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São Paulo
2020
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São Paulo
2020
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CDD
372.4
Bibliotecária Responsável: Silvania W. Martins – CRB 8/7282
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Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
À minha mãe,
Que me ensinou a enxergar o outro,
com saudade...
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à minha família: nenhuma etapa dessa jornada teria sido
possível sem o apoio, sobretudo, das minhas filhas. Tenho certeza de que a paixão e respeito
pelo conhecimento é um aprendizado que se transmite aos filhos. Minha mãe, que mal
terminou os estudos básicos, gostava muito de música clássica e era apaixonada por óperas
e ensinou-me ao seu modo a respeitar a Arte. Não fui uma grande leitora até a minha
adolescência, mas sempre quis que a literatura fizesse parte da minha vida, desejo despertado
pelo meu avô João, leitor até o final da vida, quando lia com uma lupa nas mãos. Conforme
a literatura foi se tornando uma presença em mim, passei a entender de onde vinha a paixão
que algumas óperas despertavam em minha mãe: a música clássica fazia mais sentido quando
possibilitava que ela vivenciasse as histórias dramáticas interpretadas, principalmente, pelos
tenores que ela tanto admirava.
Há muito tempo descobri que a Arte faz toda a diferença em nossas vidas e que as
narrativas são essenciais à nossa existência, sensibiliza-nos na medida em que nos coloca
em contato com outras diferentes existências. Assim como, quando criança, acordava nos
finais de semana ao som de óperas na radiola; minhas filhas - Raisa, Irina e Sofia - sempre
acordaram rodeadas de livros. Toda essa educação literária converteu-se em incentivo e
entusiasmo para que eu retornasse à Universidade, elas entendiam - especialmente a Irina -
o quanto isso era importante para mim, e cada palavra de apoio vinha com a certeza de que
eu conseguiria superar todos os obstáculos ao longo desses dois anos de estudos. Agradeço
também ao meu pai que, semestre a semestre, acompanhou orgulhoso as minhas conquistas,
o que me deixava ainda mais feliz. Ao Athos, agradeço a interlocução que, em anos de
convivência, possibilitou-me um entendimento do mundo social por um crivo humanista
sempre muito crítico, repleto de leituras indispensáveis à análise da ficção. Ao Bernardo e à
Alice que gostam de contar e de escutar histórias. Aos meus sogros, Cleide e Lauro, que
sempre se mostraram orgulhosos das minhas conquistas profissionais, dos meus estudos.
Segundo tia Alda, personagem de “Vogal”, um dos contos mais bonitos de Carrascoza,
o mundo é como o alfabeto, feito de vogais – sons que nascem livremente pela boca - e
consoantes - sons que nascem com maior dificuldade devido aos obstáculos criados à
passagem do ar pelos lábios, dentes, língua e palato. Existem pessoas que são vogais, outras
consoantes; algumas facilitam o nosso caminho, outras dificultam. Mesmo aquelas que
dificultam nossa passagem fazem com que transpassemos nossos limites, permitindo-nos
algumas travessias importantes e, se existissem apenas vogais, ou só consoantes, o mundo
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teria de ser escrito de outra maneira; o bonito é que podemos fazer inúmeras combinações
(CARRASCOZA, 2018, p. 90).
Tive a felicidade de conhecer muitas vogais em minha trajetória. Pessoas que entraram
em minha vida e me abriram passagem para que eu pudesse chegar ao final desse mestrado.
Agradecimento imenso às minhas amigas, irmãs que nunca tive, Kátia e Vera.
Presenças fundamentais dentro de meu coração, amigas com as quais compartilho cada
alegria e tristeza e, desde o início, acreditaram que essa seria uma etapa muito importante na
minha vida.
À direção do Colégio Miguel de Cervantes - Lourdes e Silvia - por facilitarem o meu
caminho de todas as maneiras possíveis, incentivando o meu aprimoramento profissional e
pessoal, responsáveis por uma instituição que me colocou em contato mais estreito com as
artes de modo geral, lugar onde conheci pessoas incríveis que se tornaram especiais. Muitas
vogais... Agradecimento especial à Glorinha, com quem tive a felicidade de descobrir tantos
escritores contemporâneos, entre eles, João Carrascoza. Bibliotecária que me acolheu como
filha e com quem compartilhei muitas leituras. À Amélia, que sempre admirou meu trabalho
e, como diretora, não pensou duas vezes em me facilitar o caminho para cursar o mestrado.
À Marisol de quem veio a ideia para a realização do mestrado, companheira inesquecível
que iluminou o meu caminho, vislumbrando possibilidades. À Fernanda, com quem eu
divido não só o trabalho de Língua Portuguesa, mas amiga querida com quem compartilho
quase todos os dias muitos aprendizados sobre a vida. À Bia, energia muito boa, vogal
querida em todos os momentos. À Lilian, com sua organização exemplar, vogal que sabe
liderar de modo positivo, sempre abrindo caminhos para novos aprendizados dentro do
departamento de LP. À Valéria que, entusiasmada, me incentivou a realizar a minha
inscrição no programa quando estávamos juntas, longe do Brasil.
Enfim, agradeço imensamente ao João Carrascoza, à sua generosidade, escritor que
sempre se mostrou disposto a compartilhar sua literatura e outras leituras com o público.
Agradeço à Universidade Presbiteriana Mackenzie, ao Programa de Pós-Graduação
em Letras, à CAPES, ao Dr. Benedito Aguiar pelo imenso apoio e a todos os professores que
fizeram parte desta minha trajetória que se encerra. Às professoras Valéria Bussola Martins
e Thais Albieri por participarem da minha banca de Qualificação e Defesa, agradeço pelas
excelentes contribuições feitas.
Gratidão infinita à Marisa Lajolo pela orientação neste trabalho. Suas palavras sempre
sábias e generosas potencializaram à busca por um entendimento mais amplo sobre
literatura, ensino e aprendizagem.
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RESUMO
A pesquisa “Letramento literário: nas águas dos contos de Carrascoza” foi elaborada com a
intenção de investigar caminhos que aprimorassem o contato dos jovens com a literatura em
contexto escolar. Inicialmente, fez-se um resgate das teorias da recepção e do papel do leitor
nos estudos literários a partir dessas teorias. Pensando no desenvolvimento de uma proposta
formativa que atendensse professores e alunos de nonos anos, selecionamos os contos
pertencentes à obra Aquela água toda, de João Carrascoza, para compor o corpus do
trabalho, dada as possibilidades de aplicação de Estratégias de Leitura sugeridas pela Base
Nacional Comum Curricular para o ensino fundamental – Anos Finais que tal obra pode
proporcionar. Dentro dessa perspectiva, elaboramos um itinerário de leitura do gênero conto
com a intenção de contribuir com a formação de um leitor mais atento aos princípos de toda
experiência estética, atendendo às demandas de professores por práticas pedagógicas que
propiciem uma abordagem mais significativa do texto literário durante nas aulas de língua
portuguesa que considerem as diretrizes da BNCC.
ABSTRACT
The research “Literary literacy: in the waters of the tales of Carrascoza” was designed with
the intention of investigating ways that would improve young people’s contact with literature
in the school context. Initially, we studied the theories of Reception and the reader’s role in
literary studies that were recovered from these theories. Thinking about the development of
a training proposal that would serve teachers and students of ninth grade, we selected the
stories belonging to the work Aquela toda, by João Carrascoza, to compose the corpus of
the work, given the possibilities of applying Reading Strategies suggested by the National
Base Common Curriculum for Middle School (BNCC [Base Nacional Comum Curricular])
- Final Years that such work can provide. Within this perspective, we elaborated a reading
itinerary of the short story genre with the intention of contributing to the formation of a
reader that is more attentive to the principles of all aesthetic experience, meeting the
demands of teachers for pedagogical practices that provide a more significant approach to
the literary text during Portuguese language classes that consider the BNCC guidelines.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO
Educar o aluno para que ele se sensibilize com a arte e perceba o potencial
humanizador dos textos literários não é tarefa fácil, mas é uma das mais importantes do
currículo específico de Língua Portuguesa. Isto torna duplamente importante um projeto que
vise ao aprimoramento da formação do leitor em geral, e do texto literário em particular: por
um lado, o texto literário possibilita aos alunos uma “convivência amiudada com a produção
linguística valorizada” (ANTUNES, 2000, p. 101, grifo nosso); por outro, a ficção os coloca
em contato com uma multiplicidade de vozes que amplia substancialmente as suas vivências.
Segundo Rildo Cosson (2018, p. 17), “no exercício da literatura, podemos ser outros,
podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço da nossa
experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos”.
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Para desenvolver esta proposta, foram selecionadas Aquela água toda (contos) e Linha
única (micronarrativas), do premiado escritor brasileiro João Anzanello Carrascoza. Entre
os autores contemporâneos, Carrascoza tem se destacado no cenário literário nas últimas
décadas pelo conjunto e qualidade de sua obra. Autor de mais de 40 publicações - entre
romances, contos e ensaios -, percebe-se sua predileção pelas narrativas curtas.
Aquela água toda é uma antologia composta por 11 narrativas que tematizam
experiências de iniciação (ritos de passagem) marcantes para o amadurecimento dos
protagonistas. Publicada inicialmente em 2012, pela editora Cosac Naify, a obra recebeu o
Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do Livro – CBL), Prêmio Altamente Recomendável
(Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ) e Prêmio APCA (Associação
Paulista de Críticos de Artes), além de ser incorporada ao Catálogo White Ravens da
International Youth Library de Munique, na Alemanha. A obra já foi publicada na França
pela editora Lajoie de Lire e ganhou, recentemente, uma edição em espanhol na Argentina.
Em 2017, a obra foi reeditada pela Companhia das Letras, editora que atualmente detém os
direitos autorais sobre a obra.
A fortuna crítica sobre a obra de João Carrascoza tem, em geral, apontado o singular
trabalho linguístico do escritor, uma das vozes na lírica masculina contemporânea. No
posfácio escrito para O volume do silêncio, obra vencedora do prêmio Jabuti 2007, o escritor
e organizador da antologia, Nelson de Oliveira (2006, p. 207), afirma que Carrascoza é
perfeccionista, “rigoroso na seleção de temas e conflitos, rigoroso na caracterização das
personagens e do narrador, rigoroso na composição e na fixação de seu estilo literário
delicado e envolvente”. Pelo crivo desse escritor, momentos banais tornam-se inesquecíveis.
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Sua prosa poética desperta seus leitores para a grandeza das relações humanas, para os
afetos do convívio diário que fazem valer a existência de pessoas comuns. A ênfase da crítica
nesse aspecto da obra de Carrascoza - o esmerado trabalho com a língua – contribui para que
seus contos alcancem cada vez mais diferentes leitores e validam a indicação de antologias,
como Aquela água toda, para contextos escolares, pois são textos que oferecem inúmeras
possibilidades de trabalhos com alunos de idades e realidades diferentes. Recentemente
publicado, o livro didático da editora SM Geração Alpha – Língua Portuguesa traz o conto
“Aquela água toda” como primeiro texto da obra destinada a alunos de 9º ano.
Desde o ano de sua publicação, essa antologia de contos foi adotada diversas vezes
para leitura do 9º ano do Ensino Fundamental do Colégio Miguel de Cervantes, momento
em que pudemos perceber que, dentre tantas outras coletâneas de contos adequadas a esse
público, Aquela água toda toca significativamente os adolescentes, que compartilham entre
eles interessantes impressões sobre a obra. Percebemos também que a leitura das
micronarrativas de Linha única, obra publicada no início de 2016, pela editora Sesi-SP,
complementa o trabalho de leitura realizado primeiramente com os contos, ampliando o
diálogo sobre a temática das relações cotidianas e as diferentes possibilidades formais que
podem alavancar instantes dramáticos e surpreendentes da existência humana. Elípticas,
conduzem os leitores a inúmeras possibilidades narrativas subjacentes, ampliando a
consciência de que a construção literária se apoia na percepção do leitor-autor.
A escolha do corpus ajusta-se aos objetivos deste trabalho que é investigar como
alunos que estão finalizando o Ensino Fundamental leem textos literários e qual é o papel da
escola na formação do leitor literário. Em se tratando de alunos do último ano de uma longa
etapa escolar, busca-se alcançar a consolidação do letramento literário. Nesse sentido, a
escolha do escritor João Carrascoza justifica-se pela hipótese de estreitamento do vínculo
dos leitores jovens com a literatura.
Para complementar as reflexões teóricas inspiradas na obra de Carrascoza, elaboraram-
se atividades de leitura e releitura sobre os contos que compõem a antologia Aquela água
toda, cujo ponto de chegada culminou com a leitura e interpretação de micronarrativas
selecionadas da obra Linha única. Dessa maneira, buscou-se ampliar o olhar sobre as
possibilidades do gênero conto e o diálogo que se estabelece com os textos veiculados no
mundo digital.
Respaldadas em teorias da recepção discutidas na obra A leitura, de Vicent Jouve, e
na pedagogia da leitura, de Rildo Cosson, as atividades propostas pretendem investigar
caminhos que possam orientar de maneira consistente e prática a formação de leitores de
textos literários em contexto escolar. Optou-se por contos e minicontos, gêneros literários
que permitem interações diversificadas nos enredos e cuja qualidade estética – segundo
nosso ponto de vista – poderia favorecer a formação do leitor literário em contexto escolar.
O conjunto oportuniza uma abordagem relevante do gênero conto com possibilidades
de recepção bastante positivas pelos jovens, dada a qualidade e a variedade dos textos que
compõem a obra, equilibrando histórias que versam sobre encantos e desalentos,
contentamentos e decepções que marcam a convivência diária entre as pessoas, permeadas
por pequenas felicidades, as quais muitas vezes não são percebidas e valorizadas, mas
ganham relevância na leitura dos contos de Carrascoza.
selecionadas para compor o corpus, mas sobretudo amplia a reflexão sobre a importância de
se ensinar a ler o texto literário na escola, evidenciando a relevância desse “conteúdo” para
a formação do aluno-leitor no Brasil.
Por fim, retomou-se as propostas didáticas à luz de alguns dados observados com a
intenção de ajustá-las ao aprimoramento da competência leitora de alunos do último ano do
Ensino Fundamental via leitura de textos literários, com ênfase nas obras selecionadas no
corpus.
