efetivamente daquilo que aconteceu, antes
ou durante as filmagens, e não daquilo que poderia ter acontecido, como no
casso do discurso narrativo ficcional.”

O documentário lança mão de procedimentos como depoimentos, entrevistas,


tomadas in loco, imagens de arquivos, imagens gráficas, animação e até
encenação na busca da legitimação de seu discurso (asserção) sobre o real.

A proposta
Os manuais de direção e produção de filmes documentários, americanos e
ingleses, normalmente utilizam o termo proposal (proposta) ao se referirem a
um texto de apresentação do filme documentário. A proposta se constitui um
instrumento para vender o projeto.

Função : serve como um cartão de visitas do realizador para convencer


U U

potenciais fontes financiadoras do projeto.


Características :
U U

_ texto enxuto, claro e objetivo que demonstre domínio sobre o assunto a ser
tratado pelo documentário.
_ pode vir acrescido de um tratamento (treatment) com um resumo das suas
principais cenas, antecipando algo sobre o estilo e a estrutura narrativa do
filme, isto é, qual o tipo ideal de documentário para abordar de forma mais
interessante o assunto proposto.

O que deve conter numa proposta para convencer o produtor a financiar ou


apoiar seu projeto?

A seguir, Puccini apresenta modelos de propostas elaborados por Alan


Rosenthal (1996), Michael Rabiger (1998), dos editais de concursos do Doc. Tv
(TV Cultura) e dos editais do Projeto Rumos (Instituto Itaú Cultural):

Modelos de proposta
A. Modelo de Alan Rosenthal (1996):
1. Título e assunto do filme, duração aproximada (formato do filme), em duas
ou três linhas.

2
2. Breve apresentação do assunto com justificativa (...) para fazê-lo entender
sobre a importância de se fazer o filme.
3. Estratégias de abordagem, estrutura e estilo.
_ Qual (is) a(s) maneira(s) mais adequada para abordar o assunto?
_ Qual (is) o(s) ponto(s) de vista contemplados no filme?
_ Haverá conflitos entre os depoimentos?
_ Como o filme será estruturado, quais serão as principais sequências e como
elas estarão alinhadas?
_ Qual o estilo de tratamento de som e imagem? 1 F

4. Cronograma de filmagem. 2 F

5. Orçamento (aproximado).
6. Público-alvo, estratégias de marketing e distribuição (opcional)
7. Currículo do diretor e cartas de apoio e recomendação.
8. Anexos: fotos, vídeos, desenhos, mapas, qualquer coisa que enriqueça a
proposta e ajude a vender o projeto.

B. Modelo de Michael Rabiger (1998):


MODELO DE PROPOSTA
Título do projeto: Formato:
Diretor: Diretor de fotografia:
Operador de áudio: Editor:
Outros (indicar)

1. Hipótese de trabalho e interpretação.


Quais as suas expectativas sobre o universo que irá mostrar no filme, o
argumento principal.

2. Tema e exposição do tema.


_ Qual o assunto do filme?
_ Quais as informações necessárias para que o espectador possa ter acesso a
esse universo e como essas informações serão transmitidas a ele?

3. Sequência de ação
Escrever um breve parágrafo resumindo aquelas que poderão ser as
sequências que mostram ação (ou atividade) dos personagens envolvidos no
filme.

4. Personagens principais.
Um breve parágrafo para descrever cada personagem e seu respectivo papel no
documentário.

5. Conflito.
Se por acaso houver, quais os conflitos a serem explorados pelo
documentário?

1
Rosenthal sugere que as respostas a essas questões sejam apenas esboçadas, prevendo eventuais
mudanças no decorrer da produção.
2
Rosenthal coloca o tópico como opcional, especificar somente quando houver eventos marcados ou
quando determinada época do ano for melhor para as filmagens; explicitar os motivos.

3
6. Público-alvo e expectativa de resposta dessa audiência.
_ Qual o público-alvo?
_ Qual a ideia preconcebida que se imagina que esse público possa ter do
assunto abordado e como o documentário irá lidar com essa ideia?

