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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Literaturas de Língua Portuguesa

Helen Leonarda Abrantes

SÓ RISO: o cômico em Niketche, de Paulina Chiziane, e O guardador de


memórias, de Isabel Ferreira

Belo Horizonte

2020
Helen Leonarda Abrantes

SÓ RISO: o cômico em Niketche, de Paulina Chiziane, e O guardador de


memórias, de Isabel Ferreira

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Letras.
Orientadora: Profa. Drª. Terezinha Taborda
Moreira
Área de concentração: Literaturas de Língua
Portuguesa
Linha de pesquisa: Trânsitos literários:
produção, tradução, recepção

Belo Horizonte

2020
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Abrantes, Helen Leonarda


A161s Só riso: o cômico em Niketche, de Paulina Chiziane, e O guardador de
memórias, de Isabel Ferreira / Helen Leonarda Abrantes. Belo Horizonte, 2020.
172 f.

Orientadora: Terezinha Taborda Moreira


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras

1. Chiziane, Paulina, 1955- - Só riso: o cômico, Niketche - Crítica e


interpretação. 2. Ferreira Isabel - O guardador de memórias - Crítica e
interpretação. 3. Literatura moçambicana. 4. Literatura angolana (Português). 5.
Riso - Filosofia. 6. Humor na literatura. 7. Ironia na literatura. I. Moreira,
Terezinha Taborda. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(679).09
Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/299
Helen Leonarda Abrantes

SÓ RISO: o cômico em Niketche, de Paulina Chiziane, e O guardador de


memórias, de Isabel Ferreira

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Letras.

Área de concentração: Literaturas de Língua


Portuguesa

___________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva (Avaliadora) – UFRJ

___________________________________________________________________
Professor Doutor Sávio Roberto Fonseca de Freitas (Avaliador) – UFPB

___________________________________________________________________
Professora Doutora Roberta Maria Ferreira Alves (Avaliadora) – UFVJM

___________________________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Veloso de Abreu (Avaliador) – PUC Minas

___________________________________________________________________
Professora Doutora Terezinha Taborda Moreira (Orientadora) – PUC Minas

___________________________________________________________________
Professora Doutora Priscila Campolina (Suplente) – PUC Minas

Belo Horizonte, 10 de julho de 2020.


AGRADECIMENTOS

À gargalhada que habita em mim, que vive fazendo parvoíce e parece viver
no fantástico mundo da Boba.

À mamãe Rita e ao papai Antônio, pelo amor e cuidado de sempre.

Às minhas irmãs Horiene, Heliene e Henise, pelo companheirismo e pelas


peripécias juntas.

Aos meus irmãos Hugo e Humbard, que, nos dias inesperados, me enviavam
mensagem de carinho, acalentando meu coração.

À querida Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira, pela orientação durante a


realização deste estudo, pelos ensinamentos e pelo olhar cuidadoso comigo para
além da vida acadêmica.

Às minhas amigas, pelas muitas confidências e gargalhadas.

Aos colegas da PUC Minas, pelos diálogos e pela amizade que, ao longo
desse tempo, foram se estreitando.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas,


pelo ensino durante as disciplinas cursadas.

Aos professores da Banca Examinadora da Qualificação e da Defesa da tese,


pelas leituras críticas, contribuindo para meu crescimento intelectual.

Aos funcionários da secretaria do Programa de Pós-Graduação em Letras da


PUC Minas, que colaboram para a realização deste trabalho.

À CAPES, pelo apoio financeiro.

Àqueles que sonharam com meus sonhos.


“Vivo em minha própria casa,
jamais imitei algo de alguém
e sempre ri de todo mestre
que nunca riu de si
também” (Nietzsche, 2012)

“Não se deixem enganar: de Deus não se zomba.”


(Gálatas 6:7)

“Pois, então, eu zombava, e ria, só ria, mas ria tanto, que eu


gargalhava e ia para além de mim.”
(H. L., 2020)
RESUMO

O objetivo geral desta tese é propor reflexões sobre a utilização do riso em


duas obras ficcionais de literaturas africanas em língua portuguesa, a saber:
Niketche, uma história de poligamia, da moçambicana Paulina Chiziane, e O
guardador de memórias, da angolana Isabel Ferreira. Essas reflexões partem do
entendimento, à luz de Nietzsche e Cleise Mendes, do riso como uma redenção do
pensamento sério. Isso significa desprender esse pensamento de seus limites, pois
ainda ele se encontra amparado pela forte relação entre ascetismo e conhecimento,
sofrimento e reflexão, numa mixórdia cristão-platônica que ainda produz seus efeitos
no modo de conceber o saber. Tendo em vista essa compreensão sobre o riso,
pretende-se analisar o modo como as escritoras utilizam esteticamente o riso e suas
nuances para expor e criticar as narrativas de opressão do sistema patriarcal,
oriundas dos valores ocidentais e tradicionais de Moçambique e Angola. Essa
análise leva à observação da persistência da melancolia nas obras das autoras,
mesmo sendo romances que se apropriam do humor. Essa melancolia, além das
narrativas de opressão, vem do acúmulo de traumas, frustrações, desamparo,
consequências das guerras de libertação, independência e civil. Em razão disso,
buscamos, em Walter Benjamin, o conceito de melancolia que, ao receber um
tratamento estético literário, transforma-se em alegoria. Particularmente, esse
tratamento estético passa pelo uso da tradição oral das autoras, que guarda consigo
um jeito de se apropriar da palavra sob uma escrita falante e gestual, na perspectiva
de Terezinha Taborda Moreira, e da palavra em festa, em gozo, conforme Laura
Padilha. Assim, nas obras de Paulina Chiziane e Isabel Ferreira, o riso se faz êxtase
de tomar a palavra falada e encenada. Por tudo isso, elegi o riso como um caminho
para movimentar o pensamento sobre as literaturas africanas em língua portuguesa
escritas por mulheres, porque o riso, em uma de suas faces, é um jeito vibrante,
expansivo, zombeteiro, de romper o silêncio monástico a que a mulher foi, durante
muito tempo, submetida.

Palavras-chave: Riso. Paulina Chiziane. Isabel Ferreira. Literatura moçambicana.


Literatura angolana.
ABSTRACT

This thesis general objective is to propose reflections on laughter utilization


in two African in Portuguese fictional literature works, namely: Niketche: a story of
polygamy, by Mozambican Paulina Chiziane, and O guardador de memórias, by
Angolan Isabel Ferreira. These reflections go from the understanding, under
Nietzche’s and Cleise Mendes’ s views, of laughter as a redemption of serious
thought. That means unfastening this thought from its limits, because it is
supported by the strong relation between asceticism and knowledge, suffering and
reflection, in a Christian-Platonic jumble that still produces its effects on the
conceptualizing knowledge way. Considering this understanding about laughter, it
is intended to analyze the way the writers aesthetically use laughter and its
nuances to expose and criticize the narratives of oppression of the patriarchal
system, which originated from the Western and traditional values of Mozambique
and Angola. This analysis results in the persistence of melancholy observation on
the authors works way, even though they are romances with an intense humor use.
This melancholy, besides the oppression narratives, comes from traumas,
frustration, helplessness, consequences of the liberation, independence and civil
wars traumas. Due to this, we sought, in Walter Benjamin, the melancholy concept,
which, when receiving a literary aesthetic treatment, becomes an allegory.
Particularly, this aesthetic treatment goes through using the authors tradition oral,
which has within itself means of appropriating the work under speaking and
gesturing type of writing, in Therezinha Taborda’s perspective, from the word in a
party, in bliss, according to Laura Padilha. Thus, in the works of Paulina Chiziane
and Isabel Ferreira, laughter becomes an ecstasy of taking the spoken and staged
word. For all these reasons, I chose laughter as a path to move the thought about
African literatures in the Portuguese language written by women, because laughter,
in one of its faces, is a vibrant, expansive, mocking way to break through the
monastic silence to which women were, for a long time, submitted.

Keywords: Laughter. Paulina Chiziane. Isabel Ferreira. Mozambican literature.


Angolan literature.
Résumé

L’objective général de cette thèse est de proposer des réflexions sur la mise
en scène du rire dans deux ouvrages fictifs des littératures africaines en portugais, à
savoir : Le Parlement conjugal, une histoire de polygamie, de la mozambicaine
Paulina Chiziane, et O guardador de memórias, de l’angolaise Isabel Ferreira. Ces
réflexions partent de l’entente, à la lumière de Nietzsche et Cleise Mendes, du rire
comme une rédemption de la pensée sérieuse. Cela signifie dégager cette pensée
de ses limites, pourvue qu’elle se trouve encore soutenue par la forte relation entre
l’ascétisme et la connaissance, la souffrance et la réflexion, dans l’entremêlement
chrétien-platonique qui produit encore ses effets dans la manière de concevoir le
savoir. En tenant compte cette compréhension du rire, il s’agit d’analyser la manière
dont ces écrivaines utilisent esthétiquement le rire et ses nuances afin d’exposer et
critiquer les narratives d’oppression du système patriarcal, provenant des valeurs
occidentales et traditionnelles de Mozambique et d’Angola. Cette analyse conduit à
l’observation de la persistance de la mélancolie dans les œuvres de ces autrices,
malgré l’intense présence de l’humour dans les romans. Cette mélancolie, outre les
récits d’oppression, est issue de la superposition des traumatismes, des frustrations
et du délaissement en conséquence des guerres de libération, d’indépendance et
civiles. En raison de ce qui précède, nous cherchons, en Walter Benjamin, le concept
de mélancolie qui, en recevant un traitement esthétique littéraire, devient une
allégorie. Particulièrement, ce traitement esthétique implique l’utilisation de la
tradition orale faite par ces autrices qui portent en soi une manière de s’approprier de
la langue sous une écriture parlante et gestuelle, dans la perspective de Terezinha
Taborda Moreira, et de la parole en fête, en jouissance, d’après Laura Padilha. Ainsi,
dans les œuvres de Paulina Chiziane et Isabel Ferreira, le rire devient extase en
s’appropriant de la parole parlée et mise en scène. De ce fait, j’ai élu le rire comme
un instrument d’inquiéter la pensée à propos des littératures africaines en portugais
écrites par des femmes, parce que le rire a une facette vibrante, expansive,
moqueuse qui brise le silence monastique auquel la femme a été longtemps
soumisse.

Mots clés: Rire. Paulina Chiziane. Isabel Ferreira. Littérature mozambicaine.


Littérature angolaise.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 9

2 O RISO: para romper com os limites do sério ............................................ 16


2.1 um riso: nada a entreter a razão .................................................................. 17
2.2 dos objetivos do capítulo: antes tarde do que nunca ................................ 31

3 RINDO DA PENA............................................................................................ 34
3.1 o caso da moela e da cueca ......................................................................... 39
3.2 no espaço da escrita ..................................................................................... 50

4 RINDO DO CÂNONE ...................................................................................... 67


4.1 conceitos de cânone ..................................................................................... 70
4.2 um cântico das sulamitas ............................................................................. 73
4.3 viúvas e vulvas .............................................................................................. 83
4.4 à guisa de par trágico? ................................................................................. 88
4.5 tens medo do apocalipse? ........................................................................... 97

5 UM RISO SÓ ................................................................................................. 112


5.1 anti-imagem de mulher-mãe-esposa-companheira em Niketche ............ 116
5.2 anti-imagem de mulher-mãe-esposa-companheira em O guardador de
memórias ..................................................................................................... 122
5.3 contar para rir ou entreabrir um riso ......................................................... 130
5.4 entre(is)tecer o riso: o lúdico e o jogo em O guardador de memórias... 142
5.5 entre(is)tecer o riso: o lúdico e o lírico em Niketche ............................... 146
5.6 na assimbolia da dor................................................................................... 150

6 SÓ RISO ....................................................................................................... 153


REFERÊNCIAS ............................................................................................ 159
9

1 INTRODUÇÃO

A tese foi estruturada em quatro capítulos. O primeiro “O riso: para romper


com os limites do sério” tem como objetivos: oferecer trechos literários das duas
obras Niketche, uma história de poligamia (2004), de Paulina Chiziane, e O
Guardador de memórias (2008), de Isabel Ferreira, sem intervenção analítica da
autora da tese; delinear o tipo de leitor para as reflexões propostas neste trabalho;
justificar o porquê de usar o “riso” e não o que poderia provocá-lo, como sarcasmo,
piada, jogo, sátira, ironia, paródia etc.

Sobre alguns aportes teóricos deste capitulo inicial, dialogo com Verena
Alberti (2002), Lélia Parreira Duarte (2006), Cleise Mendes (2008), Nietzsche (2012,
2018), para pensar o riso como uma exímia forma de saber e um saber criativo, além
de um gesto de vida, que se abre sem entraves ou caminha para essa abertura.

É estranho tão logo começar com a organização estrutural da tese, sem, ao


menos, ter iniciado com um parágrafo amigável para me achegar ao leitor. Pois,
então, permanecerá assim esta introdução, metódica, já que costumo “enrolar os
pés publicamente nos tapetes das etiquetas”1. Busquei seguir uma linha reta para
também não estragar o que virá nos capítulos seguintes.

E por falar no leitor..., trouxe a definição de leitor-modelo de Umberto Eco e o


conceito de “a sério”, proposto pelo escritor Roberto Gomes. Então, à semelhança
da natureza do riso, denominei, de maneira paradoxal, o leitor da minha tese assim:
um leitor-de-riso-a-sério. É um leitor comprometido com o saber e que usa as
energias do riso para alargar o campo do conhecimento.

Mas por que essa preocupação com o leitor? Por dois motivos: o gênero
acadêmico tese exige uma linguagem, uma forma, um jeito de dizer próprio da
academia. Só sei que foi assim, de acordo com Chicó2. Assim me disseram, assim
aprendi. Ou nem tanto. Porém, busquei fazer do meu texto uma tese pouco mais
risível, como se eu quisesse desprender o pensamento sério de seus limites, a fim

1 Referência ao “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa


(2012, p. 341).
2Referência ao personagem Chicó da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (2005, p.
22).
10

de propor novas formas de pensar e escrever sobre as literaturas africanas em


língua portuguesa produzidas por mulheres.

Nesse sentido, de querer serpentear a escrita acadêmica, eu precisava definir


o leitor que quisesse jogar comigo o jogo do pensamento, mas rindo ou soabrindo
um riso. O segundo motivo tem relação com as nuances deste objeto de estudo, sua
ambiguidade, uma vez que o riso pode alienar, conservar paradigmas, preconceitos
ou questioná-los. Por essas variantes, senti a necessidade de elucidar para o leitor o
meu posicionamento frente ao cômico. Digo isso com vista ao atual cenário político,
em que autoridades públicas afrontam o conhecimento e o saber, com risos, piadas,
sob as vestes de bufões inofensivos,3 disseminando terror e ódio. Assim, embora eu
queira rasurar, gracejar com a escrita acadêmica, assim o faço em posicionamento à
vida, a sua plenitude no processo de construção do saber, do conhecimento.

O segundo capítulo “Rindo da pena”, semelhante ao primeiro, inicia com


digressões sobre a confecção do riso da própria tese e sua relação com as
narrativas das autoras em estudo. Depois, o capítulo tensiona algumas questões
teóricas sobre o riso em Henri Bergson (2018), Vladimir Propp (1992) e Teresa
Salgado (1997). Em seguida, são analisadas duas cenas literárias, à luz das teóricas
Linda Hutcheon (2000), com o conceito de ironia atacante, e Lola Xavier (2011), com
o efeito da ironia, nomeada por Xavier de “esboço de sorriso”. Por último, o capítulo
apresenta as escritoras Paulina Chiziane e Isabel Ferreira, expondo suas obras e as
questões que perpassam o processo de escrita de ambas como mulheres em
Moçambique e Angola.

O capítulo “Rindo do cânone” propõe examinar como, em Niketche e O


guardador de memórias, as autoras utilizam o riso para desvelar e criticar os
valores patriarcais oriundos da narrativa cristã, trazida pelo poder colonial, e
oriundos das tradições em Moçambique e Angola. Recuperei, então, alguns
conceitos de cânone para ajudar a pensar sobre as influências do Ocidente nas
literaturas dos países em questão. Depois, explorei o riso presente nos pares
bíblicos, como Esposo e Sulamita, Adão e Eva, e no clássico par trágico; em relação
às tradições daqueles dois países africanos, elegi o ritual das viúvas e a poligamia
para efeitos de discussões. Fiz um recorte da narrativa cristã porque há uma

3 A filósofa brasileira Marcia Tiburi expõe o tipo de humor que está sendo usado no cenário político
brasileiro, em seu livro Ridículo Político (2018).
11

profusão de referências bíblicas nas duas obras em estudo. Por isso, apresentei
também reflexões sobre as metáforas de gênesis e apocalipse, pois, à medida que
as autoras riem dos textos canônicos, elas reescrevem os sentidos de criação e
destruição. Tais metáforas seduziram o imaginário coletivo ocidental, segundo
Northrop Frye (2006), alcançando, inclusive, Moçambique e Angola, no processo de
colonização.

O último capítulo “Um riso só” busca analisar o jogo conflituoso entre riso e
melancolia nas narrativas, a fim de tentar compreender o quanto as formas da
tradição oral e a modernidade da sua figuração na escrita têm, em sua constituição,
o riso, o gozo de contar, atuando como um gesto, uma ação de resistir ao peso da
melancolia como tristeza profunda. Essa melancolia, decorrente do acúmulo de
mortes, traumas, frustrações, desamparo, ao receber um tratamento estético
literário, transforma-se em alegoria, no sentido proposto por Walter Benjamin (1984).
Além do teórico alemão, dialogamos com Julia Kristeva (1989), Moacyr Scliar (2003)
e Sergio Rouanet (2007). As reflexões sobre a tradição oral foram fundamentadas
nos textos de Laura Cavalcanti Padilha (1995) e Terezinha Taborda Moreira (2005).

Nas considerações finais, sob o título “Só riso”, retomo alguns pontos da tese
e apresento outros pontos em consequência de leituras e reflexões que foram
surgindo durante o processo de escrita, mas que, somente ao final, se revelaram de
forma mais pungente.

As reflexões e estudos da tese surgiram a partir da premissa de saber quais


seriam, na prosa ficcional, os textos fundadores de autoria feminina que inspiraram
as autoras Paulina Chiziane e Isabel Ferreira na sua produção literária. Todavia,
segundo Carmen Lucia Tindó Secco, “na maioria das literaturas, poucas foram as
mulheres que conseguiram maior visibilidade para seus escritos” e “a escrita
feminina africana, em particular, foi quase inexistente no período colonial e mesmo
no período de luta de libertação nacional.” (SECCO, 2018, p. 392). Logo, avaliando
esse contexto, parece inócuo insistir numa busca por uma tradição literária feminina
escrita africana “quase inexistente”, já que as autoras em foco são algumas das
primeiras a estabelecer um corpus na literatura africana de língua portuguesa
escrita. Vale destacar que Chiziane é a primeira mulher em Moçambique a escrever
um romance.
12

Nesse processo de definir o objeto de estudo, considerei mais pertinente


apresentar dois questionamentos e buscar responder a eles. A primeira indagação
faz referência ao conceito de textos fundadores, os quais evocam o sistema da
escrita de matriz europeia, o que, portanto, parece excluir a voz, forte alicerce
simbólico das culturas africanas (MOREIRA, 2005). A segunda inquirição passa pela
ordem como as autoras se apropriam dos textos fundadores. É nesse momento que
entra o riso na autoria feminina africana de língua portuguesa, um elemento
desestabilizador das estruturas, cuja proposta de pesquisa é inovadora na escrita
acadêmica, já que ele ainda é um território pouco explorado nesse campo.

A escolha pelo riso tem a ver com minha experiência de leitura da obra de
Isabel Ferreira, pois eu não havia lido um texto em prosa feito por uma mulher
africana com uma escrita tão satírica e zombeteira. Além disso, o fato de haver raros
estudos sobre O guardador de memórias me motivou a estudá-lo. No caso, há um
artigo de Denilson Lima Santos “Tradições questionadas em O Guardador de
Memórias de Isabel Ferreira, escritora de Angola” (2011) e uma dissertação de
mestrado de Franciane Conceição da Silva “Armadilhas do corpo: uma leitura de
gênero em Isabel Ferreira” (2014). Ambos não elegem o riso e suas variantes como
objeto de pesquisa, escolhendo, antes, outras abordagens. Mas, quanto ao trabalho
de Silva, quero destacar trechos em que a pesquisadora, ao qualificar a escrita de
Ferreira, destaca o humor. Franciane Silva afirma que a escritora angolana
“estabelece uma proposta estética que alia o humor à raiva”, que “inova ao trazer
personagens masculinos”, que “se veem, em crise, mesclando com habilidade e
humor, episódios que tendem a reverter o quadro negativo de suas origens. (SILVA,
2014, p. 3 e 54). Sinalizo, por isso, que sua dissertação serviu de mote para minhas
propostas de leitura e reflexão.

Definida a obra de Isabel Ferreira como objeto de estudos, ocorreu-me


verificar se e como o fenômeno do riso aparecia em obras de outras escritoras
africanas de língua portuguesa. Por isso, Niketche, obra de Chiziane, entrou para
meus estudos depois de ter escolhido o riso como objeto de pesquisa.
Anteriormente, havia eleito Ventos do Apocalipse (1999) porque o foco, como
disse, era estudar a autoria feminina e não o riso e suas variações. No entanto,
partindo do acentuado humor presente em O guardador de memórias, elegi a obra
13

moçambicana para fazer par com a narrativa ficcional angolana e ampliar a pesquisa
sobre o expressivo caráter cômico na escrita feminina africana de língua portuguesa.

Escolhidos o tema e as obras, fui à pesquisa de produções científicas na área


de literaturas africanas de língua portuguesa. Encontrei o estudo da ironia, humor,
cômico, riso, em sua maioria nas obras literárias de autores masculinos. A tese de
Mariana Andrade Gomes, de 2018, faz um interessante levantamento bibliográfico,
apresentado como apêndice, de produções científicas sobre o riso nessas
literaturas. O arrolamento confirma a escassez de pesquisa sobre o riso de mulheres
escritoras.

É fato, porém, o difícil acesso às obras africanas, e o acesso aos textos


escritos por mulheres mais ainda, constituindo um entrave para a escolha dessa
autoria como corpus de pesquisa. Ou seja, independentemente do tema a ser
estudado nas literaturas desses países africanos, sabemos que o acesso é a
primeira barreira a ser vencida. Nessa perspectiva, qual seria, portanto, a relevância
de estudar o riso nas literaturas escritas por mulheres, já que parece ser injusto
comparar, quantitativamente, sua produção com a dos autores masculinos? Em
termos de números, não iremos cotejar, portanto.

Mas a teimosia pelo riso das escritoras vem de outras observações. Por isso
apresentarei três fontes de estudo que se mostraram propícias para trabalharem o
riso de mulheres e como tais estudos executaram essa tarefa, corroborando, em
certo sentido, minhas escolhas de pesquisa.

A primeira fonte diz respeito à revista científica Mulemba, um periódico do


Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, da área de Literaturas
Portuguesa e Africanas da UFRJ, e que tem como objetivo divulgar a produção das
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. O número da revista escolhido para os
objetivos desta tese data de dezembro de 2011 e seu tema é “A presença do cômico
e/ou do trágico nas literaturas africanas em língua portuguesa”. Nesse periódico, há
10 ensaios, sendo 9 sobre a ficção cômica e/ou trágica de autores masculinos, e a
única escritora contemplada, Paulina Chiziane, teve sua obra Niketche analisada a
partir do tema da oralidade, sem uma abordagem cômica e/ou trágica, ou, ao
14

menos, com pretensões para tal.4 Isso me intrigou, pois, no momento oportuno de
analisar o riso ou suas variantes em autoria feminina, a revista não se propôs a tal
abordagem, indicando, o que acredito, uma dificuldade de se reconhecer o riso
como domínio também da mulher.

A segunda fonte sob a ótica do riso em autoria feminina é a dissertação de


mestrado de Cândido Rafael Mendes da Silva, “Xiboniboni: a metáfora dos espelhos
em Niketche, de Paulina Chiziane”, publicada em 2009. Embora se aproxime de
minha tese tanto pela escolha de autora e obra quanto por trabalhar com um dos
elementos que podem fomentar o riso, no caso, a paródia, ele só o faz no último
capítulo da dissertação, de forma bem expressiva, aprofundada, de fato. Porém,
será a metáfora o objeto maior de sua pesquisa. Ele estuda os efeitos da paródia
como um espelho crítico da sociedade moçambicana, elegendo, por exemplo, as
histórias “Branca de Neve” e “Alice no país das maravilhas”, de Lewis Carroll.

A ênfase na metáfora como objeto de pesquisa de Cândido Silva pôde ser


notada também pela quase inexistente referência a termos do universo do riso, tanto
nas palavras-chave quanto no corpo do texto. Vejamos quais aparecem: “paródia”,
além de estar na palavra-chave, no sumário e na introdução, só volta a aparecer no
último capítulo da dissertação; a palavra sorriso aparece cinco vezes, porém usada
nos excertos literários e uma vez nos agradecimentos; ironia é um termo que
aparece na forma verbal “ironiza”, como adjetivo “ironizados” e como advérbio
“ironicamente”, totalizando quatro vezes; o termo “humor” foi usado apenas uma vez;
as palavras riso, cômico, sarcasmo, sátira e suas variantes não estiveram presentes
nas análises de Cândido Silva. A partir dessa lacuna, fui elaborando o meu foco de
pesquisa.

A terceira fonte que se mostrou aberta para trabalhar o riso de mulheres vem
do artigo “Possíveis leituras do conto O visto, de Ondina Ferreira”, de Mariana
Gomes (2016), a mesma pesquisadora da tese outrora citada. Um dos objetivos do
artigo é analisar como a subversão do riso operacionaliza discursos de
resistências/persistências entre Cabo Verde, EUA e Portugal. Ao ler o artigo, fiquei
interessada pela obra da cabo-verdiana, pois projetei a sua inclusão em minhas

4O ensaio referido é “Falar para curar, ouvir para aprender: Niketche - uma história de poligamia, de
Paulina Chiziane”, de Eufrida Pereira da Silva (2011).
15

análises. À época, em 2018, entrei em contado com a pesquisadora para saber


como adquirir a obra referida.

Embora estivesse com a obra de contos em mãos e minha tese almejasse


abarcar três obras de escritoras e países diferentes, vieram algumas circunstâncias
pessoais e de tempo que exigiram uma nova configuração da pesquisa. Isso me
levou a fazer um recorte nas minhas análises, escolhendo trabalhar com os dois
livros já mencionados. Apesar do contratempo, as reflexões propostas nesta tese se
tornam relevantes porque contribuem para a formação de um corpus de estudo na
área do riso em literaturas africanas em língua portuguesa nas escritas de mulheres,
e suscitam outras(os) pesquisadoras(es) para tal empenho. Acredito que visibilizar o
riso nas escritas literárias de mulheres diz respeito a um dos modos de experiência
existencial do sujeito, uma possibilidade de devir, seja em Moçambique e Angola,
seja em qualquer parte do mundo.

O riso, além do clássico papel mordaz que normalmente lhe é atribuído,


também se constrói como estratégia problematizadora da estrutura da própria
narração, da sociedade e da comunicação como um todo. Logo, o cômico é uma das
vias para se questionar as formas de opressão contra a mulher.

Se a relação entre eu-outro, mulher-homem, África e o resto do Ocidente é


“uma relação de poder, de dominação de graus variados de uma complexa
hegemonia”, apropriando-me das palavras de Edward Said (1990, p. 17), quando
esse teórico problematiza a relação de poder entre Oriente e Ocidente, o riso,
exposto neste estudo, também provém de diferentes matizes: do riso alegre de
Nietzsche (2012, 2018), de Cleise Mendes (2008), de Vladimir Propp (1992); do riso
alegre do leitor por conhecer e/ou apreciar os textos literários de Paulina Chiziane e
Isabel Ferreira; do riso metamórfico, vivo, ressonante, porque é tensão e
elasticidade, de Bergson (2018); do riso de Roustang (1996), que cresce, expande,
explode e se faz fragmento de realidade; do riso sarcástico proposto em Tabacaru
(2015); do riso baixo, corporal, de Bakhtin (1993); e do riso melancólico.

Por fim, esta é a dinâmica – as variações do riso – que o leitor acompanha em


boa parte na obra de Isabel Ferreira e Paulina Chiziane, conforme se tenta mostrar
aqui, nesta tese-de-riso-a-sério. O efeito humorístico está no deslocamento da
tensão, das agruras da vida, do trágico, para a elasticidade que a própria vida ou a
sobrevivência pede: rir para não sucumbir.
16

2 O RISO: para romper com os limites do sério

- Quem és tu? – pergunto eu.


- Não me reconheces? Olha bem para mim.
- Estou a olhar, sim. Mas quem és tu?
- Estás cega, gémea de mim.
- Gémea? Não sou gémea de ninguém. Dos cinco filhos da minha mãe, não
há gémeo nenhum. Estou diante do meu espelho. Que fazes tu aí?
- Estás cega, gémea minha. Por que choras tu?
Solto da boca uma enxurrada de lamentos. Conto toda a tristeza e digo que
as mulheres deste mundo me roubam o marido.
- Pode-se roubar uma pessoa viva, ainda por cima um comandante da
polícia?
(CHIZIANE, 2004, p. 15-16)

- [...] As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam


com um simples açoite.
- Tens razão, Tony, as mulheres de hoje não têm juízo. Por que não te
casas com a minha avó?
(CHIZIANE, 2004, p. 284)

Vamos que a noite é nossa... [dizem as garinas]


- Todos agem assim? [pergunta Deus]
- Com os kandengues, o verbo é só no início. Depois o acto destrói o verbo.
Deus morre com a inocência do verbo. E o milagre da multiplicação
acontece.
- Estou estupefacto com as tuas revelações!
- Kota Deus! Grande Mestre e Senhor! Só disse porque o grande Deus Pai
e Senhor me perguntou! [...]
Vive-se na confusão?
- Sim Kota Deus...Vive-se! Ninguém cuida do meio ambiente. Se tem lixo,
come-se mesmo ao lado do mijo. Um kandengue a defecar aí mesmo junto
às quitandeiras, dá um peido e depois diz tass bem! [...]
E tudo isso para lhe dizer grande Deus... Eles não têm cara de paisagem
como no Seu jardim celestial. Têm alma!
(FERREIRA, 2008, p. 33,35)

Mas as mulheres é tudo igual. Se eu, não desse o tranco, ia afamar a minha
virilidade. Eu haveria de ouvir. Aquele kota não levanta! Tem uma arma que
não detona!
(FERREIRA, 2008, p. 222)
17

2.1 um riso: nada a entreter a razão

Há quem indague a ausência de um preâmbulo entre as epígrafes e esta


seção. Aliás, foram inseridos enormes excertos literários, grandes talvez para serem
chamados de epígrafes. A inexistência de um texto introdutório antes do 2.1, como
se esperássemos os objetivos do capítulo, é uma escolha para evidenciar, em nosso
estudo, o lugar da literatura e das literaturas africanas em língua portuguesa escritas
pelas mulheres, a moçambicana, Paulina Chiziane, e a angolana, Isabel Ferreira.

A opção é também uma forma de anunciar o objeto de pesquisa: o riso. É


aquela ideia: contamos primeiro a anedota, depois, para quem não entendeu, nós
explicamos. Bem depois, diga-se de passagem. Ou, dito de forma elegante, cito
Walter Benjamin, quando este se referia ao teatro épico de Brecht: “Não há melhor
ponto de partida para o pensamento que o riso. As vibrações físicas produzidas pelo
riso oferecem melhores ocasiões para o pensamento que as vibrações da alma.”
(BENJAMIN, 1987, p. 134).5

Ao leitor “atrás dos óculos e do bigode”, recuperando a imagem do poeta


taciturno6, ou ao leitor preso na profecia bentiniana – “serás feliz”7 depois de
realizados todos os seus trabalhos e compromissos sérios, por isso casmurro,
interpelo: não seria muito estranho enveredar-se por um estudo sobre o riso sem
ziguezaguear pelo humor?

Acrescento à provocação uma epígrafe8, presente na obra O eleito do sol, do


autor caboverdiano Armênio Vieira: “Inúmeros serão os teus trabalhos. Para que não

5 O posicionamento do filósofo alemão foi feito em 1934, dois anos antes de Bertolt Brecht tecer o
conceito sobre diversão, como qualidade pedagógica para aprendizagem no teatro, salienta
Bernadete Marantes (2011). Convém pensar, acrescenta Marantes, esse conceito “como um ponto de
cruzamento entre o modo de recepção e o meio de aprendizagem”. (2011, p. 67). Ou, conforme Luiz
Fernando Fukushiro, “ao mesmo tempo que [o teatro de Brecht] faz rir, faz uma crítica ao objeto de
diversão, não por identificação ou raiva, mas por estranhamento.” (2013, p. 362). Fukushiro tece as
considerações sobre diversão brechtiana a partir do termo kulinarisch (“culinário”), em seu sentido
estético, no artigo O “culinário” em Adorno, Benjamin e Brecht: entre o prazer e a regressão
(2013).
6 A expressão em destaque está no Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade
(ANDRADE, 2013, p. 11).
7A expressão está na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, no capítulo C, Tu serás feliz,
Bentinho. (ASSIS, 2011a, p. 227).
8Ana Lúcia Boéssio e Jaini da Porciúncula colocam a epígrafe de Armênio Vieira como um rípio. Na
arquitetura grega eram “pequenas pedras usadas para preencher os vãos entre as grandes pedras
18

enlouqueças, nós, deuses imortais, ofertamos-te a imaginação e o riso”. (VIEIRA,


1992, p. 8). É uma espécie de dedicatória do autor ao seu personagem egípcio, que
enfrentará desafios pela frente. (BOÉSSIO; PORCIÚNCULA, 2015). Deixo a
imortalidade para os deuses9 e confirmo a oferta de imaginação e riso ao leitor, por
meio da arte literária africana feminina. Essa literatura, diga-se, presentifica o desejo
do filósofo alemão Nietzsche: “Talvez ainda haja um futuro também para o riso.”
(NIETZSCHE, 2012, p. 51).

Depois dessa primeira digressão e amparando-me pelas deusas escritoras,


deuses escritores, teóricas e teóricos, pensadoras e pensadores, e todos aqueles
com quem dialogarei, ouso propor uma escrita acadêmica de só risos. Até poderia
esclarecer neste momento o que pretendo com a expressão “só risos”. Porém
preciso avançar um pouco mais, embora acredite que, somente ao final da tese,
possa se alcançar um entendimento mais elástico desse jogo de palavras.

Para auxiliar o leitor que não conhece as narrativas ficcionais em estudo,


apresento, numa compreensão mais geral, um resumo de Niketche: uma história de
poligamia, de Paulina Chiziane, e O guardador de memórias, de Isabel Ferreira, na
ordem citada.

Rami é uma mulher do Sul de Moçambique, casada, sob as juras da


monogamia, há vinte anos com Tony, um alto funcionário da polícia de Maputo, que
se une, contudo, a outras mulheres, sem que uma conheça a existência da outra. O
comportamento do marido já contradiz os dois regimes, o da monogamia e da
poligamia, este último, por sua vez, pressupõe, no mínimo, o conhecimento mútuo
entre as mulheres. Rami, então, descobre os relacionamentos extraconjugais de
Tony, e, por isso, planeja uma vingança com a participação das companheiras dele.
Para isso, a narradora-personagem escolhe a dança Niketche como um dos meios
de “dar uma lição” ao marido, sendo, portanto, um dos momentos em que elas estão
na condução de seus próprios corpos. É uma dança de sedução originariamente

das paredes e que serviam de sustentação; na poesia grega, representavam aquelas palavras que
eram acrescentadas ao poema com a função de compor a rima ou a métrica.” Na obra de Arménio
Vieira, os rípios “funcionam como emendas necessárias ao andamento do conjunto da obra e são
resultado de uma estratégia compositiva bem elaborada da parte do autor, a qual leva o leitor a inferir
a existência de algo subliminar em um texto aparentemente cômico, marcado pela colagem de várias
referências.” (BOÉSSIO; PORCIÚNCULA, 2015, p. 96).
9Para a cosmovisão animista em boa parte dos países africanos, existe uma integração entre deuses
e humanos, natural e sobrenatural. (GARUBA, 2012; PARADISO, 2015).
19

feita entre zambianos e membros da etnia nampule. Assim, durante a trama, tecida
com muito humor, a protagonista e as quatro mulheres, cada qual representando um
espaço de Moçambique, com suas diferenças e histórias particulares, tomam
consciência das experiências de subordinação e de violência às quais estão sujeitas
no domínio cultural masculino, de certas tradições moçambicanas e da colonização
portuguesa.

Sobre O guardador de memórias, Isabel Ferreira, sob a veia satírica,


apresenta-nos diversas personagens femininas, questionadoras dos papéis que lhes
foram ensinados pelas tradições angolanas e sexistas, e personagens masculinas,
que se veem em crise. Em uma trama de muitas peripécias, diversas histórias,
vários narradores e com muito diálogo entre as personagens, é dado ao leitor o
conhecimento das várias faces da cidade de Luanda, que se torna outra
personagem da obra de Isabel Ferreira. A narrativa principal gira em torno de
Hunende, o marido de Kiluva, que, depois de morto, aparece como um espírito para
resgatar sua memória e identidade, pois ele foi parar no céu dos brancos. Além
disso, ele deseja acertar as contas com sua esposa e o seu novo namorado, o ex-
patrão de Hunende, pois ela não cumprira o ritual da viuvez e ainda assumira os
próprios desejos e domínio de seu corpo. Com essa volta, Hunende começa a
refletir sobre suas atitudes.

Mas, melhor do que os resumos, é rir com as narrativas elaboradas por essas
autoras. Gostaria, portanto, de oferecer mais dois trechos das obras:

- De que me acusam? Sempre varri o lixo dele e escondi num canto.


Guardei no meu cesto todos os seus pecados. Perguntem ao Tony,
perguntem-lhe se alguma vez lhe faltei aos cuidados. Cuido bem do corpo
dele. Nem os seus pés cheiram a chulé. Querem provas? Cheirem-no!
Perguntem a estas quatro esposas se alguma vez viram algum buraco ou
rasgão nas cuecas do Tony, perguntem! [...]
Numa coisa o Tony tem razão: somos máquinas de obediência. Perfeitas.
Completas. Se não fôssemos estaríamos já na rua, na lua, a gozar todos os
prazeres desta vida. (CHIZIANE, 2004, p. 156-157).

Mavinda Massogi, de quando em vez, deixava cair o pano. E foi no campo


íntimo que Mavinda pôs a nu o seu lado indiscreto. Acendeu os olhos.
Pestanejou. Olhou para os lados. E como se tivesse o formigueiro no corpo
fez uma pergunta, qual faísca.
- Então não gozavas? Ele não te mexia, não te seduzia? Não te preparavas
antes do sexo, do entalo? Eu... é que não podia ter um homem assim. [...]
20

- Agora gozo! Com teu irmão [da Mavinda] estou nos braços da paz e da
sedução. Naquele tempo [com Hunende], só ele desfrutava! Ele era o único
que gemia de prazer. Depois punha-se a dormir extasiado. (FERREIRA,
2008, p. 193).

Vou-me divertindo com a escrita dessas autoras, com quem me relaciono


para pensar, refletir e apresentar outros caminhos de leitura, apresentar outros
riscos, traços, sulcos na produção acadêmica.

E o que significa fazer estrias neste texto, nomeadamente tese? Nada.


Apenas um riso do nada. Aquele que vem da criança, e nós, adultos, estranhamos,
porque buscamos finalidade em tudo, e a criança nos revela um riso por nada. Um
riso de quem está criando sentidos. Essa insistência de finalidades dos adultos é
morte do vir a ser. Nada “não significa a pura negatividade”, não denota a negação
da terra, do presente, em prol do desejo de um mundo ideal. Esse nada é, antes,
“condição para o devir, pois, para que algo possa vir a ser, é preciso que ainda não
seja”. Não seja em concretude, em pragmatismo, em apreensão do sentido. O nada,
o não ter sentido, a não explicação, a não análise dos textos literários nos angustia.
Angustia-me porque estou em texto acadêmico de literatura e tudo deveria ser
analisado. Então, rio, porque, pelo menos por um momento, neste capítulo,
permanecerei nessa angústia e o leitor embarcará comigo. A angústia da não
explicação em certos instantes da vida pode ser geradora do vir a ser. “O nada é, à
medida que é provocação para ser.” (CORDEIRO, 2008, p. 99-101)10. O riso, nesse
instante, é para provocar o nosso ser. Para provocar o ser mulher, o estar sendo
mulher.

Não espere, pois, uma análise das cenas literárias anteriores nem daquelas
enormes epígrafes. Já disse, leitor, é uma oferta, desfrute. No momento, é só para rir
mesmo. Ou, ao menos, entrever um sorriso. Talvez nem sequer isso, porque o leitor
pode ser outro, ensimesmado, soturno, então, pode escolher seus caminhos ou
acreditar que pode fazê-lo.

Pensando com Umberto Eco, em Seis passeios pelo bosque da ficção, as


reflexões aqui propostas escolhem um “leitor-modelo”, “um tipo ideal que o texto não

10Todas as citações deste parágrafo encontram se no texto de Robson Costa Cordeiro “O Sertão de
Riobaldo: uma leitura a partir de Nietzsche” (2008), referenciado ao final do mesmo parágrafo.
Sempre que houver uma proliferação de citação direta, farei a referência ao final do parágrafo para
que assim dê uma fluidez ao texto.
21

só prevê como colaborador, mas ainda procura criar”, um leitor que está “ansioso e
disposto a jogar”. (ECO, 1994, p. 15-16). O jogo é o do conhecimento que nos
oferece o júbilo de cada descoberta libertadora.

No entanto, parece haver um paradoxo: como posso escolher um leitor-


modelo para uma tese que, formigueiramente,11 almeja arranhar um modelo de
escrita? Assumo a pseudocontradição por, pelo menos, dois motivos. O primeiro se
deve ao fato de a tese ainda seguir vários modelos estruturais, pois precisei
adequar-me ao tempo de que dispunha. Assim, escolher alguns caminhos
convencionais facilitaria o processo de escrita. Sim, leitor, transmutar na audácia do
leão ou ter o riso deste, como propôs Zaratustra,12 não é tão simples, é necessário
tempo, disposição psicoemocional e as implicações disso. O segundo motivo de
uma aparente contradição entre leitor-modelo e tese em percurso de rasura é: o
leitor que aceita o pacto questionador de uma escrita séria, na forma, é um leitor-
modelo de outra ordem, mas é um modelo. Sugestivamente, nomearia, pois, como
leitor-de-riso-a-sério.

Outro paradoxo entre o substantivo “riso” e a expressão adverbial “a sério”.


Acostume-se, leitor, porque meu objeto de estudo é assim, cheio de nuances. Mas
gostaria de pensar o sentido da expressão “a sério” a partir das exposições do
escritor brasileiro Roberto Gomes, em Crítica da razão tupiniquim (1994). Nesse
livro, Gomes busca compreender e analisar algo estranho, incongruente que
identifica no comportamento do brasileiro: fomos construídos no entorno de “uma
imensa mitologia” que se assenta no “nosso jeito piadístico”, porém “no momento de
pensar não admitimos piada. Queremos a coisa séria. Frases na ordem inversa,
palavras raras” (GOMES, 1994, p. 6).

Para iniciar a compreensão, Gomes distingue o adjetivo “sério” e o advérbio


“a sério”. O adjetivo refere-se a uma pessoa que “zela pela seriedade das
aparências”, é cumpridora das “normas e convenções sociais”, “incapaz de ‘sair da
11 Uso o sentido conotativo “formigueiramente” porque a formiga exerce um trabalho quase
imperceptível, mas árduo. Sua presença, além disso, pode nos incomodar, nos inquietar. O advérbio
também me levou à indagação presente no Livro das perguntas (2004), de Pablo Neruda: “É
verdade que no formigueiro os sonhos são obrigatórios?” Quero também o sentido “formigueiro no
corpo”, aquele “comichão”, o qual, inclusive, está transcrito no trecho de Isabel Ferreira (2008, p.
193). Almejo ainda os comichões do saber e do prazer em saber.
12 Sugiro a leitura de “O eterno retorno do mesmo ‘a concepção básica de Zaratustra’”, artigo da
filósofa e professora da USP Scarlett Marton (2016), para uma melhor compreensão da metáfora do
leão de Nietzsche (2018).
22

linha’”, afirma (GOMES, 1994, p. 6, grifo do autor). Sobre o advérbio “a sério”, em


comparação com “sério”, cito uma fatia considerável de sua explicação:

Levar a sério, seja um trabalho, lugar ou um amor, não consiste no zelo pela
vigência de normas sociais. Ao contrário. O acento faz com que toda carga
significativa recaia sobre o aspecto interno e virtualmente negador do
socialmente admitido. Se levo a sério, isto é algo que sai de mim em direção
ao objeto da seriedade. Se sou sério, me coisifico como objeto de
seriedade. Aí está a diferença entre o que é dinâmico – eternamente em
questão –, encontrado no a sério, e o caráter de acabada e estéril da
seriedade do sujeito objetificado. A sério, revigoro o mundo com uma
quantidade imensa de significações. Sério, reduzo-me a objeto morto,
caricato, de existir centrado externo.
Ao levar a sério, estou profundamente interessado em alguma coisa, a
ponto de voltar todas as minhas energias no sentido de sua realização –
outro não sendo o princípio de erotização do agir. Mesmo quando isso exige
"sair da linha". Só aqui poderemos encontrar o germe revolucionário
indispensável à criatividade. (GOMES, 1994, p. 10, grifos do autor).

Então, um riso a sério é aquele que volta todas as suas energias para
revigorar o mundo com uma gama de possibilidades que resultam em uma
perspectiva crítica e uma proposta de elaboração de conhecimento. Um riso a sério
pode “destruir um mundo, aquele que impede a vida de acontecer, para assim criar
outro mundo”, logo uma destruição criadora (GOMES, 1994, p. 28). A destruição
pelo riso é outra proposta para ler e analisar as narrativas africanas escritas por
mulheres, bem como outra forma de conceber um texto acadêmico sobre a temática
do riso e riso da mulher.

A partir da perspectiva do escritor brasileiro e do italiano, insinuo: se um leitor-


modelo está para um autor-modelo, aquele que constrói sua obra de modo a
escolher um leitor que aceita o jogo de decifrar o texto, então um leitor-de-riso-a-
sério está para uma tese-de-riso-a-sério. Talvez a hifenização alivie o incômodo com
a palavra “modelo” de Umberto Eco, se se pensar numa tese sobre o riso. Vale
destacar que o termo “modelo”, nos passeios teóricos do escritor italiano, é conceito,
é teoria, e não apenas um substantivo masculino. Mas faço provocações com a
palavra “modelo”, porque ela é muito séria para as mulheres, há séculos
arquitetadas num modo de existência.

