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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

SIMONE SEIFERT DEFFENTE MIGLIARI

LETRAMENTO LITERÁRIO: NAS ÁGUAS DOS CONTOS DE CARRASCOZA

São Paulo
2020
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SIMONE SEIFERT DEFFENTE MIGLIARI

LETRAMENTO LITERÁRIO: NAS ÁGUAS DOS CONTOS DE CARRASCOZA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras (PPGL) da Universidade
Presbiteriana Mackenzie (UPM), como requisito à
obtenção de título de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Profa. Dra. Marisa Philbert Lajolo.

São Paulo
2020
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Folha de identificação da Agência de Fomento

Autor: Simone Seifert Deffente Migliari


Programa de Pós-Graduação stricto sensu: Letras
Título do trabalho: Letramento literário: nas águas dos contos de Carrascoza

O presente trabalho foi realizado com o apoio de:


X Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)
X Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de mensalidades e taxas
MackPesquisa (Fundo Mackenzie de Pesquisa)
X Colégio Miguel de Cervantes (Associação Colégio Espanhol de São Paulo)
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M634L Migliari, Simone Seifert Deffente.


Letramento literário: nas águas dos contos de Carrascoza /
Simone Seifert Deffente Migliari.
136 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana


Mackenzie, São Paulo, 2020.
Orientadora: Marisa Philbert Lajolo.
Referências bibliográficas: f. 111-113.

1. Carrascoza. 2. Contos. 3. Aquela água toda. 4. Letramento


literário.
5. BNCC. I. Lajolo, Marisa Philbert, orientadora. II. Título.

CDD
372.4
Bibliotecária Responsável: Silvania W. Martins – CRB 8/7282
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SIMONE SEIFERT DEFFENTE MIGLIARI

LETRAMENTO LITERÁRIO: NAS ÁGUAS DOS CONTOS DE CARRASCOZA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras (PPGL) da Universidade
Presbiteriana Mackenzie (UPM), como
requisito à obtenção de título de Mestre em
Letras.

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dra. Dra. Marisa Philbert Lajolo


Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

Prof. Dra. Valéria Bussola Martins


Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

Prof. Dra. Thais Albieri

Profa. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik (suplente)


Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)

Prof. Dr. Luis Heimester Camargo (suplente)


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À minha mãe,
Que me ensinou a enxergar o outro,
com saudade...
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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à minha família: nenhuma etapa dessa jornada teria sido
possível sem o apoio, sobretudo, das minhas filhas. Tenho certeza de que a paixão e respeito
pelo conhecimento é um aprendizado que se transmite aos filhos. Minha mãe, que mal
terminou os estudos básicos, gostava muito de música clássica e era apaixonada por óperas
e ensinou-me ao seu modo a respeitar a Arte. Não fui uma grande leitora até a minha
adolescência, mas sempre quis que a literatura fizesse parte da minha vida, desejo despertado
pelo meu avô João, leitor até o final da vida, quando lia com uma lupa nas mãos. Conforme
a literatura foi se tornando uma presença em mim, passei a entender de onde vinha a paixão
que algumas óperas despertavam em minha mãe: a música clássica fazia mais sentido quando
possibilitava que ela vivenciasse as histórias dramáticas interpretadas, principalmente, pelos
tenores que ela tanto admirava.
Há muito tempo descobri que a Arte faz toda a diferença em nossas vidas e que as
narrativas são essenciais à nossa existência, sensibiliza-nos na medida em que nos coloca
em contato com outras diferentes existências. Assim como, quando criança, acordava nos
finais de semana ao som de óperas na radiola; minhas filhas - Raisa, Irina e Sofia - sempre
acordaram rodeadas de livros. Toda essa educação literária converteu-se em incentivo e
entusiasmo para que eu retornasse à Universidade, elas entendiam - especialmente a Irina -
o quanto isso era importante para mim, e cada palavra de apoio vinha com a certeza de que
eu conseguiria superar todos os obstáculos ao longo desses dois anos de estudos. Agradeço
também ao meu pai que, semestre a semestre, acompanhou orgulhoso as minhas conquistas,
o que me deixava ainda mais feliz. Ao Athos, agradeço a interlocução que, em anos de
convivência, possibilitou-me um entendimento do mundo social por um crivo humanista
sempre muito crítico, repleto de leituras indispensáveis à análise da ficção. Ao Bernardo e à
Alice que gostam de contar e de escutar histórias. Aos meus sogros, Cleide e Lauro, que
sempre se mostraram orgulhosos das minhas conquistas profissionais, dos meus estudos.
Segundo tia Alda, personagem de “Vogal”, um dos contos mais bonitos de Carrascoza,
o mundo é como o alfabeto, feito de vogais – sons que nascem livremente pela boca - e
consoantes - sons que nascem com maior dificuldade devido aos obstáculos criados à
passagem do ar pelos lábios, dentes, língua e palato. Existem pessoas que são vogais, outras
consoantes; algumas facilitam o nosso caminho, outras dificultam. Mesmo aquelas que
dificultam nossa passagem fazem com que transpassemos nossos limites, permitindo-nos
algumas travessias importantes e, se existissem apenas vogais, ou só consoantes, o mundo
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teria de ser escrito de outra maneira; o bonito é que podemos fazer inúmeras combinações
(CARRASCOZA, 2018, p. 90).
Tive a felicidade de conhecer muitas vogais em minha trajetória. Pessoas que entraram
em minha vida e me abriram passagem para que eu pudesse chegar ao final desse mestrado.
Agradecimento imenso às minhas amigas, irmãs que nunca tive, Kátia e Vera.
Presenças fundamentais dentro de meu coração, amigas com as quais compartilho cada
alegria e tristeza e, desde o início, acreditaram que essa seria uma etapa muito importante na
minha vida.
À direção do Colégio Miguel de Cervantes - Lourdes e Silvia - por facilitarem o meu
caminho de todas as maneiras possíveis, incentivando o meu aprimoramento profissional e
pessoal, responsáveis por uma instituição que me colocou em contato mais estreito com as
artes de modo geral, lugar onde conheci pessoas incríveis que se tornaram especiais. Muitas
vogais... Agradecimento especial à Glorinha, com quem tive a felicidade de descobrir tantos
escritores contemporâneos, entre eles, João Carrascoza. Bibliotecária que me acolheu como
filha e com quem compartilhei muitas leituras. À Amélia, que sempre admirou meu trabalho
e, como diretora, não pensou duas vezes em me facilitar o caminho para cursar o mestrado.
À Marisol de quem veio a ideia para a realização do mestrado, companheira inesquecível
que iluminou o meu caminho, vislumbrando possibilidades. À Fernanda, com quem eu
divido não só o trabalho de Língua Portuguesa, mas amiga querida com quem compartilho
quase todos os dias muitos aprendizados sobre a vida. À Bia, energia muito boa, vogal
querida em todos os momentos. À Lilian, com sua organização exemplar, vogal que sabe
liderar de modo positivo, sempre abrindo caminhos para novos aprendizados dentro do
departamento de LP. À Valéria que, entusiasmada, me incentivou a realizar a minha
inscrição no programa quando estávamos juntas, longe do Brasil.
Enfim, agradeço imensamente ao João Carrascoza, à sua generosidade, escritor que
sempre se mostrou disposto a compartilhar sua literatura e outras leituras com o público.
Agradeço à Universidade Presbiteriana Mackenzie, ao Programa de Pós-Graduação
em Letras, à CAPES, ao Dr. Benedito Aguiar pelo imenso apoio e a todos os professores que
fizeram parte desta minha trajetória que se encerra. Às professoras Valéria Bussola Martins
e Thais Albieri por participarem da minha banca de Qualificação e Defesa, agradeço pelas
excelentes contribuições feitas.
Gratidão infinita à Marisa Lajolo pela orientação neste trabalho. Suas palavras sempre
sábias e generosas potencializaram à busca por um entendimento mais amplo sobre
literatura, ensino e aprendizagem.
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A literatura corresponde a uma necessidade universal que


deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque
pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos
organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a
fruição da literatura é mutilar nossa humanidade.
Antonio Candido (In: O direito à literatura)
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RESUMO

A pesquisa “Letramento literário: nas águas dos contos de Carrascoza” foi elaborada com a
intenção de investigar caminhos que aprimorassem o contato dos jovens com a literatura em
contexto escolar. Inicialmente, fez-se um resgate das teorias da recepção e do papel do leitor
nos estudos literários a partir dessas teorias. Pensando no desenvolvimento de uma proposta
formativa que atendensse professores e alunos de nonos anos, selecionamos os contos
pertencentes à obra Aquela água toda, de João Carrascoza, para compor o corpus do
trabalho, dada as possibilidades de aplicação de Estratégias de Leitura sugeridas pela Base
Nacional Comum Curricular para o ensino fundamental – Anos Finais que tal obra pode
proporcionar. Dentro dessa perspectiva, elaboramos um itinerário de leitura do gênero conto
com a intenção de contribuir com a formação de um leitor mais atento aos princípos de toda
experiência estética, atendendo às demandas de professores por práticas pedagógicas que
propiciem uma abordagem mais significativa do texto literário durante nas aulas de língua
portuguesa que considerem as diretrizes da BNCC.

Palavras-chave: Letramento literário. Carrascoza. Contos. Aquela água toda. BNCC.


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ABSTRACT
The research “Literary literacy: in the waters of the tales of Carrascoza” was designed with
the intention of investigating ways that would improve young people’s contact with literature
in the school context. Initially, we studied the theories of Reception and the reader’s role in
literary studies that were recovered from these theories. Thinking about the development of
a training proposal that would serve teachers and students of ninth grade, we selected the
stories belonging to the work Aquela toda, by João Carrascoza, to compose the corpus of
the work, given the possibilities of applying Reading Strategies suggested by the National
Base Common Curriculum for Middle School (BNCC [Base Nacional Comum Curricular])
- Final Years that such work can provide. Within this perspective, we elaborated a reading
itinerary of the short story genre with the intention of contributing to the formation of a
reader that is more attentive to the principles of all aesthetic experience, meeting the
demands of teachers for pedagogical practices that provide a more significant approach to
the literary text during Portuguese language classes that consider the BNCC guidelines.

Keywords: Literary literacy. Carrascoza. Tales. Aquela água toda. BNCC.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13

1. A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO: AS RELAÇÕES


ENTRE LITERATURA, ESCOLA E SOCIEDADE ..................................... 19

1.1. BREVE HISTORIOGRAFIA DA RECEPÇÃO: COORDENADAS


TEMPORAIS E PARENTESCOS INTELECTUAIS ......................................... 19

1.2. UMA PEQUENA EXPOSIÇÃO SOBRE A OBRA A LEITURA,


DE VICENT JOUVE ........................................................................................... 28

1.3. BNCC: UMA PROPOSTA FORMADORA DE LEITORES PARA


O SÉCULO XXI .................................................................................................. 33

2. CARRASCOZA E A POÉTICA DO COTIDIANO: ENTRE ENCANTOS


E DESALENTOS, NARRATIVAS QUE HUMANIZAM ............................. 47

2.1. NARRADORES MERGULHADOS NO TEMPO INTERIOR DOS


PROTAGONISTAS ............................................................................................. 49

3. CARRASCOZA NA ESCOLA: UMA PROPOSTA DE FORMAÇÃO DO


LEITOR LITERÁRIO ...................................................................................... 58

3.1. PROPOSTA E DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES SOBRE A


ANTOLOGIA DE CONTOS AQUELA ÁGUA TODA ....................................... 59

3.2. LINHA ÚNICA: PROPOSTA E DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES


SOBRE MICRONARRATIVAS ......................................................................... 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................108


REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 111
ANEXO 1 .......................................................................................................................... 115
ANEXO 2 .......................................................................................................................... 119
ANEXO 3 .......................................................................................................................... 123
ANEXO 4 .......................................................................................................................... 126
ANEXO 5 .......................................................................................................................... 128
ANEXO 6 .......................................................................................................................... 133
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INTRODUÇÃO

O projeto de pesquisa “Letramento literário: nas águas dos contos de Carrascoza”


propõe-se a investigar e propor caminhos que possam contribuir para a formação do leitor
literário em contexto escolar.

Inúmeras razões justificam a importância da leitura literária na escola, espaço


privilegiado de acesso aos livros. Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no
âmbito do Campo artístico-literário,

o ensino de Língua Portuguesa deve possibilitar o contato com as


manifestações artísticas em geral, e, de forma particular e especial, com a
arte literária, oferecendo ao aluno as condições para que se possa
reconhecer, valorizar e fruir essas manifestações (BRASIL, 2017, p. 138).

No entanto, muitos professores brasileiros vivem situações profissionais limitadoras,


que dificultam abordagens que favoreçam percursos cognitivos, sensoriais e emotivos que
levem o aluno, simultaneamente, à apreensão e construção satisfatória dos significados
globais e específicos dos textos literários.

Nesse sentido, trabalhos de investigação sobre o tema formação de leitores de textos


literários em âmbito escolar que ofereçam percursos didáticos testados, portanto mais
confiáveis, podem proporcionar aos alunos experiências de leitura que ampliem o letramento
literário e, por outro lado, ofereçam itinerários didáticos que contribuam para a formação de
professores de Língua Portuguesa como mediadores de literatura, ajudando a enriquecer a
atuação desses profissionais, fortalecendo as práticas de leitura por eles desenvolvidas.

Educar o aluno para que ele se sensibilize com a arte e perceba o potencial
humanizador dos textos literários não é tarefa fácil, mas é uma das mais importantes do
currículo específico de Língua Portuguesa. Isto torna duplamente importante um projeto que
vise ao aprimoramento da formação do leitor em geral, e do texto literário em particular: por
um lado, o texto literário possibilita aos alunos uma “convivência amiudada com a produção
linguística valorizada” (ANTUNES, 2000, p. 101, grifo nosso); por outro, a ficção os coloca
em contato com uma multiplicidade de vozes que amplia substancialmente as suas vivências.
Segundo Rildo Cosson (2018, p. 17), “no exercício da literatura, podemos ser outros,
podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço da nossa
experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos”.
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Vale reiterar que tais pressupostos estão em consonância com os fundamentos


pedagógicos da BNCC, no que diz respeito ao desenvolvimento de competências específicas
de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental – Anos finais, em que se lê a necessidade
de contemplar práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do senso
estético no aluno para que ele desfrute desse tipo de texto e escrita, “valorizando a literatura
e outras manifestações artístico-culturais como formas de acesso às dimensões lúdicas, de
imaginário e encantamento, reconhecendo o potencial transformador e humanizador da
experiência com a literatura” (BRASIL, 2018, p. 87).

Nesse sentido, o presente trabalho propõe enriquecer o letramento literária do leitor-


aluno por meio de itinerários literários que fortaleçam e ampliem as práticas leitoras
oferecidas aos jovens nas escolas.

Para desenvolver esta proposta, foram selecionadas Aquela água toda (contos) e Linha
única (micronarrativas), do premiado escritor brasileiro João Anzanello Carrascoza. Entre
os autores contemporâneos, Carrascoza tem se destacado no cenário literário nas últimas
décadas pelo conjunto e qualidade de sua obra. Autor de mais de 40 publicações - entre
romances, contos e ensaios -, percebe-se sua predileção pelas narrativas curtas.

Aquela água toda é uma antologia composta por 11 narrativas que tematizam
experiências de iniciação (ritos de passagem) marcantes para o amadurecimento dos
protagonistas. Publicada inicialmente em 2012, pela editora Cosac Naify, a obra recebeu o
Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do Livro – CBL), Prêmio Altamente Recomendável
(Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ) e Prêmio APCA (Associação
Paulista de Críticos de Artes), além de ser incorporada ao Catálogo White Ravens da
International Youth Library de Munique, na Alemanha. A obra já foi publicada na França
pela editora Lajoie de Lire e ganhou, recentemente, uma edição em espanhol na Argentina.
Em 2017, a obra foi reeditada pela Companhia das Letras, editora que atualmente detém os
direitos autorais sobre a obra.

A fortuna crítica sobre a obra de João Carrascoza tem, em geral, apontado o singular
trabalho linguístico do escritor, uma das vozes na lírica masculina contemporânea. No
posfácio escrito para O volume do silêncio, obra vencedora do prêmio Jabuti 2007, o escritor
e organizador da antologia, Nelson de Oliveira (2006, p. 207), afirma que Carrascoza é
perfeccionista, “rigoroso na seleção de temas e conflitos, rigoroso na caracterização das
personagens e do narrador, rigoroso na composição e na fixação de seu estilo literário
delicado e envolvente”. Pelo crivo desse escritor, momentos banais tornam-se inesquecíveis.
15

Sua prosa poética desperta seus leitores para a grandeza das relações humanas, para os
afetos do convívio diário que fazem valer a existência de pessoas comuns. A ênfase da crítica
nesse aspecto da obra de Carrascoza - o esmerado trabalho com a língua – contribui para que
seus contos alcancem cada vez mais diferentes leitores e validam a indicação de antologias,
como Aquela água toda, para contextos escolares, pois são textos que oferecem inúmeras
possibilidades de trabalhos com alunos de idades e realidades diferentes. Recentemente
publicado, o livro didático da editora SM Geração Alpha – Língua Portuguesa traz o conto
“Aquela água toda” como primeiro texto da obra destinada a alunos de 9º ano.

Desde o ano de sua publicação, essa antologia de contos foi adotada diversas vezes
para leitura do 9º ano do Ensino Fundamental do Colégio Miguel de Cervantes, momento
em que pudemos perceber que, dentre tantas outras coletâneas de contos adequadas a esse
público, Aquela água toda toca significativamente os adolescentes, que compartilham entre
eles interessantes impressões sobre a obra. Percebemos também que a leitura das
micronarrativas de Linha única, obra publicada no início de 2016, pela editora Sesi-SP,
complementa o trabalho de leitura realizado primeiramente com os contos, ampliando o
diálogo sobre a temática das relações cotidianas e as diferentes possibilidades formais que
podem alavancar instantes dramáticos e surpreendentes da existência humana. Elípticas,
conduzem os leitores a inúmeras possibilidades narrativas subjacentes, ampliando a
consciência de que a construção literária se apoia na percepção do leitor-autor.

As micronarrativas que compõem a obra não ultrapassam 80 caracteres, instantâneos


poéticos e reflexivos sobre a vida que dialogam com a velocidade contemporânea, proposta
de leitura que atrai e, ao mesmo tempo, desafia jovens leitores acostumados à objetividade
das mensagens instantâneas que circulam na internet.

Percurso marcadamente lírico, as narrativas de Carrascoza encantam pela construção


de imagens que é marca de seu estilo. Em poucas páginas, o escritor trabalha magistralmente
os dramas humanos que perpassam as vivências de pessoas comuns, transformando-os pela
linguagem literária, cuja carga poética ilumina instantes aparentemente banais vivenciados
por seus protagonistas.

Centrados em conflito único (característica do gênero), os contos do escritor


proporcionam ao leitor uma abrangente compreensão do mundo e das relações humanas.
Carrascoza preenche suas páginas com metáforas e comparações cuidadosamente
elaboradas, capazes de dialogar com as emoções do leitor que desperta para a magia existente
nas horas “menores”, na relação com o outro no diário da vida.
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A escolha do corpus ajusta-se aos objetivos deste trabalho que é investigar como
alunos que estão finalizando o Ensino Fundamental leem textos literários e qual é o papel da
escola na formação do leitor literário. Em se tratando de alunos do último ano de uma longa
etapa escolar, busca-se alcançar a consolidação do letramento literário. Nesse sentido, a
escolha do escritor João Carrascoza justifica-se pela hipótese de estreitamento do vínculo
dos leitores jovens com a literatura.
Para complementar as reflexões teóricas inspiradas na obra de Carrascoza, elaboraram-
se atividades de leitura e releitura sobre os contos que compõem a antologia Aquela água
toda, cujo ponto de chegada culminou com a leitura e interpretação de micronarrativas
selecionadas da obra Linha única. Dessa maneira, buscou-se ampliar o olhar sobre as
possibilidades do gênero conto e o diálogo que se estabelece com os textos veiculados no
mundo digital.
Respaldadas em teorias da recepção discutidas na obra A leitura, de Vicent Jouve, e
na pedagogia da leitura, de Rildo Cosson, as atividades propostas pretendem investigar
caminhos que possam orientar de maneira consistente e prática a formação de leitores de
textos literários em contexto escolar. Optou-se por contos e minicontos, gêneros literários
que permitem interações diversificadas nos enredos e cuja qualidade estética – segundo
nosso ponto de vista – poderia favorecer a formação do leitor literário em contexto escolar.
O conjunto oportuniza uma abordagem relevante do gênero conto com possibilidades
de recepção bastante positivas pelos jovens, dada a qualidade e a variedade dos textos que
compõem a obra, equilibrando histórias que versam sobre encantos e desalentos,
contentamentos e decepções que marcam a convivência diária entre as pessoas, permeadas
por pequenas felicidades, as quais muitas vezes não são percebidas e valorizadas, mas
ganham relevância na leitura dos contos de Carrascoza.

Nas palavras do próprio autor:

Se o romance é um espaço inerente à polifonia, ao mundo coletivo, o conto


é o locus onde se manifesta a escassez de vozes, o universo do indivíduo.
O romance opera como uma sinfônica, instaurando um diálogo entre os
seus variados músicos. Já o conto é a música de câmara: poucos
instrumentos, rápida performance. Romance: grande sertão. Conto:
veredas (CARRASCOZA, O conto-riacho, 2011).

