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CADERNO DE RESUMOS
Nesta apresentação, efetuarei uma análise, por assim dizer, microscópica das formas
linguísticas, dos motivos do conteúdo e da composição dos poemas “À margem do
Douro” e “Mirante”, de Paulo Henriques Britto, recolhidos em Nenhum mistério,
penúltimo volume de poesia do escritor, publicado em 2018. Pretendo considerar
somente os textos propriamente ditos e observá-los com atenção sustentada, de
modo que seus movimentos de língua e de fundo não me escapem, ainda que não
venha a me deter sobre todos os seus aspectos. Gostaria de mostrar como, no
detalhe do texto, letra e sentido se informam mutuamente e de que maneira a escrita
se entrelaça à experiência sensível. Para isso, utilizarei o pensamento do poeta e
teórico francês Michel Collot como uma espécie de guia e considerarei a própria
língua como uma paisagem. Meu objetivo é entender como o sujeito lírico dos
poemas se comunica com a carne do mundo através da linguagem.
O presente trabalho tem como objetivo estudar a presença do cabelo como sinônimo
de resistência, memória e identidade da mulher negra na poesia contemporânea de
autoria feminina. O objeto do racismo não são apenas o homem negro e a mulher
negra, mas sua maneira de existir diante da sociedade. A imagem da mulher negra foi
construída por preconceitos fincados em ideais racistas e brancos. Longe da sua
verdadeira identidade, a mulher negra se percebe numa tentativa de compreender
qual seria o seu padrão estético. É nesse lugar que se fazem necessários mecanismos
que ajudem na construção ou reconstrução do seu próprio padrão. A poesia é uma
forma de representação de espaços, em que os interesses e as perspectivas sociais
interagem e se entrechocam. É nesses espaços que poetas negras têm usado o
cabelo como instrumento para ressignificar, protestar e rememorar nossas origens.
A obra utilizada para análise é o livro Talvez precisemos de um nome para isso, da
autora Stephanie Borges (2019), um poema longo dividido em várias partes em que a
autora traz um debate sobre beleza e identidade e propõe uma autoanálise sobre a
construção e reconstrução da própria imagem. Como suporte teórico, nos
apoiaremos nos livros Memórias da plantação, de Grada Kilomba, Tornar-se negro, de
Neusa Santos, e Sem perder a raiz, de Nilma Gomes Lima, além de artigos que tratem
sobre cabelo e a mulher negra.
A figura do tempo na Grécia homérica (aproximadamente os anos 1150 a.C. a 800 a.C.)
era representada por Cronos (Κρόνος), um deus devastador que devorou os próprios
filhos, pois sentia medo de perder o seu trono nos céus. Apesar da distância
cronológica entre o mito grego e a atualidade, o humano contemporâneo permanece
no estado de vítima do tempo, vivendo em função de multitasking e
desinteriorização. Diante dessa situação, o presente trabalho propõe o tempo como
o maior antagonista da literatura brasileira contemporânea. Nessa perspectiva, serão
analisados o eixo temporal e o eixo semiótico do conto “O cooper de Cida”, de
Conceição Evaristo, publicado em Olhos d'água (2015). A análise versa sobre o modo
como o capitalismo influi na forma como a literatura constrói o tempo na narrativa,
moldando uma nova tradição para a leitura e a criação literária. Para isso, destaco o
conceito de tempo narrativo e o percurso gerativo de sentido. A comunicação
proposta possui como principais aportes teórico-metodológicos as seguintes
leituras: Tempo e narrativa (vol. II), de Paul Ricoeur, A criação literária, de Massaud
Moisés, Teoria semiótica do texto, de Diana Luz Pessoa Barros, A condição humana,
de Hannah Arendt, e Sociedade do cansaço, de Byung Chul Han.
Ana Claudia Alves Netto Coelho – UFJF
Uma reflexão sobre violências sexuais em narrativas escritas por mulheres
Em A vida futura, Sérgio Rodrigues utiliza o tom cômico para tratar de temas atuais e
espinhosos, tais como gênero neutro, racismo e a adaptação de clássicos da literatura
com o intuito de os simplificar para o leitor contemporâneo. O narrador em primeira
pessoa é nada mais nada menos que Machado de Assis, que vem ao Rio de Janeiro
no ano de 2021 como espírito na companhia do amigo José de Alencar, justamente
para tentarem impedir que seus livros sejam “simplificados” por uma professora da
Escola de Comunicação da UFRJ. O que mais chama a atenção no romance é o
trabalho com a linguagem. Através de um pastiche bem elaborado, o autor emula a
sintaxe machadiana com sucesso. E, ao optar pela paródia, Sérgio aproveita para
fazer troça com a diferença entre o vocabulário conhecido pelo Bruxo do Cosme
Velho, finado em 1908, e os conceitos acadêmicos que são utilizados na atualidade:
“grupos interseccionais, lugar de fala, centralidade, não binário, cisgênero,
epistemologia decolonial, todes... ‘Todes?! Seria um Deus nórdico?’ Logo me perdi.”
Com 166 páginas, divididas em 51 capítulos curtos, à moda de Machado, A vida futura
é um interessante exercício ficcional colocando nosso maior escritor em situação
inusitada e mui original.