7. Entrevistas.
Lista descritiva dos entrevistados.

1. Estrutura.
Um breve parágrafo sobre como o filme irá trabalhar sua estrutura narrativa,
de forma linear, não linear, possíveis macetes narrativos a serem empregados,
curva de tensão dramática, como serão intercaladas as entrevistas com a ação
do filme etc.

2. Estilo.
Considerações sobre estilo de filmagem e edição, iluminação.

3. Resolução.
Um breve parágrafo sobre como se imagina que será o final: aberto,
conclusivo?

C. Modelo do Doc.Tv (2006)


Formato de Apresentação de Projeto para os Concursos DOC.TV IV (ver
modelos de propostas em http://www.agencia.ufpb.br/doctv/Manual.pdf )
HU UH

a. Proposta de Documentário (01 página)


(Descreva a idéia cinematográfica/audiovisual do projeto de documentário.
Não se trata de descrição do tema ou de sua importância, mas da proposta
formal do filme. Ao descrever a idéia, o autor proponente pode apontar
documentários de seu conhecimento e/ou outras referências que tenham
proposta semelhante.);

b. Eleição e Descrição do(s) Objeto(s) (05 linhas para cada Objeto)


O documentarista se relacionará com o que/quem para levar a cabo sua
Proposta de documentário? Exemplos: personagens reais; produtos materiais
e imateriais da ação humana; materiais de arquivo; manifestações da
natureza etc.;

d. Eleição e Justificativa para a(s) Estratégia(s) de Abordagem (15 linhas


para cada Estratégia de Abordagem)
Como o documentarista se relacionará com cada Objeto eleito? Exemplos:
modalidades de entrevista; modalidades de relação da câmera com os
personagens reais; reconstituição ficcional utilizando personagens reais;
construção de paisagens sonoras e/ou imagens abstratas; introdução
proposital de ruídos sonoros e/ou visuais; modalidades de locução sobre
imagem; formas de tratamento dos materiais de arquivo sonoros e/ou visuais;
etc. Justificativa de cada Abordagem descrita.

e. Simulação da(s) Estratégia(s) de Abordagem (opcional) (01 página)


Imagens simulando proposta de captação e/ou edição de imagens, sugerindo
possibilidades de enquadramento, de movimentação da câmera, e tratamento

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visual. Texto detalhando proposta de captação e/ou edição de sons, sugerindo
propostas de foco sonoro, tratamento sonoro, utilização de ruídos e sons
ambientes, e utilização de músicas como ilustração ou escrita. Não
serão aceitos materiais audiovisuais de qualquer natureza, como cd, dvd, vhs
etc.;

f. Sugestão de Estrutura
Sugestão de estrutura do documentário a partir da(s) Estratégia(s) de
Abordagem. Não se pretende um roteiro a descrição definitiva do que será o
documentário, e sim uma exposição de como o autor-proponente pretende
organizar as Estratégias de Abordagem no corpo do filme. A apresentação
pode ser feita livremente a partir de texto corrido ou blocado;

g. Desenho de Produção
Formulário Padrão (Anexo II);
Breve descrição dos procedimentos de pré-produção, pesquisa, contratação e
outras ações necessárias à produção do documentário.

h. Orçamento (com previsão de impostos)


Formulário Padrão (Anexo III);
i. Cronograma de Produção
Formulário Padrão (Anexo IV).

D. Projeto Rumos, do Itaú Cultural (2006)


Este edital solicita dos candidatos uma apresentação do projeto menos
detalhada e mais aberta, balizada por apenas três tópicos, que são:

1. Descrição do conteúdo e concepção do documentário.


2. Plano de realização com cronograma de atividades/produção.
3. Orçamento estimado (ver: www.itaucultural.org.br).

Em todas essas propostas, percebemos a importância de se conhecer bem o


objeto a ser trabalhado no documentário e a forma de abordá-lo. Pois como
explica Rabiger, citado por Puccini (2009, p. 27) “dirigir um documentário é
resultado menos de um processo de investigação espontânea do que de uma
investigação guiada por conclusões preliminares obtidas durante o período de
pesquisa. Em outras palavras, a filmagem deverá ser preferencialmente a
coleta de “evidências” para relações e suposições básicas identificadas
anteriormente.”