Com tal produto, acredita-se contribuir com leitores – alunos e professores – no acesso
às camadas mais profundas de compreensão desses textos literários, conduzindo-os à
percepção de que literatura é arte cuja beleza está na linguagem e no potencial de
transformação do ser humano que existe em textos como, por exemplo, os de João Anzanello
Carrascoza.
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1
Esta breve historiografia da recepção foi beber, sobretudo, nas fontes de uma das obras mais
relevantes publicadas no Brasil sobre esse campo do conhecimento: Estética da Recepção e História
da Literatura (1989), de Regina Zilberman. Os termos “coordenadas temporais e parentescos
intelectuais” que compõem o título deste texto foram retirados do corpo da obra de Zilberman dado
ao relevante paralelismo que sintetiza as ideias aqui selecionadas para compor os caminhos que
levaram à consolidação da estética da recepção, sugerindo diferentes possibilidades para os estudos
literários.
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Inúmeros são os diálogos que resultam em uma nova visão da estética no campo
literário. Em 1961, a publicação de Verdade e método [Wahrheit und Methode], de Hans
Georg Gadamer, ex-professor de H. R. Jauss na Universidade de Heidelberg, Alemanha,
mostra-se importante nessa fase inicial pela nova direção que confere à hermenêutica,
atribuindo-lhe o papel de intérprete da história, sem ter de percorrer a trilha do marxismo.
Assim como o mestre, Jauss percorre uma via que lhe permite chegar ao intérprete ou leitor,
situando-se na contramão das correntes teóricas estruturalistas. Em ensaio introdutório para
o livro A literatura e o leitor, Jauss expõe as justificativas de sua “agenda de pesquisa”,
foi responsável por uma conquista básica: a noção de que os sistemas não
explicam tudo, de que o novo pode emergir de lugares inesperados,
exigindo que se esteja não só atento à novidade, mas que se mantenham os
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Diante da crise das disciplinas filológicas, os filólogos que foram para Universidade
de Constança, interessados na revisão da autoimagem da teoria da ciência, fundaram o
primeiro departamento de Ciência da Literatura, voltando-se à estética da recepção e do
efeito. Nesse contexto, Jauss (1979, p. 46) enfatiza a tarefa da hermenêutica literária no início
de sua teoria da recepção “de um lado, aclarar o processo atual em que se concretizam o
efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo
histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de
tempos diversos”.
Com o desgaste do estruturalismo durante os anos 70, o interesse pela leitura ganha
relevância entre os estudiosos da literatura, momento em que as teses de Jauss são
disseminadas e alargadas. A percepção de que é inútil reduzir o texto literário a um conjunto
de formas, confere à estética da recepção um lugar de destaque na teoria da literatura desde
o qual podem ser contemplados seus precursores, as influências recebidas, as diferentes
linhas que concebem a audiência como centro dos estudos literários e outras, divergentes,
que não se afinam com a estética da recepção.
renuncia a todo prazer estético, pode-se romper com o contexto geral de enfeitiçamento,
argumentando que:
Em meio a esse contexto, publica a obra Kleine Apologie des ästhetischen (Pequena
apologia da experiência estética) em 1972.
Em sua segunda tese, Jauss adverte que, para descrever a experiência literária do
leitor, não é necessário recorrer à psicologia. Entende “recepção e o efeito de uma obra no
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sistema objetivo de expectativas que, para cada obra, no momento histórico de seu
aparecimento, decorre da compreensão prévia do gênero, da forma e da temática de obras
anteriormente conhecidas e da oposição entre linguagem poética e linguagem prática” (apud
ZILBERMAN, 1989, p. 34). Jauss não considera o “conhecimento prévio” de um leitor real,
dirige sua consulta às próprias obras, cujas características oferecem orientações ao
destinatário. Ao situar, no interior do sistema literário, os elementos que medem a recepção,
evidencia a noção de horizonte emprestada de Gadamer e à semelhança dos estruturalistas
tchecos, como por exemplo Mukarovsky, para quem a obra passa a ser considerada como
objeto significativo e o recebedor, enquanto consciência coletiva, ocupa papel determinante
e ativo na recepção. Quanto à noção de horizonte, Jauss ressalta que certas obras retomam o
horizonte para, posteriormente, contrariá-lo, como é o caso de obras renovadoras à época de
seu aparecimento, como D. Quixote, por exemplo.
Em sua terceira tese, Jauss aborda a reconstituição do horizonte como tarefa que
possibilita valorizar o caráter artístico de uma obra e, com isso, tenta resolver o problema
apontado pela crítica às histórias da literatura. Segundo Jauss “a distância estética pode ser
historicamente objetivada no espectro das reações do público e do juízo da crítica” (apud
ZILBERMAN, 1989, p. 35). Essa postura indica que quanto maior a distância, maior a arte,
reiterando assim a visão de arte autêntica ou superior - postura simplista, na avaliação de
Zilberman, que passa por algumas reformulações em ensaios subsequentes do autor.
A quarta tese, a mais comprometida com a hermenêutica, procura examinar com mais
rigor as relações do texto com a época de seu aparecimento através da reconstituição do
horizonte de expectativas diante do qual a obra foi criada e recebida, o que permite entender
a importância histórica das obras mais antigas, alvo de diferentes recepções sucessivas,
contrariando assim a ideia do “presente atemporal”.
Na quinta tese, explicita que para situar uma obra na “sucessão histórica”, deve se
considerar a experiência literária que propiciou, ou seja, a história dos efeitos. Esta tese,
discute como o poder de ação de uma obra não se perde ao transpor o período em que é
publicada, já que sua importância pode tanto crescer ou diminuir no tempo, determinando a
revisão das épocas passadas em relação à percepção suscitada por ela em cada época.
Segundo Zilberman (1989, p. 38),
Por meio de uma análise de Virginia Woolf sobre a obra de Jane Austin, em que o
que está silenciado no plano textual adquire vida pela representação do leitor, Iser (1979, p.
26
90) ilustra a ideia de que “o processo de comunicação se realiza não através de um código,
mas através da dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala”. Nessa perspectiva,
os vazios textuais que convocam o leitor a constituir os sentidos durante a leitura funcionam
como uma espécie de regulador das fronteiras da interação texto-leitor.
A autora ressalta ainda que, na época em que os ensaios de Jauss e de outros teóricos
do campo da recepção foram traduzidos no Brasil, as obras de M. Bakhtin, W. Beijamin e J.
Lacan estavam sendo divulgadas no país, diversificando assim as opções de investigação
para os intelectuais brasileiros. Vale ressaltar que a coletânea organizada por Luiz Costa
Lima, A literatura e o leitor: textos da estética da recepção, faz parte da coleção “Literatura
e Teoria Literária”, dirigida por Antonio Callado e Antonio Candido, duas das principais
figuras do campo literário brasileiro na época da publicação.
Candido cita alguns exemplos de como a técnica exerce influência sobre a formação
e caracterização dos públicos, resgatando as transformações ocorridas na literatura por conta
da invenção da escrita e da tipografia que possibilitaram a formação de públicos indiretos,
de contatos secundários. Aborda ainda a influência social dos valores que se manifesta no
comportamento artístico dos públicos guiado pelo “gosto”, “moda”, “voga” que expressam
as expectativas sociais do momento. Segundo Candido (1965, p. 46),
A sociedade, com efeito, traça normas por vezes tirânicas para o amador
de arte, e muito do que julgamos reação espontânea de nossa sensibilidade
é, de fato, conformidade automática aos padrões. Embora essa verificação
fira a nossa vaidade, o certo é que muito poucos dentre nós seriam capazes
de manifestar um juízo livre de injunções diretas do meio em que vivemos.
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Com a abertura política do Brasil nos anos 80, as discussões em torno da leitura
ganharam relevância no país em resposta à crise de ensino denunciada por várias instâncias
ligadas à educação. Na introdução de sua obra Estética da Recepção e História da Literatura,
Regina Zilberman desenvolve a hipótese de que, na década de 80, ler assume um significado
tanto literal, cuja responsabilidade é da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade
que busca encontrar sua identidade pesquisando as manifestações culturais.
Segundo a autora, esse duplo enfoque alarga o alcance das investigações sobre o
leitor. Com isso, as experiências estéticas e possibilidades de interpretação envolvidas no
ato de ler e suas repercussões no ensino e no meio social ganham relevância entre os
estudiosos brasileiros.
Tendo como foco a leitura dos textos narrativos, uma das contribuições que a obra
de Jouve acrescenta às práticas desenvolvidas em sala de aula é a diferenciação entre leitura
inocente e leitura crítica.
Ainda que a distinção entre autor (aquele que “escreve”) e narrador (aquele que
“conta”) seja do conhecimento básico daqueles que trabalham com textos literários, a
concepção de leitor real, com variáveis e infinitos traços psicológicos, sociológicos e
culturais, e a figura abstrata postulada pelo narrador, a quem o texto se dirige, são ainda
pouco explorados nos estudos literários em sala de aula.
Em sua obra La lecture comme jeu [A leitura como um jogo], publicada em 1986,
Michel Picard propõe encontrar em todo leitor três instâncias: o “ledor”, o “lido” e o
“leitante”. Segundo definição do autor, o primeiro é a parte do indivíduo que, segurando o
livro nas mãos, mantém contato com o mundo exterior; o segundo é o inconsciente do leitor
que reage às estruturas fantasmáticas do texto; e o terceiro é uma espécie de secundaridade
crítica que se interessa pela complexidade da obra. Dessa maneira, a leitura “se apresenta
como um jogo complexo entre três níveis de relação” (PICARD, 2002, p. 50).
Por outro lado, o “lendo” apreende o universo textual sem considerar a participação
do autor. Aprisionado pela ilusão referencial que considera o tempo da leitura e o mundo do
texto como um mundo que existe, o “lendo” é essa parte do leitor que esquece a natureza
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Trata-se da utilização de saberes para dar conta das demandas diárias, respeitando
princípios universais e éticos, que devem ser incorporados às práticas pedagógicas de modo
planejado, transversalizados nos diferentes componentes curriculares – antigas disciplinas.
Desse modo, tanto as competências específicas de cada uma das áreas do conhecimento
(Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso) como
as habilidades essenciais de cada um dos componentes curriculares (antigas disciplinas) devem
estar atrelados ao desenvolvimento das competências gerais, cuja intenção é a de formar um
repertório de saberes que garanta os direitos de aprendizagem e desenvolvimento ao longo dos
nove anos do Ensino Fundamental.
2
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Caderno de Educação em
Direitos Humano – Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais. Brasília: Coordenação Geral
de Educação em SDH/PR: Direitos Humanos: Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos
Humanos, 2013. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=32131-educacao-
dh-diretrizesnacionais-pdf&Itemid=30192 >. Acesso em: 11 jul. 2020.
3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o
de Alunos (Pisa) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da
Educação para a América Latina (LLECE).
Percebe-se que algumas dessas competências ganham destaque dentro do conjunto por
não fazerem parte de outros documentos anteriores, por exemplo a competência 5. Com o uso
das tecnologias cada vez mais incorporados à rotina dos jovens, os modos de ler e de se
comunicar foram alterados e demandam diferentes letramentos que levem em conta não só as
dimensões estéticas como também as dimensões éticas e políticas que envolvem desde a
produção à circulação de diferentes gêneros na web. No bojo dessa demanda, a BNCC ressalta
a necessidade de proporcionar aos alunos experiências em que possam desenvolver habilidades
de curadoria para que saibam lidar de modo crítico com os conteúdos que circulam
“livremente” na internet, considerando os critérios editoriais para selecionar o que é bom,
confiável e adequado na web.
da BNCC em formar estudantes que estejam preparados para atuar na vida real como sujeitos
capazes de transformar o mundo em um lugar melhor (DEPINÉ, 2018; SEBRAE, 2020).
Fazer educação nos tempos de hoje exige muito mais do que armazenar e
transmitir informações. Os novos tempos cobram de professores e escolas a
capacidade de imaginar e desenvolver propostas curriculares que superem a
costumeira fragmentação disciplinar, na esteira de uma visão articulada,
interdisciplinar e transdisciplinar.
Para que os alunos aprendam com autonomia, é necessário que saibam construir seus
conhecimentos de forma individual e colaborativa. Amparada em teorias de vários pensadores
de relevância ligados à educação, entre eles Lev Vygotsky e Paulo Freire, cujos escritos
sinalizam diferentemente que o aprendizado se dá de maneira ativa a partir do contexto de cada
aprendiz, as Metodologias Ativas facilitam o desenvolvimento de importantes competências,
pois oferecem caminhos para um aprendizado criativo, autônomo e colaborativo. Discutidas
desde o século XX, ganharam relevância no início do século XX, dada a urgência em se
repensar a escola em uma época em que as tecnologias digitais modificaram e ampliaram
significativamente os modos de leitura e de produção de conhecimentos. Com diversas
publicações em que defende transformações na educação, José Moran, justifica as metodologias
ativas em sala de aula:
Para tanto, a estrutura da BNCC foi pensada de forma a explicitar os insumos que
permitam a construção de currículos significativos a fim de que o ensino e aprendizagem
ganhem mais sentido. Abrangendo todas as etapas da Educação Básica, após a apresentação das
competências gerais, o documento expõe a organização de cada uma das etapas, a começar pela
Educação Infantil que se divide em três momentos (bebês, crianças bem pequenas e crianças
pequenas), expondo os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para cada um desses
momentos. De acordo com os eixos estruturantes da Educação Infantil (interações e
brincadeiras), foram elencados seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento que devem ser
garantidos às crianças até completarem 5 anos e 11 meses: conviver, brincar, participar,
explorar, expressar e conhecer-se. Atrelados a esses direitos, foram definidos cinco campos de
experiências para os quais foram explicitados os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento
para cada uma das três etapas da Educação Infantil, identificados por um código alfanumérico.
É interessante perceber a preocupação da Base com a formação integral da criança desde os
pequeninos que iniciam sua trajetória escolar nas creches brasileiras.