Em Crônicas exusíacas e estilhaços pelintras (2023), Luiz Antonio Simas faz uma
espécie de passeio-transe pelas encruzilhadas do Rio de Janeiro, colocando em cena
o Orixá Exu – senhor das encruzilhadas e orixá da comunicação –, personificado como
pessoas e como parte da cidade, nas encruzilhadas. Em suas 77 crônicas, o livro faz
um passeio pelo Rio de Janeiro e pela baixada fluminense, mostrando como “Fora do
tempo, a Zona parece fugir igualmente à geografia e apresentar-se como um lugar
ilocalizável e indelimitável” (Etelain, 2017). O tempo do livro é um tempo mítico, o
sujeito que narra o livro – um Exu em terra – não se apresenta como um flâneur – um
espectador, um observador da vida, ao passar por ela –, mas se põe diante da cidade
como um corpo-ebó – que na encruzilhada oferece e recolhe a história, registra e
vive, transita e não passeia. Este trabalho pretende passar pelas encruzilhadas das
sete primeiras pequenas crônicas do livro e mostrar como Exu aparece nelas, não
apenas como personagem nominado – ganhando nome de orixá ou como uma de
suas muitas faces popularmente difundidas pela cidade –, mas como imagem de
brasilidade, um signo de leitura que ambienta o espaço do Rio de Janeiro. O objetivo
é pensar como Exu se faz na cidade das crônicas do livro, mas também como ele é
um traço de nacionalidade possível para a identidade de um país colonial, feito na
força, na morte, na festa e, sobretudo, nas estripulias para a sobrevivência.
A arte das últimas décadas tem se consolidado como espaço de expressão de grupos
marginalizados, espaço onde a autoficção (Kingler, 2008), ou a escrevivência,
postulada por Conceição Evaristo em sua crítica literária, concretizam-se como
subversão da perspectiva hegemônica e pretensamente universal. Entre as formas
de expressão, temos a canção que, ao unir melodia e letra, capilariza-se de maneira
única entre diferentes grupos sociais, elementos que a transformam em potente
ferramenta não só de exposição, mas de disseminação de discussões insurgentes.
Diante do exposto, esta pesquisa pretende examinar de que modo a literatura ganha
novos ares e se enriquece no diálogo com outras expressões artísticas, como a
música e o audiovisual, além de mostrar como o cancioneiro do Brasil
contemporâneo tem valorizado novas perspectivas e temáticas. Para tanto, utilizo o
álbum audiovisual Como é bom estar debaixo d’água (2020), da cantora Luedji Luna, e
pontuo, por meio da análise composicional, melódica e imagética da obra, como a
negritude feminina é tônica na linha narrativa da obra. Pelas letras, vemos expressa
a subjetividade dessa mulher, em vista de evidenciar uma humanidade
historicamente negada. São narrados afetos, angústias, fraquezas e desejos, todos
com um olhar racialmente marcado. Pelas melodias, vemos referências ao jazz, ao
blues e ainda ao compasso dos toques do candomblé. Pelas imagens, são
representados elementos das religiões afrodiaspóricas, de modo tanto metafórico
quanto arquetípico. Vale ressaltar também as referências à literatura escrita, com as
obras de Conceição Evaristo, Tatiana Nascimento e bell hooks. Assim, o álbum é
usado para compreender as possibilidades de comunicação e circulação literária
próprias da expressão musical, e também discutir sobre o recente movimento de
trazer para a arte pluriperspectivas, nas quais indivíduos silenciados e relegados ao
lugar de objeto reivindicam a autonomia de expor suas narrativas.
Escrever versos, declamar versos, expor o que se pensa utilizando versos significam
reclamar por uma linguagem, instrumento de poder, negada desde o episódio da
escravatura africana. Sim, é isso o que define um MC, tradicionalmente chamado
Mestre de Cerimônias, e que aqui será o Mestre de Centimentos, com C. Todos os
filhos da diáspora africana foram gerados por línguas tonais, bantus em sua maioria.
As subjetivações acontecem mais pelos efeitos provocados na oralidade do que pela
escrita. O ato se inicia no entoar de suas vozes como um chamado para a guerra, e
dominar a audiência é o propósito ritualístico de evocação de ancestralidade, tudo
em sincronia com os tambores eletrônicos. Ser um MC é estar em contato com o
sagrado e o profano, uma permanente troca apenas possível de se sentir, e pouco há
a se explicar sobre versos, pois o sagrado não se explica, apenas se sente. Emeceeing,
ou o estado pleno de transe realizado no ato do verso de improviso, se diferencia do
rapping, que é o discurso preparado como expressão política e social. Ambos
pertencem ao elemento rap da cultura Hip-Hop, que pode ser chamado de gênero
literário moderno ou um caminho independente de literatura, uma forma
contemporânea e antiga de literatura que nos remete aos griôs africanos, aos
trovadores europeus, aos terreiros de macumba e aos becos e às vielas das favelas.
Ainda podem ser mencionadas algumas outras vertentes de práticas emeceeings, o
traping, o freestyling, e todas as formas de versos com intenção de persuasão,
realizada no ato em que se reterritorializam subjetivações por uma outra linguagem,
quando a sua original for negada pelo advento da exploração capitalista.
Vinte e um anos de ditadura militar fizeram com que pautas feministas ficassem em
segundo plano em favor da resistência democrática e defesa dos direitos humanos
dos perseguidos pelo regime autoritário recém-findado. No Brasil as lutas pelas
melhores condições das mulheres ficaram estagnadas, garantindo continuidade ao
comportamento misógino, machista e patriarcal da sociedade. No romance Gostaria
que você estivesse aqui (2021), somos apresentados a personagens femininas que nos
levam a discutir as questões de gênero no período histórico-político-social do Brasil
dos anos 1980. Baby foge de um casamento arranjado com uma pessoa mais
abastada. Selma rompe com estereótipos da classe média e dedica-se a uma carreira
acadêmica. Temos a oportunidade de conhecer também a história de Eloá, filha de
Rosalv, mulher trans, assassinada no Rio de Janeiro, em uma das favelas da cidade. O
pai, viúvo, em busca do paradeiro da filha, casa-se novamente com Elza, uma típica
mulher de periferia. Para entender melhor as relações dessas mulheres com sua
contemporaneidade e com as questões feministas, discutiremos os princípios do
feminismo hegemônico (Beauvoir; Woolf; Federici; Dorlin), não hegemônico (hooks;
Davis; Hill Collins) e decolonial (Gonzalez; Hollanda; Verges), bem como as
interferências de gênero, sexo e sexualidade em um contexto político e cultural em
plena ebulição (Schwarcz; Hollanda).