Dada a natureza desta pesquisa, cuja pretensão é colher informações e propor


percursos didáticos que possam aprimorar o letramento literário na etapa final do Ensino
Fundamental, o referencial teórico escolhido orienta não apenas a análise das obras
17

selecionadas para compor o corpus, mas sobretudo amplia a reflexão sobre a importância de
se ensinar a ler o texto literário na escola, evidenciando a relevância desse “conteúdo” para
a formação do aluno-leitor no Brasil.

A partir da análise de Aquela água toda (contos) e Linha única (micronarrativas),


buscou-se conhecer a percepção que os alunos têm sobre a leitura de textos literários na
escola. Segundo a BNCC (BRASIL, 2018, p. 138), nas séries finais do Ensino Fundamental,

Está em jogo a continuidade da formação do leitor literário, com especial


destaque para o desenvolvimento da fruição, de modo a evidenciar a
condição estética desse tipo de leitura e de escrita. Para que a função
utilitária da literatura – e da arte em geral – possa dar lugar à sua
dimensão humanizadora, transformadora e mobilizadora, é preciso supor
– e, portanto, garantir a formação de um leitor-fruidor, ou seja, de um
sujeito que seja capaz de se implicar na leitura dos textos, de “desvendar”
suas múltiplas camadas de sentido, de responder às suas demandas e de
firmar pactos de leitura.

Para a investigação proposta, foram selecionados alunos de 9º ano que disfrutam de


uma realidade sociocultural privilegiada, alunos da rede privada, frequentada, basicamente,
por alunos que pertencem à elite da cidade de São Paulo. Objetivou-se inicialmente uma
investigação sobre as possíveis barreiras que impedem ou facilitam a conexão desses jovens
com os textos literários.
Na sequência, averiguou-se por meio das propostas didáticas elaboradas, qual o grau
de receptividade desses públicos da antologia de contos e das micronarrativas selecionadas
e, por fim, como as estratégias utilizadas ao longo do trabalho se refletem na leitura do texto
literário, no que diz respeito ao acesso às camadas estruturais presentes na construção desse
tipo de texto.
O trabalho está organizado em quatro capítulos, a saber: 1. A formação do leitor
literário: as relações entre literatura, escola e sociedade, com os subcapítulos 1.1 Breve
história da estética da recepção: coordenadas temporais e parentescos intelectuais; 1.2 Uma
pequena exposição sobre a obra A leitura, de Vicent Jouve; e 1.3 BNCC: uma proposta
formadora de leitores para o século XXI. Na sequência, 2. João Anzanello Carrascoza e a
poética do cotidiano e 2.1 Narradores mergulhados no tempo interior dos protagonistas; 3.
Carrascoza na escola: entre encantos e desalentos, narrativas que humanizam, 3.1 Proposta
e desenvolvimento de atividades sobre as micronarrativas Linha única, e 3.2 Proposta e
desenvolvimento de atividades sobre a antologia de contos Aquela água toda; e, por fim, as
Considerações Finais.
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Por fim, retomou-se as propostas didáticas à luz de alguns dados observados com a
intenção de ajustá-las ao aprimoramento da competência leitora de alunos do último ano do
Ensino Fundamental via leitura de textos literários, com ênfase nas obras selecionadas no
corpus.

Com tal produto, acredita-se contribuir com leitores – alunos e professores – no acesso
às camadas mais profundas de compreensão desses textos literários, conduzindo-os à
percepção de que literatura é arte cuja beleza está na linguagem e no potencial de
transformação do ser humano que existe em textos como, por exemplo, os de João Anzanello
Carrascoza.
19

1. A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO: AS RELAÇÕES ENTRE


LITERATURA, ESCOLA E SOCIEDADE

1.1. BREVE HISTORIOGRAFIA DA RECEPÇÃO: COORDENADAS TEMPORAIS E


PARENTESCOS INTELECTUAIS1

O tempo é urgente e exige reflexões. Assim, vemos, de forma crescente,


literaturas se expandindo em torno da História, exposições que trazem
fatos passados para discussão, cursos que se colocam em pauta o estudo
de momentos fundadores de reflexões que nos são contemporâneas. O
presente é, por assim dizer, o momento da História (Ronaldo de Oliveira
Batista).

Com as preocupações relativas à recepção, a leitura - como experiência estética - e o


leitor - enquanto entidade coletiva a quem o texto se dirige - ganham a atenção de diferentes
estudiosos. Entender o que motivou o surgimento desse campo da ciência e seus
desdobramentos para os estudos literários permite compreender os diálogos teóricos que se
relacionam diretamente com o ensino de literatura.

A compreensão de como o conhecimento circula faz parte do aspecto social da prática


científica. A ideia de que a obra literária não é escrita no vazio, mas sim dirigida a um
destinatário concreto, começa a circular na década de 60 na Alemanha, enraizando-se no
ambiente intelectual europeu desse período, momento em que despontam os adversários do
privilégio formal e linguístico (Estilística, Formalismo) que dava prioridade à textualidade,
e da crítica (biográfica, psicanalítica), que se concentrava na relação autor-texto. No âmbito
da teoria da literatura, a chegada da estética da recepção ofereceu um leque de sugestões,
principalmente à história da literatura. Hans Robert Jauss, considerado o fundador desse
campo do conhecimento, ancorou suas principais teses na estética da recepção e juntamente
com Wolfgang Iser fundamentam as bases da Teoria da Recepção no ambiente acadêmico
da Universidade de Constança.

1
Esta breve historiografia da recepção foi beber, sobretudo, nas fontes de uma das obras mais
relevantes publicadas no Brasil sobre esse campo do conhecimento: Estética da Recepção e História
da Literatura (1989), de Regina Zilberman. Os termos “coordenadas temporais e parentescos
intelectuais” que compõem o título deste texto foram retirados do corpo da obra de Zilberman dado
ao relevante paralelismo que sintetiza as ideias aqui selecionadas para compor os caminhos que
levaram à consolidação da estética da recepção, sugerindo diferentes possibilidades para os estudos
literários.
20

Inúmeros são os diálogos que resultam em uma nova visão da estética no campo
literário. Em 1961, a publicação de Verdade e método [Wahrheit und Methode], de Hans
Georg Gadamer, ex-professor de H. R. Jauss na Universidade de Heidelberg, Alemanha,
mostra-se importante nessa fase inicial pela nova direção que confere à hermenêutica,
atribuindo-lhe o papel de intérprete da história, sem ter de percorrer a trilha do marxismo.
Assim como o mestre, Jauss percorre uma via que lhe permite chegar ao intérprete ou leitor,
situando-se na contramão das correntes teóricas estruturalistas. Em ensaio introdutório para
o livro A literatura e o leitor, Jauss expõe as justificativas de sua “agenda de pesquisa”,

Diante do êxito mundial do estruturalismo linguístico e do triunfo mais


recente da antropologia estrutural, assinalava-se, nas velhas ciências do
espírito (Geisteswissenschaften), em todos os campos, o abandono dos
paradigmas da compreensão histórica. Via então a oportunidade de uma
nova teoria da literatura, exatamente não no ultrapasse da história, mas sim
na compreensão ainda não esgotada da historicidade característica da arte
e diferenciadora de sua compreensão. Urgia renovar os estudos literários e
superar os impasses da história positivista, os impasses da interpretação,
que apenas servia a si mesma ou a uma metafísica da “écriture”, e os
impasses da literatura comparada, que tomava a comparação como um fim
em si. Tal propósito não seria alcançável através da panaceia das
taxinomias perfeitas, dos sistemas semióticos fechados e dos modelos
formalistas de descrição, mas tão só através de uma teoria da história que
desse conta do processo dinâmico de produção e recepção e da relação
dinâmica entre autor, obra e público, utilizando-se para isso da
hermenêutica da pergunta e resposta (JAUSS, 1979, p. 47-48).

Jauss historiou o aparecimento da estética da recepção em 1975, no Congresso Bienal


dos Romancistas Alemães. Situando o movimento no quadro político e intelectual da década
de 60, ressalta as transformações que afetaram a sociedade ocidental e atingiram a vida
universitária com consequências visíveis para as investigações literárias. A estética da
recepção nasce em um momento marcado pela atuação dos jovens na vida política, e o “poder
jovem” que afetou profundamente os padrões de comportamento, conferindo
encaminhamentos inusitados à vida cultural. Questionamentos à estrutura social se fizeram
notáveis dentro das universidades, lugar em que a rebeldia da juventude revelou líderes
ativos na Europa. Nesse contexto, os cursos universitários foram interrogados, o que resultou
na criação de novos currículos e propostas originais para a educação superior.

Em meio às revoltas estudantis e reformas universitárias na Alemanha, foi criada a


Universidade de Constança. Na conferência de abertura do ano acadêmico de 1967, H. R.
Jauss desenvolve a sua “lição inaugural” da estética da recepção. Conhecida como
21

“Provocação”, é considerada um marco no panorama acadêmico da época, legitimando Jauss


como o pai desse campo do conhecimento científico. Ao contemplar o panorama intelectual
do período, evidencia-se que as diferentes linhas metodológicas que compõem os estudos
literários alemães tinham em comum o fato de não considerarem a história na análise de um
texto literário, postura resultante de influências diversas desde o final da 2ª Grande Guerra.
Jauss recusa vigorosamente os métodos de ensino da história da literatura em seu discurso,
considerando-os tradicionais e desinteressantes. Segundo Zilberman (1989, p. 9),

A análise de Jauss leva-o a denunciar a fossilização da história da literatura,


cuja metodologia estava presa a padrões herdados do idealismo ou do
positivismo do século XIX. Somente pela superação dessas orientações
seria possível promover uma nova teoria da literatura, fundada no
“inesgotável reconhecimento da historicidade” da arte, elemento decisivo
para a compreensão de seu significado no conjunto da vida social; não
mais, portanto, na omissão da história.

Na conferência de 1967, Jauss dialoga com o estruturalismo, corrente bastante


prestigiada no contexto universitário da década de 60. Reconhece nesse momento as várias
dívidas para com o estruturalismo representado pelo Círculo Linguístico de Praga e pelo
formalismo russo, no entanto não mostra nenhuma afinidade com a vertente francesa do
movimento, em evidência no momento, pois julga inaceitável “a afirmação da autonomia
absoluta do texto, que se sobrepõe ao sujeito por contar com uma estrutura auto-suficiente,
cujo sentido advém tão-somente de sua organização interna” (ZILBERMAN, 1989, p. 10).
Na visão dos estruturalistas franceses, para que a literatura fosse considerada uma ciência, a
estrutura era o único objeto a ser descrito pelo estudioso, sendo jamais permitida a sua
interpretação, circunstância em que os valores pessoais do crítico acabariam interferindo na
análise.

Percebe-se que essa concepção de ciência inviabiliza qualquer afinidade do


estruturalismo francês com a metodologia recepcional, cujo foco passa do texto, enquanto
estrutura imutável, para o leitor até então marginalizado, porém de fundamental importância
para vitalidade da literatura enquanto instituição social. Em consonância com uma década
de transformações, Jauss mostrou-se aberto às novas tendências, questionou os sistemas
fechados e fórmulas acabadas. Segundo Zilberman (1989, p. 12),

foi responsável por uma conquista básica: a noção de que os sistemas não
explicam tudo, de que o novo pode emergir de lugares inesperados,
exigindo que se esteja não só atento à novidade, mas que se mantenham os
22

sentidos em forma para perceber, compreender e interpretar da melhor


maneira possível a sua ocorrência.

Em seu ensaio “A estética da recepção: colocações gerais”, Jauss recupera como a


experiência estética manifestou-se na história da arte. Resgata o legado platônico que
concede à verdade, manifestada pela arte, a primazia sobre a experiência da arte; menciona
a poética aristotélica, dialoga com Kant, Goethe e Hegel, situando-os como precussores do
caminho para as teorias histórico-filosóficas da arte. Após uma breve apresentação, Jauss
afirma que “A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do
significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrução da intenção de seu autor. A
experiência primária de uma obra de arte realiza-se em sintonia com seu efeito estético, na
compreensão fruidora e na fruição compreensiva”, advertindo o engano de supor que o texto
fora feito, não para o leitor, mas especialmente para ser interpretado.

Diante da crise das disciplinas filológicas, os filólogos que foram para Universidade
de Constança, interessados na revisão da autoimagem da teoria da ciência, fundaram o
primeiro departamento de Ciência da Literatura, voltando-se à estética da recepção e do
efeito. Nesse contexto, Jauss (1979, p. 46) enfatiza a tarefa da hermenêutica literária no início
de sua teoria da recepção “de um lado, aclarar o processo atual em que se concretizam o
efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo
histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de
tempos diversos”.

Com o desgaste do estruturalismo durante os anos 70, o interesse pela leitura ganha
relevância entre os estudiosos da literatura, momento em que as teses de Jauss são
disseminadas e alargadas. A percepção de que é inútil reduzir o texto literário a um conjunto
de formas, confere à estética da recepção um lugar de destaque na teoria da literatura desde
o qual podem ser contemplados seus precursores, as influências recebidas, as diferentes
linhas que concebem a audiência como centro dos estudos literários e outras, divergentes,
que não se afinam com a estética da recepção.

Ao teorizar a estética da recepção, Jauss abordou, entre outras questões, o prazer e a


identificação estética, tratando o problema em relação tanto à literatura de consumo quanto
à familiaridade com os clássicos. Dos embates que marcaram esse campo da literatura, Jauss
escreve, por exemplo, crítica detalhada à estética da negatividade de Theodor W. Adorno
por não concordar com a ideia de que só pela reflexão do contemplador solitário, que
23

renuncia a todo prazer estético, pode-se romper com o contexto geral de enfeitiçamento,
argumentando que:

É só de modo parcial que a necessidade estética é manipulável, pois a


produção e reprodução da arte, mesmo sob condições da sociedade
industrial, não consegue determinar a recepção: a recepção da arte não é
apenas um consumo passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da
aprovação e da recusa (JAUSS, 1979, p. 57).

Em meio a esse contexto, publica a obra Kleine Apologie des ästhetischen (Pequena
apologia da experiência estética) em 1972.

No ano seguinte, Roland Barthes empenhou-se na reabilitação do prazer estético em


sua obra Le plaisir du texte com a intenção de examinar o “prazer do consumidor”. Embora
teorize sobre o campo da leitura e do prazer estético, Barthes nega o caráter de diálogo entre
o leitor e texto, excluindo a macroestrutura da situação comunicativa. À postura de Barthes,
Jauss posiciona-se, “o processo de leitura se reduz à percepção de microestruturas; ao leitor
passa a caber apenas um papel passivo, tão só de recepção e desaparece, como fonte de
prazer, sua atividade imaginante, experimentadora de significação” (1979, p. 74).

Ao analisar criticamente os primórdios da teoria recepcional, para Hans Ulrich


Gumbbrecht (1979, p. 191) “a estética da recepção descobriu o leitor como objeto da ciência
da literatura”, porém deixou de considerar o autor e a produção de texto como objetos da
ciência da literatura, já que Jauss pretendia inicialmente “uma história da literatura do leitor”
(apud Lima, 1979, p. 191). Segundo Gumbbrecht, o verdadeiro mérito da estética da
recepção foi dirigir seu interesse às condições diferentes de diferentes construções de
sentidos que os textos alcançam historicamente.

Por meio de um projeto de reformulação da história da literatura, Jauss pretende


definir a matriz de uma nova ciência literária, instituindo sete teses.

Postula, primeiramente, que a natureza eminentemente histórica da literatura se


manifesta durante o processo de recepção e efeito de uma obra, cuja relação dialógica entre
o leitor e o texto é o fato primordial da literatura. Zilberman (1989, p. 35) explica que “a
possibilidade de a obra atualizar como resultado da leitura é o sintoma de que ela está viva;
porém, como as leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária à sua
fixação numa essência sempre igual e alheia ao tempo”.

Em sua segunda tese, Jauss adverte que, para descrever a experiência literária do
leitor, não é necessário recorrer à psicologia. Entende “recepção e o efeito de uma obra no
24

sistema objetivo de expectativas que, para cada obra, no momento histórico de seu
aparecimento, decorre da compreensão prévia do gênero, da forma e da temática de obras
anteriormente conhecidas e da oposição entre linguagem poética e linguagem prática” (apud
ZILBERMAN, 1989, p. 34). Jauss não considera o “conhecimento prévio” de um leitor real,
dirige sua consulta às próprias obras, cujas características oferecem orientações ao
destinatário. Ao situar, no interior do sistema literário, os elementos que medem a recepção,
evidencia a noção de horizonte emprestada de Gadamer e à semelhança dos estruturalistas
tchecos, como por exemplo Mukarovsky, para quem a obra passa a ser considerada como
objeto significativo e o recebedor, enquanto consciência coletiva, ocupa papel determinante
e ativo na recepção. Quanto à noção de horizonte, Jauss ressalta que certas obras retomam o
horizonte para, posteriormente, contrariá-lo, como é o caso de obras renovadoras à época de
seu aparecimento, como D. Quixote, por exemplo.

Em sua terceira tese, Jauss aborda a reconstituição do horizonte como tarefa que
possibilita valorizar o caráter artístico de uma obra e, com isso, tenta resolver o problema
apontado pela crítica às histórias da literatura. Segundo Jauss “a distância estética pode ser
historicamente objetivada no espectro das reações do público e do juízo da crítica” (apud
ZILBERMAN, 1989, p. 35). Essa postura indica que quanto maior a distância, maior a arte,
reiterando assim a visão de arte autêntica ou superior - postura simplista, na avaliação de
Zilberman, que passa por algumas reformulações em ensaios subsequentes do autor.

A quarta tese, a mais comprometida com a hermenêutica, procura examinar com mais
rigor as relações do texto com a época de seu aparecimento através da reconstituição do
horizonte de expectativas diante do qual a obra foi criada e recebida, o que permite entender
a importância histórica das obras mais antigas, alvo de diferentes recepções sucessivas,
contrariando assim a ideia do “presente atemporal”.

Na quinta tese, explicita que para situar uma obra na “sucessão histórica”, deve se
considerar a experiência literária que propiciou, ou seja, a história dos efeitos. Esta tese,
discute como o poder de ação de uma obra não se perde ao transpor o período em que é
publicada, já que sua importância pode tanto crescer ou diminuir no tempo, determinando a
revisão das épocas passadas em relação à percepção suscitada por ela em cada época.
Segundo Zilberman (1989, p. 38),

a noção de história é afetada, porque deixa de ser vista como progresso e


evolução, segundo a ótica linear e teleológica herdada dos positivistas.
Pelo contrário, ela se faz de avanços e recuos, reavaliações e retomadas de
outras épocas, obrigando a história da literatura a manter-se atenta e a
25

repensar sua metodologia, que não pode mais limitar-se ao alinhamento


unidirecional e unidimensional dos fatos artísticos.

A tese subsequente, a sexta, corresponde ao estabelecimento do sistema de relações


próprio à literatura que dê conta de articular as diferentes obras escritas em períodos distintos
em um dado momento histórico em que aparecem simultaneamente para o público que as
percebe como obras de sua atualidade.

Já a sétima tese procura averiguar as relações da literatura com a sociedade,


examinando a literatura desde o ângulo da ação que ela provoca. Segundo o autor,

a relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial


como estímulo à percepção estética, como também no terreno ético
enquanto exortação à reflexão moral. A nova obra literária é acolhida e
julgada tanto como background de outras formas artísticas, como ante o
background da experiência cotidiana da vida (apud ZILBERMAN, 1989,
p. 39).

Tendo em vista os ensaios analisados, percebe-se que Jauss produz um trabalho


predominantemente teórico. Segundo Zilberman, a experiência do leitor que deveria ser,
supõe-se, a matéria central de uma estética voltada à análise da recepção permaneceu
insuficientemente descrita em suas teses, porém o autor busca comprovar sua teoria ao
abordar produtos artísticos coletados pela história da literatura. Ao analisar Ifigênia em
Táuride, de Goethe, Jauss exemplifica várias de suas formulações teóricas.

Ampliando a análise da interação texto-leitor, Wolfgang Iser apresenta, em 1976, a


teoria do “leitor implícito”. Voltando-se para o leitor particular como pressuposto do texto,
teoriza como uma obra organiza e dirige sua leitura e como o indivíduo-leitor reage no plano
cognitivo aos percursos impostos pelo texto (estrutura de apelo). Em diálogo com a
indagação psicanalítica sobre a comunicação de R. D. Laing, H. Phillipson e A. R. Lee, para
os quais as relações interpessoais são permeadas por preenchimentos interpretativos, o “no-
thing” presente na experiência interpessoal, a teoria da Iser parte do papel desempenhado
pela contingência nas interações humanas. Apesar da considerável diferença com a relação
diádica, concebe a leitura como uma atividade de interação texto-leitor por considerar os
vazios textuais que devem ser preenchidos pelo leitor.

Por meio de uma análise de Virginia Woolf sobre a obra de Jane Austin, em que o
que está silenciado no plano textual adquire vida pela representação do leitor, Iser (1979, p.
26

90) ilustra a ideia de que “o processo de comunicação se realiza não através de um código,
mas através da dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala”. Nessa perspectiva,
os vazios textuais que convocam o leitor a constituir os sentidos durante a leitura funcionam
como uma espécie de regulador das fronteiras da interação texto-leitor.

Significativas foram as contribuições da Escola de Constança para a teoria da


literatura. Jauss dedica-se a estudar a história literária com ênfase na relação da obra com
seus sucessivos leitores, evidenciando que a obra literária – e a obra de arte em geral –
sobrevive por meio de um público. Por outro lado, Iser acrescenta aos estudos literários
novas perspectivas ao considerar o indivíduo-leitor (ainda que abstrato) como participante
dos percursos impostos pelo texto.