E. Edital PRODAV - Programa Brasil de Todas as Telas

A Linha de Produção de Conteúdos destinados às TVs Públicas faz parte do


Programa Brasil de Todas as Telas, o maior programa de desenvolvimento do
setor audiovisual já construído no Brasil, formulado pela ANCINE (Agência
Nacional de Cinema) em parceria com o MinC – Ministério da Cultural, e que
utiliza recursos do FSA - Fundo Setorial do Audiovisual, conjugando diferentes
modalidades de operação financeira e propondo novos modelos de negócios.

Conteúdo específico para obras documentais

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A) Proposta de obra:
Descreva a idéia cinematográfica/audiovisual do projeto de documentário. O
que se pretende discutir com o documentário, o que pretende investigar e sob
qual ponto de vista. Não se trata de descrição do tema ou de sua importância,
mas da proposta formal do filme. Ao descrever a idéia, o autor proponente
pode apontar documentários de seu conhecimento e/ou outras referências que
tenham proposta semelhante.);

B) Eleição dos Objetos: descrição dos personagens – reais e ficcionais - e


objetos – produtos materiais e imateriais da ação humana, materiais de
arquivo, manifestações da natureza etc. – com os quais a equipe se relacionará
para a realização da obra.

C) Estratégias de Abordagem: detalhamento dos procedimentos narrativos e


estratégias de abordagem - entrevistas, reconstituições ficcionais, voz sobre
imagem, efeitos etc. – através dos quais a equipe se relacionará com os objetos
definidos para a realização do documentário, incluindo possíveis referências a
outras obras audiovisuais ou artísticas.

D) Sugestão de estrutura
Sugestão de estrutura do documentário a partir da(s) Estratégia(s) de
Abordagem. Não se pretende um roteiro a descrição definitiva do que será o
documentário, e sim uma exposição de como o autor-proponente pretende
organizar as Estratégias de Abordagem no corpo do filme. Como iniciará seu
filme, o desenvolvimento e a conclusão. Blocos de cenas podem ser sugeridas
na sequência pensada para a montagem A apresentação pode ser feita
livremente a partir de texto corrido ou blocado;

A pesquisa
_ Primeira etapa: produzir o texto da proposta que será apresentado às fontes
financiadoras. Função: garantir condições para o aprofundamento da pesquisa
antes da filmagem. É um documento que serve apenas aos propósitos da pré-
produção e não como um guia para a orientação da filmagem.

_ segunda etapa: segue-se após a provação da proposta e deverá ser guiada


pelo processo de seleção do conteúdo do mundo histórico estabelecido na
primeira etapa e sua adequação ao formato discursivo de um filme.

Rosenthal lista quatro fontes de pesquisa:

1. Material impresso.
2. Material de arquivo (filmes, fotos, arquivo de som).
3. Entrevistas (“pré-entrevistas”).
4. Pesquisa de campo nas locações de filmagem

Material de arquivo e suas fontes possíveis: órgãos de imprensa (jornais,


tevês e rádios), bibliotecas, museus, cinematecas universidades, coleções
particulares. A qualidade de um filme documentário depende em grande parte

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da qualidade do material de arquivo trabalhado. Ex. Ônibus 174, de José
Padilha.
Pré-entrevistas: marcam o primeiro contato entre documentarista, ou sua
equipe de pesquisadores, e os possíveis participantes do documentário.
Função: são úteis tanto para fornecer informações ou aprofundar outras já
coletadas, quanto para servir de teste para avaliar os depoentes como
possíveis personagens do filme (e como vão se comportar diante da câmera).
Problemas: resistência ou mesmo recusa e, em outro extremo, expectativa
quanto à participação no filme.

