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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
LITERATURA PORTUGUESA IV

Somos nós, por exemplo, apenas vozes da voz.

Nome: Jéssica de Abreu Trinca


n°usp: 6835670

SÃO PAULO
2018
“Nós somos apenas vozes
Do que quer que seja luz no cor-de-rosa
Cor na luz da brasa
Gás no que sustenta a asa no ar
Nós, por exemplo, queremos cantar”
Nós, por exemplo - Gilberto Gil.

A sociedade portuguesa pré 25 de abril de 1975, data em que ocorre a


Revolução dos Cravos, em Portugal, é assinalada por uma atmosfera de mudança
de mentalidade, surgem uma série de obras literárias que discutem as normas e
convenções sociais da época, como também criticam as representações políticas e
sociais reacionárias ainda presentes na sociedade. A escritora Maria Isabel Barreno,
autora do romance ​Os outros legítimos superiores (1970), compõe esta geração que
protagonizou esta mudança de mentalidade na sociedade conservadora portuguesa,
pré Revolução dos Cravos. Nesse período surge um antes e um depois, torna-se um
divisor de águas na literatura, pois trará no corpo dos textos literários o corpo das
mulheres, autoras, que renegaram não apenas as estruturas político-sociais, como
repelem especificamente o lugar da mulher mulher na sociedade burguesa e incidem
como sujeito na escrita.
Em ​Os outros legítimos superiores​, a narrativa está sob o ponto de vista das
mulheres, todas chamadas Maria. A narradora onisciente faz uma reflexão filosófica
acerca dos papéis desempenhados e desenhados pela sociedade patriarcal ao
longo dos séculos. Traz à luz a existência de mulheres em crise com os lugares que
obrigatoriamente ocupam e que chegam à consciência dessa opressão através das
restrições infligidas em nome da ordem e do sofrimento, causado diretamente por
esse sistema machista.
O presente trabalho tem o objetivo de analisar este romance com dois
enfoques: o primeiro em sua estrutura narrativa, comparando-a com mecanismo
retórico narrativo presente na obra ​O Banquete​, de Platão, em que há a presença de
vozes que são ouvidas, ou melhor, ditas dentro de uma outra voz, com a diferença
que no romance de Maria Isabel Barreno esta estratégia aproxima o que é dito em
relação ao sujeito que as enuncia, ao condensar na voz de Maria, esposa de Adolfo,
as diversas vozes das demais Marias - indivíduos diferentes, com um mesmo nome
que impõe-lhes a ideologia do silêncio da virgindade (BARRENO, 1993, p.10) e
reduzem-nas a um ser, mulher. A hipótese de um mesmo nome para todas é uma
estratégia que escancara o generalismo superficial com que o mundo masculino
trata as mulheres, tendo como evidência onomástica1 esse traço social, assim como
expõe minuciosamente, por meio dessas vozes, esse processo de massacre da
individualidade e subjetividade das mulheres dentro dessa ordem social.
A autora subverte o processo retórico que Platão inaugura em ​O Banquete -
em que encena o discurso feminino na passagem em que Sócrates transmite o
discurso de Diótima2 - ao introduzir a voz da mulher por outra mulher e simular a voz
dos homens, a do Sábio e de Adolfo.
O segundo enfoque se concentra na perspectiva que a mulher tem da
gravidez, e logo da maternidade, como mecanismo de controle, constituindo-se
como instituição de repressão do patriarcado, o qual regula, justifica e efetiva o
espólio do corpo da mulher, da sua individualidade, dos filhos por ela gerados e,
finalmente, da sua liberdade de exercer escolhas - maternas ou não. Em oposição
de Diótima encenada por Sócretes, pois ela concentra toda a produção criativa da
mulher procriação, portanto na gravidez e parto.
No prefácio da 2°edição do romance, Maria Isabel Barreno (1993, p.9) nos
conta que as personagem funcionam como arquétipos, algumas delas deslizando
até coincidirem com o conteúdo de outras, entende-se esse movimento como
permanente em qualquer estrutura básica, como a mitológica, ou sentidos gerais e
imediatos atribuídos a um símbolo, além da sua significação própria. No romance,
Maria é o símbolo e o sentido comum dado ao ser mulher, o nome se torna figura
que representa à vista o que é puramente abstrato. As muitas Marias sintetizam “a
natureza feminina” única a que as mulheres eram reduzidas (idem, p. 10) e que
estão próximas, se tocam por um lado e de imediato em circunstâncias passadas,
presentes e futuras provocadas pelos mecanismos sociais que se mantêm idênticos
ao longo e que habitam o universo da interioridade dos indivíduos e da sociedade.