Regina Zilberman publicou a obra Estética da Recepção e História da Literatura em


1989. Segundo a autora, a teoria da recepção não foi recebida com indiferença no Brasil, já
que, em 1979, Luiz Costa Lima organizou uma coletânea de ensaios dos membros da Escola
de Constança (Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, karlheinz Stierle e Hans Ulrich
Gumbrecht) no mesmo ano em que era lançada uma tradução francesa e três anos antes da
tradução americana desses ensaios, ficando atrás apenas das publicações portuguesa e
espanhola que ocorreram anteriormente.

A autora ressalta ainda que, na época em que os ensaios de Jauss e de outros teóricos
do campo da recepção foram traduzidos no Brasil, as obras de M. Bakhtin, W. Beijamin e J.
Lacan estavam sendo divulgadas no país, diversificando assim as opções de investigação
para os intelectuais brasileiros. Vale ressaltar que a coletânea organizada por Luiz Costa
Lima, A literatura e o leitor: textos da estética da recepção, faz parte da coleção “Literatura
e Teoria Literária”, dirigida por Antonio Callado e Antonio Candido, duas das principais
figuras do campo literário brasileiro na época da publicação.

Embora não seja mencionado pela autora de Estética da recepção e História da


Literatura, Antonio Candido antecipa questões relativas à recepção, no Brasil, dez anos antes
da aula inaugural de Jauss (1967). O texto foi inserido posteriormente como capítulo da obra
Literatura e Sociedade, cuja primeira edição é de 1965, sob o título “A Literatura e a Vida
Social”.

O texto “A Literatura e a Vida Social” é subdividido em três partes (1. a posição do


artista; 2. a configuração da obra; e 3. o público) e focaliza aspectos sociais que envolvem a
vida artística e literária em diferentes momentos.

Segundo Candido (1965, p. 32), por ser comunicação expressiva,


27

a arte pressupõe algo diferente e mais amplo do que as vivências do artista.


Estas seriam nela tudo, se fosse possível o solipsismo; mas, na medida em
que o artista recorre ao arsenal comum da civilização para os temas e forma
da obra, e na medida em que ambos se moldam sempre ao público, atual
ou prefigurado (como alguém para quem se exprime algo), é impossível
deixar de incluir na sua explicação todos os elementos do processo
comunicativo, que é integrador e bitransitivo por excelência. Esse ponto de
vista leva a investigar a maneira porque são condicionados socialmente os
referidos elementos, que são também os três momentos indissoluvelmente
ligados à produção, e se traduzem, no caso da comunicação artística, como
autor, obra e público.

Na terceira parte, “O público”, Candido focaliza o receptor de arte (notadamente de


literatura) que integra o público em seus diferentes aspectos, buscando caracterizá-lo desde
as sociedades primitivas, demograficamente pequenas, momento em que a separação entre
o artista e o público mal se consegue distinguir.

Ao abordar o contexto das sociedades diferenciadas em constante crescimento


demográfico, momento em que o artista e o público podem ser identificados separadamente,
Candido (1965, p. 44) afirma que há sempre “o fenômeno básico de um segmento do grupo
que participa da vida artística como elemento receptivo, que o artista tem em mente ao criar,
e que decide o destino da obra, ao interessar-se por ela e nela fixar a atenção”. No entanto,
o autor considera esse público como “um conjunto informe”, “sem estrutura, de onde podem
ou não desprender-se agrupamentos configurados”, “coleções de pessoas” que aumentam e
se espalham em meio à complexidade da estrutura social, influenciando muitas vezes na
produção do artista.

Candido cita alguns exemplos de como a técnica exerce influência sobre a formação
e caracterização dos públicos, resgatando as transformações ocorridas na literatura por conta
da invenção da escrita e da tipografia que possibilitaram a formação de públicos indiretos,
de contatos secundários. Aborda ainda a influência social dos valores que se manifesta no
comportamento artístico dos públicos guiado pelo “gosto”, “moda”, “voga” que expressam
as expectativas sociais do momento. Segundo Candido (1965, p. 46),

A sociedade, com efeito, traça normas por vezes tirânicas para o amador
de arte, e muito do que julgamos reação espontânea de nossa sensibilidade
é, de fato, conformidade automática aos padrões. Embora essa verificação
fira a nossa vaidade, o certo é que muito poucos dentre nós seriam capazes
de manifestar um juízo livre de injunções diretas do meio em que vivemos.
28

As considerações de Candido mostram como a obra de arte e a criação, especialmente


a literária, é influenciada de modo geral por fatores sociais. Ressalta, no entanto, que “os
impulsos pessoais predominam na verdadeira obra de arte sobre quaisquer elementos sociais
a que se combinem” (CANDIDO, 1965, p. 47).

Ao considerar a arte um sistema simbólico de comunicação inter-humana, pressupõe


o jogo permanente de relação da tríade indissolúvel: autor, obra e público. Segundo Candido
(1965, p. 48), “o público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois
ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador”.

O texto “A Literatura e a Vida Social” é a redação de uma conferência pronunciada


por Antonio Candido em 1957, na sociedade de Psicologia de São Paulo. Percebe-se que
Zilberman, ao construir a narrativa sobre o campo recepcional, optou por localizar os
precursores da estética da recepção no “clima intelectual” europeu. Dessa maneira, a autora
deixou de mencionar o relevante estudo de Candido, considerado à época da publicação de
Estética da Recepção e História da Literatura (1989), crítico literário de referência em nosso
país.

Com a abertura política do Brasil nos anos 80, as discussões em torno da leitura
ganharam relevância no país em resposta à crise de ensino denunciada por várias instâncias
ligadas à educação. Na introdução de sua obra Estética da Recepção e História da Literatura,
Regina Zilberman desenvolve a hipótese de que, na década de 80, ler assume um significado
tanto literal, cuja responsabilidade é da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade
que busca encontrar sua identidade pesquisando as manifestações culturais.

Segundo a autora, esse duplo enfoque alarga o alcance das investigações sobre o
leitor. Com isso, as experiências estéticas e possibilidades de interpretação envolvidas no
ato de ler e suas repercussões no ensino e no meio social ganham relevância entre os
estudiosos brasileiros.

Quase quatro décadas se passaram, e o assunto continua em pauta no país. Nesse


sentido, acredita-se que a historiografia da estética da recepção pode enriquecer a reflexão
sobre as práticas de leitura que circulam em âmbito escolar atualmente.

1.2. UMA PEQUENA EXPOSIÇÃO SOBRE A OBRA A LEITURA, DE VICENT JOUVE


Os leitores teóricos... representam de fato um avanço científico
interessante; mas seu caráter abstrato, narratário tomado no texto ou
leitor “inscrito”, arquileitor ou leitor modelo; “leitor” histórico-
29

sociológico ou consumidor visado, tudo neles parece asceticamente,


hipocritamente, fugir diante dessa obscenidade: o verdadeiro leitor possui
um corpo, lê com ele. Ocultamos essa verdade tão imperceptível! (Michel
Picard. In: A leitura como um jogo apud JOUVE, 2002, p. 47).

Em sua obra A leitura, publicada em 1993 e traduzida no Brasil em 2002, o linguista


Vicent Jouve, do Centro de Pesquisas para a Leitura Literária na Universidade de Reims
(França), traça primeiramente um panorama dos estudos sobre a recepção, validando as
conquistas dos membros da Escola de Constança, na Alemanha, para chegar à abordagem
da leitura centralizada no leitor real, inaugurada pelos ensaios de Michel Picard: La lecture
comme jeu [A leitura como jogo] (1986) e Lire le temps [Ler o tempo] (1989).

Segundo Jouve, é a expansão da pragmática, que se desenvolveu rapidamente a partir


dos anos 60, que desencadeia nos estudiosos da literatura o interesse pelos problemas da
recepção.

Para descrever o funcionamento da linguagem, a linguística acrescentou


aos dois ramos tradicionais – a “sintaxe” (relação dos signos entre si) e a
“semântica” (relação dos signos com o que eles significam) – a
“pragmática” (relação dos signos com seus usuários). [...] O que sobressai
nos estudos pragmáticos é a importância da interação no discurso. [...] Se,
no falar cotidiano, a linguagem procura produzir um efeito, esse fenômeno
só pode ser exacerbado numa obra literária na qual a organização dos
termos deve muito pouco ao acaso. Assim, entender uma obra não se limita
a destacar a estrutura ou relacioná-la com seu autor. É a relação mútua
entre escritor e leitor que é necessário analisar (JOUVE, 2002, p. 12-13).

Fundamentando-se na obra Por uma semiótica da leitura, de Gilles Thérien (1990),


o autor apresenta as cinco dimensões que envolvem o ato de ler, cujos processos podem ser
verificados nos trechos abaixo selecionados, retirados da obra de Jouve (2002, p. 17-22):

Neurofisiológico: Ler é, anteriormente a qualquer análise do conteúdo,


uma operação de percepção, de identificação e de memorização dos signos.
O olho não apreende os signos um após o outro, mas por “pacotes”.
Cognitivo: Depois que o leitor percebe e decifra os signos, ele tenta
entender do que se trata. A conversão de palavras e grupos de palavras em
elementos de significação supõe importante esforço de abstração.
Afetivo: Se a recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor,
influi igualmente – talvez sobretudo – sobre sua afetividade. As emoções
estão de fato na base do princípio de identificação, motor essencial da
leitura de ficção.
30

Argumentativo: Qualquer que seja o tipo de texto, o leitor, de forma mais


ou menos nítida, é sempre interpelado. Trata-se para ele de assumir ou não
para si próprio a argumentação desenvolvida.
Simbólico: O sentido que se tira da leitura vai se instalar imediatamente
no contexto cultural onde cada leitor evolui. [...] A leitura afirma sua
dimensão simbólica agindo nos modelos do imaginário coletivo quer os
recuse quer os aceite.

Bastante didático, Jouve responde a questões presentes no universo da sala de aula.


Quanto à legitimidade das possíveis leituras que um texto permite, ressalta que é necessário
satisfazer o critério de coerência interna (a aplicação rigorosa do modelo teórico escolhido
para análise); a coerência externa (a consideração de certos dados objetivos que se possui
sobre o texto: biográficos, históricos e outros) e identificar as coordenadas do autor
(abordagem semiótica da leitura), ou seja, aceitar o tipo de leitura que está programada pelo
próprio texto a fim de não correr o risco de interpretações equivocadas. Em comparação à
comunicação oral, leitura é comunicação diferida, mais suscetível a dúvidas. Como autor e
leitor normalmente não possuem espaço comum de referências, é necessário que o leitor
reconstrua o contexto imprescindível à compreensão da obra.

É precisamente o caráter diferido da comunicação literária que, de certa


forma, faz a riqueza dos textos. Recebido fora de seu contexto de origem,
o livro se abre para uma pluralidade de interpretações: cada leitor novo traz
consigo sua experiência, sua cultura e os valores de sua época (JOUVE,
2002, p. 24).

É perceptível a densidade dos conhecimentos necessários à leitura literária. Para que


alunos-leitores alcancem um nível satisfatório de proficiência leitora, é necessário que os
professores tenham clareza da importância desses conhecimentos e consciência de que
leitura é um conteúdo que precisa ser ensinado.

Tendo como foco a leitura dos textos narrativos, uma das contribuições que a obra
de Jouve acrescenta às práticas desenvolvidas em sala de aula é a diferenciação entre leitura
inocente e leitura crítica.

Das teorias da recepção, marcadas pela perspectiva histórica, às semiologias da


leitura, voltadas às estruturas textuais, Jouve ressalta a importância da releitura nos
itinerários literários oferecidos aos alunos.

A partir do momento em que há a preocupação de destacar os percursos de


leitura inscritos no texto, a escolha teórica fundamental opõe a leitura
31

“inocente” (isto é, a primeira leitura, aquela que segue o desenvolvimento


linear do livro) à leitura “experiente” (quando o leitor, ou melhor, o
“releitor”, pode utilizar o seu conhecimento aprofundado do texto para
decifrar as primeiras páginas à luz do desfecho) (JOUVE, 2002, p. 28).

Embora a leitura linear seja etapa indispensável do percurso de formação do leitor,


não é a única, pois nela se percebe apenas a “superfície” narrativa, o “volume” só é possível
em uma releitura, momento em que certas conexões e efeitos de sentido podem ser
percebidos. Jouve fundamenta a necessidade da releitura, sobretudo se a obra for
minimamente construída. Primeiramente, cita os estudos de Michel Charles em Retóricas da
leitura (1977), obra em que o autor se dedica aos problemas da recepção e à investigação da
força retórica dos textos, denominando-os “máquina de produzir leituras”. Por outro lado,
expõe o interesse de Roland Barthes na releitura contra a leitura linear. Opondo-se aos
costumes comerciais e ideológicos da sociedade capitalista que recomenda “jogar fora” a
história uma vez “consumida” para comprar outro livro que também será “devorado”
rapidamente, leitura é jogo e “só a releitura salva o texto da repetição, multiplica-o na sua
diversidade e pluralidade” (apud JOUVE, 2002, p. 33).

Ainda que a distinção entre autor (aquele que “escreve”) e narrador (aquele que
“conta”) seja do conhecimento básico daqueles que trabalham com textos literários, a
concepção de leitor real, com variáveis e infinitos traços psicológicos, sociológicos e
culturais, e a figura abstrata postulada pelo narrador, a quem o texto se dirige, são ainda
pouco explorados nos estudos literários em sala de aula.

Na condição de indivíduo concreto, o leitor é dificilmente teorizável, entretanto o


leitor real pode ser apreendido por meio do público do qual participa, em razão de certas
constantes da história coletiva. Já a figura virtual, o destinatário implícito para o qual o texto
se dirige, pode ser definido pelo gênero ao qual a obra pertence ou pelo vocabulário presente
na enunciação particular de cada obra.

Segundo Jouve, “essas abordagens diferentes do leitor colocam em evidência uma


fronteira muito clara entre o mundo do texto e o mundo do fora do texto. De um lado, existe
um leitor inscrito no texto, e, de outro, um indivíduo vivo que segura o livro nas mãos”
(2002, p. 37). Na relação entre esses leitores, percebemos que o primeiro é um papel proposto
ao segundo e, quando há uma divergência muito grande entre o ponto de vista que o texto
postula ao destinatário, o outro se recusa a aceitá-lo, fechando o livro.
32

Dada a insuficiência dos modelos de destinatários teóricos (do “leitor implícito” de


Iser ao “leitor modelo” de Eco) surge o leitor real de Michel Picard (1989). Segundo Jouve
(2002, p. 49), “o leitor real, longe de ser desencarnado, é uma pessoa inteira que, como tal,
reage às solicitações psicológicas e à influência ideológica do texto”.

Em sua obra La lecture comme jeu [A leitura como um jogo], publicada em 1986,
Michel Picard propõe encontrar em todo leitor três instâncias: o “ledor”, o “lido” e o
“leitante”. Segundo definição do autor, o primeiro é a parte do indivíduo que, segurando o
livro nas mãos, mantém contato com o mundo exterior; o segundo é o inconsciente do leitor
que reage às estruturas fantasmáticas do texto; e o terceiro é uma espécie de secundaridade
crítica que se interessa pela complexidade da obra. Dessa maneira, a leitura “se apresenta
como um jogo complexo entre três níveis de relação” (PICARD, 2002, p. 50).

Essa tripartição, apesar de interessante, é considerada por Jouve um modelo que


apresenta alguns problemas e, portanto, deve ser completado.

Se a existência do “ledor” é incontestável, o conceito contudo é pouco


operatório para uma análise estritamente textual. Da mesma forma, o
caráter passivo do “lido” não é evidente: entre a atitude distanciada e o
envolvimento fantasmático, parece existir um termo intermediário (para
Picard, é na relação “ledor”/”lido” que é preciso procurá-lo. Enfim, se o
“leitante” se define pelo recuo crítico em relação ao texto, certamente seria
preciso distinguir diferentes tipos de “distanciação” (JOUVE, 2002, p. 51).

Jouve abre mão do conceito de “ledor”, melhora a definição de “leitante” e extrai do


conceito de “lido” o de “lendo”. Quanto ao “leitante”, define-o com mais precisão, como
instância crítica consciente de que o texto é uma construção cujo arquiteto é o autor o qual
pode ser percebido de duas formas:

é tanto a instância narrativa que preside à construção da obra quanto a


instância intelectual que, por intermédio do texto, se esforça por transmitir
uma “mensagem”. O “leitante” pode assim ser desdobrado em um “leitante
brincando” (o qual procura adivinhar a estratégia narrativa do texto) e um
“leitante interpretando” (o qual visa decifrar o sentido global da obra)
(JOUVE, 2002, p. 52).

Por outro lado, o “lendo” apreende o universo textual sem considerar a participação
do autor. Aprisionado pela ilusão referencial que considera o tempo da leitura e o mundo do
texto como um mundo que existe, o “lendo” é essa parte do leitor que esquece a natureza
33

linguística do texto e mergulha, por um momento, no que é contado no texto: angustia-se,


entristece-se, revolta-se e, às vezes, chega a chorar. Segundo Jouve (2002, p. 52),

Existe, de fato, um nível de leitura em que, por meio de certas “cenas”, o


leitor reencontra uma imagem dos seus próprios fantasmas. Assim, de fato,
ele é que é “lido” pelo romance: o que está em jogo na leitura é a relação
do indivíduo com ele mesmo, de seu eu com o seu inconsciente”.

A obra de Jouve, A leitura, recupera de modo acessível as contribuições teóricas de


importantes estudiosos da recepção como Iser, Eco e Barthes, entre outros, ilustrando-os
com análises interessantíssimas de obras representativas da literatura ocidental. Além disso,
o autor apresenta as reflexões teóricas de Michel Picard, professor da Universidade de
Reims, cuja obra - A leitura como um jogo – é destacada por Jouve pela tenta tentativa de
superar o leitor abstrato das teorias recepcionais que o antecedem.

No entanto, as considerações teóricas de M. Picard sobre o leitor real, mesmo depois


de alguns ajustes operados por Jouve, mostram-se insuficientes, e é provável que as
inusitadas nomenclaturas “ledor”, “lido” e “leitante” pouco circulam entre aqueles
interessados em estudar a leitura, o papel do leitor e sua relação com os textos literários.

1.3. BNCC: UMA PROPOSTA FORMADORA DE LEITORES PARA O SÉCULO XXI

Compartilhar o florescer do conhecimento traz a cumplicidade que deve ser


própria das relações na escola. Uma cumplicidade questionadora em face ao
desconhecido e ao imponderável que faz da aprendizagem algo significativo
e dinâmico: uma travessia. (Cesar Callegari. In: O vento e a nau dos criativos:
importância e riscos da BNCC).

A BNCC (Base Nacional Comum Curricular), homologada em 20 de dezembro 2017, é


um documento de caráter normativo que se aplica à Educação em âmbito nacional e deve ser
tomado como referência obrigatória para a formulação dos currículos escolares dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, servindo de norteador das propostas pedagógicas das
instituições escolares públicas e privadas. Nasce da necessidade de aprimoramento na Educação
Básica em todo o país que vem sendo discutida desde 1996, com a aprovação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), cujo Artigo 9º explicita a responsabilidade
da União em definir as aprendizagens essenciais, e não apenas os conteúdos mínimos a ser
ensinados nas escolas:
34

Inciso IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o


Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para
a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio,
que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo
a assegurar formação básica comum (BRASIL, 1996, grifo
nosso).

Embora a BNCC apresente mudanças significativas nas diretrizes para a Educação


Básica, afinadas com as recentes reflexões sobre o papel da escola, do ensino e da aprendizagem
em tempos pautados pela cultura digital, não significa uma ruptura total com outros documentos
de caráter obrigatório que anteriormente serviram de orientadores para a Educação no Brasil,
como por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), publicados no final dos anos
noventa.

As novidades da BNCC vêm anunciadas na Introdução do documento, com destaque


para as 10 Competências Gerais que os estudantes brasileiros devem adquirir ao longo do
percurso de escolaridade básica, os pilares norteadores do ensino e aprendizagem nas escolas.
Nesse documento,

competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e


procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes
e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno
exercício da cidadania e do mundo do trabalho (BRASIL, 2018, p. 6, grifo
nosso).

Ao explicitar as competências gerais, declara – de modo evidente – que as instituições de


ensino devem atentar para a formação integral dos estudantes, ou seja, devem oferecer uma
educação que contemple todas as dimensões do conhecimento humano, preparando-os para
atuar como cidadãos do século XIX. Tendo em vista as demandas do atual contexto, a BNCC
sintetiza as competências necessárias à formação integral dos estudantes:

No novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural,


comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo,
colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o
acúmulo de informações. Requer o desenvolvimento de competências para
aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível,
atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas
digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para
tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar
soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades (BRASIL,
2018, grifo nosso).
35

Trata-se da utilização de saberes para dar conta das demandas diárias, respeitando
princípios universais e éticos, que devem ser incorporados às práticas pedagógicas de modo
planejado, transversalizados nos diferentes componentes curriculares – antigas disciplinas.
Desse modo, tanto as competências específicas de cada uma das áreas do conhecimento
(Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso) como
as habilidades essenciais de cada um dos componentes curriculares (antigas disciplinas) devem
estar atrelados ao desenvolvimento das competências gerais, cuja intenção é a de formar um
repertório de saberes que garanta os direitos de aprendizagem e desenvolvimento ao longo dos
nove anos do Ensino Fundamental.

Possivelmente, algumas dessas competências gerais já estavam incorporadas nas


práticas pedagógicas de muitos professores brasileiros, em muitas escolas, porém de modo
intuitivo e pontual; outras refletem as atuais demandas da vida em sociedade no século XIX.
Ao explicitar as competências, a BNCC evidencia claramente os conhecimentos, habilidades,
atitudes e valores ao longo da formação na escola, ressaltando a necessidade de oportunizar
situações que desafiem os estudantes a fim de que aprendam a mobilizar e aplicar todos esses
saberes na resolução de situações do dia a dia, cuja complexidade vai aumentando
progressivamente de acordo com o ano escolar.