Sugestão de Rosenthal: fazer anotações à mão ou com um gravador de áudio.


Rosenthal prefere como método fazer ele mesmo a pré-entrevista para criar um
vínculo com o personagem ao contrário de Eduardo Coutinho que deixa essa
tarefa para sua equipe de pesquisadores para explorar, na filmagem, o registro
de um primeiro encontro. No caso de Coutinho, essa situação de encontro
define a própria constituição temática de muitos dos seus documentários.

Pesquisa de campo: consiste em mapear e estudar criteriosamente as


locações (cenários de filmagem) para evitar possíveis problemas relacionados à
iluminação e captação de som (ambientes ruidosos, por exemplo), além de
fazer com que o documentarista se familiarize com o universo abordado.
Visitas antecipadas às locações servem também para:
_ definir os equipamentos necessários para cada locação, facilitando o
trabalho de câmera e possibilitando uma prévia roteirização de filmagem;
_ o tamanho mais adequado da equipe técnica em cada situação;
_ prevenção de possíveis dificuldades de acesso (obstáculos naturais,
resistência de comunidades locais, risco à integridade física da equipe 3 . F F

O ARGUMENTO

A
s funções do argumento dentro das etapas de produção de um filme
documentário são semelhantes às de um roteiro de ficção. Em resumo,
deve responder a seis questões principais: O quê?; Quem?; Quando?;
Onde?; Como?; e Por que?.

_ O quê? diz respeito ao assunto do documentário, seu desenvolvimento, sua


curva de tensão dramática;
_ Quem? Especifica os personagens sociais (às vezes de ficção também
quando há encenação) e seus papéis;
_ Onde? Especifica as locações de filmagem e/ou espaço geográfico no qual
acontecerá o evento em questão;
_Como? A maneira como o assunto será tratado, a ordenação das sequências,
suas estratégias de abordagem;
_ E por quê? trata da justificativa para a realização do documentário, sua
importância (mais pertinente a projetos para documentário do que a ficção)

Todas essas seis questões devem ser respondidas como base em material de
coletado na etapa de pesquisa. Embora a maioria dos documentários

3
Atenção: Ler capítulos 04 e 05 do livro de Puccini onde o autor trabalha o argumento e o
tratamento de um roteiro para o filme documentário.

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valorizem situações de imprevisto provenientes do embate com o real, todo
filme é resultado de uma ação planejada.

Personagens
A abordagem de todo e qualquer assunto deverá se valer de personagens para
seu encaminhamento e elucidação, podendo até haver coincidência entre
assunto e personagem, como no caso dos documentários biográficos. Esses
personagens podem assumir formas diversas, não necessariamente se
limitarem a personagens sociais. Podem se estender a entidades abstratas,
forças da natureza, espécies biológicas, como no caso dos documentários
naturais.

Personagens e ação no documentário

Para que o discurso do documentário construa uma narrativa, é necessário


que esses personagens façam alguma coisa (AÇÃO) em um determinado local
durante um determinado tempo.

Atenção: nem todos os personagens envolvidos em um documentário


desempenham necessariamente uma ação dramática para ser encaixada
dentro de uma estrutura narrativa. Ex. em documentários excessivamente
retóricos (verborrágicos), os chamados documentários de ensaio (de conteúdo
mais abstrato), os personagens agem pela palavra.

Segundo Michael Rabiger (citado por Puccini, 2009, p. 39), documentários


bem-sucedidos incorporam:



personagens interessantes que estão tentando obter algo;
uma boa e bem situada exposição das informações necessárias (não


muitas e apresentadas não muito cedo);


tensão e conflito entre forças oponentes;
suspense dramático (situações que intriguem o espectador e o façam


julgar, antecipar-se, conjecturar, comparar;
bom desenvolvimento de pelo menos um dos personagem ou ação


principal;


um clímax de forças ou elementos opostos;
uma resolução.

