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SÃO PAULO
2018
“Nós somos apenas vozes
Do que quer que seja luz no cor-de-rosa
Cor na luz da brasa
Gás no que sustenta a asa no ar
Nós, por exemplo, queremos cantar”
Nós, por exemplo - Gilberto Gil.
1
Barreno, Maria Isabel. Prefácio da 2° edição. In: Os outros legítimos superiores, 2.ed. Editorial
Caminho, SA, Lisboa, 1993, p.9.
2
Allegro, Isabel de Magalhães. Ao contrário de Diótima: a diferença sexual na escrita -
Ipotesi, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, n. 2, pág. 11 - 20, jan/jun, jul/dez 2006
O romance subtitulado ironicamente como “Folhetim de ficção filosófica”,
demonstra a lógica profunda da narrativa. Enquanto a cidade e a realidade
político-social dão forma ao cotidiano como pano de fundo da obra, o primeiro plano
se concentra numa reflexão sobre a legitimação do poder dos homens pelo seu
próprio poder, ao colocar a condição da mulher como conjunto de assuntos que
provocam um3a meditação sobre existência humana. E, situa esta discussão sobre
as regras sociais - e suas diversas materializações por meio das vias institucionais
para a manutenção do poder patriarcal - para elaborar uma lógica contrária a da
sociedade burguesa reacionária, que insiste em impor uma unidade lisa como uma
verdade única admissível sobre o indivíduo.
A estratégia narrativa da autora se baseia na “desautorização” do discurso
dito “feminino” elaborados, até então, por uma visão masculina, pois deixa evidente
o feminino como construção cultural e social da sociedade patriarcal. Enquanto que
em Platão a mulher é uma figura no discurso, e inaugura criação ficcional da voz da
mulher na literatura, em Barreno a mulher é o referencial. O que esses textos têm
fortemente em comum é o uso da voz dentro de uma outra voz. O romance emana
as vozes de diferente personagens - com um mesmo nome - suas histórias passam
de uma para outra, num discurso direto e contínuo, em túneis de comunicação
encaixados na voz da narradora que o reproduz com aspas:
"As amigas rodeiam-na, afirmam que os homens não podem compreender, nunca, só quem
está grávida ou já esteve é que sabe, o que custa, "as mulheres sabem sofrer e os homens,
não, coitados dos homens, nunca faças sofrer o teu marido, ele não sabe sofrer, tem direito
a uma vida sem sofrimento, se ele te enganar, se te maltratar, compreende-o, faz muita
impressão ver um homem sofrer, uma mulher não, é mais natural, sofres a gravidez,
sofrerás o parto, sofre o teu marido". As amigas estão vermelhas, falam-lhe junto ao rosto,
aproximam-se, agitam as mãos e deitam perdigotos das suas bocas excitadas, Maria quer
fugir” (p.56).
3
Barreno, Maria Isabel. Prefácio da 2° edição. In: Os outros legítimos superiores, 2.ed. Editorial
Caminho, SA, Lisboa, 1993, p.10.
Sendo que cada voz é ouvida dentro de uma outra voz, e esta dentro de uma
outra, a da narradora. É importante ressaltar que a encenação das vozes das
personagens masculinas, ou maculinizadas, no caso do júri, conjunto de cidadãos
escolhidos para conduzir uma coroação e um tribunal, a estratégia narrativa vai ao
encontro do uso de Platão, pois distancia o que é dito em relação ao sujeito que o
enuncia (Allegro, 2006, p.12). Barreno realiza neste “folhetim de ficção filosófica”
uma consideração a existência de duas subjetividades distintas, a feminina e a
masculina. Em Barreno, através de uma reflexão sobre o amor burguês, que na
realidade é um mecanismo de compensação ao sofrimento imposto à mulher e às
outras minorias presentes no romance, como as crianças e os párias, vemos uma
construção femininas do masculino. A identidade feminina é construída a partir da
própria mulher e utilizada dentro de seu discurso como estratégia argumentativa
contrária a legitimação dos homens como superiores na sociedade. Assim, a autora
sequestra a lógica narrativa imperante na literatura para deixar manifesto o espólio
do direito das mulheres à existência, à subjetividade e à plena liberdade sobre seus
corpos:
“Riem todas, muito, “Maria, Maria são ambas Maria e não se conhecem”, “eu também sou
Maria, também eu, mas nós temos outros nomes, elas são só Maria, Maria só” Maria só;
Maria reconhece-se inventada, ouve “só” ecoando do fundo de um poço vazio, como a
realidade triste de um palco sem cenários. Inventada por todos, em cada momento,
adequada às circunstâncias e às necessidade de cada um, mulher fraca e indefesa, mãe
heróica, companheira desvelada, ardil pecaminoso, contraditória, exausta, personagem
solicitada na literatura dos homens, e levantam-se as Penélopes, as Filipas, as
Sanseverinas, as Bovarys, e as Nanás, figuras-chave carregando o peso misterioso das
intrigas, nos livros dos homens onde surgem os retratos de mulher, e outros homens dizem
“admirável!” tão possuída consideram a sua natureza [...]” (pg.36)
“ [...] Maria está só e o seu filho nasce junto a vedação de madeira podre. Nenhum braço se
estende para acolher o defendido bastardo, apenas os senhores reformados sorriem as
crianças nos jardins. Maria alimentará o filho com do seu leite e do seu trabalho, cáustico e a
sociedade reclamar-lhe-á o cumprimento dos deveres cívicos.” (p.50)
“Nós últimos dias, Maria é já uma coisa informe. Os olhares solícitos e penalizados bastam
para relembrar o “seu estado”, se ela por acaso esquece em boa disposição. Tudo lhe foi
retirado, aos poucos, “não ande muito”, “não coma sal, como pouco, e ande bastante para
não engordar”, “não andes, que te cansa” [...] Maria anda muito e cansa-se [...] passa o
tempo, é preciso ir mudar o carro, e sobe toda a rua a pé, depressa, e as mulheres muito
escuras ali estão em suas tendas, malcheirosas, demasiado grossas, “não tenho o direito de
me sentir desgraçada, e sinto, sinto-me irmanada com estas sofridas mulheres de pele
escura que me olham com inveja”. (p.65)
BIBLIOGRAFIA
Barreno, Maria Isabel. Os outros legítimos superiores. Editorial Caminho, SA, Lisboa,
1993.
Allegro, Isabel de Magalhães. Ao contrário de Diótima: a diferença sexual na escrita.
Ipotesi, Juiz de Fora, v. 10, n. 1, n. 2, pág. 11 - 20, jan/jun, jul/dez 2006.