A estrutura da Base para o Ensino Fundamental segue esse mesmo desenho. Como
corresponde a etapa mais longa da Educação Básica, ao longo desse percurso, os alunos passam
por muitas transformações biológicas, psicológicas, cognitivas, sociais e emocionais. Iniciam
essa etapa ainda pequenos, aos 6 anos de idade, e só terminam aos 14 anos, quando já se
tornaram adolescentes. Subdividindo-se em duas etapas, Anos Iniciais e Anos Finais, o
documento destaca aspectos importantes do desenvolvimento humano que acontecem no
decorrer dessas duas etapas, esclarecendo assim a pertinência dos propósitos da Base que, de
modo espiralado, ressalta a importância em garantir, na elaboração de currículos e propostas
pedagógicas, um percurso contínuo de aprendizagens na transição entre esses dois momentos
do Ensino Fundamental:
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Na esteira do que nos diz Callegari, torna-se imperativo reafirmar que a BNCC não é
currículo, mas é marco regulatório dele, e que este deverá ser fruto da leitura e audição de
muitas vozes, todas as que compõe um determinado espaço, uma determinada comunidade,
para que esteja a serviço de uma educação de qualidade social.
Uma experiência a ser lembrada é a do estado de São Paulo, que homologou seu
Currículo para o Ensino Fundamental e está trabalhando na etapa do Ensino Médio. Para tanto,
entre os meses de março e abril de 2020, fez uma consulta pública, online, para ouvir estudantes
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e profissionais da educação, após apresentar sua proposta de Ensino Médio com a possibilidade
de escolha do itinerário formativo que mais atenda às expectativas e as aptidões de estudantes.
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Nas narrativas de Carrascoza com que trabalharemos, os alunos não serão motivados
a percorrer as páginas com a agitação de quem deseja saber o que vai acontecer depois, e
isso não é ruim, não significa que esses textos não despertem o gosto pela leitura. Ao
contrário da corrida frenética por uma enorme quantidade de páginas, optou-se por textos
que potencializam um diálogo dos leitores com o mundo interior dos protagonistas. O
primeiro conto que será trabalhado minuciosamente com os alunos, “Aquela água toda”,
evidencia o tempo vagaroso da relação do protagonista com o mar e consigo mesmo:
Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro
que até doía pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas
48
“Um dia, alguém disse a ele, a pele, apesar de suas três camadas, não prima pela
profundidade, a pele é rasteira” (CARRASCOZA, 2016, p. 9, grifo nosso). As camadas
mais profundas dos textos literários são muitas vezes acessadas por inferência, que é um
exercício constante, já que nem sempre o que se mostra na superfície do texto é suficiente.
Carrascoza acredita em uma outra leitura que antecede a leitura dos textos escritos, acredita
que é essencial saber ler o mundo e, sobretudo, as pessoas. Acredita-se que os textos
selecionados possam despertar a sensibilidade dos alunos para enxergarem além das
aparências.
[…] o tempo, a gente não percebe o tempo indo, senão quando ele já se foi,
quando se misturou às águas de outro tempo que vem vindo, este também
se deslizando no seu seguinte, líquido que se milparte e, depois, se junta,
49
Pensem nos contos que não puderam esquecer e verão que todos eles têm
a mesma característica: são aglutinantes de uma realidade infinitamente
mais vasta que a do seu mero argumento, e por isso influíram em nós com
uma força que nos faria suspeitar da modéstia do seu conteúdo aparente,
da brevidade do seu texto. [...] Todo conto perdurável é como a semente
onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá
seu nome em nossa memória (Julio Cortazar. Alguns aspectos dos contos).
Essa é uma amostra de como a percepção dos recursos gráficos-espaciais precisa ser
considerada no desenvolvimento de estratégias e procedimentos de leitura em sala de aula,
pois ampliam possibilidades de refinamento da compreensão leitora. Nesse caso, os espaços
são sutis, mas se destacam aos olhos do leitor que deve se indagar sobre o sentido daquilo
que se diferencia na composição da edição de um texto e auxilia na construção de sentidos.
uma experiência que durou poucos minutos, iniciática e intensa, aquela água toda em seus
olhos.
Precisava dos outros para ir além de si. E tinha medo. Nem muito nem
pouco. Do seu tamanho. Como uniforme escolar que vestia. [...] O que o
salvava era a mochila presa às costas. O peso dos cadernos e dos livros o
curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer um pouco
insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo!
(CARRASCOZA, 2018, p. 29, grifo nosso).
alguns, é o espaço que eterniza a memória do primeiro amor; para outros, espaço de
aprendizados doloridos, uma cicatriz na memória. E o narrador vai fornecendo indícios de
que a lição daquele dia, o primeiro dia de aula do garoto, seria difícil: “Na ignorância das
horas por vir – que desejava fossem, se não tranquilas, suportáveis -, o menino passou
pelo portão em meio a outros colegas – vindos também ali para mover a roda da fortuna,
antes de serem moídos por ela – e seguiu pelo pátio até a sua sala” (CARRASCOZA, 2018,
p.31, grifo nosso). As ênfases acrescentadas aos trechos reforçam informações já destacadas
pela própria pontuação. Trata-se de informações que confirmam a onisciência do narrador,
entidade ficcional elaborada pelas mãos de um escritor que constrói o universo do
protagonista com erudição, em um registro formal em que se destaca a imagem da “roda da
fortuna”, referência à cultura clássica, habilmente incorporada ao universo cotidiano escolar,
indicando-lhe o peso do destino reservado ao menino.
No ano da primeira publicação da obra, 2012, “Grandes feitos” foi o texto escolhido
pelo escritor para ser lido na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Exemplar
máximo do estilo lírico de Carrascoza, essa narrativa capta os movimentos silenciosos do
despertar do casal, evidenciando com delicadeza a sensualidade suave que permeia a cena
antes do filho acordar. A comunhão é intensa e se completa quando o menino acorda:
O sol se infiltrava por entre os galhos das árvores no quintal; o vento, vindo
de longe, movia suavemente as folhas. Era a mesma cena, cotidiana, mas
53
Aquela era mais uma manhã, normal como outras, a se abrir lá fora, para
os espaços do mundo – e para ele, naquela repartição sem mobília, só com
seus vazios [...] quando recebeu o chamado. [...] Pelo tom, discernia o
tamanho do assombro, embora, velho como era, soubesse que as perdas, só
quem as detém pode avaliar com precisão sua grandeza. (CARRASCOZA,
2018, p. 43-45).
exigia agilidade e o protagonista era um homem sensível: “E para não alargar a dor,
procurava retirá-lo de lá o mais rápido possível” (CARRASCOZA, 2017, p. 45).
A morte é temática ainda de mais dois outros contos da antologia: “Mundo justo” e
“Chave”. O primeiro é uma narração poderosa que reverbera na memória do leitor. Um conto
magistral, cuja tensão se manifesta desde as primeiras frases:
Foi, foi naquele tempo que eu descobri, e de lá pra cá, ano após ano, eu só
confirmo, é assim, invariável, essa lógica do mundo, se a gente ganha
alguma coisa, por mérito ou por sorte, no minuto seguinte, pronto, trem de
um lado, trem do outro, como se pra compensar, pra manter os nossos pés
bem cimentados na terra, mas eu ainda não sabia, nem desconfiava, era a
época de aprender sem ir até o fundo, pra começar eu nem me lembro de
onde me veio o gosto pelo basquete... (CARRASCOZA, 2017, p. 52).
Nessa narrativa em 1ª pessoa, o protagonista anuncia nas primeiras linhas que vai
recuperar um tempo distante do tempo em que narra. No tempo em que se passa a ação, ele
é um estudante apaixonado por basquete e faz parte da equipe da sua pequena cidade com a
qual viaja pelas cidades vizinhas para disputar um campeonato estadual. Conto
impecavelmente construído, em que as frases curtas compõem longos períodos em um ritmo
predominantemente ágil que se assemelha a uma partida de basquete em que os times correm
de um lado para o outro da quadra, com algumas poucas pausas. “Mundo justo” ocupa 7
páginas na primeira edição, da Cosac Naify, e 12 páginas na recente edição da Alfaguara.
55
Segundo Ricardo Piglia, a tensão entre ouvir e ler é um dos aspectos perceptíveis nos
contos de Jorge Luis Borges:
Assim como em outros contos, a temática envolve uma situação iniciática, e o universo
familiar é o espaço em que se desenvolve o conflito. O protagonista recupera a dinâmica das
relações familiares, com ênfase na relação com o irmão. Como pares antitéticos que se
completam, o Edu não possui a agitação e disposição do protagonista para atividades físicas.
É silencioso e observador, no entanto a introspecção não atrapalha a convivência entre eles,
ao contrário, é motivo de admiração do protagonista e vice-versa:
A vó morava com a gente, não leve isso tão a sério!, ela dizia, sentada na
cadeira da varanda, quando me via voltar triste, é só um jogo, menino!, e a
mãe, na cozinha, pulando o olhar de uma panela a outra, o cheiro bom da
comida sendo feita, que cara é essa?, nem sempre se ganha, filho, vai, vai
tomar seu banho, e o pai, a lição de casa, a lição, é isso o que interessa!,
e eu no quarto, me enxugando, o Edu no beliche, lá nos seus quietos,
sempre mergulhado num livro, e, de repente, ele de volta ao nosso mundo,
como foi o jogo?, quantos pontos você fez?, e aí eu já me sentia bem de
novo, por estar em casa, entre a família, todos na compreensão, e o Edu
mais, porque o Edu não só perguntava, o Edu torcia, ele alegre se eu
56
Eu não associava uma coisa com a outra, que a vida num instante a gente
não tem no instante seguinte, eu feliz com o meu desempenho no jogo e
o sono, na via oposta, demorando pra vir, pra dar o troco, e no meio dele
umas cenas assustadoras, do mundo agindo no seu maior mal, minha
imaginação ainda miúda se comparada com a maldade disseminada pelos
homens — isso eu descobri bem depois —, eu sem conhecer a precisão
desse aparelho, e agora, agora eu posso ver o seu mecanismo inteiro,
como se o véu, que cobre suas vísceras, fosse vidro, tão transparente,
agora eu até posso ver seu coração funcionando, tic-bem-me-quer, tac-
mal-me-quer, tac-bem-me-quer, tic-mal-me-quer, a ordem dos fatores não
altera as contas exatas, sempre o mesmo resultado, sempre
(CARRASCOZA, 2018, p. 55, grifo nosso).
Em “Herança”, o último conto, o leitor se depara com angústia de um pai que foi
surpreendido pela notícia de que teria de partir a trabalho por mais de um ano. Uma
separação longa e inesperada da família:
Desembarca e cumpre o seu trabalho sem deixar de pensar na família. Entre o silêncio
interior e o movimento da empreitada que estava gerenciando, a dúvida se todo o sacrifício
valeria a pena. Sentia que não valia! Em “espremidos sofrimentos”, suportou “as horas
calmas que se estendiam como elásticos” até o momento em que pode finalmente retornar.
O leitor acompanha o processo de descobertas do pai, viagem que reverbera no leitor
enquanto percurso valioso do processo de amadurecimento contínuo das pessoas.
58
Na BNCC, o eixo Leitura aborda o tratamento das práticas leitoras que “compreende
dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão”. A primeira dimensão explicitada
pelo documento trata das condições de produção e recepção dos textos:
O itinerário de leitura proposto neste trabalho foi orientado, principalmente, pela obra
Letramento literário: teoria e prática, de Rildo Cosson, e pelos pressupostos metodológicos
da Base Nacional Comum Curricular. Dessa maneira, evidenciou-se as competências e
habilidades que podem ser desenvolvidas em cada uma das atividades, de modo a explicitar
como cada uma das etapas do material didático proposto dialoga com os referencias da
BNCC.
Motivação
Estratégia de Leitura
• Apreender os sentidos globais do texto (BRASIL, 2018, p. 74).
Antecipação de conhecimentos
A matéria que segue, publicada no Caderno de Cultura do jornal Estadão, será o ponto de
partida para “investigar” a produção literária de João Anzanello Carrascoza.
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Selecione informações relevantes, aquelas que mais lhe chamarem a atenção, destacando-as
em amarelo. Justifique a escolha dessas informações tendo em vista a sua relação com a
leitura literária. Por que tais informações lhes parecem interessantes?
'Aquela Água Toda', de João Anzanello Carrascoza, ganha reedição e volta às livrarias
Obra, que agora é quase de bolso, traz também ilustrações do artista plástico Visca
Aquela Água Toda, a obra mais premiada de João Anzanello Carrascoza, está de volta às
estantes das livrarias. Publicado inicialmente pela Cosac Naify em 2012, o livro estava fora
de catálogo desde o fechamento da editora, em dezembro de 2015. Nesses três anos, no
entanto, faturou troféus voltados à literatura adulta, como o Jabuti e o APCA, e ao público
jovem, como o FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) e o White Ravens, da
International Youth Library de Munique, na Alemanha.
Agora acaba de ser reeditado pela Alfaguara, em novo formato (quase de bolso) e com
ilustrações do artista plástico Visca - inicialmente, a obra tinha desenhos de Leya Mira
Brander. Os 11 contos também tiveram uns parafusos apertados. “Fiz uma leitura, não uma
61
revisão. Algumas palavras acabei cortando, tirei uma linha ou outra. Mas são coisas
menores”, conta Carrascoza ao Estado.
As histórias, em comum, têm o ponto de vista da descoberta, a maior parte delas durante a
infância. Carregam o tom da leveza, dos aprendizados menos dolorosos. São pequenas
recordações que se tornam grandiosas graças à capacidade do autor em colocar uma lupa de
lirismo sobre os sentimentos dos personagens descritos.
É o lado solar de Carrascoza que se faz presente de novo. Uma face oposta à de seu último
livro de contos, Catálogo de Perdas, de 2017, que saiu pela Sesi-SP Editora. Nele, o autor
desce ao subterrâneo das sensações e trata questões obscuras, fala sobre o momento da
ausência, da ruptura na vida.
Nos livros de Carrascoza não há grandes descrições de paisagens e cenários. Interessa mais
a ele o vínculo do que está sendo formado ou do que é interrompido. Ele diz que sua obra
está sempre em busca da relação com o outro, do núcleo da situação e que a partir desse
núcleo tudo reverbera.
“Tento na literatura colocar um olho nessas situações cotidianas que a gente acaba perdendo,
deixando de captar a beleza que tem e o quanto são significativas para nós. Porque a maior
parte do nosso tempo acontece com situações menores. Mas, ao mesmo tempo, por serem
tão menores, fazem a gente achar a vida grandiosa.”
A escolha por essa voz narrativa, no entanto, demorou para reverberar entre os críticos. Fazer
ouvir seu sentimento, ser reconhecido por um tipo de literatura inspirada declaradamente em
Carlos Drummond de Andrade e Raduan Nassar demorou para ganhar legitimidade.