Ao definir essas competências, a BNCC reconhece que a “educação deve


afirmar valores e estimular ações que contribuam para a transformação da
sociedade, tornando-a mais humana, socialmente justa e, também, voltada
para a preservação da natureza” (BRASIL, 2013)2, mostrando-se também
alinhada à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização
das Nações Unidas (ONU)3. (BRASIL, 2018, p. 6).

Vale ressaltar que enfoque na aprendizagem por Competências e Habilidades está em


sintonia com as avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação

2
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Caderno de Educação em
Direitos Humano – Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais. Brasília: Coordenação Geral
de Educação em SDH/PR: Direitos Humanos: Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos
Humanos, 2013. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=32131-educacao-
dh-diretrizesnacionais-pdf&Itemid=30192 >. Acesso em: 11 jul. 2020.
3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o

Desenvolvimento Sustentável. Brasília: ONU Brasil, 2015. Disponível em:


<https://nacoesunidas.org/pos2015/ agenda2030/>. Acesso em: 20 jul. 2020.
36

de Alunos (Pisa) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da
Educação para a América Latina (LLECE).

Transcrevemos, integralmente, as 10 competências gerais, da mesma maneira como


foram apresentadas na BNCC.

Competências Gerais da Base Nacional Comum Curricular


1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre
o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade,
continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva.
2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das
ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a
imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar
hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive
tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das
locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da
produção artístico-cultural.
4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como
Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como
conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se
expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em
diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.
5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e
comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas
práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e
disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e
exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se
de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações
próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da
cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência
crítica e responsabilidade.
7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para
formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que
respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o
consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento
ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional,
compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as
dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.
37

9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação,


fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de
grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade,
flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em
princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários
(BRASIL, 2018, p. 9-10, grifo nosso).

Percebe-se que algumas dessas competências ganham destaque dentro do conjunto por
não fazerem parte de outros documentos anteriores, por exemplo a competência 5. Com o uso
das tecnologias cada vez mais incorporados à rotina dos jovens, os modos de ler e de se
comunicar foram alterados e demandam diferentes letramentos que levem em conta não só as
dimensões estéticas como também as dimensões éticas e políticas que envolvem desde a
produção à circulação de diferentes gêneros na web. No bojo dessa demanda, a BNCC ressalta
a necessidade de proporcionar aos alunos experiências em que possam desenvolver habilidades
de curadoria para que saibam lidar de modo crítico com os conteúdos que circulam
“livremente” na internet, considerando os critérios editoriais para selecionar o que é bom,
confiável e adequado na web.

Ao considerar os novos e multiletramentos, a BNCC destaca também um novo olhar


para o conceito de criatividade. Embora abarque todas as áreas do conhecimento, a
competência 2 explicita a importância em se oferecer aos estudantes possibilidade de uma
atuação mais ampla como usuários da língua e das linguagens, conferindo-lhes o papel de
designer, denominação que alguns autores, segundo a BNCC, atribuem a “alguém que toma
algo que já existe (inclusive textos escritos), mescla, remixa, transforma, redistribui,
produzindo novos sentidos” (BRASIL, 2018, p. 66). Essa nova consideração para o exercício
da criatividade evidencia o diálogo da BNCC com as pautas contemporâneas que incentivam a
reciclagem, apropriação e redistribuição como premissas importantes para os modelos de
cidades criativas e economias criativas, conceitos que valorizam a diversidade cultural e
promovem o desenvolvimento humano sustentável. O primeiro, preconizado pelo urbanista
inglês Charles Landry, “defende que a crise nas cidades contemporâneas pode ser solucionada
com o estímulo à curiosidade, imaginação e criatividade de seus cidadãos, gerando novas
oportunidades e soluções para os problemas urbanos” (DEPINÉ, 2018), já o segundo “abrange
os ciclos de criação, produção e distribuição de bens e serviços que usam criatividade, cultura
e capital intelectual como insumos primários” (SEBRAE, 2020). Percebe-se uma preocupação
38

da BNCC em formar estudantes que estejam preparados para atuar na vida real como sujeitos
capazes de transformar o mundo em um lugar melhor (DEPINÉ, 2018; SEBRAE, 2020).

Outros aspectos relevantes que compõem as 10 competências gerais expressam


necessidades contemporâneas urgentes. Em tempos de deslocamentos, em que as fronteiras
físicas e virtuais fazem parte dos conflitos que se destacam no cenário global, os direitos
humanos, o respeito à diversidade e a empatia, por exemplo, são valores que não podem estar
ausentes das pautas escolares, devem fazer parte das aprendizagens essenciais. Demandam um
trabalho intencional e continuado nos diferentes componentes curriculares, incorporados ao
currículo:

Cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas, em suas


respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar aos currículos e
às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam
a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma
transversal e integradora (BRASIL, 2018, p. 19).

Quanto às competências 8, 9 e 10, nota-se a preocupação em dar relevância aos aspectos


socioemocionais que tanto impactam na aprendizagem e, consequentemente, na qualidade de
vida e no futuro do estudante. O desenvolvimento intelectual deixa de ser privilegiado em
detrimento dos desenvolvimentos físico e emocional. Com isso, a BNCC reforça a importância
ao desenvolvimento global do estudante, indicando a necessária superação da fragmentação do
conhecimento, através do estímulo à sua aplicação na vida real a fim de que os conhecimentos
façam sentido para os alunos.

O certo é que a importância que a BNCC dá à Educação Integral impõe mudanças de


paradigmas no processo ensino e aprendizagem, desafiando professores a se reinventarem.
Como o conceito de Educação Integral pode ser entendido de diferentes maneiras ao longo da
história educacional brasileira, vale explicitar como é entendido no documento:

Independentemente da duração da jornada escolar, o conceito de educação


integral com o qual a BNCC está comprometida se refere à construção
intencional de processos educativos que promovam aprendizagens
sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos
estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea. Isso
supõe considerar as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas
juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir (BNCC, 2017. p. 12).

Entender como a BNCC foi estruturada, é de fundamental importância para repensar os


caminhos trilhados junto aos alunos, ajuda a repensar o processo de interação entre os atores do
39

processo, redimensionando os papéis, transformando o aluno em protagonista do processo,


sujeito ativo da aprendizagem e do conhecimento. Para que as práticas pedagógicas alcancem
o desenvolvimento das competências, os professores devem ser capazes de criar situações de
aprendizagem que considerem o contexto dos estudantes, a realidade da comunidade escolar,
oferecendo aos alunos cotidianamente oportunidades de participar ativamente do processo
pedagógico para que a educação faça sentido. É imprescindível que as aulas proporcionem
momentos de metacognição, pois os estudantes precisam saber o porquê de estudarem
determinados conteúdos nos diferentes componentes curriculares e qual é a relação desses
conteúdos com as competências gerais. Segundo Callegari (2019, página 170), consultor
educacional que presidiu a Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular,

Fazer educação nos tempos de hoje exige muito mais do que armazenar e
transmitir informações. Os novos tempos cobram de professores e escolas a
capacidade de imaginar e desenvolver propostas curriculares que superem a
costumeira fragmentação disciplinar, na esteira de uma visão articulada,
interdisciplinar e transdisciplinar.

As diferentes realidades escolares refletem as desigualdades do país. Garantir


aprendizados essenciais e ter abertura para elaborar currículos que atendam as singulares
demandas de cada comunidade escolar é um avanço desse novo documento. Ainda que a Base
apresente um modelo de organização dos conhecimentos essenciais e específicos para cada ano
escolar ou bloco de anos, é necessário enfatizar que “não devem ser tomados como modelo
obrigatório para o desenho dos currículos” (BRASIL, 2018, p. 29). Para tanto, a sua
implementação requer uma participação ativa dos professores, pois serão eles os agentes
transformadores da educação, contudo muitos não se consideram incluídos nesse processo, já
que não são consultados durante a elaboração de novo projeto curricular, atitude que não
combina com o que é proposto pelo documento. Segundo Callegari (2019, p. 170), isso precisa
mudar,

É importante defender os espaços de autonomia e afastar qualquer tipo de


centralismo autoritário, raso e meramente utilitarista da educação. É preciso
resistir. Uma resistência ativa que signifique assumir a tarefa de propor e
defender propostas curriculares e projetos pedagógicos que sejam a expressão
do pensamento colaborativo e das escolhas próprias dos educadores no
exercício de sua autonomia.

Sabe-se, no entanto, que a precária formação de muitos professores brasileiros pode


dificultar a leitura e entendimento dos pressupostos fundamentais da BNCC, portanto serão
40

necessários investimentos na formação de professores. Nenhuma política curricular será bem


sucedida sem trabalhar a fundo a questão da formação docente, bem como não pode deixar de
haver diálogo com todos os profissionais envolvidos na educação. O Estado deverá cumprir o
seu papel a fim de minimizar as deficiências formativas de muitos profissionais, mas são as
escolas que devem se organizar para que os docentes tenham a oportunidade de estudar juntos
o novo documento, oferecendo-lhes outros materiais de apoio a fim de inteirá-los das novas e
diferentes metodologias. Por um lado, percebe-se que muito já se escreveu sobre a BNCC. Por
outro, tendo em vista as desigualdades sociais que se refletem na educação, é provável que esse
material ainda não tenha chegado satisfatoriamente às mãos de boa parte dos educadores.
Com as facilidades oferecidas pelos meios digitais, é possível encontrar facilmente na
web materiais de apoio interessantes sobre a Base. No site do MEC (Ministério da Educação),
há disponível bons textos que podem subsidiar o entendimento sobre os referenciais que
embasam a BNCC. As publicações da Nova Escola também podem contribuir de modo
considerável no entendimento do documento. É importante que suportes teóricos que
dialoguem com os pressupostos da BNCC cheguem às mãos dos educadores. Nessa perspectiva,
o conhecimento das Metodologias Ativas é de fundamental relevância.

Para que os alunos aprendam com autonomia, é necessário que saibam construir seus
conhecimentos de forma individual e colaborativa. Amparada em teorias de vários pensadores
de relevância ligados à educação, entre eles Lev Vygotsky e Paulo Freire, cujos escritos
sinalizam diferentemente que o aprendizado se dá de maneira ativa a partir do contexto de cada
aprendiz, as Metodologias Ativas facilitam o desenvolvimento de importantes competências,
pois oferecem caminhos para um aprendizado criativo, autônomo e colaborativo. Discutidas
desde o século XX, ganharam relevância no início do século XX, dada a urgência em se
repensar a escola em uma época em que as tecnologias digitais modificaram e ampliaram
significativamente os modos de leitura e de produção de conhecimentos. Com diversas
publicações em que defende transformações na educação, José Moran, justifica as metodologias
ativas em sala de aula:

As pesquisas atuais em neurociências comprovam que o processo de


aprendizagem é único e diferente para cada ser humano, e que cada um
aprende o que é mais relevante e faz sentido para si, o que gera conexões
cognitivas e emocionais. Também mostra como é importante a movimentação
para aprender, envolver as crianças em todos os sentidos: visual, espacial,
auditivo e corporal. [...] Estamos em um processo de transição da escola-
biblioteca para escola-laboratório. Na escola-biblioteca, o fundamental era o
conhecimento organizado e transmitido; na escola-laboratório, é aprender
41

fazendo, experimentando, vivenciando, refletindo e orientando (MORAN,


2019, p.10).

Além da utilização de variadas estratégias de ensino e aprendizagem, intencionais e


sistematizadas, é válido reafirmar a importância do diagnóstico dos conhecimentos prévios dos
estudantes. Práticas comprometidas com aprendizagens ativas devem sempre considerar o que
os alunos sabem sobre determinados conteúdos, cuja natureza – procedimental, conceitual,
factual ou atitudinal – indicará caminhos diferentes para a condução dessa etapa fundamental
que antecede o desenvolvimento de atividades comprometidas com metodologias ativas.

Para tanto, a estrutura da BNCC foi pensada de forma a explicitar os insumos que
permitam a construção de currículos significativos a fim de que o ensino e aprendizagem
ganhem mais sentido. Abrangendo todas as etapas da Educação Básica, após a apresentação das
competências gerais, o documento expõe a organização de cada uma das etapas, a começar pela
Educação Infantil que se divide em três momentos (bebês, crianças bem pequenas e crianças
pequenas), expondo os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para cada um desses
momentos. De acordo com os eixos estruturantes da Educação Infantil (interações e
brincadeiras), foram elencados seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento que devem ser
garantidos às crianças até completarem 5 anos e 11 meses: conviver, brincar, participar,
explorar, expressar e conhecer-se. Atrelados a esses direitos, foram definidos cinco campos de
experiências para os quais foram explicitados os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento
para cada uma das três etapas da Educação Infantil, identificados por um código alfanumérico.
É interessante perceber a preocupação da Base com a formação integral da criança desde os
pequeninos que iniciam sua trajetória escolar nas creches brasileiras.

A estrutura da Base para o Ensino Fundamental segue esse mesmo desenho. Como
corresponde a etapa mais longa da Educação Básica, ao longo desse percurso, os alunos passam
por muitas transformações biológicas, psicológicas, cognitivas, sociais e emocionais. Iniciam
essa etapa ainda pequenos, aos 6 anos de idade, e só terminam aos 14 anos, quando já se
tornaram adolescentes. Subdividindo-se em duas etapas, Anos Iniciais e Anos Finais, o
documento destaca aspectos importantes do desenvolvimento humano que acontecem no
decorrer dessas duas etapas, esclarecendo assim a pertinência dos propósitos da Base que, de
modo espiralado, ressalta a importância em garantir, na elaboração de currículos e propostas
pedagógicas, um percurso contínuo de aprendizagens na transição entre esses dois momentos
do Ensino Fundamental:
42

Como bem destaca o Parecer CNE/CEB nº 11/2010, “os alunos, ao mudarem


do professor generalista dos anos iniciais para os professores especialistas dos
diferentes componentes curriculares, costumam se ressentir diante das muitas
exigências que têm de atender, feitas pelo grande número de docentes dos anos
finais” (BRASIL, 2010, apud BRASIL, 2018, p. 59).

A organização em cinco Áreas do Conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da


Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso) que “favorecem a comunicação entre os
conhecimentos e saberes dos diferentes componentes curriculares” (BRASIL, 2010, apud
BRASIL, 2018, p. 27). A Área de Linguagens, para a qual foram elaboradas seis competências
específicas, abarca quatro componentes curriculares: Língua Portuguesa, Arte, Educação Física
e, no Ensino Fundamental – Anos Finais, Língua Inglesa. As diferentes linguagens ganham
destaque no documento e passam a ser consideradas como objetos de conhecimento escolar,
afinal as atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes
linguagens:

O importante é que os estudantes se apropriem das especificidades de cada


linguagem, sem perder a visão do todo no qual elas estão inseridas. Mais do
que isso, é relevante que compreendam que as linguagens são dinâmicas, e
que todos participam desse processo de constante transformação (BRASIL,
2018. p. 63).

Como já foi mencionado, no componente curricular Língua Portuguesa, percebe-se uma


continuidade e atualização da perspectiva enunciativo-discursiva que já fazia parte dos PNCs.
Na Base, todos os conteúdos, habilidades e objetivos foram organizados a partir dos textos,
tendo em vista também as diferentes esferas de circulação e uso da linguagem e os novos
gêneros textuais cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos. Quanto ao embasamento
teórico, percebe-se orientações que sugerem a incorporação dos recentes estudos sobre a teoria
dos gêneros, análise do discurso, semiótica, pragmática e gramática funcional às práticas de
linguagem, por se tratar de teorias mais afinadas com o desenvolvimento das capacidades de
leitura, produção e tratamento das linguagens de maneira reflexiva e contextualizada. Roxane
Rojo, professora do Departamento de Linguística Aplicada da Universidade Estadual de
Campinas, posicionou-se favoravelmente sobre as mudanças trazidas pelo BNCC:

A Base consolida alguns conceitos que já estavam contemplados nos PCNs,


como a importância de se basear o estudo da língua nas práticas de linguagem.
Por outro lado, ela traz componentes novos, relacionados ao impacto da
tecnologia, às competências e habilidades que precisarão ser desenvolvidas
nesse novo contexto. E a inclusão dos novos gêneros expressa isso. Na minha
43

opinião, a Base traz posicionamentos, nas competências e habilidades,


condizentes com o momento histórico e social que estamos vivendo. É claro
que isso também vai impactar o papel do professor, que deve ser o de alguém
que compartilha conhecimento. Em muitos casos, o professor não será o único
especialista no assunto, os alunos vão trazer seus conhecimentos e haverá uma
troca, a meu ver, muito proveitosa (ROJO, [2018?]).

Os quatro eixos – Leitura, Produção de Texto, Oralidade e Análise Linguística e


Semiótica – correspondem às práticas de linguagem, situadas em cinco campos de atuação em
que se realizam: Campo da vida cotidiana (somente anos iniciais), Campo artístico-literário,
Campo das práticas de estudo e pesquisa, Campo jornalístico-midiático e Campo de atuação na
vida pública, que aparecem juntos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, com a
denominação Campo da vida pública. Assim como uma mesma habilidade pode fazer parte de
diferentes eixos, por exemplo Leitura e Produção de Texto, as práticas de linguagem podem
transitar por mais de um campo de atuação. Alguns objetos do conhecimento que pertencem ao
eixo Análise Linguística e Semiótica - como por exemplo “variação linguística”, “fono-
ortografia”, “léxico/morfologia” - podem estar presentes em todos os campos de atuação.
Segundo a BNCC,

É preciso considerar, então, que os campos se interseccionam de diferentes


maneiras. Mas o mais importante a se ter em conta e que justifica sua presença
como organizador do componente é que os campos de atuação permitem
considerar as práticas de linguagem – leitura e produção de textos orais e
escritos – que neles têm lugar em uma perspectiva situada, o que significa,
nesse contexto, que o conhecimento metalinguístico e semiótico em jogo –
conhecimento sobre os gêneros, as configurações textuais e os demais níveis
de análise linguística e semiótica – deve poder ser revertido para situações
significativas de uso e de análise para o uso (BRASIL, 2018, p. 85).

Vale destacar o amplo tratamento que o documento dá às práticas leitoras, cuja


abordagem valoriza a importância de práticas de leitura significativas que ampliam
substancialmente o letramento, evidenciando não somente a leitura do texto escrito como
também a leitura de imagens estáticas (foto, pintura, desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou
em movimento (filmes, vídeos etc.) e ao som (música) que acompanha e cossignifica muitos
gêneros digitais. Esse tratamento vem explicitado pela descrição das dimensões inter-
relacionadas às práticas de uso e reflexão, tais como:

Reconstrução e reflexão sobre as condições de produção e recepção dos textos


pertencentes a diferentes gêneros; Dialogia e relação entre os textos;
Reconstrução da textualidade; Reflexão crítica sobre as temáticas tratadas e
44

validade das informações; Compreensão dos efeitos de sentido provocados


pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos; Estratégias e
procedimentos de leitura e Adesão às práticas de leitura (BRASIL, 2018. p.
73-74).

As competências específicas de Língua Portuguesa, abaixo anexadas, perpassam todos


os outros componentes curriculares. De modo geral, o desenvolvimento da competência leitora,
saber analisar informações, argumentos e opiniões, bem como a mobilização das práticas da
cultural digital são essenciais para o desenvolvimento das competências específicas de outros
componentes curriculares. Nesse sentido, a organização do ensino por áreas do conhecimento
e definição das dez competências gerais na BNCC auxilia professores e estudantes a tornar
comuns as práticas de leitura e escrita em todas as aulas, desmistificando a ideia de que tais
práticas restringiam-se, enquanto objeto de estudo, às aulas de Língua Portuguesa.

Competências Específicas de Linguagens para o Ensino Fundamental


1. Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e
cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo-as e valorizando-as como
formas de significação da realidade e expressão de subjetividades e
identidades sociais e culturais.
2. Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas, corporais e
linguísticas) em diferentes campos da atividade humana para continuar
aprendendo, ampliar suas possibilidades de participação na vida social e
colaborar para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e
inclusiva.
3. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras,
e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar
informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e
produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à
cooperação.
4. Utilizar diferentes linguagens para defender pontos de vista que respeitem
o outro e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o
consumo responsável em âmbito local, regional e global, atuando criticamente
frente a questões do mundo contemporâneo.
5. Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas
manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas
pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de
práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural,
com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas.
6. Compreender e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação
de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais
(incluindo as escolares), para se comunicar por meio das diferentes linguagens
45

e mídias, produzir conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos


autorais e coletivos (BRASIL, 2018. p. 65).

Os referenciais explicitados pela BNCC foram concebidos, originalmente, com o


objetivo de colaborar na superação das dificuldades históricas enfrentadas pela educação no
país, no entanto, para que sejam aplicados satisfatoriamente é necessário que, segundo Callegari
(2019, p. 168), “educadores e escolas consigam produzir um projeto curricular capaz de colocar
em prática o seu potencial criativo, inovador e encantador, tão necessários para estimular e
garantir a aprendizagem dos estudantes”. Essa liberdade exigirá um contínuo processo de
avaliação e planejamento, colocando todos os envolvidos em um constante aprendizado: “as
competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos” (BRASIL, 2018, p. 9). Sem
o engajamento necessário das escolas e, sobretudo, dos educadores, todo o potencial criativo
que permeia a Base será desconsiderado, e os referenciais que a embasam serão tomados como
mais um documento normativo que engessa os currículos. Segundo Callegari (2019, p. 169),
“Assusta perceber, aqui e ali, o uso abusivo da expressão ‘alinhamento à Base’ como uma forma
de submissão da escola a um modelo curricular único universal”. É necessário resistir em prol
da diversidade e da riqueza de nossa realidade educacional para que o espaço escolar não
continue carecendo de sentido.