Todos esses deslocamentos intencionaram justificar o benemérito do riso, do


cômico, do humor e suas variantes como significativo objeto estético e de estudo.
23

Mas isso não é recente. Plauto, no século III a.C, fizera isso no prólogo de Os
Menecmos, ao argumentar: “Isto fazem os poetas nas comédias: dizem que a ação
se passa em Atenas, porque aquele helenismo torna a peça mais importante.”
(PLAUTO apud MAFRA, 2016, p. 10).

Séculos após a nota do dramaturgo romano, o historiador francês George


Minois, no livro História do riso e do escárnio (2003), em sua Introdução, destaca
como os sapientes desse tema se preocupam com o que os leitores vão pensar
sobre o estudo do cômico e suas formas. Com receio de o livro não ser levado a
sério, tais autores advertem ao leitor que a obra não é para fazer rir, não é um livro
de anedotas, mas “simplesmente, uma contribuição para a história das
mentalidades.” (MINOIS, 2003, p. 17). O historiador se sente incomodado em se
abster das piadas como fazem esses estudiosos, por isso deseja que o seu leitor
sorria, voluntária ou involuntariamente, ao ler sua obra.

Assim, também eu desejo um riso, “ainda que forçado”, para usar as palavras
de Luiza Lobo, presentes em Crítica sem juízo (2007), uma coletânea de artigos
autorais que propõe uma crítica literária “para além do juízo consciente”, uma via
que nos conduza a “alguma área recôndita, que só raramente visitamos”,
contrapondo-se, portanto, a um tipo de saber que se coloca “superegoicamente
como um juízo de valor a respeito de tudo e todos”. (LOBO, 2007, p. 9). Verena
Alberti, George Minois e Lélia Parreira Duarte também defenderão o riso como um
movimento de redenção do pensamento sério, o que significa desprendê-lo de seus
limites (ALBERTI, 2002, p. 11), tomá-lo como possibilidade de rir de tudo e contra
tudo (MINOIS, 2003, p. 520), de sair de toda a verdade. (DUARTE, 2006, p. 64).

A redenção ganha sentido como uma busca por outras possibilidades


reflexivas e críticas para pensar e agir sobre o mundo, o que faz do riso outra
perspectiva para se pensar as experiências do não canônico, do não sério, da não
ordem, que também fazem parte da existência. Cleise Mendes, em sua obra A
gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia (2008), destaca a necessidade do
cômico para ludibriar a racionalidade estreita, posicionando a experiência da catarse
cômica como

um dos mergulhos possíveis na experiência de um saber (ou de um não-


saber) que nos liberta da racionalidade estreita, escorada fortemente não só
24

pelas exigências sociais cotidianas de uma lógica adulta – esse é o aspecto


mais banal da questão – mas, sobretudo, pelo forte laço ideológico
estabelecido entre ascetismo e conhecimento, dor e reflexão, seriedade e
verdade, sofrimento e transcendência, num imbróglio cristão-platônico que
ainda não cessou de produzir seus efeitos. (MENDES, 2008, p. 218).

Então, proponho o seguinte mergulho na imaginação: estamos a bordo de um


barco (se houver, claro13) à deriva em um oceano infinito, “terrível infinitude”
(NIETZSCHE, 2012, p. 137), “por lá talvez se vá para o grande nada. Mas quem
quer embarcar nesse ‘talvez’”? (NIETZSCHE, 2018, p. 198). E, no mar, há tábuas
velhas e destroçadas, outras, novas, mas incompletas. (NIETZSCHE, 2018, p. 188-
204). Embarcamos para o nada. O que fazer? Rir, e rir inclusive do horizonte, um
espectro de “laço”, “corrimão”, “ponte”, algo passível de ser agarrado, nem que seja
pela vista, agora apagado com as esponjas. (NIETZSCHE, 2018, p. 192-193).

O rir do nada e no nada14 de A gaia Ciência (2012) e Assim falou


Zaratustra (2018), ambos de Nietzsche, propõe esgarçar o que está enraizado em
nós, todo pensamento aprisionado dentro dos limites do sério. A experiência desse
riso se confronta ao de Immanuel Kant, em Crítica da faculdade de julgar (2016).
O riso exposto pelo filósofo prussiano não está entre as belas artes, por isso o riso
perderia sua dignidade diante da razão.

Kant defende que o riso é um jogo prazeroso de afecções porque afeta nossa
saúde, movimenta nossas vísceras e diafragma, “chacoalha o corpo”, e isso “é
salutar”, mas, continua o filósofo, apenas tem um efeito corpóreo, diferente do belo,
ligado à razão. A forte expectativa provocada pelo riso, prossegue Kant, resulta em
nada, porque no riso não se pensa em nada, ele pode até alegrar por um instante o
pensamento, mas não impõe um julgamento. (KANT, 2016, p. 229-331). É claro que
o riso é momentâneo, salienta Cleise Mendes sobre a salvação fugaz do cômico,
“porque festa é festa”, ela brinca. Depois inquire: mas o que é que salva para
sempre? (MENDES, 2008, p. 218). Apropriando-me das metáforas nietzscheanas,
talvez um horizonte apagado com as esponjas nos salve.

13Comte-Sponville faz uma provocação: “Embarcamos e não há barco: melhor rir do que chorar.”
(1999).
14 Empréstimo da famosa expressão “nonada”, que inicia a obra Grande sertão veredas, de João
Guimarães Rosa: “- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O
senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,
instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. (...) O
sertão está em toda parte” (ROSA, 2006, p. 7).
25

O riso proposto por Kant pode ser sumarizado em grau zero de entendimento
e grau positivo de afecção, um mais em saúde, como sintetizou Verena Alberti
(2002, p. 165, grifos da autora). Mas, se o riso é um salutar efeito corpóreo, nada
além, por que as gargalhadas das mulheres incomodam tanto, permitindo relacioná-
las, inclusive, à figura da bruxa e não à da santa? Por que o êxtase, expresso no
rosto que expande, no sorriso que se escancara, nos ombros e seios que se
movimentam, no diafragma que se exercita, experienciado pela mulher, incomoda a
razão erigida pela masculinidade hegemônica, instalada pelo patriarcado?

Só as tolas riem, e ainda o fazem às escondidas, para que não sejam


condenadas, pelos seus dentes à mostra e por violarem o silêncio, conforme expôs
Le Goff sobre o riso na Idade Média (2000, p. 75). Segundo a Regula Magistri do
século VI, uma das muitas regras monásticas no ocidente medieval, a boca e os
dentes seriam exemplos de filtros do bem e do mal, por isso, “quando o riso estiver
começando, ele deve, a todo custo, ser impedido de se expressar. (LE GOFF, 2000,
p. 73). Além disso, o riso ao lado do ócio, nessas regras monásticas, é penalizado
porque “é o jeito mais horrível e mais obsceno de quebrar o silêncio, que é uma
virtude existencial fundamental”. (LE GOFF, 2000, p. 40). Virtuoso é o homem que
não esteja sob o domínio do riso e, por isso, é superior, conforme advertiu Platão em
A República (PLATÃO, 2019). A culpabilização do riso resulta, pelo menos em
parte, “de sua perigosa relação com o corpo”, porque é “um fenômeno expresso no
corpo e pelo corpo”. (LE GOFF, 2000, p. 72).

Mas o incômodo causado pelo riso não ficou para trás, ainda no século XXI,
estuda-se o gênero e a classe social da risada (GOLDENBERG; JABLONSKI, 2011;
WEEMS, 2016), porque, como esse é um comportamento nada discreto nem
resignado, ele não cabe às mulheres, acostumadas à contenção do corpo
(BOURDIEU, 2014, p. 48-49, 52), aos imperativos “sorrir, baixar os olhos” e “aceitar
as interrupções” (BOURDIEU, 2014, p. 47). Mariana Gomes reitera o cerceamento
do patriarcado em várias esferas da vida da mulher, e a negação ao riso é um
desses modos de freá-la:

O estudo e mesmo as produções estéticas que analisam e abordam as


representações femininas nas literaturas tematizam bastante seus dramas
sociais, enfatizando como o machismo, o patriarcalismo e a misoginia
afetam nossas vidas, seja do ponto de vista afetivo (político, cultural, social,
26

histórico), seja no âmbito acadêmico e artístico. Os trabalhos com recorte


de gênero e os movimentos sociais vêm crescendo no país e no mundo,
demandando representatividade e empoderamento, a liberdade que sempre
nos foi negada.
Também nos é negado o riso por representar o confronto com os poderes
patriarcalistas, machistas e misóginos que cerceiam nossos corpos, nossas
decisões e nossos comportamentos, porque a seriedade deve ser a conduta
das mulheres de respeito. Psicologicamente, socialmente e esteticamente a
mulher que ri desafia a ordem, não ocupa o lugar de tristeza e submissão
que a sociedade falocêntrica lhe impõe.
É necessário extravasar todas as violências, todos os dramas que nos
acometem e, nesse caso, abordar estes temas não implica
necessariamente em estigmatizações, mas sim em fazer reverberar
questões que a escrita masculina não consegue tematizar. E a voz
feminina, tanto nas narrativas quanto nas autorias, comumente, é apagada
e silenciada. (GOMES, 2018, p. 88).

Quando a mulher é impedida de rir, cabendo a ela somente o sorriso


encabulado, o do pudor, ela é novamente cerceada de uma das formas de expressar
o sentido de existência humana. Riso, então, para pensadores como Kant, é só
afecção, apenas um mais em saúde, somente um relaxamento. No entanto, a cada
“só”, “apenas”, “somente”, leia-se também um mais em vida, um mais em novas
perspectivas, um mais em questionamentos. Reafirmo: um mais em saúde também.
Cleise Mendes adiciona o lugar salutar do riso como um “choque libertador, que
exercita e relaxa a maior parte dos músculos do corpo”, e por isso tem sido um
significativo objeto investigativo da medicina15. (MENDES, 2008, p. XVIII).

Nesse sentido, as narrativas elaboradas pela estética do riso podem gerar


outra maneiras de pensar as mulheres e mulheres negras. bell hooks16(2016),
feminista negra norte-americana, e a filósofa brasileira Djamila Ribeiro (2019), que
enfatiza o discurso daquela, insistem em narrativas de mulheres negras para além
da dor. Em resposta ao álbum visual de Beyoncé, “Lemonade”, hooks, entre várias
ponderações, afirma:

Para ser verdadeiramente livre, temos de escolher muito além de


simplesmente sobreviver à adversidade, temos de nos desafiar a criar vidas
com bem estar e alegrias desejáveis. Nesse mundo, fazer e tomar limonada
será um fresco e apimentado deleite, uma mistura vivida de azedo e doce,

15Há um trabalho intenso e investigativo sobre os hospitais-circo e dos palhaços-médicos de


Morgana Masetti (1997, 2013).
16 A minúscula do nome é adotada pela própria escritora e assim escolhi manter.
27

não a medida de nossa capacidade de aguentar a dor, mas sim uma


celebração de nosso movimento além da dor. (hooks, 2016).

É necessário cuidado na interpretação dos dizeres da teórica norte-


americana, alerta Djamila Ribeiro. Isso porque os grupos que desejam desrespeitar
as lutas das minorias tendem a se apropriar de falas, como a da teórica, para
legitimar o significado pejorativo de vitimização. Ribeiro, então, dialoga com outro
texto da teórica norte-americana17, a fim de pensar um mover-se para além da dor:

Em um importante artigo denominado “Recusando-se a ser uma vítima”,


hooks discute como seria crucial o foco no enfrentamento da dor, e não
somente em relatar a dor, pois somente relatar nos fixa no lugar de quem é
o objeto da discriminação, logo, na figura imposta por quem está no poder.
Nós também somos sujeitos que pensam a transformação.
Gosto da distinção que a autora faz entre vitimização e resistência militante
— a primeira nos reduz, a segunda nos liberta. Importante frisar que
vitimização aqui não tem o significado pejorativo do senso comum que
desrespeita a luta de minorias, mas sim o sentido de estratégia de luta.
A autora critica o fato de que, muitas vezes, os grupos que têm privilégios
são os que mais se vitimizam, como forma de ganhar visibilidade política.
Para hooks, só quem acreditou nos discursos liberais da mídia acredita que
será tratado como igual, em uma sociedade racista e machista. (RIBEIRO,
2019).

O riso, em suas variações de intensidade, pode ser um ensaio de libertação


de um corpo ensinado a determinadas maneiras de se expressar, porque passou
pela “concordância entre as estruturas cognitivas e as estruturas sociais”, um corpo
acostumado à clausura, aos braços cruzados, às vestes amarradas, apertadas
(BOURDIEU, 2014, p. 2). De maneira semelhante ao sociólogo francês em relação
ao tratamento dado ao corpo feminino, ironiza a personagem Rami, em Niketche:
uma história de poligamia:

Penso. Quem inventou a moda feminina foi um homem, só pode ser.


Inventou sapatos de salto alto para que a mulher não corra, e não lhe fuja
do controlo. Se pensasse nela, teria inventado uma botas e mocassinos,
sapatos do tamanho do chão, para ela poder caminhar, correr e caçar o
sustento, como as amazonas. Inventou as saias apertadas para obrigar a

17Trata-se do ensaio “Recusando-se a ser uma vítima” (hooks, 2020). O texto possui uma tradução
no site de um coletivo feminista We Rise Up. A tradução parte do original “Refusing to be a victim”,
presente na obra, ainda sem tradução no Brasil: Killing Rage, Ending Racism (1996).
28

mulher a manter as pernas fechadas, coladas. Se pensasse nela, teria


inventado umas saias bem rodadas, para andar à vontade e refrescar os
interiores, nos dias de verão. [...] Em pleno século vinte e um, os homens
vestem-nos as armaduras do tempo de Dom Quixote e dizem que estamos
belas. Calcinha. Cinta. Soutien. Meia de vidro. Meia saia. Combinação.
Saia, blusa, um casaco ligeirinho para acentuar o ar de senhora. [...]. E os
homens? Só cuecas, calça e camisa. Livres para saltar, correr e caçar. Que
diferença, meu Deus! (CHIZIANE, 2004, p. 268).

E por falar em calcinha, n’O guardador de memórias18, nem a moda


brasileira escapa da fala cômica da personagem Xaimita, uma zungueira 19, que diz
sarcasticamente para a mãe: “A mamã num sabe o que é! São cuequinhas
pequeninas, só tem um fio. São conjuntos da moda brasileira. São baratinhos! Faço
tão barato mas elas [as clientes] pagam por dez prestações. (FERREIRA, 2008, p.
209).

E tem mais, se se fala em peça íntima, o que está por detrás dela? A história
da... vagina. Esse nome não cabe, claro, ironicamente, nas palavras de Rami,
porque talvez seja algo vergonhoso, íntimo, pessoal demais, um nome feio ou,
talvez, porque as vaginas são debochadas mesmo:

E a linguagem da... Se a... pudesse falar que mensagem nos diria? [...]
À distância estabeleço o diálogo mudo com cada uma que passa.
Elas escancaram as bocas e me respondem com sorrisos, de alegria, de
amargura, de saudade, de desalento, ansiedade, esperança. Pergunto
àquelas que passam: acreditam no amor platónico? Todas se riem de mim e
me perguntam se enlouqueci. Querem saber se sou deste planeta. Amor
platónico é só na lua. (CHIZIANE, 2004, p. 185-186).

Fato é que outra personagem feminina, em OGM, Ana Medrante, esposa


oficial de um comandante da polícia e amante de um médico, também não diz o
nome do órgão genital feminino. Mas parece que isso não lhe impede de desfrutar a
plenitude de vida, afirmando, pois, com ousadia e graça: “A minha liberdade é recibo

18Daqui em diante, farei referência às obra estudadas desta forma, respectivamente: Niketche e
OGM.
19O termo “zungueira” denomina as mulheres que vendem os seus produtos pelas ruas de Luanda.
(FRANCISCO, 2019). A palavra tem sua origem em Ku zunga, expressão da língua nacional
quimbundo, que traduzida para o português significa circular, andar à volta; girar. (SANTOS, 2010, p.
15).
29

que não passo a ninguém”, e “como aquilo não desbota... dou a quem eu quero,
com gosto e prazer.” (FERREIRA, 2008, p. 254).

A força do pensamento androcêntrico ainda fez outra separação: ao homem,


cabe a razão, o exercício do pensamento, da palavra pública (BOURDIEU, 2014, p.
29, 33). E quando a gargalhada é páreo à inteligência, cabe somente ao homem,
porque aprendeu que seu corpo é livre. A mulher limita-se à emoção, à exclusão de
produção de conhecimento, em oposição ao destaque dado a seu corpo, porém um
corpo projetado sob os princípios patriarcais: submisso, contido ou, quando
descontraído, colocado a serviço do homem. A razão, o conhecimento estão
inseridos num mundo social que constrói o corpo “como depositário de princípios de
visão e divisão sexualizantes. (BOURDIEU, 2014, p. 24).

Retomando Nietzsche e Kant, a concepção de riso que os distancia posiciona


o riso como “o carro-chefe de um movimento de redenção do pensamento, como se
a filosofia não pudesse se estabelecer fora dele.” (ALBERTI, 2002, p. 11). Esse
movimento, “chacoalhado” pelo riso, se faz necessário para os corpos femininos se
expressarem com maior liberdade, e na escrita não seria diferente, porque o texto é
um corpo que se manifesta, ou, dito de outra forma, é uma das formas de o corpo se
expressar.

Vale ressaltar que o distanciamento conceitual não tem a ver com precisões
cronológicas. Flögel, em sua obra História da literatura cômica, datada entre
1784/85, enquanto a de Kant é de 1790, entende o riso como um instrumento de
alargamento do conhecimento:

Estou muito mais convencido de que o motivo principal de nosso prazer no


risível reside na inclinação fundamental em alargar a perfeição de nossas
ideias. E esse motivo diz respeito não a um só tipo de risível, como o
pretendido motivo do orgulho, e sim a todos os tipos. Os principais
ingredientes do risível são (...) o novo, o inesperado, o surpreendente, o
especial, o raro e o maravilhoso. (FLOGËL apud ALBERTI, 2002, p. 159).

Alargar nossas ideias e pensamentos com e sobre o riso é um caminho. Essa


experiência humana pode ser uma tábua de salvação diante da finitude da condição
humana. Mas, se o riso resulta em nada, então não há tábua de salvação.
Relaxemos, leitor, o pensamento, porque estamos diante de um objeto difícil de
30

agarrar por suas contradições e complexidades, e experimentemos a sugestão do


filósofo alemão: “Rir sobre si mesmo, como se deveria rir para sair de toda a
verdade, para isso os melhores não tiveram até agora suficiente sentido de verdade
e os mais capazes, muito pouco gênio!” (NIETZSCHE, 2012, p. 51).

Ou, então, atentemos para a sugestão do espelho falante e sarcástico quando


se direciona a Rami, em Niketche: “procura uma vassoura e varre o lixo que tens
dentro do peito. Varre as loucuras que tens dentro da mente, varre, varre tudo.
Liberta-te. Só assim viverás a felicidade que mereces.” (CHIZIANE, 2004, p. 33). Em
OGM20, o conselho é não sofrer, segundo Mavinda, que procura entender a
gargalhada da amiga Kiluva, já que Mavinda, segundo ela própria, não estava
fazendo nada de errado ao ficar com um homem que “chorava pelos cotovelos”, por
ter sido traído, e diz para Kiluva: “Querias que eu ficasse na prateleira das
desiludidas? A desgraça de uns é a sorte de outros...” (FERREIRA, 2008, p. 236).

Diante dos conselhos risíveis, eu só rio, rio muito, gargalho, rio sozinha, de
fato, mas rio. Se o riso é social, em grupo, segundo o filósofo Bergson (2018), como
falar em um riso sozinho? Embora isso pareça individual, somente voltado para o eu
ou uma ação do eu, existe um ridente imaginário em nós, existe um outro ou outros
em nós que ri(em).

Segundo Cleise Mendes, seria interessante “reconhecer que aquilo que ri, em
nós, quando rimos, é o grupo”, ou seja, diz respeito a uma “cumplicidade de
conceitos e preconceitos grupais”. (MENDES, 2008, p. 14). Ou seja, mesmo que a
pessoa esteja isolada, como no processo de leitura, o riso continua a ser um riso
social, porque o outro que provocou o riso em mim, no caso as escritoras, apostou,
como esclarece Mendes, “numa certa comunhão de valores sociais”. No caso, a
construção das personagens Rami, Kiluva e Mandi projeta questões do universo
feminino, suas dores, suas agruras, seus conflitos. Embora, enfatizo, o universo das
mulheres em Moçambique e Angola precise ser visto com cautela, devido a suas
especificidades, como veremos.

20Daqui em diante, farei referência às obra estudadas desta forma, respectivamente: Niketche e
OGM.
31

2.2 dos objetivos do capítulo: antes tarde do que nunca

Alguns objetivos do capítulo já foram cumpridos: ofertar ao leitor uma visão


das duas obras e alguns trechos literários sem intervenção analítica. Se desejamos
divulgar as literaturas africanas, por que não fazer de forma deleitosa em um
primeiro instante de uma tese? É possível que a presença de análise não
comprometa o deleite, pode até aumentá-lo ao descobrirmos o que não havíamos
notado. Então, busco outra justificativa: toda análise é um olhar do analista. Nesse
sentido, o desfrute é uma maneira de o leitor ter sua própria experiência. Por outro
lado, o recorte feito desses trechos já é uma intervenção do especialista,
direcionando, pois, o leitor a um processo argumentativo. Aliás, em páginas atrás
questionei a liberdade do leitor. Noto que tento justificar o que, talvez, não deveria
ser justificado, mas experienciado como um simples prazer da vida: rir.

Depois, procurei delinear o tipo de leitor para as reflexões propostas nesta


tese. Além disso, apresentei Nietzsche e Kant, dois filósofos contrastantes na
concepção de “nada” em relação ao riso. Isso foi feito para expor o sentido da seção
“um riso: nada a entreter a razão”. Por isso dialoguei também com Robson Cordeiro
(2008), para que me auxiliasse na clareza do “nada” em Nietzsche: o nada é, o riso
é, na medida em que é provocação para estar sendo.

Encerro este capítulo com outros questionamentos sobre a apropriação do


riso pela mulher. Por que não escolher alguma categoria, a saber: humor, cômico,
ironia, chiste, jogo de palavras, comédia, sátira, paródia, como um hiperônimo da
minha pesquisa? Se o humor nem sempre conduz ao riso, ou seja, é possível haver
humor e não haver riso, não seria mais eficiente escolher aquele como objeto de
análise?

Quando opto pelo riso para analisar as obras, não estaria pressupondo ou
imaginando que o leitor dará boas gargalhadas, pois não é essa uma possível
imagem-ação que se interpreta ou espera da palavra “riso”? A escolha pelo riso não
seria uma presunção? Qual a garantia de que o leitor rirá, terá uma reação explosiva
do corpo decorrente de algo cômico (ALBERTI, 2002, p. 30)? Se o riso é uma
explosão, um brilho que não dura, não se prolonga, como afirmou Roustang (1996),
por que razão insistir nesse objeto de estudo? A vontade que tenho, como afirmou
32

Roland Barthes sobre o signo (BARTHES, 1981, p. 143), é pressionar o riso e


submetê-lo a uma resolução, e assim teria sossego. Mas não, ele está à deriva.

Definir o riso pode cercear o seu caráter emancipatório. Por outro lado,
intenta-se um ponto de partida: o riso é uma experiência estético-criativa. Isso
significa o agenciamento de operações linguísticas, estruturais, o uso de formas
pelas quais o riso se efetua, a serviço de outro objetivo fulcral: relacionar o riso,
como uma categoria ampla, à criatividade das autoras africanas, como rearranjos de
outro modo de estar no mundo, visto que suas personagens representam, em certa
medida, mulheres de suas terras que estiveram (e ainda estão) à margem da cultura
e do simbólico, no silenciamento.

A insistência pelo riso se consolidou enquanto fazia e buscava responder a


essas e a outras questões. Escolho essa experiência por ela configurar uma
explosão do corpo, pois essa é a imagem que preconizo para a escrita da mulher e
das escritoras estudadas. Assumo o riso também como gargalhada, porque é uma
maneira de romper com o sorriso comedido subordinado às mulheres; é um modo
de perturbar os limites do ocidental como universal, do sempre dizível, da razão
falocêntrica, que resiste em perceber que a escritora também detém a pena do riso.

Para o corpo-símbolo do falo, é preciso que outro corpo se levante e cante e


dance e ria e se posicione nesse mundo que é tão oceânico. Escolho, portanto, o
riso como corpo-brilho porque evoca liberdade, mesmo que seja por um instante, o
instante da contação de histórias, que se contrapõe ao eterno conselho dado às
mulheres, o da resignação:

Todos falam em segurar. Segurar sempre. Segurar é defender. Defender-


se. Segurar a bola no jogo e seguir o trilho. Segurar a vida. Segurar as
arestas do amor. Segurar a rosa e os espinhos da rosa até as mãos
sangrarem de dor. Que bom seria segurar o amor num punho fechado. Mas
o amor é um punhado de água escapando nos interstícios da mão.
Qualquer dia me pedem para segurar as rédeas deste mundo. Segurar os
raios do sol. Segurar uma rajada de vento. Para as mulheres o eterno
conselho é: segura, fecha, cobre, esconde. Para os homens é: larga, voa.
Abre, mostra – pode alguém compreender as contradições deste mundo?
(CHIZIANE, 2004, p. 99).

Eu cedi... Silenciosamente cedi. Não fui criada para fazer escândalos.


Aprendi a esperar. Toda minha vida ouvi que a espera é uma virtude e que
o silêncio é a pátria dos fortes! E neste meu silêncio, sufoquei o meu grito,
para não perder o amor do meu homem. (FERREIRA, 2008, p. 19).
33

Então, é chegado o momento, em que, nos próximos capítulos, analisarei os


textos de Paulina Chiziane e Isabel Ferreira a partir do riso e seus tons, gradações,
sem me deter nas diferenças terminológicas. Assim, as categorias acionadas
estarão a serviço das cenas literárias escolhidas. Quando for necessária uma
distinção, assim o farei. Pode acontecer também de as palavras “cômico” e “humor”
substituírem a palavra “riso” por uma questão de sinonímia e não pelo aspecto
conceitual, evitando tornar o texto cansativo no uso de uma palavra apenas.

Mas, antes, preciso reafirmar o compromisso deste presente estudo. O riso


proposto nesta tese-de-riso-a-sério buscou recusar aquele riso presente em
“histórias de superação”, que a sociedade adora ouvir, porque, em certo sentido,
ainda mantêm as mulheres no lugar que essa mesma sociedade delimita. (RIBEIRO,
2019). Assim, procurei demonstrar, pelas análises literárias que virão, o quanto o
riso estético na obra de Chiziane e Ferreira encontra-se no lugar da altivez, do
protagonismo da mulher africana e seu protagonismo autoral. Isso ajuda a
esclarecer o título deste capítulo que finda – “O riso” –, com artigo definido. É
também o riso do leitor que deseja entrar no jogo de achamento do saber. Por outro
lado, o leitor precisa acessar o ordinário, o cotidiano, das personagens nas obras
das autoras, acessar “um riso”, com artigo indefinido, que está ali, às vezes simples,
bobo, qualquer, despretensioso, ou escondido, ínfimo, mas é um riso, que almeja
entreter, galhofar a razão que está sempre a dizer qual riso deve emergir.
34

3 RINDO DA PENA

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos. [...]
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos. [...]
se entretendendo para todos, no toldo
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, 2008, p. 219)

[...] estendi o riso, como uma


tenda multicor.
(NIETZSCHE, 2018, p. 190)

Para auxiliar o leitor, com risco de se perder vagando por aí (o que pode ser
bom ou pode se perder o fio da narrativa da tese-de-riso-a-sério), já anuncio as
propostas deste capítulo. Semelhantemente ao primeiro, começo com digressões,
mais curtas, de fato, sobre a relação das epígrafes com as narrativas das autoras
em estudo. Em um segundo momento, tensiono algumas questões teóricas sobre o
riso e depois analiso duas cenas literárias, o caso da moela e da cueca, dois fatos
cotidianos de personagens femininas que sofrem violências e opressões sexistas, e
como o riso aparece nessas passagens. Na última seção, apresento as escritoras
Paulina Chiziane e Isabel Ferreira, expondo suas obras e as questões que
vivenciam no processo de escrita. E o sentido de “rindo da pena” lá no título?
Devagar, leitor, porque na última seção desvelaremos, se é que o leitor já não
levantou hipóteses.

Dialogar com os versos do poeta João Cabral de Melo Neto e com o dizer de
Nietzsche pode não soar risível na acepção das vibrações físicas, aludidas por
Walter Benjamin, ou do chacoalhar do corpo, em Kant. Simplesmente, há uma
inscrição desconexa à gargalhada, o que, nesse sentido, gera o riso da
desconfiança do porvir.

Por outro lado, a comparação figurada em Nietzsche ajuda a entender a


escolha pelos fios que formam a manhã em Melo Neto. Numa leitura criadora,
35

portanto, de muitas possibilidades, escolho relacionar riso e manhã, riso e vida, até
porque, como afirmou Comte-Sponville (1999) “o real, que não ri nem chora, não dá
resposta”, e, conforme Cleise Mendes, “toda a coloração afetiva do mundo [é]
conferida pelo prisma de nosso olhar.” (MENDES, 2008, p. 12). As escritoras
Chiziane e Ferreira, cada uma com suas peculiaridades, se apropriam dos fios do
riso, de seus tons variáveis, porque seus personagens apresentam nuances, alegres
e tristes, como certas manhãs nubladas, chuvosas.

Saio da fruição estético-afetiva ou viajante (até nisso me inspirei em teóricos,


como em Padilha, 1995, e Rouanet, 2007) e volto ao fragmento de realidade que me
lembra de que não falo só por mim, embora use a primeira pessoa do singular, mas
o faço só para entreter a razão, a fim de, concomitantemente, entender,
experimentar e ampliá-la. O “eu” ridente e risível, nesta tese, na verdade, são tantos
porque “nosso riso é sempre o riso de um grupo”, ele “esconde um entendimento
prévio, eu diria quase uma cumplicidade com os outros ridentes, reais ou
imaginários.” (BERGSON, 2018, p. 39-40).

Assim também é o fazer teórico, e, no caso de um fazer teórico vinculado ao


riso, exige-se elasticidade para dialogar com diversos saberes, seja o da literatura,
da filosofia, da história, uma vez que o riso é, por excelência, um operador criativo,
mais, uma experiência.

Não foi sempre desse modo, já que ainda nos séculos XIX e XX havia uma
resistente separação: o objeto do cômico era estudado nas obras de estética; o
sujeito que ri, nas de psicologia (PROPP, 1992, p. 31). Nietzsche riu da
segmentação e percebeu, no escuro do seu presente, a luz veloz chamada riso.
Todos riem. Existe uma universalidade do riso. Porém, quando esse ato de
linguagem se configura como uma tentativa de resposta do ser humano diante da
angústia de sua existência, o riso passa a ter tonalidades, podendo ser

[...] alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável,


sardônico, angélico, tomando as formas da ironia, do humor, do burlesco,
do grotesco, ele é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode expressar tanto
a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia. [...]
segundo escreve Howard Bloch, [o riso] “serve ao mesmo tempo para
afirmar e subverter”. Na encruzilhada do físico e psíquico, do individual e do
social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco, na indeterminação.
Portanto, tem tudo para seduzir o espírito moderno. (MINOIS, 2003, p. 15-
16, grifos do autor).
36

Observamos várias possibilidades de definir o riso, pois é um elemento vivo,


logo, em mutações, assim falou uma das referências sobre o riso, Henri Bergson
(2018), filósofo e ensaísta francês, cuja voz é sempre evocada e contestada nos
estudos sobre o tema. Em seu livro O riso: ensaio sobre o significado do cômico, da
década de 1880, recorto o começo do primeiro capítulo, quando o filósofo discorrerá,
de modo expressivo, para pensar o efeito cômico:

Vemos nela [na fantasia cômica], antes de tudo, algo de vivo. [...] Iremos
nos limitar a vê-la crescer e se expandir. De forma em forma, por gradações
insensíveis, ela realizará sob nossos olhos as mais singulares
metamorfoses. Não desprezaremos nada do que tivermos visto. Talvez
assim, por meio desse contato, possamos alcançar algo de mais flexível do
que uma definição teórica – um conhecimento prático e íntimo, como aquele
que nasce de uma longa camaradagem. E talvez também venhamos a
descobrir que, sem querer, realizamos um conhecimento útil. Racional, a
seu modo, até em seus maiores devaneios, metódica em sua loucura,
sonhadora, sem dúvida, mas evocando em sonhos visões que são
imediatamente aceitas e compreendidas por toda uma sociedade, a fantasia
cômica não nos ensinaria algo sobre os procedimentos pelos quais a
imaginação humana trabalha e, mais particularmente, sobre a imaginação
social, coletiva, popular? (BERGSON, 2018, p. 37).

As “gradações insensíveis” anunciam a tese do francês de que, para que o


cômico nasça, é preciso calar toda forma de sensibilidade e assim exercermos
nossa inteligência. Experimente, como Bergson sugere, ampliar o máximo possível a
sua simpatia e verá que tudo passa a adquirir uma coloração. Do contrário,
desobrigue-se e assista a tudo como um expectador indiferente: dramas serão
convertidos em comédias. Assim, para produzir seu efeito, o cômico requer uma
anestesia momentânea das emoções, para que se instale a inteligência, defende
Bergson.

Cleise Mendes (2008) faz uma importante observação para o significado de


“emoções” na referida obra do teórico francês. Segundo a pesquisadora, Bergson
estaria lidando com emoções específicas, a piedade e o terror, efeitos da catarse na
tragédia a serem evitados na comédia. Para Mendes, o filósofo não estaria levando
em conta as emoções resultantes da comédia, em sua potência afirmativa, mas ele
estaria definindo, portanto, o cômico em sua face negativa, ao colocar para o
espectador o que este deve evitar na experiência do riso, no caso aquelas duas
emoções.
37

Vladimir Propp, filólogo russo, em sua obra A comicidade e o riso, se propõe


a relativizar diversos conceitos bergsonianos. Primeiro não se exime a ratificar a
máxima de “que o riso é incompatível com uma grande e autêntica dor”. (PROPP,
1992, p. 36). Porém, o teórico russo contesta a inerência do ato de pensar no
momento do riso, proposta por Bergson. O filólogo declara que “o homem que ri não
reflete”, poderá “refletir depois, e, caso a primeira impressão tiver se demonstrado
errônea, a comicidade e o riso terão desaparecido.” (PROPP 1992, p. 176).
Enquanto em Bergson anestesiam-se as emoções durante o riso para dar vazão ao
puro intelecto, em Propp, no riso suspendem-se, temporariamente, a razão e a
simpatia pelo outro.

Os pensamentos de Bergson e Propp voltam à tensão no aspecto ético-moral


do cômico. Se a intenção do cômico é corrigir os defeitos, apontar os vícios, logo se
pensa na superioridade de quem ri. Propp relativiza a teoria da superioridade,
afirmando que nem todo riso cômico tem essa natureza. Pode haver um riso cômico
que se interessa por um instinto de justiça moral, triunfante, diante do mal rebaixado,
argumenta o filólogo. Bergson não alivia e veste o riso com uma natureza de
humilhação, ou seja, para ele, quem ri está na parte superior do alvo.

Quem questiona a dicotomia de Bergson, razão e emoção, e questiona a


positividade de Propp é a pesquisadora Maria Teresa Salgado, na tese A presença
do cômico na ficção angolana contemporânea: a tarefa de conciliar o inconciliável
(1997). Salgado relaciona o cômico e o poder na escrita ficcional de três autores
angolanos.

A professora indaga o enquadramento do cômico, observando que, se houver


algum entrave para essa forma expressiva, seria a razão em sua forma rígida, já que
“o riso sempre pendeu mais para o lado da desrazão, através de toda a sua história.”
(SALGADO, 1997, p. 21). A pesquisadora argumenta que o cômico não deveria ser
visto em termos absolutos e propõe que o fenômeno seja analisado
circunstancialmente, pois ele “parece ser fruto, ora do mais puro raciocínio, ora da
mais pura emoção, ou até mesmo de um misto dos dois.” (SALGADO, 1997, p. 21).
Observa-se que não se trata de harmonizar contrários ou omitir conflitos, mas de
pensar e problematizar o cômico, o riso, sinaliza Teresa Salgado.

Voltando a Bergson, é pertinente notar as faces do filósofo francês. O mesmo


Bergson que supervalorizou a tragédia, visto que nela há um prazer estético,
38

desinteressado, menos próximo da vida, por isso um prazer puro, superior, em


detrimento da comédia, mais próxima da vida do que da arte, assim menos
elaborada, foi diligente no destaque ao aspecto metamórfico do riso e na defesa de
que a vida exige tensão e elasticidade do corpo e do espírito, e a fantasia cômica
estaria para isso. (BERGSON, 2018, p. 44; 95-97).

No entanto, em que espelho ficou perdido21 o riso do ensaísta francês que


expressou tão bem as contradições desse corpo vivo que é o riso, racional ao seu
modo, metódico em sua loucura? Estaria o filósofo mergulhado no rigor científico?
Destino esperado, confessa Victor Gabriel Rodriguez, no livro O ensaio como tese
(2012), sobre o seu processo de escrita científica. A angústia da autoria, além de ser
inquietante na escrita literária, é também na escrita acadêmico-científica.

Parece que sempre estamos a escrever em língua-outra. “Mas o que é que eu


posso fazer?”, indaga, do Oceano Índico, Paulina Chiziane, em uma entrevista,
quando expõe sua angústia (ou sua ironia?) por escrever na língua portuguesa
(HAMILTON, 2018, p. 329). Ou, nas palavras de Laura Padilha, teórica das
literaturas africanas em língua portuguesa, que estuda a moderna ficção do Atlântico
Sul, sabe-se que há uma luta do escritor angolano contra a “palavra alheia”, de cujo
domínio ele procura se libertar. (PADILHA,1995, p. 189). Nessa busca de se
encontrar no processo de escrita, a autora Isabel Ferreira, também em uma
entrevista, recoloca a sua produção como momento de “prazer”, “gozo”, “êxtase”
(SILVA, 2014, p. 95).

E o riso, como ou onde fica nisso tudo? Deságua nessa ressaca oceânica do
pensamento, tentando recuperar o “prazer que se perdeu com o desenvolvimento da
crítica”. (ALBERTI, 2002, p. 20). Proponho, pois, um desjuízo no modo de ler,
analisar e escrever sobre as literaturas africanas em língua portuguesa escritas por
mulheres, num vai-e-vem, a partir das histórias tecidas pela moçambicana Paulina
Chiziane, em Niketche, e pela angolana Isabel Ferreira, em OGM. Nessas obras,
encontramos muitos “mambos”, problemas, solidão, mágoas, tristes memórias, mas
“apesar de tudo isso há bué de alegria e a energia é contagiante”. É contagiante
porque há cantigas, histórias, “bugigangas”, “peidos”, alergia (não troquei a palavra,
é alergia mesmo), discurso bíblico, virgens, “Virgens? Como as musas? Só no teu

21O eu lírico no poema “Retrato” de Cecília Meireles (2001), no último verso, pergunta: em que
espelho ficou perdida a minha face?
39

[de Deus] livro Sagrado”. (FERREIRA, 2008, p. 16, 35-37). Há também nudez
feminina que aterroriza os homens, um deles quase morreu por isso; há o caso da
moela, que faz rir e chorar (CHIZIANE, 2004) e o caso da cueca (FERREIRA, 2008).

3.1 o caso da moela e da cueca

Vamos primeiro ao caso daquela parte do tubo digestivo da galinha.

Olho para a minha mãe. Meu Deus, como ela chora. Será que o meu caso
inspira tanta tristeza?
- O que foi, mãe?
- A tua voz faz-me recordar a minha irmã, a falecida.
- Qual delas, mãe?
- A mais velha. Não a conheceste. Morreu antes do teu nascimento.
- Já me falaste dela. De que morreu ela?
- Por causa de uma moela de galinha.
- Ah?!
- A moela é para os maridos, para os genros, sabes disso.
Ela conta-me a história toda.
- Era domingo e a minha irmã preparou o jantar. Era galinha. Preparou a
moela cuidadosamente e guardou numa tigela. Veio o gato e comeu. O
marido regressou e perguntou: a moela? Ela explicou. Foi inútil. O homem
sentiu-se desrespeitado e espancou-a selvaticamente. Volta para a casa da
tua mãe para ser reeducada, disse ele. Já! Ela estava tão agoniada que
perdeu a noção do perigo e meteu-se em marcha na calada da noite. Eram
cerca de dez quilômetros até ao lar paterno. Caiu nas garras do leopardo
nas savanas distantes. Morreu na flor da idade por causa de uma
imbecilidade. Morreu ela e ficou o gato. (CHIZIANE, 2004, p. 99-100).

Dialogo com a proposta de Lola Xavier, professora da Universidade de


Coimbra, a partir do artigo João Melo: contos risíveis ou talvez não (2011), a fim de
pensar o trágico-risível na cena ora transcrita. A situação narrada por Rami não nos
faz rir, antes, nos faz “esboçar um sorriso”, porque a cena expõe o drama de
violência vivido pela mulher moçambicana. A cena é risível porque foi provocada
pela ironia, que nos impulsiona a olhar para os relacionamentos atrozes.

O “esboço de sorriso” é construído a partir de um elemento inusitado, um dos


encadeadores da morte da tia: a moela. A sua morte se revela destoante,
40

exagerada, diríamos. Mas, para entender melhor, analisemos as relações


metafóricas entre a galinha, a moela, o gato e o leopardo, relações essas que são
coroadas pelo jogo polissêmico proposto na frase final “Morreu ela e ficou o gato”.

Pode-se comparar a ave, boa para alimento, à mulher como um ínfimo objeto-
sexual, imagem reiterada na narrativa da escritora moçambicana; já a moela seria a
vagina. Segue o raciocínio: posteriormente à fala da mãe, Rami afirma indignada
que a sua tia morreu por causa de um “insignificante coletor de grão de areia”.
Comparativamente, a vagina é uma receptora dos grãos do homem, os seus
espermas. A reificação dessa parte íntima do corpo feminino aparece mais à frente
da narrativa, quando a personagem apresentará um diálogo com os vários tipos de
vagina, por exemplo, aquela que “cantaria cantiga de abandono. Da violência. De
violação.” (CHIZIANE, 2004, p. 185).

E o gato que comeu a moela? Além de seu sentido literal evidenciado em


primeiro plano, é possível que tenha ocorrido uma traição da tia. Se ocorreu, o gato
seria um suposto amante a aparecer na vida do casal, e traição de mulher não é
aceita, como sentenciou Tony, marido de Rami: “só as mulheres podem trair, os
homens são livres”, porque “a pureza é masculina, e o pecado é feminino”.
(CHIZIANE, 2004, p. 29). Mas o gato pode ser também metáfora do próprio marido
antes de ser contrariado em sua gula, agindo, posteriormente, como um leopardo, a
fera que, selvaticamente, se alimentou da “tia-ave”. Então, o leitor já sabe a (i)moral
(da) história, a violência em todas as instâncias.

Para rir bem, é preciso trabalhar toda a história da moela sob uma perspectiva
metafórica, esquecer que estamos trabalhando com a tradição moçambicana, e, só
depois, compreender que se estava “parcialmente” enganado, um advérbio para
aliviar nossa convicção ocidental. A história pode não ser apenas uma parábola
sobre violência contra a mulher, mas um fato cotidiano da própria agressividade da
tradição, no sul e no norte de Moçambique.

O valor conferido à moela é tão expressivo e sintomático que, na obra de


Chiziane, aparece, pelo menos, em outros cinco momentos: nas duas vezes em que
Rami conversa com a conselheira do amor; na exigência de uma tia de Tony, para
que o alimento seja preparado e servido e não comprado pronto; na história da
insubmissa princesa Vuyazi que “comia moelas e coxas” e “servia ao marido o que
41

lhe apetecia”; e em forma de prece, quando Rami retoma a história da sua tia.
(CHIZIANE, 2004, p. 157).

Leiamos o diálogo entre Rami e sua conselheira amorosa, que antecede


aquele relato da mãe:

Ela [a conselheira] insiste no princípio de agradar ao homem.


- Se queres um homem prenda-o na cozinha e na cama – diz ela. – Há
comidas masculinas e femininas. Na galinha, as mulheres comem as patas,
as asas e o pescoço. Aos homens servem-se as coxas de frangos. A moela.
- A moela de galinha? No norte também? – pergunto eu, morta de
curiosidade.
- No norte também. [...] No norte, a história da moela por vezes gera
conflitos conjugais, que terminam em violência e até divórcios.
- Não é possível! No sul também é assim. Essa tradição devia ser
combatida.
- Desafiar? Mudar? Para quê? Cá por mim devia ser mantida, porque é uma
boa isca. Um homem vence-se por sua gula. Se queres fazer uma magia de
amor, faça-a naquilo que eles mais gostam. A moela.
Sobe-me aos lábios um sorriso irônico. Em matéria de comida, não há norte
nem sul. Todos os homens são gulosos e inventam mitos só nas carnes,
peixes e ovos. Não há mitos de couves nem alfaces. Por vezes aparecem
mitos de feijão e de arroz, culturas que produzem dinheiro. Os homens são
todos iguais. Rimo-nos com gosto. (CHIZIANE, p. 43-44).

Novamente, o riso, presente na conversa entre mulheres, torna leve o diálogo


sobre relações conflituosas entre homens e mulheres tendo como foco um aspecto
da tradição moçambicana. Fiquemos por aqui com essa leveza para em seguida
desenvolvê-la, e prossigamos para o entendimento de tradição. Segundo Gerd
Bornheim, “tradição pode ser compreendida como o conjunto dos valores dentro dos
quais estamos estabelecidos”, valores que, ditos, escritos ou não ditos, passam de
geração em geração. Nesse sentido, a tradição ganha um “caráter de permanência”,
constituindo-se “princípio de determinação”. (BORNHEIM, 1987, p. 18-20).

A pesquisadora Terezinha Taborda Moreira, em sua obra O vão da voz: a


metamorfose do narrador na ficção moçambicana (2005), no capítulo “O discurso
didático da tradição”, expõe duas funções da inserção de textos didáticos presentes
em narrativas ficcionais moçambicanas: uma, explicar ou esclarecer termos ou
práticas da tradição ancestral, portanto, registrando e confirmando a verdade dessa
tradição; e a outra, criticar a recorrência aos valores tradicionais.
42

Vale lembrar que o caráter didático também proporciona um tom mais leve na
cena. Não nos enganemos, no entanto, com a simplicidade aparente do humor e do
didatismo. Por isso vamos agora articular o discurso didático da tradição ao riso
irônico e, então, percebermos as camadas de reflexão. A experiência da conselheira
e o caso relatado pela mãe, sob um tom moralizador para que a filha fosse uma
esposa obediente, funcionam como um argumento de autoridade para confirmar a
relevância de seguir a tradição em seus pormenores, no caso, o costume de
“obedecer à risca a todos os caprichos dos homens”, pois, segundo a mãe, tal
servidão é a “única estratégia da nossa existência”. (CHIZIANE, 2004, p. 101).
Assim, mulher que não oferece a moela é culpada, podendo ser punida com divórcio
ou morte. Até aqui, nota-se uma tensão, uma experiência de opressão e violência na
vida das mulheres.