“Já tive muita dificuldade de ser visto. Hoje as coisas melhoraram um pouco. Mas a maior
parte das vezes fui publicado em editoras pequenas. Por muito tempo o que escrevi ficou
muito à sombra”, recorda.
62
Seu primeiro livro de contos saiu em 1994, Hotel Solidão, quando tinha 32 anos. Na época,
Carrascoza também começava a vida acadêmica e dava aula de publicidade na Escola de
Comunicações e Artes da USP, onde pode ser visto com o giz na mão até hoje. De lá para
cá foram mais de 40 obras, entre contos, romances e ensaios.
A ponto de equilíbrio entre todos esses universos veio com a ioga. Durante 25 anos
Carrascoza contou que foi discípulo do mestre José Ramon Molinero, que morreu em 2004.
E mesmo após a perda de sua referência, até hoje, ao menos uma vez por semana, se
reconecta com doses solitárias de inspiração e expiração em seu apartamento.
“Com o passar do tempo meu trabalho foi sendo visto como legítimo, que tinha uma coluna
vertebral típica, com certa singularidade. Sou muito grato por esse reconhecimento. O
interessante da literatura é isso. A possibilidade de encontrar ali autores que falem de
diferentes questões”, afirmou.
Novidades. Neste ano, Carrascoza publicará um conto inédito intitulado Super Lua. Terá
ilustrações e ele acredita que, com mais esse fator, será enquadrado como infanto-juvenil,
apesar de discordar. “É um livro ilustrado e ponto”. Sairá pela editora Nós e ainda não tem
data de lançamento.
Na semana passada saiu pela Positivo a antologia a Estação das Pequenas Coisas, que reúne
contos produzidos entre 2006 e 2016. “Tem uma ou outra coisa de antes desse período, mas
é exceção”, informa o autor.
Para o próximo ano, Carrascoza trabalha em novo romance. Já tem nome provisório, mas
ele prefere não revelar. “Estou em um período de retrabalho. Vamos ver o que acontece
daqui para frente e se conseguimos publicar em 2019”.
TRECHO
mais que podia sonhar com o sal nos lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a
quentura do sol nos ombros, o menino ao vento, a realidade a favor, e ele na sua proa...”
PRATA, João. ‘Aquela água toda’, de João Anzanello Carrascoza, ganha reedição e volta
às livrarias. Estadão, São Paulo, 2018. Disponível em:
<https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,aquela-agua-toda-de-joao-anzanello-
carrascoza-ganha-reedicao-e-volta-as-livrarias,70002287229>. Acesso em: 11 jul. 2020.
1) Dos trechos que destacou, selecione os quatro mais relevantes. Justifique sua seleção.
2) Que tipo de informação o texto antecipa sobre a obra que você vai ler?
3) Essas informações despertaram-lhe o desejo de ler o livro? Justifique.
4) Tendo em vista as informações da matéria, indique alguns critérios que
possivelmente foram usados pela professora para selecionar a obra Aquela água toda
como leitura literária escolar.
Habilidades
O escritor João Carrascoza, para definir o gênero conto em oposição ao romance, compara
o conto a um riacho. Leia e atente à interessante metáfora que usou para descrever o gênero.
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O conto-riacho.
Antes de iniciarmos a leitura, não podemos deixar de dar atenção, também, aos títulos e ao
que eles antecipam sobre os textos que vamos ler.
No caso do primeiro conto, Aquela água toda, que tipo de enredo podemos esperar com esse
título? Para pensar...
Primeira Leitura
Após a primeira leitura do conto “Aquela água toda”, registre suas impressões para
compartilhar em classe com os colegas.
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Sabemos que os textos são concebidos para serem lidos em sua progressão temporal.
Lemos primeiramente do início ao fim - uma leitura linear. No entanto, para estudar um texto
literário, apenas uma primeira leitura não é suficiente. É no momento de releitura, à luz do
desfecho, que nos exercitamos para nos tornar leitores experientes. Segundo estudiosos da
leitura, a sucessão não é a única dimensão narrativa: o texto não é somente uma
“superfície”, mas também um “volume” do qual certas conexões só se percebem na
segunda leitura.
Vamos reler o conto Aquela água toda para interpretá-lo. As questões que seguem
visam à exploração de aspectos importantes na construção das narrativas do escritor João
Carrascoza: a voz do narrador, a densidade do tempo que tornam inesquecíveis enredos que
evolvem experiências cotidianas.
1) Você deve ter observado que o menino, protagonista da história, não tem nome nem
idade.
a) Tendo em vista a descrição dos preparativos para a viagem bem como as experiências
vivenciadas pelo menino, que idade imagina que ele tem? Justifique sua resposta com
2 passagens do texto, evidenciando elementos que sustentam as suas inferências.
Aquele que escreve não é aquele que conta. Para ter uma ideia vaga do autor, é preciso
fazer uma pesquisa, juntar documentos, ler prefácios: para saber tudo sobre o
narrador, basta ler seu texto. O narrador, portanto, é sempre uma criação do autor e
pode, consequentemente, distinguir-se dele pelo sexo, pelos gostos, pelos valores ou pela
natureza (Vicent Jouve, A leitura).
2) Ao ler uma narrativa de ficção, é importante distinguir se a voz que conta a história, o
narrador, é em primeira ou em terceira pessoa, se participa do relato como personagem
ou vendo-o de fora, enquanto mero observador ou, ainda, dotado de onisciência,
penetrando parcial ou totalmente no enredo. Observar se o narrador interfere na narrativa
com comentários, digressões, ironias, e avaliar a importância dessas atitudes para o
significado geral da obra. A postura do narrador é fundamental para a compreensão
da narrativa.
Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada à que o esperava
lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou de uma vez, como se natural: iriam à
praia de novo, igualzinho ao ano anterior, a mesma cidade, mas um apartamento maior, que
70
o pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato, num instante
azul-azul, os pés na areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe, aquela água toda nos
olhos, o menino no mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na
memória.
O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou pela casa. A mãe ia de um quarto ao outro,
organizava as malas, Vamos, vamos, dava ordens, pedia ajuda, nem parecia responsável pela
alegria que causara. O menino a obedecia: carregava caixas, pegava roupas, deixava suas
coisas para depois. Temia que algo pudesse alterar os planos de viagem, e ele já se via lá,
cercado de água, em seu corpo-ilha; um navio passava ao fundo, o céu lindo, quase vítreo,
de se quebrar. Não, não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus pés.
c) Localize nos parágrafos acima, o fragmento que dialoga com a imagem presente na capa
da primeira edição da obra. Qual é a sua impressão a respeito do cruzamento entre
texto e imagem? Justifique.
Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus castelos
de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia que o
tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas. Recordava-se de estar
ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica que,
para suportá-la, dormiu.
71
Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou
assustado, o cobrador o sacudia abruptamente, Ei, garoto, acorda! Acorda, garoto!, um zum-
zum-zum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus, entre os caiçaras, procurando
num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão — e nada. Eram só faces estranhas.
A idéia provinda desta junção seria, à primeira vista, uma armadilha de galhos. O termo,
porém, denomina as comunidades de pescadores tradicionais dos Estados de São Paulo e
Paraná e sul do Rio de Janeiro.
O final implica, mais do que um corte, uma mudança de velocidade. [...] Existem tempos
variáveis, momentos lentíssimos, acelerações. Nesses movimentos da temporalidade se joga
o remate de uma história. Uma continuidade deve ser alterada: algo trava a repetição
(Ricardo Piglia, Teses sobre o conto).
Levantou-se, rápido no seu desespero, Seus pais já desceram, o cobrador disse e tentou
acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade às pressas e,
afobado, se meteu nela de qualquer jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo instante,
intuindo seu desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só precisava
voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...
Metáfora é a figura de linguagem que consiste no emprego da palavra com sentido que não
lhe é comum ou próprio, sendo esse novo sentido resultante de uma relação de semelhança.
É uma comparação abreviada, sem o termo comparativo.
c) A expressão “aquela água toda” aparece repetidas vezes ao longo da narrativa. Como
podemos interpretá-la ao finalizar o conto? Ela tem esse mesmo sentido no 8º parágrafo
do texto? Explique.
Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro que até doía
pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas se davam a conhecer, o
menino e o mar. E, naquela mesma tarde, misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava
daquela saciedade: ele nem pedira sorvete, milho verde, refrigerante. O menino comia a
sua vivência com gosto, distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.
74
Recordava-se de estar ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa
calmaria tão eufórica que, para suportá-la, dormiu.
O menino retornou à praia, gotejando orgulho. O sal secava em sua pele, seu corpo luzia —
ele, numa tranquila agitação. E nela se manteve sob o guarda-sol com o irmão. Até que
decidiu voltar à água, numa nova entrega.
O que elas indicam a respeito das vivências do menino? Qual é o nome dessa figura de
linguagem?
3) Releia os fragmentos que seguem com especial atenção aos trechos destacados.
Interprete as imagens e explique o efeito de sentido que a escolha lexical confere à
leitura.
Ele flutuava no silêncio, de tão feliz. Nem lembrava mais que podia sonhar com o sal nos
lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a quentura do sol nos ombros, o menino ao
vento, a realidade a favor, e ele na sua proa...
[...]
Ignorava que a vida tinha a sua própria maré. O mar existia dentro de seu sonho, mais do
que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar sobre as águas — o pai o levava para a
cama, com seus braços de espuma.
[...]
Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus castelos
de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia que o
tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas.
[...]
75
O menino, último da fila, respirava fundo a paisagem, o aroma da maresia, os olhos alagados
de mar, aquela água toda. Avaro, ele se represava. Queria aquela vivência, aos poucos.
[...]
O desconforto de uma alegria superior, sem remissão, a alegria que ele podia segurar, como
um líquido, na concha das mãos.
[...]
Metáfora é a figura de linguagem que consiste no emprego da palavra com sentido que não
lhe é comum ou próprio, sendo esse novo sentido resultante de uma relação de semelhança.
É uma comparação abreviada, sem o termo comparativo.
Metonímia é a figura de linguagem que consiste na substituição de uma palavra por outra
em razão de haver entre elas uma relação de interdependência, de contiguidade, de
proximidade. A metonímia ocorre quando se emprega: a parte no lugar do todo, o autor
no lugar da obra, a marca no lugar do produto, o continente no lugar do conteúdo, o efeito
no lugar da causa, o abstrato no lugar do concreto, a causa no lugar do efeito, o instrumento
no lugar de quem o utiliza, a matéria no lugar do objeto.
Sinestesia é a figura de linguagem que consiste na união de palavras que revelam impressões
sensoriais diferentes, percebidas por diferentes órgãos do sentido – visão, audição, olfato,
tato, paladar.
Hipérbole é a figura de linguagem que consiste em expressar uma ideia com exagero.
76
Antítese é a figura de linguagem que consiste em realçar uma ideia pela aproximação de
termos de sentidos opostos, de antônimos.
Primeira Leitura
No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos
romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós
mesmos. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela poesia
e pela ficção (Rildo Cosson).
Na quarta capa da obra, editora Alfaguara, lemos que “Carrascoza tem o dom de
transformar o cotidiano em reflexão sobre a vida.”
77
Tendo em vista a sua primeira leitura dos contos Cristina, Medo e Grandes feitos, registre
as reflexões sobre a vida que o surpreenderam durante a leitura. Quais são os saberes que
podemos extrair desses textos?
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Habilidade
Cristina
E quando eu não queria mais que a prima Teresa perambulasse pelos meus pensamentos,
mesmo quando juntos, conversando no quintal, seu braço a resvalar no meu, seu cheiro
entrando nos meus pulmões, e quando eu só a queria comigo, frente a frente, nós dois
mudos, sem saber que a vida explodia debaixo da nossa quietude, quando eu a queria real,
fora dos meus sonhos, ela voltou para o Rio de Janeiro com a tia Imaculada.
a) Sabemos que o papel principal das conjunções é fazer a junção de termos, orações ou
períodos. Observe a conjunção coordenativa aditiva E que inicia o conto. Qual é o efeito
de sentido que essa conjunção confere ao abrir o primeiro parágrafo do texto? Qual é o
papel dessa conjunção na costura textual?
c) Qual é o efeito de sentido que a repetição dessas conjunções confere ao parágrafo? Qual
é a figura de linguagem evidenciada por essa repetição?
b) Tendo em vista o enredo, pense na importância do preâmbulo que inicia esse conto de
João Carrascoza. O que ele sugere sobre o tema abordado no conto “Cristina”?
a) Qual é o efeito de sentido provocado pela conjunção coordenativa MAS no início desse
parágrafo?
b) Pense no papel da conjunção no início do parágrafo. O que essa conjunção indica sobre
o contexto narrativo?
81
“Mas, como a chuva que espera a gente chegar em casa para cair, Cristina esperava a
hora de me salvar. [...] Eu não tinha a resposta, e foi aí que ela retirou, como uma planta
da terra, a prima Teresa da minha mente e se colocou, inteirinha, no seu lugar”.
a) Explique a comparação que o narrador usou para demonstrar que havia esquecido a
b) Apesar de o narrador saber que amou primeiramente a prima Teresa, o que pode explicar
a relevância de Cristina em sua memória?
E aí, inesperadamente, até mesmo pra mim, eu a abracei. Trêmula, ela me recebeu, meio sem
jeito. Depois, soltou-se dos meus braços, me deu um beijo no rosto e saiu correndo. O meu
corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que poucas
vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim.
Tendo em vista a sua percepção e suas observações sobre as relações afetivas relativas à
descoberta do amor, sobre os “namoros”, que o conto Cristina faz você pensar?
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Poemas que falam do amor, das incertezas, alegrias e tristezas desse sentimento tão
paradoxal...
Memória
Paulo Leminski
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QUADRILHA
Medo
Tal elo, entre o início e o fim, lembra que a noção de fim opera no conto desde o começo.
Referenciando outro mestre do conto, o chileno Antonio Skármeta, “Tudo chama, tudo
convoca a um final”. Em outras palavras: o riacho, em sua nascente, já é atraído pela sua
foz. Qualquer conto é, portanto, metáfora da existência, apreendida numa metonímia.
Riacho-instante (João Carrascoza, O conto-riacho [texto adaptado]).