Alguns de nós que participamos ativamente da elaboração da nova Base


Nacional Comum Curricular sempre sustentamos essa visão. Imaginamos a
BNCC como uma espécie de “sopro de possibilidades” para o processo crítico
e criativo de professores, seus estudantes e suas escolas. Algo que, como o
vento, possa atravessá-los e inspirá-los nas descobertas do conhecimento. Por
isso, o tempo todo no texto aprovado, insistimos em afirmar que Base não é
currículo. Não é currículo único, tampouco currículo mínimo. E, assim, jamais
deve ser tomada como receita pronta e modelo obrigatório (CALLEGARI,
2019, p. 167).

Na esteira do que nos diz Callegari, torna-se imperativo reafirmar que a BNCC não é
currículo, mas é marco regulatório dele, e que este deverá ser fruto da leitura e audição de
muitas vozes, todas as que compõe um determinado espaço, uma determinada comunidade,
para que esteja a serviço de uma educação de qualidade social.

Uma experiência a ser lembrada é a do estado de São Paulo, que homologou seu
Currículo para o Ensino Fundamental e está trabalhando na etapa do Ensino Médio. Para tanto,
entre os meses de março e abril de 2020, fez uma consulta pública, online, para ouvir estudantes
46

e profissionais da educação, após apresentar sua proposta de Ensino Médio com a possibilidade
de escolha do itinerário formativo que mais atenda às expectativas e as aptidões de estudantes.
47

2. CARRASCOZA E A POÉTICA DO COTIDIANO: ENTRE ENCANTOS E


DESALENTOS, NARRATIVAS QUE HUMANIZAM

Uma leitura preliminar do corpus permite apresentar algumas facetas relevantes da


obra de João Carrascoza cujo ponto de partida se dá por citações do próprio autor.

“A minha literatura, ao buscar o grão no grande, se prende ao valor do


precário, à significância do que é quase nada” (CARRASCOZA, 2015, grifo nosso). As
narrativas de ação, muitas vezes, pautam as escolhas dos livros que serão indicados pela
escola, já que os professores, de modo geral, acreditam que os alunos não têm disposição
para ler narrativas mais lentas e introspectivas. Pensar que todos os leitores são iguais e
oferecer a eles um cardápio garantido pelos traços gerais da faixa etária reduz possibilidades
de trabalhos que ultrapassem as fronteiras interiores de cada aluno. A escolha de obras para
compor o repertório formativo dos jovens na escola deve considerar uma das Competências
Específicas de Língua Portuguesa, relacionada à literatura: “Envolver-se em práticas de
leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do senso estético para fruição,
valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como formas de acesso às
dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o potencial transformador
e humanizador da experiência com a literatura” (BRASIL, 2018, p. 87) com a intenção de
desenvolver uma importante habilidade do Campo Artístico-Literário que diz respeito aos
alunos do 6º ao 9º ano:
Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura e por
outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam
com seu universo de expectativas, que representem um desafio em
relação às suas possibilidades atuais e suas experiências anteriores de
leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre
os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor. (BRASIL,
EF69LP49, p. 159, grifo nosso).

Nas narrativas de Carrascoza com que trabalharemos, os alunos não serão motivados
a percorrer as páginas com a agitação de quem deseja saber o que vai acontecer depois, e
isso não é ruim, não significa que esses textos não despertem o gosto pela leitura. Ao
contrário da corrida frenética por uma enorme quantidade de páginas, optou-se por textos
que potencializam um diálogo dos leitores com o mundo interior dos protagonistas. O
primeiro conto que será trabalhado minuciosamente com os alunos, “Aquela água toda”,
evidencia o tempo vagaroso da relação do protagonista com o mar e consigo mesmo:

Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro
que até doía pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas
48

se davam a conhecer, o menino e o mar. E, naquela mesma tarde,


misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava daquela saciedade: ele nem
pedira sorvete, milho verde, refrigerante. O menino comia a sua vivência
com gosto, distraído de desejos, só com a vontade de mar
(CARRASCOZA, 2012, p. 15).

A seguir, uma amostra de como trabalharemos os textos.

“Como leitor, encanta-me a imagem inesperada, a dança das palavras


surpreendendo o intelecto, como dizia Pound” (CARRASCOZA, 2015, grifo nosso). Se,
no plano do conteúdo, a literatura de Carrascoza se alimenta do instante raro que pode ser
captado no comum das horas, no que se refere à construção formal, o escritor procura
traduzir o movimento interior de seus protagonistas de modo igualmente singular,
surpreendendo o leitor com arranjos estilísticos que rompem as fronteiras entre prosa e
poesia. O contato com a prosa poética é uma oportunidade para o aprendizado das figuras
de linguagem ancorado na construção do texto, diferentemente de atividades didáticas
artificiais, em geral pouco eficientes, que buscam exemplos em retalhos de textos.

“Um dia, alguém disse a ele, a pele, apesar de suas três camadas, não prima pela
profundidade, a pele é rasteira” (CARRASCOZA, 2016, p. 9, grifo nosso). As camadas
mais profundas dos textos literários são muitas vezes acessadas por inferência, que é um
exercício constante, já que nem sempre o que se mostra na superfície do texto é suficiente.
Carrascoza acredita em uma outra leitura que antecede a leitura dos textos escritos, acredita
que é essencial saber ler o mundo e, sobretudo, as pessoas. Acredita-se que os textos
selecionados possam despertar a sensibilidade dos alunos para enxergarem além das
aparências.

“A literatura cutuca feridas, nossas ou alheias, e, nesse sentido, é um ato corajoso.


É uma falta de medo perante a dor” (CARRASCOZA, 2011a, grifo nosso). Assim como
a vida, a grande literatura não se esquiva de incluir temas que proporcionam aos leitores o
contato com asperezas da condição humana. Nesse sentido, os protagonistas de Carrascoza
experimentam desde pequenas dificuldades às grandes dores que perpassam a condição
humana: não raro a morte faz parte dos conflitos em suas narrativas. No entanto, essas
tristezas, traduzidas liricamente, apelam para solidariedade do leitor, atualizam a empatia
que há dentro de cada um de nós.

[…] o tempo, a gente não percebe o tempo indo, senão quando ele já se foi,
quando se misturou às águas de outro tempo que vem vindo, este também
se deslizando no seu seguinte, líquido que se milparte e, depois, se junta,
49

como uma gota de mercúrio, a gente misturando o que fomos ao que


seremos (CARRASCOZA, 2018, p. 96).

2.1. NARRADORES MERGULHADOS NO TEMPO INTERIOR DOS


PROTAGONISTAS

Pensem nos contos que não puderam esquecer e verão que todos eles têm
a mesma característica: são aglutinantes de uma realidade infinitamente
mais vasta que a do seu mero argumento, e por isso influíram em nós com
uma força que nos faria suspeitar da modéstia do seu conteúdo aparente,
da brevidade do seu texto. [...] Todo conto perdurável é como a semente
onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá
seu nome em nossa memória (Julio Cortazar. Alguns aspectos dos contos).

Carrascoza pertence a uma geração plural de escritores. Entre tantas possibilidades


estéticas e temáticas, diferentes recortes de mundo, destaca-se pela preocupação evidente
com as inter-relações humanas que, segundo o autor, nascem primeiramente de uma leitura
atenta que o escritor faz de si mesmo, alargando-se na observação cuidadosa das relações
cotidianas que envolvem o outro. Como narrador, seu olhar atento à introspecção de seus
protagonistas conduz o leitor ao interior de cada um deles, inseridos nos pequenos dramas
das relações cotidianas, principalmente aquelas que envolvem as relações familiares.

O primeiro conto da antologia, cujo título nomeia o conjunto de maneira sugestiva –


Aquela água toda, flagra a experiência do protagonista no seu reencontro com o mar. A
situação inicial capta as expectativas do garoto a partir do momento em que a mãe anuncia
aos filhos a notícia inesperada da viagem que fariam no dia seguinte para a mesma praia que
conheceram em ano anterior. Apesar da naturalidade com que a mãe dá a notícia, o
protagonista é fortemente impactado pela possibilidade de rever o mar novamente e mal
consegue dormir. De modo magistral, o narrador consegue evidenciar os diferentes tempos
– cronológico e psicológico - que estão em jogo ao longo do enredo, a começar pelos
momentos que antecedem a chegada da família à praia. Exteriormente, a dinâmica apressada
de todos na imediata preparação de malas, O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou pela
casa; interiormente, o menino flutuava no silêncio, de tão feliz, resgatava sinestesicamente
na memória a sua experiência anterior com o mar, imerso em outras águas da vida, num
instante azul-azul.

Nas duas diferentes edições da obra, tanto na primeira, da CosacNaify, como na


recente edição da Alfaguara, a diagramação do texto insinua a passagem do tempo, as etapas
50

cronológicas do enredo. Entre a notícia da viagem e o amanhecer, no outro dia, há um espaço


maior entre os parágrafos, assim como há também uma separação maior quando chega ao
fim desse mesmo dia, na praia, no momento em que o sol vai diminuindo.

Era de novo o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada


à que esperava lá adiante. [...] Abriu os olhos: o sol estava ali, sólido, o
carro de portas abertas à frente da casa, o irmão em sua bermuda colorida,
a voz do pai e da mãe em alternância, a realidade a se espalhar, o mundo
bom, o cheiro de dia recém-nascido. [...] Quando percebeu, o sol era suave,
a praia se despovoara, as ondas se encolhiam. (CARRASCOZA, 2018, p.
9-15).

Essa é uma amostra de como a percepção dos recursos gráficos-espaciais precisa ser
considerada no desenvolvimento de estratégias e procedimentos de leitura em sala de aula,
pois ampliam possibilidades de refinamento da compreensão leitora. Nesse caso, os espaços
são sutis, mas se destacam aos olhos do leitor que deve se indagar sobre o sentido daquilo
que se diferencia na composição da edição de um texto e auxilia na construção de sentidos.

No entanto, nem sempre os responsáveis pela elaboração e edição de materiais


didáticos que chegam às mãos de professores e alunos entendem a importância da relação
dos recursos gráficos-espaciais com o texto verbal. Conforme anunciado na introdução, a
recente publicação didática da editora SM Geração Alpha – Língua Portuguesa traz o conto
“Aquela água toda” como primeiro texto da obra destinada aos alunos de 9º ano. Nas
atividades propostas, percebe-se a intenção de evidenciar o tempo psicológico, já que o
objetivo é trabalhar o “conto psicológico” (um desdobramento do gênero conto, segundo os
autores do material). No entanto, ao reproduzir o conto no livro didático, esses espaços que
aparecem no texto original foram suprimidos, empobrecendo o trabalho sobre tempo
narrativo que se tornaria mais rico caso os alunos conseguissem analisar a construção das
duas categorias de tempos: cronológico e psicológico.

Sabe-se que, nas narrativas de Carrascoza, o tempo é mais vagaroso porque os


conflitos giram em torno das vivências interiores dos protagonistas. O garoto da primeira
história, que não tem nome nem idade explicitados, vive intensamente o seu reencontro com
o mar. Mergulhava com gosto na água salgada e nem sentia o dia passar, nem vontade de
comer tinha: “O menino comia a sua vivência com gosto, distraído de desejos, só com a
vontade de mar” (CARRASCOZA, 2018, p 15). Quando o sol anunciou o fim do dia, a
família pegou um ônibus para retornar ao apartamento. O garoto sentou-se à janela, atento à
sua paixão, desatento de todos, até que não percebeu mais nada e cochilou. Ao acordar, viveu
51

uma experiência que durou poucos minutos, iniciática e intensa, aquela água toda em seus
olhos.

No segundo conto, “Cristina”, a voz narrativa é a do próprio protagonista que, adulto,


recupera a memória do primeiro amor, do primeiro beijo. O conto inicia com uma espécie
de preâmbulo, em que o protagonista recupera a dor que sentiu quando a prima Teresa voltou
para o Rio de Janeiro, deixando um vazio no seu cotidiano de menino do interior: “Esquecer
a prima, como quem apaga a luz do quarto, era trair meu sentimento por ela”
(CARRASCOZA, 2018, p. 19). A memória desse tempo serve para introduzir a chegada de
Cristina em sua vida: “Mas, como a chuva que espera a gente em casa para cair, Cristina
esperava a hora de me salvar. Ela estudava na minha classe e, no dia em que a percebi de
verdade...” (CARRASCOZA, 2018, p. 21).

É interessante acompanhar o protagonista recuperando na memória um tempo


distante, reconstruindo-o enquanto narrador, escutando a própria voz e a de Cristina – com
sua voz de sol - que às vezes escapa diretamente, em itálico. Essa escolha autoral de
Carrascoza para a inserção do discurso direto é responsável por efeitos de sentido diferentes
em seus contos. Em “Cristina”, o leitor tem a impressão de escutar a voz do narrador, em
primeira pessoa, construindo e reconstruindo o passado com a habilidade de um adulto que
consegue presentificar as sensações da primeira experiência amorosa e, ao inserir o discurso
direto, recupera a sua voz de menino e o encanto audível da voz de Cristina em frases curtas
e objetivas que se contrastam com a narração pormenorizada dos sentimentos ressignificados
pelo protagonista enquanto narrador.

Em “Medo”, o terceiro conto da antologia, a onisciência do narrador em 3ª pessoa


permite ao leitor um mergulho fundo nas dificuldades do protagonista, um menino que está
iniciando o percurso escolar, carregando o peso da solidão e da insegurança:

Precisava dos outros para ir além de si. E tinha medo. Nem muito nem
pouco. Do seu tamanho. Como uniforme escolar que vestia. [...] O que o
salvava era a mochila presa às costas. O peso dos cadernos e dos livros o
curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer um pouco
insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo!
(CARRASCOZA, 2018, p. 29, grifo nosso).

A fatalidade da existência opera desde o início do conto. O diálogo do narrador com


o leitor, entre outros indícios, sinaliza que não há saída para o protagonista. O conflito tem
como palco a escola, local de convivência social indispensável para o amadurecimento; para
52

alguns, é o espaço que eterniza a memória do primeiro amor; para outros, espaço de
aprendizados doloridos, uma cicatriz na memória. E o narrador vai fornecendo indícios de
que a lição daquele dia, o primeiro dia de aula do garoto, seria difícil: “Na ignorância das
horas por vir – que desejava fossem, se não tranquilas, suportáveis -, o menino passou
pelo portão em meio a outros colegas – vindos também ali para mover a roda da fortuna,
antes de serem moídos por ela – e seguiu pelo pátio até a sua sala” (CARRASCOZA, 2018,
p.31, grifo nosso). As ênfases acrescentadas aos trechos reforçam informações já destacadas
pela própria pontuação. Trata-se de informações que confirmam a onisciência do narrador,
entidade ficcional elaborada pelas mãos de um escritor que constrói o universo do
protagonista com erudição, em um registro formal em que se destaca a imagem da “roda da
fortuna”, referência à cultura clássica, habilmente incorporada ao universo cotidiano escolar,
indicando-lhe o peso do destino reservado ao menino.

Estruturado em um único parágrafo, um monobloco cinzento como a existência do


protagonista, a escolha gráfico-espacial dialoga com o conflito, cuja tensão vai aumentando
até o desfecho - um aprendizado dolorido sobre as relações humanas.

Na sequência, o pequeno conto “Grandes Feitos”. Narrativa exemplar do lirismo de


Carrascoza que consegue captar nesse texto a energia luminosa de uma manhã de sábado em
família. Se no conto anterior, os tons cinzentos predominavam - o percurso gélido até a
escola, o ambiente sufocante da sala de aula, o pátio ameaçador com uma multidão de
desconhecidos, a presença voraz de Diego -, em “Grandes Feitos”, tudo é suave e claro,
prosa poética organizada em um único parágrafo, uma cena emoldurada pela luminosidade
solar: “Um dia como aquele era quase uma dor, de tão lindo, quase não cabia no homem.
[...] E, mesmo sem abrir os olhos, a mulher sabia que lá fora – além de suas pálbebras e
das paredes – o verão fulgurava acima das casas.” (CARRASCOZA, 2018, p. 37, grifo
nosso). O sol aquece e ilumina, sinestesicamente, a existência da família que, antes mesmo
de acordar, vive umas horas de descuido, entregues à felicidade que o momento
proporcionava.

No ano da primeira publicação da obra, 2012, “Grandes feitos” foi o texto escolhido
pelo escritor para ser lido na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Exemplar
máximo do estilo lírico de Carrascoza, essa narrativa capta os movimentos silenciosos do
despertar do casal, evidenciando com delicadeza a sensualidade suave que permeia a cena
antes do filho acordar. A comunhão é intensa e se completa quando o menino acorda:

O sol se infiltrava por entre os galhos das árvores no quintal; o vento, vindo
de longe, movia suavemente as folhas. Era a mesma cena, cotidiana, mas
53

a mulher a mirava com olhos demorados, e assim as coisas ganhavam uma


nova aura – ou agora a aura podia ser vista. O menino apareceu ali,
subitamente, ainda de pijama, e ficou a ver o dia funcionando, como um
brinquedo, lá fora (CARRASCOZA, 2018, p. 40).

As palavras são escolhidas uma a uma e conferem um ritmo melodioso às frases


resultante, sobretudo, da aliteração em “v” - o vento, vindo de longe, movia suavemente as
folhas. Percebe-se ainda uma harmoniosa lentidão decorrente do uso de outras figuras de
linguagem, recursos que tanto combinam com os movimentos suaves e despreocupados da
família: enquanto a mulher mirava a cena com olhos demorados, o menino ficou a ver o
dia funcionando como um brinquedo.

Em um tempo marcado pela pressa e a incessante necessidade de cumprir obrigações,


a leitura de “Grandes feitos” ilumina momentos banais da existência humana que podem ser
desfrutados por todos, independentemente das diferentes composições familiares, pois o que
está evidenciado é o tempo reservado ao convívio entre as pessoas que se amam, os pequenos
feitos que fazem valer a vida.

As águas seguem com “Recolhimento”, cujo argumento – como em outros contos


dessa antologia - e desemboca em uma situação iniciática. Segundo depoimento de
Carrascoza por ocasião do lançamento da obra na FLIP, esses contos funcionam como uma
espécie de nascente em que seus protagonistas se lançam com esperança e desconhecimento
do que vem pela frente. Narrado em 3ª pessoa, inicia apresentando o protagonista, um antigo
funcionário responsável pelo recolhimento de animais de estimação mortos. Habituado à sua
função, esperava pacientemente que um chamado que movimentasse a sua rotina:

Aquela era mais uma manhã, normal como outras, a se abrir lá fora, para
os espaços do mundo – e para ele, naquela repartição sem mobília, só com
seus vazios [...] quando recebeu o chamado. [...] Pelo tom, discernia o
tamanho do assombro, embora, velho como era, soubesse que as perdas, só
quem as detém pode avaliar com precisão sua grandeza. (CARRASCOZA,
2018, p. 43-45).

A morte, temática recorrente na obra de Carrascoza, aparece pela primeira vez na


antologia. Nota-se a elaboração cuidadosa do autor na abordagem do tema, explicitando pela
voz do narrador onisciente um saber sobre a condição humana aprendido no exercício da
empatia: a dor da perda só pode ser dimensionada individualmente, dentro de cada ser
humano. Qualquer recolhimento, em condomínio de luxo ou casa da periferia, era tarefa que
54

exigia agilidade e o protagonista era um homem sensível: “E para não alargar a dor,
procurava retirá-lo de lá o mais rápido possível” (CARRASCOZA, 2017, p. 45).

Diante do chamado, o homem partiu rapidamente, calmo e seguro como de costume.


O narrador acompanha os movimentos interiores do protagonista durante o trajeto, a
observação minuciosa do homem à procura de algo diferente ao longo do percurso que o
distraísse da trivialidade da vida. Subiu ao apartamento, onde a dona do cachorro o esperava
com os olhos vermelhos de tristeza e o conduziu à área de serviço onde jazia o animal:
“Aproximou-se do corpo, o pelo negro abundante. Notou que, apesar de bem cuidado, o cão
era velho: tinha as garras quebradas e lhe faltavam uns dentes”. O cuidado com que
executava a tarefa demonstrava a sensibilidade do homem, um funcionário que cumpria há
anos um trabalho ordinário. Enrolou cuidadosa e rapidamente o animal e, quando descia o
elevador, o momento epifânico se dá: “Percebeu atônito, o coração do animal em seu último
pulso. E estremeceu com aquela verdade. A vida nunca tinha parado para ele viver aquilo.
O cachorro se esvaíra em suas mãos. Apertou-o entre os braços e se encolheu. Outra vez
humano” (CARRASCOZA, 2017, p. 50). O inesperado da cena final desperta também o
leitor que se recolhe a pensar sobre a existência finita dos seres.

A morte é temática ainda de mais dois outros contos da antologia: “Mundo justo” e
“Chave”. O primeiro é uma narração poderosa que reverbera na memória do leitor. Um conto
magistral, cuja tensão se manifesta desde as primeiras frases:

Foi, foi naquele tempo que eu descobri, e de lá pra cá, ano após ano, eu só
confirmo, é assim, invariável, essa lógica do mundo, se a gente ganha
alguma coisa, por mérito ou por sorte, no minuto seguinte, pronto, trem de
um lado, trem do outro, como se pra compensar, pra manter os nossos pés
bem cimentados na terra, mas eu ainda não sabia, nem desconfiava, era a
época de aprender sem ir até o fundo, pra começar eu nem me lembro de
onde me veio o gosto pelo basquete... (CARRASCOZA, 2017, p. 52).