Exemplo 01: Em O homem de Aran (1934), Flaherty estrutura o filme em três


sequências longas de caráter descritivo (a primeira e a última mostram os
pescadores em luta contra o mar bravio na ilha de Aran, na Irlanda, e a
segunda vemos os pescadores no mar na luta pela captura de um tubarão.
Além do caráter descritivo, elas têm forte conteúdo dramático. O conflito é
gerado pela confrontação entre forças antagônicas: homem x natureza. Essa
luta nasce de uma necessidade dramática clara: a luta pela sobrevivência.

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O homem de Aran (1934), de Robert Flaherty

Exemplo 02: O documentarista Robert Drew, em filmes como Primárias (1960),


The Chair (1962) e Crisis (1963), utiliza um modelo de personagem próximo ao
personagem clássico da ficção, orientado por uma meta e com uma
necessidade dramática, buscando abordar situações em que seu personagem
se encontre diante de uma crise. Irá John Kennedy vencer as eleições? Irá
Paul Crump escapar da cadeira elétrica? Irá o presidente John Kennedy
assegurar a entrada dos dois estudantes negros na Universidade do Alabama?

Personagem em situação de entrevista


Uma das características do gênero documentário é a exploração do recurso da
entrevista como principal ponto de sustentação da estrutura discursiva do
filme. Muitos documentários se resolvem apenas pelo arranjo de entrevistas,
são os chamados talking heads.
No momento da entrevista se dá a construção de um personagem (que se
revela na interação com o entrevistador) e não em situação de ação, mas numa
exposição oral, que pode descrever ações de uma narrativa ou simplesmente
exteriorizar comentários.

O entrevistado como testemunha


O relato de ações ou os comentários podem trazer embutida a referência a
outros personagens, chegando a minimizar o papel do entrevistado, colocando
mais na condição de testemunha de um determinado evento histórico. Em
casos como esse, os depoimentos são utilizados para compor um personagem
extracampo, que não atua no quadro das imagens.

O cineasta Eduardo Coutinho tem como preocupação central em seus filmes a


relação com o entrevistado, já que é dessa relação que nasce o personagem
(único, que pode ou não guardar relação com a própria pessoa filmada,
transformada em personagem pelo filme).

Entrevista como ação dramática (conflito)

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O exercício da retórica proporcionado pela entrevista pode, em alguns casos,
se transformar em ação dramática, gerada por uma confrontação entre
entrevistado e entrevistador, mesmo que essa ação seja limitada, em sua
duração, ao momento da entrevista, sem repercutir em todo o documentário. A
ação dramática está na troca dialógica entre entrevistado e entrevistador, no
enfrentamento, pela palavra, entre os dois.

Encenação
[comportamento dos personagens diante da câmera]

É o recurso ao registro do personagem em ação. Essa ação muitas vezes se


revela mais uma atividade, o personagem encena para a câmera aquelas que
seriam suas atividades habituais ligadas à vida domestica ou profissional. É
uma estratégia que serve para criar uma maior dinâmica visual no filme
(maior variedade de enquadramentos e movimentos de câmera) e de
apresentação de personagens no documentário, de como esses personagens
irão se comportar diante da câmera.

Sobre o incômodo da presença da câmera para os atores sociais (e não atores


profissionais), diz o documentarista francês Jean Rouch: “Sempre que uma
câmera é ligada, uma privacidade é violada”.

A escolha por grupo de personagens


[a unidade de ação x unidade de espaço]

É comum em filmes documentários a condução do assunto não por um


personagem (protagonista), mas por um grupo de personagens. Nasce muitas
vezes da busca de se abordar um universo não pelo todo, mas por uma
amostragem que seja representativa do todo (como fazem os institutos de
pesquisa). Temos a troca de uma ação única por ações múltiplas ou a quebra
de uma unidade de ação. O interesse do documentário pode estar no registro
de um ambiente social, urbano ou rural, que comporta vários personagens
com desejos diversos. Troca-se a unidade de ação pela unidade de espaço.