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1) Releia o trecho que segue com especial atenção ao tipo de narrador que o autor escolheu.
Queria aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que
soubesse, a lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem
conhecia ainda — quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do
bigode, os braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que desejava fossem, senão
tranquilas, suportáveis —, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas —
vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu
pelo pátio até a sua sala.
“A Roda da Fortuna" é o tear das Moiras, Cloto, Láqueis e Átropos - as deusas gregas
que fiavam, teciam e cortavam o fio da vida. Trata-se de uma metáfora dos processos de
nascimento, crescimento, desenvolvimento e morte. O fio da vida na roca do
destino. Fortuna quer dizer sorte, destino e não fortuna material.
“— vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela
—”
Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente — tão
desproporcional se comparado aos demais alunos — o corpo comprido, a voz firme, Eu sou
o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não
responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu
85
que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto
para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o
movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. [...] Diego o mirou, satisfeito,
e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se no chão e se pôs a comer em silêncio, um
silêncio faminto que pedia o olhar do mundo — tanto que o menino, ao seu lado, degustou
a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes era frágil, casca de ovo, agora se sentia
forte. Descobria uma grande vida dentro de si. Porque, antes que continuassem a conversa,
ele sabia: fizera um amigo.
c) Localize uma metáfora que evidencia a transformação que a aproximação com Diego
operou no menino. Transcreva-a.
3) Releia alguns fragmentos retirados do conto e, partindo deles, descreva com suas
palavras os momentos da narrativa: situação inicial, conflito ou desequilíbrio,
desenvolvimento, clímax e desfecho.
Por hora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa, as mãos
dentro do bolso da jaqueta.
[...]
E assim foi até aquela manhã. Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o
maior de todos, se acercava.
[...]
A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa briga, quando
outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no garoto e derrubou-lhe a garrafa de
suco.
[...]
86
E apesar da angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à sua
mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura do
dinheiro que sumira da carteira.
[...]
E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois, o garoto viu Diego lá no fim
da rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um
sorriso para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais
sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.
Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primeiros passos,
apoiando-se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além
de si. E tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar
que vestia. No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se
ajustaria mais à sua medida. Por hora,...
c) Você deve ter percebido que a palavra SÓ foi usada duas vezes nesse momento inicial.
Foram usadas com o mesmo sentido? Explique.
d) Você já fez a primeira leitura do conto, portanto conhece todo o enredo. Que informações
a introdução antecipa para o leitor a respeito do conflito?
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E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois, o garoto viu Diego lá no fim da
rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um sorriso
para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais sozinho
do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.
Grandes feitos
Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de
descuido. O casal não iria ao trabalho nem o filho à escola; tinham os três mais tempo para
si mesmos. A semana inteira viviam a fazer o que era preciso e assim, entre atos e palavras,
tocavam-se apenas como as margens de um rio toca a paisagem que seu curso delimita.
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Você já fez a primeira leitura do conto. É possível afirmar que a introdução sugere para o
leitor o assunto do texto? Explique.
2) Você deve ter reparado que Grandes feitos foi organizado em dois parágrafos: o primeiro
muito longo e o segundo, e último, curto. Elabore um comentário demonstrando como
você interpretou essa opção de organização.
Não demorou, estavam todos à mesa, a verdade no silêncio de cada um, e, enquanto
conversavam uns assuntos que estavam à mão, os momentos vinham para que os provassem
— à semelhança do pão e da manteiga. E, como tinham o sábado pela frente, o sol se aderia,
inexorável, à todas as coisas e as dores estavam adormecidas — logo despertariam, de modo
inevitável —, eles, finalmente, se levantaram da mesa e foram fazer essas coisas que todos
fazemos enquanto estamos vivos.
Grandes feitos pode ser considerado um dos contos que condensa a “matéria prima” das
narrativas desse escritor. Em que consiste essa “matéria prima”?
b) De que maneira podemos entender o trecho que finaliza o conto? O que se entende por
“essas coisas que todos fazemos enquanto estamos vivos”? Qual é o significa que a palavra
“vivos” tem nesse contexto?
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Lembrete
Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida.
Elabore um pequeno texto em que você relacione os três textos: o conto, o poema e a
tirinha.
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Que bela relação metafórica a escritora tece para nos contar como se tornou uma
leitora atenta às mensagens que o texto endereça a cada um de nós, como se tornou uma
leitora que estabelece conscientemente um diálogo com os textos lidos. O texto como as
corredeiras de um rio, e o lápis servindo como remo para o leitor. Tomemos essa imagem e
a coloquemos em prática. E, quem sabe, neste exercício, poderemos nos tornar leitores mais
atentos - dos textos e de nós mesmos!
Antes de iniciar a leitura de cada um dos contos, pense sobre o título e levante hipóteses a
respeito do enredo. Registre quais são as suas expectativas sobre o enredo e confirme-as
(ou não) durante a leitura.
a) Fiquem atentos às partes que estruturam cada um dos contos, identificando – se possível
– os parágrafos que constituem a introdução, o conflito, o desenvolvimento, o clímax
e o desfecho.
Controlar a própria leitura e regulá-la, implica ter um objetivo para ela, assim como poder
gerar hipóteses sobre o conteúdo que se lê. Por isso a leitura pode ser considerada um
processo constante de elaboração e verificação de previsões que levam a construção de uma
interpretação (Isabel Solé, Estratégias de leitura).
Antes de iniciar a leitura de cada um dos contos, pense sobre o título e levante hipóteses
a respeito do enredo. Registre quais são as suas expectativas sobre o enredo e confirme-
as (ou não) durante a leitura.
5º conto: “Recolhimento”
Antes da leitura
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Após a leitura
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Antes da leitura
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Após a leitura
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7º conto: “Passeio”
Antes da leitura
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Após a leitura
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8º conto: “Paz”
Antes da leitura
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Após a leitura
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9º conto: “Vogal”
Antes da leitura
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Após a leitura
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Antes da leitura
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Após a leitura
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Antes da leitura
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Após a leitura
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Refletir sobre o conhecimento e controlar nossos processos cognitivos são passos certos
no caminho que leva à formação de um leitor que percebe relações, e que forma relações
com um contexto maior, que descobre e infere informações e significados mediante
estratégias cada vez mais flexíveis e originais (Ângela Kleiman, Aspectos cognitivos da
leitura).
Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum (Marisa Lajolo).
Agora que vocês terminaram a leitura da obra Aquela água toda, vocês vão
divulgar a leitura entre o público jovem. Como produto final, vocês vão produzir vídeos
de 3 a 5 minutos, com a intenção de apresentar a obra a outros leitores.
O link que segue o levará ao site da editora Companhia das letras: Blog da
Companhia. Nele, você poderá mergulhar na leitura que o artista plástico Visca fez da
97
obra Aquela água toda, entendo um pouquinho do processo de ilustração desse livro de
João Carrascoza.
Para garantir a boa qualidade do produto final, o trabalho será dividido em dois
momentos:
Planejamento
Ficha técnica da obra: título, autor, ano de lançamento, editora, reedições, críticas sobre
a obra.
Como a obra é uma antologia de contos, não é necessário resumir todos eles.
Escolha de três ou quatro contos que serão citados na resenha. Essa escolha deve ser
orientada pelo impacto que esses contos podem causar nos leitores jovens, logo pelo
diálogo que essas histórias produziram com as vivências de vocês.
Embora não haja regras rígidas para a estrutura desse gênero, segue uma sugestão
das partes que devem compor o texto:
Parte 2: vídeo-resenha
Planejamento
Nome do Colégio
São Paulo – SP
Créditos
Aluno 1
Aluno 2
Aluno 3
Março de 2020
Observações:
• Vale conhecer alguns vlogs literários existentes na internet. Uma sugestão são os
canais literários divulgados na matéria da Revista Galileu “8 canais literários
brasileiros que você precisa conhecer”.
Acesse-os pelo site: <https://revistagalileu.globo.com/blogs/estante-
galileu/noticia/2016/03/8-canais-literarios-brasileiros-que-voce-precisa-
conhecer.html>.
Habilidades
(EF89LP35) Criar contos ou crônicas (em especial, líricas), crônicas visuais, minicontos
[...] com temáticas próprias ao gênero, usando os conhecimentos sobre os constituintes
estruturais e recursos expressivos típicos dos gêneros narrativos pretendidos.
Produção de Micronarrativas
LINHA ÚNICA
João Carrascoza
Capa e projeto gráfico Raquel
Matsushita
Sesi - SP
102
São duas propostas, com orientações diferentes, para que você elabore duas
micronarrativas. Não se esqueça de considerar a recepção de seus textos, ou seja, como
suas micronarrativas podem ser lidas e compreendidas por diferentes leitores. Para tanto,
pense em uma apresentação gráfica que enriqueça o texto verbal, completando-o.
Posteriormente, pensaremos em um formato para apresentar esses textos para o público.
Assim como nos textos selecionados na página anterior, observe mais uma vez
nos textos que seguem a disposição das palavras e os efeitos de sentido suscitados pelo
cruzamento do verbal com o não verbal.
103
Proposta 1
Título:
Elementos da narrativa
Narrador
Personagens –
Destaque o
protagonista
Tempo
Espaço
Ação
Síntese
do enredo - conflito
Clímax
Desfecho
Proposta 2
Sua tarefa é produzir uma micronarrativa que traduza esse contexto de isolamento.
Uma única linha que sintetize situações e sentimentos experimentados por protagonistas
inseridos neste momento que impacta diferentemente cada um de nós. Escolha um título
significativo para seu texto.
Lembre-se de que o impacto desse gênero deriva, sobretudo, daquilo que ele não
diz, do que está silenciado. É necessário que o leitor se coloque ativamente para imaginar
um contexto, o que ocorreu antes do momento flagrado pelo texto e as possíveis
consequências que, muitas vezes, reverberam na imaginação após finalizar a leitura de
um conto. Pense nos efeitos de sentido que gostaria que seu texto provocasse nos
leitores...
Sugestão de site, entre outros que estão disponíveis na web, para garimpar
imagens e refletir sobre o momento de isolamento.
<https://www.magnumphotos.com/theme/magnum-photos-on-covid-19/>
Magnum Photos on COVID-19 | Magnum Photos
105
See video conversations from quarantine, as well as weekly curations of new work
being made on the crisis in the face of social distancing.
<www.magnumphotos.com>
Releituras...
Letramento Literário
Ampliando os horizontes do texto literário...
Pense nas leituras realizadas - Aquela água toda e Linha única - e elabore três
perguntas significativas que poderão enriquecer a sua experiência como leitor. No dia
06/05, o escritor João Carrascoza poderá responder às suas perguntas e, caso não tenha
tempo para responder a todas questões, podemos enviá-las posteriormente ao escritor.
Pergunta:
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Resposta:
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Pergunta:
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Resposta:
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3. Uma mais aberta sobre a vida, obra, ofício do escritor e recepção dos leitores.
Pergunta:
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Resposta:
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Registro da Live
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109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os finais são formas de encontrar sentido na experiência. Sem finitude não
há verdade. [...] Projetar-se para além do fim, para perceber o sentido, é algo
impossível de se conseguir, salvo sob a forma da arte (Ricardo Piglia. In:
Formas breves).
Durante dois anos, buscamos caminhos que nos lançassem para além da satisfação em
suscitar o prazer da leitura de textos literários na escola. O retorno ao ambiente acadêmico
possibilitou diferentes veredas que foram percorridas com entusiasmo e o desejo de extrair das
teorias da recepção diferentes contribuições que servissem de norte para nossa bússola.
A cada semestre, a agulha magnética apontava novas direções para que pudéssemos
refletir sobre algumas possibilidades que facilitariam o trabalho. Algumas direções se
mostraram mais possíveis, outras nem tanto. Teorias que não contemplam as práticas
pedagógicas, à formação do leitor literário, uma vez que se apoiam na figura de leitores
abstratos ou ideais. Apesar disso, todo conhecimento sempre acrescenta, estende nossos
horizontes, aprimora a nossa atuação profissional.
Conforme prevíamos, o trabalho com a obra Aquela água toda mostrou-se positivo.
Permitiu uma reflexão sobre como a literatura – enquanto linguagem artística – pode enriquecer
a nossa relação com o real e potencializar nossas emoções, oferecendo aos leitores percepções
originais sobre as relações humanas.
Para que os alunos conseguissem viver essa experiência nos contos de João Carrascoza,
elaboramos um itinerário de leitura e discussão contemplando etapas fundamentais do processo
de aprimoramento do letramento literário: Apresentação (contextualização do autor e sua obra),
Motivação (levantamento de expectativas sobre a obra e conhecimento sobre o gênero),
Primeira Leitura (solitária), Releitura e Interpretação (análise literária) e outras atividades
orientadoras para leitura autônoma dos demais contos que compõem a antologia.
Ao longo do percurso, percebemos que realizar a etapa de análise literária para cada um
dos 11 contos seria impossível devido ao tempo que esse tipo de tarefa demanda e a necessidade
de oportunizar aos alunos momentos em que pudessem exercitar a autonomia enquanto sujeitos
leitores. Tendo em vista essa constatação, optamos por uma abordagem dirigida para os quatro
primeiros contos - “Aquela água toda”, “Cristina”, “Medo” e “Grandes feitos” – por meio de
propostas didáticas que contemplassem o desenvolvimento de Habilidades e Competências
propostas pela BNCC para os Anos Finais do Ensino Fundamental BNCC. Quanto aos outros
sete contos, foram orientados a registrar suas impressões no momento anterior e posterior à
110
leitura dos contos a partir dos títulos – um levantamento prévio de hipóteses e a confirmação
ou não das expectativas após a leitura.
Para dar conta da tarefa, foi necessária uma leitura atenta da Base Nacional Comum
Curricular a fim de entender os princípios norteadores desse longo documento. A intenção foi
a de testar a aplicação dos pressupostos em propostas didáticas que objetivassem à formação
do leitor literário. Nesse sentido, a abordagem dos quatro primeiros contos focaliza aspectos
estruturais do gênero (conto) e a construção de efeitos de sentido obtidos pelo esmerado
trabalho com a linguagem realizado pelo escritor João Carrascoza. O aprofundamento da
análise linguística foi de fundamental importância para o entendimento da temática –
interpretação dos contos. Segundo Rildo Cosson,
Longe de destruir a magia das obras, a análise literária, quando bem realizada,
permite que o leitor compreenda melhor essa magia e a penetre com mais
intensidade. O segredo maior da literatura é justamente o envolvimento único
que ela nos proporciona em um mundo feito de palavras. O conhecimento de
como esse mundo é articulado, como ele age sobre nós, não eliminará o seu
poder, antes o fortalecerá porque está apoiado no conhecimento que ilumina
e não na escuridão da ignorância (COSSON, 2018, p. 29).