Nessa narrativa em 1ª pessoa, o protagonista anuncia nas primeiras linhas que vai
recuperar um tempo distante do tempo em que narra. No tempo em que se passa a ação, ele
é um estudante apaixonado por basquete e faz parte da equipe da sua pequena cidade com a
qual viaja pelas cidades vizinhas para disputar um campeonato estadual. Conto
impecavelmente construído, em que as frases curtas compõem longos períodos em um ritmo
predominantemente ágil que se assemelha a uma partida de basquete em que os times correm
de um lado para o outro da quadra, com algumas poucas pausas. “Mundo justo” ocupa 7
páginas na primeira edição, da Cosac Naify, e 12 páginas na recente edição da Alfaguara.
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Trata-se de um conto relativamente longo, cuja estrutura chama a atenção: um único


parágrafo, dividido em 17 períodos, também longos. O efeito de sentido provocado por essa
escolha é perceptível durante a leitura. Forma e conteúdo foram orquestrados por
Carrascoza, complementando-se de modo significativo. O leitor tem a sensação de que seu
fôlego vai ser comprometido à medida que a tensão vai aumentando gradativamente. A
organização em um único parágrafo potencializa essa sensação, tem-se a impressão de que
o narrador precisa contar toda a história em um único fôlego, tamanha é a importância que
ela ocupa dentro dele.

Segundo Ricardo Piglia, a tensão entre ouvir e ler é um dos aspectos perceptíveis nos
contos de Jorge Luis Borges:

Na silhueta instável de um ouvinte, perdido e deslocado na fixidez da


escrita, encerra-se o mistério da forma. [...] Não é o narrador oral quem
persiste no conto, mas a sombra daquele que o escuta. [...] A arte de narrar,
para Borges, gira em torno desse duplo vínculo. Ouvir um relato que se
possa escrever, escrever um relato que se possa contar em voz alta
(PIGLIA, 2004, p. 101).

Em “Mundo justo”, é perceptível a “presença” desse leitor que está “escutando” o


relato do protagonista. As frases curtas, muitas vezes cortadas pelo discurso direto, prendem
a atenção do leitor que deseja “escutar” o relato até o final, sem “interromper” o narrador –
o mistério da forma operando e criando efeitos de sentido durante a leitura.

Assim como em outros contos, a temática envolve uma situação iniciática, e o universo
familiar é o espaço em que se desenvolve o conflito. O protagonista recupera a dinâmica das
relações familiares, com ênfase na relação com o irmão. Como pares antitéticos que se
completam, o Edu não possui a agitação e disposição do protagonista para atividades físicas.
É silencioso e observador, no entanto a introspecção não atrapalha a convivência entre eles,
ao contrário, é motivo de admiração do protagonista e vice-versa:

A vó morava com a gente, não leve isso tão a sério!, ela dizia, sentada na
cadeira da varanda, quando me via voltar triste, é só um jogo, menino!, e a
mãe, na cozinha, pulando o olhar de uma panela a outra, o cheiro bom da
comida sendo feita, que cara é essa?, nem sempre se ganha, filho, vai, vai
tomar seu banho, e o pai, a lição de casa, a lição, é isso o que interessa!,
e eu no quarto, me enxugando, o Edu no beliche, lá nos seus quietos,
sempre mergulhado num livro, e, de repente, ele de volta ao nosso mundo,
como foi o jogo?, quantos pontos você fez?, e aí eu já me sentia bem de
novo, por estar em casa, entre a família, todos na compreensão, e o Edu
mais, porque o Edu não só perguntava, o Edu torcia, ele alegre se eu
56

alegre, ele me consolando se eu desanimado, o Edu, apesar de mais novo,


já sabia antes de mim, não tenho dúvida, aquela lei estava acima das outras,
da gravidade, da termodinâmica, de todas, o Edu, de tanto se enfurnar
naqueles livros, sabia me ler, letra por letra, o Edu, quando eu chegava
com a vitória no rosto, me sentindo o Michel Jordan, fiz cinco cestas de
três, sete de lance livre, ele estourava de felicidade, como se fosse o próprio
pivô do time, mas, em seguida, o Edu se metia, tchibum, no livro
novamente, e ficava quieto, como se dizendo com o seu silêncio, agora se
prepare, no fim do dia tudo vai empatar.

Ao longo do texto, o narrador explica o entendimento que passou a ter do mundo


após o acontecimento que marcou profundamente a sua vida. Ao narrar, a possibilidade da
morte é insinuada pela ênfase que dá à dinâmica do mundo, comparada a uma partida de
basquete, em que vitórias e derrotas vão se alternando:

Eu não associava uma coisa com a outra, que a vida num instante a gente
não tem no instante seguinte, eu feliz com o meu desempenho no jogo e
o sono, na via oposta, demorando pra vir, pra dar o troco, e no meio dele
umas cenas assustadoras, do mundo agindo no seu maior mal, minha
imaginação ainda miúda se comparada com a maldade disseminada pelos
homens — isso eu descobri bem depois —, eu sem conhecer a precisão
desse aparelho, e agora, agora eu posso ver o seu mecanismo inteiro,
como se o véu, que cobre suas vísceras, fosse vidro, tão transparente,
agora eu até posso ver seu coração funcionando, tic-bem-me-quer, tac-
mal-me-quer, tac-bem-me-quer, tic-mal-me-quer, a ordem dos fatores não
altera as contas exatas, sempre o mesmo resultado, sempre
(CARRASCOZA, 2018, p. 55, grifo nosso).

Nos trechos destacados, a imagem materializa o funcionamento do mundo como um


ser implacável, que age às escondidas, com a precisão de um aparelho que alterna os
momentos felizes e os tristes das experiências humanas - imagem que sugeri a fatalidade do
resultado.

Metáforas, personificações, sinestesias e, sobretudo, antíteses conferem lirismo à


expressão dos sentimentos do protagonista. Entre vitórias e derrotas, nos momentos finais,
o protagonista narra a partida de basquete em que a sua equipe surpreendentemente venceu
a equipe a mais temida do campeonato. Nesse momento, o leitor já pressente um desfecho
muito triste porque sabe como o mundo funciona na visão do narrador.

A tensão narrativa potencializa a dor do protagonista e a descoberta da morte do irmão,


apesar de pressentida, impacta o leitor que engasga e se segura para não chorar. Um
aprendizado que, guardada as devidas diferenças entre o lirismo dos escritores, lembra a
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travessia de um dos personagens mais bonitos da literatura brasileira, Miguilim, de


Guimarães Rosa. A dor da perda de Edu traz à memória a morte de Ditinho em Campo geral.

As águas de Carrascoza vão se desdobrando em matizes que evidenciam os conflitos


cotidianos sob diferentes perspectivas, e o leitor sente a cada mergulho que a vida pulsa com
intensidade nas horas menores. Dos aprendizados mais dolorosos às descobertas mais
agradáveis, o leitor consegue acompanhar os movimentos interiores dos protagonistas,
vivências cujo impacto alargam a felicidade ou deixam na memória o peso das horas
instáveis. A cada enredo, o aprendizado maior que a literatura possibilita: o despertar para
os dramas presentes nas relações humanas, muitas vezes invisíveis aos olhos do leitor.

Em “Herança”, o último conto, o leitor se depara com angústia de um pai que foi
surpreendido pela notícia de que teria de partir a trabalho por mais de um ano. Uma
separação longa e inesperada da família:

E lá estavam no aeroporto, de partida, sob o trovejar dos aviões, ele e os


empregados, no burburinho da expectativa. As famílias se dispersavam nos
corredores, hora de alargamentos. Sorria-se, chorava-se, todos presos à
raridade do momento – e tão mal aparelhados para vivê-lo!
(CARRASCOZA, 2017, p. 103)

Embarca e, ao longo da viagem, experimenta silenciosamente a dimensão dos


sentimentos despertados pela separação da esposa e das filhas, uma viagem de descobertas
valiosas: “Era dolorido aquele ir, a movediça solidão” (CARRASCOZA, 2017, p. 105). Do
alto, observava a paisagem que se entranhava em sua memória e, entre um cochilo e outro,
a sua imaginação trabalhava para trazer à memória a presença viva das filhas e da esposa,
imagens que chegam ao leitor por um processo metonímico:

Entre o fechar-abrir dos olhos as roças amarelas lá embaixo, os dentes


sadios da filha maior, os bois minúsculos espetados nos campos, o sorriso
da caçula, as grandes montanhas encolhidas, os ósculos escuros da mulher,
o sol a se derramar no horizonte – os bens coletivos, e os dele, pessoais, se
alternando no esfumaçado ver (CARRASCOZA, 2017, p. 105-106).

Desembarca e cumpre o seu trabalho sem deixar de pensar na família. Entre o silêncio
interior e o movimento da empreitada que estava gerenciando, a dúvida se todo o sacrifício
valeria a pena. Sentia que não valia! Em “espremidos sofrimentos”, suportou “as horas
calmas que se estendiam como elásticos” até o momento em que pode finalmente retornar.
O leitor acompanha o processo de descobertas do pai, viagem que reverbera no leitor
enquanto percurso valioso do processo de amadurecimento contínuo das pessoas.
58

3. CARRASCOZA NA ESCOLA: UMA PROPOSTA DE FORMAÇÃO DO LEITOR


LITERÁRIO
As práticas de sala de aula precisam contemplar o processo de letramento
literário e não apenas a mera leitura das obras. A literatura é uma prática
e um discurso, cujo funcionamento deve ser compreendido criticamente
pelo aluno. Cabe ao professor fortalecer essa disposição crítica, levando
seus alunos a ultrapassar o simples consumo de textos literários
(COSSON, 2017, p. 47).

Na BNCC, o eixo Leitura aborda o tratamento das práticas leitoras que “compreende
dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão”. A primeira dimensão explicitada
pelo documento trata das condições de produção e recepção dos textos:

Relacionar o texto com suas condições de produção, seu contexto sócio-


histórico de circulação e com os projetos de dizer: leitor e leitura previstos,
objetivos, pontos de vista e perspectivas em jogo, papel social do autor,
época, gênero do discurso e esfera/campo em questão etc. (BRASIL, 2018,
p. 72).

Tendo em vista a importância que a contextualização tem na motivação de um projeto


de leitura, a primeira atividade proposta foi elaborada para que os alunos conhecessem
minimamente o escritor João Carrascoza e o contexto de produção de suas obras.

O itinerário de leitura proposto neste trabalho foi orientado, principalmente, pela obra
Letramento literário: teoria e prática, de Rildo Cosson, e pelos pressupostos metodológicos
da Base Nacional Comum Curricular. Dessa maneira, evidenciou-se as competências e
habilidades que podem ser desenvolvidas em cada uma das atividades, de modo a explicitar
como cada uma das etapas do material didático proposto dialoga com os referencias da
BNCC.

A leitura demanda preparação, uma antecipação, cujos mecanismos


passam despercebidos porque nos parecem muito naturais. Na escola, essa
preparação requer que o professor a conduza de maneira a favorecer o
processo da leitura como um todo. Ao denominar motivação a esse
primeiro passo da sequência básica do letramento literário, indicamos que
seu núcleo consiste em preparar o aluno para entrar no texto. O sucesso
inicial do encontro do leitor com a obra depende de boa motivação
(COSSON, 2018).
59

3.1. PROPOSTA E DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES SOBRE A ANTOLOGIA


DE CONTOS AQUELA ÁGUA TODA

Se quisermos formar leitores capazes de experienciar toda a força


humanizadora da literatura, não basta apenas ler. Até porque, ao contrário
do que acreditam os defensores da leitura simples, não existe tal coisa.
Lemos da maneira como nos foi ensinado e a nossa capacidade de leitura
depende, em grande parte, desse modo de ensinar, daquilo que nossa
sociedade acredita ser objeto de leitura e assim por diante. A leitura simples
é apenas a forma mais determinada de leitura, porque esconde sob a
aparência de simplicidade todas as implicações contidas no ato de ler e de
ser letrado. É justamente para ir além da simples leitura que o letramento
literário tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque
possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim,
e sobretudo, porque nos fornece, como nenhum ouro tipo de leitura faz, os
instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o
mundo feito de linguagem (COSSON, 2017, p. 29-30).

Leitura literária - Atividade 1

Aquela água toda e seu autor, João Carrascoza

Motivação

Estratégia de Leitura
• Apreender os sentidos globais do texto (BRASIL, 2018, p. 74).

(EF69LP03) Identificar, em notícias, o fato central, suas principais circunstâncias e


eventuais decorrências; em reportagens e fotorreportagens o fato ou a temática retratada e a
perspectiva de abordagem, em entrevistas os principais temas/subtemas abordados,
explicações dadas ou teses defendidas em relação a esses subtemas; em tirinhas, memes,
charge, a crítica, ironia ou humor presente.(CAMPO JORNALÍSTICO-MIDIÁTICO)
(BRASIL, 2018, p. 141).

Antecipação de conhecimentos

A matéria que segue, publicada no Caderno de Cultura do jornal Estadão, será o ponto de
partida para “investigar” a produção literária de João Anzanello Carrascoza.
60

Selecione informações relevantes, aquelas que mais lhe chamarem a atenção, destacando-as
em amarelo. Justifique a escolha dessas informações tendo em vista a sua relação com a
leitura literária. Por que tais informações lhes parecem interessantes?

'Aquela Água Toda', de João Anzanello Carrascoza, ganha reedição e volta às livrarias

Obra, que agora é quase de bolso, traz também ilustrações do artista plástico Visca

João Prata, O Estado de S.Paulo

28 Abril 2018 | 06h00

Aquela Água Toda, a obra mais premiada de João Anzanello Carrascoza, está de volta às
estantes das livrarias. Publicado inicialmente pela Cosac Naify em 2012, o livro estava fora
de catálogo desde o fechamento da editora, em dezembro de 2015. Nesses três anos, no
entanto, faturou troféus voltados à literatura adulta, como o Jabuti e o APCA, e ao público
jovem, como o FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) e o White Ravens, da
International Youth Library de Munique, na Alemanha.

O escritor João Anzanello Carrascoza Foto: Rafael Arbex/Estadão

João Anzanello Carrascoza volta com dois lançamentos

Agora acaba de ser reeditado pela Alfaguara, em novo formato (quase de bolso) e com
ilustrações do artista plástico Visca - inicialmente, a obra tinha desenhos de Leya Mira
Brander. Os 11 contos também tiveram uns parafusos apertados. “Fiz uma leitura, não uma
61

revisão. Algumas palavras acabei cortando, tirei uma linha ou outra. Mas são coisas
menores”, conta Carrascoza ao Estado.

Caderno para a filha rende romance a João Anzanello Carrascoza

As histórias, em comum, têm o ponto de vista da descoberta, a maior parte delas durante a
infância. Carregam o tom da leveza, dos aprendizados menos dolorosos. São pequenas
recordações que se tornam grandiosas graças à capacidade do autor em colocar uma lupa de
lirismo sobre os sentimentos dos personagens descritos.

Leia trecho de 'Caderno de um Ausente', de João Anzanello Carrascoza

É o lado solar de Carrascoza que se faz presente de novo. Uma face oposta à de seu último
livro de contos, Catálogo de Perdas, de 2017, que saiu pela Sesi-SP Editora. Nele, o autor
desce ao subterrâneo das sensações e trata questões obscuras, fala sobre o momento da
ausência, da ruptura na vida.

'Trilogia do Adeus' traz drama familiar de maneira delicada

“Foi uma coincidência”, diz o autor de Diário de Coincidências de 2016. Repetições de


palavras à parte, o que de fato une essas e a grande maioria das obras de ficção do autor é a
sua capacidade de transmitir o não dito, de mostrar o que está entre as relações, de tornar
uma perda ainda mais triste e também de fazer de uma simples ida à praia momento sublime.

Nos livros de Carrascoza não há grandes descrições de paisagens e cenários. Interessa mais
a ele o vínculo do que está sendo formado ou do que é interrompido. Ele diz que sua obra
está sempre em busca da relação com o outro, do núcleo da situação e que a partir desse
núcleo tudo reverbera.

“Tento na literatura colocar um olho nessas situações cotidianas que a gente acaba perdendo,
deixando de captar a beleza que tem e o quanto são significativas para nós. Porque a maior
parte do nosso tempo acontece com situações menores. Mas, ao mesmo tempo, por serem
tão menores, fazem a gente achar a vida grandiosa.”

A escolha por essa voz narrativa, no entanto, demorou para reverberar entre os críticos. Fazer
ouvir seu sentimento, ser reconhecido por um tipo de literatura inspirada declaradamente em
Carlos Drummond de Andrade e Raduan Nassar demorou para ganhar legitimidade.

“Já tive muita dificuldade de ser visto. Hoje as coisas melhoraram um pouco. Mas a maior
parte das vezes fui publicado em editoras pequenas. Por muito tempo o que escrevi ficou
muito à sombra”, recorda.
62

Seu primeiro livro de contos saiu em 1994, Hotel Solidão, quando tinha 32 anos. Na época,
Carrascoza também começava a vida acadêmica e dava aula de publicidade na Escola de
Comunicações e Artes da USP, onde pode ser visto com o giz na mão até hoje. De lá para
cá foram mais de 40 obras, entre contos, romances e ensaios.

A ponto de equilíbrio entre todos esses universos veio com a ioga. Durante 25 anos
Carrascoza contou que foi discípulo do mestre José Ramon Molinero, que morreu em 2004.
E mesmo após a perda de sua referência, até hoje, ao menos uma vez por semana, se
reconecta com doses solitárias de inspiração e expiração em seu apartamento.

“Com o passar do tempo meu trabalho foi sendo visto como legítimo, que tinha uma coluna
vertebral típica, com certa singularidade. Sou muito grato por esse reconhecimento. O
interessante da literatura é isso. A possibilidade de encontrar ali autores que falem de
diferentes questões”, afirmou.

Novidades. Neste ano, Carrascoza publicará um conto inédito intitulado Super Lua. Terá
ilustrações e ele acredita que, com mais esse fator, será enquadrado como infanto-juvenil,
apesar de discordar. “É um livro ilustrado e ponto”. Sairá pela editora Nós e ainda não tem
data de lançamento.

Na semana passada saiu pela Positivo a antologia a Estação das Pequenas Coisas, que reúne
contos produzidos entre 2006 e 2016. “Tem uma ou outra coisa de antes desse período, mas
é exceção”, informa o autor.

Para o próximo ano, Carrascoza trabalha em novo romance. Já tem nome provisório, mas
ele prefere não revelar. “Estou em um período de retrabalho. Vamos ver o que acontece
daqui para frente e se conseguimos publicar em 2019”.

TRECHO

“Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada à que o


esperava lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou de uma vez como se natural:
iriam à praia de novo, igualzinho ao ano anterior, a mesma cidade, mas um apartamento
maior, que o pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato,
num instante azul-azul, o pé na areia fervente (...), aquela água toda nos olhos, o menino no
mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na memória. É verdade,
mesmo?, queria saber. A mãe confirmou. O irmão a abraçou e riram alto. (...) Nem lembrava
63

mais que podia sonhar com o sal nos lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a
quentura do sol nos ombros, o menino ao vento, a realidade a favor, e ele na sua proa...”

AQUELA ÁGUA TODA

Autor: João Anzanello Carrascoza

Editora: Alfaguara (112 pág., R$ 39,90)

PRATA, João. ‘Aquela água toda’, de João Anzanello Carrascoza, ganha reedição e volta
às livrarias. Estadão, São Paulo, 2018. Disponível em:
<https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,aquela-agua-toda-de-joao-anzanello-
carrascoza-ganha-reedicao-e-volta-as-livrarias,70002287229>. Acesso em: 11 jul. 2020.

1) Dos trechos que destacou, selecione os quatro mais relevantes. Justifique sua seleção.
2) Que tipo de informação o texto antecipa sobre a obra que você vai ler?
3) Essas informações despertaram-lhe o desejo de ler o livro? Justifique.
4) Tendo em vista as informações da matéria, indique alguns critérios que
possivelmente foram usados pela professora para selecionar a obra Aquela água toda
como leitura literária escolar.

Leitura literária – Atividade 2

Introdução à leitura da obra Aquela água toda

Estratégias e procedimentos de leitura

• Estabelecer expectativas (pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da


função do texto), apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre gênero textual, suporte
e universo temático, bem como sobre saliências textuais, recursos gráficos, imagens, dados
da própria obra (índice, prefácio etc.), confirmando antecipações e inferências realizadas
antes e durante a leitura de textos. (BRASIL, 2018, p. 74).

Adesão às práticas de leitura

• Mostrar-se ou tornar-se receptivo a textos que rompam com seu universo de


expectativa, que representem um desafio em relação às suas possibilidades atuais e suas
experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento
sobre os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor. (BRASIL, 2018, p. 74).
64

Habilidades

(EF69LP45) Posicionar-se criticamente em relação a textos pertencentes a gêneros como


quarta-capa, programa (de teatro, dança, exposição etc.), sinopse, resenha crítica, comentário
em blog/vlog cultural etc., para selecionar obras literárias e outras manifestações artísticas
(cinema, teatro, exposições, espetáculos, CD’s, DVD’s etc.), diferenciando as sequências
descritivas e avaliativas e reconhecendo-os como gêneros que apoiam a escolha do livro ou
produção cultural e consultando-os no momento de fazer escolhas, quando for o caso.
(CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO) (BRASIL, 2018, p. 157).