Por outro lado, a forma como se enunciam crenças, costumes e valores


tradicionais pode manifestar “uma maneira invertida de evocar a tradição”.
(MOREIRA, 2005, p. 125). No caso da moela, a inversão dos costumes se efetua
pelo riso irônico. À proporção da gula dos homens, que passa pela degustação de
carne, ovos e peixes, e nunca por folhas verdes, Rami e a conselheira riem “com
gosto”. Essa expressão aparece depois de a narradora-personagem afirmar que os
“homens são todos iguais”. Poderíamos encerrar na experiência gozosa do riso das
duas simplesmente pela cumplicidade feminina.

Mas na ânsia de desejar um sentido outro, pois o texto ficcional nos permite
esse exercício, com seus ditos e não ditos, dentro do que a materialidade linguística
nos permite, destaco o alvo daquele riso saboroso: os homens. Mas o que há de
risível neles? Serem todos iguais em sua gula e inventar o mesmo mito, a mesma
narrativa: serem servidos sempre. De acordo com Henri Bergson (2018), o que
provoca o riso é a rigidez, o automatismo, e não a flexibilidade, a subjetividade, a
particularidade do sujeito. Dito de outra forma, rimos do sujeito que, por agir sempre
no automático, fazendo as mesmas coisas, “em estado de permanência”,
recuperando Gerd Bornheim, é surpreendido com alguma tensão da vida. O riso,
continua Bergson, vem para corrigir o corpo, o pensamento teso.

É claro que, segundo Linda Hutcheon (2000), hoje muitos teóricos suspeitam
desse caráter retificador do riso, uma vez paradoxal, pois quem o usa como corretor
ocupa uma posição de autoridade e verdade, caindo na própria armadilha que
43

criticara. No caso, Hutcheon faz referência ao riso irônico, e Bergson refere-se ao


riso cômico de maneira geral, embora seus exemplos focalizem a comédia.

A pesquisadora canadense questiona a ala de estudiosos que tentam


neutralizar a ironia, no caso, erguida pelo new criticism americano. A perspectiva de
um tropo com arestas e que deixa as emoções à flor da pele é assumida por
Hutcheon, porque, em sua exposição, a ironia envolve uma atitude avaliadora, e é
nesse momento que a dimensão afetiva se insere:

A ironia sempre tem uma aresta; ela às vezes tem um “ferrão”


(Gutwirth,1993: 144). Em outras palavras, este estudo argumenta que existe
uma “carga” afetiva na ironia que não pode ser ignorada e que não pode ser
separada de sua política de uso se ela for dar conta da gama de respostas
emocionais (de raiva a deleite) e dos vários graus de motivação e
proximidade (de distanciamento desinteressado a engajamento
apaixonado). Às vezes a ironia pode mesmo ser interpretada como uma
retirada de afeto; às vezes, entretanto, há um engajamento deliberado de
emoção. (HUTCHEON, 2000, p. 33).

Hutcheon “salta sobre” o erigido conjunto de valores implícitos no discurso do


new criticism e sobre a tradição de colocar a ironia tão somente no eixo vertical de
poder, como uma figura aristocrática. A expressão “salta sobre” compõe um dos
nove conceitos de ironia desenvolvidos pela teórica, como a “ironia assaltante”, cuja
raiz latina é assilire, que quer dizer “saltar sobre”, uma figura “atacante”, “uma
invectiva corrosiva e um ataque destrutivo”. (HUTCHEON, 2000, p. 83). É uma
função corretiva da ironia satírica, em que há um conjunto de valores que se
pretende alcançar ou atacar.

Mas se a gula dos homens gera conflitos conjugais, violência, como a própria
conselheira amorosa expôs, então o riso não deveria vir, muito menos “com gosto”,
expressão indicadora de intenso riso, de um riso com vontade. O mais adequado, se
observada a realidade trágica, seria um “esboço de sorriso”, na perspectiva de Lola
Xavier.

Por outro lado, “esboço”, um delineamento inicial de sorriso, é diferente do


riso expansivo das personagens. Então, buscamos em Jablonski e Rangé (1984), no
artigo “O humor é só-riso?”, o riso de medo. Essa reação, segundo os psicólogos, é
uma forma que temos para lidar com situações diante das quais nos sentimos
fragilizados. No caso do humor, a ação é ofensiva, pois representa “um esforço ativo
44

de atacar um objeto”, fazendo-nos sentir superiores. O humor “recria”, portanto, a


“percepção de controle, de domínio sobre os eventos, e esse estado é sempre
inversamente relacionado com a tensão”, mas, ao mesmo tempo, revela nossa
fragilidade. (JABLONSKI; RANGÉ, 1984, p. 137). Percebemos, pelo viés proposto
pelos pesquisadores, uma articulação, em certo ponto, com a ironia ofensiva de
Hutcheon. Seguindo essa instrumentalização do riso, servindo como um dispositivo
de defesa, acrescentamos a afirmação de Sigmund Freud, para quem o humor atua
como um “substitutivo” de afetos dolorosos, já que o humor “coloca-se no lugar
deles” (FREUD, 1996a, p. 222).

Nessas exposições sobre qual riso definiria o “rimos com gosto”, se o “esboço
de sorriso”, de Lola Xavier, que enfatiza o aspecto trágico, se “a ironia atacante”, de
Hutcheon, se o “riso de medo”, ou enfrentamento do medo ou de outros afetos
dolorosos, em Jablonski e Rangé, Freud, optamos pelo riso que está se preparando
para o salto, um bote. Observamos que aquele riso saboroso pode ser uma
piscadela da narradora-personagem, anunciando ao leitor fatos vindouros. Veremos
que se trata de uma piscadela de quem arma um ataque, um ataque pela escrita
literária, porque já não se suportam acúmulos de opressão.

Descobriremos no texto ficcional moçambicano e angolano que a narrativa


pariforme de um discurso patriarcal inconsistente e opressor tem prazo. Ela será
sustentada até Tony ser colocado à prova. Então, o leitor conhecerá a outra face do
marido polígamo ao seu modo, quando são descobertas as incongruências de seu
discurso, conforme a narradora-protagonista nos revela:

[Tony é] um polígamo do século vinte um. Que vai morrer cedo, na estrada
entre uma casa e outra, sempre a correr para cá e para lá na gestão dos
seus amores. Que come alimentos preparados por várias mãos e acabará
envenenado sem nunca conhecer aqueles que o matam. [...] Foi
maravilhoso conhecer um Tony frouxo, um Tony louco, que chora como
uma criança e pede socorro ao conselho de família assustado por um
papão. (CHIZIANE, 2004, p. 159-160).

A aclamada potência masculina também será questionada, com humor, na


história confidente de um Kafrique “violado”, em OGM, como ele mesmo segreda ao
amigo. O fato aconteceu porque teve medo de negar sexo a uma jovem garota,
45

Mavi, e de ela “afamar [sua] virilidade”. (FERREIRA, 2008, p. 219, 222). No capítulo
quatro desenvolveremos as duas personagens masculinas.

Vamos ao episódio das cuecas para observar novamente que os atos mais
corriqueiros segredam o domínio do homem sobre a mulher. Em OGM, Kiluva, na
casa da amiga Mavinda Massogi, relata peripécias de um marido-patrão, na época
em que ele era vivo. Hunende, de tanto pedir a Kiluva para fazer as coisas para e
por ele, certa vez, numa viagem, se descuidou e levou alguns pertences íntimos da
esposa. Segue a conversa entre as amigas:

- Quando viajasse era incapaz de preparar fosse o que fosse. Só


enumerava as coisas.
Um dia, numa viagem repentina, tanta era a enumeração das coisas que
desejava que no descuido, levou o meu sutiã e as minha cuecas, em vez
das peúgas. Nem imaginas! [...].
- Numa outra viagem também aconteceu quase o mesmo. Durante sete dias
de viagem usou as mesmas ceroulas, porque tinha esquecido a maleta
íntima no avião. [...].
- Quer dizer que deixaste tudo preparado? E ele não deu conta do recado!
- Eu julgava que me juntava a um homem! Que havia de me libertar da
vigilância do meu pai e das recomendações dos tios. Mas infelizmente não
foi isso que aconteceu. Durante anos tive um patrão que dormia ao meu
lado. [...]
- Patrão? Marido é nosso dono e senhor. É assim que nos educam as
nossas tias e avós. Mas, temos de mudar esta mentalidade. (FERREIRA,
2008, p. 191-192).

A cena contada é simples, poderia ser considerada um cômico acidental,


parecido com o exemplo de Bergson (2018), do homem que tropeça na rua pela
distração. É acidental, na perspectiva bergsoniana, porque permanece exterior à
pessoa, pelo acaso das circunstâncias. O que se espera do marido ou de qualquer
outra pessoa é atentar para a preparação de coisas básicas, íntimas, que estão ao
alcance de todos. Só isso.

Mas a cena cômica literária não é gratuita porque vem acompanhada de


desabafos que tensionam a narrativa cotidiana: “Eu julgava que me juntava a um
homem!”, mas “infelizmente não foi isso que aconteceu”, “tive um patrão que dormia
ao meu lado”. A opressão passa pelo pai e tios de Kiluva, passa também pelas tias e
avós. Novamente, tem-se a obstinada narrativa de o homem exigir uma servidão da
mulher e ainda ser amparado pela tradição, pelos ensinamentos geracionais.
46

(BOURDIEU, 2007, p. 102). Inocência Mata é contundente em sua afirmação sobre


os responsáveis pelas tradições que perpetuam o estatuto subalterno da mulher
africana, ao destacar as “guardiães” tanto quanto os “guardiões” nessa
responsabilidade. (MATA, 2018, p. 437).

Tal qual em Niketche, a cumplicidade feminina aparece naquele trecho de


OGM e é envolvida pelo riso. Primeiro, o fato inusitado é apresentado ao leitor – o
marido usar cuecas, referência às calcinhas de Kiluva –, depois a risibilidade da
cena é acentuada pela exclamação de espanto da amiga Mavinda Massogi: “E ele
não deu conta do recado!”. Satiriza-se a masculinidade hegemônica, desmonta-se a
figura do “senhor”, “dono”, ao mesmo tempo em que isso é feito numa conversa
entre amigas.

Jablonski e Rangé apresentam funções do riso no plano social ou grupal:

As emoções precisam ser comunicadas. Assim como a expressão da raiva


pode evitar agressões que implicam injúrias fatais, a expressão humorística
parece servir ao propósito social de criar um certo senso de comunalidade,
de aproximação entre pessoas, o que contribui para fortalecer o tecido
social. (JABLONSKI; RANGÉ, 1984, p. 137).

Mais à frente da narrativa angolana, o narrador afirma que Mavinda Massogi


fazia de sua casa “uma espécie de confessionário, onde todas iam estourar as
mágoas. (...) Riam-se das ingenuidades e dos fracassos dos companheiros
(FERREIRA, 2008, p. 250-251). Porém não nos limitemos a pensar que o
companheirismo, proporcionado pelo riso cúmplice, exclua confrontos entre as
mulheres e que determinadas rusgas não sejam importantes para o amadurecimento
do grupo. Na perspectiva de bell hooks, especialista em crítica da cultura, há
diferença entre solidariedade e apoio. Para ela:

A experiência da solidariedade requer comunhão de interesses, crenças e


objetivos em torno dos quais se possa formar uma aliança, uma irmandade.
O apoio pode ser ocasional. Ele pode ser oferecido e retirado com a mesma
facilidade. A solidariedade requer um compromisso firme, contínuo. (hooks,
2019, p. 108).
47

A escritora estadunidense acrescenta que, para alcançar essa fraternidade,


as mulheres precisam saber trabalhar em situações hostis. hooks é incisiva em
afirmar que essa postura de evitar o confronto direto, o debate, para não ser
destruída ou vitimada, é um dogma sexista. (hooks, 2019, p. 107). O texto é da
década de 1980, mas a sororidade feminina está sempre em pauta nos escritos de
bell hooks, conforme reincide no livro O feminismo é para todo mundo (2018),
publicado nos anos 2000. hooks destaca o quanto nossa competição ou rixas sem
fim de crescimento coletivo é resultado do pensamento sexista.

Contra a ofensiva do discurso patriarcalista existente na tradição moçambicana


e angolana, insurge-se uma escrita mais contundente. A investida das escritoras nas
narrativas é uma característica das obras pós-coloniais, contexto em que surgem
questionamentos em torno das questões de identidade, da intimidade do indivíduo,
das tradições, dos costumes. Ou seja, na medida em que os estados nacionais
africanos vinham se consolidando, essas temáticas e procedimentos de como tratá-
las foram surgindo. (LUGARINHO, 2015; RAINHO; SILVA, 2018).

Outra investida das autoras em estudo é apresentar o impensável, o indizível


– o homem afrouxar-se, amedrontar-se, agir tolamente – por meio de uma escrita
irônica, humorística, sarcástica. Por vezes, diante do excesso da gula, do mesmo
mito, da mesma história de senhorio, da mesma prática milenar de opressão, outra
experiência orgânica, em seu excesso, precisa vir à tona, porque pode ser um bom
instrumento estratégico: o riso e seus variados tons, suas formas expressivas. O
sorriso temeroso e encabulado ensinado às mulheres já não se sustenta diante da
tirania dessas narrativas.

E para articular com a proposta de um riso que sobeja, escolho pensá-lo


como um corpo-explosão, que excede, mas sem prologar-se, a partir de François
Roustang:

Por que o riso não pode durar? Porque ele é uma explosão, responde a
língua. Uma explosão não poderia prolongar-se, a menos que, de tanto rir,
cheguemos a morrer de rir. [...]. Mas por que o riso não é senão uma
explosão? O riso, com efeito, explode como uma bomba que explode, como
um vidro que se quebra, como uma luz que brilha, como uma voz que
rompe o silêncio ou o discurso. [...] Desde que a explosão aconteceu, a
realidade retorna ao peso de sua história. (ROUSTANG, 1996, p. 38).
48

Como ato eruptivo, o riso se afigura à liberdade e à experiência catártica. Ele


se origina no mais íntimo, nas entranhas, e irrompe em um excesso de energia
psíquica, em uma cena violenta, expelindo magmas obscenos, resíduos, atingindo
seu alvo ou até quem, a princípio, não o seria, e outros fragmentos de realidade
retornam ao peso de sua história. A realidade a que Roustang se refere é a da
finitude de nossa existência.

Diante do riso comedido, diante das penalidades cotidianas por ser mulher,
como vimos nos casos da moela e da cueca, narrativas como as de Niketche e
OGM mostram que já não se suportam os tropos discretos e aristocráticos do
falocentrismo, por isso o ato eruptivo do riso entra em cena. O efeito das arestas
desse tipo de riso faz esses tropos temerem-no porque os expõe, deixa-os à flor da
pele, inclusive, “para o desespero da maior parte do discurso crítico” que defende
um tropo sóbrio, provocou Hutcheon (2000, p. 63).

Se pesquisadores acostumados/acomodados à seriedade no discurso crítico


ignoram a incongruência e a afetação moral e emotiva da ironia, imagina o que
disseram ou ainda dizem sobre o riso, ação escandalosa? Embora a obra de Linda
Hutcheon seja fundamentada na ironia, assenhoro-me de suas metáforas sob a
consciência das modulações que o objeto do presente estudo – o riso – carrega. Ou
seja, nós não deveríamos nos deixar ofuscar pelos recursos que instrumentalizam o
riso ou o seu esboço – ironia, humor, cômico –, impedindo-nos de perceber a
pluralidade de seus tons, intenções e reverberações.

Dito de outra forma, se observarmos certas obras, por exemplo, O riso:


ensaio sobre o significado do cômico, 188922, de Bergson; O valor do riso e outros
ensaios, 1905, de Virgínia Woolf; História do riso e do escárnio, 2000, Riso e
melancolia, 2007, de Sérgio Rouanet, cujos títulos carregam a palavra “riso”,
veremos nesses textos modulações irônicas, se os analisarmos sob o arguto estudo
de Linda Hutcheon.

É possível que o saber envolto na áurea da lua e do conhaque do sujeito


gauche drummondiano23 tenha receios do riso pungente do eu lírico de “Licença

22Optei, neste momento, por colocar as datas da primeira publicação de cada obra dos autores, para
um ligeiro parâmetro temporal.
23Faz-se referência novamente ao clássico Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade
(ANDRADE, 2013, p. 1).
49

Poética” de Adélia Prado (2003), pois o eu lírico feminino ali não se intimida e afirma
o uso de artimanhas para se apropriar de textos do outro sem precisar mentir.
Talvez “esse saber envolto...” tenha medo da bebedeira de Rami, que quanto mais
bebe, mais lúcida fica:

Tento adormecer, mas o sono não vem. Volto e bebo uma boa dose, para
esquecer. O meu caso é estranho. Quanto mais bebo, mais lúcida fico, mais
recordo. De olhos fechados vejo uma multidão de rostos espantados,
vaiando o pobre Tony desesperado, de rabo entre as pernas, como um cão
vadio. (CHIZIANE, 2004, p. 111).

Talvez “esse saber envolto...” tenha medo de, num relampejo, descobrir que o
seu saber está a serviço da arbitrariedade, da compressão; talvez tenha pavor de
ver e admitir outras formas de pensar e construir o conhecimento há muito
acaçapadas: temor de inflexionar seus ângulos, parâmetros, diante de uma cena
literária que permita “outro sentir, outro saber e outro saber-sentir” (MATA, 2018, p.
430, grifos da autora) e, por que não, um saber-rir. E assim falou Virgínia Woolf
sobre o riso:

As mulheres e as crianças, então, são os principais ministros do espírito


cômico, porque nem seus olhos foram toldados pela erudição, nem seu
cérebro obstruído pelas teorias dos livros, e assim, homens e coisas
preservam ainda os fortes contornos originais. Todas as excrescências
horrendas que invadiram nossa vida moderna, as pompas e convenções e
solenidades maçantes, nada temem tanto quanto o brilho de um riso que,
como o relâmpago, as faz tremer e deixa os ossos expostos. É porque o
riso das crianças tem essa característica que elas são temidas por pessoas
que estão conscientes de afetações e irrealidades; e é provavelmente pela
mesma razão que as mulheres são vistas com tal desfavor nas profissões
liberais. O perigo é que elas possam rir, como a criança em Hans Andersen
que disse que o rei estava nu, quando os mais velhos adoravam a
esplêndida indumentária que não existia. (WOOLF, 2014, p. 37-38).

Encerro esta seção retomando alguns pontos teóricos. Teresa Salgado


analisou o cômico circunstancialmente, no tempo e no espaço. Lola Xavier, como
Teresa Salgado, reconhece o desafio em diferenciar os conceitos de humor, cômico,
riso, ou ironia, sátira, sarcasmo; porém se incomoda em adotar o cômico porque o
considera um recurso restrito ao campo da linguagem não verbal, diferentemente da
ironia, que trabalha a linguagem verbal. Por isso adota a ironia, pois esta cria uma
50

tensão e leva o leitor a esboçar não uma gargalhada, porque, segundo Xavier, a
gargalhada é gratuita, e sim um sorriso, como imagem reveladora do ato reflexivo.
Esse esboço parece servir de tempo necessário para o observador pensar antes de
rir gratuitamente, o que antevê o efeito do riso colocado por Propp, e assim não
cometer a insensibilidade do riso, na perspectiva de Bergson.

Por outro ângulo, Linda Hutcheon concebe a ironia como “uma estratégia
discursiva que opera no nível da linguagem (verbal) ou da forma (musical, visual,
textual)”. (HUTCHEON, 2000, p. 27). Beth Brait, em seu livro Ironia em perspectiva
polifônica (2008), também defenderá a ironia como processo discursivo, passível de
ser observado em diferentes manifestações de linguagem, inclusive a não verbal.
Jane Tutikian (2011) também sinaliza o labirinto de se estudar o riso ou outros
significantes, e por essa razão, em artigo sobre o escritor angolano João Melo, o
mesmo estudado por Xavier, escolherá falar de formas do cômico para desenvolver
o que chamou de o riso como estratégia estético-ideológica.

No entremeio às tessituras teóricas e literaturas africanas, vou cosendo minha


escrita, e, assim, absorvo os sentidos de autoria feminina em Moçambique e
Angola. Absorvo-os para continuar a jornada. Vamos para a última seção.

3.2 no espaço da escrita

[Deus] Não fale da maçã, que cá não existe. Fale antes da banana, que faz
mais sentido nesta história. Ou então do caju, se a banana não dá.
(CHIZIANE, 2004, p. 94).

[Deus] Morreu sem castigar o meu homem. Queria tanto, que Ele desse um
castigo. Mirrar a pila dele de modo a nunca mais erguer! [...] Grito bem alto
no meu interior: volte mirrado! E depois ... nem ela, nem tu, nem eu...
(FERREIRA, 2008, p. 24-25).

Porque se eu conto a história, eu controlo a versão. Porque se eu conto a


história, eu posso fazer você rir, e eu prefiro que você ria do que tenha pena
de mim. Porque se eu conto a história, ela não dói tanto. Porque se eu
conto a história, eu posso seguir em frente. (EPHRON apud SILVA, Alba,
2015).
51

A respeito do título do presente capítulo “Rindo da pena”, exponho três


sentidos. O primeiro é o sentido da pena como condenação. Chiziane e Ferreira
riem, contestam duplamente a punição histórica ao silêncio imposto à mulher pelo
patriarcado. O segundo sentido, ligado ao primeiro, é da pena como símbolo de
escrita e sugestivo símbolo fálico. As autoras, por meio de suas obras, gargalham da
visão androcêntrica, que ainda insiste em organizar hierarquicamente quem pode
ocupar a função de escritor. No terceiro sentido, o riso decorrente de alguma cena
literária pode, a princípio, provocar no leitor um sentimento de piedade, dó em
relação às personagens. Entretanto, a epígrafe da escritora Nora Ephron nos
direciona para o caminho do riso. À medida que as exposições forem se
desenvolvendo, esses sentidos serão exemplificados.

Começo citando uma declaração de Paulina Chiziane sobre a recepção de


sua escrita por parte da sociedade moçambicana, com destaque para os homens. O
texto foi proferido em 1992, por solicitação da UNESCO, em face dos preparativos
da Conferência Internacional sobre a Mulher, Paz e Desenvolvimento, realizada em
Pequim, em 1995:

Como é que a sociedade recebeu a notícia de que eu estava a escrever o


meu livro? Primeiro com cepticismo e muito desprezo da parte dos homens.
Muitas pessoas acreditavam e ainda acreditam que a mulher não é capaz
de escrever mais do que poeminhas de amor e cantigas de embalar.
Consideraram-me uma mulher frustrada, desesperada, destituída de razão.
Foi um momento terrível para mim. Mas, por outro lado, estas atitudes
tiveram um efeito positivo porque forçaram-me a demonstrar pela prática
que as mulheres podem escrever e escrever bem. (CHIZIANE, 2013b, p.
203).

Não basta a mulher conquistar algum espaço na escrita, é preciso “escrever


bem” para que possa ser legitimada, como expressou Chiziane. Mas o que é
“escrever bem”? Essa é uma discussão que não cabe à tese, mas destaco o peso
do advérbio “bem”, pois as mulheres, como as minorias em direito, estão sempre
nesse lugar de ter que provar ao máximo a capacidade de executar algo. O risco de
estarem nesse lugar é a reiteração das velhas vestimentas que o patriarcado nos
colocou: as vestes da perfeição, da heroína, da salvadora. Por esse risco, ou perigo,
é que escolhi pensar o/no riso, para que nós, mulheres, possamos continuar a riscar,
52

arranhar os modelos narrativos e interpretativos, o que pressupõe continuarmos


nesse processo de arriscar, tentar novas inscrições na forma de pensar e escrever.

O primeiro romance de Chiziane foi publicado em 1990, Balada de amor ao


vento. Com isso passou a ser a primeira mulher moçambicana autora de um
romance. Mas a escritora, obstinadamente, recusa o título de romancista e se
posiciona como contadora de histórias, reivindicando, pois, as suas raízes numa
tradição de expressão narrativa oral africana, no caso, moçambicana. Chiziane, no
entanto, no discurso de 1992, anteriormente citado, usa a palavra “escritora”, uma
boa estratégia para evitar o termo “romancista”:

Como me tornei escritora? É algo que não sei responder. Apenas posso
dizer que a escrita escolheu-me, da mesma forma que a natureza me tornou
mulher. Posso confirmar que a minha vivência também contribuiu para
conduzir-me a este caminho. As minhas memórias mais remotas são das
noites frias à volta da lareira, ouvindo histórias da avó materna. Nas
histórias onde havia mulheres, elas eram de dois tipos: uma com boas
qualidades, bondosa, submissa, obediente, não feiticeira. Outra era má,
feiticeira, rebelde, desobediente, preguiçosa. A primeira era recompensada
com um casamento feliz e cheio de filhos; a última era repudiada pelo
marido, ou ficava estéril e solteirona.
Acompanhava todos os passos da minha mãe. No rio, enquanto me
banhava, a minha mãe cantava e lavava roupas e mágoas. As outras
mulheres faziam o coro. Estas cantigas umas vezes eram suspiros e outras
murmúrios de angústia. Já em casa ouvia as cantigas de pilar milho e as de
pilar amendoim. Eram todas tristes. O que consegui observar é que os
homens ouviam-nas com total indiferença. Em momento nenhum da minha
vida me recordo de ter ouvido, da boca de um rapaz ou de um homem,
estas cantigas de mulher. (CHIZIANE, 2013b, p. 201).

Fato é que o termo “escritora” aparece numa busca por responder a um


questionamento. Chiziane, porém, mantém a ênfase na tradição oral. O texto
proferido revela as primeiras influências para o seu processo de escrita.
Recuperadas pela memória, advindas das histórias contadas pela avó materna e de
cantigas entoadas pela mãe e outras mulheres, essas referências femininas, a
princípio, questionariam as narrativas dicotômicas sobre as mulheres. Entretanto,
naquelas histórias, separava-se a mulher “com boas qualidades, submissa, não
feiticeira”, da mulher “má, rebelde, preguiçosa”. Além da dicotomia, ouviam-se
“cantigas todas tristes”, “cantigas de mulher”, que não se ouviam da boca de um
homem. É possível pensar que tais canções sejam resultantes de um
53

atravessamento cultural e de violência no sul de Moçambique, terra da escritora.


Essa região é evidenciada em Niketche. Segundo Cândido Silva:

No sul, as mulheres rongas e tsongas foram vítimas de um atravessamento


cultural maior em razão da colonização portuguesa que, intensamente,
condicionou o processo de adaptação das culturas locais à cultura europeia.
Essas mulheres do sul moçambicano, subjugadas ao modelo paradigmático
judaico-cristão, sofreram um processo repressor mais acentuado, articulado
pelo sistema patriarcal. (SILVA, 2009, p. 60).

Além da colonização e influência cultural portuguesa, de modelo judaico-


cristão, a herança muçulmana também se instalou em Moçambique. De acordo com
Robson Dutra, o xeque islâmico Muz Al Bique, que chegou ao país antes dos
portugueses, fixou-se no sul, influenciando nas “relações de parentesco
patrilineares24 que se opõem às matrilineares encontradas no norte.” (DUTRA, 2018,
p. 311). Esses atravessamentos apontam uma longa sedimentação cultural de
pressupostos patriarcais de preservação do masculino.

Uma dessas formas de preservação se concretiza na poligamia, prática


discutida nas prosas ficcionais aqui analisadas. Numa ótica africana, habituada
nesse sistema como legado de uma cultura ancestral, afigura-se bem mais difícil
repudiá-la sem concessões, afirma Sérgio Sousa (2018), até por mulheres que
participaram da luta armada, acrescenta Isabel Casimiro (2014). Essas mulheres,
diga-se, foram ensinadas ao modelo mulher-cuidadoras-assistencialistas, assunto
esse do capítulo quatro. Na perspectiva de Isabel Ferreira, desvincular-se de valores
culturais não é uma ação que se realiza repentinamente:

Nós, as mulheres africanas, temos um olhar diferente em relação ao


adultério ou a infidelidade que nos torna diferentes de outras mulheres… E
só por isso, a nossa luta tem uma esteira de vários contornos…
Historicamente parece que aceitamos a poligamia…E quantas mulheres

24 Enquanto no sul e no centro de Moçambique (Províncias de Maputo, Gaza, Inhambane, Tete,


Sofala, Manica e Zambézia) a descendência é feita por via paterna através do pagamento do lobolo;
na região norte (Províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa), a descendência é feita por via
materna e, neste contexto, não se realiza o lobolo como nas outras duas regiões, embora existam
práticas semelhantes com outros nomes. É importante ressaltar que tanto na descendência
matrilinear quanto na patrilinear, as normas de sucessão e herança preveem que a terra e os outros
bens materiais permaneçam dentro da linhagem de referência da sucessão. (SILVA, 2019, p. 50).
Outra indicação para entender a relação matrilinear: “Representações da mãe-África na literatura
angolana”, artigo de Donizeth Santos (2008).
54

não convivem com as suas rivais com uma frieza cordial, e tem
conhecimento que ontem o seu homem dormiu na casa da fulana de tal.
Compreender Angola neste campo é um estudo que deve ser feito no
contexto histórico-cultural dos nossos ancestrais. Claro que não defendo a
poligamia, porque o homem quer ter, por capricho, mais do que uma
mulher, mas há que ter em conta em que contexto cultural, nós, os
angolanos, estamos inseridos. Nós temos história de poligamia muito forte
no nosso país. E não se apaga a história cultural de um povo de um
momento para o outro. (SILVA, 2014, p. 98).

Paulina Chiziane, em uma entrevista, faz concessão à poligamia desde que


essa prática se diferencie de um adultério, uma poligamia oculta, define a escritora.
Para isso, a poligamia, como sistema, deveria se enquadrar num regime de
transparência, como afirma:

Eu prefiro aquele indivíduo que me mostra a sua verdadeira face do que


aquele que me esconde. Porque é de fato o que se diz: a poligamia mudou
de vestido. Porque esses homens todos têm quatro, cinco, dez mulheres em
qualquer canto por aí. Têm filhos com duas, três, quatro mulheres todas
juntas. São filhos que, porque crescem numa sociedade de monogamia,
não se podem reconhecer. São crianças fruto de uma situação como a que
vivemos hoje, uma situação de adultério. Mas numa sociedade de poligamia
já não acontece isso, as coisas são mais abertas. A situação de adultério
que vivemos hoje é muito pior do que a poligamia. (CHIZIANE apud
CHABAL, 1994, p. 299)

A socióloga Sofia Aboim no artigo “Masculinidades na encruzilhada” (2008),


no qual discute como os homens estão (re)construindo as suas identidades diante
de mudanças na sociedade de Maputo, destaca a codificação tradicional nas
relações entre gêneros para configurar a poligamia, não bastando a existência de
um homem com várias mulheres para se enquadrar nessa situação tradicional. Essa
codificação pressupõe, por exemplo, uma esposa oficial e a capacidade de o homem
sustentar mulheres e filhos.

No entanto, em tempos de mudanças nessas sociedades, não só as relações


de gênero abalarão a perda de poder masculino. Mas as alterações
socioeconômicas advindas do neoliberalismo provocarão a perda do poderio
econômico masculino, seja pelo desemprego ou subemprego. Nesse sentido, os
homens vão tentar recuperar o poder simbólico do corpo por meio de uma
sexualidade mais “liberta”, sublinha Aboim (2008), que consiste em ter, pelo menos,
duas mulheres como elemento de legitimação nas relações de pares.
55

Esse é um dos contextos de dominação masculina que vai influenciar na


recepção dos textos dessas escritoras, como vimos no primeiro depoimento de
Chiziane sobre a desconfiança do público e, principalmente, dos homens. A questão
da língua é outro ponto dessa dominação, porque a língua em que as autoras
escrevem é a língua portuguesa, trazida pelo colonizador. Em uma entrevista,
Chiziane revela o seu desinteresse em aprender esse padrão de escrita, apesar de
sua aprendizagem escolar. Primeiro anuncia o dilema, depois parece relaxar,
quando afirma que não escreve em português, mas em “uma coisa qualquer”:

Para mim, a utilização da língua portuguesa na escrita é um grande dilema.


Na própria Balada há uma série de termos que eu uso, que eu não sei se
deviam ficar de uma maneira ou outra. Por exemplo, quando se fala de
amor: bem, em português, porque eu ouvi – os meus namorados, pelo
menos –, diziam: ‘eu amo-te’, enfim, com uma voz mais bonita ou menos
bonita, mas é nesses termos. Na minha aldeia, a declaração de amor é
diferente, é ‘Na kurandza, na kurandza, na kurandza’, mil vezes ... Então, há
uma frase que eu ponho ali: eu amo-te, amo-te, amo-te mil vezes amo-te.
Quer dizer, isso é, mais ou menos, uma tradução daquilo que o povo sente,
daquilo que o povo diz. E, ao fim e ao cabo, está escrito em português, mas
não é português, não é nada, é uma coisa qualquer. (HAMILTON, 2018, p.
328).

As obras de Isabel Ferreira ainda são pouco difundidas em termos de estudos


literários. A dificuldade de publicação e acesso às obras torna-se um empecilho para
a divulgação de sua autoria. Sobre o mercado editorial, a autora destaca
dificuldades:

Na minha visão pessoal há muitas barreiras! Continua haver discriminação.


É impressionante, que se não forçarmos a porta, não nos é permitida a
entrada no mundo editorial… Mas, como guerreiras, que somos
conseguimos colocar os nossos livros, na mão do público, que vai nos
respeitando e aceitando o nosso grito literário! (SILVA, Gislene, 2015, p.
263).

Ferreira tem formação na área de dramaturgia e direito. Já compôs letras que


foram interpretadas por alguns nomes famosos da música angolana. A autora
publicou na poesia Laços de Amor (1995), Caminhos Ledos (1996), Nirvana (2004),
À margem das palavras Nuas (2006); na prosa, o livro de contos Fernando D’aqui
56

(2005) e a narrativa ficcional estudada na presente tese, O guardador de memórias,


publicado em 2008.25

Sobre influências na escrita, a autora é questionada, em uma entrevista,


sobre a alcunha Florbela Espanca angolana, adotada por alguns críticos. A resposta
de Ferreira se inicia com a negação: “Eu particularmente não acho! Eu sou a Isabel
Ferreira. Que é angolana de gema” (SILVA, 2014, p. 94). Uma das diferenças,
segundo Ferreira, reside no aspecto social e histórico de muito sofrimento que a
angolana vivenciou. Além disso, a poetisa portuguesa apresentava, segundo a
autora angolana, uma “poesia dolorida e depressiva”, enquanto as suas produções
exaltam a vida. Depois Ferreira admite as semelhanças com a poetisa portuguesa,
mas isso se deu nos primeiros escritos poéticos, já que, no processo de
amadurecimento, afirma, ela vai se distanciando de Florbela Espanca. (SILVA,
2014).

Na entrevista feita por Franciane Silva e em outra concedida a Gislene Silva,


a autora cita os escritores de sua formação leitora e literária: Ana de Santana
(angolana), Amélia Dalomba (angolana), Cora Coralina, Sophia de Mello Breyner,
Cecília Meirelles, Miriam Alves, Rui Belo, Milan Kundera, Nadine Gordimer (escritora
sul-africana), Jorge Amado, Flaubert, Jorge Luís Borges, Toni Morrison, Wole
Soyinka (nigeriano), Machado de Assis, José de Alencar, Uanhenga Xitu, Agostinho
Neto (angolano), Harold Robbins, Walt Whitman, Proust, Homero, Sêneca”. (SILVA,
2014; SILVA, Gislene, 2015).

Nota-se que a influência vem majoritariamente dos homens, mas a citação de


autoras mulheres mostra um caminho de construção de um sistema de literatura
menos desigual. Isso em termos genéricos, porque no processo comparativo entre
escritores africanos e ocidentais é outro impasse, além da tensão entre escritoras e
escritores homens africanos. Este último processo comparativo é o que temos
exposto nesta seção, por isso apresento, a seguir, algumas afirmações de teóricos
da área de literaturas africanas que têm discutido o tema.

A teórica são-tomense Inocência Mata (2018) destaca a necessidade de um


olhar mais cuidadoso sobre as autoras africanas. Embora a intelectual acentue o

25 Informações extraídas de uma entrevista, presente na dissertação “Armadilhas do corpo: uma


leitura de gênero em Isabel Ferreira”, de Franciane Silva (2014).
57

lugar privilegiado das escritoras, em termos socioculturais, de classe e de domínio


da escrita, “que ainda é um poder em África”, se comparado às mulheres que ainda
não encontram espaço para dizer e serem ouvidas, ela denuncia o silenciamento
das mulheres autoras.

Essa realidade silente é tão árdua que, apesar de haver mulheres que
recusam a diferenciação entre homem e mulher na produção literária africana,
Inocência Mata faz uma afirmação dilacerante:

É de notar que, não obstante essa viragem referida [certas conquistas],


essas mulheres que escrevem não conseguem disfarçar o insustentável
peso da condição africana – do homem e da mulher de África. Ou ainda: do
Homem, apenas. E apesar de sempre ter havido da parte de algumas
escritoras uma resistência à afirmação da diferença como se, concordando
com Lucia Castello Branco, “a diferença, em si, já marcasse alguma
inferioridade, alguma incapacidade, algum mal” (1992:214), essa diferença
é uma realidade: no topo da pirâmide dos “condenados da terra”, está a
mulher africana! (MATA, 2018, p. 439, grifos da autora).

Laura Padilha também atesta a dupla condição enfrentada pelas mulheres


africanas, mesmo após a independência:

O acesso ao texto verbal lhes era duas vezes barrado: por serem mulheres
e africanas. Encher de palavras o silêncio histórico foi para elas uma árdua
e difícil conquista. Mesmo depois da independência, quando as nações se
constituíram como comunidades políticas imaginadas, o acesso das
mulheres à condição de produtoras textuais não foi facilitado. (PADILHA,
2002, p. 171).

Pires Laranjeira, pesquisador português da literaturas africanas, ao analisar


três propostas autorais distintas – uma no romance, com Chiziane, outra na poesia
de Conceição Lima, e outra ainda numa coletânea de ensaios, com Inocência Mata,
sendo as duas últimas autoras naturais de São Tomé e Príncipe –, reitera os
entraves para as escritas dessas mulheres:

Escrever no feminino não é fácil, pois a tradição, já não sendo o que era,
pesa sobre a condição da mulher, obrigada, hoje, ainda, a desdobrar-se em
fêmea, progenitora, educadora, doméstica e figura pública, entre tantos
outros “papéis” sociais (funções na cadeia de re/produção). (LARANJEIRA,
2018, p. 527, grifos do autor).
58

Antes de prosseguir no raciocínio proposto, é preciso fazer uma ressalva na


expressão “escrever no feminino”, usada por Laranjeira. Posicionamo-nos nesta tese
por uma literatura, uma escrita, produzida por mulheres, porque este é o recorte de
nossos estudos, uma vez que o escritor homem pode ter uma escrita no feminino.

Voltando aos três teóricos citados, um cerceamento e um peso tanto na


tomada da palavra quanto na existência das mulheres são insistentes no discurso
desses pesquisadores, que usam os seguintes termos: em Inocência Mata,
destacam-se “peso”, “condenados da terra”; em Padilha, temos “barrado”, “não
facilitado”, conquista “árdua” e “difícil”, tudo isso em referência ao acesso à palavra;
em Laranjeira, novamente aparece o termo “pesa”, sob a relação entre mulher e
tradição.

Esse silenciamento das mulheres está presente nas obras Niketche e OGM.
Rami, em dado momento da narrativa, afirma: “porque as vozes das mulheres não
atingem os céus”. (CHIZIANE, 2004, p. 239). O desabafo surge depois de ela e as
outras esposas de Tony dizerem tudo contra ele, de “grita[rem]mos”,
“vomita[rem]mos” toda a “amargura” que os seus “peitos carregavam”, “até as cordas
vocais ficarem roucas”. Contudo o marido apenas escuta “em silêncio” e responde
“com duas lágrimas”, em atitude de quem “não se assusta e nem treme com a
violência” dos “gritos”. (CHIZIANE, 2004, p. 239).

O silenciamento das mulheres é geracional, conforme depreendido neste


excerto literário:

A minha mãe chora em silêncio. O seu choro é um canto de ausência, de


dor e de saudade. [...] Pela humilhação que sofremos eu e ela, duas
gerações distintas seguindo o mesmo trilho. Revolto-me. Estou disposta a
abrir a boca, a soltar todos os sapos e lagartos [...]. De repente li a
mensagem de paz nos olhos da minha mãe. Ela quer que eu deixe falar a
voz do silêncio. (CHIZIANE, 2004, p. 153-154).

O mutismo feminino também aparece em OGM:

Kiminha [...] exprimia sombra de pesar invisível. Um pesar que se


avolumava em silêncio [...].
59

“Que família era aquela, que decidia o destino de seus filhos? Qual era o
papel de sua mãe? Porquê que a sua mãe ficava em permanente silêncio
ante tantas barbaridades?”
“Quando era ainda pequena, vi tanta coisa... E a mãe sempre metida em
seus panos. E qual era a atitude das irmãs em tudo isso?
Aborreço-me ante o acabrunhamento de minha irmã. Ela, não se rebela.
Juro que comigo não será assim. [...].” (FERREIRA, 2008, p. 244, grifos da
autora).

Kiminha, jovem de dezoito anos, questionadora da tradição, está triste porque


sua irmã aceita passivamente um casamento arranjado com um primo. Mas o
silêncio de Kiminha não se resume à descrição da narradora, já que a personagem
não é desenvolvida na obra, aparecendo somente no capítulo em que se encontra o
trecho citado.

Cito um excerto literário de Vera Duarte, autora de Cabo Verde, que está em
outra ponta do oceano, no Atlântico Norte, para exemplificar que o silêncio parece
uma condição oceânica dessas mulheres. Assim, embora distante do Oceano Índico
(Moçambique) e do Atlântico Sul (Angola), as seguintes palavras do conto “Amanhã
Amadrugada” da autora unem as mulheres nesse drama:

[...] da dor de me saber mulher feita não para amar mas para ser amada.
Choro porque sou e amo. [...] Uma melancolia sem princípio nem fim possui-
me e quedo-me impotente.
Um súbito regato de águas claras inundara-me. Dei-me sorrindo. Mas as
águas avolumaram-se e senti perder-me a minha alma.
Por isso choro. Por me saber mulher e não poder amar. Contudo amo. E na
solidão meus soluços se sucedem em canção desesperada.
Sinto-me escravizada, tiranizada, violentada. E meu ser nascido livre se
revolta. Na impotência se mata. Quem depois se acusará?
Por isso quero desvendar os universos proibidos e purificar-me. Penetrar-
me nos bastidores da minha condição humana e lutar contra os
preconceitos e a opressão que castram. Desprezar, com ódio acumulado,
os fariseus da minha história e voar, na plenitude do meu ser nascido livre,
de encontro às aspirações da alma. (DUARTE, 2008, p. 40).

Diante de uma catarse emocional, que banha a angústia do que parece ser a
condição feminina, a dor da mulher africana procura não ser infrutífera, continua
Inocência Mata, mas quer ser “uma dor epifânica, a dor da autoconsciência que
constrói um sentido individual, numa progressão conscientizadora do eu”. (MATA,
2018, p. 432). Se existe um “contudo”, como apresentado no excerto, existem ações
60

– “penetrar”, “lutar”, “desprezar” e “voar” –, que, ainda que sejam em nível


linguístico-semântico, projetam condoreiramente o sentido de existência da mulher.

Se existem ares poéticos que oxigenam as escritoras para a luta, existe


também a mulher nortenha de Moçambique, que fala sem pestanejar e por isso
insubmissa na visão da mulher do sul: “A Mauá não resiste, abre a boca, protesta,
usando da palavra que nem sequer lhe foi dada, e disse tudo o que pensava. Ela
vem de uma sociedade onde as mulheres falam diante dos homens e são ouvidas.”
(CHIZIANE, 2004, p. 154).

Outra personagem, já mencionada, que recusa uma vida de obediência é Ana


Medrante de OGM, mulher “ardilosa no amor”, e que recusa, por exemplo, as lições
de submissão que os seus pais lhe quiseram transmitir. A personagem, “quando se
trata de amar”, não usa o particípio do verbo, “ser amada”, como o fez a narradora
de “Amanhã Amadrugada”, mas brada: “eu viro leoa! Eu gosto”, e continua: “E gosto
de ser mulher! Não carrego o mundo nas costas, para fazer o que faço, tem que ser
Mulher! Espero de Deus apelação divina!” (FERREIRA, 2008, p. 254).

Coincidentemente, as duas palavras “Mulher” e “Deus”, na mesma linha


textual do texto literário, se igualam pela letra maiúscula, contrastando à história
milenar da superioridade de um deus ocidental sobre a mulher. Os termos se
igualam na soberania, o que significa que, no momento da fala de Ana Medrante, ela
se coloca no mesmo lugar de tomada de decisões como faria o ser divino. Por outro
lado, a personagem marca sua diferença na recusa de assumir todos os assuntos do
mundo. Todavia, ainda sim, veremos que, por mais que haja mulheres
contestadoras, que buscam a satisfação do ego, o preço desse posicionamento é
alto, como o da solidão, segundo a filósofa e historiadora francesa Elisabeth
Badinter (1993) e, sob um recorte de cor, segundo Claudete Alves (2011), a
realidade é mais complexa para as mulheres negras.

Observar o que as autoras escrevem – sobre relacionamentos amorosos,


silêncio, dores, direito à fala, ao corpo –, o modo como escrevem e o modo como
são lidas é importante nessa questão de trajetória literária de autoria feminina,
conforme Inocência Mata pontuou:
61

Esta questão de trajectória literária no feminino tem, assim, tanto a ver com
o que escrevem as mulheres – afinal, veremos que escrevem sobre o que
os homens escrevem! – como com o modo de ler o que as mulheres
escrevem, isto é, as estratégias de leitura instrumentalizadas pela categoria
do género a fim de fazer do acto da leitura uma mediação contra a
centralidade de um sujeito flexionado por um único género, o masculino.
(MATA, 2018, p. 423).

Se o modo de ler o que as mulheres escrevem é fulcral na trajetória de uma


escritora, é necessário conceber a leitura na função de recriar a obra, atribuindo-lhe
sentido(s), observa Leila Perrone-Moisés sobre a correlação entre escrita e leitura
(PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 13). Nesse sentido, a leitura pelo caminho do riso é
um dos modos de perceber e buscar compreender o universo dessas mulheres.
Quando trazemos para o pensamento outra chave de leitura, no caso a escrita
cômica, sarcástica, irônica dessas mulheres para mais perto do sol,
metaforicamente, para que todos vejam-nas de outra maneira, nós alargamos o
saber e tornamo-lo pulsante.