Sabemos que a leitura literária possibilita aos alunos se conhecerem melhor no diálogo
com o mundo feito de palavras, permitindo-lhes muitas vezes uma elaboração identitária. Nesse
sentido, esse longo percurso foi planejado para que a leitura literária na escola tivesse um
significado para além da aprendizagem de saberes escolares, e os alunos conseguissem trocar
impressões de leitura e produzissem textos a partir das reflexões suscitadas pelos contos e
minicontos de João Carrascoza. É necessário abrir espaço para acolher os sentimentos,
considerando momentos que permitam a todos expressar subjetivamente suas reações diante
dos textos, só assim a leitura literária ganha um significado especial na vida dos alunos.
111
Para encerrar o itinerário, os alunos puderam conversar com o escritor João Carrascoza
pelo Teams, momento em que puderam fazer perguntas interessantes sobre a obra, elaboradas
por eles no decorrer das leituras. A live resultou em uma experiência que ampliou
significativamente a percepção dos alunos sobre o papel da literatura e do escritor.
Investigação realizada. Uma jornada gratificante na qual certamente deixamos as nossas
pegadas para que outros – e nós mesmos – possamos, a partir desse aprendizado, ampliar o
caminho que, como sugere o poema de Antonio Machado, nunca está pronto, sempre se faz...
Chegamos ao final desse desafio com a certeza de que todo conhecimento é realmente
uma forma de felicidade, uma maneira de nos sentirmos mais fortalecidos e despertos para
atuar nesse mundo onde muitas tragédias são promovidas “à luz” da ignorância. Nesse
sentido, a literatura é uma viagem indispensável ao ser humano, viagem repleta de
descobertas e conhecimentos - sobre o outro e sobre nós mesmos.
112
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Irandé. Norma-padrão. In: ______. Muito além da gramática: por um ensino
de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: ______. Literatura e Sociedade. Rio
de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:______. Vários escritos. São Paulo. Duas
Cidades, 1995.
CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: Ed.
UFSCAR, 2014.
CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. São Paulo. Editora Estação Liberdade, 1996.
CHAUVIN, Jean Pierre. Reflexões sobre o microconto. Jornal da USP, São Paulo, jun.
2016. Disponível em: <http://jornal.usp.br/artigos/reflexao-sobre-o-microconto/>. Acesso
em: 11 jul. 2020.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução Laura
Sandroni. São Paulo. Global, 2007.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Tradução Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre
Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1993.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2018.
DEPINÉ, A. O que são cidades criativas? Via – Estação Conhecimento, 21 fev. 2018.
Disponível em: https://via.ufsc.br/sao-cidades-criativas/. Acesso em: 13 set. 2020.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo. Ática, 1997.
MORAN, José. Metodologias ativas em sala de aula. Pátio Ensino Médio, São Paulo, ano
10, n. 39, dez. 2018/fev. 2019.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo. Companhia das Letras, 2004.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Tradução José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
PRATA, João. ‘Aquela água toda’, de João Anzanello Carrascoza, ganha reedição e volta
às livrarias. Estadão, São Paulo, 2018. Disponível em:
<https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,aquela-agua-toda-de-joao-anzanello-
carrascoza-ganha-reedicao-e-volta-as-livrarias,70002287229>. Acesso em: 11 jul. 2020.
ROJO, Roxane. Roxane Rojo: “há muitos países recuando no tempo com seus currículos.
Aqui, estamos evoluindo”. Entrevista concedia à Nova Escola. São Paulo: Nova Escola,
[2018?].
ANEXO 14
AQUELA ÁGUA TODA
Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada a que o esperava
lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou de uma vez, como se natural: iriam à
praia de novo, igualzinho ao ano anterior, a mesma cidade, mas um apartamento maior, que
o pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato, num instante
azul-azul, os pés na areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe, aquela água toda nos
olhos, o menino no mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na
memória.
É verdade, mesmo?, queria saber. A mãe confirmou. O irmão a abraçou e riram alto,
misturando os vivas. Ele flutuava no silêncio, de tão feliz. Nem lembrava mais que podia
sonhar com o sal nos lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a quentura do sol nos
ombros, o menino ao vento, a realidade a favor, e ele na sua proa…
Quando se deu conta, cochilava no sofá, exausto pelo esforço de preparar o dia
seguinte. Esforçara-se para que, antes de dormir, a manhã fosse aquela certeza, e ela seria
mesmo sem a sua pobre contribuição. Ignorava que a vida tinha a sua própria maré. O mar
existia dentro de seu sonho, mais do que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar sobre
as águas — o pai o levava para a cama, com seus braços de espuma.
4
Todos os anexos deste trabalho possuem direitos autorais e não podem ser copiados. Os anexos são de uso
exclusivo para consulta.
116
Abriu os olhos: o sol estava ali, sólido, o carro de portas abertas à frente da casa, o irmão em
sua bermuda colorida, a voz do pai e da mãe em alternância, a realidade a se espalhar, o
mundo bom, o cheiro do dia recém-nascido. O menino se levantou, vestiu seu destino, foi
fazer o que lhe cabia antes da partida, tomar o café da manhã, levar as malas até o carro onde
o pai as ajeitava com ciência, a mãe chaveava a porta dos fundos, Pegou sua prancha?, ele,
Sim, como se num dia comum, fingindo que a satisfação envelhecia nele, que se habituara a
ela, enquanto lá no fundo brilhava o verão maior, da expectativa.
Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus
castelos de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia
que o tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas. Recordava-se de
estar ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica
que, para suportá-la, dormiu.
Foi entrando, até que o mar, à altura dos joelhos, começou a frear o seu avanço. A
água fria arrepiava. Mas era um arrepio prazeroso, o sol se derramava sobre suas costas.
Deitou de peito na prancha e remou com as mãos, remou, remou, e aí a primeira onda o
atingiu, forte. Sentiu os cabelos duros, o gosto de sal, os olhos ardendo. O desconforto de
117
uma alegria superior, sem remissão, a alegria que ele podia segurar, como um líquido, na
concha das mãos.
Pegou outra onda. Mergulhou. Engoliu água. Riu de sua sorte. Levou um caldo.
Outro. Voltou ao raso. Arrastou-se de novo pela água, em direção ao fundo, sentindo a força
oposta lhe empurrando para trás. Estava leve, num contentamento próprio do mar, que se
escorria nele, o mar, também egoísta na sua vastidão. Um se molhava na substância do outro,
era o reconhecimento de dois seres que se delimitam, sem saber seu tamanho.
O menino retornou à praia, gotejando orgulho. O sal secava em sua pele, seu corpo
luzia — ele, numa tranquila agitação. E nela se manteve sob o guarda-sol com o irmão. Até
que decidiu voltar à água, numa nova entrega.
Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro que até
doía pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas se davam a conhecer, o
menino e o mar. E, naquela mesma tarde, misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava
daquela saciedade: ele nem pedira sorvete, milho-verde, refrigerante. O menino comia a sua
vivência com gosto, distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.
Quando percebeu, o sol era suave, a praia se despovoara, as ondas se encolhiam. Hora de ir,
disse o pai e começou a apanhar as coisas. A família seguiu para a avenida, o menino lá
atrás, a pele salgada e quente, os olhos resistiam em ir embora. No ônibus, sentou-se à janela,
ainda queria ver a praia, atento à sua paixão. Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas,
prédios novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do ônibus, tão macio… Começou
a sentir um torpor agradável, os braços doíam, as pernas pesavam, ele foi se aquietando, a
cabeça encostada no vidro...
Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou
assustado, o cobrador o sacudia abruptamente, Ei, garoto, acorda! Acorda, garoto!, um
zunzunzum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus, entre os caiçaras,
procurando num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão — e nada. Eram só
faces estranhas.
instante, intuindo seu desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só
precisava voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...
ANEXO 2
CRISTINA
E quando eu não queria mais que a prima Teresa perambulasse pelos meus
pensamentos, mesmo quando juntos, conversando no quintal, seu braço a resvalar no meu,
seu cheiro entrando nos meus pulmões, e quando eu só a queria comigo, frente a frente, nós
dois mudos, sem saber que a vida explodia debaixo da nossa quietude, quando eu a queria
real, fora dos meus sonhos, ela voltou para o Rio de Janeiro com a tia Imaculada.
Inconformado, fui atrás da mãe, Por quê?, e a mãe, Porque lá é a casa delas, e eu,
Mas, e a mãe, sem desconfiar que eu estava cheio de sombras, disse, Elas vêm de novo, pro
Natal.
Eu me recolhi todo, o Natal ia demorar demais, uma dor oca no coração, uma vontade
de só dormir, de não crescer. A tristeza me envelhecia, e eu não me esforçava para afastá-la.
Esquecer a prima, como quem apaga a luz do quarto, era trair o meu sentimento por ela.
Estava jogando bola com meu irmão e o Paulinho, ou empinando pipa com o Bolão, e, de
repente, a prima Teresa subia à minha memória e então eu não via mais o sol no sol, nem as
árvores nas árvores, tudo o que era continuava a ser, mas sem a quentura do meu olhar, eu
era um menino-deserto, seco de alegrias, e mesmo se me aguassem eu continuaria a ver o
mundo atrás de uma camada de verniz, incapaz de aceitar o próprio brilho.
Mas, como a chuva que espera a gente chegar em casa para cair, Cristina esperava a
hora de me salvar. Ela estudava na minha classe e, no dia em que a percebi de verdade,
descobri — no fundo, pressentia! — que as coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo
todo ao nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las. Era uma aula qualquer, a
professora distribuiu cópias de um texto e pediu para ela ler. Cristina começou suavemente
— as pernas curtas se movendo abaixo da carteira, sem tocar o chão, como num balanço —
, continuou naquela leveza, e eu fiquei olhando pra ela, e me surpreendi por olhá-la daquele
jeito, com calor; ela até reparou e, ao terminar a leitura, fez um gesto que me pareceu uma
pergunta. Eu não tinha a resposta, e foi aí que ela retirou, como uma planta da terra, a prima
Teresa da minha mente e se colocou, inteirinha, no seu lugar.
No dia seguinte, mal abri os olhos, a vida retornou, feliz. As árvores, as casas e o céu
se exibiam mais intensos enquanto eu seguia para a escola. Na sala de aula, à minha direita,
Cristina me fitava fortemente, eu me senti constrangido, mas também bonito, queria ouvir
outra vez a sua voz de sol. E, quando ela disse, ao sairmos para o intervalo, Me espera, Me
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espera, senti que a escuridão estava se limpando de mim e fui andando pelo pátio, sem
pressa, ao lado dela.
Sentamos num banco. Quer um pedaço?, ela me ofereceu seu sanduíche, Não,
obrigado. Quer um gole?, e ela, sim, com a cabeça, Adoro suco de uva!, e aí conversamos
umas miudezas, nós dois ainda um riozinho, só a nossa história deslizando. O Bolão me
acenou. Fiz que não vi. O Paulinho e o Lucas cochichavam, dissimuladamente. Algumas
meninas nos apontavam. Uma garota veio chamá-la, Depois eu vou..., disse, e eu entendi,
com aquelas palavras ela estava dizendo que preferia ficar lá comigo. Eu sentia febre, uma
febre boa que queria continuar sentindo, a minha vida ali, com a dela, no descuido.
O domingo chegou, enfim, e, ao contrário dos dias anteriores, quando me distraí com
os pequenos fatos do cotidiano, fingindo esquecer nosso compromisso, despertei
visivelmente ansioso. Empurrava os ponteiros do relógio, construindo no pensamento — em
minúcias, antes de sua hora real — o encontro com Cristina.
A sessão era às quatro, às três e meia eu já estava à porta do cinema. Procurei-a entre
as pessoas na fila da bilheteria, mas não a vi. Fiquei lá, à sua espera, numa calma falsa, de
ator, que eu desconhecia. Se temia que ela não aparecesse, temia mais pelo momento de
encontrá-la, queria saltar essa etapa e me ver logo ao seu lado, assistindo ao filme — eu não
sabia o que fazer com a vida que vinha.
diante da sorveteria. Voltei ao cinema e, então, contra os meus planos, eu a vi lá dentro, atrás
da porta de vidro, me acenando. Me espere, eu disse, como se ela pudesse me ouvir. Enfiei-
me às pressas na fila da bilheteria, que, por sorte, já estava pequena. Comprei a entrada e, ao
chegar ao saguão, onde ela me aguardava, cabelos soltos, vestido vermelho, senti aquele
instante grande, tão grande que apenas disse, Oi, e ela respondeu, Oi, e completou, Vamos,
já vai começar! Seguimos rapidamente para a sala, mas antes paramos na bombonière, eu
queria comprar balas. Mal nos acomodamos, as luzes se apagaram.
Veio o noticiário, o Canal 100, depois vieram os trailers, e aí o filme começou. Não
me lembro direito do enredo, só sei que era uma comédia. Lembro que ríamos não tanto
pelas cenas, pouco engraçadas, mas pelas gargalhadas de um gordo que se divertia à nossa
frente. Eu não sabia como agir, mas, desafiando a minha insegurança, oferecia balas a ela,
contemplava seu rosto no escuro, desviava-me da tela. Aquele era o lugar no mundo onde
eu desejava estar! Por isso me acalmei, temendo que, com um gesto brusco meu, o encanto
se desfizesse.
Mas à medida que o filme avançava, eu me convencia de que ela deveria saber o que
se passava comigo, eu precisava dizer à Cristina a minha alegria, ainda que ela, sem ter
consciência de que a causara, pudesse me responder com uma rejeição.
Então, de súbito, decidi, Vou pegar na mão dela. Tinha medo de me precipitar, e de que me
julgasse atrevido — nem imaginava que o meu coração era pequeno para aquele sentimento
que não parava de entrar nele. E, como o filme ia terminar — a gente percebe o fim chegando
—, tomei coragem e deslizei a mão pelo braço da poltrona até encontrar a sua mão. Cristina
estremeceu, virou-se para mim — e me salvou. Acolheu minha mão com um toque leve, mas
decidido, e assim ficamos, a felicidade latejando entre os meus dedos e os dela.