(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura e por


outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seu universo de
expectativas, que representem um desafio em relação às suas possibilidades atuais e suas
experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento
sobre os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor. (CAMPO
ARTÍSTICO-LITERÁRIO) (BRASIL, 2018, p. 159).

O livro não é uma obrigação. O livro


tem que ser uma ponte para você
seguir efetivamente para um universo
que pode te levar a um sentimento
maior, a uma compreensão maior da
sua existência. Mas pode ser uma
diversão, uma viagem de levezas
também. O livro não precisa só te
levar para pontos sombrios da sua
própria individualidade. Por outro
lado, pode te levar para regiões mais
solares do mundo e de si mesmo.
João Carrascoza

Você já parou para pensar como você lê


os livros na escola? Costuma ler com
atenção os textos que apresentam o autor ou autora da obra? Mostra-se atento às informações
da quarta capa, orelhas do livro, prefácios ou posfácio? Já pensou que esses textos podem
antecipar informações valiosas que o conectariam de modo mais ativo com o livro?
65

Toda leitura é um diálogo com o mundo do leitor!

Por isso, quando vamos começar a leitura de um livro, antes


mesmo de embarcarmos na história, podemos preparar nossos
sentidos ao dialogarmos com as pistas que estão à disposição
do leitor.

Aquela água toda é uma antologia de contos, portanto uma


obra com diversas possibilidades de conhecimentos sobre as
experiências humanas.

Antes de nos lançarmos à leitura, vamos explorar a obra


juntos?

Você certamente já leu alguns contos na escola. Vamos


lembrar os elementos característicos desse gênero?

Segundo o Dicionário de gêneros textuais, de Sergio Roberto Costa, o gênero conto


caracteriza-se por:

(i) número reduzido de personagens ou tipos;


(ii) esquema temporal e ambiental econômico, muitas vezes restrito;
(iii) uma ou poucas ações, concentrando os eventos e não permitindo intrigas
secundárias como no romance [...] ou novela [...] e
(iv) uma unidade temática e de tom (fracção dramática, sedutora, em que tempo,
espaço e personagem se fundem, muitas vezes) [...].

O escritor João Carrascoza, para definir o gênero conto em oposição ao romance, compara
o conto a um riacho. Leia e atente à interessante metáfora que usou para descrever o gênero.
66

Se o romance é um espaço inerente à polifonia, ao mundo coletivo, o conto é o


locus onde se manifesta a escassez de vozes, o universo do indivíduo. O romance opera
como uma sinfônica, instaurando um diálogo entre os seus
variados músicos. Já o conto é a música de câmara: poucos
instrumentos, rápida performance. Romance: grande
sertão. Conto: veredas.

Mas se os rios-histórias de um romance podem, não


raro, degenerar em pântanos, o riacho-conto também pode
desandar. Para mover bem suas águas, é preciso não
esquecer que ele consubstancia uma estética metonímica.
O conto não é o todo, é apenas o detalhe. Mas o detalhe que contém o todo: as águas,
os peixes, os seixos, a vida lá dentro em conflito — embora, à sua superfície, possa
parecer em calmaria.

O conto-riacho.

Disponível em: http://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Especial-Capa-conto. Acesso


em: 05 ago. 2019.

Antes de iniciarmos a leitura, não podemos deixar de dar atenção, também, aos títulos e ao
que eles antecipam sobre os textos que vamos ler.

No caso do primeiro conto, Aquela água toda, que tipo de enredo podemos esperar com esse
título? Para pensar...

Vamos à leitura para confirmar suas hipóteses!

Leitura literária – Atividade 3

Primeira Leitura

Aquela água toda

Para pensar, interpretar e registrar suas primeiras impressões...

Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do senso


estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como
formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o
potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura.
67

(COMPETÊNCIAS ESPECÍFICAS DE LÍNGUA PORTUGUESA) (BRASIL, 2018, p.


87)

(EF89LP33) Ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentos e


estratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em conta características dos
gêneros e suportes – romances, contos contemporâneos, minicontos, fábulas
contemporâneas, romances juvenis, biografias romanceadas, novelas, crônicas visuais,
narrativas de ficção científica, narrativas de suspense, poemas de forma livre e fixa (como
haicai), poema concreto, ciberpoema, dentre outros, expressando avaliação sobre o texto lido
e estabelecendo preferências por gêneros, temas, autores. (CAMPO ARTÍSTICO-
LITERÁRIO) (BRASIL, 2018, p. 187).

Após a primeira leitura do conto “Aquela água toda”, registre suas impressões para
compartilhar em classe com os colegas.

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Leitura literária – Atividade 3.1

Releitura & Interpretação

Sabemos que os textos são concebidos para serem lidos em sua progressão temporal.
Lemos primeiramente do início ao fim - uma leitura linear. No entanto, para estudar um texto
literário, apenas uma primeira leitura não é suficiente. É no momento de releitura, à luz do
desfecho, que nos exercitamos para nos tornar leitores experientes. Segundo estudiosos da
leitura, a sucessão não é a única dimensão narrativa: o texto não é somente uma
“superfície”, mas também um “volume” do qual certas conexões só se percebem na
segunda leitura.

Estratégias e procedimentos de leitura (BRASIL, 2018, p. 74)

• Estabelecer relações entre o texto e conhecimentos prévios, vivências, valores e crenças.


• Inferir ou deduzir informações implícitas.
• Articular o verbal com outras linguagens – diagramas, ilustrações, fotografias, vídeos,
arquivos sonoros etc. – reconhecendo relações de reiteração, complementaridade ou
contradição entre o verbal e as outras linguagens.

Leitura: Reconstrução da textualidade e compreensão dos efeitos de sentidos provocados


pelos usos dos recursos linguísticos e multissemióticos.

(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as diferentes formas de composição


próprias de cada gênero, os recursos coesivos que constroem a passagem do tempo e
articulam suas partes, a escolha lexical típica de cada gênero para a caracterização dos
cenários e dos personagens e os efeitos de sentido decorrentes dos tempos verbais, dos tipos
de discurso, dos verbos de enunciação e das variedades linguísticas (no discurso direto, se
houver) empregados, identificando o enredo e o foco narrativo e percebendo como se
estrutura a narrativa nos diferentes gêneros e os efeitos de sentido decorrentes do foco
narrativo típico de cada gênero, da caracterização dos espaços físico e psicológico e dos
tempos cronológico e psicológico, das diferentes vozes no texto (do narrador, de
personagens em discurso direto e indireto), do uso de pontuação expressiva, palavras e
expressões conotativas e processos figurativos e do uso de recursos linguístico-gramaticais
próprios a cada gênero narrativo. (CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO) (BRASIL, 2018,
p. 159).
69

Vamos reler o conto Aquela água toda para interpretá-lo. As questões que seguem
visam à exploração de aspectos importantes na construção das narrativas do escritor João
Carrascoza: a voz do narrador, a densidade do tempo que tornam inesquecíveis enredos que
evolvem experiências cotidianas.

1) Você deve ter observado que o menino, protagonista da história, não tem nome nem
idade.
a) Tendo em vista a descrição dos preparativos para a viagem bem como as experiências
vivenciadas pelo menino, que idade imagina que ele tem? Justifique sua resposta com
2 passagens do texto, evidenciando elementos que sustentam as suas inferências.

b) A opção pela ausência de características físicas é, provavelmente, uma escolha


consciente do escritor. Qual é a provável intenção do autor com esse tipo de
construção da personagem? Que efeito de sentido ela confere ao texto?

Aquele que escreve não é aquele que conta. Para ter uma ideia vaga do autor, é preciso
fazer uma pesquisa, juntar documentos, ler prefácios: para saber tudo sobre o
narrador, basta ler seu texto. O narrador, portanto, é sempre uma criação do autor e
pode, consequentemente, distinguir-se dele pelo sexo, pelos gostos, pelos valores ou pela
natureza (Vicent Jouve, A leitura).

2) Ao ler uma narrativa de ficção, é importante distinguir se a voz que conta a história, o
narrador, é em primeira ou em terceira pessoa, se participa do relato como personagem
ou vendo-o de fora, enquanto mero observador ou, ainda, dotado de onisciência,
penetrando parcial ou totalmente no enredo. Observar se o narrador interfere na narrativa
com comentários, digressões, ironias, e avaliar a importância dessas atitudes para o
significado geral da obra. A postura do narrador é fundamental para a compreensão
da narrativa.

Releia os parágrafos que seguem e responda às questões propostas:

Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada à que o esperava
lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou de uma vez, como se natural: iriam à
praia de novo, igualzinho ao ano anterior, a mesma cidade, mas um apartamento maior, que
70

o pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato, num instante
azul-azul, os pés na areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe, aquela água toda nos
olhos, o menino no mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na
memória.

O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou pela casa. A mãe ia de um quarto ao outro,
organizava as malas, Vamos, vamos, dava ordens, pedia ajuda, nem parecia responsável pela
alegria que causara. O menino a obedecia: carregava caixas, pegava roupas, deixava suas
coisas para depois. Temia que algo pudesse alterar os planos de viagem, e ele já se via lá,
cercado de água, em seu corpo-ilha; um navio passava ao fundo, o céu lindo, quase vítreo,
de se quebrar. Não, não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus pés.

a) Que tipo de narrador conta a história?

b) De que maneira o foco narrativo contribui com a densidade da construção narrativa?

c) Localize nos parágrafos acima, o fragmento que dialoga com a imagem presente na capa
da primeira edição da obra. Qual é a sua impressão a respeito do cruzamento entre
texto e imagem? Justifique.

3) É válido lembrar que as narrativas se desenvolvem em uma sucessão de acontecimentos,


ao que chamamos de tempo cronológico. Mas há também o tempo psicológico, aquele
que evidencia as vivências interiores da personagem. Tempo predominante no relato de
lembranças, reflexões e sentimentos. Releia os parágrafos que seguem, observando a
presença desses dois tempos – cronológico e psicológico.

Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus castelos
de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia que o
tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas. Recordava-se de estar
ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica que,
para suportá-la, dormiu.
71

Ao despertar, saltou as horas menores — o lanche no posto de gasolina, as curvas na descida


da serra, a garagem escura do edifício, o apartamento com móveis velhos e embolorados —
e, de súbito, se viu de sunga segurando a prancha, a mãe a passar o protetor em seu rosto,
Sossega! Vê se fica parado!, ele à beira de um instante inesquecível.

a) Tendo em vista o conceito de tempo cronológico e psicológico, analise os dois parágrafos


acima transcritos e responda: qual é o tipo/categoria de tempo predominante em cada um
deles? Justifique sua resposta.

b) Tendo em vista a abordagem da infância realizada no conto, qual é a importância do


tempo psicológico na construção do enredo? Explique.

4) Releia os trechos que seguem e interprete o sentido da palavra maior no trecho


destacado.

Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou
assustado, o cobrador o sacudia abruptamente, Ei, garoto, acorda! Acorda, garoto!, um zum-
zum-zum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus, entre os caiçaras, procurando
num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão — e nada. Eram só faces estranhas.

No Brasil, há inúmeras nações indígenas. No entanto, no ato da colonização, os índios


foram gradativamente sendo exterminados de nosso litoral, deixando heranças que ainda
hoje se perpetuam. Os caiçaras são um exemplo vivo desta combinação índio/colono,
terra/mar – que se estabeleceram nos costões rochosos, restingas, mangues e encostas da
Mata Atlântica.

A palavra caa-içara é de origem tupi-guarani. Separadas, as duas palavras sugerem


uma definição: caa significa galhos, paus, “mato”, enquanto içara significa armadilha.

A idéia provinda desta junção seria, à primeira vista, uma armadilha de galhos. O termo,
porém, denomina as comunidades de pescadores tradicionais dos Estados de São Paulo e
Paraná e sul do Rio de Janeiro.

Disponível em: <https://fundart.com.br/tradicao/comunidades/caicara/>. Acesso em 5 mar.


2020.
72

5) Releia os últimos parágrafos que arrematam o conto:

O final implica, mais do que um corte, uma mudança de velocidade. [...] Existem tempos
variáveis, momentos lentíssimos, acelerações. Nesses movimentos da temporalidade se joga
o remate de uma história. Uma continuidade deve ser alterada: algo trava a repetição
(Ricardo Piglia, Teses sobre o conto).

Levantou-se, rápido no seu desespero, Seus pais já desceram, o cobrador disse e tentou
acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade às pressas e,
afobado, se meteu nela de qualquer jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo instante,
intuindo seu desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só precisava
voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...

Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-os com a prancha. O ônibus parou, aos


trancos. O cobrador gritou, Desce, desce aí! O menino nem pisou nos degraus, pulou lá de
cima, caiu sobre um canteiro na beira da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu correndo
pelo calçadão, os cabelos de sal ao vento, o coração no escuro. Notou com alívio, lá
adiante, o pai que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua direção. Depois... depois não
viu mais nada: aquela água toda em seus olhos.

a) Como podemos perceber a presença de “uma mudança de velocidade” narrativa nesses


parágrafos que encerram o conto? Que termos indicam essa mudança?
Nos trechos abaixo transcritos, foram destacadas algumas passagens que podem ajudar
a responder à questão. Analise atentamente os termos negritados.

“Levantou-se, rápido no seu desespero [...] o menino pegou a realidade às pressas e,


afobado, se meteu nela de qualquer jeito. [...] Esgueirou-se entre os passageiros,
empurrando-os com a prancha. O ônibus parou, aos trancos. [...] O menino nem pisou
nos degraus, pulou lá de cima, caiu sobre um canteiro na beira da praia. [...] Saiu correndo
pelo calçadão...”

b) Quais são as imagens – as metáforas – que descrevem o protagonista nesse momento?


O que essas imagens indicam a respeito do menino?
73

Metáfora é a figura de linguagem que consiste no emprego da palavra com sentido que não
lhe é comum ou próprio, sendo esse novo sentido resultante de uma relação de semelhança.
É uma comparação abreviada, sem o termo comparativo.

c) A expressão “aquela água toda” aparece repetidas vezes ao longo da narrativa. Como
podemos interpretá-la ao finalizar o conto? Ela tem esse mesmo sentido no 8º parágrafo
do texto? Explique.

As figuras de linguagem construindo sentidos...

(EF69LP54) Analisar os efeitos de sentido decorrentes da interação entre os elementos


linguísticos e os recursos paralinguísticos e cinésicos, como as variações no ritmo, as
modulações no tom de voz, as pausas, as manipulações do estrato sonoro da linguagem,
obtidos por meio da estrofação, das rimas e de figuras de linguagem como as aliterações, as
assonâncias, as onomatopeias, dentre outras, a postura corporal e a gestualidade, na
declamação de poemas, apresentações musicais e teatrais, tanto em gêneros em prosa
quanto nos gêneros poéticos, os efeitos de sentido decorrentes do emprego de figuras de
linguagem, tais como comparação, metáfora, personificação, metonímia, hipérbole,
eufemismo, ironia, paradoxo e antítese e os efeitos de sentido decorrentes do emprego de
palavras e expressões denotativas e conotativas (adjetivos, locuções adjetivas, orações
subordinadas adjetivas etc.), que funcionam como modificadores, percebendo sua função na
caracterização dos espaços, tempos, personagens e ações próprios de cada gênero narrativo.
(CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO) (BRASIL, 2018, p. 161).

1) Releia o trecho que segue:

Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro que até doía
pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas se davam a conhecer, o
menino e o mar. E, naquela mesma tarde, misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava
daquela saciedade: ele nem pedira sorvete, milho verde, refrigerante. O menino comia a
sua vivência com gosto, distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.
74

Explique o efeito de sentido que os trechos destacados conferem a narrativa. Localize os


termos que tornam essas passagens tão especiais.

2) Observe as expressões destacadas nos fragmentos que seguem:

Recordava-se de estar ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa
calmaria tão eufórica que, para suportá-la, dormiu.

O menino retornou à praia, gotejando orgulho. O sal secava em sua pele, seu corpo luzia —
ele, numa tranquila agitação. E nela se manteve sob o guarda-sol com o irmão. Até que
decidiu voltar à água, numa nova entrega.

O que elas indicam a respeito das vivências do menino? Qual é o nome dessa figura de
linguagem?

3) Releia os fragmentos que seguem com especial atenção aos trechos destacados.
Interprete as imagens e explique o efeito de sentido que a escolha lexical confere à
leitura.

Ele flutuava no silêncio, de tão feliz. Nem lembrava mais que podia sonhar com o sal nos
lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a quentura do sol nos ombros, o menino ao
vento, a realidade a favor, e ele na sua proa...

[...]

Ignorava que a vida tinha a sua própria maré. O mar existia dentro de seu sonho, mais do
que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar sobre as águas — o pai o levava para a
cama, com seus braços de espuma.

[...]

Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus castelos
de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia que o
tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas.

[...]
75

O menino, último da fila, respirava fundo a paisagem, o aroma da maresia, os olhos alagados
de mar, aquela água toda. Avaro, ele se represava. Queria aquela vivência, aos poucos.

[...]

O desconforto de uma alegria superior, sem remissão, a alegria que ele podia segurar, como
um líquido, na concha das mãos.

[...]

O menino retornou à praia, gotejando orgulho.

FIGURAS DE LINGUAGEMA - Anexo para consulta

Metáfora é a figura de linguagem que consiste no emprego da palavra com sentido que não
lhe é comum ou próprio, sendo esse novo sentido resultante de uma relação de semelhança.
É uma comparação abreviada, sem o termo comparativo.

Comparação é a figura de linguagem que consiste em aproximar dois seres pela


semelhança, de modo que as características de um sejam atribuídas ao outro, e sempre por
meio de um elemento comparativo expresso: como, tal, qual, semelhante a, que nem, etc.

Metonímia é a figura de linguagem que consiste na substituição de uma palavra por outra
em razão de haver entre elas uma relação de interdependência, de contiguidade, de
proximidade. A metonímia ocorre quando se emprega: a parte no lugar do todo, o autor
no lugar da obra, a marca no lugar do produto, o continente no lugar do conteúdo, o efeito
no lugar da causa, o abstrato no lugar do concreto, a causa no lugar do efeito, o instrumento
no lugar de quem o utiliza, a matéria no lugar do objeto.

Personificação ou Prosopopeia é a figura de linguagem que consiste em atribuir linguagem,


sentimentos e ações próprias dos seres humanos a seres inanimados ou irracionais.

Sinestesia é a figura de linguagem que consiste na união de palavras que revelam impressões
sensoriais diferentes, percebidas por diferentes órgãos do sentido – visão, audição, olfato,
tato, paladar.

Hipérbole é a figura de linguagem que consiste em expressar uma ideia com exagero.
76

Eufemismo é o emprego de palavra ou expressão mais suave no lugar de outra considerada


desagradável ou chocante com a finalidade de atenuar ou evitar a expressão direta de uma
ideia desagradável ou grosseira.

Antítese é a figura de linguagem que consiste em realçar uma ideia pela aproximação de
termos de sentidos opostos, de antônimos.

Paradoxo é a figura de linguagem que consiste numa relação de sentido aparentemente


absurdo, contraditório, porque resulta da reunião de ideias opostas.

Ironia é a figura de linguagem que consiste na inversão de sentido: afirma-se o contrário do


que se pensa, visando à sátira ou à ridicularização.

Gradação é a figura de linguagem que consiste no emprego de várias palavras ou expressões


em progressão ascendente ou descendente de forma a intensificar ou atenuar uma ideia.

Aliteração consiste na repetição de fonemas consonantais idênticos ou semelhantes no início


ou no interior das palavras.

Anáfora é a figura de sintaxe que consiste na repetição de uma palavra ou expressão no


início de uma sequência de orações ou versos.

Polissíndeto consiste na repetição de um mesmo síndeto = conjunção.

Sugestão de leitura complementar: “Banhos de mar”, de Clarice Lispector.

Leitura literária – Atividade 4

Primeira Leitura

Cristina, Medo e Grandes feitos

No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos
romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós
mesmos. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela poesia
e pela ficção (Rildo Cosson).

Na quarta capa da obra, editora Alfaguara, lemos que “Carrascoza tem o dom de
transformar o cotidiano em reflexão sobre a vida.”
77

Tendo em vista a sua primeira leitura dos contos Cristina, Medo e Grandes feitos, registre
as reflexões sobre a vida que o surpreenderam durante a leitura. Quais são os saberes que
podemos extrair desses textos?

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Competências Específicas de Língua Portuguesa

Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do senso


estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como
formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o
potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura. (BRASIL, 2018, p.
87)

Estratégias e procedimentos de leitura (BRASIL, 2018, p. 74)


78

• Estabelecer relações entre o texto e conhecimentos prévios, vivências, valores e crenças.


• Estabelecer expectativas (pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da
função do texto), apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre gênero textual,
suporte e universo temático, bem como sobre saliências textuais, recursos gráficos,
imagens, dados da própria obra (índice, prefácio etc.), confirmando antecipações e
inferências realizadas antes e durante a leitura de textos.

Habilidade

(EF89LP33) Ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentos e


estratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em conta características dos
gêneros e suportes – romances, contos contemporâneos, minicontos, fábulas
contemporâneas, romances juvenis, biografias romanceadas, novelas, crônicas visuais,
narrativas de ficção científica, narrativas de suspense, poemas de forma livre e fixa (como
haicai), poema concreto, ciberpoema, dentre outros, expressando avaliação sobre o texto lido
e estabelecendo preferências por gêneros, temas, autores. (CAMPO ARTÍSTICO-
LITERÁRIO) (BRASIL, 2018, p. 187)

Leitura literária – Atividade 4.1

Releitura & Interpretação

Cristina

Leitura: Reconstrução da textualidade e compreensão dos efeitos de sentidos


provocados pelos usos dos recursos linguísticos e multissemióticos.