Chiziane e Ferreira riem da pena, da condenação de serem mulheres e


escritoras fadadas ao silêncio. Elas riem do patriarcado e riem sob variadas matizes,
porque a dominação masculina sempre varia na sua forma de opressão.

Riso de desespero? De medo? Ou diabólico? Da Bruxa? Em Niketche e


OGM, as autoras se apropriam destes epítetos – desesperadas, medrosas,
diabólicas, serpentes – e reconfiguram os seus sentidos. Leitor, são elas que estão
com a palavra. Em razão disso, é necessário ouvir, deixar-se ser penetrado26:

Porque se eu conto a história, eu controlo a versão. Porque se eu conto a


história, eu posso fazer você rir, e eu prefiro que você ria do que tenha pena
de mim. Porque se eu conto a história, ela não dói tanto. Porque se eu
conto a história, eu posso seguir em frente. (EPHRON apud SILVA, Alba,
2015).

O trecho, retomado de uma das epígrafes, foi citado no livro Deus e o diabo
no humor das mulheres, de Alba Valéria Tinoco Alves Silva. Para contextualizar, o
excerto faz parte do romance Heartburn, da escritora Nora Ephron. Segundo os

26Em Homens no divã: relatos sobre a crise de identidade masculina (2013), Serge Hefez discutirá a
necessidade de o homem “deixar-se penetrar simbolicamente por sensações, emoções, palavras de
um outro (uma outra).” Ele também chama isso de intimidade. (HEFEZ, 2013, p. 78).
62

esclarecimentos de Alba Silva, a fala é da protagonista Rachel, que, sob a dor da


experiência de traição conjugal, responde a uma interpelação de uma amiga por que
razão ela, Rachel, transforma tudo em história. Alba Silva utiliza a fala da
personagem como um esclarecimento para uma explicação de Freud sobre pessoas
que expõem suas desventuras.

O psicanalista austríaco, no texto “O humor” (1996b),27 aponta que a pessoa


pode desabafar sobre decepções de dois modos. Ela pode expressar seu
desapontamento de maneira que a pessoa não envolvida fique preparada para
acompanhar toda a direção desses impulsos emocionais e evocá-los para si
também. Entretanto, essa expectativa é frustrada se a outra pessoa que conta a
história diz um gracejo. Segundo Freud, o “gasto de sentimento, que é assim
economizado, se transforma em prazer humorístico no ouvinte.” (FREUD, 1996b, p.
189). Na obra Os chistes, Freud denominará esse prazer no ouvinte de prazer
cômico. (FREUD, 1996a, p. 222).

“Eu posso fazer você rir”. Partindo dessa fala, pergunto: como Paulina
Chiziane e Isabel Ferreira, escritoras africanas de língua portuguesa, fazem seu
leitor rir? Contando como quem teve o prazer de ouvir velhas histórias, que
resgatam os ancestrais e mantêm acesa a unidade do grupo, responde-nos Laura
Padilha (1995). São escutas feitas a partir do vivido e da experiência. As escritoras
contam de um modo que nos sugira uma observação atenta, uma “posição”, um
“gesto” de escuta, como afirma Terezinha Taborda Moreira (2005, p. 18).

Padilha, em seu estudo sobre a literatura angolana, confirma que a força da


palavra vem da voz, “condutora do gozo”, porque “é pela voz que o contador de
estórias libera a força do seu imaginário e a do seu grupo.” (PADILHA, 1995, p. 15).
A arte de contar é um ato, “um gesto de prazer pelo qual o mundo real dá lugar ao
momento do meramente possível que, feito voz, desengrena a realidade e desata a
fantasia.” (PADILHA, 1995, p. 15).

No entanto, estamos diante do gênero romance, em que escritor e leitor se


deparam, a princípio, com a ausência de corpos, olhares, cheiros, porque o romance
“é um texto solitário. Só, ele se faz um só objeto, sempre singular.” (PADILHA, 1995,

27O artigo “O humor” de Freud, presente no volume 21, foi publicado em 1927, depois de sua obra
Os chistes e sua relação com o inconsciente, volume 8, publicado em 1905. Cf. referências.
63

p. 8). Mas só a princípio, porque o romance, à luz das teorias bakhtinianas


(BAKHTIN, 2011), tem uma constituição pluridiscursiva, porque esse gênero,
atravessado pela alteridade, é tecido de relações em que o eu e o outro se
tensionam, porque ambos se percebem no outro, pela negação e afirmação. No
romance, essas relações podem ser observadas pelo entrecruzamento com outros
discursos, formas, gêneros textuais, outros tempos, espaços, imaginações
(ROBERT, 2007). Esse tensionamento exposto serve para sairmos da dicotomia
oralidade e escrita e não para recusar o valor da experiência física entre os corpos
presentes numa contação de história.

As exposições de Padilha e Moreira contrastam com a escrita ocidental,


branca, que invadiu os países africanos e impôs um texto regulado, moderado para
as mulheres escritoras. No entanto, o modo de contar dessas autoras diz respeito à
maneira como elas riem do patriarcado. Elas riem parecendo que vão extrapolar o
papel branco, a escrita sóbria. Escute as histórias. Experimente fazer a leitura dos
textos delas em voz alta. Experimente o corpo da voz. A experiência é outra, é a da
alteridade.

Mas de que elas, Chiziane e Ferreira, riem? De fato, as escritoras, por meio
de seus narradores e personagens, femininos e masculinos, riem das coisas da vida,
do relacionamento amoroso, dos homens, das próprias mulheres, da família, da sua
cidade, do sentido de construção da nação, de suas tradições, do sistema patriarcal.
Elas riem de tudo aquilo que afeta o modo de ser e estar no mundo do sujeito,
feminino ou masculino, como veremos com acuidade nos próximos capítulos.

Gargalhar, rir, sorrir e chorar: tudo isso porque as mulheres que escrevem
não conseguem disfarçar o insustentável peso da condição africana e do estar
sendo mulher. Por essas considerações, sublinho as palavras de Inocência Mata
sobre as escritoras em África, que intentam tornar visíveis seus mais atávicos
desejos e itinerários como institutos do humano e de cidadania. Para Inocência Mata
(2018), o corpo entra nesse projeto de desvelamento, e o corpo feminino mais ainda,
por ser visto e construído através de interpretações sociais rígidas, inflexíveis, que
sempre ordenaram as maneiras pelas quais esse corpo deve aparecer.

Como se a condição africana e o ser mulher não fossem suficientes para


impedir a escrita, ser uma mulher que ri é outro problema, como já dissemos. Há
uma disseminada crença da falta de humor nas mulheres, conforme já denunciara
64

Virgínia Woolf, em 1905. Cômicas ou trágicas, elas podem ser, mas humoristas, não.
(WOOLF, 2014). Entenda-se aqui “humorista” no seu papel agente de fazer o outro
rir, diferentemente de ser sempre o alvo do riso, e, por isso, cômica e/ou trágica.

A crença se repete na obra História do riso e do escárnio (2003), do


historiador francês Georges Minois, publicada um século depois de Woolf. No último
capítulo sobre o riso no século XX, entre exposições autorais e de outros estudiosos,
Minois se posiciona sobre a experiência do riso e suas formas pela mulher. A seguir,
transcrevo um trecho que revela tanto a colocação do filósofo belga Eugène Dupréel
quanto a do historiador:

Ele [Dupréel] estabelece uma importante distinção sexista: a feminilidade


exclui o cômico. Não há mulheres-palhaças, não há mulheres-bufas. Um
rápido exame no mundo dos cômicos profissionais, do show business atual,
lhe dá razão. Mesmo vestida de homem, a mulher não é engraçada, ao
passo que o homem vestido de mulher faz rir. Só a mulher velha,
justamente aquela que perdeu a feminilidade, pode fazer rir. No jogo da
sedução, o riso supre a ausência de charme. (MINOIS, 2003, p. 611).

Minois confirma a proposição de Dupréel quando apresenta, de modo


superficial, a ausência de mulheres no espaço cômico profissional, ou seja, elas não
têm o protagonismo do riso, de fazer o outro rir. O historiador não problematiza que
a visão androcêntrica instituiu o falo como símbolo de honra, e por isso os homens,
quando ocupam esse lugar, não podem ser alvos de piada, riso. Eles estão na
posição ativa, superior, que é a posição de quem ri, na perspectiva bergsoniana.

Esse lugar do homem de provocador do riso também será exposto pelo


neurocientista cognitivo Scott Weems (2016), na obra Ha! A ciência do humor,
publicada de 2014. Weems cita Robert Provine, um renomado pesquisador do riso,
para compreender se há diferenças no riso entre homens e mulheres.

Provine, durante um ano de pesquisa, coletou mais de mil eventos. Ele não
pesquisou piadas, mas cenas públicas, em festas, metrôs, restaurantes, onde
homens e mulheres riam. Para isso enviou assistentes que observaram essas
pessoas. Após um ano de coleta, o psicólogo concluiu quem riu mais em ambientes
naturais e afirma: as “mulheres riem mais do que os homens, até 126% mais. Então,
certamente não é verdade que as mulheres não têm senso de humor.” (WEEMS,
2016, p. 103).
65

Porém, mais à frente, Weems sinaliza que os homens são muito mais
propensos a provocar o riso, no sentido de fazer o outro rir. E quando as mulheres o
fazem, continua o neurocientista, é um evento raro. Scott Weems expõe a existência
de piadas sexistas, preconceitos sofridos pelas mulheres nessa área de profissionais
do riso, é incisivo ao dizer que piadas de insultos dizem mais sobre quem conta do
que sobre o alvo. No entanto, não se aprofunda nessa relação entre humor e
gênero.

Minois se posiciona sobre essa relação e lança uma provocação entre a


pulsão agressiva inerente ao riso e as mulheres: “O fato de o riso ser
essencialmente uma ritualização da pulsão agressiva não poderia explicar, em parte,
o recurso menos frequente ao riso, nas mulheres?” (MINOIS, 2003, p. 619). Vladimir
Propp (1992) também apresenta considerações desfavoráveis ao riso feminino. Ao
diferenciar riso mau e bom, Propp coloca as mulheres desiludidas e infelizes no riso
mau. Este riso aumenta os defeitos insignificantes, às vezes são até inventados; o
riso bom ignora os defeitos da pessoa amada.

A ironia também servirá de parâmetro nessa distinção de gênero. Primeiro,


Minois cita Georges Palante, filósofo e sociólogo francês. Palante não só diferencia
ironia do riso, como “despreza” o riso, afirma Minois. Para o sociólogo, a ironia é um
tropo individualista, antissocial e se baseia na inteligência, já o riso “é vulgar e
plebeu”. (PALANTE apud MINOIS, 2003, p. 568).

É interessante notar a dinâmica discursiva de George Minois. Ao expor vários


teóricos e pesquisadores sobre o riso e suas formas, ora usando a citação direta,
ora usando a paráfrase, a voz do historiador parece se amalgamar a tais
proposições. Por exemplo, quando termina de citar Palante, Minois afirma: “A ironia
é aristocrática e romântica, estranha ao espírito clássico, naturalista ou racionalista.
O povo não pode chegar até ela porque vê aí o orgulho da inteligência, e as
mulheres também não, pois desprezam a inteligência.” (MINOIS, 2003, p. 611). Em
contrapartida, Linda Hutcheon (2000) critica o sexismo de Palante por este distinguir
a mulher da ironia, um tropo da inteligência.

Trata-se de ler Niketche e OGM a partir de um riso provocador, que insiste


em perverter a compostura, liberar o corpo interditado, afirmando uma postura outra,
evidenciando a mulher como criadora e geradora de novas escritas, no caso das
literaturas moçambicana e angolana, uma escrita que se faz narração performática
66

(MOREIRA, 2005) e gozosa (PADILHA, 1995). Compreende-se, portanto, que a


escolha pelo riso em autoria feminina é um modo de desnaturalizar a dupla injustiça
contra a mulher – a interdição da escrita literária e da experiência do riso.
67

4 RINDO DO CÂNONE

Perdoem-lhe esse riso.


(ASSIS, 2011b, p. 130)

Perdoem, mas eu acho graça.


(SÁ, 2007, p. 25)

Imagina, leitor, uma sulamita angolana que abre “as órbitas num desejo de
quem procura um alvo para cometer um crime putativo”. Imagina uma viúva, toda
cheia de si, que dá uma grande gargalhada após ouvir a amiga relatando o choro de
um homem traído. Imagina uma virgem que provoca um polígamo angolano e diz:
“Tu és um mulherengo, e agora estás a recuar. Medroso!” (FERREIRA, 2008, p. 19,
234, 217). Imagina uma mulher que ri da queda de “um super-homem calcificado no
éden da praça”. (CHIZIANE, 2004, p. 333).

Para alguns, as ações dessas mulheres podem soar como um apocalipse, no


uso corrente, de fim do mundo; para outros, como uma gênese de outras formas de
pensar as subjetividades do ser e as idiossincrasias das relações interpessoais.
Prefiro pensar os gestos dessas mulheres como um apocalipsegênese. Perdoe-me,
mas eu acho graça da mulher que, em/de mim, quer inventar palavra para algo que
já vem sendo anunciado desde o princípio da tese: criação e destruição juntas, como
o riso.

Insistindo no jogo digressivo, explico as epígrafes. A escolha da primeira se


ancora no artigo “O rir dos gregos”, de Jacyntho Brandão (2003). Nesse texto, o
pesquisador recupera o romance Quincas Borba, de Machado de Assis,
particularmente a cena em que a personagem Sofia não pudera “conter o riso” ao
ver o carteiro cair, em vez de se compadecer dele ou com ele, e assim o narrador
afirma: “Perdoem-lhe esse riso. Bem sei que o desassossego, a noite mal passada,
o terror da opinião, tudo contrasta com esse riso inoportuno. Mas, leitora amada,
talvez a senhora nunca visse cair um carteiro.” (ASSIS, 2011b, p. 130).

O narrador machadiano continua tentando justificar o riso despropositado de


Sofia, ao recuperar a cena homérica em que os deuses, num momento de briga e
confusão entre si, dão “uma enorme gargalhada” quando o deus Vulcano (Hefesto,
68

na mitologia grega) entra coxeando. Novamente o narrador interage com sua leitora,
como se ela perguntasse por que os deuses riam, ao que ele responde,
insistentemente: “Por quê? Senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro.”
(ASSIS, 2011b, p. 131).

Brandão, no preparo do terreno para a defesa de seu estudo de que os


deuses também são alvos de riso, lança uma observação certeira de que essa
remissão a um texto de Homero em Quincas Borba tem a função de situar a escrita
de Machado no panteão da tradição literária. Concomitantemente, interpreto que o
riso trivial de Sofia, ao ser pareado a uma narrativa homérica, ao riso dos deuses, e
não à própria personagem, ganha áurea de seriedade. Apesar de seu nome guardar
a origem grega, a etimologia não é suficiente para garantir-lhe indulto.

Mas que importa a etimologia se na cena machadiana reside a sabedoria de


rir no meio da paixão mais aborrecível? Aproveitemos, então, a sapiência de zombar
dos grandes e dos pequenos ridículos do mundo. Talvez a sabedoria esteja farta28 e
por isso ela só ri.

Sobre a segunda epígrafe, ela foi escolhida com base no título de um texto de
Lúcia Sá, professora na Universidade de Manchester, “Perdoem, mas eu acho
graça: o grotesco na poesia de Augusto dos Anjos” (2007). Ela começa advertindo
sobre a insistência da falta de senso de humor na fortuna crítica do poeta paraibano.
Lúcia Sá instiga: “quem nos garante que uma vida cheia de sofrimentos não poderia
ter gerado uma obra bem-humorada, ao menos irônica, autossarcástica? (SÁ, 2007,
p. 25). As epígrafes, portanto, são ecos de meus incômodos, porque o pedido de
desculpas desperta em mim vozes, fantasmas como se impelissem as mulheres a
buscar sempre a remissão dos seus erros, ou, para usar um termo religioso, dos
seus “pecados”.

Perdoe-me, leitor do “serás feliz”, pela sinuosidade nessa minha escrita, mas
os estudos desenvolvidos nesta tese foram afluindo e agitando em mim como
“ondas de incontáveis risos”, como diria Ésquilo (NIETZSCHE, 2012, p. 52). Mas,
tentando não deixá-lo se perder nessas águas, apresento as propostas do capítulo.

28Scarlett Marton faz referência à fadiga quando a personagem de Nietzsche, Zaratustra, desce da
montanha para encontrar com os homens: “Não é por constatar a miséria do ser humano, querer
resgatá-lo e salvá-lo que Zaratustra vai ter com os homens – mas por estar farto da própria
sabedoria.” (MARTON,1999, p. 138).
69

O capítulo objetiva analisar como Paulina Chiziane e Isabel Ferreira riem de


alguns pares: Adão e Eva; o amado29 e a Sulamita de Cântico dos cânticos; e o
clássico par trágico. Além disso, entremeados aos pares, analisaremos como o riso
desvela e critica outros valores patriarcais oriundos da narrativa cristã trazida pelo
poder colonial e oriundos das tradições em Moçambique e Angola, por exemplo, o
ritual das mulheres viúvas e a poligamia. O título “Rindo do cânone”, pois, nos
conduz ao modo pelo qual as escritoras se apropriam desses arquivos canônicos.

Fiz um recorte da narrativa cristã porque há uma profusão de referências


bíblicas nas duas obras em estudo. Por isso, elegi também as metáforas de gênesis
e apocalipse, pois, à medida que as autoras riem dos textos canônicos, elas
reescrevem os sentidos de criação e destruição. Tais metáforas seduziram o
imaginário coletivo ocidental, segundo Northrop Frye (2006), alcançando, inclusive,
Moçambique e Angola, no processo de colonização.

Em relação a essa sedução imaginativa, me reporto ao livro O Código dos


códigos: a Bíblia e a literatura (2006), de Northrop Frye. Nessa obra, o teórico
canadense, sob o ponto de vista de crítico literário e não de erudito bíblico, como ele
mesmo se posiciona para o leitor de sua obra, procura estudar “a Bíblia enquanto
uma influência imaginativa”, o seu peso sobre a imaginação do Ocidente, e “o lugar
da Bíblia na história da linguagem enquanto langage”, ou seja, força linguística muito
efetiva. (FRYE, 2006, p. 21, 27-28). Apesar de a Bíblia ser um mosaico, essa
influência e força são possíveis porque se apoiam na metáfora, enfatiza o crítico
literário. Ou seja, segundo Frye, se não fosse essa identidade de ligar várias
narrativas fragmentadas, perdidas pelo tempo, por meio daquele tropo, a força rígida
das normas de conduta contidas na Bíblia logo se esfacelaria diante de um conflito
cultural.

Vale uma nota sobre as citações bíblicas utilizadas neste capítulo da tese:
não cabe aqui estudá-las com profundidade e complexidade como fariam os autores
eclesiásticos, teólogos e pesquisadores afins. Proponho, no caso, leituras,
amparadas em teóricos da literatura, sobre os efeitos desses textos de interpretação
cristã na construção das personagens.

29 Fiz a escolha de “amado”, podendo ser “o amante”, e não o rei Salomão, baseando-me na obra O
Cântico dos Cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções, de Geraldo Holanda
Cavalcanti (2005). O ensaísta brasileiro problematiza a autoria e interlocução de Salomão no referido
livro bíblico. Cf. referências.
70

A seguir, recupero a etimologia, algumas definições e conceitos de cânone,


para extrair deles o significado religioso e o sentido de memória literária que vai se
sedimentando a partir das leituras feitas sobre determinada obra. Essa exposição
servirá de auxílio para compreender como a leitura cômica do cânone pode construir
outras memórias e/ou ressignificá-las.

4.1 conceitos de cânone

No Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes,


cânone significa: CÂNONE — Do gr. kanón, régua, regra, pelo lat. canon; passou
depois ao sentido especial de regra da Igreja, lista de santos regularmente
reconhecidos pela Igreja. (NASCENTES, 1955, p. 94). Pelas vias de Maria Eunice
Moreira, recuperar-se-ão os significados para a palavra cânone. Observa-se, no
excerto abaixo, a existência de uma toada bíblica para sua etimologia. O termo
deriva do grego Kanón,

que designava uma vara ou canudo reto de madeira que os carpinteiros


usavam para mensurar o espaço de trabalho. No transcurso do tempo, a
reguinha passou a significar lei ou norma de conduta, abrangendo em seu
sentido uma conotação moral. Quando o termo chegou à área da filosofia,
os filósofos alexandrinos o utilizaram para identificar a lista de obras
escolhidas por sua qualidade e empregadas para orientar o uso da língua,
consideradas exemplares ou modelares, isto é, dignas de imitação. No
âmbito religioso e especialmente no que concerne às Escrituras, a palavra
cânone foi empregada a partir do século três depois de Cristo, embora seja
possível verificar seu uso mais antigo com o sentido de regras ou leis da
vida religiosa, chamadas cânones, para distinguir das regras da vida civil.
(MOREIRA, 2003, p. 89-90).

Northrop Frye propõe a seguinte leitura sobre a derivação bíblica de cânone:

Pelo meio do Livro do Apocalipse (ver 11:1 e seguintes) um anjo exorta o


autor a tomar de uma “cana” para medir o templo de Deus. A fonte dessa
passagem é Ezequiel, 40:3 (ver também Zacarias, 2:1), onde a palavra para
“cana” é qaneh, de onde, em última instância, deriva a nossa palavra
“cânon”. Lembrando-nos de que na tipologia cristã o templo antitípico é o
corpo de Cristo ou a palavra de Deus, perguntamo-nos se isso de medir o
templo não é uma figura que se relaciona com o estabelecimento de um
cânon de textos. (FRYE, 2006, p. 237-238, grifos e observações do autor).
71

Na afirmação de Frye, tem-se um templo bem medido, arquitetado,


substituído pelo corpo perfeito de Cristo e, posteriormente, pela palavra de Deus. A
supremacia e integridade do verbal (e um verbal vertical por ser a palavra divina)
sobre o monumental (o templo) se fortalece na advertência feita no final do livro de
Apocalipse (Ap. 22,18,19). Nessa exortação, o autor de Apocalipse exige que nada
seja alterado do livro sagrado nem acrescentado, com maldições lançadas para
quem o fizer. Parece que a admoestação bíblica fez efeito às avessas nas obras de
Niketche e OGM, porque as autoras riem sem mesura desse cânone, como tão logo
observaremos.

Nota-se que a palavra “cânone” resvala no campo semântico do sagrado.


Laura Cavalcante Padilha lembra que a fé esteve ao lado do império como “uma das
principais estacas de sustentação do alicerce ético do edifício chamado ocidente.”
(PADILHA, 2004, p. 254). Como símbolo concreto dessa fé, tem-se o livro das
sagradas escrituras, comumente assim reverenciado pelos adeptos e que funciona
como normas de conduta para aqueles que a concebem dessa maneira. A
reverência não é assim tão gratuita, derivou-se, porém, de toda uma construção
metafórica dos textos bíblicos, segundo argumentação de Frye.

O uso religioso do termo “cânone”, entretanto, predominou até o século XVIII,


de acordo com Eunice Moreira (2003), quando se retoma o sentido de lista de
autores tidos como referências, estudo ou imitação, ou, nas palavras de Harold
Bloom (1995), textos de leitura obrigatória na cultura ocidental. Para o crítico norte-
americano, o cânone passou a vincular-se às instituições responsáveis por sua
subsistência e manutenção, não mais apenas à Igreja, mas também a diversos
círculos culturais, como universidades, editoras, grupos sociais comprometidos com
a crítica literária, que selecionam obras e autores.

À semelhança da unidade do texto bíblico, observa-se uma variedade de


outros textos que entram como uma lista que conserva o que foi escrito, logo “o
cânone funciona como uma espécie de memória literária”. (MOREIRA, 2003, p. 92).
Bloom já enunciara sobre esse novo sentido de cânone, solicitando, pois, que o
novo entendimento seja evidenciado “com o que se preservou do que se escreveu”,
para que assim seja “visto como idêntico à literária Arte da Memória”, já que
“esquecer, num contexto estético, é danoso, pois a cognição, na crítica, sempre se
apoia na memória.” (BLOOM, 1995, p. 25).
72

Para Wendell Harris, retomado por Moreira, o cânone se constrói a partir de


como determinadas obras são lidas e não pelas obras em si mesmas, ou seja,
seleciona-se não pelo produto em si, a obra em si mesma, mas pelas leituras que se
acumulam sobre esse objeto. (HARRIS apud MOREIRA, 2003, p. 92). Nesse
sentido, por mais que descrevamos e analisemos o processo cômico utilizado para
confrontar o cânone, estamos, na perspectiva de Wendell Harris, contribuindo para a
acumulação de leituras sobre determinada obra. Estamos fortalecendo a memória
dessas obras canônicas. E isso já é motivo de riso, pois se “o riso resulta da
inesperada união de incompatíveis”, segundo Lélia Duarte (2006, p. 57), significa
que rimos porque conservamos, em certa medida, aquilo que estamos
questionando, portanto, estamos diante de um paradoxo. Laura Padilha (2005)
também pontua sobre o fato de escritores de literaturas africanas terem a
preocupação de marcarem seus textos como falas de um lugar. Todavia, segundo a
teórica, o gesto de elidir o global se mostra impossível desde o século XV, durante a
expansão do Ocidente.

As influências são um fato. É preciso, porém, interrogar o cânone. O


incômodo, pontuo, não está no acúmulo de memória ou de sua permanência, porque
isso é inerente às experiências humanas. É uma ilusão falar em supressão de
influências, segundo Antonio Candido (1987). Haverá sempre contatos entre
literaturas, contato entre memórias. Interpela-se, então, sobre qual acúmulo
desejamos nos debruçar e como esse acúmulo é feito, lido, como acolhemos, e por
que o desejamos, que memória permanece, qual se esquece, qual se sobrepõe e
como isso se efetua.

Além disso, memórias são construídas numa relação dialógica, em que o


discurso do eu entra em relação com o discurso do outro. É importante lembrar que
“o eu e o outro são seres absolutamente distintos e que é nessa alteridade que
reside toda a possiblidade de compreensão” (PADILHA, 1995, p. 2). Faço uma
observação no termo “absolutamente”, uma vez que a própria relação dialógica é
complexa e paradoxal visto que o eu e o outro se imiscuem.

Neste momento, tensionam-se as colocações de Frye sobre a narrativa


bíblica, a memória literária exposta por Eunice Moreira e outros teóricos e o lugar
das literaturas africanas nessa formação de memória literária. Laura Padilha afirma
que as culturas em África “por não se sustentarem nem em uma base greco-latina
73

nem na judaico-cristã”, influenciadoras na formação de um cânone oficial,


submergem no silenciamento. Além disso, com o processo histórico de colonização
das terras africanas, o cânone ocidental “passa a exercer seu fascínio sobre o
imaginário dos excluídos desse grande sistema”. (PADILHA, 2004, p. 254).

Mario Lugarinho ratifica a ação pródiga da literatura europeia ocidental,


durante o século XIX, em se impor como modelo. No artigo de Lugarinho (2015), em
que o pesquisador relaciona a construção de identidade nacional e a masculinidade
nos escritos ficcionais de João Melo, destaca-se que a literatura europeia não só
cristalizou o estatuto de uma masculinidade hegemônica em território interno como
expandiu esse modelo nas narrativas nacionais dos países colonizados.

A ardilosa construção do desejo pelos bens simbólicos do Ocidente interferirá,


portanto, na construção do arquivo cultural africano, na elaboração e sistematização
das literaturas africanas em língua portuguesa. Vale destacar ainda que não se trata
de apresentar ou afirmar sobre um cânone literário africano, isto, porque, segundo a
pesquisadora Maria Nazareth Soares Fonseca (2015), essas literaturas ainda estão
se constituindo como um sistema.

Em termos de como essa rasura do cânone oficial se efetua nas obras em


estudo, comecemos pela referência à sulamita do livro bíblico Cântico dos Cânticos.

4.2 um cântico das sulamitas

A problemática do casamento, ora creditado no imaginário como um “jardim


das delícias”, para usar um sentido bíblico, ora como cumprimento do slogan “felizes
para sempre” dos contos de fadas, é um tema proeminente nas literaturas africanas
escritas pela mulher, de acordo com o professor nigeriano Ebenezer Adedeji ( 2018),
da Faculdade de Letras da Obafemi Awolowo University. Segundo Adedeji, a
insistência desse tema se deve ao desejo, por parte das escritoras, de melhoria nas
relações de gênero em sua sociedade.

O casamento como metonímia desse oásis não está no início desses dois
romances. Em Niketche, Rami, narradora-protagonista, tem um casamento cristão,
sob aparência monogâmica, já que descobrirá um marido informalmente polígamo.
74

Mas, antes da descoberta, já sofre com as constantes ausências dele e lamenta:


“Entro num delírio silencioso, profundo. Rajadas de ansiedade varrem-me os nervos
como lâminas de vento. Meu Tony, onde andas tu?” [...] Sinto vertigens. Muito fel na
boca. Náuseas.” (CHIZIANE, 2004, p. 10).

Essas hipérboles, carregadas de tristeza, também aparecem logo no início de


OGM. O nome da mulher casada não é revelado ao leitor, mas são-nos dadas a
conhecer suas ilusões, dores e lamentos. Ela se encontra “estendida na cama”, “no
escuro da noite”, diante “das cinzas da solidão”, e confessa, gradativamente, que,
por vezes, “a voz do silêncio rói”, outras, “o silêncio grita na solidão do abismo”,
numa intensidade que chega ao paroxismo quando compara o silêncio a um
sangramento: “sangro a minha língua de tanto calar”. Ela, tal qual Rami, reclama da
ausência do marido: “Todos os dias acordo e tu não estás”. (FERREIRA, 2008, p.
14).

Podemos ler as confissões dessas duas mulheres sob a lente de nossa


simpatia, de nossa sensibilidade, evocando para nós esses impulsos emocionais, e
ainda fazê-los – a leitura e a evocação – comicamente. Nem por isso, como
acreditou Bergson, significa que seremos expectadores indiferentes ao outro. Millôr
Fernandes (2011) pensa que o ceticismo do humor pode criar um sentimento de
maior aproximação com outro ser humano. Como isso é possível? Quando o humor,
que me faz ver falho, me revela as idiossincrasias das relações humanas como algo
engraçado, é nesse ponto que me aproximo do outro.

Ferreira, particularmente, abre seu romance com um prólogo de comédia,


tornando as lamúrias daquela narradora-personagem em algo cômico. Segundo
José Sobrinho (2013), o prólogo das comédias, entre várias funções, serve para
explicar o assunto da comédia; por vezes, dar o tom cômico desde o início; para
lembrar a plateia que a comédia a ser vista reflete o ridículo da vida social. Assim, o
leitor da narrativa de Ferreira, sabendo dessas finalidades, se posiciona como um
espectador pronto para rir e refletir sobre o cotidiano angolano.

Se o jardim de Gênesis não se vingou no cotidiano das relações afetivas entre


homem e mulher em OGM, até porque esses sujeitos “não têm cara de paisagem
como no jardim celestial. Têm alma!” (FERREIRA, 2008, p. 35), tão pouco as leituras
sacralizadas, ainda correntes, feitas sobre o livro de Cântico dos cânticos, passarão
incólumes à escrita de Ferreira. Segundo Geraldo Cavalcanti (2005), essas leituras
75

tendem a circunscrever o poema bíblico como narrativa de núpcias místicas, ou uma


alegoria de cunho religioso, entre Cristo e a igreja, leitura indispensável para a
canonização desse livro nas escrituras sagradas judaica e cristã (CAVALCANTI,
2005, p. 21). Por outro lado, mesmo na leitura erótica de Cântico dos cânticos,
proposta por Cavalcanti e outros estudiosos com quem ele dialoga, observaremos, a
seguir, em certos trechos de OGM, uma narrativa trágico-risível reveladora de
violência contra a mulher angolana.

Veremos que a autora se apropria dos versos de Cântico dos cânticos e


trabalha-os de modo irônico, questionando a narrativa da mulher virtuosa que
consegue segurar, salvar o homem, sem perdê-lo para outra mulher. Comecemos
pelos versículos bíblicos:

De noite, no meu leito, busquei o amado de minha alma, busquei-o e não o


achei.
Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade, pelas ruas e pelas praças;
buscarei o amado da minha alma. Busquei-o e não achei.
Encontram-me os guardas, que rondavam pela cidade. Então, lhes
perguntei: vistes o amado da minha alma?
Mal os deixei, encontrei logo o amado da minha alma; agarrei-me a ele e
não o deixei ir embora. (Ct 3, 1-4).

A voz lírica é da camponesa sulamita, mulher negra, uma jovem cantada nos
versos aludidos à figura de Salomão e tornados um símbolo de erotismo. Diferente
da sulamita, a esposa do prólogo de Ferreira se autoincrimina por não segurar o
homem: “será que a culpa foi minha? Talvez eu seja cúmplice na doação do meu
homem a outrem. Será? Eu cedi... Silenciosamente cedi. Não fui criada para fazer
escândalos.” (FERREIRA, 2008, p. 19).

Na lamentação da esposa do prólogo, as perguntas e as respostas incertas,


marcadas pelo advérbio “talvez” ou até pelas reticências, indicam os meandros entre
o desejo de estar com o marido, ainda que ele a ignore e a despreze, e o repúdio ao
próprio comportamento, o de resignação. Se considerarmos que OGM se assemelha
ao gênero comédia, pela presença de um prólogo, com muitos diálogos durante toda
a obra, e com fim de ridicularizar os costumes, quais seriam, então, esses
problemas, costumes, naturalizados, para além do texto ficcional? O silenciamento e
seu indicativo de violência simbólica ou física no ambiente doméstico em Angola.
76

De acordo com as pesquisadoras Margareth Nangacovie e Iselin Åsedotter


Strønen (2019), a violência em Angola é um tema quase silenciado, havendo uma
certa resistência em abordá-lo de forma pública e livre. Por exemplo, em pesquisa
anterior, Nangacovie e Strønen (2016) relatam que as mulheres de dois bairros
pobres de Luanda classificam a violência num nível relativamente baixo na
hierarquia de problemas. Essa crença, segundo as pesquisadoras, “resulta do facto
das normas culturais e a história política do país tenderem a ‘normalizar’ a violência,
perpetuando, assim, a baixa consciência social sobre o problema”. (NANGACOVIE;
STRØNEN, 2016, grifo das autoras).

Mas esse silenciamento vem também de órgãos locais. Nangacovie e Strønen


(2019) comparam a disparidade de números fornecidos por esses órgãos com os
dados do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos. Essas instituições
confirmaram, em 2016, 62 mil casos de violência registrados contra a mulher, numa
média de 170 registros por dia. Os órgãos municipais referiram a 1-2 casos por mês.
Elas levantam a hipótese, junto ao grupo de pesquisa e do recorte dos estudos, de
que o tema é assumido pelas mulheres angolanas como um fato normal e corrente
da vida do casal.

Apresentar esses dados extraliterários se faz relevante até mesmo para


confirmar aquela colocação de Inocência Mata sobre o lugar das mulheres africanas
em termos de descaso humanitário.

A cultura de violência volta a ser criticada com aquela ironia de face sutil no
trecho seguinte:

Há quem diga que não lutei! Como não lutei?


De manhã levantava-me cedo na ponta dos pés e de bandeja na mão
levava-lhe o mata-bicho. Um pequeno almoço recheado de amor. Sem
contar que a roupa estava sempre preparada. [...].
Fui para o meu amado durante anos o objeto dos seus desejos.
Os meus lábios, nos dele, destilavam mel. Ele encontrou o meu jardim
cerrado. E como manda a tradição, no nosso leito conjugal, ele arrancou a
flor do meu jardim. (FERREIRA, 2008, p. 20).

A ironia pretende despir uma narrativa encobridora de violência simbólica e


física contra a mulher angolana no espaço familiar. Comparemos o final do excerto
77

anterior com os versos bíblicos: “Os teus lábios, noiva minha, destilam mel. Mel e
leite se acham debaixo da tua língua [...]. Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva
minha, manancial recluso, fonte selada.” (Ct 4, 11-12). Ferreira desafina esse
cântico, apresentando uma incongruência: de um lado, há uma doçura do mel, a
delicadeza da flor; de outro, a ação impetuosa do verbo “arrancou”.

O fato de o verbo “arrancar” vir depois de “objeto dos seus desejos” –


expressão, por sua vez, antecedida pela descrição de uma mulher que servia ao
marido em tudo, com roupa, casa, comida – nos faz ler um corpo feminino excluído
como ser desejante. A ironia contradiz o erotismo cantado nos versos bíblicos e
desvela a coerção contra a personagem feminina. Esses jugos são escamoteados
por uma narrativa cristã que dita à mulher o papel da noiva de Salomão no sentido
de ser a noiva de Cristo, como aquela que espera a vinda do amado, ou por uma
narrativa das Penélopes que, enquanto esperam o Ulisses, “fazem, desfazem,
refazem”, até ele regressar (FERREIRA, 2008, p. 23, 24). Essas imagens de mulher
do cânone ocidental são trazidas de modo risível e, portanto, rechaçadas pela
escrita de Ferreira, através da esposa no prólogo.

Outra justificativa que a própria esposa apresenta para sua rejeição se deve
ao seu corpo, que sofre a passagem do tempo. Ela deixaria de ser a jovem sulamita,
ficando a cargo de uma jovem mulher esse “papel”, descrita como bela e graciosa,
um rosto como pedaço de romã. A adjetivação também corresponde ao livro bíblico:
“as tuas faces, como romã partida” (Ct 4,3). Embora no prólogo não se explicite o
nome da moça, é possível uma associação desta à personagem Kiluva, uma das
figuras centrais de OGM. Observemos a descrição seguinte, que se encontra na
metade do desenvolvimento do romance, quando é dado ao leitor o conhecimento
sobre a jovem:

Kiluva tem um rosto jovial e cândido. Moça bonita. A beleza é a senha


corporal do seu poder, que simultaneamente é o selo de tentação para todo
o homem que gosta de um corpo esbelto. Aparenta ter vinte anos. Sua raça
é genuinamente africana. [...] Kiluva caminha solta, gingando de um modo
curvilíneo o corpo. Ondeia as ancas ora para o lado esquerdo, ora para o
lado direito. (FERREIRA, 2008, p. 183).

Novamente, destaca-se a beleza e a sensualidade da moça “genuinamente


africana” tal qual o corpo belo e erótico da noiva negra em Cântico. Por outro lado, a
78

ausência do nome de Kiluva no prólogo, como figura da mulher não oficial, nos
direciona a outra percepção. Se considerarmos o final da obra, em que Kiluva
também enfrenta o abandono de um homem, podemos compreender o prólogo de
OGM como se fosse um coro das mulheres angolanas: todas elas repetem a
subjugação de certas tradições angolanas calcada na hegemonia masculina.

Adedeji (2018) também observou esse drama feminino no estudo comparativo


de Balada de amor ao vento (1990), de Paulina Chiziane; Joys of Motherhood
(1979), da nigeriana Buchi Emecheta; La Révolte d’Affiba (1997), da costa-
marfinense Régina Yaou. De acordo com Adedeji, a origem dos problemas é a
tradição e os costumes do povo acerca do casamento, transmitidos pelos mais
velhos. Ele acrescenta, de modo incisivo, a partir das obras por ele estudadas, que
essas tradições exercem um papel de “demolidor no assunto do amor”. (ADEDEJI,
2018, p. 412). Lembramos, ainda, que, como destacam Inocência Mata e Adedeji
(2018), esses guardiães das antigas tradições podem ser homens ou mulheres.

Prosseguindo no desabafo da esposa do prólogo sobre a mais nova sulamita,


ela satiriza a experiência sexual da jovem:

Dizem que é jovem, a miúda que anda com o meu homem, o meu marido. É
isso que me incomoda! [...]. Tão jovem e já tão cabra! Não sei como teve
tempo de trabalhar a questão da sedução. Deve ter andado na escola da
multiplicidade do prazer. Lá ela fez mestrado. De certeza!
E o pobre do meu homem? Vocês deviam ver... [...]
Deus está morto! Não faz justiça! E para variar deixou-me como herança as
transas do tormento. Oiço as vozes de um coral, martelando a minha mente.
Não podemos caminhar com fome e sem amor. Ironia desta vida! Eu, aqui,
a esposa de aliança no dedo e os filhos.
[...] Valha-me Deus morto! Como posso caminhar com a fome no corpo e o
desejo na alma, em sofreguidão. Todo o meu corpo anda afogueado de
noite e de dia. (FERREIRA, 2008, p. 21, grifo da autora).

Lélia Duarte afirma que o riso, resultante do humor, pode voltar-se para o
próprio eu, que graceja com seus infortúnios, “costumes, crenças, pretensões ou
manias” e que “pode revelar o sofrimento em toda a sua crueza” (DUARTE, 2006, p.
51,53). Ou seja, enquanto a narradora parece direcionar um riso à jovem, esse riso,
por outro lado, volta-se sobre si mesma, porque diz respeito aos seus costumes de,
79

por exemplo, se agarrar ao seu status de casada. Novamente, ridiculariza-se a


tradição de supervalorizar a esposa oficial.

Sabina Tabacaru (2015), docente pela Universidade Charles de Gaulle, em


seu artigo sobre aplicação da incongruência e da superioridade ao sarcasmo, afirma
que esse tipo de humor se baseia na incongruência de certas ideias apresentadas
pelo falante e na explicitação de um alvo que é ridicularizado. Esse alvo, inclusive,
pode ser nós mesmos, acrescenta:

Nós também podemos rir de nós mesmos, e exemplos de humor


autodepreciativo são comumente citados na literatura atualmente. Esse
sentimento de superioridade ainda está presente em alguns casos, uma vez
que, como indicado por Rapp (1947), o que se está ridicularizando é “uma
figura de si mesmo em uma situação desconfortável.” Como assinalado por
Morreall (1983), a parte que ri está dissociada da parte da qual se está
rindo. Falantes podem sempre ridicularizar a si mesmos em, por exemplo,
certa situação do passado, dissociando-a mentalmente do eu presente que
está contando a piada. (TABACARU, 2015, p. 118, grifo da autora).

Nesse movimento entre sofrer e ludibriar a si mesmo, pelo humor


autodepreciativo, Luiza Lobo (2007) assenta, a partir de O Chiste de Freud, que, no
humor, há um constante jogo de condensação e deslocamento. Lola Xavier (2011)
abre uma concessão para a possibilidade de o humor criar uma tensão e levar o
receptor a refletir, ou, pensando bergsoniamente, a vida assim nos exige: “tensão e
elasticidade – eis as duas forças complementares entre si, colocadas em ação pela
vida.” (BERGSON, 2018, p. 44). Essa é uma dinâmica recorrente não só no prólogo
como em toda a obra de Isabel Ferreira.

Note-se, pois, que o efeito humorístico da fala da esposa do prólogo está no


deslocamento do infortúnio de um cotidiano de traição para o risível, que é capaz de
expor a complexidade das relações afetivas da mulher angolana. Além disso, o riso
decorre da incongruência entre juventude e experiência, esta última, por sua vez, foi
hiperbolizada nas expressões “escola da multiplicidade do prazer” e “mestrado”.

Os termos “escola” e “mestrado” pressupõem tempo, preparo, formação e


profundidade no estudo do objeto, a saber, o estudo de como seduzir, conquistar e
praticar o ato sexual. Certamente, a experiência sexual da jovem angolana subverte
a da esposa bíblica que afirma sua exclusividade no amor, ao utilizar os pronomes
possessivos: “ó amado da minha alma” (Ct 1,7), “O meu amado é meu, e eu sou
80

dele” (Ct 2,16; 6,3), “Venha o meu amado para o seu jardim e coma os seus frutos
excelentes!” (Ct 4,16).

Outro contributo para o humor está na carga semântica negativa da palavra


plural “transas”, quando recebe a locução adjetiva “do tormento”, na expressão
“transas do tormento”. É humorístico porque a mulher, no papel de esposa, esperava
que seu corpo, “afogueado” de desejo, fosse saciado pelo marido. Todavia ele se
encontra no leito da “bebé”, termo com o qual a narradora define sarcasticamente a
jovem.

Quanto às palavras do coro, elas podem ser encontradas na canção “Não


podemos caminhar”, de A. Espinosa:

Não podemos caminhar,


Com fome e sem amor:
Dá-nos sempre deste Pão:
Teu Corpo e Sangue, Senhor.
(ESPINOSA, 2019)

O empréstimo não se destina a indicar apenas uma semelhança, mas


confronta a canção ironizada. Desloca-se a canção religiosa para um novo contexto,
a do desejo sexual. Pode-se ler esse deslocamento no texto angolano, à luz do
conceito de desterritorialização de Deleuze e Guattari (2017), na prática da literatura
menor. Segundo os teóricos, esse tipo de literatura subverte fronteiras, sejam
físicas, culturais e tradicionais da língua maior. No caso, Ferreira utiliza de modo
subversivo os textos religiosos trazidos pelo colonizador português, posicionando-se
frente ao elemento cultural herdado. O corpo em jogo é o corpo libidinoso de uma
mulher, desejante não pelo Cristo, mas por um homem que também a deseje, de
fato.

Por outro lado, apesar de a esposa ressignificar o tipo de fome e o tipo de


corpo, numa conotação lasciva, e não religiosa cristã, ainda há uma preocupação,
sugerida pela voz do coro que fica “martelando” na mente dela. Seria o eco de uma
culpa? A culpa cristã carregada no corpo desejante? Cavalcanti (2005) é
contundente sobre a dificuldade de o sujeito (ele ressalta o ocidental), mesmo no
século XXI, se libertar dessa culpa no que concerne à relação sexual. Na verdade, o
81

ensaísta usa o adjetivo “inapagável” para esse ressentimento. Se de fato assim o


for, indelével, é preciso outra ação para dar conta de uma narrativa excessiva como
a cristã, que subjugou povos para além do Ocidente com o par prazer sexual x
pecado. O riso em Ferreira pode ser visto como essa ofensiva, que vem para
exageradamente riscar, rasurar, sobrepor outro texto sobre a herança narrativa do
colonizador.

O termo “martelando” nos transporta ao “fantasma do anjo do lar” de Woolf,


“que celebrava o amor conjugal e idealizava o papel doméstico das mulheres”. Essa
voz-fantasma interferia no processo de escrita, mas, segundo a ensaísta inglesa,
parecia vencido. O problema, no entanto, era falar do corpo, confessa:

Matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora. [...] E de fato
ficou na mais viva angústia e aflição. Falando sem metáforas, ela [a
ensaísta enquanto romancista] pensou numa coisa, uma coisa sobre o
corpo, sobre as paixões, que para ela, como mulher era impróprio dizer. E a
razão lhe dizia que os homens ficariam chocados. Foi a consciência do que
diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas paixões que a
despertou do estado de inconsciência como artista. [...] Então, essas foram
duas experiências muito genuínas que tive. [...] A primeira – matar o Anjo do
Lar – creio que resolvi. Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre
minhas experiências do corpo, creio que não resolvi. Duvido que alguma
mulher já tenha resolvido. (WOOLF, 2017, p. 14-17).