Logo o filme terminou e, antes que as luzes se acendessem, soltamos as mãos, como
se o mundo não merecesse saber do nosso amor. E levantamos sorrindo, não pelo mesmo
motivo das pessoas, mas, por aquele outro, só nosso.
Lá fora, a tarde ardia nos olhos, de tão bonita, o sol ia baixo no céu azul, como meus
olhos mirando os pés de Cristina a cada passo seu. Não sabia onde ela morava, mas tinha de
acompanhá-la até lá, era essa a regra, eu ouvira meu irmão comentar uma vez. Caminhamos
em silêncio, para assimilar — pelo menos no meu caso — o susto daquela iniciação.
Quando chegamos ao portão de sua casa, eu perguntei, Gostou?, ela respondeu, Gostei, e eu
queria que essa resposta se referisse mais ao nosso gesto secreto do que ao filme.
122
E aí, inesperadamente, até mesmo pra mim, eu a abracei. Trêmula, ela me recebeu,
meio sem jeito. Depois, soltou-se dos meus braços, me deu um beijo no rosto e saiu correndo.
O meu corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que
poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim.
123
ANEXO 3
MEDO
Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primei- ros passos, apoiando-
se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além de si. E
tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar que vestia.
No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se ajustaria mais
à sua medida. Por hora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa,
as mãos dentro do bolso da jaqueta. O que o salvava era a mochila presa às costas. O peso
dos cadernos e dos livros o curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer até
um pouco insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo! Andava às
pressas, tentando se proteger do vento que, na direção contrária, enregelava seu rosto. Queria
aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que soubesse, a
lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem conhecia
ainda — quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do bigode, os
braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que desejava fossem, senão tranquilas,
suportáveis —, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas — vindos também
ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu pelo pátio até a
sua sala. A professora, mulher miúda, de fala doce, o perturbava. Já nas primeiras aulas,
percebeu que ela não era só voz leve e olhar compreensivo. A sua paciência, como giz, vivia
se quebrando. Por que ela agia daquela maneira? Não sabia. O menino com seu medo, o
tempo todo. Na hora da chamada, erguia a mão e abaixava furtivamente a cabeça, como se
a sua presença fosse um insulto. Se a professora fazia uma pergunta, antes de respondê-la,
escutava a risada de um colega, o sussurro de outro, e então pressentia que iria falhar, o que
de fato acontecia: ele, paralisado, sem resposta alguma, sob o olhar da classe inteira.
Tropeçava no perigo que ele próprio, e não o mundo, deixava em seu caminho. Queria não
ser daquele jeito. Mas era. Às vezes, entristecia-se até nas horas de alegria: quando jogava
futebol com o irmão e perdia. Ou, quando, no parque de diversões, se negava a ir na
montanha-russa, no chapéu mexicano. Era tudo o que sonhava. Experimentar aqueles
abismos. Mas não conseguia. Vai, filho!, a mãe o incentivava. Eu vou com você, o pai
prometia. Fitava o irmão que subia no brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se divertia,
enquanto ele se segurava firme no seu medo, inteiramente fiel. Se vivia inquieto na sala de
aula pela certeza de se ver, de repente, numa situação que o intimidaria, às vezes se esquecia
de seu desconforto, encantado com o universo que a professora lhe abria, as letras do
124
alfabeto, os desenhos na lousa, um trecho de música que ela cantava, uma graça que fazia.
E aí ele ria, ria com sinceridade, e, subitamente, se reencontrava, menino-menino. No
intervalo, aquela calma provisória, quando o pátio se inundava de alunos. Na multidão,
ninguém o notava, nada tinha a recear, era a sua hora macia. E assim foi até aquela manhã.
Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o maior de todos, se acercava.
Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente — tão
desproporcional se comparado aos demais alunos — o corpo comprido, a voz firme, Eu sou
o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não
responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu
que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto
para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o
movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. Tá bom o sanduíche?,
perguntou, e o menino respondeu Tá, e quis saber, Você já comeu o seu?, o que só serviu
para alargar a vantagem de Diego, Não, nunca trago lanche, eu sou pobre. O menino
perguntou, Quer um pedaço?, pensando que o outro se contentaria com a oferta, nem
supunha que o gesto o conduziria mais depressa a seu destino; era uma entrega superior a
que ele imaginava. Diego o mirou, satisfeito, e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se
no chão e se pôs a comer em silêncio, um silêncio faminto que pedia o olhar do mundo —
tanto que o menino, ao seu lado, degustou a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes
era frágil, casca de ovo, agora ele se sentia forte. Descobria uma grande vida dentro de si.
Porque, antes que continuassem a conversa, ele sabia: fizera um amigo. E Diego, que
conhecia melhor essa cartilha, levantou-se e disse agradecido, Se alguém mexer com você,
me avise! Com a amizade de Diego, e a sua força a favorecê-lo, ninguém o afrontaria.
Imaginava ter um trunfo, mas também podia ser um erro. Como adivinhar? Estava lá para
aprender. E aprendeu rápido a lição que Diego lhe deu, na semana seguinte, ao dizer, Minha
mãe tá doente, precisa de remédio e a gente não tem dinheiro. O menino — para mostrar
que era bom aprendiz — superou a culpa e entregou ao outro, dias depois, umas cédulas que
pegara às escondidas da bolsa da mãe. E então começou um tempo em que o perigo era a
estabilidade que Diego lhe garantia. Os dois ficavam juntos no intervalo e quase sempre
encontravam-se no fim da aula no portão da escola. O amigo o acompanhava até a casa,
cumprindo a sua parte no pacto, e recebia em troca o que lhe faltava: o sanduíche, o estojo
de lápis coloridos, os pacotes de figurinhas. Diego sorria. E olhava para ele em silêncio no
momento da paga — como um aluno que desafia o mestre. O coração do menino batia alto,
incapaz de acordar a desconfiança que o embalava. Diego sorria — e sonhava. Sonhava com
125
uma bicicleta. A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa
briga, quando outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no garoto e derrubou-lhe
a garrafa de suco. Diego vingou o amigo — e foi suspenso da escola por uma semana. O
menino viu no episódio a prova de que o outro lhe era plenamente leal. E nem precisou
pensar numa recompensa: Diego a cobrou ao retornar às aulas, dizendo que precisava de
mais dinheiro para as injeções que mãe, agora, tinha de tomar. Era a vez do menino, a sua
prova. E apesar da angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à
sua mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura
do dinheiro que sumira da carteira. E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois,
o garoto viu Diego lá no fim da rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao
se aproximar, abriu um sorriso para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede.
Agora, estava mais sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.
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ANEXO 4
GRANDES FEITOS
Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O
casal não iria ao trabalho nem o filho à escola; tinham os três mais tempo para si mesmos.
A semana inteira viviam a fazer o que era preciso e assim, entre atos e palavras, tocavam-se
apenas como as margens de um rio toca a paisagem que seu curso delimita. O homem, o
primeiro a acordar na casa, abriu a janela do quarto e deu com o sol já em seu esplendor,
envolvendo os espaços com uma grossa demão de luz. Um dia como aquele era quase uma
dor de tão lindo, quase não cabia no homem. Nem mesmo a janela suportava a claridade que
a atravessava para iluminar, à cabeceira da cama, o rosto de sua mulher no travesseiro. E,
mesmo sem abrir os olhos, a mulher sabia que lá fora — além de suas pálpebras e das paredes
— o verão fulgurava acima das casas. Igual ao marido, ela despertou feliz, espreguiçou-se
pronta para desfrutar aquele bônus da vida, experimentando no íntimo uma paz profunda e
sentindo que as angústias continuavam dormentes, como se vigorassem em turno
incompatível com a sua vigília — e, por isso mesmo, enquanto o destino se distraía, era hora
de se entregar à felicidade. O menino ainda dormia. O homem trancou a porta do quarto à
chave, voltou à cama e abraçou a mulher. Ficaram ali um tempo, enlaçados, desfrutando o
langor de quem nada tem a fazer, senão prolongar o seu deleite. Àquela hora só havia espaço
para a comunhão, e ela era tão visceral que o mínimo ruído a perturbaria. Se pudessem,
desligariam o canto dos pássaros e o rumor da respiração arfante que eles mesmos
produziam. Por fim, levantaram-se e foram tomar banho. Entraram no boxe, uniram-se sob
o jato da ducha, e então igual a água caudalosa, a conversa brotou e foi escorrendo dos dois,
sem pressa. Vestiram-se em seguida, sentindo a pele fresca como a manhã que continuava a
vazar pela janela adentro, e que nem dava mostras de que envelhecia — era preciso cerrar
bem os olhos para captar o seu avanço, lento. Os dois iam trocando impressões sobre fatos
mundanos, esquecidos de que aqueles momentos passavam definitivamente. Descontraídos,
queriam usufruir a manhã e, depois de arrumarem a cama, foram para a sala. De lá, ele saiu
à varanda, apanhou o jornal entre os canteiros do jardim e sentou-se na cadeira para ler as
notícias; ela seguiu para a cozinha e se pôs a preparar a mesa do café, não sem antes abrir a
porta dos fundos. O sol se infiltrava por entre os galhos das árvores no quintal; o vento,
vindo de longe, movia suavemente as folhas. Era a mesma cena, cotidiana, mas a mulher a
mirava com olhos demorados, e assim as coisas ganhavam uma nova aura — ou a aura podia
agora ser vista. O menino apareceu ali, subitamente, ainda de pijama, e ficou a ver o dia
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funcionando, como um brinquedo, lá fora. A mulher o enlaçou e disse, Bom dia, meu amor,
e esse “meu amor” era tão sincero que, para um estranho, soaria falso — era unicamente
dela e de seu filho —, e então perguntou-lhe, Dormiu bem?, e ele, movendo a cabeça num
sim, afastou-se, atravessou a porta e foi até o quintal. Ela terminou de preparar o café, sem
reparar no que o menino fazia, mas só de tê-lo ali, próximo, sua satisfação se alargava. Tanto
quanto o marido na varanda e o filho no quintal, ela vivia o instante sem planos, e começou
então a cantar baixinho, apenas para si, evitando quebrar aquela harmonia que reinava. Não
demorou, estavam todos à mesa, a verdade no silêncio de cada um, e, enquanto conversavam
uns assuntos que estavam à mão, os momentos vinham para que os provassem — à
semelhança do pão e da manteiga. E, como tinham o sábado pela frente, o sol se aderia,
inexorável, à todas as coisas e as dores estavam adormecidas — logo despertariam, de modo
inevitável —, eles, finalmente, se levantaram da mesa e foram fazer essas coisas que todos
fazemos enquanto estamos vivos.