O trabalho faz uma análise do romance Vidas provisórias, de Edney Silvestre, cuja
temática remete à questão do exílio e suas consequências na vida das pessoas, em
relação à experiência do desenraizamento. Em que pese o caráter subjetivo da
literatura e a liberdade de escrita conferida ao escritor, o desenvolvimento do enredo
propicia ao leitor uma visão clara e singular da vivência dos personagens em um dado
momento histórico, uma vez que vários elementos – algumas situações e locais, por
exemplo, são verídicos –conferem uma visão ampla e privilegiada dos
acontecimentos. Algumas vezes, as mudanças são para melhor; em outras, no
entanto, o redemoinho em que se cai é tão grande, que todas as possibilidades de
compreensão não conseguem elucidar o porquê daquilo tudo. No romance Vidas
provisórias, o cenário da incerteza e do medo e a sensação de estar num redemoinho
infinito aparecem com grande evidência na vivência das histórias de Paulo Antunes e
Bárbara Costa, dois personagens cujas trajetórias não se distinguem de tantas –
verídicas e dolorosamente relatadas –, ao longo do período de exceção vivido pelo
Brasil entre 1964 e 1985 e durante o curto período do governo (1990 – 1992) de
Fernando Collor, primeiro presidente eleito após a ditadura. Ultimamente, em que a
simples citação de protagonistas violentos da ditadura provoca a simpatia de um
segmento da população brasileira, a reflexão acerca daquele tempo se faz
necessária. O romance de Edney Silvestre nos possibilita, através de um enredo
instigante, aprofundar nossa reflexão acerca dessa temática tão importante,
principalmente no momento presente, em que se sofrem, em vários países, as
consequências da polarização e da globalização.
Estudo da obra de Carla Madeira – Tudo é rio, 2014; A natureza da mordida, 2018; e
Véspera, 2022 –, visando mostrar como os três romances, embora diferentes entre si,
se articulam com o existencialismo de Sartre. Carla Madeira, escritora
contemporânea nascida em Minas Gerais, trabalha com o tema da família em choque
com os embates sociais e as consequências dos dramas psicológicos. Seus
personagens fazem parte de uma engrenagem em que liberdade e responsabilidade
são requisitos básicos.
A partir do livro Poesia completa, de Orides Fontela (Hedra, 2015), com organização e
apresentação de Luís Dolhnikoff, e também das entrevistas concedidas pela poeta,
reunidas em Orides Fontela – toda palavra é crueldade (Moinhos, 2019), com
organização de Nathan Matos, a presente discussão se baseará no questionamento
pela instituição de uma possível corporeidade poético-filosófica em Orides Fontela.
Essa hipótese se dá em função de um trecho de uma entrevista concedida pela poeta
a Michel Riaudel, quando Orides se referiu à sua escrita como “uma poesia mais
meditativa, mais raciocinante”. Daí, seria possível depreender que os poemas
oridianos carregariam um forte enviesamento pela abordagem filosófica.
Paralelamente, ao se considerar o termo corporeidade, este apresenta um aspecto
movente, por se tratar de uma composição em que o sufixo “-dade” traz à palavra
“corpo” a disposição para o ambíguo. Se fôssemos cogitar o significado estrito de tal
sufixo – pelo qual se define a formação de substantivos abstratos, segundo o
dicionário Houaiss –, seria plausível dizer que a corporeidade estaria no âmbito de
uma abstração do corpo, como se tivesse esvaziado o aspecto material de algo que
ocupa lugar no espaço e possui massa. Contudo, a preferência aqui é a de considerar
a movência da corporeidade como edificação concreta, extrapolando sua
materialidade ao estabelecer um espaço de trânsito singular. Propõe-se, portanto, a
concretude dessa ação ambígua, respaldada nos poemas oridianos, ao se ponderar a
instituição de uma pensatividade corporal ou, por que não, de uma corporeidade
pensativa.
A articulação literária e política feita por Claudia Tajes traz à luz do conhecimento
questionamentos e críticas acerca do que é ser mulher numa sociedade
cisheteropatriarcal. Ao se fazer lida, a autora portoalegrense enquadra sua escrita no
conceito de autodefesa, que Elsa Dorlin (2020) cunhou como táticas defensivas e
subjetividades desarmadas que protegem a comunidade e não um sujeito
propriamente dito. A autora brasileira usa seu ácido humor e seu cinismo como
elementos-surpresa na defesa pelo direito feminino de ser quem é. Ao hiperbolizar
os problemas sociais que suas protagonistas vivem, Tajes constrói sua crítica
diretamente em cima da sociedade patriarcal, usando a força da dominação
masculina como fonte de energia do seu humor para, a partir daí, derrubá-la, tal como
eram descritas as artes marciais asiáticas usadas em favor das mulheres. Sandra
Almeida (2010) defende que uma forma de propiciar uma leitura crítica dos discursos
da atualidade é justamente por intermédio de narrativas que contestam e
problematizam o atual cenário global pela representação, construção e produção de
uma percepção de mundo. No fim de sua obra, Elsa Dorlin cita as técnicas de
autodefesa que as mulheres ativam cotidianamente e não permitem que elas sejam
aniquiladas pela violência, como “evasão, negação, astúcia, palavra, argumento,
explicação, sorriso, gesto, fuga, esquiva, todas técnicas de ‘combate real’ que não
são reconhecidas como tais”, e constata que, ao se defender da violência dessa
forma, a mulher causa constantemente diversas violências a si mesma, silenciando-
se e aceitando o que lhe foi “destinado”. Ao centrar-se em si e agir perante a ordem
patriarcal, as personagens de Claudia Tajes transgridem as regras em vigor e abarcam
novas possibilidades de defesa para as mulheres, que envolvem suas vozes e o poder
de se expressar.