Isabel Ferreira escreve com uma determinada abertura sobre os corpos


femininos, sobre seus desejos, de maneira que parece não temer “o anjo do lar”, o
deus cristão, figura esta satirizada em sua narrativa. No entanto, o não temor é feito
sob uma escrita tensionada, com ruptura em alguns pontos e manutenção em
outros, pois, numa terra em que entidades públicas não se comunicam com
seriedade, apresentando informações discrepantes, não é uma tarefa simples propor
uma estética literária subversiva em relação à dominação masculina.

A ausência de reconhecimento da violência doméstica pelas instâncias


públicas mais próximas das mulheres, no caso as entidades municipais, talvez
auxilie na compreensão da manutenção de alguns posicionamentos de Isabel
Ferreira em relação ao discurso hegemônico masculino. Busquei elucidar a questão
do posicionamento da autora na seção 4.5, em que se discute se houve ou não um
prognóstico do fim do autoritarismo masculino na obra OGM, e no último capítulo da
82

tese, questiono a insistência em OGM pela figura naturalizada e idealizada da


mulher-mãe-esposa-irmã.

Em Niketche, o livro poético bíblico foi destacado por Cândido Rafael Silva:
“Em vários momentos da narrativa, principalmente quando explodem as tensões na
estória narrada pela protagonista do romance, surge uma pausa para o lirismo [...],
fazendo-nos recordar do Cânticos dos cânticos. (SILVA, 2009, p. 31-32, grifo do
autor). De fato, se contrastarmos com OGM, o estilo lírico de Cântico dos cânticos
aparece com veemência na obra de Paulina Chiziane, claro, “reconfigurado
literariamente”, pontua Antonio Manuel Ferreira (2013, p. 85). E mais, Chiziane
recupera, em partes, a leitura que recoloca o livro epitalâmico no seu lugar de
erotismo, conforme defendeu Geraldo Cavalcanti (2005). Vejamos um exemplo
dessa leitura. Trata-se do momento em que Rami, ao conhecer outra mulher de
Tony, assim a descreve:

A boca dela é um caju fresco, vermelho, colhido no divino cajual. O sorriso


dela brilha mais que o diamante. A sua voz solta cantos, solta pombos
brancos, pérolas, pepitas de ouro. Tem a pele mais lisa que o vidro polido.
Como é bela, meu Deus! Sinto por ela uma torrente de fraternidade, uma
atracção tão mágica como o amor à primeira vista. Trocamos confidências
como velhas amigas, como irmãs gémeas. (CHIZIANE, 2004, p. 214).

A recuperação parcial do lugar do erotismo se deve à mudança de paradigma.


A sedução amorosa continua, como se pode perceber no excerto literário, mas o par
erótico mudou. Não se trata de esposo e sulamita, mas duas sulamitas.
Encontramos paralelos em Cântico dos cânticos. Sobre a boca: “os teus lábios são
como fio de escarlata, e tua boca é formosa” (Ct 4,3); no excerto de Niketche “a
boca dela é um caju fresco e vermelho”. Sobre a voz: “pomba minha, a tua voz é
muito doce” (Ct 2,14); no excerto “a sua voz solta cantos, solta pérolas, pepitas de
ouro”. Sobre a pele/face: “as tuas faces, como romã partida, brilham através do véu.”
(Ct 4, 3); no excerto “tem a pele mais lisa que o vidro polido”. Sobre erotismo e
irmandade: “Tomara fosses como meu irmão, que mamou os seios de minha mãe!”
(Ct 8,1); no excerto “Sinto por ela uma torrente de fraternidade, atracção tão mágica
83

como o amor à primeira vista. Trocamos confidências como velhas amigas, como
irmãs gémeas30”.

Neste último exemplo comparativo, destaca-se o uso de intensificadores


desse amor arrebatador entre os iguais como “torrente” e “atracção tão mágica”. Se
compararmos essa intensidade com os versos bíblicos, talvez pudéssemos insinuar
uma atração lésbica, como sugeriu Sérgio Sousa (2018). É curioso saber que a
sugestão de Sousa se encontra numa nota de rodapé, inclusive, ele cita outra parte
daquele excerto literário, e fiz questão de transcrever a seguir. Decerto, que a
insinuação erótica não era o objeto de estudo do pesquisador. Por isso, escolhi
trazer à luz o amor entre iguais e destacar o quanto Rami sente-se arrebatada por
aquela mulher, cuja boca é um caju vermelho. Essa mulher tem nome, nada menos,
do que Eva:

Ela tenta secar o meu rio com as mãos nuas. Aquelas mãos correm suaves
no meu rosto, como flocos de algodão. Aquelas mãos transmitem calor
como asas de galinha cobrindo os pintos. Descarrega sobre mim um
oceano de ternura. Coloca o seu braço delicado sobre o meu ombro.
Abraça-me. Sinto o cheiro do perfume dela. O Tony tem razão de se perder
de amores por ela, como ela é boa, meu Deus! (CHIZIANE, 2004, p. 215-
216).

Assim, além do par sulamita, podemos ler a declaração erótica de Rami como
questionadora do paradigmático casal Adão e Eva, construindo, portanto, um novo
par Rami e Eva ou Eva e Rami. Chiziane reconstrói o erotismo, o prazer desfrutado
pela própria mulher. O cômico disso tudo? Ora, como não rir desse espelhamento
restaurador da atração entre mulheres, seja a da fraternidade ou a do desejo
sexual? Como não experienciar um riso de quem descobre outro modo de estar-
sendo mulher? E que venham as vulvas.

4.3 viúvas e vulvas

30Cândido Rafael Silva (2009), em sua dissertação, explora a metáfora dos espelhos e dos duplos na
obra Niketche.
84

Kiluva, depois da morte do marido Hunende, recusa os rituais que obrigam a


viúva a se casar com o irmão do falecido cônjuge:

- Tradição... tradição... tradição! Deus! Deus há de perdoar! Deus nunca


proibiu o amor. Aliás até dizem que perdoou a mulher que teve cinco
maridos. Não foi a ela que Jesus pediu água... Xé, amiga, me deixa
deambular com a minha vagina. Essa flor que tem um cheiro que só é meu.
E quanto aos kotas... Estou cansada de ouvir tantos falatórios em nome de
rituais. Quero amar... quero viver! Quero hospedar em meu coração um
novo amor. (FERREIRA, 2008, p. 186).

A personagem não economiza palavras para expressar um corpo voluptuoso.


Também não há economia nos sentidos de seu nome. Franciane Silva detalha o
perfil da jovem:

Ao fazer a associação entre as palavras “vagina” e “flor”, Kiluva se apropria


do discurso masculino, ressignificando uma expressão que foi construída
pelo ideário romântico conservador. Assim, “a vagina-flor”, antes
considerada como um símbolo de pureza, associado à virgindade, torna-se
um elemento de transgressão. Desse modo, quando ela torna quase
religioso seu corpo, está a usar uma das maiores ou mais efetivas armas do
poder contra ele mesmo. Ou seja, ao tomar posse do seu corpo, assim
como se apodera do discurso do prazer, ambos os elementos que antes
seriam de direito exclusivo do masculino, tornam-se componentes de
subversão contra o poder instituído. (SILVA, 2014, p. 64).

O movimento do “quase religioso” – tensão e elasticidade – faz Kiluva


ressignificar o sentido de sua vida oprimida pela dupla narrativa: a cristã, que, sob
um julgamento dúbio, condena as mulheres que buscam o prazer próprio,
alegorizado na mulher com cinco maridos, anteriormente citado por Kiluva, cuja
referência está no livro bíblico João, capítulo 4, versos de 1 a 18; e a narrativa da
tradição angolana sobre como deve ser o comportamento das viúvas.

O comportamento ousado de Kiluva está atrelado ao próprio nome. A escrita


isabelina joga com a morte e com a vida nesse nome: Kiluva, viúva sim, símbolo de
perda, morte, mas viva de prazer, porque seu “corpo não obedece a tradições”, “não
obedece ao luto”, porque “a carne está viva”, é “matéria viva”, “sente e quer prazer”.
E continua: “nunca ouvi alguém dizer ao corpo: corpo não sente vontade, estás de
luto. O luto! Luto! Luto... O defunto não corta tesão, nem dinamismo nas pernas”.
(FERREIRA, 2008, p. 184). Kiluva, dona da sua vulva, não era uma mulher sofrida,
85

nem viúva recatada, como as pessoas da comunidade esperavam, mas amava e


gozava os prazeres da vida.

Isabel Ferreira experimenta as palavras porque elas são matéria viva. A


autora angolana questiona o pudor que cerceia a liberdade feminina por meio da
construção de suas personagens, fazendo, por exemplo, Kiluva expressar: “Xé,
amiga, me deixa deambular com a minha vagina” e “Já não tenho mesmo cabaço”.
(FERREIRA, 2008, p. 186). Embora, logo em seguida, Kiluva seja advertida pela
amiga Mavinda Massogi “Ó Kiluva modera a linguagem.” (p.187), a tessitura de
Ferreira reafirma o sorriso cúmplice entre mulheres e, após a repreensão, o narrador
afirma: “ambas sorriram por motivos análogos.” (FERREIRA, 2008, p. 187). Quem
sabe esse seja um sorriso por deambular ousadamente com as palavras.

Rami também se posiciona diante do luto, no caso o cristão, e da negação do


desejo, zombando: “Para quê tantas lágrimas, abstinência, se o morto está morto e a
vida continua? Chamem-me de desavergonhada. Deem-me todos os nomes feios
que quiserem. Sou mulher e basta.” (CHIZIANE, 2004, p. 221). Rami e Kiluva vão
assenhorando-se do próprio corpo em palavra e ação. Rami, que vive um processo
de mudanças e reflexões, consegue afirmar o que antes temia dizer “Sou mulher e
basta”, e isso é suficiente para quem antes só via fardo no ser mulher. No caso de
Kiluva, ela se afirma também pelos pronomes possessivos “minha” e “meu”: “minha
vagina”, “flor que tem um cheiro que só é meu”. Assim, o jardim-paraíso-vulva é dela
e não monopólio do homem. Kiluva redireciona os sentidos de posse. Ela o faz ao
dizer que o marido não é mais seu, mas é da terra.

“Da terra” parece aludir à expressão bíblica “ao pó tornarás”, porém sob a
perspectiva da mulher que fura a imagem insuflada, oca, do homem que recriou uma
poligamia em benefício próprio. Essa mulher destitui-o do seu lugar construído
tradicionalmente como o de “deus”, palavra usada ironicamente pelo narrador para
se referir ao marido de Donamarguita, morto num acidente, mas que ainda seria
honrado pela castidade dela (FERREIRA, 2008, p. 67); ou, como já dissera Mavinda
Massogi, sobre o que aprendera da tradição, marido é “dono e senhor”. (FERREIRA,
2008, p. 192). Sabemos, pois, que a morte é realidade da existência humana, e isso
nos inquieta. Mas a finitude do poderio masculino parece assustar mais, porque ela
acontece duplamente: na escrita e no protagonismo no riso de Ferreira.
86

Em Niketche o marido de Rami também morre. A princípio foram duas


mortes: quando foi se encontrar com uma nova mulher e, sem dar notícias, Tony foi
dado como morto, embora não o tenha sido de fato; e ao final do romance, ele morre
definitivamente, se pudermos fazer tal afirmação.

Destaquemos, neste momento, a primeira morte. Rami, apesar de


desconfiada do falecimento do marido, aceitará a tradição de Kutchinga, segundo o
glossário, presente em Niketche, significa levirato (CHIZIANE, 2004, p. 335). Essa
prática consiste na relação sexual entre a viúva e o cunhado. De acordo com a
crença, o ritual serve para purificar a mulher e evitar infortúnios, como esterilidade,
instabilidade no novo lar.31 Segundo Eulália Temba (2004), esses rituais, inseridos
no modelo cultural patriarcal, criam vários constrangimentos32 com o intuito de evitar
que a viúva volte a se casar e tenha uma vida normal.

Diferentemente de Kiluva, Rami cumpre a tradição, e de maneira feliz, porque


sabe que desfrutará de um prazer que há tempos não experienciava. Podemos
comprovar quando ela diz que olha para o cunhado Levy “com olhos gulosos”.
(CHIZIANE, 2004, p. 221). Nota-se que o jogo se inverte pelo processo de
autoconhecimento da protagonista moçambicana. Se antes a gula era permitida
unilateralmente, do homem apenas, cabendo à mulher somente o lugar de objeto
dessa voracidade, agora Rami redescobre o seu apetite sexual e pela própria
tradição.

Olhar para o Levy com olhos da cobiça é de entreabrir um sorriso na face do


leitor, porque a personagem sabe jogar com a lei. Ela aprendeu a brincar com a lei,
a partir de suas próprias experiências e das experiências de outras mulheres
oprimidas e violentadas pela supremacia masculina. Rami cumpre com prazer o
levirato, infringe deliciosamente a lei cristã sobre a concupiscência dos olhos, e
ainda, pela via da ironia, imputa ao deus cristão um desejo que é dela: “Deus queira

31Segundo Eulália Temba (2004), “muitas vezes a morte do marido” é “associada a um feitiço feito
pela mulher para o matar e ficar com os bens.” Por conta dessa associação, muitas vezes os rituais
de purificação são utilizados como testes para legitimar a “culpabilidade” da mulher na morte do
marido, para que ela não fique com os bens.
32 Além de Eulália Temba, Aline Beatriz Miranda da Silva (2019) discutirá sobre as práticas da viuvez
em Moçambique. A partir de uma pesquisa de campo com mulheres viúvas na cidade de Maputo,
Aline Silva apresenta diferenças de sentido da viuvez para essas mulheres. Entre obrigação ou
proibição de vestir o luto, as mulheres sofrem de modos distintos, concluirá a pesquisadora.
87

que o Tony só regresse a casa depois deste acto consumado.” (CHIZIANE, 2004, p.
221).

A história do corpo e o cristianismo vem de tempos antigos. Le Goff, na obra


Uma história do corpo na Idade Média (2006), afirma:

De um lado, o corpo é desprezado, condenado, humilhado. A salvação, na


cristandade, passa por uma penitência corporal. No limiar da Idade Média, o
papa Gregório, o Grande, qualifica o corpo de “abominável vestimenta da
alma”. O modelo humano da sociedade da alta Idade Média, o monge,
mortifica seu corpo. O uso do cilício sobre a carne é o sinal de uma piedade
superior. Abstinência e continência estão entre as virtudes mais fortes. A gula
e a luxúria são os maiores pecados capitais. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.
11, grifos do autor).

Chiziane e Ferreira, por meio de Rami e Kiluva, riem da “abstinência” e da


“continência”, como normas de conduta, sejam da vida religiosa ou civil,
consideradas medidoras do corpo como templo de Deus. Retomemos Frye (2006),
quando afirma que, na tipologia cristã, além do corpo de Cristo, a “palavra” é
também o templo antitípico, símbolo do templo de Deus. Ou seja, a palavra, nessa
cosmovisão cristã, precisa ser bem dita porque ela guarda o divino. As duas
personagens das narrativas africanas dirão o sagrado, mas do jeito delas, com
luxúria, gula e riso.

A palavra e tudo o que habita o universo são sagrados para os africanos, na


perspectiva de Hampâté Bâ: “a palavra é a exteriorização das vibrações das forças
(...) no universo tudo fala, tudo é palavra que tomou corpo e forma.” (HAMPÂTÉ BÂ,
1989, p. 15). Por essa razão, Rami se apropria do ensinamento de Mauá, uma das
mulheres de Tony, e repete: “o paraíso está dentro do meu corpo.” (CHIZIANE,
2004, p. 179, 225). Repare: Rami aprendeu pela palavra de uma mulher e uma
mulher rival. Essa é uma postura disruptiva. Isso sim golpeia o sistema patriarcal,
uma vez que se transfere o domínio da narrativa da poligamia para a esfera
feminina.

Kiluva e Rami, entre revogação e cumprimento da lei, ambas


desterritorializam o mito fundador do jardim do Éden, cada uma ao seu modo de
lidar com a tradição. Elas ressignificam, portanto, o jardim das delícias, encontrando-
o, cada uma, em sua flor-vulva.
88

Nesse sentido, um reencontro com o próprio corpo e o poder de decisão


sobre ele fazem as personagens femininas atualizarem o sentido de par trágico.

4.4 à guisa de par trágico?

As duas cenas literárias trabalhadas nesta seção trazem novas configurações


para se pensar o clássico par trágico, seja Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Otelo e
Desdêmona, para citar alguns, nas obras africanas em estudo. A primeira cena está
em OGM, no capítulo intitulado “Kafrique tens medo?”. Trata-se de um encontro
sexual entre Mavi e Kafrique. No caso, quem conduz todo o jogo de sedução e
conquista é a mulher. Antes de transcrever o trecho que exemplifica o conflito
instaurado, preciso contextualizar as personagens.

Kafrique é um kota, palavra em quimbundo para significar um mais velho, e


tem quatro mulheres e dezessete filhos. Conheceu Mavi no funeral de amigos e
parentes mortos em um acidente de avião e ajudou-a a superar a morte dos pais.
Ambos têm uma vida simples, ele é um guarda-mansão, um segurança, e conseguiu
um emprego de ama para ela na casa de seus patrões. Ele se arrepende de ter
exercido temporariamente o papel de protetor, pois, segundo ele, Mavi agora o
controla o tempo todo. Kafrique sempre prezou pela afirmação de sua virilidade,
perdendo a conta dos amores. Mas, em sua experiência sexual com Mavi, ele se vê
confuso diante da ousadia e independência dessa mulher. A situação é esta:

[Mavi] Levou-o ao Novo Hotel Luandinense. Ambos entraram num dos


luxuosos apartamentos do hotel. Ao fechar a porta, ouviu-se o trecho
musical de Maria Betânia:
Dona do dom que Deus me deu. Sei que é ele a mim que me possui... E as
pedras do que sou dilui. E eleva em nuvens de poeira. Mesmo que às vezes
eu não queira, me faz sempre ser o que sou e fui. E eu quero, quero, quero,
quero ser sim.
Por razões diferentes ambos sorriram. [...]
- Hoje estou só para ti! Quero... tornar o possível eterno. [...]
- Toma- me, sou tua.
(FERREIRA, 2008, p. 215-216, grifos da autora).
89

Por que sorriram após ouvir uma canção? Alegria, satisfação, poderíamos
concluir. De fato, mas foi dada a expressão “por razões diferentes”, por isso,
tentamos compreender qual seria o sentido de sorriso para cada um. Seria porque a
música revelou seus desejos cúmplices, mas com expectativas diferentes? Seria
pelo sorriso desconfiado do que está por vir, pela elevação “em nuvens de poeira”
do ápice do prazer? Seria pelo prenúncio da diluição das “pedras”, das verdades que
habitam os seres, mesmo que eles não queiram essa dissolução ou a ela resistam?
Seria um sorriso de medo pela entrega sem reserva aos afetos? São várias as
possibilidades. Há, porém, alguns caminhos de leitura escolhidos, a partir de pistas
textuais no desenrolar da história.

A cena parece inoportuna para que haja razões diferentes do sorriso, pois a
música não é nada engraçada ou cômica. O sorriso em si é gratuito, mas coube ao
narrador a tarefa de criar tensões ou sugeri-las. Então, comecemos a compreendê-
las com base no diálogo entre Lélia Duarte e os estudos de George Bataille:

Os seus estudos [de Bataille] sobre o erotismo refletem sobre a busca


psicológica que impulsiona os seres humanos inconformados descontínuos
que, desde o nascimento, procuram a continuidade com o outro, embora
essa continuidade signifique paradoxalmente a morte. Certamente será
esse um dos motivos pelos quais o homem busca o amor e ao mesmo
tempo o teme, pois a entrega sem reservas equivale ao desaparecimento
do ser. (DUARTE, 2006, p. 52).

Talvez o sorriso tenha sido um instante, mesmo curto, de um distanciamento


necessário para visualizar o drama de uma entrega amorosa. Analisemos, então, a
perspectiva de cada amante após ouvirem a mesma canção, mas que se faz outra
em terras angolanas. Kafrique aprendeu, na convivência com as velhas tradições
angolanas, que o jogo sexual deve ser uma iniciativa do homem. Nesse espaço e
nos longos anos de vida, foi produzida sua subjetividade, estabelecendo-a sempre
socialmente.

No entanto, as iniciativas de Mavi de levá-lo a um local luxuoso, distinto de


suas realidades econômicas e sociais, de orientar o jogo de sedução e tocar não
apenas a composição de Chico César, mas tocá-la na voz de Maria Betânia, todas
essas inscrições textuais fazem vir à tona as complexidades dos indivíduos e da
sociedade angolana. Em uma cena, há vários contrastes, conflitos: quem declara um
90

desejo é a mulher, que não mede esforços, inclusive o econômico, para seduzir o
amante; por sua vez, há uma crítica social sobre o empenho dos sujeitos para
idealizarem sonhos, alimentados pelos contos de fadas que ambientalizam a paixão
em castelos, no caso, a cena se deu em “Novo Hotel Luandinense”, num dos
“luxuosos apartamentos”; por outro lado, esses contos estão atualizados na capital
angolana nitidamente segregacionista, engendrada pelo consumismo.

A iniciativa da jovem e toda a condução do jogo amoroso está pautada numa


subjetividade feminina que vem sendo construída em um tempo-espaço (Luanda sob
a égide da modernização, globalização, valores ocidentais cada vez mais infiltrados)
distinto de Kafrique (um mais velho polígamo, porém uma poligamia, como já temos
visto, conduzida conforme os caprichos do próprio homem e não conduzida entre os
envolvidos na relação). As falas, as provocações de Mavi, sinalizam um papel
feminino transgressor em relação ao tradicional papel masculino, assustando,
portanto, o Kota, como mostra o trecho:

- Não me digas que não me queres?


- O que é isso, menina?
- Menina, não! Sou mulher! Sorrindo colocou a perna direita sobre a cama,
deixando-a descoberta. A saia rodada desprendeu-a intencionalmente, e
provocou-o:
- Então Kafrique, tens medo de mim? Não me desejas? [...]
- Não é isso! Não quero nada contigo, miúda... [...]
- Vamos vadiar: Sê homem, meu amor! Acende-me de prazer.
Kafrique riu-se. E de repente pôs-se a sério, dizendo:
- Vá, lá miúda tem juízo! Não te quero magoar! [...]
Num tom galhofeiro falou:
- Oh! Afinal, foges as mulheres? Tu até és um mulherengo, e agora estás a
recuar. Medroso!
(FERREIRA, 2008, p. 216-217).

De um sorriso sedutor ao galhofeiro, tudo pode ser alvo do riso, incluindo a


masculinidade que parecia tão evidente, esculpida na seriedade, na imagem de um
homem impassível, duro, viril a toda prova. (BADINTER, 1993). Por um momento,
recordo-me de uma ilustração de Bergson, usada para comprovar que o cômico
resulta de uma rigidez e não de uma flexibilidade. É um exemplo simples:
91

um homem, correndo na rua, tropeça e cai; os passantes riem. Rimos


porque ele se sentou involuntariamente. Não é, portanto, sua brusca
mudança de atitude que faz rir, é o que há de involuntário na mudança, é
sua falta de jeito. (BERGSON, 2018, p. 40).

Os risos de Mavi são uma resposta ante um tropeço de uma narrativa que
corre há séculos como verdadeira, única – a masculinidade do homem só é
verdadeira quando tangível ou verificável –, mas que, posta à prova nas relações
interpessoais, titubeia. (BADINTER, 1993; HEFEZ, 2013). O que faz rir na cena é a
falta de jeito de Kafrique em sustentar sua narrativa de homem viril. E essa falta de
modo anuncia uma fenda na simbologia criada em torno do homem sempre ativo,
penetrante. Anuncia também uma rachadura no silenciamento de um corpo feminino
desejante.

A ousadia de Mavi o afetou tanto que, posteriormente, em confissões a um


amigo, ele culpa as mulheres: “Mas as mulheres é tudo igual. Se eu, não desse o
tranco, ia afamar a minha virilidade. Eu haveria de ouvir. Aquele kota não levanta!
Tem uma arma que não detona! Épa, tive que agir, naquele momento gozei ao
máximo.” (FERREIRA, 2008, p. 222). Por outra perspectiva, Mavi retroalimenta esse
ideal de potência masculina, ao chamá-lo, por exemplo, de “medroso” ou dizer “Sê
homem”. Porém, não se trata de culpabilizar as mulheres, mas atacar a raiz, o
sistema patriarcal.

Kafrique ri com o amigo um riso que conserva o seu lugar de supermacho


porque aprendeu as regras do jogo da narrativa do ideal masculino. A fala de
Kafrique, por outro lado, torna-se a expressão de uma angústia masculina assim
avaliada por Serge Hefez: “quanto mais [os homens] se sentem na posição de
perigo em suas relações com as mulheres, mais os homes têm necessidade de
humilhá-las”. (HEFEZ, 2013, p. 115). Mas a humilhação veio posteriormente, em
modo de confissão: “mulher é tudo igual”.

À luz dos estudiosos David e Brannon, retomados por Elizabeth Badinter


(1993), Kafrique cumpre o estereótipo do homem que precisa marcar uma
superioridade em relação aos outros, medida pelo poder e admiração que provoca.
Para fortalecer esse estereótipo, tem-se a cumplicidade masculina, que ajuda a polir
a narrativa opressora, de acordo com a filósofa Badinter. Essa narrativa,
paulatinamente, sufoca o homem. Lugarinho (2015), citando a cultura vitoriana
92

burguesa, representativa da disseminação de um imaginário de masculinidade,


reforça as críticas a essas narrativas que potencializam a homossociabilidade,
maneira pela qual os indivíduos se envolvem para manter o estatuto hegemônico
masculino.

Além do medo de que Mavi pudesse afamar sua virilidade, Kafrique


confidencia outro medo: a de não dar conta de sustentar todas as suas mulheres.
Posterior às ordens de Mavi – “Sê homem!” e “Acende-me de prazer” –, o narrador
diz que ele ri e depois põe-se a sério. O riso, provavelmente, surge da segunda
ordem da moça; já o medo vem do confronto diante da realidade, revelada ao leitor
pelo narrador em terceira pessoa e por confissões do próprio Kafrique. Mavi é muito
jovem e ele já tem uma imensa família para cuidar. Em seus desabafos, ele admite a
incapacidade econômica e sexual de atender aos compromisso com as mulheres e
filhos.

Semelhantemente ao esfacelamento do discurso de hegemonia masculina de


Tony, no romance moçambicano, tem-se, no romance angolano, o caso de Kafrique.
Esses dois personagens ilustram o que Elizabeth Badinter afirmou: “cedo ou tarde, a
maioria dos homens compreende que está às voltas com um tipo masculino que não
consegue concretizar. Daí decorre uma certa tensão entre o ideal coletivo e a vida
real.” (BADINTER, 1993, p. 136). Parece que Kafrique se projeta nos versos de
Chico César, citados anteriormente: “Mesmo que às vezes eu não queira, me faz
sempre ser o que sou e fui”. O encontro com Mavi, portanto, sugere o esfacelamento
do ser calcado na supervirilidade e, ao mesmo tempo, faz Kafrique se descobrir um
sujeito frágil. Essa talvez seja uma descontinuidade temida pelos seres humanos ao
se envolver nas relações afetivas.

E o humor? Ora, rir pode ser revelador dos discursos ocos, sem sustentação,
porque a realidade é viva, acontece em relação, questiona nossas narrativas
idealizadas, seja por homens ou mulheres. Na cena, o humor mostra as
complexidades dos sujeitos, pois, em um único episódio, muitas questões se
entrecruzam: questões sociais, econômicas, temporais, valores do mundo
globalizado e locais.

Assim, depois dos sorrisos e das galhofas, a realidade caiu em Kafrique como
um peso, conforme admite: “Em toda a minha vida, posso dizer que fui violado.”
(FERREIRA, 2008, p. 219). A violação apagou a doçura e o sono, ficando o
93

pesadelo das consequências, das responsabilidades. A violação pode significar a


diluição das pedras constitutivas desse sujeito, pedras que o ergueram ao status de
intocável, um deus, o dono das mulheres. Mas não é uma dissolução comedida, é
um golpe baixo, ou melhor, um cafrique, do quimbundo kafiriki, uma palavra do
cotidiano de Angola, que significa golpe, espécie de mata-leão, um golpe no
pescoço, provocando o sufoco (CAFRIQUE, 2020; KAMBAMBE, 2020). Se em baixo
ou em cima, o sistema patriarcal que age em Angola, simbolizado metonimicamente
na personagem masculina Kafrique, sofre abalo da pena humorística de Isabel
Ferreira por todos os lados.

E tudo isso aconteceu após o “som de Maria Betânia num repeat contínuo
produzindo efeitos colaterais.” (FERREIRA, 2008, p. 217). Na memória do casal
Mavi e Kafrique, “em jeito de um par trágico, ficaram vestígios de um diálogo que
fermentou no âmago de cada um”, ficaram dilemas, afetos, desejos, marcas
(FERREIRA, 2008, p. 214). É um repeat, uma recorrência, porque, por um lado, a
narrativa de par trágico, de sofrer por um amor impossível de ser realizado,
atravessa continentes, é universal; por outro, não quer dizer que essa narrativa
insistente provoque os mesmos efeitos colaterais para todos. O tempo e o espaço,
no caso de Angola do século XXI, traz outros dramas, como se pôde perceber na
relação entre Mavi e Kafrique.

As questões nos sinalizam a complexidade das relações humanas, que se


movimentam, partilham, dividem, negociam, hierarquizam narrativas, deslocando-as
no tempo e no espaço e, portanto, gerando novos significados. Por essa razão, o
modo de narrar é outro. A cena nos mostra uma atualização das tragédias pela
encenação da voz e pela voz de mulheres, Maria Betânia e Isabel Ferreira. Esta
última redefine, reafirma o modo de dizer, procurando o seu espaço na escrita, e
com isso as estéticas também são desmontadas para dar lugar a uma nova história,
a um novo espaço inventivo e libertário.

Aliás, Rami também faz a escolha de ouvir uma música na voz de uma
mulher. Diz a personagem de Niketche: “O que vou fazer é ouvir uma música
agradável, na voz grave e masculina de um bom trovador. Não. Apetece-me ouvir a
voz feminina suave e dourada da Rosália Mboa.” (CHIZIANE, 2004, p. 149). A partir
da leitura de Ana Mafalda Leite (2003), aproprio-me dos termos “ab-rogar e
94

apropriar-se”33, como movimentos simultâneos, para pensar a negação da voz


hegemônica masculina, e assim as escritoras vão se apossando de novas vozes, as
femininas, e reconfigurando-as em suas escritas.

Além disso, evidenciar vozes femininas tem uma dimensão política. O


pensador francês Jacques Rancière (2005) afirmará que há uma estética na base da
política porque há na base da organização do que ele chama de “comum” uma
dimensão estética. O conceito de “comum”, segundo Rancière, constitui um espaço
em que nós, seres humanos, construímos a nossa subjetividade, estabelecendo-a
sempre socialmente. Por essa concepção, a nossa dimensão é política. O filósofo
acrescenta que o comum é produzido, organizado numa determinada forma de
partilha do sensível, que prevê quem ocupa determinados lugares, posições, quem
determina esses espaços, o modo como se determinam. Essa organização de
competências, delegações de funções, papéis, é também um modo de produção de
visibilidades. Novamente, essa partilha produz uma maneira de se apropriar e
experimentar o comum, numa operação, portanto, política e estética.

Nesse sentido, é preciso confrontar os efeitos de um cânone sobre


determinados povos, culturas, a partir de um conceito que sinaliza a complexidade
desse processo, visto que a partilha do sensível é, portanto, um processo que
implica participação e exclusividade, como se depreende da afirmação de Rancière:
“uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a
relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas.”
(RANCIÈRE, 2005, p. 7). Em razão do exposto, há uma urgência de ver a dimensão
política da arte porque esta provoca um deslocamento numa determinada forma de
partilha do sensível. Assim, o modo como as escritas de Chiziane e de Ferreira são
construídas, elaboradas, dizem respeito a um questionamento do lugar
predeterminado pelo cânone.

Vejamos outra releitura, à guisa de par trágico, que está em Niketche. A


segunda mulher do Tony é a Julieta, mulher oriunda das etnias do sul de
Moçambique, a mesma de Rami. Segue a descrição dessa outra esposa, feita por

33 Esclareço que Ana Mafalda Leite (2003, p. 19) relê o termo abrogation dentro de um conjunto de
ensaios sobre estudos pós-coloniais “The impire writes back: Theory and pratice in post-colonial
literatures”, organizado por Bill Ashcroft et al. (1989).
95

Rami quando resolve ir atrás das mulheres do recém-descoberto marido polígamo


por conveniência e deseja se vingar:

Penso muito nessa tal Julieta ou Juliana. Mulher bonita, ouvi dizer. [...]
De repente apetece-me ferver um pote de óleo e derramar na cara dessa
Julieta ou Juliana, para eliminá-la do meu caminho. [...] Rezo. Rezo com
todo o fervor para que essa mulher morra e vá para o inferno. Mas ela não
morre e nem o romance acaba. Enquanto ela viver, nunca terei o meu
marido por completo e eu não o quero dividir com ela. (CHIZIANE, 2004, p.
19).

A narrativa sobre Rami e Julieta, sobre Tony e Julieta, mostra a graça da vida
e o ridículo do ser humano; seus dramas e suas tragédias; o encontro da mulher
consigo mesma.

O par Tony e Julieta não vive um amor intenso, como a própria Rami
acreditou no primeiro momento ao vê-la bem alimentada, numa casa grande, linda,
rodeada de filhos, aspectos indicativos de cuidado, de responsabilidade do homem
por uma família na tradição moçambicana. Ao contrário, tudo isso não passava de
“um retrato pendurado” na parede, onde, “sorrindo para o mundo”, os “olhos de
ambos parecem estar fixos em mim, gozando-me”. (CHIZIANE, 2004, p. 21).
Certamente, as narrativas literárias são partilhadas, e com elas memórias e crenças
do que se preservou sobre o que se escreveu: a narrativa de um amor
romanticamente trágico fixou-se também no ideário moçambicano.

Mas Rami percebe que tudo “cheira a falso, tão falso como o amor que
construiu este lar” porque Julieta era “mais sofrida”, pois ela e seu filhos, segundo
Rami, não estão recebendo o amparo que seria justo, ao contrário, Tony só fazia
“promessas maravilhosas”. (CHIZIANE, 2004, p. 20,23,26). E continua Rami: “Sinto
pena desta mulher que lutou por um amor e acabou em dor.” (p. 23). A história da
Julieta moçambicana “revela-se uma verdade mais cáustica que uma taça de
veneno”, afirma Rami (CHIZIANE, 2004, p. 25). Chiziane ironiza o sentido de
tragédia ao comparar o grau de impacto na história de Romeu e Julieta com a
história de Tony e Julieta. Ou seja, parece mais resoluto matar dois personagens
que fizeram juras de amor e eternizar um amor incólume do que desfazer amarras
da hegemonia masculina em Moçambique, vinda de vários lados: pelos portugueses,
com a tradição cristã; pelos árabes, com a poligamia.
96

No norte de Moçambique, as mulheres, especificamente, de origem maconde


e macua, referidas na obra, são mais liberais, usufruindo de mais direitos. No sul, as
mulheres rongas e tsongas foram vítimas de um atravessamento cultural mais
intenso devido à colonização portuguesa, que sujeitou as culturas locais à cultura
europeia. Portanto, oprimidas pela paradigmática narrativa judaico-cristã, as
mulheres do sul sofreram um processo repressor mais acentuado, articulado pelo
sistema patriarcal.

O par Tony e Julieta cede ao par feminino, em cumplicidade, Rami e Julieta,


conforme Chiziane, que, por meio da boca da protagonista, segreda ao leitor:
“Estamos juntas nesta tragédia. Eu, tu, todas as mulheres.” (CHIZIANE, 2004, p. 25).
Tem-se, portanto, uma reciclagem do cânone, de ideais, de narrativas; objetos
estéticos-culturais passam por um processo de repetição e transformação.
(FONSECA, 2011; KLUCINSKAS; MOSER, 2007).

Desmancha-se o referencial de existência no qual o homem sempre foi o


espelho a ser seguido, aliás, sempre foi Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Otelo e
Desdêmona, e não o par ao contrário. Nessa narrativa moçambicana, porém,
valoriza-se a relação especular entre mulheres para refletir sobre as referências
existenciais femininas. Assim, Rami ou Julieta, pois as vozes no trecho a seguir não
estão bem delimitadas, profere uma para outra: “- Aí é que te enganas. As mulheres
são diferentes no nome e na cara. No resto, somos iguais. [...] Todas as mulheres
são gêmeas, solitárias, sem auroras nem primaveras.” (CHIZIANE, 2004, p. 26). Se
observarmos as sequências de falas, afirmaríamos se tratar de Julieta. Mas isso não
é garantia. Isso nos permite a inferência de que a diluição das vozes sinaliza o fato
de as mulheres serem tão iguais em suas dores.

Para sair da verdade das narrativas rígidas que classificam, rotulam,


subjugam mulheres em eleitas ou condenadas, as escritas das autoras
moçambicana e angolana zombam de determinadas situações que poderiam, em
outras circunstâncias, ser consideradas sérias. Talvez elas não peçam perdão ao
leitor, ou a determinado leitor, por acharem tanta graça nas questões oceânicas da
vida feminina. Rindo das personagens, dos pares convencionais, as autoras
reescrevem as metáforas de criação e destruição.
97

4.5 tens medo do apocalipse?

Para alguns, as ações, as falas, as escolhas, das personagens femininas


podem soar como um apocalipse, um fim do mundo. Pensando bem, apocalipse
mesmo é matar Deus usando o próprio verbo, o logos, a palavra. Fim do mundo foi
quando Nietzsche anunciou a morte de Deus, e sob a bandeira do riso. Ato profano.
Mas isso ainda é pouco e não é o fim. Imagina Deus ser morto pelas palavras e pelo
riso das mulheres? Imagina que essas mulheres sejam de Moçambique e Angola,
países que parecem estar no alto da pirâmide do patriarcado? Imagina:

É chegada "a hora do grande desprezo", é chegado o momento de


desdenhar tudo o que até então se venerou e, pelo mesmo movimento,
afirmar tudo o que até então se negou. Só assim será possível revelar o que
por trás dos valores instituídos se esconde e trazer à luz o que eles mesmos
escondem. (MARTON, 1999, p. 139, grifo da autora).

Nesse trecho, Scarlett Marton lê, em Nietzsche, o fim da cosmovisão cristã


radicada na figura de Deus. Matar o divino, a partir desse filósofo, pressupõe, em
sentido sumário, demolir as velhas tábuas, as estruturas sobre as quais os valores
cristãos foram enxertados. Cito dois exemplos de velhas tábuas cristãs sendo
arruinadas e que se articulam com os romances: “a alma olha(va)r com desprezo
para o corpo” e a desvalorização deste mundo em nome de um outro, essencial,
imutável, celestial. (NIETZSCHE, 2018, p. 13). Vale destacar que tábuas, leis,
valores estão interligados, pois desprezar o corpo é desprezar a matéria presente, o
mundo presente, para dar espaço a um mundo ideal. Nesse sentido, tais valores,
presentes no imaginário coletivo, servem para controlar, dominar os corpos, uma vez
que estes são ricos em possibilidades de dar sentido à vida. E essa riqueza é
questionadora do patriarcado.

Vale um adendo: não se pretende afirmar nesta tese a contiguidade entre


filosofia nietzscheana e cosmovisão moçambicana e angolana. Quando me aproprio
daquela filosofia,34 é para dialogar com as inquirições à tradição cristã e o tributo ao
riso. Questões polêmicas de ordem religiosa na escrita de Nietzsche não são

34Durante o momento da pesquisa não encontrei material endógeno de teóricos de países africanos
de língua portuguesa que teorizassem sobre o riso, por isso insisti na opção pelo filósofo alemão.
98

aspectos da tese. Isso precisa ficar claro porque, diferentemente, o mundo religioso
em países de África é um aspecto de grande valor e complexidade. A perspectiva
animista abarca uma visão de integração e harmonia entre a natureza e os
humanos, objetos e plantas, mortos e vivos. Tudo é vida, homens são deuses,
deuses são homens, objetos são vivos, humanos viram animais, o sobrenatural é
natural. (GARUBA, 2012; PARADISO, 2015). E mais uma vez, isso só confirma o
valor do corpo e de todas as formas possíveis de expressar vida por meio dele.

Voltemos à morte de Deus. A proclamação da morte divina nos romances,


indiretamente, já vinha acontecendo, por meio de indagações risíveis sobre qualquer
forma de opressão. Quero destacar, porém, a seguir, a verbalização dessa morte na
boca das personagens femininas.

Em OGM, a esposa no prólogo desabafa: “sinto que Deus está morto”, “queria
ter alguém ao meu lado para colher os meus desabafos.” E ela se ira: “Ah! Se eu
pudesse elevá-los a Deus! Mas Ele está morto! [...]. Deus está morto!”. (FERREIRA,
2008, p. 19). Cristo também não escapa de seu riso zombador: “o Filho de Deus
devia ser novamente crucificado, agora pelas mulheres.” (FERREIRA, 2008, p. 19).
As sentenças de morte aparecem várias vezes no prólogo e se alternam com a
sentença dada ao marido: “E o meu homem que um dia esteve vivo para mim, está
morto!” (FERREIRA, 2008, p. 24). Para o efeito iconoclasta, a autora, por meio de
sua personagem, coloca Deus e o homem na mira do riso zombeteiro, mostrando o
verdadeiro sentido contido na relação entre “a imagem e a semelhança” que
aproxima essas figuras masculinas: o gesto de abandonar.

Em Niketche, há algo similar. A crucificação também aparece, mas parte do


próprio Tony a verbalização do pedido sobre si mesmo, a fim de obter o perdão das
mulheres, ele diz “Crucifiquem-me [...], mas por favor, vos peço: perdoem-me”.
(CHIZIANE, 2004, p. 239). Nessa altura da narrativa, Rami desacredita no pedido do
marido, vendo-o como “recuo estratégico”, pelo tom de voz “baixinho” e de “suave
delírio” usado por Tony. (CHIZIANE, 2004, p. 239). Além disso, a protagonista vê em
Deus um ser falho e por isso há uma imagem distorcida entre criatura e criador:
“Nesta coisa de fabricar homens à sua semelhança Deus falhou em alguma fórmula:
Ele permanece solteiro e os homens polígamos.” (CHIZIANE, 2004, p. 130-131). A
comicidade vem da inesperada ineficiência de uma entidade divina a quem foi
99

creditada uma onipotência, uma perfeição; o humor ataca também a tradição de


poligamia.

Além disso, Chiziane, por meio da protagonista, ironiza a atitude de hipocrisia


quanto às crenças cristãs. Ou seja, o marido dela casou sob o regime monogâmico
do cristianismo, o que presumiria uma só esposa para um marido, o velho mito
fundador de Adão e Eva. No entanto, não é isso o que se observa no
comportamento de Tony, que vai lançando justificativas para sua prática de
abandono familiar.

Afronta-se, portanto, pela escrita, a segurança semântica e imaginativa toda


construída em símbolos de poder fálico de opressão. O cômico reside, claro, na
perspectiva de quem ataca e não do atacado, porque, assim, “o riso é uma
afirmação de poder sobre o outro”. (DUARTE, 2006, p. 53). Aliás, quanto mais
houver “o ar grave e severo, mais o gracejo parecerá repleto de sal”. (MINOIS, 2003,
p. 82). Mas será que é suficiente ter apenas um ar grave sobre discursos, narrativas
de tirania masculina? Será que é satisfatório apenas um gracejo cáustico?

Sérgio Sousa, ao analisar o signo da morte no romance Niketche, afirma que,


para fazer triunfar a emancipação feminina, não basta rir-se da dominação
masculina, “diagnosticar e desmistificar essa dominação, torna-se ainda forçoso
prognosticar o seu fim.” (SOUSA, 2018, p. 225). Nesse ponto, existe diferença no
término das narrativas das escritoras. Em OGM, a estimativa do fim daquela
dominação não é ostensiva como acontece em Chiziane. A moçambicana, afirma
Sérgio Sousa, é enfática no prognóstico da poligamia, ao usar um elemento valioso
da própria cultura, que é a semântica da morte. Por outro lado, penso que esse
prognóstico não exclui o riso, porque o encaminhamento narrativo com muito humor,
tecido por Chiziane, conduz a um final risível, ou a um fim trágico-risível, fazendo o
leitor esboçar um sorriso, retomando Lola Xavier. Acompanhemos a diferença da
perspectiva de fim da hegemonia masculina nas obras.

Na última cena do romance Niketche, as seguintes metáforas bíblicas são


evocadas, embora já viessem sendo anunciadas na obra: criação, queda, redenção
e um fim apocalíptico. Essas metáforas, além de sofrerem um processo de inversão
de sentido, se mostram imbricadas entre começo e fim. Segue o excerto para
análise:
100

Caminhamos até o jardim público. No jardim não havia gente. Éramos só


nós e as plantas naquele paraíso chuvoso, expondo o fogo dos corpos no
frio do mundo. Ficamos abraçados um longo tempo, ouvindo a voz de Deus
ordenando trovões, luzes, águas, no acto da criação. Éramos barro fundido
num só monte, ele Adão e eu a serpente, à beira do pecado original. Tenta
arrancar de mim uma gota de amor, uma palavra de reconciliação.
(CHIZIANE, 2004, p. 332).

O destaque ao jardim do Éden, lugar que “prefigura redenção que levará o


homem de volta ao nível superior” (FRYE, 2006, p. 172), parece um sinal de bom
agouro. Esse jardim, no entanto, apresenta peculiaridades, destacaremos duas. A
primeira é o inusitado casal edênico Adão e serpente, instalando, pois, o conflito.

Tradicionalmente, a serpente tem um significado maléfico, temível. No texto


bíblico, existe uma relação com a figura de Satã (Gn 3,4-5; Mt 3,7; Ap, 12,9), ou com
a sedução. Mas “ela também pode ser um símbolo da sabedoria genuína (Mt, 10:16)
ou da cura (Nm, 21:9), como na mitologia grega.” (FRYE, 2006, p. 182). Além disso,
existe uma relação da serpente com Lilith, considerada, no legendário, a primeira
mulher de Adão, ou “um monstro noturno de provável origem suméria e que é
mencionada em Isaías 34:14”, representada “como um ser fabuloso, com cabeça de
mulher e corpo de serpente”. (FRYE, 2006, 173-174). Observemos outro sentido:

Oportuno é lembrar que, nas mitologias africanas, a serpente, assim como


está escrito na Bíblia, representa a transformação, pois executa, como
afirma Miranda (1988, p. 97), um incessante movimento giratório em torno
da terra, acompanhando seu movimento de rotação e lançando energia de
uma intensidade capaz de deter o controle de tudo que for passivo de
mudanças e transformações [...] (FREITAS, 2012, p. 136).