Exemplos: Fala tu (2004), de Guilherme Coelho; Justiça (2004), de Maria


Augusta Ramos; Vocação do poder (2005), de Eduardo Escorel e José Joffily; O
cárcere e a rua (2004), de Liliana Sulzbach, etc.

O tempo histórico
[marcado por acontecimentos que de fato ocorreram no mundo, num período
de tempo localizável, pontual]

A escrita do argumento deverá levar em conta uma abertura para o tratamento


de um tempo que não é do seu pleno domínio, o presente da filmagem que não
pode ser planificado com antecedência. No documentário, a tomada (take)
nem sempre está submetida às necessidades de composição de um plano. O
conteúdo e a composição visual da tomada passam a ser resultado de
situações que nascem no instante da filmagem, impostos por um tempo
presente que não é totalmente controlado, mas que existe por si, um instante
presente do mundo ligado à objetividade do real.

O tempo narrativo
[Tratamento descontínuo]

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Emoldurado por um tempo histórico, o tratamento do tempo narrativo do
documentário segue padrões muitas vezes similares aos de um filme de ficção.
A livre manipulação do tempo pelo discurso pode servir para criar interesse
narrativo no filme pela via do:
_ suspense;
_ exposição retardada das informações necessárias;
_ surpresa (exposição de informações sem prévia preparação).

Exemplo: em Ônibus 174 (2002), de José Padilha, temos um exemplo da


liberdade no tratamento (descontínuo) do tempo com o uso claro de
flashbacks, que servem para narrar a vida pregressa do personagem Sandro, o
seqüestrador do ônibus. Já o desenrolar do sequestro, com todas as suas
consequências trágicas, é tratado de maneira linear.

O espaço
Como ocorre com o tratamento do tempo, o tratamento do espaço no
documentário também tende a reforçar o caráter de descontinuidade. As
sequências de um filme desse gênero nem sempre são amarradas/montadas
por uma relação de espaço. Nem sempre é a contigüidade espacial quem
determina a ordem das sequências de imagens de um documentário.

Exemplos:
_ uma entrevista, ou um depoimento, feita no espaço neutro de um estúdio,
pode relacionar eventos que ocorreram em lugares diversos, amarrados
apenas pelo tema da conversa ou pela lógica de um raciocínio (montagem de
evidência);
_ Ou sequências de entrevistas podem ser costuradas por sequências de ação,
sem que haja nenhuma relação espacial entre elas. Ex. Futebol (João Moreira
Sales e Arthur Fontes, 1998);

Unidade de espaço
Por outro lado, há documentários que recorrem justamente a uma unidade de
espaço como fator determinante do assunto. São documentários que tratam
determinadas regiões do planeta do ponto de vista natural ou sociológico. Ex.
Edifício Master (2002) e O fim e o princípio (2005), de Eduardo Coutinho; O
prisioneiro da grade de ferro (2003), de Paulo Sacramento.

ESTRUTURA DISCURSIVA
Início, Meio e Fim

Ao montar a estrutura de um documentário, o diretor trabalha com um


repertório de imagens e sons que pode ter origens e funções bem distintas na
organização de seu discurso.

Dwight Swain lista cinco tipos de sequências que podem ser trabalhadas em
um documentário de acordo com finalidades específicas, sendo que uma única
sequência pode servir para mais de uma das finalidades abaixo:

1. sequências montadas para expressar um conceito, uma ideia;

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2. sequências montadas para cobrir uma ação;
3. sequências que introduzem um cenário, ambiente ou lugar;
4. sequências que apresentam um personagem;
5. sequências que servem para criar um clima para o documentário.

Início [a apresentação do assunto]

Nesta breve apresentação do tema, o documentarista deve informar o


problema com o qual o documentário lida, as principais pessoas envolvidas _ e
o que mais o espectador necessitar saber para a história seguir adiante
(colocar informações que forem absolutamente essenciais). Os documentários
podem recorrer a depoimentos, voz over ou a uma apresentação textual do
tema: uma cartela que expõe o assunto logo no início do filme. Ex. O
prisioneiro da grade de ferro; Edifício Master e O fim e o princípio, onde o texto
informa o tema e sintetiza também o procedimento (dispositivo) utilizado para
sua realização.