128
ANEXO 5
MUNDO JUSTO
Foi, foi naquele tempo que eu descobri, e de lá pra cá, ano após ano, eu só confirmo, é assim,
invariável, essa lógica do mundo, se a gente ganha alguma coisa, por mérito ou por sorte, no
minuto seguinte, pronto, trem de um lado, trem do outro, como se pra compensar, pra manter
os nossos pés bem cimentados na terra, mas eu ainda não sabia, nem desconfiava, era a época
de aprender sem ir até o fundo, pra começar eu nem me lembro de onde me veio o gosto pelo
basquete, quase ninguém se interessava, todos os garotos queriam ser craques de futebol, e
eu, de repente, louco pra ver a trajetória da bola lá no ar, girando às alturas e caindo, perfeita,
dentro do cesto, sem tocar o aro, chuá, mais bonito ainda se fosse de longe, de três pontos,
Vamos, vamos, use a tabela se precisar!, o Urso gritava, o Urso se chamava Nelson, peludo
daquele jeito, quem ia chamá-lo pelo nome?, e ele até que gostava, Não deixa o cara
arremessar, cerca ele, olha o rebote, o rebote, o Urso era rude com a gente, cobrava
empenho, mas aí, de uma hora pra outra, o Urso falava macio, a vida também fazia as suas
contas nele, regendo o justo das coisas, uma perda aqui, um ganho correspondente lá. A vó
morava com a gente, Não leve isso tão a sério!, ela dizia, sentada na cadeira da varanda,
quando me via voltar triste, É só um jogo, menino!, e a mãe, na cozinha, pulando o olhar de
uma panela a outra, o cheiro bom da comida sendo feita, Que cara é essa?, nem sempre se
ganha, filho, vai, vai tomar seu banho, e o pai, A lição de casa, a lição, é isso o que
interessa!, e eu no quarto, me enxugando, o Edu no beliche, lá nos seus quietos, sempre
mergulhado num livro, e, de repente, ele de volta ao nosso mundo, Como foi o jogo?, quantos
pontos você fez?, e aí eu já me sentia bem de novo, por estar em casa, entre a família, todos
na compreensão, e o Edu mais, porque o Edu não só perguntava, o Edu torcia, ele alegre se
eu alegre, ele me consolando se eu desanimado, o Edu, apesar de mais novo, já sabia antes
de mim, não tenho dúvida, aquela lei estava acima das outras, da gravidade, da
termodinâmica, de todas, o Edu, de tanto se enfurnar naqueles livros, sabia me ler, letra por
letra, o Edu, quando eu chegava com a vitória no rosto, me sentindo o Michel Jordan, Fiz
cinco cestas de três, sete de lance livre, ele estourava de felicidade, como se fosse o próprio
pivô do time, mas, em seguida, o Edu se metia, tchibum, no livro novamente, e ficava quieto,
como se dizendo com o seu silêncio, agora se prepare, no fim do dia tudo vai empatar. Eu
não associava uma coisa com a outra, que a vida num instante a gente não tem no instante
seguinte, eu feliz com o meu desempenho no jogo e o sono, na via oposta, demorando pra
vir, pra dar o troco, e no meio dele umas cenas assustadoras, do mundo agindo no seu maior
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mal, minha imaginação ainda miúda se comparada com a maldade disseminada pelos
homens — isso eu descobri bem depois —, eu sem conhecer a precisão desse aparelho, e
agora, agora eu posso ver o seu mecanismo inteiro, como se o véu, que cobre suas vísceras,
fosse vidro, tão transparente, agora eu até posso ver seu coração funcionando, tic-bem-me-
quer, tac-mal-me-quer, tac-bem-me-quer, tic-mal-me-quer, a ordem dos fatores não altera as
contas exatas, sempre o mesmo resultado, sempre. Porque, se era o contrário, e o nosso time
tinha se saído bem, e eu, cestinha ou não, voltava eufórico, aí tudo seguia por outra artéria,
pra depois, claro, se encontrar lá na frente e refazer o equilíbrio, pesos alinhados, a vó, entre
as samambaias, Menino, é só um jogo!, e a mãe com a costura sobre os joelhos, Hoje vocês
ganharam, não?, e o pai, mais tarde, Quantos pontos, campeão?, e eu, no quarto, começando
a ver o outro lado já atuando, pra diminuir o placar, o Edu no beliche, encorujado, sem forças
pra segurar um livro, pra perguntar, Trinta a quinze, uma lavada, mano, e a diferença caindo
até tudo se igualar na noite funda, o Edu daquele jeito, tosse, falta de ar, tosse, a partida fora
das minhas mãos, eu, igual a todos na plateia, tendo de aceitar. E assim foi, mas eu nem
notando, se a gente está de olho num alvo, numa pessoa, deixa escapar o entorno, as outras
pessoas, no centro da quadra ninguém é o “ao redor”, e aí o Urso montou o time do colégio
pra disputar o torneio regional, eu era dos mais novos, mas já bem alto pra minha idade,
pernas compridas, Puxou o seu avô, a mãe dizia, e o Urso, Você vai ser o pivô, e eu pensei,
Caralho, que responsa!, e foi exatamente no dia em que recebemos o boletim e, pra
compensar, tinha lá aquela nota vermelha, cinco em matemática, e aí eu pedi pro pai comprar
uma bola, o aro eu mesmo adaptei com um balde velho e preguei na parede do quintal, e o
pai, Só se você der a virada em matemática, promete?, e eu, Prometo!, e, então, na prova
seguinte, oito em matemática, eu comecei a treinar arremesso em casa, jogava até no escuro,
pra não depender dos olhos, às vezes a mãe já chamando pra jantar, as luzes da cidade acesas,
e eu lá, firmando a mão, chuá, cesta de dois, chuá, cesta de três, com tabela, sem tabela,
enterrada, eu aprendendo a acertar sem ver o aro, o corpo todo a minha mira, e se tinha
alguém me marcando aí é que eu não errava, em caminho livre se aprende pouco, as pessoas
no convívio é que nos aumentam. Eu chamava o Edu, Vem, mano, joga comigo, e ele, dentro
de um livro, só as sobrancelhas de fora, Mas eu não sei jogar, e eu, Não tem problema, é só
pra me atrapalhar, e a gente ali, aquele solzão na cabeça, ele comas mãos na minha cara,
desajeitado, mas feroz como marcador, me atrapalhando bem, e era o que eu precisava, e, aí,
depois, em troca, eu tinha de ouvir ele me contar uma história, íamos perto da linha de trem,
sentávamos debaixo de uma árvore, o Edu se punha a ler em voz alta, enquanto andava sobre
os trilhos, e eu, que não era nada paciente, ficava ali, escutando ele, uma vida inteira pra
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quem não passava de três segundos no garrafão, e no começo eu ainda comigo mesmo,
pensando em jogadas, em lances do fundo da quadra, até que de repente as palavras, então
só palavras, saíam de sua própria pele e eu, agarrando-me nelas, captava o variado do mundo,
as palavras iam me alargando a consciência, tudo maior do que eu via, as montanhas-estátuas
lá adiante, o canavial ondulando ao vento, o céu azul e sério sobre as nossas cabeças, eu sem
notar claramente, mas já pressentindo que as histórias também seguiam aquela lei, o sol nos
entristecia numa página, as sombras nos alegravam na outra, o Edu, daquele jeito, distraía a
realidade pra eu flagrar o ponto frágil dela. E o campeonato lá, semana sim, semana não, a
gente tinha um jogo aqui, ou nas cidades vizinhas, e ninguém dava nada pela nossa equipe,
mesmo depois de sete rodadas e sete vitórias, sorte, adversários fracos, motivos não faltavam
pra diminuir nosso avanço, só o Urso devia saber que a gente ia longe, o Urso não tinha
ganho nada até então, sequer chegara às oitavas, mas daquela vez o time tinha mesmo bons
jogadores, garra pra vencer, e todos obedeciam o Urso, O corta-luz, faz o corta-luz,
arremessa, arremessa, marcação por zona, o Urso, pilhado, ele devia saber que era a sua
vez, a vida toda de perdedor, tava na hora da balança pender pro lado dele, a lógica, como
uma cobra, serpenteava no meio dos fatos, juntava uma pessoa com a outra feito fios, tecia
suas infinitas combinações e o resultado, sempre exato, vinha não quando a gente queria,
mas no tempo dele, a certeza dentro da certeza, como camadas de cebola. Então, numa
partida, eu cestinha, quinze pontos, e à noite a chuva, as goteiras na casa toda, quem é que
dormia?; eu num daqueles dias ruins, como se um desaprendiz, e, depois, a travessa enorme
de batata, tanto tempo que mãe não fritava pra nós; e a gente ganhando no último minuto
dos maristas de Ribeirão, e o pai nos nervos, Vou esconder a bola, arrancar o aro do quintal,
duas notas vermelhas no boletim; e aí, sempre assim, o lado “A” dos fatos e depois o lado
“B”, ou vice-versa, até que chegamos à final, contra os meninos de Franca, a melhor de três,
o primeiro jogo aqui, trinta e seis a trinta e dois pra nós — e a vó vomitando dois dias
seguidos, Tinha de comer tanta carne de porco?, o pai ralhava —, e o segundo jogo na
quadra deles, onde os profissionais do Francana treinavam, eles encapetados naquele dia,
marcavam homem a homem, armavam a jogada sem pressa, tinham um ala que era igual o
Oscar, de onde arremessava ele acertava, chuá, o Helio Rubens na arquibancada, devia ter
ajudado os meninos lá, levamos de quarenta a vinte e oito, eu, que tinha tudo pra brilhar,
errei bola fácil, seis lances livres, a quarta falta no início do terceiro quarto, o Urso me puxou
pro banco e lá eu fiquei até o final do jogo, encolhido, a derrota doendo. Mas, naquela noite,
veio o inesperado, pra igualar os dois pratos da balança, apesar de que ele, o fato, estava ali,
noutros dias, esperando a gente vir pra se mostrar, a família ao redor da tevê, assistindo à
131
novela, o verão forte de suar dentro de casa, e a mãe, ajudando a vó a se sentar na cadeira lá
fora, Aqui tá mais fresco, e o pai, atrás das duas, Ventinho bom, e eu, encolhido no sofá,
caramujando, pra desviar da tristeza da tarde, também saí, arrastei uma cadeira até eles, e o
Edu veio por último, pra não ficar sozinho na sala, se bem que o Edu era ele mesmo, em
qualquer lugar, um livro na mão e ele desgrudado desse nosso mundo, mundo que o pai dizia
ser sólido igual barra de ferro, mas eu discordava dele, eu achava que o real não se pegava,
tinha seus contornos definidos, a igreja ali na frente igreja, o canavial lá adiante canavial, a
pedra na mão pedra, mas, às vezes, eu sentia que o mundo era miragem, como quando, de
relance, eu mirava a cesta e atirava a bola, sabendo que não ia acertar, que o aro de metal
estava nos meus olhos e não lá no alto, pregado na tabela, eu achava que a gente, todas as
pessoas no nosso tempo maior, viam o mundo por uma neblina de sol, as coisas sem ser o
que eram, de verdade, pra nós. Aí a mãe contou um episódio, o pai fez uma pergunta, a vó
já no cochilo, ela sempre com ela, se preparando, a vó no aceite de tudo, e, de repente, o
Edu, do meu lado, a voz baixinha, apontando lá pros altos, e, então, eu vi, elas todas, e eram
tantas, tantas, espetadas no céu, as estrelas, as estrelas, até doía a gente ver, de tão bonitas,
por si só, e no conjunto, espalhadas. O Edu, muito do silencioso, lia uma por uma, bem
natural, como as palavras, e elas deviam dar num texto que ele entendia, porque ele grudado
inteirinho naquela página da noite, e aí eu me peguei a imitá-lo, e fixei tão fundo o olhar
nelas, que, do nada, me senti subindo, subindo, como se fosse pra uma enterrada, o nariz
tocando o azul escuro do céu! Tudo igual de novo, o justo justo, e aí o terceiro jogo era em
campo neutro, Jaboticabal, a gente ainda com a lembrança da derrota, todo mundo quieto,
no seu sozinho, o pressentimento, Não vai dar, os caras são melhores, e até o Urso, a gente
ouvia a mentira no grito dele, Vamos lá, vocês já ganharam uma vez!, e, pronto, o jogo
começou! A lei estava lá, funcionando, alheia ao barulho das torcidas, eles na frente, dez a
oito, depois a gente, cartoze a doze, falta aqui, falta ali, o ala deles fazendo uma cesta de três,
chuá, e eu também, chuá, e eu de novo, chuá, mais três, no placar vinte e dois a vinte e dois,
o Urso pedindo pressão na quadra toda, e eu, assim, do nada, esqueci daquela responsa, com
o pé na diversão, jogando sem peso nenhum, como lá em casa, no escuro, sabendo, sem
precisar olhar onde estava o aro, e chuá, chuá, e mais uma, chuá, de três pontos, o Urso
rindo, o técnico deles roendo as unhas, Caralho, o que deu nesse moleque?, e eu, num giro,
com ajuda da tabela, mais dois, e eles, claro, querendo me quebrar, eu no rebote dentro do
garrafão, cotovelada no rosto, e ela lá, a justiça fria, fria, o pivô deles expulso, a gente
ampliando, depois umas bolas perdidas, eles de novo, vingativos, empate, trinta e cinco a
trinta e cinco. E assim foi até o final, eu uma enterrada, falta no nosso ala, mais dois pontos
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de lance livre, uma de três pra eles, e aí deu no que deu, quarenta e seis a quarenta e um pra
nós, quem diria, campeões, campeões, desculpa aí, Helio Rubens. Então, na alegria da
comemoração, nas tantas coisas que se faz quando a gente está nela, em grupo, todos naquela
hora de grandeza, de rir de si e dos demais, um mais eufórico provocando o Urso que ia
sentado no primeiro banco, sem falar nada, o Urso, acho que ele nem acreditava ainda na
nossa vitória, os quilômetros, os quilômetros foram se encolhendo, e eis que já estávamos
chegando na cidade, um quarteirão a mais — o colégio. Ali, aquele vozerio de despedida, o
time se desfazendo, dois pra aquela rua, três pra aquela outra, e eu sozinho, voltando ao
mundo, devagar, e, de repente, dava pra ver, entre as casas lá embaixo, uma aglomeração de
gente, pros lados da linha de trem, e, no mais, a cidade no silêncio, sem vento pra tirar o jeito
de estátua das árvores, nenhum galho a cair na minha frente, tudo no seu resguardo pra eu
ouvir, pra eu descobrir. E aí, não sei porquê, me veio a certeza, a justiça se fazendo à revelia
da gente, pela ordem dessa lei, e aí eu reduzi o passo, não querendo aceitar aquilo que vinha,
já no avançado da realidade, e pensei primeiro na vó, podia ser com ela, pela idade, mas não
era, eu sabia; pensei no pai, mas o pai não, ele sobrava de saúde; pensei na mãe, mas a mãe,
eu me sentia no ventre dela de novo, não querendo vir à vida, me demorando, pra não saber.
E aí, lá embaixo, eu vi de novo, por um outro ângulo, aquela gente toda perto da linha de
trem, e, como se tudo luz, eu vi no fundo desse meu ver, na plena claridade, o Edu, o Edu
com um livro na mão, andando sobre os trilhos, trem de um lado, que ele via, trem do outro
que ele não viu, o Edu, o Edu, ele sabia do resultado bem antes de mim.
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ANEXO 6
Por Visca
Andar faz parte da minha rotina. Um exemplo: 5h30 da manhã toca o despertador. Minha
filha adolescente, que entrou no 8o ano, me chama já pronta. Pai? Vamos? Respondo: Sim.
O susto do horário já não permite aquele “Bom dia” gostoso. Me troco rápido, lavo o rosto,
escovo os dentes e pergunto: Comeu alguma coisa? Bebo um copo de água, confiro a
carteira, as chaves, pergunto: Vamos? Saímos. Cedo, a hora passa muito rápido. 6h05 já no
ponto. Ela pega o celular, pluga o fone com aquele ar de desprezo com o dia que começa e
o coloca no ouvido. 6h10 o coletivo chega. Subimos. É verão e está escuro. As ruas estão
vazias, pessoas com sono sobem aos poucos, mas não dá tempo de ficar totalmente lotado.
Já temos que descer. Tchau, se cuida. Volto só e aflito, sempre pensando em como ocupar
melhor esses frágeis espaços de tempo, sempre falta algo pra dizer a ela.
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Quando comecei a ler o Aquela água toda para fazer este trabalho, fui logo fisgado por certa
angústia sobre a frágil relação que temos com nossos espaços, tempos, lugares, relações
pessoais e situações ao longo da vida. Essa sensação acabou sendo um dos pontos de partida
no projeto.
Para mim, fazia sentido que, para encontrar o caminho de construção dessas imagens, eu
tivesse que chegar o mais próximo possível dos espaços onde estariam exemplos
semelhantes de tempos e situações perdidas; as experiências marcantes que estavam
presentes nos contos de João Anzanello Carrascoza. Vi que o trabalho não estava no meu
estúdio, nos meus guardados, referências, cadernos de desenho, tão pouco na internet. Tive
que ir buscá-lo lá fora.
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Andar a pé por conta de minha logística pessoal ajudou nisso, então diariamente desconstruí
meu ir e vir, criando pequenos e diferentes percursos em busca desses lugares de tempo,
“lugares fluxo”. Andando pela cidade, usei a fotografia como pesquisa. Já no estúdio, a
repetição desse observar: organizando e editando esses registros. Uma nova repetição surge
enquanto desenho fragmentos dessas cenas e incorporo outros elementos de lembranças
pessoais e dos contos. Depois, veio a pintura e a aquarela — seu descontrole associando
semelhanças entre as imagens e construindo, assim, esta série de ilustrações.
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