Chiziane se apropria dos sentidos malditos de serpente e transforma-os, em


sua estética literária, em força de atuação contra o patriarcado. Parodiar esses
símbolos é uma artimanha de questionamento ao cânone, é uma forma de
desentranhar o que estava reprimido para que se conheça o outro lado da verdade.
(SANT'ANNA, 1991, p. 29). Enquanto Tony vinha com autocomiseração, com
chibatas sobre si mesmo, pedido de perdão e todo novelo da tradição cristã, Rami
sabiamente, numa postura de quem vinha aprendendo a não carregar culpas, deixa
o marido se enredar com as próprias palavras e crenças. Estas, sim, são maléficas
enquanto oprimem. A sabedoria também é articulada pelo riso irônico. Aliás, Nancy
101

Miller, retomada por Hutcheon, faz “um apelo para que as mulheres usem a ironia
como uma arma e um instrumento de mudança”. (HUTCHEON, 2000, p. 219).
Parece-me que levei a sério esse apelo no momento de elaboração da tese.

Soa inusitado correlacionar sabedoria e ironia, ainda mais se essa ironia


estiver na perspectiva de Hutcheon, um modo discursivo que deixa o alvo à flor da
pele, irritado. A relação é incomum se tomarmos como parâmetro uma afirmação
nebulosa de Eduardo Portella no prefácio do livro de Sergio Rouanet, Riso e
melancolia (2007). No primeiro parágrafo, Portella afirma que o autor do livro faz
uma interpretação “sábia e vibrante” das obras analisadas, embora “a sabedoria e a
vibração não costumam andar juntas.” (PORTELLA, 2007, p. 11). Novamente,
estamos diante de um incômodo com as vibrações. E com elas, a ideia de corpo, de
certa intensidade, vem junto.

Se as vibrações são raras, como atestou o prefaciador, faço algumas


indagações: a quem elas são permitidas? A quem cabe o pulsar de uma escrita?
Quem pode entrar nesse panteão de habilidade entre sabedoria e vibração no ato de
escrever? Chiziane, pela voz de Rami, sugere ao seu leitor, sua leitora, a quem cabe
essa audácia: “Meu Deus, eu sou poderosa, eu sinto que posso salvá-lo desta
queda. Tenho nas mãos a fórmula mágica. Dizer sim e resgatá-lo. Dizer não e
perdê-lo. Mas eu o perdi muito antes de o encontrar.” (CHIZIANE, 2004, p. 332-333).

Temeroso com o caos, Tony clama a Rami pela redenção de sua honra de
macho, querendo saber de quem é o filho em seu ventre. A “ideia de traição provoca
nos homens um cataclismo sem fim”, diz Rami, e ele vai vendo seu mundo em
ruínas, sem as outras mulheres, os filhos e agora perdendo a esposa principal
(CHIZIANE, 2004, p. 299). Rami não trai e cumpre a tradição do levirato, esperando,
portanto, o filho do Levy.

A protagonista também vinha clamando por um redentor. Desta vez, ela


reitera o pedido, mas de forma irônica: “Não te posso salvar. Tento salvar-te mas
não consigo, não tenho força, sou fraca, não existo, sou mulher. Os homens é que
salvam as mulheres e não o contrário.” (CHIZIANE, 2004, p. 333). É irônico porque
Rami aprendeu, no uso reiterado de “não”, a jogar com as palavras do dominador,
que lhe negou tantas maneiras de dar sentido a sua existência de mulher. É irônico
porque a “tradição guia a vida de Tony e, ao mesmo tempo, a destrói. Tony pede
perdão e pede salvação” e Rami, saindo do papel de heroína, “não perdoa e salva a
102

si mesma” (SANTANA, 2011, p. 97). Novamente, há uma inversão, se antes a


palavra da mulher não tinha crédito, agora, a palavra do homem, no caso o pedido
de perdão, passa a não ter importância, pois a palavra e a ação de Tony não
coincidiram.

Usando a própria declaração universalizante “Os homens é que salvam as


mulheres e não o contrário”, Rami atinge, pelo tom irônico, os heróis, os príncipes
que salvam as donzelas, presentes nos contos de fadas ocidentais e que alimentam
o imaginário coletivo. Tudo isso porque ela aprendeu a falar a verdade que, segundo
Woolf (1987), desmancha ou faz encolher a hegemonia masculina. Mas, ao mesmo
tempo, atinge as mulheres que acreditam nesses heróis, pois, uma vez os
salvadores atingidos, elas precisarão rever quem as salva mesmo.

Percebemos, pois, que a harmonia genesíaca nunca esteve no texto ficcional


moçambicano, porque o riso cáustico ou paródico, se lido à luz de Affonso de
Sant’Anna, sempre esteve ali, “colocando as coisas fora de seu lugar ‘certo’”.
(SANT’ANNA, 1991, p. 29, grifo do autor). Mas ainda não é o fim, e Sant’Anna
arrisca, numa linguagem mística, a definir a paródia como aquela que faz o jogo do
demoníaco, porque é um discurso que veio para dividir e não promover unidade,
como a paráfrase. (SANT’ANNA, 1991, p. 29). Nesse sentido, o texto ficcional de
Chiziane como um todo parece, inclusive, parodiar a fala de Jesus: “Não penseis
que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.” (Mt 10,34). E no
versículo seguinte do evangelho, fala-se em trazer “divisão”. Ou seja, a escrita da
autora joga com os variados sentidos de serpente, envolvendo suas personagens
em mudanças, transformações ou deixando-as, no caso de Tony, se entrelaçar e
morrer sufocado com suas crenças paralisantes.

A outra idiossincrasia do paródico éden moçambicano é abrigar em si, ao que


parece, o dilúvio. Segue o trecho que ilustra a junção desses dois eventos:

Coloca o chapéu na cabeça e mergulha na chuva.


Da minha mente correm histórias mágicas de gente desaparecendo no
vapor de água, na noite de trovoada, na manhã de nevoeiro. Entro em
pânico. [...]
- Tony, está frio.
- Eu quero sentir esta chuva, este vento, esta frescura. Quero que ela me
entre na alma e me acalme esta fervura.
103

A chuva lava tudo: o céu, o chão, o horizonte, a natureza inteira. Apaga o


fogo, mas não a amargura. A tristeza é de pedra, só o tempo pode roer.
[...]
As três trovoadas que um dia tentou encomendar contra o noivo da Lu hoje
atacam-lhe o cérebro, o coração e o sexo e fazem dele um super-homem
calcificado no éden da praça. Ele só vê o escuro e a chuva. Fica uns
minutos intermináveis a contemplar o vazio. Era uma ilha de fogo no meio
da água. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direção ao coração do
deserto, ao inferno sem fim. (CHIZIANE, 2004, p. 330, 331, 333).

Ou, se considerarmos a ordem em que os eventos aparecem, talvez fosse o


dilúvio a abrigar o éden. A água se apodera de tudo, do jardim e de toda criação.
Chiziane dilui nossas certezas, embaralhando a ordem, e parece mesmo
consubstanciar criação, queda, redenção, apocalipse, a cada cena literária de
Niketche. A separação que fazemos é para buscar compreender as nuances do
jogo de escrita e do riso em sua obra. Para isso, vejamos os sentidos de dilúvio e de
água.

Segundo Frye, o dilúvio é um ato de dissolução da criação, e por isso guarda


uma imagem da ira e da vingança divina, para uns, mas ao mesmo tempo imagem
de redenção e salvação, para outros, no caso a família de Noé, com a proposta de
um novo começo. (FRYE, 2006, p. 180). Para Chevalier e Gheerbrant, “água é fonte
de vida e morte”, é criadora e destruidora,

As águas, massa indiferenciada, representando a infinidade dos possíveis,


contém todo o virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as
promessas de desenvolvimento, mas também todas as ameaças de
reabsorção. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver
totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-
se, de novo, num imenso reservatório de energia e nele beber uma força
nova: fase passageira de regressão e desintegração, condicionando uma
fase progressiva de reintegração e regenerescência. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2017, p. 15-16).

Se antes a vida de Rami parecia condicionada à morte dos sonhos, do afeto,


da alegria, agora, pela “infinidade dos possíveis”, projeta outros destinos diferentes
do vivido. Quando Rami afirma que “a chuva lava o céu, o chão, o horizonte, apaga
o fogo”, mas não a amargura, a tristeza de Tony, porque “são de pedra” e isso “só o
tempo pode roer”, revela uma lucidez sobre os fatos vividos. (CHIZIANE, 2004, p.
331). Com a tomada de consciência, Rami acredita que ela pode mergulhar de novo
104

nas águas, saindo das verdades empedernidas nas quais ela havia erigido o sentido
do seu ser.

No entanto, Tony, metonímia do poder patriarcal em Moçambique, só “vê o


escuro e a chuva”, “a contemplar o vazio”, não mergulha, ao que parece, nas águas,
não se rende à sua fluidez e ao seu poder regenerador. Mas a narradora não disse
que ele colocou o chapéu e mergulhou na chuva? Mas ele não disse sobre o desejo
de que a chuva entrasse em sua alma e o acalmasse? Com essas duas perguntas,
que soam retóricas, salvamos Tony, como se anuíssemos o seu mergulho. Porém
deveríamos lembrar que suas palavras são “promessas”, “mentiras”, escamoteadas
pela sua voz “murmurante”, “doce” e “melódica”, “perfumada” (CHIZIANE, 2004, p.
237). Até a chuva desejada por Tony é calma. Talvez ele tenha acreditado ser o Noé
e por isso estaria protegido pela arca do sistema patriarcal, construída no “mais”,
descrito por Badinter:

Desde o surgimento do patriarcado, o homem sempre se definiu como ser


humano privilegiado, dotado de alguma coisa a mais, ignorada pelas
mulheres. Ele se julga mais forte, mais inteligente, mais corajoso, mais
responsável, mais criativo ou mais racional. E este mais justifica sua relação
hierárquica com as mulheres, ou pelo menos com a sua. Pierre Bourdieu
observa que "ser homem é estar instalado, de saída, numa posição que
implica poderes". (BADINTER, 1993, p. 6).

Tony parece ter medo da “infinidade dos possíveis” das águas; daquelas
águas agitadas, ameaçadoras do “mais”, isso seria um cataclisma sem fim.
Realmente, Chiziane não veio trazer calmaria, nem paz. Os personagens não riem,
mas o leitor é convidado a esboçar um sorriso, leve que seja, ou estrondoso que
seja. É chamado a convergir o riso para si mesmo, para suas convicções,
ingenuidades, arbítrios petrificados, e, então, se beneficiar de uma das funções do
riso, que consiste em se libertar de um sistema que oprime, conforme Lélia Duarte
(2006).

O cômico reside nos tropeços de Tony porque ele se achava seguro na


narrativa universal de uma masculina hegemônica, chancelada nos termos: “super-
homem”, símbolo de onipotência; “cérebro”, da razão; “sexo”, de virilidade;
“coração”, de coragem, se compreendida em sua etimologia.
105

Mas “coração” é também símbolo do amor. Como pode o amor ser atacado?
Geraldo Cavalcanti nos auxilia na leitura que proponho em relação à queda do amor:
“De fato, nenhuma religião fala tanto do amor quanto a religião cristã e nenhuma
mais do que ela para diabolizar o sexo.” Em seguida, o ensaísta cita Maurice
Valency: “O amor foi a base da igreja cristã. Toda a história humana – a criação, a
queda, a redenção, mesmo a danação eterna – foi o fruto do amor e somente do
amor.” (VALENCY apud CAVALCANTI, 2005, p. 209). Depois Cavalcanti contesta:

Mas desse amor que tudo compenetra, exclui-se a carne, aquilo que faz o
homem e que, para redimi-lo, Deus assumiu na pessoa do Filho. Ora,
mesmo a religião do temor sabia reconhecer que se podia e se devia
desejar também com a carne, com a mesma intensidade com que se
desejava com a alma. (CAVALCANTI, 2005, p. 209).

Calcificado está o símbolo que não mais faz sentido: o do amor cristão de um
marido monogâmico polígamo, já que não admite o corpo desejante de Rami por
outro homem, porque à esposa caberia o amor exclusivo pelo marido, critério distinto
aplicado ao homem. Tony é uma alegoria do autoritarismo masculino, e, por meio de
uma alegoria, segundo Benjamim, nos deparamos com a “facies hippocratica da
História”, isto é, sua face sofrida, que nos revela uma “protopaisagem petrificada”.
(BENJAMIM, 1984, p. 188, grifo do autor).

Portanto, se a árvore não dá fruto, como diria o texto bíblico, ela “é cortada e
lançada ao fogo” (Mt. 7, 19). Tem-se, portanto, a derrocada de uma masculinidade
tirana, porque a árvore que deseja florescer é outra, o ramo é outro, é Rami. Ou, os
ramos são outros, ramificados nas mulheres Julieta, Luísa, Saly, Mauá, Eva. E quem
anuncia, ou sugere, em Niketche, outra proposta de lidar com as relações
interpessoais é a própria mulher. Chiziane realiza o anúncio por meio de uma Maria
cheia de graça, a “Rosa Maria”, nome composto de sua protagonista. (CHIZIANE,
2004, p. 52). Rami aprendeu pelo espelho sarcástico, irônico – aquele que pediu
para ela varrer o lixo da alma, aquele que disse “quem és tu” – outra graça, não o
sorriso das virgens, mas o riso da vida em sua plenitude. Logo, a personagem riu
desde o começo da narrativa ficcional, mas a consciência sobre isso foi sendo
desenvolvida à medida que o riso dela se encontrava com outros fios de risos de
tantas outras mulheres.
106

O final de Niketche não parece, entretanto, o anúncio de novos céus e novas


terras. Não dá para afirmar, com tanta certeza, o que pode vir a significar o ápice de
uma crise no patriarcado. Talvez o que seja aterrador nesse final da prosa ficcional
moçambicana sejam as lacunas, os vãos deixados nas identidades e subjetividades,
de homens e mulheres. Aterrador é não poder encontrar horizontes, pontes,
corrimões para se agarrar. Por isso, ínsito nas ondas de incontáveis risos, a fim de
mergulhar em todas as possibilidades de vida que habitam o riso. Ou seja, afirmar
uma morte do patriarcado ou sugerir lacunas é deixar que o leitor experimente uma
gargalhada e/ou um esboço de sorriso. Eu? A minha escolha sobre o final? Prefiro
só rir a kudilar.35

Reitero, tal qual a ambivalência da água, que o riso pode conservar costumes,
ser um método de escamotear realidades, acobertar ou manter condicionamentos
cristalizados pela organização social. Ou pode sinalizar uma sabedoria de quem
joga com o riso para “repousar da fadiga de viver”. (BERGSON, 2018, p. 122).

Para auxiliar o leitor sobre o que estamos discutindo nesta seção, antes de
introduzir OGM em comparação com Niketche, sintetizo, em um dito popular, na
versão de pergunta: quem ri por último, no caso, as mulheres africanas que ocupam
o vértice na pirâmide de opressão, retomando Inocência Mata, ri melhor mesmo?
Dito de outra forma: existe, no final do romance de Isabel Ferreira, como pareceu
enfático em Chiziane, um riso de alegria, alívio, ironia, pela morte do divino, do
homem, simbolizando a morte do patriarcado?

No romance Niketche, escrito por uma mulher, predomina uma narradora


feminina, em primeira pessoa, no caso Rami, entrecortada pelos diálogos entre as
personagens. Já na obra OGM, escrita também por uma mulher, há uma profusão
de vozes de narradores e personagens, homens, mulheres, sejam eles, pobres,
ricos, estrangeiros.

Desses narradores, destaco Hunende, tanto pelo fato de sua voz aparecer
mais vezes na obra quanto pelo propósito de pensar a questão levantada sobre o
prognóstico do fim da hegemonia masculina. No entanto, precisamos conhecê-lo,
primeiro, para depois fazer essa articulação.

35Se você não conseguiu inferir o significado dessa palavra “Kudilar”, em quimbundo, fique tranquilo
eu explicarei. Mas só farei no próximo capítulo, o último da tese. Devagar, leitor.
107

Hunende, marido de Kiluva, surge na obra como um defunto que volta à Terra
e apronta algumas peripécias. Antes disso, no reino celestial dos brancos, espíritos
e seres se reúnem para decidir sobre o regresso de Hunende. Assim, ele é obrigado
a voltar a sua cidade para conhecer melhor o seu passado, pois não estava na hora
de ele morrer e porque a estadia naquele reino branco indicava algo estranho, já
Hunende era de cor preta e pobre. Nesse momento, o narrador-personagem se
assusta ao saber que até no mundo celestial havia lugares separados por cor e
classe.

Então, em tempo e espaço inapropriados para Hunende, ele precisava voltar


para se encontrar, diz uma das vozes daquele reino, ao contrário, se resistisse,
sofreria rejeição. De fato, Hunende não queria voltar porque achava a vida terrena
“dura e conturbada”, “um inferno terrestre”. (FERREIRA, 2008, p. 274, 277). Ao
regressar a Luanda, o narrador-personagem vive muitas confusões ao querer vingar-
se de alguns males causados a ele.

Com essa síntese sobre Hunende, destaca-se que Isabel Ferreira alude ao
defunto autor de Machado de Assis36, que, diga-se, foi um dos influenciadores de
leitura da autora. Em outra perspectiva, se tomarmos a cultura da fé em África, o
animismo, referida no início da seção, há peculiaridade. Essa cultura pressupõe uma
existência de integração entre natureza e humanos, mortos e vivos. (GARUBA,
2012). Então, quando Hunende afirma que habitará os corpos, causando neles
desconfortos, isso é natural, faz parte do dia a dia de como os angolanos concebem
a integralidade da vida. Além disso, a primeira morte de Hunende não é definitiva,
porque, antes, precisa desvelar algumas questões para, então, descansar tranquilo,
como afirma o narrador.

Entre o desconforto de regressar e ficar, ele já começa a rememorar seus


males contra Kiluva, durante os 12 anos de casado: “No íntimo, eu era um morto
arrependido! [...] Nunca fui terno, nem tão amoroso como devia. Aliás tratei a minha
Kiluva como um objeto de satisfação sexual. Enquanto lá fora... eu desfrutava a arte
sexual com mulheres alheias.” (FERREIRA, 2008, p. 278). No entanto, um dos
seres, que lá estava com ele, conta-lhe sobre Kiluva. Ao descobrir que sua “musa”,

36A tese de Roberta Maria Ferreira Alves “Olhares irônicos sobre a morte: memória e travestimentos
em narrativas de língua portuguesa” (2013) faz uma análise comparativa entre Machado de Assis,
Jorge Amado, ambos escritores brasileiros, Germano Almeida (Cabo Verde) e João Paulo Borges
Coelho (Moçambique), a respeito do tratamento irônico dado à morte em obras desses autores.
108

assim Hunende a chama, não guardou o luto e ainda namorava seu ex-chefe,
Hunende fica desolado e confessa: “fiquei estarrecido”, “sinto as dores da traição”,
“fiquei desnorteado, queria sair do Jardim Celestial, tocar em ti que nem S. Tomé em
Cristo Jesus!”, “chorei, sangrei de dor” (FERREIRA, 2008, p. 278-280).

O desnorteamento e a incredulidade de Hunende, sintetizada na personagem


bíblica de S. Tomé, ou seja, “ver para crer”, nos faz lembrar de Tony. Antes de Rami
verbalizar que o filho era do irmão, Tony proferia palavras de perdão e
arrependimento, até o momento da descoberta, quando “seus braços caem como
fardo” e ele se torna um sujeito “calcificado no éden da praça” e “só vê o escuro e a
chuva.” (CHIZIANE, 2004, p. 333). A traição da mulher também soa, na narrativa
angolana, como uma catástrofe para o homem polígamo, pois Hunende, assim como
Tony, absorveu uma idealização de imagem de mulher, mas que se desmoronou: a
da mulher-musa ou mulher-Eva, no caso a esposa principal, criada culturalmente
como única para o homem. Os dois veem, mas ainda não querem crer.

Se no Jardim Celestial, onde Hunende se encontrava, não estava sua Eva,


então ele vê um bom motivo para tão logo regressar e se vingar, não diretamente
dela, mas do chefe. Com essa importunação, o ex-chefe vai se afastando de Kiluva
e buscando outras mulheres. Kiluva, desolada, vai ao cemitério para acalmar o
espírito de Hunende que a importunava:

Numa manhã sórdida de sábado, Kiluva tentava apaziguar o meu espírito


chorando amargamente numa tumba que não era a minha. [...]
Kiluva me derramava lágrimas em campa errada. Nem se apercebeu.
Chorava e se questionava: Hunende porquê? Por quê? Deixa-me em paz.
Se eu quero ser feliz ao lado do teu ex-chefe não posso?
Mesmo morto, sou traído! Agora acredito na providência justiceira da deusa
Dike. (FERREIRA, 2008, p. 317-318).

Faremos duas leituras para essa cena. A primeira se ampara na afirmação de


Cleise Mendes: “Para sermos justos com ética da comédia, nem tudo nela é
libertação do medo, gargalhada triunfal, vitória sobre a angústia. É preciso
considerar um outro lado ambíguo, sinuoso, deslizante.” (MENDES, 2008, p. 212).
Assim, enquanto Rami, em Niketche, vai ganhando contornos de uma mulher
menos triste, mais leve, alegre, o que não significa menos duvidosa de suas
109

decisões, tendo em vista todo o contexto da tradição, Kiluva volta a sofrer com as
novas perturbações de Hunende e o abandono de outro homem por quem havia
sentido prazeres.

Sob uma ótica contrastante, a segunda leitura, que parece sobressair em


relação à primeira, propõe um gracejo de vitória, o da justiça moral. Esta cena nos
coloca diante de um riso corretor, próprio da comédia de costumes, conhecido como
"Ridendo castigat mores",37 expressão latina bem conhecida, que, traduzida, poderia
ser "Corrige os costumes rindo". Apesar de Kiluva chorar, sua tristeza é cômica
porque ela chora sobre o defunto errado, sugerindo uma traição dela quando ainda
era casada. Essa possível traição também foi sinalizada pela Dike, deusa grega da
justiça, antes mesmo do regresso de Hunende, quando a deusa diz a ele: “Tu
traíste. Mas também foste traído. Foste traído em vida e na morte! Como queres tu
justiça?” (FERREIRA, 2008, p. 279). Logo, a última frase “Agora acredito na
providência justiceira da deusa Dike” acentua a correção dada à personagem, e
dada pela escrita isabelina. A escritora inverte o choro de dor das mulheres em
choro cômico.

Afirmei que a segunda leitura se destaca porque apresenta o inusitado do


cômico. Lembremos que a traição masculina é naturalizada e legitimada pelo
patriarcado, tornando o comportamento de Kiluva um absurdo, de um lado, cômico
de outro.

Então, se Hunende admite o ato de justiça contra ele próprio, poderíamos


pensar em arrependimento, o que não é enfático na personagem Tony. Observemos
a seguinte cena, do último capítulo, para pensar melhor sobre a articulação entre o
riso corretor, o arrependimento e a morte da masculinidade hegemônica:

Por volta do meio-dia... Oiço os tantãs do chamamento. Há cânticos e


danças. [...].
É o canto da minha morte definitiva; é a entrada no meu outro mundo e no
meu verdadeiro espaço. O espaço para os defuntos-afros.
Com danças frenéticas dançam a minha partida. O rufar dos tambores é
estridente e quente.
- É o meu komba; é a festa do meu enterro definitivo!

37 Há distintas maneiras de sua formulação e diferentes traduções, segundo Marco Aurélio Silva
(2005).
110

[...] não mais causarei distúrbios na cidade Luandinense. (FERREIRA, 2008,


p. 326-327).

Diferentemente do final de Niketche, em que o fim de Tony termina com


“trovoadas”, “chuva”, “abismo”, “inferno sem fim”, em OGM a morte definitiva de
Hunende ocorre ao meio-dia, sob uma intensa claridade, com um enterro festivo.
Algumas escolhas semânticas e repetições lexicais sugerem um cenário de júbilo:
“cânticos” (duas vezes), “danças” (três vezes), o adjetivo “frenéticas”, que reforça um
corpo convulsivo, exultante, e a palavra “festa”.

O cenário em Niketche é caos para que algo novo se faça, renasça, como
sinaliza o filho no ventre de Rami. O cenário em OGM avulta harmonia, convergindo,
até certo ponto, com as ideias de Luther Link, retomado pelas palavras de Sérgio
Rizo, sobre as implicações temáticas dos apocalipses na arte: “o princípio do Juízo
Final não é o do conflito, mas o da harmonia por intermédio de um julgamento e de
uma separação, ocorrendo ajustes, dos eleitos e dos condenados.” Então, “quando
soa a última trombeta e os mortos retornam à vida o ajuste final é feito para todo o
sempre.” (RIZO, 2016, p. 80).

Os ajustes de contas em relação a Hunende aparecem em sua própria


afirmação, que atesta a redenção, presente no trecho outrora citado: “não mais
causarei distúrbios na cidade Luandinense.” A promessa dessa personagem
masculina parece ser resultado de um riso corretor que acompanhou Hunende na
viagem de volta a Luanda. Assim, a descrição final da segunda morte da
personagem de OGM sugere arrependimento de fato, sendo outro tipo de morte do
patriarcado, diferentemente da morte de Tony. Se esse personagem moçambicano
resistia ao arrependimento ou disfarçava-o, Hunende, ao contrário, como sugere a
escrita isabelina, se redime.

E aqui, para finalizar o capítulo, retomo o caso de Sofia, divertindo-me com as


palavras de Machado de Assis sobre o riso de sua personagem. Não precisa que o
carteiro exista,38 que Tony, Hunende, Kafrique, existam, para que possamos rir
deles. Basta a sombra da sombra de uma lembrança risível e o sorriso vem, leve

38Às vezes, nem é preciso que ele [o carteiro] caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista.
Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio
da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja – um nada.
Deixemo-la rir [...]. (ASSIS, 2011b, p. 131).
111

que seja, ou estrondoso que seja, caro Machado, e assim: “Divertimo-nos como
nunca. A Lu e a Saly contavam anedotas e gargalhávamos. A Ju e a Mauá ouviam,
sorriam.” (CHIZIANE, 2004, p. 110-11). Mavinda Massogi, Madian, Kiluva, Kiminha e
Ana Medrante “riam-se das ingenuidades e dos fracassos dos companheiros”.
(FERREIRA, 2008, p. 251). Deixemos as mulheres rirem. Por quê? Senhor meu,
talvez você não tenha sofrido o efeito colateral de uma pena embotada.
112

5 UM RISO SÓ

Essa mulher carregou a história de todas as guerras do país num só ventre.


Mas ela canta e ri. Conta a sua história a qualquer um que passa, de
lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios [...]. (CHIZIANE, 2004, p. 279)

Ouço os cânticos e os gemidos de um povo que como eu, sabe sorrir,


chorando. (FERREIRA, 2008, p. 174-175)

Donde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e
pesados me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia?
(KRISTEVA, 1989, p. 11)

A partir das epígrafes, busco analisar o jogo conflitante entre riso e melancolia
nas obras Niketche e OGM. Pretendo, com tal análise, compreender o quanto as
formas da tradição oral figurada na escrita têm, em sua constituição, o riso, o prazer
de contar, atuando como um gesto de resistir ao peso da melancolia como tristeza
profunda.

Como se não bastasse essa tensão, estamos diante de outros enredamentos:


definições e conceitos de melancolia. A complexidade conceitual atesta para a
complexidade do ser, de sua interação com o mundo e do processo elaborativo de
linguagem diante de um estado de inibição ou assemia, momentâneo ou crônico,
que, alternando com uma exaltação, se instala no indivíduo. Esse estado é
denominado melancolia, segundo a psicanalista e crítica literária Julia Kristeva
(1989). Ou, dito de outra forma, pode-se entender a melancolia como um estado que
beira o desencanto, o desamparo, uma apatia, uma tristeza profunda. (KRISTEVA,
1989; SCLIAR, 2003).

Não é objetivo da tese enveredar-se por um retrospecto histórico do conceito


de melancolia nem pela teoria freudiana em busca das diferenças tênues entre
melancolia-depressão, conforme a própria Kristeva apresenta o impasse. Ela afirma,
em seu livro Sol negro: depressão e melancolia (1989), que os dois termos,
melancolia e depressão, designam um conjunto que se poderia chamar de
melancólico-depressivo, cujos limites, na realidade, são imprecisos. A partir de
Freud, Kristeva trabalha os dois conceitos no que eles têm em comum: a perda do
objeto bem como a modificação dos laços significantes que essa perda gera. Esse
113

sentido de perda será importante no processo de análise das personagens das


obras estudadas.

Avancemos um pouco mais para chegarmos a outro sentido de melancolia


importante no processo da estética literária. Trata-se da melancolia em Benjamin,
para quem a modernidade só poderá ser mais bem compreendida na relação entre
melancolia e alegoria. É por essa interseção que diremos que aquela melancolia, no
sentido primeiro, o da tristeza profunda, será outra, trabalhada pela arte, portanto,
uma melancolia alegórica. Além disso, segundo Maria Rita Kehl, a melancolia em
Benjamin se associa ao sentido de vida pública, diferenciando, pois, da melancolia
de Freud, para quem o objeto perdido é, por natureza, inconsciente e diz respeito à
privacidade familiar. (KEHL, 2009, p. 79).

Sérgio Rouanet, em Riso e melancolia (2007), também distingue melancolia


“pública” e “particular”, quando analisa “Viagens na minha terra”, de Almeida Garret.
Vale pontuar que, nessa distinção, Rouanet não menciona Benjamin, embora o
ensaísta dialogue com o filósofo em outro momento do livro e sobre outro assunto.
Sobre a melancolia pública, Rouanet afirma que ela decorre de infortúnios coletivos,
predominando no enredo principal; a outra, motivada por infortúnios privados, como
questões amorosas, familiares, aparece em narrativas paralelas. No entanto,
destaca o ensaísta, na medida em que há o cruzamento entre narrativas, principal e
paralelas, as duas melancolias se intercambiam.

Rouanet acrescenta que a melancolia pública, no romance português, é


provocada pelo horror de duas guerras sofridas por Portugal, a de invasão pelas
tropas napoleônicas e a civil, entre absolutistas e liberais. Rouanet enfatiza a
consciência do declínio português como melancolia pública. As distinções entre
melancolia pública e privada servirão para compreender a leitura subjacente em
Niketche e OGM, pois são narrativas sobre o coletivo e que, direta ou indiretamente,
mostram efeitos das guerras colonial, de independência e civil, ocorridas em
Moçambique e Angola. As epígrafes do presente capítulo sintetizam o movimento
entre o particular e o coletivo, já que as dores das personagens mantêm relação
com questões mais abrangentes de seus países.

E o riso? Caminhemos no raciocínio. Para Francisco Alambert, professor de


Estética e História da Arte, a melancolia em Benjamin “significa um caminho diante
da crise, uma etapa de reflexão da qual se pode sair renovado” (ALAMBERT, 2017,
114

p. 140). Alambert continua e inquire como a melancolia poderia tornar-se um


processo de renovação:

Mas como a melancolia poderia evitar ceder definitivamente ao sentimento


da derrota e assim expor suas qualidades regenerativas, colocando em
movimento essa autocrítica tão necessária aos crentes e aos derrotados
ainda que momentâneos? Seu melhor recurso seria o humor. (ALAMBERT,
2017, p. 141).

A pergunta-resposta de Alambert nos ajuda a entender uma estranha


coincidência, estranha, a princípio. De acordo com Kristeva, em tempos de crise, a
melancolia se expressa, produz sua representação e seu saber. De maneira
semelhante, Teresa Salgado (1997) afirma, porém, sobre o cômico, que a dedicação
a uma escrita humorística, tanto nos estudos teóricos quanto na ficção literária, se
acentua nesses tempos conturbados. Não é uma coincidência, observa Salgado,
porque o mundo cômico é uma das vias que o homem encontra para escapar ao
totalitarismo, ainda mais quando se trata de um contexto sócio-histórico opressor,
como o dos países africanos.

Inocência Mata, refletindo sobre o papel do escritor, acredita que o riso, em


Angola, por exemplo, “funciona como uma terapia para superar os traumas do pós-
monopartidarismo e pós-conflito: é como se o autor quisesse dizer que a rir é que os
angolanos se entendem.” (MATA, 2012, p. 142). Para Scott Weems (2016), quando
a tragédia nos atinge, pode-se ter reações conflitantes, e o humor pode nos ajudar a
lidar com isso, pois às vezes o riso se torna a única maneira disponível para reagir,
ainda que por um período curto

As colocações de Salgado e Mata, particularmente por serem estudiosas de


literaturas africanas em língua portuguesa, me forneceram caminhos para pensar
sobre uma questão interessante presente no começo do livro Saturno nos trópicos:
a melancolia chega ao Brasil (2003), de Moacyr Scliar. O escritor indaga se haveria
uma relação entre a melancolia e a chegada dos colonizadores ao Brasil, e se essa
conjuntura teria um caráter cíclico, repetindo-se em outro lugar, em outra época.

Nesse caminho de leitura, busquei outra especialista para compreender a


melancolia decorrente de um processo histórico de dominação em África. Laura
Padilha (2003), no artigo “O trânsito para a melancolia na ficção angolana
115

contemporânea”, tomará como paradigma a escrita de Boaventura Cardoso. O


nosso interesse nas reflexões da pesquisadora reside no uso arguto da ideia de
“trânsito”, a fim de refletir sobre o movimento da melancolia no modo de narrar a
nação nos textos literários moçambicano e angolano aqui estudados.

Usa-se “trânsito” porque tais literaturas, continua Padilha, saem de uma


“projeção eufórica” no tempo da descolonização para uma “projeção melancólica” no
pós-independência ou pós-1975. Por outra ótica, pondera Padilha, o regresso
vibrante ao passado, por meio de mitos das origens, da idade do ouro e dos seus
heróis, nos textos de combate, feitos durante as lutas libertárias e nos primeiros
anos do pós-independência, reagiu conforme uma necessidade de repensar o
passado colonial. (PADILHA, 2003; SECCO, 2011). Isso quer dizer que aquela
euforia não pode ser desprezada, mas precisa ser refletida de maneira que o
moçambicano e o angolano não paralisem em um tempo que já não é possível ou
nunca existiu na concepção de idade do ouro.

Terminados os hinos e as celebrações poéticas e ficcionais, ainda seguindo


Padilha, a sonhada felicidade não vem, e o acúmulo de restos, fragmentos,
decorrentes das guerras, mortes, traumas e frustrações, traz a melancolia para as
narrativas, “vem o regime saturnal das imagens”. (PADILHA, 2003, p. 298). Então,
respondendo a Scliar, há uma relação entre a melancolia e a chegada dos
colonizadores a Moçambique e Angola, com o acréscimo das guerras civis que
terminaram, respectivamente, em 1992 e 2002. Destaca-se ainda que esta última
data se faz próxima à publicação de OGM, em 2008. Além das guerras, vem o
processo discricionário do neoliberalismo.

Diante dessa conjuntura bélica, econômica e política, reafirmo o interesse


pela melancolia benjaminiana porque ela, sob a égide da alegoria, “figura
engendradora de sentido” (BERTUSSI, 2004), tem a faculdade “de dizer o outro
reprimido” (KHOTE, 1986, p. 67), tem a capacidade de dizer, e dizer esteticamente,
com elaboração da linguagem, sobre os restos, as dores, a violência sofrida.

Retomando a proposta do capítulo para avançarmos nas análises literárias:


existe uma tristeza, angústia, nos textos de Chiziane e Ferreira. Mas é provável que
o fato de as escritoras serem de um povo contador, cantador, produtor de
expressões de linguagem em que o corpo entra em cena e emana intensidade e
116

possibilidades de vida, tenha as conduzido a uma escrita literária alegre, irônica,


sarcástica, cômica, humorística.

5.1 anti-imagem de mulher-mãe-esposa-companheira em Niketche

Convido o leitor a se preparar para o era uma vez de Paulina Chiziane. Sente-
se, porque lá vem a história:

Era uma vez um rei africano. Déspota. Tirano. Os homens tentaram


combatê-lo. A rebelião foi esmagada e os homens espalmados como
piolhos. As mulheres choraram o infortúnio e conspiraram. Marcharam e
foram manifestar o seu descontentamento junto do rei. O rei respondeu-lhes
com palavras arrogantes. Elas viraram as costas, curvaram as colunas,
levantaram as saias, mostraram o traseiro a Sua Majestade e bateram em
retirada, deixando-o no seu discurso de maldade. O rei não suportou
tamanho insulto. Sofreu um ataque cardíaco e morreu no mesmo dia. O alvo
que as balas dos guerreiros não conseguiram atingir foi alcançado por uma
multidão de traseiros. (CHIZIANE, 2004, p. 148-149).

É difícil manter a compostura depois de ler essa história zombeteira. Se o


papel registrasse as audíveis gargalhadas após essa leitura, quem sabe... Peço
perdão ao leitor pelas reticências indevidas em uma tese. Às vezes cansa interditar
o corpo-pensamento e, então, por um instante desejo o relaxamento da mente para
então recomeçar.

O riso do excerto pode ser definido, a partir de Vladimir Propp, como de


zombaria, porque “destrói a falsa autoridade e a falsa grandeza daqueles que são
submetidos ao escárnio.” (PROPP, 1992, p. 32). No caso, a ruptura entre as ações
tirânicas de um rei africano e sua morte tragicômica gera uma sensação de vitória de
caráter moral, ou seja, daquilo que se considera justo. Essa característica, segundo
Propp, pode se fundir ao riso alegre, que consiste na “vitória das forças vitais e da
alegria de viver” (PROPP, 1992, p. 181) ou de poder viver, uma vez que o rei
déspota já não oprime. Há um final, portanto, bem aventurado porque as mulheres
são as heroínas. Logo, o conto popular está completo, com um “era uma vez”, as
complicações e um desfecho feliz.
117

Mas ainda não é o fim. Temos outros sentidos mais tensos nas entrelinhas do
conto popular. Percebemos, pois, a existência de significado alegórico e irônico na
narrativa. Embora consciente de uma discussão tanto extensa quanto profunda
sobre aquele par conceitual, apresento o sentido que pretendo para as análises dos
textos literários. Demonstrarei como as duas categorias – alegoria e ironia – têm
suas diferenças, bem como articulações. Para isso, apoio-me no texto “Alegoria e
ironia: confrontos e convergências” de Eiliko Flores (2011), no qual o autor usa as
duas categorias para analisar o mesmo poema, o de Manuel Bandeira, “Maçã”
(2006), apesar de Flores priorizar a ironia, diferenciando-se da leitura alegórica
muito comum sobre o texto brasileiro.

Sob uma condução didática, porém mantendo cuidado científico, Flores,


citando Hutcheon (2000, p. 99), apresenta um ponto comum: tanto a ironia quanto a
alegoria dizem alguma coisa para significar outra. No entanto, continua Flores, e
aqui acrescento Lola Xavier (2007), que também faz a distinção: na alegoria a
composição é feita por meio da similitude entre seus elementos, visando atingir
outros sentidos, enquanto, na ironia, a ênfase recai sobre o contraste, ou seja, o não
dito se estabelece por meio de uma diferença entre os elementos utilizados,
promovendo multiplicidade de sentidos. (FLORES, 2011).

Comecemos pela alegoria. A clássica expressão “era uma vez” convoca o


nosso imaginário para acionar um tempo longínquo, que soa perdido no recôndito
das lembranças. Mas que tempo seria esse no texto moçambicano? Para auxiliar no
levantamento de hipóteses, continuei a observar o que vem depois, no caso a
existência de um “rei africano”, qualificado como “Déspota” e “Tirano". Além de
funcionarem como adjetivos, cada termo, ao ocupar um único lugar na frase
nominal, se personifica, tornando a crueldade desse rei mais presente. Os adjetivos
parecem sinalizar uma verdade que se impõe absoluta e assustadora: estamos
diante de uma história de terror e não tão heroica como se imaginava. Com isso, fui
instigada a compreender que governo(s) foi(foram) esse(s) a deixar cicatrizes na
memória do povo.

Essa minha busca, em certo sentido, foi provocada pelo gesto do narrador
nos textos da tradição oral moçambicana. Esse narrador, segundo Moreira, evoca
“pela reminiscência, situações associadas às vivências dessa mesma tradição e
situações associadas à realidade atual de Moçambique.” (MOREIRA, 2005, p. 147).
118

Com objetivo de entender quais seriam essas possíveis situações recuperadas pela
memória e associadas à realidade do país moçambicano, amparei-me no artigo “As
mulheres à beira de um império nervoso na obra de Paulina Chiziane e Ungulani Ba
ka Khosa”, de Hilary Owen (2010), professora de Estudos Portugueses e Luso-
africanos na Universidade de Manchester. Nesse texto, Owen salienta um
questionamento latente nas obras As Andorinhas (CHIZIANE, 2013a) e Ualalapi
(KHOSA, 1991): o legado das tendências imperialistas e totalitárias de quem
governou Moçambique.

Ngungunhane foi um desses governos que deixou heranças ambíguas.


Imperador de Gaza, no século XIX,39 foi derrotado e capturado pelos portugueses e
tornado uma nobre vítima, segundo relatos memorialísticos. Sob esse imperador,
paira um mito nebuloso: seria um herói da resistência Nguni, mas também opressor
dos grupos étnicos vizinhos do Sul, especificamente, os chopes, grupo étnico do
qual Chiziane faz parte, esclarece a pesquisadora Owen.

A memória de Ngungunhane será revitalizada no conceito de nacionalidade de


Samora Machel, o primeiro presidente moçambicano da era pós-independência.
Hilary Owen acrescenta:

O exemplo mais eloquente do uso que Samora Machel fez da mitologia de


Ngungunhane diz respeito à sua decisão em 1985 de celebrar os 10 anos
da independência de Moçambique com a trasladação dos restos mortais de
Ngungunhane – que haviam sido enterrados nos Açores (local onde os
portugueses o mantiveram em exílio) – para Moçambique, onde foram
celebrados. Neste sentido, a narrativa sulista e predominantemente
changane de Samora Machel sobre a nação conseguiu uma das suas mais
concretas validações míticas. (OWEN, 2010, p. 44-45).

Uma sociedade possível poderá ser reelaborada depois de o povo conhecer


suas memórias, como a existência e insistência de governos déspotas, e se
posicionar diante delas. E a escrita de Chiziane se coloca no front de um processo
de reinvenção como esse. Naquele excerto literário de Niketche, a ação das
mulheres derruba o opressor do alto de sua prepotência, edificada em tempos
imemoráveis. E aqui já não se trata de confrontar uma narrativa estrangeira, mas

39Para aprofundar sobre essa história, sugiro o texto “Ocupação e escravidão em Moçambique do
século XIX”, de Francielly Giachini Barbosa (2012). Cf. referências.
119

uma narrativa dos governantes autoritários de África, ou de Moçambique,


especificamente. Enquanto esses governos escamoteiam ações opressoras, o texto
didático do conto popular denuncia-as de forma zombeteira.

Vimos que o discurso didático tem a característica de citar uma voz remissiva
ao saber ancestral, voz organizadora de uma concepção de mundo fundadora dos
textos. (MOREIRA, 2005). Esse discurso, segundo Terezinha Moreira, pode
confirmar a tradição ou criticá-la. Numa primeira leitura do conto popular, confirma-
se a tradição e, por isso, a alegoria se adapta a ela, já que esse procedimento
trabalha com a concordância de elementos similares.

Por exemplo, a nudez feminina, na tradição moçambicana, é concebida,


geralmente, como salvadora de uma comunidade, livrando-a dos males da fome, da
natureza agitada, ou purgando a aldeia de seus erros. Em sentido estrito, as
mulheres do conto, ao reivindicarem seus mortos, os soldados, estão lutando para
preservar a memória destes, em certo aspecto, salvando-os. Em sentido alegórico, o
corpo da nação é figurado por atributos femininos. Que atributos seriam esses? O
corpo feminino foi veementemente cantado e narrado nas literaturas de
independência como símbolo de salvação, persistência, resistência. (FONSECA,
2015). Mas existem ecos dessa concepção nas narrativas do pós-independência.

Há também outra alegoria: a lenda do rei déspota não denuncia apenas a


opressão de Tony, marido de Rami, pois a opressão não vem só de um indivíduo; a
lenda se amplia e critica os atos da masculinidade hegemônica da nação
moçambicana. É nesse ponto, quando uso “critica”, que alegoria e ironia se
articulam. A partir disso, mostrarei como a ironia se destaca, sendo mais incisiva na
história do rei déspota. Aliás, a característica contundente desse tropo de linguagem
mantém relação com sentido de palavra para os povos africanos. Segundo o
historiador Jan Vansina, a palavra, para esses povos, é “uma atitude diante da
realidade”, e não “apenas um meio de comunicação diária”. (VANSINA, 2010, p.
139-140). Por isso, esse posicionamento se articula àquela outra função do texto
didático, a de desconstrução do conteúdo.

Se, de um lado, a nudez pode salvar, por outro, a nudez pode ser mau
agouro, afirma a narradora protagonista de Niketche. Este parece ser um sentido
mais pertinente para a história do rei tirano, pois o nu que está em questão é o
traseiro. De acordo com Bakhtin (1993), o traseiro é um contaminador da figura
120

épica, cuja figura heroica, em nossa análise, se refere às personagens femininas.


Rebaixa-se, pois, o corpo feminino. Explico essa degradação, presente no conto
popular, à luz do teórico russo: se a arma em riste dos guerreiros e as palavras
reivindicativas dessas mulheres, todas imagens do alto, porque posicionadas acima
do tórax, não surtem efeito, resta tentar a arma de baixo, os traseiros. Segundo o
teórico, analisando as obras de Rabelais: “O traseiro é o ‘inverso do rosto’, o ‘rosto
às avessas’.” (BAKHTIN, 1993, p. 327, grifos do autor). Interessante pontuar que
essa inversão se contrapõe à idealização do rosto materno, envolto pelo sublime,
com sorriso angelical. Tem-se, pois, no conto popular moçambicano, o avesso desse
rosto.

Continuando as interpretações de sentido dos traseiros em Rabelais, Bakhtin


traz a personagem Panurge. A figura rabelaisiana destaca que o local mais horrível
não é a goela de Satã, mas o buraco do traseiro, o baixo-corporal da esposa de
Hades, Prosérpina. Então, prossegue o teórico russo, divertindo-se com a tal
personagem, esse buraco é o baixo do baixo, e é para lá que deve ir a alma do
moribundo poeta Raminagrobis. Numa tomada de empréstimo do sentido
rabelaisiano e da leitura animada do teórico, pode-se ler a ação dos traseiros nus do
conto popular africano como o local para onde o poderio do patriarcado deve ir, e
tudo o que ele representa, como opressão e violência contra a mulher. Essa é a
gargalhada em Niketche, que quer destronar o velho mundo. A crítica é de que já
não cabem mais aos poderosos guerreiros, soldados, com suas armas, nem à
subserviência das palavras lamuriosas das mulheres, por si só, o poder de trazer a
paz.