Meio [o desenvolvimento do assunto]

Muito da progressão/desenvolvimento de um documentário pode ser sugerido


pelo tema ou pelo estilo. A progressão cronológica é a mais antiga forma de
narração, porque satisfaz nossa curiosidade natural de querer saber o que
está para acontecer. Filmes como Entreatos (2004) e Vocação do poder (2005),
que acompanham candidatos a cargos públicos por três meses até o dia da
eleição, têm uma estrutura já ditada pelo tema.

O miolo do filme dever tratar, preferencialmente, das complicações do


problema exposto no início. Essas complicações nascem da confrontação de
forças opostas. Ex. argumentações divergentes ou pontos de vista conflitantes
sobre determinado evento histórico ou tema.
Em Ônibus 174, o desenvolvimento serve para construir o personagem Sandro.
Mas os eventos do sequestro constroem um arco de tensão dramática
ascendente.

“Um documentário que não possua uma tensão que gere


movimento é apenas um catálogo de episódios”
(Michael Rabiger).

Fim [a resolução do assunto]


Diferente do filme de ficção, onde a resolução da história representa o fim de
todos os conflitos trabalhados por ela, os documentários tratam sempre de
assuntos que são maiores do que o filme, de conflitos que não serão resolvidos
pelo filme. Ex. A violência da sociedade do Rio de Janeiro não foi resolvida pelo
documentário Notícias de uma guerra particular (1999), de Kátia Lund e João
Moreira Sales. Um caso raro, em Nascidos em bordéis (Born into brothels,
2004), de Ross Kauffman e Zana Briski, os diretores tentam ao longo do filme
encaminhar todas as crianças a uma escola e conseguem.

Há filmes que correm atrás do tempo, que são invadidos por um tempo futuro
que sempre abre a possibilidade de uma continuação do tema. Ex. em Fala tu
(2004), o drama da vida dita a evolução dramática da narrativa para muito
além das intenções preconcebidas. O acaso é o melhor roteirista de

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documentários. Outro exemplo é A pessoa é para o que nasce (2005), de
Roberto Berliner. Outra estratégia para delimitar o tempo do filme, e definir
seu final, é trabalhar com o prazo limite. Ex. 33 (2003), de Kiko Goifman.

Nascidos em bordéis (2004)


O TRATAMENTO
[as sequências previstas para o filme]

A
escrita do tratamento serve para organizar as ideias contidas no
argumento. O tratamento cuida da estrutura do documentário ao
permitir a visualização da ordem em que as sequências do filme irão
aparecer. Assim, o tratamento irá detalhar a maneira como o conteúdo,
exposto na proposta e no argumento, será trabalhado. É a descrição mais
próxima e detalhada daquilo que se tornará o documentário

O tratamento serve como um exercício para testar a validade e a pertinência


dos recursos expressivos a serem empregados no filme, quer sejam de ordem
narrativa, quer sejam de ordem estilística.

O conteúdo dessas sequências é descrito, no tratamento, de maneira


resumida, mantendo uma abertura aos imprevistos (intervenções do acaso e
lampejos ocasionais de criatividade).

Na escritura do tratamento, aconselha Michael Rabiger, o documentarista


deve, partindo do conteúdo apresentado na proposta de filmagem:

_ Reestruturar essa proposta em uma apresentação sequência por sequência,


um parágrafo para cada sequência.
_ Escrever somente aquilo que será visto e ouvido na tela (narrativa no modo
verbal do presente, de maneira clara, viva e expressiva para o leitor visualizar
o filme que o diretor tem em mente)
_ Fornecer, sempre que possível, informações sobre seus personagens,
utilizando as palavras dos próprios, como citações breves e bem-humoradas.
_ Não escrever nada que não possa ser produzido.