Este trabalho se propõe a estudar a vasta produção poética de Neide Archanjo (1940-
2022), a fim de compreender as tendências que atravessam sua escritura. Para tanto,
a leitura analítico-interpretativa dos livros da autora será orientada pela hipótese de
que sua poesia se edifica no limiar de duas esferas aparentemente díspares: o
concreto e o diáfano. Nosso objetivo é investigar como essa dualidade está imbricada
e se manifesta no discurso lírico de Archanjo, de forma a constituir o sujeito poético
e alguns temas caros a essa poesia como o lirismo amoroso e as inquirições sobre o
tempo. O modo de acercamento da obra de Archanjo parte do pressuposto de que a
autora alia em seus poemas elementos da experiência imediata, algo da ordem do
corpo, do telúrico, do efêmero e do concreto, a outros elementos que tendem aos
universais, do domínio do espírito, do etéreo e do metafísico. Desse modo, a lírica de
Neide Archanjo representaria um equilíbrio bem-sucedido entre essas duas linhas de
forças. Para investigar esse trânsito entre o concreto e o diáfano, no plano do lirismo
amoroso, o corte de análise será orientado pela dualidade amor e erotismo. No
campo da memória, a investigação será guiada pelas noções de mundanidade e
reflexividade. Por fim, no que se refere à figuração da persona poética, serão
observadas as marcas de individualidade/interioridade e de alteridade/exterioridade.
Este trabalho propõe uma análise dos contos “Lázaro” e “As onças”, publicados em
Gótico nordestino (2022), de Cristhiano Aguiar, e “Animais noturnos”, publicado em
A lua fantasma (2023), de Marcio Markendorf. A relevância da categoria cultural do
monstro, esta “corporificação metafórica dos medos” (França, 2022), atravessa toda
a história da civilização, partindo das numerosas fontes míticas que lhe serviram de
primeiro suporte histórico até o alcance de suas múltiplas mutações modernas,
consoante a transformação contínua de angústias e fobias compartilhadas. Na
literatura brasileira contemporânea tributária do gótico e do horror, o monstruoso é
capaz de assumir cor local e refletir questões tópicas, manifestando grande
produtividade reflexiva na manipulação de seus topoi, sem desvincular-se da sua
universalidade conceitual e dos fundamentos de medo enraizados em todas as
comunidades humanas. Feitas essas considerações, nosso intuito é corroborar a
vitalidade do conceito de “monstruoso” e das contribuições da área da “teoria da
monstruosidade” por meio de estudos de caso de obras recentíssimas da literatura
brasileira. Interessamo-nos sobretudo por reimaginações monstruosas que as
singularizem, com o poder de síntese caro ao conto, em uma tradição nacional
específica (a brasileira), seja por meio da adaptação e ressignificação de monstros
clássicos, seja pelo reposicionamento da iconografia e do imaginário locais de modo
a produzir efeitos de medo.
Este trabalho tem por objetivo a investigação do elemento fascista nas obras A nova
ordem (2019), de Bernardo Kucinski, e O dia de um oprítchnik (2006), de Vladimir
Sorókin. Respectivamente enquadrados nos gêneros distopia e anti-utopia, tais
romances não buscam meramente explorar as tendências autocráticas de seu
momento de publicação, quais sejam, o governo Bolsonaro e o primeiro mandato do
governo Putin, e alertar o leitor a seu respeito, mas também refletir sobre resquícios
de autoritarismo imbricados nas culturas nacionais do Brasil e da Rússia. Assim, essas
narrativas realizam a anacrônica mescla de um elevado grau de desenvolvimento
tecnológico com a ressurreição de instituições nascidas em períodos de intensa
repressão, como o DOI-CODI, no romance brasileiro, e a sanguinária polícia política
de Ivan, o Terrível (oprítchnina), no russo. Partindo dos conceitos de “fascismo
eterno”, de Umberto Eco, e de elaboração do passado, de Theodor Adorno, entende-
se que os constantes ciclos de opressão e violência vividos por ambos os países se
devem a uma ineficácia na eliminação dos pressupostos sociais que os originaram,
que permite a renovação e restauração de estruturas totalitárias. Ao nosso ver, as
meditações propostas por tais obras são essenciais para pensarmos em formas de
superar esses fantasmas que continuam a retornar.
Em Solitária (2022), Eliana Alves Cruz empreende uma abordagem crítica que engloba
tanto o passado quanto o presente, examinando quais grupos são de fato
representados na construção histórica brasileira. Situado em uma capital inominada,
o romance narra a vida de uma mãe e filha que trabalham em um elegante
apartamento, o que desencadeia uma análise profunda das intersecções entre
gênero, raça e classe, assim como da complexidade do enfrentamento brasileiro com
sua herança escravocrata. A narrativa, permeada por uma série de eventos que
emanam dessas tensões, evidencia como a elite se mostra disposta a silenciar os
membros subalternos, resultando em uma atmosfera opressiva que se assemelha
aos espaços nomeados em cada capítulo: do aposento da empregada à residência do
porteiro, da sala de refeições e além. Através da perspectiva decolonial, o propósito
deste estudo é contextualizar a produção literária de Eliana Alves Cruz como uma
resposta ao cânone preexistente, uma vez que o protagonismo de duas mulheres
negras é suficiente para fissurar fundações do denominado pacto da branquitude
(Bento, 2022), o qual concebe a cor de pele como elemento universalizante,
enquanto relega outros tons de pele à marginalização em várias dimensões – física,
social e emocional. Além disso, este trabalho se propõe a explorar de que maneira a
educação é delineada como um elemento central dentro da narrativa, representando
uma ferramenta que possibilita a ascensão social e uma alternativa à configuração
estabelecida. Para alcançar tal objetivo, este estudo se vale da análise das obras de
Beatriz Nascimento (1985), Eduardo de Assis Duarte (2010), Rita Segato (2021) e
Juliana Teixeira (2021), que servirão como aparato teórico para fundamentar a
reavaliação do Brasil de hoje.