1
Barreno, Maria Isabel. Prefácio da 2° edição. ​In: Os outros legítimos superiores​, 2.ed. Editorial
Caminho, SA, Lisboa, 1993, p.9.
2
Allegro, Isabel de Magalhães. Ao contrário de Diótima: a diferença sexual na escrita -
Ipotesi, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, n. 2, pág. 11 - 20, jan/jun, jul/dez 2006
O romance subtitulado ironicamente como “Folhetim de ficção filosófica”,
demonstra a lógica profunda da narrativa. Enquanto a cidade e a realidade
político-social dão forma ao cotidiano como pano de fundo da obra, o primeiro plano
se concentra numa reflexão sobre a legitimação do poder dos homens pelo seu
próprio poder, ao colocar a condição da mulher como conjunto de assuntos que
provocam um3a meditação sobre existência humana. E, situa esta discussão sobre
as regras sociais - e suas diversas materializações por meio das vias institucionais
para a manutenção do poder patriarcal - para elaborar uma lógica contrária a da
sociedade burguesa reacionária, que insiste em impor uma unidade lisa como uma
verdade única admissível sobre o indivíduo.
A estratégia narrativa da autora se baseia na “desautorização” do discurso
dito “feminino” elaborados, até então, por uma visão masculina, pois deixa evidente
o feminino como construção cultural e social da sociedade patriarcal. Enquanto que
em Platão a mulher é uma figura no discurso, e inaugura criação ficcional da voz da
mulher na literatura, em Barreno a mulher é o referencial. O que esses textos têm
fortemente em comum é o uso da voz dentro de uma outra voz. O romance emana
as vozes de diferente personagens - com um mesmo nome - suas histórias passam
de uma para outra, num discurso direto e contínuo, em túneis de comunicação
encaixados na voz da narradora que o reproduz com aspas:

"As amigas rodeiam-na, afirmam que os homens não podem compreender, nunca, só quem
está grávida ou já esteve é que sabe, o que custa, "as mulheres sabem sofrer e os homens,
não, coitados dos homens, nunca faças sofrer o teu marido, ele não sabe sofrer, tem direito
a uma vida sem sofrimento, se ele te enganar, se te maltratar, compreende-o, faz muita
impressão ver um homem sofrer, uma mulher não, é mais natural, sofres a gravidez,
sofrerás o parto, sofre o teu marido". As amigas estão vermelhas, falam-lhe junto ao rosto,
aproximam-se, agitam as mãos e deitam perdigotos das suas bocas excitadas, Maria quer
fugir” (p.56).

3
Barreno, Maria Isabel. Prefácio da 2° edição. ​In: Os outros legítimos superiores​, 2.ed. Editorial
Caminho, SA, Lisboa, 1993, p.10.
Sendo que cada voz é ouvida dentro de uma outra voz, e esta dentro de uma
outra, a da narradora. É importante ressaltar que a encenação das vozes das
personagens masculinas, ou maculinizadas, no caso do júri, conjunto de cidadãos
escolhidos para conduzir uma coroação e um tribunal, a estratégia narrativa vai ao
encontro do uso de Platão, pois distancia o que é dito em relação ao sujeito que o
enuncia (Allegro, 2006, p.12). Barreno realiza neste “folhetim de ficção filosófica”
uma consideração a existência de duas subjetividades distintas, a feminina e a
masculina. Em Barreno, através de uma reflexão sobre o amor burguês, que na
realidade é um mecanismo de compensação ao sofrimento imposto à mulher e às
outras minorias presentes no romance, como as crianças e os párias, vemos uma
construção femininas do masculino. A identidade feminina é construída a partir da
própria mulher e utilizada dentro de seu discurso como estratégia argumentativa
contrária a legitimação dos homens como superiores na sociedade. Assim, a autora
sequestra a lógica narrativa imperante na literatura para deixar manifesto o espólio
do direito das mulheres à existência, à subjetividade e à plena liberdade sobre seus
corpos:

“Riem todas, muito, “Maria, Maria são ambas Maria e não se conhecem”, “eu também sou
Maria, também eu, mas nós temos outros nomes, elas são só Maria, Maria só” Maria só;
Maria reconhece-se inventada, ouve “só” ecoando do fundo de um poço vazio, como a
realidade triste de um palco sem cenários. Inventada por todos, em cada momento,
adequada às circunstâncias e às necessidade de cada um, mulher fraca e indefesa, mãe
heróica, companheira desvelada, ardil pecaminoso, contraditória, exausta, personagem
solicitada na literatura dos homens, e levantam-se as Penélopes, as Filipas, as
Sanseverinas, as Bovarys, e as Nanás, figuras-chave carregando o peso misterioso das
intrigas, nos livros dos homens onde surgem os retratos de mulher, e outros homens dizem
“admirável!” tão possuída consideram a sua natureza [...]” (pg.36)

Em ​O Banquete​, o discurso de Diótima, encenada na voz de Sócrates, eleva o amor


com vistas à procriação. Ela usa o termo gestação, fecundação, seu discurso
aparece sexualmente marcado, insiste na palavra gravidez e concebe a experiência
feminina com uma erótica da procriação, sua presença (mesmo que encenada) e
seu discurso autoriza os homens a ver o seu trabalho de criação e a sua produção
cultural elevados a um grau superior ao da procriação feminina (ALLEGRO, 2006, p.
9-11). Já em ​Os outros legítimos superiores​, o discurso de Maria não apenas
deslegitima a superioridade dos homens no processo de existência humana, como a
gravidez é tida como um sistema de opressão à mulher, a fala de narradora, e de
sua personagem feminina, incorporam a presença da mulher enquanto referência do
discurso, o qual quebra o antigo paradigma de que a única finalidade do amor
erótico feminino a dar a luz. Barreno ao se deparar com as convenções e modelos
masculinos na literatura corrompe o código linguístico elaborado pelos homens e os
excluí, para firmar a identidade da mulher, até então usurpada. Esse resgate da
subjetividade feminina traz à superfície a voz dos corpos emudecidos pela pelas
figurações das mulheres fundados a partir dos “eu” masculinos.

“ [...] Maria está só e o seu filho nasce junto a vedação de madeira podre. Nenhum braço se
estende para acolher o defendido bastardo, apenas os senhores reformados sorriem as
crianças nos jardins. Maria alimentará o filho com do seu leite e do seu trabalho, cáustico e a
sociedade reclamar-lhe-á o cumprimento dos deveres cívicos.” (p.50)

“Nós últimos dias, Maria é já uma coisa informe. Os olhares solícitos e penalizados bastam
para relembrar o “seu estado”, se ela por acaso esquece em boa disposição. Tudo lhe foi
retirado, aos poucos, “não ande muito”, “não coma sal, como pouco, e ande bastante para
não engordar”, “não andes, que te cansa” [...] Maria anda muito e cansa-se [...] passa o
tempo, é preciso ir mudar o carro, e sobe toda a rua a pé, depressa, e as mulheres muito
escuras ali estão em suas tendas, malcheirosas, demasiado grossas, “não tenho o direito de
me sentir desgraçada, e sinto, sinto-me irmanada com estas sofridas mulheres de pele
escura que me olham com inveja”. (p.65)

Em ​Os outros legítimos superiores​, a autora narra o desejo das mulheres de


libertação do sofrimento, aspirando uma vida que não seja a de mártir dos homens,
denunciando a gravidez mecanismo de opressão da sociedade patriarcal. Através de
uma fina reflexão filosófica Barreno coloca em xeque o modo de inserção social das
mulheres no contrato social simbólico, ao defender a presença da mãe viúva, até
então à míngua e colocada à margem da sociedade por não ter mais uma marido
que a sustente economicamente, ou insistir na presença da mãe solteira, que ousou
comer a maçã do paraíso perdido. O romance de Barreno encerra não apenas um
sequestro da literatura tida como criação masculina, como concebeu uma identidade
e um destino mais densos de significado.

BIBLIOGRAFIA

Barreno, Maria Isabel. Os outros legítimos superiores. Editorial Caminho, SA, Lisboa,
1993.
Allegro, Isabel de Magalhães. Ao contrário de Diótima: a diferença sexual na escrita.
Ipotesi, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, n. 2, pág. 11 - 20, jan/jun, jul/dez 2006.

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