Sigamos mais um pouco. Depois da história do rei déspota, há um parágrafo


curto, em que uma narração em terceira pessoa saúda a nudez da esposa. É uma
nudez que deve permanecer “apenas no escuro ou na penumbra, porque é o centro
da vida, ponto de origem. Da nudez para o paraíso original é apenas um passo.”
(CHIZIANE, 2004, p. 149). Entende-se dessas palavras que a nudez de uma esposa
não deve ser exposta à luz do dia conforme se deu no conto. Essa voz parece
nostálgica, como se advertisse, sutilmente, a personagem Rami sobre qual nudez
tem valor e qual deve ser narrada: a nudez de um corpo alijado de suas intimidades,
de suas necessidades.
121

Sob outro olhar, poderíamos definir aquela voz como uma voz melancólica, se
pressupormos que revela uma angústia, um incômodo, por ter transgredido na forma
de usar o corpo. Ou seja, parece que, ao terminar a lenda, a personagem se depara
não com a vitória ali enunciada, mas com a realidade que pesa sobre a mulher
moçambicana. Esse momento nos faz retomar as palavras de François Roustang
(1996) sobre a duração do riso: após sua explosão, a realidade retorna ao peso de
sua história.

A imagem de mulher como mãe da humanidade, matriz de restauração e


força vital se concentrou no discurso nacionalista dos países africanos em busca de
uma “comunidade imaginada”, segundo Mata (2018). Na escrita pós-colonial, no
entanto,

as (novas) mulheres que escrevem já não veem primordialmente o seu


gênero inexoravelmente produtor na construção do símbolo Mãe-África,
símbolo da cosmogonia ampla e transnacional da “comunidade imaginada”:
falam agora, também, de uma sensualidade terrena que desconstrói o
discurso sobre a mulher-mãe-filha-irmã-companheira de armas e subverte
os cânones da feminilidade sempre ligada, na poesia nacionalista, à
fecundidade, à prole e ao exercício – deveria dizer serviço! – de uma
colectividade, enfim, de uma “tradição” que lhe cerceia a individualidade.
(MATA, 2018, p. 433, grifos da autora).

Por outro lado, nem sempre, como afirma a teórica, as obras literárias da pós-
colonialidade tornam “ontologicamente diferente esta escrita.” (MATA, 2018, p. 426).
Maria Nazareth Soares Fonseca (2000) também modera a obrigatoriedade dos
textos mais recentes de romperem com a relação naturalizada entre gênero feminino
e símbolo Mãe-África. Por exemplo, o próprio romance Niketche apresenta uma
epígrafe zambiana, louvando esse símbolo: “Mulher é terra. Sem semear, sem regar,
nada produz”. (CHIZIANE, 2004). O verso é regido pelos valores culturais e
tradicionais que reforçam o lugar de um corpo fecundante, gerador e cuidador da
terra e da prole.

Em cada romance estudado na tese, observamos esse imbricamento entre


imagens de mulheres, porque o corpo feminino “é texto pulsante e se expressa em
suas muitas linguagens.” (FONSECA, 2000, p. 227). Novamente, isso me instiga a
refletir sobre a luta corporal da mulher no ato de escrever e, então, a compreender,
em partes, o incômodo de Chiziane entre contar e escrever romance, porque contar
122

parece solicitar a presença de um corpo, seu cheiro, sua cor, suas secreções, o tom
da voz, diferente da escrita. No entanto, o leitor pode criar a voz, o tom que deseja
ouvir, o corpo que deseja sentir, o riso que deseja experienciar.

Primeiro destronam-se as imagens, os sorrisos comedidos, depois vem a


renovação, afirma Bakhtin (1993, p. 327); ou, conforme Terezinha Moreira, “toda
transformação ocorre dentro de uma tradição” (MOREIRA, 2005, p. 234). Assim, as
mulheres que mostram os traseiros destronam a imagem simbólica de mulher-mãe
para depois entrar em um processo de renovação. As mulheres daquela lenda
podem ser uma ilustração das cinco esposas de Tony que dançaram o Niketche.
Elas utilizaram uma dança tradicional e sensual como um gozo duplo: o prazer da
dança e o prazer de vingar-se do marido.

E onde fica a melancolia? Como foi dito, a tristeza profunda vem quando a
realidade, figurada naquele eco sobre qual nudez feminina deve ser aceita, vem
para culpá-las de seus comportamentos violadores de uma norma, de uma tradição
sob a égide do patriarcado.

5.2 anti-imagem de mulher-mãe-esposa-companheira em O guardador de


memórias

Na obra de Isabel Ferreira, aparece também uma tentativa de rasura das


metáforas maternais como figuras de referência, proteção, abrigo, cuidado ao outro.
Para comprovar, escolhemos uma personagem cujos relatos, entremeados de dor,
sorrisos e risos, revelam uma quase ausência dessa imagem mãe-África/Angola.
Observe o início do capítulo O Ambulante de sorrisos: “Na auto-estrada dos
acontecimentos, nada acontece por acaso... Estou entontecido com a vida. Sou o
ambulante de sorrisos e guardador de mágoas-alheias! Assim é que todos me
chamam, me consideram e me tratam. Não tenho outro nome!” (FERREIRA, 2008, p.
173).

O vendedor de bugigangas é apresentado, em capítulos anteriores ao do


trecho anterior, como um rapaz “sempre com os lábios descontraídos e com o humor
a saldo” ou como “guardador de mágoas-alheias”, por “conhecer as desgraças dos
outros e transformá-las em piadas com sentido satírico e de riso”. (FERREIRA, 2008,
123

p. 118). No trecho, reforçando o que as outras personagens diziam a seu respeito, a


personagem se define como “ambulante de sorrisos e guardador de mágoas-
alheias”. Essa extensa caracterização difere-se, pois, do título do capítulo “O
Ambulante de Sorrisos, cuja inscrição está em maiúscula, com acréscimo de artigo
definido, e de forma reduzida, com destaque para uma parte mais alegre, a princípio.

A alcunha é uma maneira de tipificar a personagem, uma característica do


gênero comédia, que costuma criar “tipos, como o soldado fanfarrão, a sogra, o
mercador de escravos, o avarento, o misantropo, o adúltero”. (BRANDÃO, 1999, p.
93). Quando o autor estereotipa uma personagem, dando-lhe nome de profissão,
estado emocional ou vício, lhe interessa não a personagem em si, mas o que a
personagem representa, carrega. No caso da personagem angolana, a tipificação
pode funcionar como uma forma de fazer caricatura dos fingimentos da sociedade
luandense e/ou uma forma de satirizar uma percepção redutora como se toda a
alegria do angolano fosse a mesma, não revelando matizes, diferenças. Esse riso de
várias faces do luandense aparece em outro trecho da narrativa de Isabel Ferreira:

A senhora cidade Luandinense acordava quotidianamente maquilhada de


antítese: ora alegre e multicor, ora triste e descolor. Ouvindo o povo a trissar
o semba, kizombando ao desamanhecer ou chorando os seus mortos. Os
mortos da chuva, os mortos de fome, da doença e da guerra... que já não é
guerra de guerra... É guerra à fome! (FERREIRA, 2008, p. 295).

A “maquilhagem”, no entanto, é lavada, revelada, pela escrita isabelina, e o


rosto, a face urbana, é mostrada, sem fingimentos, nada a cobrir, como aos poucos
observaremos por meio da análise da personagem ambulante de sorrisos. Como
temos visto, por meio das personagens, desde o início da tese, o leitor não se
depara com uma narrativa comum de uma “África exótica”, ideal, um lugar
paradisíaco, uma Luanda cosmopolita, mas uma espécie de “Luanda como ela é”,
com suas contradições “alegre e multicor”, “triste e descolor”, que dança, mas que
chora seus mortos. O ambulante de sorrisos funciona, pois, como uma sinédoque de
um riso melancólico da capital angolana. Caminhemos mais um pouco com essa
personagem.

Ainda sobre as variações nominais do vendedor ambulante, observa-se que


elas sugerem uma ondulação na constituição da identidade da personagem, já que o
124

vendedor não tem uma certidão de nascimento que legitime sua existência e guarda
e distribui afetos contraditórios, como o sorriso e as mágoas. Tais dores são
confessadas por um sujeito que não tem família nem onde morar, conforme diz: Não
tenho certidão de nascimento. Não existo! Família? Nunca tive. (FERREIRA, 2008,
p. 173) e “para quem não tem mais nada nesta vida, nem mesmo onde dormir, só
me resta sorrir para não kudilar40. Chorar não dá dinheiro...Sorrir sim!” (FERREIRA,
2008, p. 181). Ora, afirma Todorov, “sem um sentimento de identidade que nos
pertença, vemo-nos ameaçados em nosso próprio ser e paralisados” ou em estado
de melancolia. (TODOROV, 2002, p. 195). O caráter “entontecido” do ambulante
decorre de suas memórias parcas e fraturadas, tendo em vista o trauma dos vários
abandonos por ele sofridos.

Outro estranhamento na forma como a personagem é nomeada ou conhecida


é a quebra na expectativa de um apelido, pois espera-se que uma alcunha seja
sucinta. Ao contrário, a extensão – “ambulante de sorrisos e guardador de mágoas-
alheias” – contradiz a escassez de memórias do vendedor. A quebra de expectativa
surge também porque esperamos a benevolência sugerida por parte de seu nome e
pela demonstração em seu rosto em forma de sorriso. O leitor, ao se deparar com o
título “O Ambulante de sorrisos”, talvez se prepare para sorrir com a personagem até
ler as constantes negativas de existência. O excerto literário abaixo revela o que
está por trás daquele semblante do ambulante de sorrisos:

Não tenho outro nome! Adoptei este nome como meu, por revolta as
mágoas da minha mãe e aos sorrisos fingidos da minha avó, que me
escondia das amigas, por ter nascido um ilegítimo, um bastardo.
Não conheço o meu pai. Nunca tive pai! Fui abandonado no dia da minha
concepção. O significado da palavra pai eu não conheço.

40 Leitor, não precisa de dicionário para saber o significado de “kudilar”. Aliás, nosso dicionário em
língua portuguesa não lhe dará a resposta. A resposta está lá, naquela mesma linha, mora ao lado:
chorar. Essa estratégia didática é comum tanto na escrita de Ferreira quanto na de Chiziane. A
necessidade de explicar, definir palavras em quimbundo logo após seu aparecimento, bem como
utilizar procedimentos de frases curtas, repetições de palavras, de formulações linguísticas, sintáticas,
aliadas ao ritmo, são estratégias da narrativa oral. O objetivo é assegurar, segundo Padilha, a
audição do receptor, pois esses recursos facilitam o processo mnemônico, de maneira que “esse
receptor possa vir a ser um retransmissor e difusor da mensagem narrativa” (PADILHA, 1995, p. 29).
Além disso, tais estratégias podem ser entendidas por um objetivo inicial de expansão da literatura
angolana, por exemplo, porque elas são mais dinâmicas e fáceis de alcançar um público maior de
leitores. Após a independência do país, o contexto mundial de expansão, globalização cultural exigia
um meio de expressão que abarcasse os compatriotas e o público mundial, afirma Padilha (1995, p.
29). Em razão disso, o escritor precisaria utilizar procedimentos que lhe permitissem atingir um
público mais amplo possível. (PADILHA, 1995, p. 139-140).
125

Não tenho certidão de nascimento. Não existo! Família? Nunca tive. Nem,
mesmo quando nasci. Só avó. Tive tias; muitas tias emprestadas. Tive tios;
tios que eu conheci na avenida da curiosidade.
Recebi sorriso por liquidação. Por isso agora dou a n’dunta (a saldo). Nunca
faço sorriso por empréstimo. (FERREIRA, 2008, p. 173).

As negativas “não”, “nem”, “nunca” e os adjetivos “ilegítimo” e “bastardo”


parecem aniquilar completamente a alegria do ambulante ou, ao menos, um riso,
seja ele qual for. Entretanto, avistamos algo risível quando Isabel Ferreira, por meio
da personagem, brinca com os sentidos das palavras para definir o seu sorriso na
interação pessoal: “por liquidação”, “a saldo”, “por empréstimo”. Aqui há um “esboço
de sorriso”, porque há um sentido de trágico-risível, na perspectiva de Lola Xavier
(2011), que nos fazer pensar as contradições da vida: riso é uma experiência
geralmente associada ao humano, mas no excerto literário tal experiência foi
reificada por aquelas palavras, tornando-se objeto liquidável, vendável a preços
reduzidos.

Nas considerações de Propp (1992), um homem coisificado será ridículo nas


mesmas condições em que uma coisa é ridícula. No caso, o risível no ambulante
aumenta quando lembramos que “a saldo”, “liquidação”, têm uma conotação ridícula
se relacionarmos a qualidade de um produto ao seu valor monetário, ou seja, valor
baixo, qualidade também. Aplicando à personagem, o valor da vida é inferior à
dignidade que um ser humano deveria ter. Ainda com o estruturalista russo, essa
representação do homem sob o aspecto de coisa é risível porque pode revelar
questões íntimas, fragilidades. No caso do vendedor, o sorriso “a saldo”, “liquidável”,
revelaria a sobra, o que resta de sua história e a qualidade dubitável dela. Por isso,
o riso pode desvelar uma melancolia, pode ser, segundo Scotte Weems, “uma
manifestação externa do conflito interior”, em que prazer e mágoa se confundem, em
“um estado infeliz chamado de assimbolia à dor”. (WEEMS, 2016, p. 92).

Riso, sofrimento, riso, solidão, estamos diante de um estado que beira o


desencanto, o desamparo, uma tristeza profunda, um estado que oscila entre
exaltação e inibição, algo semelhante à (in)definição do ambulante: “meu sorriso... é
um sorriso que ondeia, como água do mar, ora dócil ora rude, ora num vaivém”.
(FERREIRA, 2008, p. 174). Ora o ambulante busca resgatar, no que restou de
memória, uma ligação materna por meio da metáfora da água, da gestação, do
126

(re)nascimento, do renovo (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2017), ora ele se mostra


consciente das oscilações da vida, como revela o trecho seguinte, em que as
imagem de mulher e mãe se tensionam:

A minha mãe, que diziam ser grande beata, não aguentou a dor da
humilhação. Tudo aconteceu num dia de intensa paixão e de uma única
entrega total. Pobre mãe! Levou consigo o fulgor da paixão que nutria pelo
homem que facilitou a minha entrada ao mundo dos vivos. Com a tristeza a
comer-lhe a carne, minha mãe definhou. Engoliu os insultos que a vida
madrasta lhe ofereceu. Morreu tuberculosa de amor num colchão que uma
mão amiga lhe deu.
Da minha avó já perdi os sinais visuais. Perdi a memória do tempo que tudo
por mim fazia. Os símbolos afectivos, emprestados durante a minha tênue
infância, a vida maldita que levo, inadequaram-se de mim. (FERREIRA,
2008, p. 174).

A dor da mãe se presentifica, se repete na dor do ambulante, porque é a dor


do abandono. Mas há também um tom risível, que surge do inesperado ato de uma
mulher que se entrega totalmente a um homem e não à vida religiosa, como foi
anunciado em “diziam ser grande beata”. Se há um excesso, seja na paixão ou na
suposta devoção religiosa, há, gradativamente, uma intensificação no sofrimento
dessa mulher: “não aguentou a dor da humilhação”, “tristeza a comer-lhe a carne”,
“definhou”, “morreu tuberculosa de amor num colchão que uma mão amiga lhe deu.”
No ápice da solidão e da doença, ela sucumbe. Estamos diante da interrupção do
sentido de viver. Toda essa desmedida é contraposta à curta história da mãe, tal
qual a história e a memória do jovem vendedor.

Quando não se suprime a vida, a mulher em OGM aparece, em certos


trechos, satirizada por não cumprir o papel de sacerdotisa do lar. O próprio
ambulante, um observador e julgador dos comportamentos das pessoas, mais à
frente da narrativa, subscreve um certo lugar de mulher-mãe: “E os homens? Você
via só o pobre homem com saco de compras, a mochila do bebé, e o canuco
andrajosamente levado ao colo. [...] Eu vejo as mães negando fazer sacrifícios pelos
canucos.” (FERREIRA, 2008, p. 178). É possível observar, via fala da personagem,
uma relação com “a função silenciosa que a mulher ocupa enquanto guardiã da
maternidade”. (KANDJIMBO apud FONSECA, 2000, p. 225). Ou seja, o narrador-
personagem, sob a ótica de uma masculinidade hegemônica, insiste em colocar a
mulher sempre ligada à função de servir idealmente os filhos, diferentemente do que
127

é exigido do homem. Tanto isso pode ser notado que o termo “pai” não aparece para
se referir à paternidade, mas apenas a palavra “homem” no questionamento “E os
homens?” e na expressão “pobre homem”.

A diferença de exigências entre homem e mulher no quesito cuidado com o


outro, no caso a prole, pode também ser observada lá naquele relato sobre a mãe,
em que o ambulante se refere a ela como “pobre mãe” e não “pobre mulher”, e a seu
pai como “homem”, e aqui apresento novamente parte do trecho: “Pobre mãe! Levou
consigo o fulgor da paixão que nutria pelo homem que facilitou a minha entrada ao
mundo dos vivos.” (FERREIRA, 2008, p. 174).

Esse distanciamento do homem da função de cuidado, no contexto atual da


sociedade urbana angolana, ganha o reforço do verbo “facilitou”, sugerindo que o
único papel desse homem é o de ser apenas uma via para a geração de uma
criança. É claro que, no início da narrativa, o ambulante usa “pai”, mas com
ressentimento, visto pela reiteração das negativas “não” e “nunca” e pela palavra
“abandono”: “Não conheço o meu pai. Nunca tive pai! Fui abandonado no dia da
minha concepção. O significado da palavra pai eu não conheço.” (FERREIRA, 2008,
p. 173).

Em contraponto à estrutura patriarcal que faz um abismo hierárquico pelo


gênero, há uma visão distinta nas sociedades que buscam no matriarcado outra
proposta de conceber as relações entre homens e mulheres no cuidado com a prole.
Segundo Nah Dove, o “papel da maternidade ou dos cuidados maternais não se
limita às mães ou mulheres, mesmo nas condições contemporâneas. [...] A
maternidade, portanto, descreve a natureza das responsabilidades comunitárias
envolvidas na criação dos filhos e no cuidar dos outros.” (DOVE, 1998, p. 8).
Oyèrónké Oyěwùmí (2004), em seus estudos de conceituação de gênero em África,
também é enfática sobre a responsabilidade não generificada (que não seja por
gênero) do cuidado no seio da família.

Perceber a generificação por meio daqueles excertos literários me conduziu a


outras observações a partir do verbo “facilitou”. Notei que alguns desfechos das
personagens masculinas em OGM são descritos pelo desprendimento e por um
corpo desejante em ação. Por exemplo, o companheiro que largou Kiluva, o ex-
patrão de Hunende, “continua desbundeiro”, sem controle, nada o prende; Kafrique,
apesar de ter tido sua masculinidade questionada e sob o risco de perder o respeito
128

dos filhos por ele não saber como conduzir toda a situação com a jovem Mavi,
termina em corpo desejante, explicitamente em ereção (FERREIRA, 2008, p. 224);
Hunende tem um fim duplamente glorioso, pois, além de sua morte definitiva ter sido
em festa, ele, enquanto se preparava para subir, se consome em desejos pela
Kiluva, a ponto de dizer “encaixo a acção. Assumo como minha. Trafico desejos.”
(FERREIRA, 2008, p. 322).

De maneira diferente, Kiluva termina solitária: “atracou-se sozinha no porto da


saudade” (FERREIRA, 2008, p. 324). Mavi tem um fim silencioso, imperceptível. Sua
aparição mais significativa foi aquela, no hotel, e mesmo assim quem mais fala
naquele capítulo é Kafrique. Mavi volta quase ao final do romance, quando é
lembrada, sorrateiramente, ao lado de Kiluva e Kiminha, como “algumas moças da
cidade”, que ainda apareceram na casa de Uvime, um homem no seu recém-luto
pela perda de cargo de ministro. (FERREIRA, 2008, p. 270). Assim, em OGM, à
mulher que é sedutora, que não cumpre o papel de equilíbrio societário, que se
deixa levar pela paixão, restam-lhe o peso, o cerceamento, a solidão, a morte; ao
homem, o excesso do desprendimento afetivo.

Sobre as leituras alegóricas a partir dessa rasura da mãe-África ou da figura


da mulher como mãe-esposa, temos: de um lado, a dor do ambulante e da mãe; de
outro, a dor do angolano e da mãe-Angola. De um lado, tem-se a liberdade do
ambulante, por caminhar livremente, mas que sente que algo está perdido nele – “Lá
desguardei o que está perdido em mim” (FERREIRA, 2008, p. 181); de outro lado,
Angola torna-se independente e recém-saída das guerras civis, porém em busca de
entender suas questões identitárias nacionais. De um lado, há um abandono
geracional, dos pais à avó; de outro, a perda e fragmentação da memória, da
tradição, de uma ancestralidade. A tristeza do ambulante e da sua mãe é a tristeza
de Angola, porque é a da rejeição, a de uma melancolia coletiva.

Observe que a comparação alegórica foi praticamente feita na relação mãe e


prole e não pai e prole, sinalizando um perfil de mulher angolana cristalizado na
imagem de um ser depositário de todas as esperanças, salvadora, protetora,
cuidadora e transmissora dos valores tradicionais no âmbito individual e coletivo.
Mas se essa mulher não cumpre tais predicativos, a esperança se esvai? E ainda:
seriam os desfechos de OGM uma expressão de saudade melancólica da mulher-
mãe-esposa-companheira?
129

A escrita de Isabel Ferreira em OGM, embora seja transgressora e rica em


reflexões e análises, ainda revela, em certas cenas literárias, uma escolha por
aquela imagem de mulher, isso porque, não podemos perder de vista, sua escrita
está situada em um espaço marcadamente estruturado pelo patriarcado. Hilary
Owen afirma que “uma nação pós-colonial ‘liberta’ tem agora de voltar atrás, e
libertar as suas mulheres através do relato das suas próprias mitologias de
libertação, marcadas pelo género” (OWEN, 2010, p. 55, grifo da autora). E como
voltar, pensando nas culturas africanas? Pela memória, propõe Rita Chaves, mas
“não se trata de um regresso ao tempo que precedeu à cisão”, que precedeu aos
discricionários efeitos da globalização, não se trata de recuperar uma totalidade dos
signos daquela ordem cultural, ou de recuperar o mito da idade do ouro, “mas sim de
resgatar alguns dos referentes que se podem integrar aos tempos que se seguem”
(CHAVES, 2000, p. 256).

O resgate se efetua por um dos elementos da tradição oral, que é a contação


de história. Segundo Ana Mafalda Leite, valorizar a tradição oral “é uma forma de
conhecer e respeitar, reaver, talvez, contributos importantes para a recriação e
reformulação de uma cultura nacional” (LEITE, 1998, p. 90). Para o malinês Amadou
Hampaté Bâ, nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos
africanos terá validade, se não se apoiar na tradição oral, herança de conhecimentos
de toda espécie, pacientemente transmitidos de geração a geração, de boca a
ouvido.

Hampaté Bâ continua:

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos


os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o
segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar
tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o
espiritual e o material não estão dissociados. Ela é, ao mesmo tempo,
religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite
remontar à Unidade primordial.
Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à
sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar
um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana.
Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da
comunidade, a “cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa
ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor
dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como
130

um Todo onde todas as coisas se religam e interagem. (HAMPATÉ BÂ,


2010, p. 169, grifo do autor).

Passar de boca a ouvido, um gesto de prolongamento, reverberação,


fazendo-me recordar do poema de Melo Neto, em que fios se juntam, se
entrecortam, se tensionam, para reverberar em manhã que, chuvosa ou não, é
manhã. Mas que manhã ou riso se alinhava na narrativa do ambulante de sorrisos?
Barthes, sobre a palavra falada, afirma que “não se pode retomar o que foi dito, a
não ser que se aumente: corrigir é, nesse caso, estranhamente, acrescentar”.
(BARTHES, 2004, p. 93). Por esse motivo, a tradição se renova pelos acréscimos,
porém, a depender desses tecidos a mais, pode-se continuar a preservar um mesmo
paradigma opressor. De maneira similar, a escrita humorística pode cristalizar ou
questionar paradigmas.

Passar de boca a ouvido: transmite-se “uma visão particular do mundo”,


retomando Hampatê Bâ, um recorte, um ângulo do mundo, um fio, mas concebido
como um(a) Todo/Toldo/Tenda, pois o “pormenor nos permite remontar à Unidade
primordial”, onde “todas as coisas se religam e interagem” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.
169). Cada vez mais nosso toldo-tese vai se formando em tese-de-riso-a-sério e
caminhando para o desfecho, que soa melancólico, até que o sol negro da escrita
das autoras africanas, Chiziane e Ferreira, apareça e nos faça, pelas tonalidades de
risos, ir para além de nós mesmos, leitores taciturnos.

5.3 contar para rir ou entreabrir um riso

Escutar para compreender. Escutar para contar.41 Contar para que a dor
possa só(r)ir, transmutar.

Então, leitor, sugiro-lhe que se acomode para acompanhar mais uma história
escrita por Isabel Ferreira como quem conta a dor de um povo rindo. Ouça. Digo:
leia, se possível em voz alta:

41Sugiro a leitura do artigo de Eufrida Pereira da Silva (2011): “Falar para curar, ouvir para aprender
– Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane.” Cf.referências.
131

Ouviram os mujimbos destas bessanganas? É assim que falam das filhas


alheias? Imagino o que disseram sobre minha finada mãe! Ainda bem que
não tenho irmãs. E se as tenho, não as conheço. [...] Bué sozinho, tipo que
me puseram, vale da eternidade, para um resgate solitário.
De que falam? Kuxixam a vida uma garina cheia de condimentos físicos.
Desde que enviuvou, virou personagem principal no bairro. E eu, que o meu
muenhu já anda m’bora lixado. [...]
[...] Por isso se ouvirem falar da garina ... não estou lá. Deve ser outro
muadié que vos está a contar. Prefiro guardar a dor e as mágoas alheias do
que estar a falar à toa. (FERREIRA, 2008, p. 179).

Na passagem, ao utilizar as interrogativas “Ouviram...?”, “É assim que falam


das filhas alheias”, “De que falam?”, o vendedor de sorrisos tenta cumpliciar os
presentes na cena e os leitores sobre uma conversa que ele ouviu, passando a
contar-lhes. Destaco que a personagem, durante suas andanças para vender suas
“bugigangas”, como ele chama seus produtos, encontra-se com várias pessoas pelo
caminho e com elas dialoga e estabelece vínculos, como ilustram os vocativos:
“vocês”, “Você”, “Manos”. (FERREIRA, 2008, p. 176 -178).

Quanto ao significado de Mujimbo, recorro à tese de Andrea Muraro “Luanda:


entre camaradas e mujimbos” (2012), onde se aprofunda o estudo do gênero de
tradição oral luandense. Desse material, sumarizo: mujimbo pode ser também
“novidade, notícia, conversa, problema, queixa” (MURARO, 2012, p. 113). Mas qual
é o verdadeiro e original significado? Esse é um problema, alerta Andrea Muraro,
uma vez que, como ela expõe, exemplifica, analisa em sua tese, há divergências
nas origens para o termo, com variados significados, sentidos. Assim ela afirma:

[...] parece até natural haver contradições quanto à origem linguística do


termo, já que a mobilidade geográfica do mujimbo percorre todo o território
angolano, devido a essa dinâmica entre povos, e, depois, ainda
simultaneamente, à dinâmica das guerras. Trata-se, também, de seu
funcionamento como memória oral, por isso se alastra, se modifica por um
condutor que é a palavra falada. (MURARO, 2012, p. 114).

Para nosso estudo, escolhemos a face ficcional de mujimbos e o seu


funcionamento como memória. Então, voltemos ao mujimbo transmitido pelo
ambulante. Uma das graças desse jeito de contar vem da construção gradual que
vai gerando curiosidades no leitor. Primeiro o ambulante repreende moralmente o
comportamento fofoqueiro das bessanganas: “É assim que [elas] falam das filhas
132

alheias?”. Depois fortalece essa repreensão com a triste lembrança da finada mãe:
“Imagino o que disseram sobre minha finada mãe!”. O leitor é levado a sentir
compaixão pelo vendedor, se recordar da história da falecida mãe.

Entretanto, quando o ambulante volta a falar sobre a “garina cheia de


condimentos físicos”, o alvo do mujimbo, somos distraídos do sentimento
benevolente e queremos deixar entrever um sorriso, ou seja, economizamos a
compaixão e sentimos o prazer humorístico (FREUD, 1996a, p. 224). Mas o narrador
parece impedir esse riso, pois ele intercepta o mujimbo para contar suas tristezas:
“Bué sozinho, tipo que me puseram, vale da eternidade, para um resgate solitário” e
“E eu, que o meu muenhu já anda m’bora lixado”. Novamente, somos levados a um
sorriso desconfortável porque nos deparamos com a realidade de um sujeito
solitário, narrando sob um tom melancólico: “meu muenhu [existência, vida] já anda
lixado”.

Outra marca da tradição oral são as repetições de palavras, de formulações


linguísticas, aliadas ao ritmo, à musicalidade. O objetivo é assegurar, segundo
Padilha, a audição do receptor, pois esses recursos facilitam o processo
mnemônico, de maneira que “esse receptor possa vir a ser um retransmissor e
difusor da mensagem narrativa” (PADILHA, 1995, p. 29). Por exemplo, a repetição
de sons semelhantes gera uma sonoridade ou ecos no texto literário de Ferreira:
“filhas” e “finada”; “mãe” e “irmãs”; “eternidade” e “resgate”; “vida” e “garina [moça]”;
“enviuvou” e “virou”. A imagem de eco é interessante para pensar as reverberações
das narrativas de tradição oral porque são elas que vão construindo a memória de
um povo.

Então, se o mujimbo e esse ritmo vêm da tradição oral e tradição designa o


ato de entregar algo para outra pessoa, passar de uma geração a outra geração, e
isso nos constitui, lembrando Bornheim (1987), então, quem passou esse jeito de
contar para o ambulante, se ele era órfão? Antes de o vendedor contar o boato, ele
havia apresentado para o leitor duas mulheres mais velhas, desta forma:

E neste faz e refaz da minha consciência, ouvi a conversa entre tá Kimona e


mana N’zanimba. Mulheres cheias de assuntamento na ponta da língua,
tricotando os sentimentos alheios. [...] Ao anoitecer recolhiam-se. O bairro
lhes guardava os kuxixos acontecidos durante o dia. Era um dar e receber
de mujimbos e mambos de língua afiada. Pareciam verdadeiras jornalistas
[...]. Quando a penumbra se apertava varriam para bem longe os alinhavos
133

mal acabados. [...] Depois Kilapavam entre as gargalhadas avulsas.


(FERREIRA, 2008, p. 176-177).

Assim, o ato de contar pressupõe uma ação participativa: um mais velho e os


interessados ouvintes. Compreendemos, ao menos em parte, de onde vem o epíteto
“guardador de mágoas alheias”. Ele aprendeu a reter as histórias dos outros com o
bairro que “guardava os kuxixos”, uma personificação que realça um ato coletivo e
cúmplice entre contadores e ouvintes. Guardar as mágoas, reter as informações,
vem também de um jeito diferente de contar, que só as mais velhas sabiam, com
seus alinhavos, costuras. Como mostra o excerto, elas teciam “sentimentos alheios”,
faziam fuxicos. Tecer é um ato duplo, para dentro e para fora. Então, saber contar,
um ato para fora, pressupõe, antes, um ato interno, no caso, o ato da escuta. Contar
é dizer o que se guardou, o que se ouviu dos outros, da tradição, dos
acontecimentos passados.

E os sorrisos do ambulante, de onde vêm? Vêm das “gargalhadas avulsas”


das mais velhas. E a narrativa entrecortada dele? Deve ter aprendido com os
“alinhavos mal acabados” dessas mulheres, feitos às pressas, talvez porque a vida
cotidiana delas, de muito trabalho para sobreviver, não permitisse um melhor
acabamento.

Sobreviver: esse é o mote do ambulante. Ele sorri não porque é “bonito”


sorrir, porque “faz bem à alma”, porque é um “comportamento exclusivamente
social”, “um gesto que nasce e morre conosco”, o vendedor sorri, como ele mesmo
reflete, para conquistar os clientes, porque, segundo ele, “chorar não dá dinheiro”.
(FERREIRA, 2008, p. 180-181). O ambulante debocha do estrangeiro que foi à
capital angolana teorizar sobre o riso, pois, na experiência cotidiana do vendedor, o
riso é um gesto contra a fome.

Isabel Ferreira, por meio da construção da personagem do ambulante, além


da tipificação, como vimos, usa outra característica da comédia, descrita por Cleise
Mendes (2008), como a força da razão prática. Para melhor entender o que seria
essa razão prática, preciso fazer referência a João-ninguém e depois a Ulisses. Na
epígrafe que abre o capítulo do ambulante de sorrisos, está escrito: “Por tua culpa
eu sou um João-ninguém, por tua culpa sou um Zé da Graxa” (FERREIRA, 2008, p.
173). Em Odisseia, no canto IX, obra de Homero, Ulisses utiliza a frase “Meu nome
134

é Ninguém” para escapar de ser devorado pelo ciclope Polifemo, que teve o único
olho vazado. O monstro, ao pedir ajuda, precisava nomear o inimigo para que este
fosse encontrado. Mas como encontrar “Ninguém”?

Então, com malícia e burla, o personagem de Homero joga com seu próprio
nome, porque Odisseu, de raiz Udeis, significa em grego “ninguém”42. (MATOS,
1987; MENDES, 2008; OLIVEIRA, 2008). Segundo Olgária Matos (1987), “Ulisses”
não se trata ainda de um nome, o que nos faz lembrar a afirmação, já mencionada,
do ambulante de sorrisos “Não tenho outro nome”.

Esta é uma das falas da personagem homérica: “Ciclope, perguntaste meu


glorioso nome; eu vou dizer-to; [...] Meu nome é ninguém. Chamam-me Ninguém
minha mãe, meu pai e todos os meus companheiros.” Depois de sair do perigo, o
herói se enche de júbilo e confessa: “Meu coração, cá dentro, se pôs a rir porque o
tinham logrado aquele nome e minha impecável solércia.” (HOMERO, 2006, p. 108).
Seu riso é resultado de que tinha a vida em perigo, destaca Mendes.

Ulisses é matriz do herói cômico, aquele que tenta esgueirar-se, sem ilusões,
usando as artimanhas bem humanas. Aquiles é a imagem da virilidade, da força, do
enfrentamento direto; Ulisses usa poderes de burla, de gracejo, que estão a serviço
do “prosaico objetivo”: sobreviver. (MENDES, 2008, p. 211). Nesse sentido, a razão
prática como força em ação na comédia é um modo de dilapidar as verdades
canônicas sem o ataque frontal, direto, enfatiza Cleise Mendes.

Com essa sumarização sobre Ulisses e um dos possíveis sentidos de seu


nome, não se trata apenas de articular aos nomes ou apelidos da narrativa angolana
“João-ninguém”, “Zé da Graxa” ou “Ambulante de sorrisos”. Usei, entretanto, toda
essa síntese para pensar sobre a escrita de Isabel Ferreira. Vimos, por meio das
bessanganas, que a matéria é feminina, as histórias contadas vieram de mulheres,
mas quem narra é o ambulante, um homem. Fazendo uma transposição: a escrita
de OGM foi tecida por uma mulher, Isabel Ferreira, mas a divulgação de todas as
histórias nesse romance, predominantemente, é feita pela voz de um homem, o
guardador de memórias, no caso Hunende.

42Antônio Carvalho (2002), Donaldo Shüler (2007) e Trajano Vieira (2003) associam o nome de
Odisseu à palavra ódio, que viria do verbo Odýssomai (odiar) e do substantivo odyne (ódio). Mas
escolhemos o sentido de “ninguém”, que aparece em Cleise Mendes (2008), Luís Oliveira (2008) e
Olgária Matos (1987), pelo sentido sugerido no texto ficcional angolano.
135

E mais uma vez busco a especialista em dramaturgia Cleise Mendes para


pensar sobre as escolhas de Isabel Ferreira, isso porque a narrativa isabelina tem
alguns traços do gênero comédia, como observamos pela presença do prólogo,
tipificação das personagens e pela razão prática. Vale lembrar ainda que a própria
autora angolana tem uma formação na dramaturgia. A pesquisadora brasileira, sobre
o pacto do comediógrafo com o público, afirma:

O método cômico de introduzir fraturas e divisões em seus objetos pode


tornar-se apenas um ritual que reafirma nossas crenças, mantendo uma
margem segura para "negociar" a fácil adesão do riso; mas esse modo de
ação exige no mínimo uma atitude de flexibilidade e tolerância para que o
observador aceite ver determinados valores e comportamentos colocados
em jogo, em seu caráter efêmero, precário, contingente. O resultado desse
tratamento pode ser libertário ou repressivo, desejo de integração ou
exclusão sarcástica; nada impede que a atividade do comediógrafo, como a
de qualquer outro artista, tenha fins morais, sejam eles quais forem, que ele
deseje, mais ou menos sinceramente ou mais ou menos conscientemente,
"consertar" a sociedade em que vive, punindo seus "desvios", sempre
segundo seu próprio padrão de julgamento, é claro. A força cômica -
deslocamento, reversibilidade, incongruência, etc. - encontra-se à sua
disposição [do comediógrafo], seja qual for a direção em que será exercida.
(MENDES, 2008, p. 213, grifos da autora).

Nesse ato de negociar escrita, transgressões, rupturas, riso, crenças,


tradições, em um espaço marcadamente estruturado pelo patriarcado, arrisco uma
hipótese de que Isabel Ferreira talvez realize tais negociações por uma questão de
sobrevivência no meio escrito e social43, ainda que de forma inconsciente. Pode ser
que a hipótese ganhe força se observarmos atentamente os últimos dizeres de uma
voz narrativa ao final de OGM: “Quero cobrir de ilusões a memória para não me
extinguir” (FERREIRA, 2008, p. 327). Portanto, penso que escolher o título grafado
no masculino, “o guardador de memórias”, como nome de sua criação, priorizar um
narrador masculino e finalizar a narrativa com o triunfo de Hunende, poderia ser uma
estratégia da razão prática para escamotear o fato de ela, como mulher, usar uma
linguagem sarcástica, zombeteira, satírica, irônica contra a dominação masculina.
Ou seja, ela manteria uma margem segura para negociar a fácil adesão do riso e
introduziria determinadas fraturas nos enredos canônicos.

43 Em entrevista à pesquisadora Franciane Silva (2014), Isabel Ferreira relata sobre represálias e
violência após a publicação da sua obra O guardador de memórias. (SILVA, 2014, p. 99).
136

Outra cena literária para observar um riso entre(is)tecido na tradição oral está
na passagem seguinte. Nela, veremos os sofrimentos dos luandenses pobres, mas
contados de um jeito em que se articulam narrativa e drama:

Ao que Kilamba contrapõe:


- É a praga. É o miasma! Tudo na cidade Luandinense é abanado com a
força do vento. Nem imaginem o que me aconteceu... Aliás ao pobre tudo
de mau acontece! Escutem...
E como quem conta um filme fantástico mudou de tom e colocou emoção na
voz.
- As chapas da minha casa apanharam voo, para outro poiso. Por um triz,
me levavam a minha filha para a perpétua solidão.
Manos! Este salu é tudo o que tenho. E é o único! Eu não tenho medo do
vento, nem da chuva. Tenho medo de perder o emprego.
(FERREIRA, 2008, p. 93).

O trecho é iniciado por uma fala de uma personagem, cujo nome é Kilamba,
que trabalha como vigia em uma casa de luxo, conhecido como “guarda-mansão”.
Kilamba inicia sua fala a partir do presente, lançando um comentário sobre a
agitação da natureza: “Tudo na cidade Luandinense é abanado com a força do
vento.” Ao prosseguir, vemos que ele seduz os interlocutores, seus colegas de
trabalho e o leitor, com um “Nem imaginem”. É uma expressão típica da forma oral
de contar um caso, significando algo absurdo, que não conseguimos sequer
imaginar. Ou melhor, se até a imaginação, à qual é facultada a crença em coisa
ilógica, não consegue projetar o absurdo, como poderíamos acreditar no ilogismo?
Logo, o caso pode parecer mentira.

Mas pode ser verdade porque quem narra é a própria pessoa que viveu e que
convoca, indiretamente, os seus colegas a confirmar a veracidade daquilo que vai
contar, pois Kilamba, ao soltar a queixa “Aliás ao pobre tudo de mau acontece!”,
coloca todos na mesma situação. Em seguida, o guarda-mansão lança um pedido
de escuta, como a iniciar sua história.

Um narrador em terceira pessoa, entretanto, surge e cria condições de


percepção da cena, de modo a fazer o leitor imaginar uma gestualidade de Kilamba,
descrevendo sua voz como vibrante: “mudou o tom e colocou emoção na voz”. Esse
137

narrador também recupera indiretamente a visualidade desse “jeito de contar”44 ao


usar a expressão “filme fantástico”, corroborando para a imaginação. Com tais
descrições, esse narrador dirige-se aos presentes, mostrando a cena, semelhante
ao gênero dramático, transformando o leitor, também, num ouvinte presente no ato
performático de contar. Mas ele também está próximo da cena porque ouve a voz, o
tom de Kilamba.

Esse narrador parece gostar do que ouve ou vê, pois é obstinado a incitar o
leitor a tomar parte da narrativa ao destacar aspectos da voz, dos gestos, das
expressões faciais, da corporeidade, ilustrados na passagem abaixo:

Kilamba, sorrindo num jeito quase adolescente, respondeu teatralmente:


- Então o kota que é o mais velho, não falas nada e eu que vou abrir as
goelas, aqui onde tem bué de kotas e generais. Xé, kota não me traz
problema!
- Gosto da forma, como tu inventas os factos. A maneira como usas a tua
fantasia é impressionante. [...]
A insistência foi geral. E ante tantos pedidos dos vários convidados Kilamba
não se fez rogado. Fez rir toda a gente contando memórias e estórias
criadas e reinventadas. Começou por abrir as mãos e depois esfregou-as. E
como quem rememora as cenas de Luanda abanou a cabeça rapidamente.
- A comida escasseava na cidade Luandinense. À medida que a guerra se
alastrava o sentimento patriótico aumentava. [...]
Às voltas, com seu teatro fingido, constrói enredos com as memórias do
tempo de guerra. [...]
Estica os lábios. Abre os olhos. Muda o semblante à medida que as cenas
surgidas durante a guerra exigem actos extraídos da sua fértil imaginação.
- Fala, então, jovem, precisamos de rir...[...]
Novamente Kilamba desandou com as suas memórias fazendo sorrir toda a
gente.
(FERREIRA, 2008, p. 99-102).

A marcação dos gestos e mudanças corporais pode ser observada no uso


das palavras e expressões que indicam movimento na cena: “teatralmente”, “abrir as
mãos, depois esfregou-as”, “posição de actor”, “teatro”, “Estica os lábios”, “Abre os
olhos”. Essas gestualidades aparecem em outras partes do romance, reforçando

44Essa expressão está no poema “Karingana ua Karingana”, de José Craveirinha (1995), escritor
moçambicano, e utilizada na obra O vão da voz, de Terezinha Taborda Moreira (2005), na qual a
pesquisadora desenvolve a teoria sobre o narrador performático.
138

essa característica da contação de histórias e dramaticidade, no sentido de


encenação.

Nesse ato de contar, interlocutores e contador são ativos e têm expectativas


correspondidas. Um dos personagens expressa a alegria de ouvir as histórias de
Kilamba: “Gosto da forma, como tu inventas os factos”. O resultado positivo vem
com os risos do público: “Fez rir toda a gente contando memórias e estórias criadas
e reinventadas”. Quanto mais histórias, mais risos, revela o narrador: “Novamente
Kilamba desandou com as suas memórias fazendo sorrir toda a gente.” Articulado
ao espaço da narrativa romanesca, contempla-se um ato coletivo, uma comunhão
entre o detentor da palavra e os que desejam ouvi-la.

A alegria contagiante no ato coletivo de contar histórias gera uma confiança


entre os pares, uma confiança em poder tomar a palavra. Outro exemplo é a de uma
mulher que insere sua fala logo após Kilamba. Ela também quer rememorar um fato
dos tempos de guerra pela independência. Mas, antes, ela conta sobre um
namorado desses tempos, provocando uma “risada geral” e “com a risada, a
senhora ganhou ânimo e foi desenrolando outras memórias.” (FERREIRA, 2008, p.
104). Assim, o angolano

faz do momento da contação das estórias, metáforas do duro princípio da


realidade, um instante de festa, um ato gozoso em que, pelo imaginário,
todos comungam do mesmo prazer de dizer e ouvir velhas estórias que
resgatam os ancestrais e mantêm acesa a unidade do grupo. (PADILHA,
1995, p. 23).

É possível fazer frente à tristeza por uma atividade capaz de dar alegria aos
envolvidos, como a contação de histórias. No entanto, os contrapontos são
inevitáveis e o medo de perder o emprego – “Eu não tenho medo do vento, nem da
chuva. Tenho medo de perder o emprego” – é mais forte que o medo da natureza,
este agente tão poderoso, sagrado e digno de temor para os angolanos. Nem a
memória de tempos de fome, de guerra – “A comida escasseava na cidade
Luandinense. À medida que a guerra se alastrava, o sentimento patriótico
aumentava” – fez desaparecer a alegria.

Perder o emprego, no entanto, significa sofrer os seguintes efeitos: não ter


dinheiro para se alimentar, não ser digno para uma mulher e, por isso, perdê-la ou
139

não a conquistar. Esse medo, inclusive, é recorrente no texto ficcional angolano,


aparecendo por intermédio das falas das personagens masculinas, por exemplo:
“Sem salu, kota, não és nada” ou “É assim mesmo meu puto! Homem quando se faz
homem tem que trabalhar. Senão tás fodido”. (FERREIRA, 2008, p. 84).

Paralelamente ao medo de ficar sem emprego está o de perder vigor para as


questões mais íntimas devido ao trabalho exaustivo, conforme disse Dambi, colega
de Kilamba: “Estou a perder tesão, de tantas noites sem dormir.” Por isso ele se
queixa da libido da companheira: “a minha garina lá em casa agora tá numa de
querer duas ou três por noite. Com tudo isso, vou ficar maluco nesta vida de guarda-
mansão. [...] Ou será que já me tornei invisível de mim mesmo e não sei?!”
(FERREIRA, 2008, p. 114). O romance tensiona, entre o riso satírico e o
desencanto, os aspectos mais particulares dos indivíduos e questões de âmbito
social, político, porque todos estão interligados. Isabel Ferreira faz uma crítica a
todos aqueles que constroem a sociedade angolana, pobres e ricos, mulheres e
homens, angolanos e estrangeiros.