O presente trabalho propõe uma leitura do conto “Lua cheia”, da escritora brasileira
Cidinha da Silva, inserido no livro Um exu em Nova York, publicado em 2018, pela Pallas
Editora, como um texto que evoca e reflete a perspectiva decolonial a partir do
questionamento e da desestabilização da passividade e da docilidade como
características inerentes ao corpo feminino, rompendo com o paradigma de gênero
imposto pela colonialidade. Para tal objetivo, procura-se olhar para a narrativa
literária a partir de intelectuais fundamentais à epistemologia decolonial, tendo como
suporte teórico principal as abordagens da socióloga argentina María Lugones em
Colonialidade e gênero (2008) e em Rumo a um feminismo descolonial (2014), e do
pedagogo brasileiro Luiz Rufino em Pedagogia das encruzilhadas (2019). Com este
trabalho, ao lançarmos luz sobre questões relacionadas à estética contemporânea,
acredito que seja possível instigar movimentos de descolonização dos seres e dos
saberes, sobretudo, relacionados à construção de gênero em sociedades que, assim
como o Brasil, foram historicamente colonizadas e estão em busca de novos rumos
com vistas à transformação.
Um poema é feito de palavras. Um livro é feito de papel. A grosso modo é isso, mas
algo falta. E o que falta é a vida. Este trabalho procura pensar a natureza da
linguagem poética e qual a relação que ela estabelece com o mundo. Para isso, o
objeto de pesquisa selecionado é O livro das semelhanças, de Ana Martins Marques,
publicado em 2015. Nesse livro, a poeta busca, numa tentativa quase sempre
frustrada, estabelecer paralelos entre o livro e o mundo; entre a palavra e a coisa.
Esse modo operacional é bastante evidente na primeira seção chamada “Livro”, um
metalivro formado das partes integrantes desse objeto, a capa, o título, a epígrafe, a
dedicatória. E toma novos contornos nas seções seguintes, quando o suporte se
torna o mapa, em “Cartografias”, ou as formas idiomáticas, em “Visitas a lugares-
comuns”, ou, por fim, sob a forma negativa da imaterialidade em “O livro das
semelhanças”. Ana Martins Marques busca fazer do livro um lugar habitável, e por
isso, um lugar vivo.
Esta comunicação busca analisar Piedade, única protagonista mulher da obra Velhos
demais para morrer (2020), do mineiro Vinícius Neves Mariano. O romance distópico,
finalista do Prêmio Jabuti de Literatura em 2021, descreve uma sociedade que, em
2086, implementou o extermínio de idosos como política pública para a restauração
do equilíbrio financeiro. Nesse contexto, Mariano intercala narrativas de três
personagens de diferentes faixas etárias: Perdigueiro (a criança), Daren (adulto) e
Piedade (idosa), que descortinam o cotidiano em tempos em que o consumo se
sobrepõe à valorização da cultura e das diferentes gerações. Piedade figura como elo
entre os dois protagonistas e se torna símbolo entre o passado que se quer rasurar e
o presente de resistência e exclusão nessa sociedade etarista na qual o capitalismo
ignora os valores humanistas. A personagem, de mais de 65 anos, foi professora de
História (em uma época na qual as aulas de História ainda não tinham sido abolidas
pelo governo) e se destaca por ser a maior expressão de rebeldia e recusa frente ao
sistema liberal e suas imposições. Ao atingir o limite da idade economicamente ativa,
Piedade se vê condenada à morte e inicia sua jornada de fuga, registrada em diários
ao longo de toda a narrativa. Isso posto, pretende-se, nesta apresentação, analisar
os elementos constitutivos dessa personagem negra durante sua empreitada de
fuga. De início, ressalta-se o caráter autobiográfico da personagem e estuda-se sua
formação intelectual enquanto mulher negra. Em seguida, analisa-se sua recusa ao
quilombismo e os desdobramentos de sua fuga permanente reveladas em seu diário,
apontando para a importância da escrita e da memória em tempos de ditaduras do
esquecimento. Textos de Ecléa Bosi, Béatrice Didier, Carla Akotirene, Grada Kilomba,
Djamila Ribeiro, bem como entrevista concedida a mim pelo autor Vinícius Neves
Mariano (no prelo) compõem a fortuna crítica de análise do romance.
Fabiane Guimarães é uma escritora goiana de 32 anos que publicou dois romances
recentes pela editora Alfaguara: Apague a luz se for chorar, de 2021, e Como se fosse
um monstro, de 2023. A estreia da autora, no entanto, aconteceu na internet: entre
janeiro e julho de 2016, Guimarães publicou uma edição seriada da novela Pequenas
esposas na revista on-line Azmina. Apesar do formato digital, trata-se de um folhetim,
gênero caro ao século XIX e estigmatizado pela associação ao ócio e ao
sentimentalismo atribuídos às mulheres (pelo menos às da classe média branca,
universalizadas pelo teor racista de nossa composição social brasileira). É
interessante, nesse sentido, recompor o percurso da autora: ela parece, desde o
início, trafegar entre estratégias narrativas próprias a gêneros da cultura popular ou
desvalorizados pelo cânone, sobretudo àqueles associados à feminilidade, como o
folhetim e o melodrama, sem, no entanto, temer um efeito de mau gosto produzido
por essa escolha. Ao contrário, parece ser justamente esta a proposta estética da
autora: investir nos signos reconhecíveis da feminilidade (enredos melodramáticos,
intrigas familiares, situações graves e inverossímeis, reviravoltas que encaminham o
desenlace da trama) para, do lado de dentro, implodir o estereótipo a partir de uma
sondagem das questões caras à luta feminista hoje (aborto, direitos reprodutivos,
exploração sexual, pedofilia, entre outros). Assim é que ela reinstala o folhetim, mas
de maneira que o único final feliz possível seja o divórcio, em vez do casamento. O
que esta pesquisa coloca, portanto, é um estudo desse percurso na obra de
Guimarães: de que maneira a escritora elabora artisticamente os temas caros às
mulheres hoje, levando em conta uma tradição de lugares-comuns que, a princípio,
tenderíamos a recusar, mas que ela inclui e refaz?