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Imagem - Som - Formatação
IMAGEM – de modo geral o filme documentário pode ser constituído de uma
gama de material imagético:

a) imagens obtidas por meio de registros originais, feitos pelo próprio


documentarista para a construção de seu filme, que são de 02 tipos:
_ podem ser registros de eventos autônomos – entendidos como todo e
qualquer evento que ocorra de forma independente da vontade da produção do
filme;
_ registros de eventos integrados, aqueles que ocorrem por força da produção
do filme (entrevistas, imagens de cobertura para ambientação do
documentário, apresentações musicais, encenação, etc.).

b) imagens obtidas em material de arquivo (imagens em movimento como


filmes e vídeo que podem ter origem diversa: cinejornais, filmes institucionais,
reportagens de telejornalismo, especiais de TV e até trechos de filmes de
ficção).

c) imagens obtidas por meio de recursos gráficos que incluem as animações


(figurativas ou não), a inserção e ilustração de dados técnicos (números,
escalas, gráficos), importantes na síntese de determinada informação. As
imagens em still, como fotografias e documentos relevantes (recortes de
revistas e jornais e documentação diversa, como certificado e certidões etc.).
Por último, e bem mais freqüente, temos os intertítulos, ou cartelas de
informação textual inscritas na tela.

SOM _ o tratamento do som tem tanta importância para a constituição


estilística do documentário quanto a imagem. Nesse campo, cinco
possibilidades se destacam:

_ Som direto _ é o som obtido na situação de filmagem (entrevistas,


depoimentos, dramatizações e obtidos em tomadas em locação).
_ Som de arquivo _ tem origens diversas, como filmes, programas de rádio e
televisão, discursos, entrevistas etc.
_ A voz over _ é o som da voz que não nasce na situação de filmagem.
Normalmente, a voz over (voz de Deus) se ocupa da narração do documentário.
É sobreposta à imagem durante a montagem.
_ Os efeito sonoros _ são todos criados na fase de edição que ajudam a criar
uma ambientação para as imagens.
_ A trilha musical _ pode ser obtida em material de arquivo (compilada) ou
composta para o documentário (original).

FORMATAÇÃO _ pode ser escrito dentro de uma formatação linear ou em


colunas.
_ Linear: apresenta o resumo do filme sequência a sequência, podendo incluir
um cabeçalho para indicar o início de cada nova sequência que informa o
assunto a ser tratado, semelhante a um tratamento de roteiro de ficção. Esse
tipo de formatação é bem mais conciso e a preocupação com o tratamento
sonoro é minimizada.

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_ em colunas: normalmente é feita em duas colunas, uma para a descrição da
imagem e outra para a descrição do som, abre a possibilidade para uma
descrição mais detalhada da faixa sonora. Nem sempre é a mais recomendável
para a escrita do tratamento, por ser bem mais técnica e detalhada, além de
exigir mais atenção na leitura.

Considerações finais
A título de conclusão, lembramos que esse manual é uma compilação
de ideias de diversos autores, que se debruçaram sobre o assunto, para ser
utilizado como uma guia nas aulas da disciplina em questão. No que se refere
à última parte, roteiro de documentário, resumimos aqui quatro capítulos da
obra de Sérgio Puccini Roteiro de documentário: da pré-produção à pós-
produção, a primeira de autor brasileiro sobre o assunto. Esse livro de Puccini
veio preencher efetivamente uma lacuna sobre a questão do roteiro de filme
documental, um tema que até recentemente provocava polêmicas acirradas,
sobretudo em se tratando de editais de fomento ao cinema do gênero
documental, a exemplo do Doc.TV. Lembramos que o uso desse manual não
desobriga os estudantes da leitura das obras citadas na bibliografia abaixo,
todas fundamentais para o exercício da prática do roteiro de ficção e
documentário.

Referências

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus,


2005.

PUCCINI, Sérgio. Roteiro de documentário: da pré-produção a pós-


produção. Campinas, SP: Papirus, 2009.

RABIGER, Michael. Direção de Documentário. Ed: Campus e Focal


Press, 2011.

http://www.agencia.ufpb.br/doctv/Manual.pdf

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