Em Niketche, Chiziane, por meio de sua personagem Rami, também conta a


dor do seu povo, das mulheres, porque aprendeu a se colocar na posição de escuta.
A narradora-personagem também se faz uma guardadora de mágoas-alheias e de
sorrisos. A posição de escuta é a da tradição oral, como temos visto. Mas estamos
diante de um texto escrito, o que fazer, como fazer? Relembrando: não se trata de
uma reprodução do registro oral, não é uma representação límpida da voz, enfatiza
Terezinha Moreira (2005). Essa voz, figurada na escrita, é um trabalho estético que
nos coloca na zona do vivido, para ensinar-nos a ouvir. O que temos no texto
escrito, prossegue Moreira, é a inscrição de um certo “jeito de contar”, como se
pedisse uma escuta.

Ao trazer contos populares, casos que ouviu, para a narrativa romanesca, a


autora moçambicana reanima fragmentos emudecidos pela narrativa oficial, tirana e
violenta. Essa reanimação acontece quando se aplica à narrativa ficcional uma nova
significação, devolvendo a cada memória estilhaçada pelas guerras moçambicanas,
e aos redores, uma singularidade de um acontecimento. A seguir, veremos que essa
renovação se efetua sob o humor “cínico, cáustico”, cuja função acena, ceticamente,
para a quase completa ausência de utopias e ações que garantem uma vida digna,
no caso das mulheres moçambicanas. (SECCO, 2011).
140

Rami nos conta uma história que ouviu de uma mulher do interior da
Zambézia. O caso dela, anunciado na primeira epígrafe deste último capítulo da
tese, diz respeito aos quatro abusos sexuais sofridos, uma mulher que “carregou a
história de todas as guerras do país num só ventre.” (CHIZIANE, 2004, p. 278).
Segue o excerto:

Tem cinco filhos, já crescidos. O primeiro, um mulato esbelto, é dos


portugueses que a violaram durante a guerra colonial. O segundo, um preto,
elegante e forte como um guerreiro, é fruto de outra violação dos
guerrilheiros de libertação da mesma guerra colonial. O terceiro, outro
mulato, mimoso como um gato, é dos comandos rodesianos brancos, que
arrasaram esta terra para aniquilar as bases dos guerrilheiros do Zimbabwe.
O quarto é dos rebeldes que fizeram a guerra civil no interior do país.
(CHIZIANE, 2004, p. 278-279).

Depois Rami afirma, ironicamente, que foram mesmo dois abusos, já que, nas
outras ocorrências, a zambiana “entregou-se de livre vontade porque se sentia
especializada em violação sexual.” A avaliação cáustica da narradora-personagem
junta dois elementos desiguais: liberdade e abuso sexual. Ironicamente, Rami
justifica essa união pela palavra “especializada”, palavra indicadora de perícia, que
no contexto, paradoxalmente, sobressalta uma repetição de violência e um trauma
dessa mulher.

Há um confronto entre discursos, o da história oficial e o da ficção, o da


história do vencedor, seja ele português ou os guerrilheiros moçambicanos, e das
mulheres violentadas. Ao narrar a história da zambiana, o texto ficcional questiona a
violência das guerras colonial, de libertação, civil, seja em qualquer parte de
Moçambique, como os guerrilheiros do Zimbábue (antes Rodésia45) feita pelos
portugueses e civis.

O embate entre essas narrativas provoca no leitor uma reflexão sobre a


fragilidade do relato histórico, pois, “como todo discurso, ele resulta de uma
construção de linguagem, de um processo de escolhas subjetivas que, no entanto,
são impostas como verdades.” (MOREIRA, 2018, p. 65). Confrontando tais relatos
pela via literária moçambicana, o efeito é o do riso, mas de um riso melancólico,

45Sobre guerras de libertação e questões coloniais em Moçambique, conferir: MENESES, Maria


Paula; MARTINS, Bruno Sena (2013) nas referências.
141

trágico-risível, que transforma a narrativa numa alegoria da violência, que vem de


todos os lados, dos estrangeiros e civis; que transforma a história dessa mulher na
de muitas outras mulheres.

Mas ainda assim a mulher da Zambézia “canta e ri”. Conta sua história a
qualquer um que passa, de lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios e declara: “A
minha felicidade foi ter gerado só homem, diz ela, nenhum deles conhecerá a dor da
violação sexual.” (CHIZIANE, 2004, p. 279). Em relação à negação do nascimento
de mulheres, o ambulante em OGM também se diz aliviado pelo benefício de ele
não ter irmãs, porque assim elas não seriam vítimas dos mujimbos das mais velhas,
que consideravam um absurdo uma viúva não guardar o luto como manda a tradição
(FERREIRA, 2008, p. 179). São textos ficcionais de lugares distintos, Moçambique e
Angola, mas que insistem em revelar, por meio do imbricamento entre riso e
sofrimento, o corpo da mulher como objeto a serviço da tirana do patriarcado.

É uma melancolia de uma “consciência triste da realidade”, retomando Secco


(2011), pois a voz narrativa denuncia uma história longa de violência. De acordo
com Jeanne Marie Gagnebin, a alegoria em Benjamin revela a “consciência aguda
da precariedade do mundo”, sob o prisma da contemplação absorta do melancólico.
(GAGNEBIN, 1999, p. 37). Por outro lado, seria o riso da zambiana, ainda que
melancólico, um riso de sobrevivência aos traumas, às pungentes memórias, à
fragilidade do corpo? Pode ser um caminho. O que podemos observar na
interseccionalidade entre os textos ficcionais moçambicano e angolano, manipulados
esteticamente pela voz e pela letra e pelo riso, é que se vai (re)escrevendo também
a história do país, numa lógica de complementaridade entre história e ficção

O riso alegórico de Chiziane e Ferreira não busca resolver as contradições,


mas, citando Hutcheon (1991), se propõe a contestar narrativas totalizantes, com
vista ao poder e ao controle da cultura, da história, no caso, dos países africanos.
Ainda segundo a teórica canadense, a contestação de narrativas que buscam
harmonizar as contradições evidencia, em certo sentido, o modo como nossos
sistemas de signo, sendo a arte um exemplo, proporcionam um sentido à nossa
experiência de vida.

Essa escrita que salta do trágico para o riso, ou vice-versa, que engendra
alegria e desencanto, é comum em obras contemporâneas, afirma Lola Xavier
(2011). Toda essa intersecção, às vezes, se faz um caos. Mas por que seria
142

diferente se a modernidade é um amontoado de ruínas, se a modernidade, na sua


máxima de velocidade, nos amputa o tempo de elaborar as perdas? E aí tem-se a
figura importante do narrador que busca gerenciar, estetizar esse caos.

Ora esse narrador nos conta uma história, ora encena, parecendo teatro, ora
comenta, ora se dirige ao leitor, ora assume uma postura lúdica, lírica. Porque
palavra, para esse narrador, construído entre voz e letra, não é mera comunicação
formal ou mera interação, é realização corporal, sonora, visual, tátil (MOREIRA,
2005). Por isso tem-se a ideia de performance, “virtualmente um ato teatral”, de
acordo com Zumthor (2005, p. 69). É como se esse narrador quisesse saltar dos
limites da tipografia, da folha. É um “narrador performático”, afirma Moreira, que “se
apodera da palavra e a aplica de acordo com seu desejo, ou a sua necessidade”; na
voz dele, “uma mesma palavra pode mudar de sentido segundo a forma como ele se
apropria dela.” (MOREIRA, 2005, p. 148).

Uma mesma palavra pode mudar de sentido, pode ser tantas coisas, pode se
transformar. Só riso: tributo ao riso, ao chacoalhar do corpo, ao movimento do
diafragma, à revelação dos dentes, ou apenas uma oferta de sorriso, de um esboço.
Sol-riso: em contraponto à melancolia da tarde. Pareço o vagabundo Chaplin, que
faz tantas coisas com a mesma coisa, e multiplica as possibilidades. Atrevo-me a
outros risos, riscos, e, assim, arrisco caminhos, pensamentos. É isto. Um riso só.
Triste. Mas ainda é um riso, entretecido em fios de sol que virão.

5.4 entre(is)tecer o riso: o lúdico e o jogo em O guardador de memórias

O lúdico origina novas palavras, novos sentidos, cujos elementos revelam-se


como peças de um jogo de combinações, capazes, enfim, de gerar, uma vez mais,
um júbilo pelo descobrimento que se encerra no humor. (DUARTE, 2006). Assim, o
lúdico é outra forma de visualizar a tensão entre melancolia e riso, a partir de um
jogo de gracejos, trocadilhos, paronomásias, que se identifica com o próprio fazer
poético (MENESES, 1993; HUIZINGA, 2010) ou que se identifica “como passos que
buscam nos desafogar das mágoas, da dor, do trágico.” (BALEEIRO, 2009).

Observemos a seguinte passagem de OGM:


143

Ambular é a minha sina. Vivo feliz como deambulador de sorrisos! Sou


como sou! As minhas makas guardo-as no cubículo das vísceras do meu
coração. Vendo odores de alegrias. Guardo partículas de dores: dores
maternais e materiais, segredos amorais e os degredos viuvais.
Também me retalho nas avenidas dos sentimentos com alguns amores
fortuitos. A cada atalho, a cada encruzilhada, tento não deixar rastos de
esperma. [...]
Revivo todos os mambos alheios, na minha muxima. Conheço todas as
malambas da minha cidade. Oiço os cânticos e os gemidos de um povo que
como eu, sabe sorrir, chorando.
(FERREIRA, 2008, p. 174-175).

No excerto, as semelhanças sonoras gritam a agonia do ambulante, como os


“ais” presentes na sílaba final de “maternais”, “materiais”, “amorais”, “viuvais”. As
dores do ambulante insistem em aparecer em muitas combinações e sugestões
advindas do seu codinome guardador, vendedor, deambulador: “guardo...dores”;
“vendo [o]dores”; deambula-dor. Até o vento não escapa ao jogo lúdico das palavras,
com o neologismo “venta-dor” (FERREIRA, 2008, p. 91). O termo foi usado por
Kilamba, quando ele e outros colegas de trabalho discutiam sobre a agitação e a
imprevisibilidade do vento, da chuva, e, nesse instante, Kilamba comenta que o
vento é um “venta-dor revolucionário”, porque espalha suas ações sobre todos, ricos
e pobres.

Mas as dores podem vir misturadas aos “odores de alegria”. Por outro lado, é
possível que a alegria é que tenha se juntado às tristezas, com o acréscimo de uma
letra “o” em “dores”, formando “odores”, e a junção do termo “alegria”. Se corrigir é
acrescentar, retomando Barthes (2004), “dores” se ampliou, passando a ser outro
texto “odores de alegria”, outra memória, uma ressignificação de vida. Esse
suplemento acontece também com vocabulários em quimbundo, língua banto falada
na região em torno de Luanda, que se inscrevem na língua portuguesa: “makas46”,
“muxima”, “malambas”, respectivamente, significam problemas/confusão, coração e
pesares. Ao enxertar o quimbundo na língua oficial, emprestando-lhe outra
sonoridade, outro visual, outra experiência, Isabel Ferreira se posiciona de maneira
contestadora, própria de uma “literatura menor”, no sentido de Deleuze e Guattarri

46 Há outro sentido de maka, que consiste em uma narrativa tomada como “um acontecimento
representado como vivido”, pelo contador, por alguém próxima a ele, ou por pessoas que ouviu falar.
Ou a ficcionalização tomada como verdadeira. (PADILHA, 1995, p. 19).
144

(2017): uma escrita literária que se insubordina à língua do dominador, perturba e


desarranja-a. Essa teimosia é uma teimosia do corpo, daquele que quer explodir,
desequilibrar o texto escrito.

Nesse sentido, a quantidade de acréscimos expandiu a palavra “dor”, de


modo que já não são dores, mas fragmentos, “partículas de dores”. Essa
suplementação surge oportunamente, pois tudo na personagem é pequeno, como o
“cubículo” das vísceras; é de valor reduzido, como o sorriso em liquidação; pode ser
falsificado, como as “bugigangas” que ele carrega no corpo para vender, objetos tão
semelhantes ao seu sorriso, pois pode ser fingido, satiriza o vendedor. (FERREIRA,
2008, p. 174). Tudo na personagem é fragmento, “retalho”, “atalho”. A constituição
identitária, subjetiva do jovem personagem e de todas as outras personagens em
OGM, precisa ser lida num contexto de dilaceramento das vidas, histórias,
memórias, que vem desde as guerras coloniais e se estende com novas formas de
dominação. Tais formas dispersam, fragmentam, estilhaçam corpos e desejos,
reduzem as utopias libertárias, apostam na internacionalização do consumo e, ao
mesmo tempo, fazem do ser humano um passageiro do efêmero. (SECCO, 2002, p.
92).

Nas palavras de Márcio Seligmann-Silva, a “fragmentação do real, o colapso


do testemunho do mundo” oblitera, dificulta a passagem e a tradução desse narrar
para o simbólico. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 72). Por essa razão, outros modos
de narrar são exigidos. A fragmentação da forma, pela sintaxe, pelas palavras, pela
interposição entre narrativa e digressões, sejam comentários ou reflexões, revela-se
como caminho diante de uma realidade violenta e traumática.

Padilha afirma, em relação às literaturas africanas de língua portuguesa, que


“é preciso encontrar uma nova forma de expressão para um conteúdo novo”
(PADILHA, 1995, p. 189). Sendo assim, se pensarmos que a realidade angolana
chega a ser absurda, porque violenta, opressora, então o riso também se torna
ferramenta de resistência para dar conta de novas questões, outros conflitos, vindos
de uma realidade com rápidas mudanças avassaladoras e violentas, impulsionadas
por um projeto neoliberal.

O devanear e a confissão do ambulante tornam-se, alegoricamente, uma


expressão coletiva de um povo perdido ao longo do percurso de formação identitária
do território angolano. Um povo que sofre com o abandono (“dores maternais”), com
145

a fome (“dores materiais”), com perdas de referenciais coletivos (“degredos”, não


pertencimento) ou perdas particulares, como a que se infere na expressão
“degredos viuvais”. Um povo que sofre com as questões éticas, morais, afetivas
(“segredos amorais”). Por meio da escrita lúdica de Isabel Ferreira, o riso do
vendedor se faz um riso-fragmento, resto, ruína da alegria, da festa, da dança que
move os angolanos.

Diante dessa brincadeira lexical isabelina e do que foi exposto até agora, cito
Lisana Bertussi: “Ser alegorista, portanto, é ter a capacidade de, a partir de uma
montagem metonímica de fragmentos, criar uma imagem significativa do mundo.”
(BERTUSSI, 2004). Isabel Ferreira articula, portanto, riso, melancolia, contação de
histórias, posição de escuta, o lúdico para ondear, movimentar, ventar a dor e o
pensamento. Se o sorriso ajuda o ambulante-angolano a prosseguir? É uma
possibilidade, visto que só ir, prosseguir, sem se preocupar com as memórias, ainda
que reduzidas pelo seu passado de orfandade, pode não ser o melhor caminho ou a
melhor maneira para a construção de si e da nação. Por outro lado, o fato de ser um
sujeito que deambula, “ondeia”, o torna um sujeito que volta e tenta voltar para os
seus e para si.

Mas quem são os seus ou sua ancestralidade? Além das bessanganas, as


mais velhas, com quem aprendia o “tricotar da conta-acção” (FERREIRA, 2008, p.
178); havia o arvoredo de Dondo, por quem se sentia chamado. É pelas árvores que
os africanos adivinham presságios, estabelecem contato com o mundo sobrenatural
e se reúnem para ouvir histórias contadas pelos mais velho; havia também as praias
e encostas, nas quais se projetavam a beleza e o gozo da cidade. (FERREIRA,
2008, p. 175).

Contar é um ato de voltar à ancestralidade porque o ambulante tem


consciência de que a presença dos ancestrais é fundamento do grupo. Essa é uma
afirmação que nos faz perceber que o passado e o presente estão em relação de
tensão constante. Os ancestrais, afirma Padilha, “fazem com que o passado seja o
grande inseminador do presente” e impulsionador da vida para adiante. O objetivo é
assegurar o sentido do presente. E continua Padilha: “Se alguma coisa existe, no
pensamento africano, é o valor do passado, que funciona como poderosa inscrição
no imaginário, representando uma cintilação que significa”. (PADILHA, 2003, p. 296).
146

Todavia, o passado mais recente de Angola e o seu presente, com novas


maneiras de dominação, com o neoliberalismo, a globalização, retomando Secco
(2002), apostam na internacionalização do consumo e, ao mesmo tempo, fazem do
ser humano “um passageiro do efêmero”. Essa realidade, de força brutal, é
estetizada no desfecho do ambulante, que termina a vender “sorrisos de fome”.
(FERREIRA, 2008, p. 324-325), diferindo, nesse momento, daquela cena
protagonizada pela personagem de Homero, Ulisses. A personagem angolana é um
Zé de uma graça rasurada em “Zé da Graxa”, que tenta mascarar os traumas, as
tristezas, para tentar sobreviver.

5.5 entre(is)tecer o riso: o lúdico e o lírico em Niketche

Em Chiziane, o lúdico está predominantemente vinculado ao lirismo, ao longo


da narrativa. Huizinga destaca a aliança da poesia com o lúdico, semelhantemente a
um jogo, cujas bases vinculam-se a uma linguagem que brota “na região do sonho e
do encantamento, do êxtase, do riso”. (HUIZINGA, 2010, p. 133). Parece que “esta
pulsão do ser na linguagem”, que é a poesia, segundo Zumthor (2005), é o que
Chiziane deseja tanto fazer-nos ouvir em sua escrita, como se ouvíssemos sua voz.

Rami, de tradição chope, etnia do sul de Moçambique, destaca: “Nessa coisa


de cantar tenho as minhas raízes. Sou de um povo cantador. Nesta terra canta-se
na alegria e na dor. A vida é um grande canto. Canto e choro.” (CHIZIANE, 2004, p.
15). Novamente, nesses dizeres, sugere-se que a palavra “cantador” se derivou de
outras duas: “canta” e “dor”, porém, não sem o intermédio da “alegria”, essa teimosa
constituição subjetiva do moçambicano, tal qual do angolano. Depois, observe que
as duas últimas frases se ligam pelo mesmo substantivo “canto”, no sentido de
canção. A palavra em letra minúscula da penúltima frase reverbera no início da
última frase, mas em projeção maiúscula. Ou seja, “Canto” encena a palavra
“grande”, anteriormente apresentada.

É como se a contadora, insatisfeita em só usar a palavra “grande”,


gesticulasse para sua audiência o tamanho desse canto que é a vida. É como se a
contadora quisesse ser também uma cantora, porque ela aprendeu, em sua tradição
oral, que pode ser tudo aquilo que emana vida. E, então, ela canta bem alto a sua
147

dor, talvez, para que a dor vá para longe: “E a canção solta-se da garganta como um
projéctil.” (CHIZIANE, 2004, p. 292). E a contrapartida do riso? Na frase seguinte ao
“projéctil”, Rami indaga a si mesma: “Por que choro eu, se ninguém morreu?”.
(CHIZIANE, 2004, p. 292). É cômico porque, no senso comum, há incongruência
entre choro e ausência de motivo para tal. Ou melhor, ao inferir-se que existe uma
ligação entre choro e morte, não havendo esta última, não haveria razão para
lamúria. Em outro momento da narrativa (p. 221), Rami acha absurdo chorar
copiosamente nos enterros, isso é coisa de enterro cristão, ela afirma. Assim, nem
na morte Rami vê motivo para choro.

Leitor, não dá vontade de rir aquele riso alegre definido por Propp (1992), que
emana as forças vitais, forças essas já presentes na tradição oral?47 Não dá vontade
de rir um riso como se fosse o da criança48 que imagina toda a corporeidade do ser
que conta, como quem conta a grandeza de sua própria vida? Baleeiro continua
sobre a insígnia, o distintivo do humor, propondo questões:

[é] uma marca de humor, uma marca de alegria, que ela [a criança] vai
procurar, sempre, reencontrar, repetindo e buscando se deparar com esse
algo já vivido e que lhe traz imensa satisfação. Não seria essa a marca que
daria ao sujeito a possibilidade de possuir certo bom humor como base para
a sua vida? Essas não seriam as pessoas predispostas a ter uma atitude
humorística no lidar com as suas questões? Não teriam elas, essas
pessoas, um recurso a mais para lidar com o sofrimento e a dor?
(BALEEIRO, 2009, p. 47).

Recursos lúdicos, líricos: é assim que a escrita de Chiziane dribla o


sofrimento das mulheres. Na palavra “canto”, outros sentidos estão guardados.
Então, continuemos a brincadeira. Em “A vida é um grande canto”, o termo “canto”
pode também significar junção de duas arestas, duas paredes, formando um ângulo,
um canto, uma parte, um lugar. É o canto por onde as crianças correm (CHIZIANE,
2004, p. 111); é o lugar por onde Tony costuma sentar-se, fixar-se (CHIZIANE, 2004,
p. 318); são os quatro cantos do mundo, expressão que aparece várias vezes na
obra.

47 LEITE, 1997; PADILHA, 1995; FONSECA, 2016.


48 BALEEIRO, 2009.
148

“Canto” pode significar parte, lugar separado, reservado, íntimo, pode ser um
ângulo por onde se contempla o mundo: “Levanto os olhos e contemplo o mundo.
Num canto, as mulheres juntam-se em roda e as suas vozes explodem num
majestoso canto”. (CHIZIANE, 2004, p. 292). Claro, sem desconsiderar, neste último
trecho, novamente o significado de canção, reiterada pela última palavra “canto”.
“Canto” pode denotar também a reclusão do sujeito, sua introspecção, é o
comportamento do melancólico, como o fez Rami no início do romance, buscando o
que não se sabe, o que está perdido: “Fecho os olhos e escalo o monte para dentro
de mim. Procuro-me. Não me encontro. Em cada canto do meu ser encontro apenas
a imagem dele.” (CHIZIANE, 2004, p. 14).

A vida seria, pois, a simbiose de dois elementos substanciais ou duas ações


inerentes ao ser humano: canto(ar), poesia, choro(ar), tristeza. Apesar de “canto”, no
sentido de ângulo, denotar algo pequeno, porque é apenas um ângulo diante de algo
maior, ainda assim, paradoxalmente, a vida, nos dizeres de Rami, é imensa. A vida
é grandiosa porque abarca questões complexas, duras, traumáticas, dilacerantes,
pensando em todo o contexto apresentado pela personagem.

De canto em canto, há um (en)canto da descoberta das palavras e sentidos


outros no romance moçambicano. O lugar recluso, do comedimento, do sorriso das
mulheres brancas cristãs não cabe no papel, não cabe na voz de Chiziane nem na
de Ferreira, vozes figuradas pela escrita. Em Niketche, Chiziane, por meio da boca
de Rami, erotiza o canto49, conforme o trecho:

Quem é ele, que seguiu os caminhos tortuosos até este canto escondido,
sob o manto romântico da penumbra? Para quem serão aquelas flores tão
belas se o aniversariante é um bebezinho que só quer um brinquedo, um
chocolate, um bolo de creme? Deve ser um ladrão. Um belo ladrão. O beijo
roubado se colhe na penumbra. (CHIZIANE, 2004, p. 77-78).

Aqui, o riso ou seu leve entreabrir, provém, como afirma Bertussi (2004), da
melancólica capacidade de rir do desconcerto. Rami ainda tem dúvidas se poderia
ser objeto de desejo, já que todo o seu ser havia sido moldado sob as narrativas da
clausura, representada pelas palavras “escondido”, “manto”, “penumbra” e “canto”.

49Sim, leitor, essa minha frase é dupla de sentido. Ora, uma tese é um texto muito seco e duro
demais. Serpentear é preciso.
149

Novamente, este último termo pode ter o sentido do recolhimento ou mesmo de uma
canção comedida (“canto escondido”), uma vez que, relembrando as palavras de
Rami, para as mulheres foi dado o eterno conselho “fecha”, “cobre”, “esconde”.
(CHIZIANE, 2004, p. 99).

Mas Chiziane brinca com a linguagem e convida o leitor, desejoso pelo jogo
do desvelamento, a observar Rami. Ela não quer apenas ser desejada, também
deseja e muito. A penumbra já é o jogo da sedução e não da melancolia. É nessa
intimidade, proximidade (“bebezinho”), que o canto se insinua erótico. E aqui
destaco os fonemas /b/ e /l/50.

Ao pronunciar, por exemplo, “belas, “bolo”, “belo”, “beijo”, “penumbra”,


visualmente, os lábios se fecham e se abrem, no fonema /b/; a boca fica entreaberta
e a ponta da língua elevada no /l/. De maneira tátil, os lábios se tocam ao fechar e
abrir com explosão de ar, isso para o /b/; para o fonema /l/, a ponta da língua toca no
alvéolo superior na borda dos incisivos superiores, e a parte posterior da língua fica
sem contato e com livre passagem de ar pela lateral.

Alegoricamente, o que ocorre é uma livre passagem para todos os


experimentos corporais, e assim o corpo de Rami se abre em explosão. E o par
melancolia e alegoria é engendrado por um sensualismo risonho de quem parece ter
encontrado o objeto perdido: a capacidade de investir libidinalmente no mundo
externo. E, no fim de todos esses corpos desejantes, Rami, ironicamente diz: “Vim
para uma festinha de aniversário e acabei no leito do amor proibido”. (CHIZIANE,
2004, p. 81). Tudo isso numa função lírica e lúdica “que retalha a melancolia, dando-
lhe colorido e relevo”. (ROUANET, 2007, p. 14). E assim se faz o corpo erótico das
palavras.

Chiziane e Ferreira destinam trabalho estético, cada uma dentro de sua


proposta e peculiaridades, às histórias, memórias de suas personagens, que
parecem deambular por aí, soltas, perdidas, porque essa é a realidade da
modernidade de estilhaços, lacunas, lutos suspensos. (BERTUSSI, 2004). Pensando
na realidade desses dois países, Moçambique e Angola:

50 Sobre a articulação dos fonemas /b/ e /l/, conferir os textos de Lygia Bueno Fragoso (2016) nas
referências.
150

Vemos, desse modo, que as polaridades entre capitalismo, imperialismo


versus marxismo, socialismo se afrouxaram. Os nacionalismos
revolucionários, anticoloniais se dissolveram. As promessas de justiça social
ficaram, muitas delas, “descumpridas”. Nesse quadro movente de
incertezas e desencantos, onde os limites entre as antigas antinomias
passaram a se interpenetrar, é preciso saber ler a mobilidade e a melancolia
que recobriram velhas relações, alertando criticamente para novas formas
de colonialismo presentes no espaço contemporâneo da globalização
neoliberal. (SECCO, 2008, p. 59).

Contar “história a qualquer um que passa, de lágrimas nos olhos e sorriso nos
lábios”, como fez a zambiana, ou “saber sorrir, chorando”, como disse sensivelmente
o ambulante, podem ser modos de alinhavar o sentido da vida. As personagens de
Niketche e OGM buscam, tomando por empréstimo as palavras de Mário César
Lugarinho, “com ansiedade vetores de orientação nessa realidade fragmentada.”
(LUGARINHO, 2015, p. 214). É uma busca para que o sol negro de Saturno51,
símbolo da melancolia, não as paralise no mutismo, na renúncia.

5.6 na assimbolia da dor

Outra personagem alvo do riso da escrita isabelina é Uvime. Ele perdeu a


posição de ministro e, em consequência, foi deixado pelas amantes e pela mulher
oficial, já que, segundo a irmã, elas só queriam o dinheiro dele. Cito Uvime porque o
capítulo a ele destinado é o que mais descreve o estado de assimbolia vivido por um
sujeito rejeitado, por um homem cujos simbólicos fálicos foram questionados:
dinheiro e virilidade. Esse estado melancólico pode ser observado pela construção
narrativa. Uvime fala pouco, e as vozes que se alternam são as da mãe, da irmã e,
predominantemente, do narrador em terceira pessoa. Este, além de narrar, comenta
sobre o estado emocional de Uvime: “está em permanente solidão”, “sozinho chora
uma ou duas vezes por dia”, o “silêncio devora-lhe os sentidos”, “se entristece

51 “Os autores árabes do século IX estabeleceram também a correlação astrológica entre humores e
planetas. O humor sanguíneo corresponderia a Júpiter, o colérico a Marte, deus da guerra, o
fleugmático a Vênus ou à Lua. A melancolia estaria sob o signo de Saturno, planeta distante, de lenta
revolução. Como também tinha correspondência no chumbo, aqueles que nasciam sob seu signo
eram lentos, pesados. Ou seja: um astro pouco auspicioso. No corpo humano, Saturno governava o
baço, sede da bile negra. A associação entre Saturno e melancolia era inevitável. Até hoje o
qualificativo “soturno”, corruptela de Saturno, é sinônimo de melancólico. (SCLIAR, 2003, p. 73-74).
151

continuamente“, “é um homem de passos curtos que veleja num mau porto”.


(FERREIRA, 2008, p. 270-271).

É preciso, porém, que a nota triste combine com a risível, e


Uvime não escapa ao riso sarcástico do narrador, cujo tom é mais aberto, agressivo,
evidente (o alvo é identificado, no caso Uvime) que a ironia, segundo Tabacaru
(2015). Segue a observação do narrador sobre Uvime:

Há meses que se tornara melancólico. Andava doente da muxima [coração].


Tinha lhe diagnosticado uma doença estranha para os africanos: o
desespero do rejeitado. Os mais velhos chamavam ginguelé; ou seja, dor
dos cornos. Mergulhado nos seus entardeceres, que a vida por vezes nos
oferece. (FERREIRA, 2008, p. 264, grifo nosso).

O humor resulta de uma quebra de expectativa, porque o trecho começa com


um sentido mórbido, identificado pelas escolhas lexicais que adjetivam o estado da
personagem (“melancólico”, “doente”, “doença”, “desespero”, “rejeitado”), levando,
possivelmente, o leitor a entender “a doença estranha” para os africanos como
melancolia ou solidão, a partir da expressão “o desespero do rejeitado”. Entretanto,
em seguida, quando o narrador usa o termo “ginguelé” e define-o como “dor dos
cornos”, o riso se efetiva, pois a “doença estranha” passa a ter a conotação de
homem rejeitado, traído, afrontando a honra viril do macho. É um riso de zombaria
porque “nasce do desnudamento repentino de defeitos”, no caso de que o poderio
do falo é falho. (PROPP, 1992, p. 182). A afronta é risível porque o homem nunca
espera que isso aconteça com ele, como já vimos nos capítulos anteriores, pois foi
naturalizado por um discurso rígido, cristalizado, que só o homem pode trair e ainda
é perdoável, diferentemente da mulher.

Quem também contribui para o riso contra Uvime é Xaimita, que ri do


infortúnio do irmão, desempregado e traído pela namorada: “O dinheiro faz falta! Se
não tens dinheiro aquilo não levanta e a dama não abre as portas.” (FERREIRA,
2008, p. 268). Uvime perde os símbolos fálicos que sempre constituíram sua
identidade masculina, como o emprego, dinheiro e controle sobre as mulheres.
Então, por não saber como lidar com o questionamento ao patriarcado, a
personagem vai aos poucos silenciando-se.
152

Se a melancolia é um estado sintomático de reclusão e de inibição para


expressar o vivido, isso fere um povo que aprendeu que o “silêncio não é banto”.
(ANTUNA apud PADILHA, 1995, p. 95). Vale destacar, no entanto, as nuances do
ato de silenciar. Muniz Sodré, no prefácio do livro As nações Kêtu: origens, ritos e
crenças, de Agenor Miranda Rocha (2000), afirma:

O homem que vive a arkhé, a tradição, não é mudo, nem silêncio deve ser
entendido como mera ausência de verbo. Pelo contrário, silêncio é a
realidade que engendra o verbo, que dá à luz a palavra, por ser a força que
conduz o indivíduo à sua própria interioridade e à eclosão de uma verdade.
Silêncio é coisa de "dentro", palavra é coisa de "fora" - no jogo ponderado
dos dois espaços se faz a comunicação equilibrada com o mundo. (SODRÉ,
2000, p. 9).

Logo, o silêncio de Uvime não é banto porque a palavra não está


acompanhada, a palavra que é força, ação. Uvime vai deixando de reagir. Isso me
recordou a personagem Tony, pois ele, ao final de Niketche, também se paralisa,
pois se vê absorto diante de uma nova realidade com a qual não aprendeu a lidar ou
não quer lidar.

É pela instrumentalização da alegoria que conseguimos perceber um olhar


atento das autoras sobre as instâncias das relações afetivas e das experiências
coletivas e particulares que melancolizam suas personagens, sejam elas femininas
ou masculinas. Se as histórias de autoritarismo, opressão, vinham escamoteadas,
agora são descobertas e criticadas pelo riso e suas refrações.

Tudo isso para dizer que, embora o riso tenha uma curta duração, seja um
momento curto, apenas um ângulo para se ler os textos, a vida, essa experiência
humana, é capaz de provocar ecos, reverberações, materializados em reflexões,
pensamentos, mudanças de mentalidade. O brilho do riso é uma maneira de
reelaborar a melancolia resultante das mazelas deixadas pelas guerras, pelas ações
discricionárias da globalização e do neoliberalismo. Mas não se trata de um riso
iluminador a serviço de sentimentos nobres, observa Sérgio Rouanet. Pode ser um
antídoto contra a melancolia, insiste Rouanet, recuperando Demócrito (ROUANET,
2007). Se o riso não for um antídoto, ao menos, será um alívio, um fôlego suficiente,
estratégico, para seguir a vida mais um pouco.
153

6 SÓ RISO

Quando escrevo eu amo, eu rio, eu ejaculo de prazer, não sei se a Florbela


Espanca atingia este êxtase, este clímax enquanto poetisa. Sou única. Sou
a angolana Isabel Ferreira. (Entrevista a Franciane SILVA, 2014, p. 95).

Para as escritas de Paulina Chiziane, em Niketche: uma história de


poligamia, e Isabel Ferreira, em O guardador de memórias, o riso se faz êxtase de
tomar a palavra falada e encenada, porque elas são, antes de romancistas,
contadoras de histórias. E ser uma contadora implica um trabalho com o tom da voz,
com o diafragma, com a face, com todo o corpo. Vimos, pois, que o riso se efetiva
na maneira de se apropriar da arte literária do jeito delas, sob uma escrita falante e
gestual (MOREIRA, 2005, p. 19) e uma palavra em festa (PADILHA, 1995, p. 188).
Se tomar a palavra já constitui um ato subversivo por ser mulher e escritora africana,
imagina pegar a pena rindo?

Elegi, então, o riso como um toldo de reflexões e provocações, porque o riso


é um jeito vibrante, expansivo, zombeteiro, de romper o silêncio acadêmico e
monástico a que a mulher foi, durante muito tempo, submetida, impondo-se a ela o
sorriso das virgens sábias; e às tolas, o riso às escondidas. (LE GOFF, 2000, p. 77).
Elegi o riso como um caminho de leitura das escritas de duas mulheres africanas por
acreditar nas possibilidades de alargar o conhecimento sobre as literaturas africanas
em língua portuguesa e suscitar discussões, reflexões para novos estudos.

OGM, embora apresente os absurdos, as incongruências, os deslocamentos


que desencadeiam o riso, não recusa a melancolia, articulando-a na construção de
suas personagens e na forma de narrar. O riso melancólico desarticula narrativas
eufóricas, futurísticas, de uma Luanda arquitetada para o progresso ocidental. Nesse
sentido, o romance apresenta personagens ora sem emprego, perdendo o sentido
da vida, como Uvime; ora em subemprego, temendo perdê-lo, como o caso de
Kilamba, ou se extasiando de trabalhar e tendo suas intimidades desejantes
subtraídas, como Dambi, que perdia o tesão pela esposa, porque lhe faltava força.

Além disso, a tristeza e o silenciamento se fizeram presentes no desfecho de


personagens femininas que ousaram desafiar o patriarcado, como: a solidão de
Kiluva; a narrativa curta e sem desfecho da moça Kiminha, que questionava a
154

omissão da mãe e da irmã diante dos costumes da tradição; e a incerteza do futuro


da jovem pobre e órfã Mavi, que termina na cama do hotel sonhando com um
cotidiano novo. Essas narrativas inacabadas articulam-se com a afirmação de Rita
Chaves (2000) de que a fragmentação é um aspecto do cotidiano angolano. São fios
soltos, outros ainda por tecer, mas que atestam a ficção da narrativa linear, inteira,
coesa da história oficial.

O riso melancólico em Niketche percorre boa parte da vida de Rami, mas, ao


final, atinge com intensidade Tony, paralisando e cessando sua voz. Nesse caso, ao
lermos a queda de Tony como metonímia do declínio de uma dominação opressora,
violenta, o final do romance pode ser aterrorizante para aquele sujeito que não quer
perder essa posição na sociedade.

A melancolia de Rami ora transformava-se em contação de histórias, ora em


canto. Mas não um canto lamurioso, plangente, e sim um canto que oscila em
alegria e ironia. O fato de o romance moçambicano ter muito humor torna o canto
menos elegíaco. Com esse “menos”, Chiziane destrona homens e mulheres das
palavras soturnas da piedade, da comiseração, do ressentimento. Se o leitor acha
que vai mergulhar nas histórias de dores de Rami e nelas se apegar, a voz
perspicaz da narradora dá um jeito, o jeito de quem conta história, e lança uma
narrativa de tradição oral que nos faz rir, rir muito, e ir para além de nós mesmos, de
nossos próprios torrões de verdade.

O riso com ares de esperança no desfecho das duas obras suplanta a


melancolia, porque a morte nessas obras está prenhe de um novo nascimento,
como afirmou Bakhtin (1993). Niketche e OGM terminam na morte definitiva dos
homens que protagonizaram o papel simbólico do patriarcado. No entanto, no
romance de Ferreira, em que predominam vozes masculinas, a morte de Hunende é
ascendente, pois, se ele reconheceu o mal que causava, como a narrativa dá
indícios, existe um homem redimido. Tony tem uma queda vertiginosa, em um
romance em que se predominam as vozes femininas.

A contrição de Hunende faz lembrar a figura do ladrão que, ao lado de Jesus,


se arrependeu de seus erros nos últimos instantes de vida. Novamente, faço esse
intertexto porque OGM é repleto de textos bíblicos. Seria tal regeneração o anúncio
de um novo homem luandense? Ou, de maneira alegórica, Hunende representaria a
redenção de todo o sujeito angolano, seja homem ou mulher? Essa é uma lente de
155

leitura mais esperançosa, se pensarmos que o melancólico busca saber qual objeto
se perdeu e como encontrá-lo.

Por outro lado, em uma sociedade patriarcal, com níveis de autoritarismo em


várias instâncias, privadas e públicas, seria diferente se não terminasse com a
salvação masculina, feita por uma escrita que parece sentir saudades da mulher-
mãe-salvadora? Ferreira traz para sua narrativa vários questionamentos e
transgressões, porém sua escrita insinua o peso do sistema patriarcal, sendo
custoso se desvincular dele, porque ele está ali, sempre à espreita para reprimir.

A narrativa isabelina incomoda nosso desejo de, pela arte, matar o “anjo do
lar”, de extinguir, metaforicamente, aquilo que oprime. Porém acordamos para
contrastar realidades brasileira e angolana. A escrita satírica, sarcástica, irônica de
Isabel Ferreira questiona o sentido do meu riso, daquele ridente ocidentalizado que
habita em mim, que vê por cima o seu objeto de pesquisa e recusa a posição da
escuta. O riso de sua escrita indaga as percepções do meu tempo e do meu espaço,
e, por sua vez, também se faz distinta do tempo e espaço da escrita de Paulina
Chiziane.

É necessário escutar a voz figurada na escrita que “veicula os afetos”


(angústia, medo, alegria) e “não os recalca”, que “propõe uma saída sublimatória
para eles”, transfigurando “para outro num terceiro elo, imaginário e simbólico”, pois
“a escrita é transformação, transposição, tradução.” (KRISTEVA, 1989, p. 196). Mas
como falar em transformação, em não repressão com os desfechos em OGM?
Penso que só o poder falar, dizer, escrever, já é um caminho de transformação para
mulheres que há tão pouco tempo vêm se apropriando da palavra, da escrita, do riso
desmesurado ou do ensaio de uma desmesura.

Já o riso elaborado por Chiziane faz o homem descer ao inferno sem fim.
Embora Tony diga, como vimos, estar arrependido ou desejoso de ser outro homem
diferente do que aprendeu nas tradições calcadas no patriarcado, ele não sustenta o
seu discurso, este é palavra vã. Parodio, pois, um dito popular: seria o Tony, de
Antony, de valor inestimável, a princípio, o santo do pau oco? O homem da palavra
vazia no entendimento de ele não conseguir e não ser possível sustentá-la? O
estarrecimento dessa personagem, ao final, sugere uma descoberta tardia de que já
não é suficiente sustentar as subjetividades masculinas pelos mesmos discursos
tirânicos arquitetados pelo patriarcado. (BOURDIEU, 2014).
156

Aproveito para pensar sobre a “vingança” que Rami e as outras mulheres


tramaram contra Tony e os sentimentos envolvidos: raiva, ódio, cólera. Existe uma
revolta das personagens femininas diante do processo histórico injusto, violento.
Nesse caso, quando Chiziane, por meio da narrativa literária, expressa tais
sentimentos culminando na morte simbólica da hegemonia masculina, ela recusa o
silenciamento desses sentimentos, os quais também foram reprimidos pelo
patriarcado, porque, para uma mulher, eles são feios, não virtuosos, profanos,
diabólicos. Além disso, tais sentimentos ou ação, no caso a vingança, são um
escândalo à narrativa cristã do amor ao próximo.

Diferentemente de Niketche, o riso em OGM se aproxima da comédia de


costumes por denunciar, criticar as mazelas da cidade de Luanda e os valores
ocidentais, resultando numa linguagem mais popular, didática e grotesca em várias
ocasiões. Nesse tipo de comédia, ri-se para corrigir os costumes. Além disso, a
presença de um prólogo, tipificação das personagens, como o ambulante de sorrisos
(representa os órfãos, sujeitos em condição precária), o guarda-mansão (representa
a classe trabalhadora), a esposa (aquela mulher presente no prólogo que representa
todas as mulheres casadas, consideradas oficiais, mas que são traídas pelos
maridos) são elementos presentes no gênero comédia.

Além disso, há muito mais diálogos entre as personagens em OGM, como se


elas estivessem se apresentando num palco, em comparação à obra de Chiziane. A
impressão é de que Isabel Ferreira deixa Luanda se apresentar como ela é pelas
mazelas, agruras, sorrisos fingidos ou não de cada personagem. Entretanto, a
comédia é feita por uma angolana de gema, conforme a autora gosta de dizer, e não
corrige tudo, como se para expressar a máxima “a vida como ela é” em Luanda. Por
essa razão, o riso na obra de Isabel Ferreira parece mais realista do que o final de
sugestiva esperança de Chiziane.

Em Niketche, há uma proposta estética distinta. As críticas contundentes à


sociedade moçambicana e aos valores ocidentais, por meio das personagens,
existem, porém o riso satírico aqui é enovelado pelo lirismo da obra e, portanto, pelo
predomínio da primeira pessoa. Essa é uma das diferenças significativas entre as
narrativas africanas.
157

Para uns, suas histórias ficcionais, de Paulina Chiziane e Isabel Ferreira, se


mostrarão levemente cômicas; para outros, uma grande piada; outros ainda, ao se
divertirem, poderão refletir, pensar, com a escrita vibrante dessas escritoras.

Pelo riso da escrita das autoras, quais sejam os seus tons, ele nos mostra
nosso próprio absurdo, a crença totalizante no pensamento sério de defender
nossas partículas científicas como universais. Até o momento em que outro saber
nos conteste e, astrofisicapoeticamente falando, prove que o escuro que vemos no
firmamento de noite não é ausência de luz, mas uma luz veloz do número infinito de
galáxias e de corpos luminosos que se distanciam de nós porque o universo está em
expansão. (AGAMBEN, 2009, p. 64-65). Apropriando-me e gozando-me dos
sentidos de Agamben, leio o escuro da melancolia nas escritas de Chiziane e
Ferreira não como ausência de luz, mas uma melancolia estetizada literariamente
sob influências não de Saturno, mas de um riso ancestral africano que explodiu em
corpos luminosos e alegres um número imenso de possibilidades de dar sentido à
existência de suas próprias mulheres para que elas não sucumbissem.

Em toda a tese, busquei refletir sobre o modo de fazer tese. Isso foi surgindo
a partir das observações sobre a escrita das autoras, mulheres que se apropriam da
pena, e o que isso significa para elas em um contexto de silenciamento. Refletir
sobre a confecção deste estudo surgiu também a partir das minhas leituras dos
textos teóricos que insistem no riso como um movimento para ir além do sério.
“Além” é um termo que aparece em Nietzsche, Verena Alberti, Luiza Lobo. Então,
como Chiziane e Ferreira, que se apropriam do processo de escrita, vão além do
sério? Pela forma, e o riso irônico, satírico, sarcástico, zombeteiro, ou ainda o lúdico
na contação de histórias são alguns exemplos da forma.

Assim também busquei ensaiar uma forma entre o riso e a melancolia na


minha própria tese, usando a ironia, o humor e uma escrita digressiva, como se
fosse para simular o estado melancólico. Nessa simulação, penso que fui deixando a
melancolia se apoderar das minhas reflexões e, às vezes, tentava recuperar a
gargalhada, o riso, ao menos um sorriso. Rir é um risco, é perigoso, como viver é
perigoso, brincando com as palavras roseanas52, mas ainda decidi fazê-lo, porque
penso que as mulheres acadêmicas poderiam rir-a-sério do texto acadêmico.

52 ROSA, 2006, p. 49.


158

É provável que a melancolia possa ser encontrada inclusive no uso da


expressão “a sério” para caracterizar o leitor, a tese. Confesso que fiquei relutante
no uso da expressão adverbial, pois soa como se eu quisesse dar uma legitimidade
para o estudo sobre o riso, algo que critiquei no início da tese. Porém, o fato de
autoridades públicas brasileiras vilipendiarem o conhecimento, ainda mais em
tempos de pandemia, usando um riso ridículo, um humor que conserva preconceitos
e dissemina ódio, preferi usar a expressão “a sério” para justificar ao leitor o
compromisso e o posicionamento do riso desta tese.

Busquei defender um riso como experiência de esgarçar o Verbo como único


criador de tudo e de todos, como palavra cristalizada, rígida, não fluida, para que
assim vejamos o brilho do não saber, do impensável, do indizível, que não significa
inexistência, mas que só precisava de boas gargalhadas, a de Chiziane e a de
Ferreira. Porque assim, na tessitura e cesura mútua do riso e da palavra que faz
pensar, que faz movimentar, chacoalhar nossos corpos-textos, tomamos consciência
de nossa existência dramática e melancólica, que, ela sim, é universal.

Que seja pelo esboço de sorriso, no sentido da ironia frente ao trágico-risível,


que seja pelo humor, pelo cômico, pela ironia atacante, pela sátira, pelo grotesco,
pelo riso zombeteiro, ou que seja só um riso, aquele que ondula o desejo de tomar
parte na vida.
159

REFERÊNCIAS

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