Milton Nascimento e Fernando Brant escreveram a canção “Maria, Maria”, que foi
lançada em 1978 no álbum Clube da Esquina 2. Talvez não por coincidência, Conceição
Evaristo tenha escolhido o título “Maria” para um dos contos presentes em Olhos
d’água, publicado em 2016. Afinal, há entre a letra da música e a narrativa de
Conceição elementos que não apenas aproximam essas mulheres, mas que parecem
torná-las somente uma, ao mesmo tempo que representam várias. O trabalho aqui
proposto, além de analisar comparativamente a música e o conto, também aborda
algumas percepções dos alunos do ensino médio do Colégio Técnico de Floriano da
Universidade Federal do Piauí acerca das temáticas de ambas as produções artísticas.
Para isso, o aporte teórico transita entre textos sobre intertextualidade e questões
sobre o feminismo negro e o conceito de escrevivência. Os resultados parciais
demonstram que os alunos, apesar de precisarem de uma mediação para aproximar
os dois universos, também conseguem estabelecer uma (re)leitura plena de sentidos
quanto à (sobre)vivência do povo negro e da condição feminina na sociedade
patriarcal brasileira.
Operando como caminho aberto ao trânsito entre línguas, a coluna de livre acesso
“Arcas de Babel”, publicada pela Revista Cult, com curadoria da poeta-tradutora
Patrícia Lavelle, abarca uma série de traduções de poesia em curso e reflexões acerca
das experiências múltiplas que constituem a atividade tradutória no contemporâneo.
Em paralelo a isso, são promovidos, em conformidade com uma perspectiva
translíngue, os deslocamentos que ocorrem no cerne da escrita dos poetas-
tradutores brasileiros que publicam na coluna. Tendo em vista que as “Arcas”
constituem corpus de análise de minha pesquisa, vinculada ao projeto “Poéticas
translíngues do contemporâneo: contrapedagogias e glotopolíticas latino-
americanas”, coordenado pelo Prof. Dr. Antonio Andrade (UFRJ/FAPERJ/CNPq),
objetivo discutir como a prática da tradução e a invenção poética compartilham entre
si o desejo de desencadear as potencialidades da língua de partida e transformar as
singularidades que residem no interior da língua de chegada, via processos de
estranhamento recíprocos que desafiam os limites impostos pelas fronteiras
glotopolíticas e assimetrias linguísticas entre língua materna e estrangeira,
hibridizando-as. Uma vez que a coluna é apresentada por Lavelle como intervenção
concreta no campo literário, com intuito também de propagar a diversidade autoral
e a paridade de gênero, foram selecionados para análise textos, acompanhados de
suas respectivas traduções em língua portuguesa, de doze grupos de identificação
mapeados. Tais produções perpassam desde a poética intercultural de poetas
nômades latino-americanos até expressões consagradas no cânone literário
ocidental, desde poéticas nas quais a denúncia é fator mobilizador a rupturas em
relação à estética tradicional ou diálogos com outras manifestações artísticas.
Embora partam de lugares diferentes, as “Arcas” mantêm-se interligadas por um fio
condutor comum: a construção de pontes que acolhem atravessamentos e contatos
linguístico-culturais por intermédio de poetas que buscam fazer da prática da
tradução uma estratégia de construção de caminhos alternativos.
O espaço ficcional permite muitas leituras, truísmo (de) que a longeva discussão
sobre mímesis (se) alimenta. Em 1998, quando foi lançada a animação dos estúdios
Pixar e Disney, A bug’s life, no Brasil traduzida como Vida de inseto, não tardou a se
perceber que era uma narrativa que ia muito além de uma estória para mero
entretenimento infantil. Afloraram leituras que traziam à luz o caráter alegórico da
narrativa, ressaltando as questões das lutas contra a opressão, da importância do
esforço coletivo organizado para o bem comum, de mudanças nos modelos de
subjetivação centrados no indivíduo, de aceitação e aproveitamento da diversidade,
do acolhimento das diferenças intrínsecas, da aceitação do radicalmente outro, da
necessidade de se aceitar novas ideias para superar situações adversas, questões
relacionadas à liderança. Destacou-se, enfim, que a obra era uma grande alegoria
sobre a necessidade de posturas para realizar transformações sociais para o bem
comum. Não se previa, então, uma pandemia avassaladora em fins de 2019. É durante
a pandemia, motivado por ela, que Ronaldo Lima Lins escreve Elos de alegorias
[contos]: as alegorias com insetos são retomadas numa linhagem que remonta a
Kafka, sempre lembrado em sua metamorfose quando modernamente falamos de
alegorias com insetos, ainda que o verdadeiro personagem principal possa estar na
irmã do metamorfo. Sem perder de vista as alegorias com insetos, da mitologia
greco-romana a Kafka ou à animação da Pixar, o que indagamos diante do livro de
Ronaldo Lima Lins é: afinal, o que nos dizem esses insetos?
O estudo analisa o olhar dos indivíduos opressores para com aqueles marginalizados
pela sociedade, olhar que passa pelo filtro do preconceito e pela distorção da
realidade em busca do melhor para si, afastando ao máximo a humanidade dos
indivíduos oprimidos. O texto principal a ser analisado é O som do rugido da onça, de
Micheliny Verunschk, que narra a história de crianças indígenas sequestradas por
cientistas europeus, levadas para outro continente e apresentadas como americanas
salvas da vida selvagem e barbárie. As reflexões de Benedito Nunes e Emanuelle
Coccia são fundamentais para a construção deste estudo, possibilitando entender a
visão de pessoas colonizadoras e imperialistas que, mesmo fora da literatura,
insistem, ao longo dos séculos, em fazer do outro, considerado por eles como
diferente, um animal indigno de direitos. O outro, a animalidade e os indígenas são
as principais questões que permeiam e ajudam a direcionar este estudo.
Nos três romances de Jeferson Tenório, publicados de 2013 a 2020, em cada um deles
de maneira específica, é a figura do leitor que surge da voz dos narradores. Crianças
e jovens negros se deparam ao acaso com clássicos do cânone europeu: Cervantes,
Dostoiévski, Shakespeare. O que parece sugerir, por um lado, um típico processo
formativo, ou de aprendizagem, desses jovens em direção à vida adulta, na verdade,
por outro, promove a encenação do ato da leitura em choque com a situação racial
dos protagonistas. Este trabalho é um estudo sobre a narrativa de Tenório, a qual se
vale do procedimento de fazer colidir a cultura literária com a vida mais cotidiana,
marcada pelo racismo. Poesia e fome, discriminação racial e clássicos da literatura
europeia imbricam-se em uma encruzilhada a partir da qual as identidades se movem,
se alteram, se comunicam. O beijo na parede (2013), Estela sem deus (2018) e O avesso
da pele (2020) não são apenas romances de formação, mas formam, à sua maneira,
novas possibilidades de pensar a cultura do romance, a qual, como sabemos, tem em
Dom Quixote o exemplo definitivo daquele que, para escrever, precisa colocar em
cena o próprio ato de leitura.
O presente trabalho tem como objetivo analisar três poemas da obra de Ana Martins
Marques, observando como a temática da metalinguagem se relaciona com as
dinâmicas de tempo apresentadas. Serão analisados os poemas “Caravelas”,
presente no livro A vida submarina (2021), “Título”, em O livro das semelhanças (2015),
e “História”, que consta do livro Risque esta palavra (2021). No primeiro, o eu lírico
compara os poemas e o mar em relação à sua capacidade de pôr vidas em perigo, ao
passo que retrata um momento estático em meio a uma série de acontecimentos; o
segundo apresenta a construção de um livro, equiparando um de seus elementos a
um objeto do teatro por meio de uma cena completamente estática; já o terceiro fala
das palavras em relação à passagem do tempo, como elas atravessam eras. Para
realizar essas leituras, conto com os apontamentos feitos por Georges Didi-
Huberman no livro A imagem queima (2018), no qual alega que a imagem expande
seu sentido e queima a partir das possíveis associações feitas entre ela e qualquer
elemento presente na memória de seu observador. A imagem exige que o
observador, ao observá-la, reorganize seu pensamento para entendê-la, dessa forma
criando um novo conhecimento. Assim, uma vez que as imagens descritas nos três
poemas se baseiam na relação estabelecida entre a imagem, a metalinguagem e o
tempo, as obras analisadas provocam, no leitor, a necessidade de reorganizar sua
perspectiva a respeitos dos tópicos apresentados e mudar a visão em relação a eles.
Em seu primeiro livro de poemas, publicado em 2021, Priscila Branco nos convida a
experimentar açúcar de maneira não tão doce. Mais do que fazer qualquer paralelo
sinestésico com o sabor de seus versos, convém ressaltar que sua poética é uma
espécie de porrada no estômago, já que ela levanta questões que estão diretamente
imbricadas ao contexto social. A imagem da mulher perpassa a obra em diversas
nuances, como no segundo capítulo, em que se observa a questão do corpo feminino
em situações de vulnerabilidade e violência. Ao iniciar um de seus poemas com os
versos “é crime ser mulher/ no brasil”, a poeta chama atenção para que esses temas
também se tornem assunto de poesia, através das imagens de escuridão, desalento
e total desconforto. Outro ponto que este trabalho pretende abordar é a imagem da
casa, correlacionando-a à da mulher, a fim de pensar os espaços de memória que a
casa representa, na tentativa de “inventar saídas/ para vencer os abismos”. A casa,
mais do que um espaço doméstico, é o local que inflama a escrita da poeta e faz
reverberar seu instinto de sobrevivência.
De acordo com o estudo “Retratos da Leitura no Brasil”, realizado pelo Instituto Pró-
Livro em 2019, a maioria dos leitores no Brasil é composta por mulheres, contando
cerca de 54% do público leitor. Entretanto, conforme observa-se na pesquisa
divulgada no mesmo ano pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira
Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), liderado pela professora Regina
Dalcastagnè, a realidade de publicações feitas por mulheres apresenta uma clara
discrepância em relação ao número de leitoras: 70% dos livros publicados no país em
2019 foram escritos por homens. Para driblar esse cenário de exclusão, as escritoras
têm encontrado na organização em coletivos literários femininos uma forma de
driblar as barreiras encontradas no mercado editorial. O objetivo desta comunicação
é, portanto, analisar a condição paratópica da escritora, com base em Maingueneau
(2010), como um “não lugar” ou uma localização indefinida no campo literário, e
evidenciar como as autoras estão buscando ressignificar o lugar da escritora dentro
dos coletivos de mulheres. Assim, propomos investigar os processos de criação
textual e constituição desses projetos em rede a fim de divulgar e publicar as suas
obras. Para isso, selecionamos como objeto de análise três coletivos: o Leia Mulheres,
iniciado em 2015, o Mulherio das Letras, criado em 2017, e o Escritoras Vivas, grupo
surgido após a pandemia de Covid-19, em 2021. A partir da reflexão sobre o impacto
desses grupos, segundo aponta Casarin (2023), é possível perceber a potência
política das redes de apoio entre escritoras para estimular a leitura e a produção de
mulheres, tendo na internet e nas ferramentas digitais o principal canal de atuação
para formação de conexões dentro do cenário literário brasileiro contemporâneo.
A partir das crônicas “Na beira do abismo, samba” e “Banho de cheiro”, publicadas
respectivamente nos livros Cão da madrugada (1954) e Aruanda (1957), este trabalho
propõe-se a destacar a importância da escritora paraense Eneida de Moraes e sua
relação com duas manifestações culturais representativas das cidades onde nasceu e
viveu: o banho de cheiro e o carnaval carioca. Para tanto, discutiremos os estudos de
Renato Cordeiro Gomes sobre a influência da cultura de um povo na formação da
identidade das cidades e os estudos teóricos de Stuart Hall e Eneida Maria de Souza.
Será abordada, ainda, a escrita peculiar da autora na crônica, com foco na valorização
estética do gênero, a fim de investigar como a expressividade da linguagem
explorada por Eneida de Moraes ratifica que, “quando consegue transformar a língua
em linguagem”, como afirma Eduardo Portella, “então a crônica é literatura”.
Ao documentar seu processo de escrita, Marília Garcia não só revela a seus leitores
os procedimentos por ela utilizados para compor seus poemas como também
nomeia artistas disparadores de suas operações. Esse gesto da poeta nos possibilita
realizar uma leitura de (parte de) sua escrita inserida dentro de algumas dinâmicas e
de algumas intenções. Livro de artista, arquivos de artista e paratextos são três
modos com os quais podemos nomear o momento em que o livro se diz. Em Parque
das ruínas, essa descrição detalhada de suas táticas de escrita e a menção aos
“disparadores” de suas fontes (David Perlov, Rose-Lynn Fisher, Jean Baptiste Debret,
Harun Farocki, Paul Klee, Georges Perec) revelam procedimentos poéticos
impulsionados pela experiência do olhar. À vista disso, no presente trabalho
pretendemos efetuar uma leitura de Parque das ruínas, em diálogo com outros livros
da vencedora do Prêmio Oceano de Literatura, focalizando o registro do gesto
criador a partir da experiência do olhar.
Romance de estreia do escritor carioca Gabriel Abreu (1993), Triste não é ao certo a
palavra (2023) (re)anima os debates em torno do gênero epistolar na
contemporaneidade. O autor compõe uma obra de viés autobiográfico no qual o filho
Gabriel (28 anos) tenta aprender a lidar com a doença da mãe, acometida de
demência frontotemporal em estágio avançado. A perda progressiva da mãe, cujo
luto o narrador precisa fazer, leva a um duplo movimento: presentificar a mãe
ausente (Foucault; Landowsky) por meio dos arquivos deixados por ela e buscar
compreender a si mesmo face ao “vagaroso degelo” (Abreu, 2023) da matriarca. Nas
palavras de Aline Bei, “Quando uma mãe se desintegra, um filho ainda é?” O romance
traz à baila elementos que permitem aprofundar as considerações acerca dos
“protocolos de leitura do epistolar” (Rocha), rechaçando as afirmações de que o
epistolar seria um gênero extinto (Galvão; Sant’anna). Nessa toada, a obra ressalta
tanto o caráter mutante desse gênero “proteiforme” (Diaz) quanto o
convívio/migração entre o epistolar e outras mídias (e-mail, plataforma zoom). Além
disso, Gabriel Abreu articula algumas instâncias sensíveis do epistolar: a carta
enquanto “arquivo de si”, “documento” (Dauphin; Santos) e a carta-ficcional regida
por novas premissas temporais. Nesse sentido, a correspondência permite que o
narrador destine uma missiva para a mãe antes da doença, o que evoca uma carta-
refúgio capaz de refutar o apagamento identitário e prolongar/recriar uma mãe sã
protegida pelas bordas da folha de papel.
Dora Ferreira da Silva se refere em vários dos seus poemas ao mito de Perséfone,
recriando de modo próprio e original o rapto e a chegada da jovem ao submundo.
Mais do que isso, entrelaça o clássico e o contemporâneo, a tradição e a ruptura, o
sagrado e o profano, ao mesmo tempo que se volta para o mito e seus ritos como
manifestação da palavra divina. As referências de Dora Ferreira da Silva ao mito de
Perséfone e ao mundo dos mortos representam algumas características peculiares: a
recriação do mitema da filha da Deméter com o soberano do Olimpo, que tanto
ritualiza quanto reatualiza os mistérios órfico-dionisíacos na sua expressão
genesíaca, a catábase (descida) e a anábase (subida) da rainha das sombras como
movimento da própria Vida, que constantemente se renova no ciclo das estações. A
proposta aqui é interpretar como a poeta reconfigura o mito de Perséfone no livro
Hídrias, conciliando poesia e pensamento, desde as referências da Grécia arcaica até
as diferentes versões que ela mesma opera, mas conservando sempre o mistério e o
encanto da palavra numinosa.
Publicado no ano de 2022, Gótico nordestino é uma obra escrita e publicada durante
a pandemia de covid-19, que tematiza determinadas nuances da questão sanitária
pela via do insólito ficcional. Entre suas opções de foco, o autor Cristhiano Aguiar traz
à tona a figura do militarismo no contexto da experiência pandêmica, escrutinando
sua relação com o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) e sua
condução das práticas de combate ao vírus, em meio às formas de representação
habituais desses personagens na gramática de diferentes subgêneros das literaturas
não miméticas, na qual se recorre ao aspecto bélico como forma de garantia de
ordem e segurança diante de ameaças de origem desconhecida. A partir dos contos
“Lázaro” e “As onças”, o presente trabalho se volta à discussão da expressão militar
na obra, com foco na tensão entre as formas de registro não realistas e as demandas
sociais que vinculam o contexto pandêmico e a obra literária.