Análise linguística/semiótica – morfossintaxe, coesão.

(EF09LP08) Identificar, em textos lidos e em produções próprias, a relação que conjunções


(e locuções conjuntivas) coordenativas e subordinativas estabelecem entre as orações que
conectam. (TODOS OS CAMPOS DE ATUAÇÃO) (BRASIL, 2018, p. 189).

(EF09LP13) Inferir efeitos de sentido decorrentes do uso de recursos de coesão sequencial:


conjunções e articuladores textuais (TODOS OS CAMPOS DE ATUAÇÃO) (BRASIL,
2018, p. 189).
79

(EF09LP11) Inferir efeitos de sentido decorrentes do uso de recursos de coesão sequencial


(conjunções e articuladores textuais). (TODOS OS CAMPOS DE ATUAÇÃO) (BRASIL,
2018, p. 190).

(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as diferentes formas de composição


próprias de cada gênero, os recursos coesivos que constroem a passagem do tempo e
articulam suas partes, a escolha lexical típica de cada gênero para a caracterização dos
cenários e dos personagens e os efeitos de sentido decorrentes dos tempos verbais, dos tipos
de discurso, dos verbos de enunciação e das variedades linguísticas (no discurso direto, se
houver) empregados, identificando o enredo e o foco narrativo e percebendo como se
estrutura a narrativa nos diferentes gêneros e os efeitos de sentido decorrentes do foco
narrativo típico de cada gênero, da caracterização dos espaços físico e psicológico e dos
tempos cronológico e psicológico, das diferentes vozes no texto (do narrador, de
personagens em discurso direto e indireto), do uso de pontuação expressiva, palavras e
expressões conotativas e processos figurativos e do uso de recursos linguístico-gramaticais
próprios a cada gênero narrativo.(BNCC, CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO)
(BRASIL, 2018, p. 161).

1) Releia o parágrafo que abre o conto Cristina.

E quando eu não queria mais que a prima Teresa perambulasse pelos meus pensamentos,
mesmo quando juntos, conversando no quintal, seu braço a resvalar no meu, seu cheiro
entrando nos meus pulmões, e quando eu só a queria comigo, frente a frente, nós dois
mudos, sem saber que a vida explodia debaixo da nossa quietude, quando eu a queria real,
fora dos meus sonhos, ela voltou para o Rio de Janeiro com a tia Imaculada.

a) Sabemos que o papel principal das conjunções é fazer a junção de termos, orações ou
períodos. Observe a conjunção coordenativa aditiva E que inicia o conto. Qual é o efeito
de sentido que essa conjunção confere ao abrir o primeiro parágrafo do texto? Qual é o
papel dessa conjunção na costura textual?

b) O primeiro parágrafo foi elaborado em um único período. Observe atentamente as


quatro orações introduzidas pela conjunção adverbial QUANDO.

O que elas anunciam a respeito do protagonista e o sobre o conflito narrativo?


80

c) Qual é o efeito de sentido que a repetição dessas conjunções confere ao parágrafo? Qual
é a figura de linguagem evidenciada por essa repetição?

2) Segundo o dicionário online de Língua portuguesa, a palavra preâmbulo apresenta os


seguintes significados:
• Texto introdutório que apresenta o assunto principal de; prefácio.
• Relatório que precede um decreto ou lei: preâmbulo constitucional.
• Texto introdutório que, normalmente conciso, escrito pelo autor ou por outra pessoa,
apresenta ou introduz o conteúdo de um livro.
• Composição musical que introduz outra; prelúdio.

a) É possível afirmar que o conto “Cristina” apresenta uma espécie de preâmbulo.

Quais são os parágrafos que correspondem ao preâmbulo?

b) Tendo em vista o enredo, pense na importância do preâmbulo que inicia esse conto de
João Carrascoza. O que ele sugere sobre o tema abordado no conto “Cristina”?

3) Releia o parágrafo em que o protagonista narra a entrada de Cristina em sua vida e


localize a conjunção que o inicia. Transcreva-a.

a) Qual é o efeito de sentido provocado pela conjunção coordenativa MAS no início desse
parágrafo?

Conforme relembrado na primeira questão, o papel principal das conjunções é fazer a


junção de termos, orações ou períodos.

b) Pense no papel da conjunção no início do parágrafo. O que essa conjunção indica sobre
o contexto narrativo?
81

4) Releia o fragmento que segue:

“Mas, como a chuva que espera a gente chegar em casa para cair, Cristina esperava a
hora de me salvar. [...] Eu não tinha a resposta, e foi aí que ela retirou, como uma planta
da terra, a prima Teresa da minha mente e se colocou, inteirinha, no seu lugar”.

a) Explique a comparação que o narrador usou para demonstrar que havia esquecido a

b) Apesar de o narrador saber que amou primeiramente a prima Teresa, o que pode explicar
a relevância de Cristina em sua memória?

5) Transcreva 3 passagens significativas que evidenciam a percepção do sentimento intenso


que o narrador experimentou por Cristina. Explique, se for o caso, as figuras de
linguagem presentes na construção dessas passagens.

6) Releia o último parágrafo do conto.

E aí, inesperadamente, até mesmo pra mim, eu a abracei. Trêmula, ela me recebeu, meio sem
jeito. Depois, soltou-se dos meus braços, me deu um beijo no rosto e saiu correndo. O meu
corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que poucas
vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim.

Tendo em vista a sua percepção e suas observações sobre as relações afetivas relativas à
descoberta do amor, sobre os “namoros”, que o conto Cristina faz você pensar?
82

Poemas que falam do amor, das incertezas, alegrias e tristezas desse sentimento tão
paradoxal...

Memória

Amar o perdido As coisas tangíveis


deixa confundido tornam-se insensíveis
este coração. à palma da mão

Nada pode o olvido


Mas as coisas findas
contra o sem sentido muito mais que lindas,
apelo do Não. essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade, "Poemas". Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959.

Tangível: se consegue tocar. [Figurado] Que é compreensível; que se entende com


facilidade.

A LUA FOI AO CINEMA

A lua foi ao cinema, Era uma estrela sozinha,


passava um filme engraçado, ninguém olhava para ela,
a história de uma estrela e toda a luz que ela tinha
que não tinha namorado. cabia numa janela.

Não tinha porque era apenas A lua ficou tão triste


uma estrela bem pequena, com aquela história de amor,
dessas que, quando apagam, que até hoje a lua insiste:
ninguém vai dizer, que pena! - Amanheça, por favor!

Paulo Leminski
83

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade, "Nova reunião". Rio de Janeiro: J. Olympio, 1985.

Sugestão de leitura complementar: “O primeiro beijo”, de Clarice Lispector.

Leitura literária – Atividade 4.2

Medo

Para pensar um pouco mais o gênero conto...

João Carrascoza, ao abordar o gênero, dialoga com outros escritores, considerados


mestres nesse gênero. Segundo Horácio Quiroga, escritor argentino que morreu em 1937,
“Em um bom conto, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as
três últimas”.

Tal elo, entre o início e o fim, lembra que a noção de fim opera no conto desde o começo.
Referenciando outro mestre do conto, o chileno Antonio Skármeta, “Tudo chama, tudo
convoca a um final”. Em outras palavras: o riacho, em sua nascente, já é atraído pela sua
foz. Qualquer conto é, portanto, metáfora da existência, apreendida numa metonímia.
Riacho-instante (João Carrascoza, O conto-riacho [texto adaptado]).
84

Releitura & Interpretação

1) Releia o trecho que segue com especial atenção ao tipo de narrador que o autor escolheu.

Queria aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que
soubesse, a lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem
conhecia ainda — quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do
bigode, os braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que desejava fossem, senão
tranquilas, suportáveis —, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas —
vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu
pelo pátio até a sua sala.

“A Roda da Fortuna" é o tear das Moiras, Cloto, Láqueis e Átropos - as deusas gregas
que fiavam, teciam e cortavam o fio da vida. Trata-se de uma metáfora dos processos de
nascimento, crescimento, desenvolvimento e morte. O fio da vida na roca do
destino. Fortuna quer dizer sorte, destino e não fortuna material.

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Roda_da_Fortuna_(tar%C3%B4). Acesso


em: 10 ago. 2019 – adaptado.

a) O que o trecho evidencia a respeito do narrador?

b) Observe a oração destacada entre travessões.

“— vindos também ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela
—”

O que o narrador sugere ao acrescentá-la aos fatos narrados?

2) Releia o trecho que segue.

Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente — tão
desproporcional se comparado aos demais alunos — o corpo comprido, a voz firme, Eu sou
o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não
responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu
85

que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto
para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o
movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. [...] Diego o mirou, satisfeito,
e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se no chão e se pôs a comer em silêncio, um
silêncio faminto que pedia o olhar do mundo — tanto que o menino, ao seu lado, degustou
a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes era frágil, casca de ovo, agora se sentia
forte. Descobria uma grande vida dentro de si. Porque, antes que continuassem a conversa,
ele sabia: fizera um amigo.

Tendo em vista as informações do fragmento selecionado, descreva o menino, protagonista


da história, e Diego.

c) Localize uma metáfora que evidencia a transformação que a aproximação com Diego
operou no menino. Transcreva-a.

3) Releia alguns fragmentos retirados do conto e, partindo deles, descreva com suas
palavras os momentos da narrativa: situação inicial, conflito ou desequilíbrio,
desenvolvimento, clímax e desfecho.

Por hora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa, as mãos
dentro do bolso da jaqueta.

[...]

E assim foi até aquela manhã. Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o
maior de todos, se acercava.

[...]

A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa briga, quando
outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no garoto e derrubou-lhe a garrafa de
suco.

[...]
86

E apesar da angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à sua
mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura do
dinheiro que sumira da carteira.

[...]

E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois, o garoto viu Diego lá no fim
da rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um
sorriso para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais
sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.

4) Releia as primeiras linhas do conto “Medo”.

Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primeiros passos,
apoiando-se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além
de si. E tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar
que vestia. No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se
ajustaria mais à sua medida. Por hora,...

a) Imagine se os três primeiros períodos fossem construídos em um único período, o efeito


de sentido seria o mesmo? Explique.

b) Tendo em vista as informações inicialmente anunciadas sobre o menino, qual é a


importância do emprego da conjunção coordenativa MAS no início do terceiro
período?

c) Você deve ter percebido que a palavra SÓ foi usada duas vezes nesse momento inicial.
Foram usadas com o mesmo sentido? Explique.

d) Você já fez a primeira leitura do conto, portanto conhece todo o enredo. Que informações
a introdução antecipa para o leitor a respeito do conflito?
87

5) Releia os momentos finais do conto.

E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois, o garoto viu Diego lá no fim da
rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao se aproximar, abriu um sorriso
para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede. Agora, estava mais sozinho
do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.

Na sequência narrativa que finaliza o conto, é possível perceber a “costura” estabelecida


com a sequência descritiva que introduz a história. Em que medida o desfecho retoma a
introdução? O que o desfecho sinaliza a respeito do conflito? Explique.

Sugestão de leituras complementares: Conto de escola, de Machado de Assis; O aluno


que só queria cabular aula, de Sacolinha. Antologia: Eu sou favela, Editora Nós, 2018.

Leitura literária – Atividade 4.3

Grandes feitos

Releitura & Interpretação

Relacionar informação em diferentes linguagens: relacionar significa “fazer ou fornecer


a relação de; arrolar, pôr em lista; narrar; expor; descrever; referir; comparar (coisas
diferentes) para deduzir analogias [...].”

(Brasília: MEC/INEP, 2007, p. 70)

1) Releia as primeiras linhas de “Grandes feitos”.

Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de
descuido. O casal não iria ao trabalho nem o filho à escola; tinham os três mais tempo para
si mesmos. A semana inteira viviam a fazer o que era preciso e assim, entre atos e palavras,
tocavam-se apenas como as margens de um rio toca a paisagem que seu curso delimita.
88

Você já fez a primeira leitura do conto. É possível afirmar que a introdução sugere para o
leitor o assunto do texto? Explique.

2) Você deve ter reparado que Grandes feitos foi organizado em dois parágrafos: o primeiro
muito longo e o segundo, e último, curto. Elabore um comentário demonstrando como
você interpretou essa opção de organização.

3) Quanto à composição de Grandes feitos, é possível identificar no conto todas as partes


que tradicionalmente compõem as narrativas: situação inicial, conflito ou
desequilíbrio, clímax e desfecho? Justifique sua resposta.

4) Transcreva do texto passagens em que as personagens percebem o início do sábado como


um quadro que vai sendo pintado para ser experimentado por eles. Explique, se for o
caso, as figuras de linguagem presentes na construção dessas passagens.

5) Releia o último parágrafo.

Não demorou, estavam todos à mesa, a verdade no silêncio de cada um, e, enquanto
conversavam uns assuntos que estavam à mão, os momentos vinham para que os provassem
— à semelhança do pão e da manteiga. E, como tinham o sábado pela frente, o sol se aderia,
inexorável, à todas as coisas e as dores estavam adormecidas — logo despertariam, de modo
inevitável —, eles, finalmente, se levantaram da mesa e foram fazer essas coisas que todos
fazemos enquanto estamos vivos.

a) Você já leu alguns textos sobre a literatura de João Carrascoza.

Grandes feitos pode ser considerado um dos contos que condensa a “matéria prima” das
narrativas desse escritor. Em que consiste essa “matéria prima”?

b) De que maneira podemos entender o trecho que finaliza o conto? O que se entende por
“essas coisas que todos fazemos enquanto estamos vivos”? Qual é o significa que a palavra
“vivos” tem nesse contexto?
89

6) Leia atentamente os textos que seguem: um poema de Drummond, autor de formação


do escritor João Carrascoza, e o quadrinho de Fábio Moon e Gabriel Bá, publicado no
caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Quanto ao quadrinho - sem título - embora não
haja sequência temporal nem relação de causalidade entre as cenas, pense na relevância
da palavra pronunciada pela coruja no último quadrinho.

Lembrete
Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida.

Carlos Drummond de Andrade

Elabore um pequeno texto em que você relacione os três textos: o conto, o poema e a
tirinha.
90

Leitura literária – Atividade 5

A escritora Marina Colasanti, em um de seus ensaios, declara: Quando passei a


usar o lápis, tornei-me outra leitora. Ou melhor, quando me tornei outra leitora, passei a
usar o lápis. Não desço mais, entregue, nas corredeiras. Sou seu vigilante. Analiso a força
das águas, sua direção, sua profundidade. Meço a transparência, procuro o que nela se
move. Vou, sim, com ela, e me encanto, e me deixo molhar pelas espumas, mas a qualquer
remanso indevido, a qualquer turvação, minhas orelhas se erguem atentas, meu lápis se
apoia na margem. Anoto, controlo. Por um instante não estou sendo levada, botei um pé
para fora do bote. Tornei-me interlocutora do autor.

Que bela relação metafórica a escritora tece para nos contar como se tornou uma
leitora atenta às mensagens que o texto endereça a cada um de nós, como se tornou uma
leitora que estabelece conscientemente um diálogo com os textos lidos. O texto como as
corredeiras de um rio, e o lápis servindo como remo para o leitor. Tomemos essa imagem e
a coloquemos em prática. E, quem sabe, neste exercício, poderemos nos tornar leitores mais
atentos - dos textos e de nós mesmos!

Ainda faltam alguns contos para completar a leitura da obra: “Recolhimento”,


“Mundo justo”, “Passeio”, “Paz”, “Vogal”, “Chave” e “Herança”. Depois de
analisarmos detalhadamente os primeiros contos, a proposta é que vocês executem uma
leitura autônoma, porém atenta do restante da obra, aproveitando os conhecimentos
adquiridos em aulas anteriores.

Antes, Durante e Após a leitura...

Antes de iniciar a leitura de cada um dos contos, pense sobre o título e levante hipóteses a
respeito do enredo. Registre quais são as suas expectativas sobre o enredo e confirme-as
(ou não) durante a leitura.

Após a leitura, interprete o título de acordo com o enredo.


91

a) Fiquem atentos às partes que estruturam cada um dos contos, identificando – se possível
– os parágrafos que constituem a introdução, o conflito, o desenvolvimento, o clímax
e o desfecho.

b) Selecionem as figuras de linguagem que mais lhe chamaram a atenção. Classifique-as.


Posteriormente, essa tarefa vai ser usada em uma atividade de estudo sobre figuras
de linguagem.

c) Selecionem palavras, expressões, imagens, enfim fragmentos que, por um lado, se


relacionam com passagens importantes do enredo de cada um dos contos e, por outro
lado, despertaram-lhe sentimentos e reflexões. Posteriormente, esse “garimpo” será
utilizado na elaboração das micronarrativas.

Atividade Literária 5.1

Controlar a própria leitura e regulá-la, implica ter um objetivo para ela, assim como poder
gerar hipóteses sobre o conteúdo que se lê. Por isso a leitura pode ser considerada um
processo constante de elaboração e verificação de previsões que levam a construção de uma
interpretação (Isabel Solé, Estratégias de leitura).

Antes de iniciar a leitura de cada um dos contos, pense sobre o título e levante hipóteses
a respeito do enredo. Registre quais são as suas expectativas sobre o enredo e confirme-
as (ou não) durante a leitura.

Após a leitura, interprete o título de acordo com o enredo.

5º conto: “Recolhimento”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
92

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

6º conto: “Mundo justo”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

7º conto: “Passeio”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
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8º conto: “Paz”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

9º conto: “Vogal”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

10º conto: “Chave”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
94

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

11º conto: “Herança”

Antes da leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Após a leitura

_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________

Atividade Literária 5.2

Refletir sobre o conhecimento e controlar nossos processos cognitivos são passos certos
no caminho que leva à formação de um leitor que percebe relações, e que forma relações
com um contexto maior, que descobre e infere informações e significados mediante
estratégias cada vez mais flexíveis e originais (Ângela Kleiman, Aspectos cognitivos da
leitura).

1) Selecione as figuras de linguagem que mais lhe chamaram a atenção. Classifique-as.


(Coloque, ao lado dos trechos selecionados, o número da página do livro.)
Posteriormente, essa tarefa vai ser usada em uma atividade de estudo sobre figuras
de linguagem.
95

2) Selecione palavras, expressões, imagens, enfim fragmentos que, por um lado, se


relacionam com passagens importantes do enredo de cada um dos contos e, por outro
lado, despertaram-lhe sentimentos e reflexões. (Coloque, ao lado dos trechos
selecionados, o número da página do livro.)
Posteriormente, esse “garimpo” será utilizado na elaboração das micronarrativas.

Atividade Literária Complementar


Elaboração de vídeo-resenha

Competências Específicas de Linguagem para o Ensino Fundamental (BRASIL,


2018, p. 65)
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita),
corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações,
experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem
ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação
Estratégias de produção (BRASIL, 2018, p. 78)
• Desenvolver estratégias de planejamento, revisão, edição, reescrita/redesign e
avaliação de textos, considerando-se sua adequação aos contextos em que foram
produzidos, ao modo (escrito ou oral; imagem estática ou em movimento etc.), à
variedade linguística e/ou semioses apropriadas a esse contexto, os enunciadores
envolvidos, o gênero, o suporte, a esfera/ campo de circulação, adequação à norma-padrão
etc.
• Utilizar softwares de edição de texto, de imagem e de áudio para editar textos
produzidos em várias mídias, explorando os recursos multimídias disponíveis.
96

Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum (Marisa Lajolo).

Você já se deparou com um cartaz de filme ou com um livro de capa e título


interessantes, mas ficou na dúvida se valeria a pena conferir se a obra era realmente
bacana? Uma resenha crítica pode nos ajudar a decidir se uma obra merece a nossa
atenção, afinal de contas queremos investir o nosso tempo em leituras que dê sentido ao
mundo e a nós mesmos.

A resenha crítica não é apenas um registro de gosto! Em uma resenha crítica,


mais do que fazer elogios ou críticas à obra, é importante selecionar bons argumentos
para embasar seu posicionamento a respeito do produto resenhado.

Agora que vocês terminaram a leitura da obra Aquela água toda, vocês vão
divulgar a leitura entre o público jovem. Como produto final, vocês vão produzir vídeos
de 3 a 5 minutos, com a intenção de apresentar a obra a outros leitores.

As produções serão apresentadas em classe, e a turma poderá eleger alguns que


serão enviados à editora Companhia das Letras, com possibilidade de serem postados no
Blog da Companhia. Além disso, os vídeos poderão ser compartilhados com alunos de
outras escolas públicas e privadas.

Antes de começar, vamos conhecer os bastidores da edição da obra?

O link que segue o levará ao site da editora Companhia das letras: Blog da
Companhia. Nele, você poderá mergulhar na leitura que o artista plástico Visca fez da
97

obra Aquela água toda, entendo um pouquinho do processo de ilustração desse livro de
João Carrascoza.

Disponível em: <http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Espaco-


lugar-e-tempo>. Acesso em 10 out. 2019.

Para garantir a boa qualidade do produto final, o trabalho será dividido em dois
momentos:

Parte 1: resenha crítica

Planejamento

Ficha técnica da obra: título, autor, ano de lançamento, editora, reedições, críticas sobre
a obra.

Avaliação da edição: formato do livro, ilustração, disposição e distribuição dos textos.

Como a obra é uma antologia de contos, não é necessário resumir todos eles.
Escolha de três ou quatro contos que serão citados na resenha. Essa escolha deve ser
orientada pelo impacto que esses contos podem causar nos leitores jovens, logo pelo
diálogo que essas histórias produziram com as vivências de vocês.

Vamos ao texto! Elaborem a primeira 1ª versão da resenha. Ao escrever esse texto,


vocês terão a oportunidade de selecionar e amadurecer o conteúdo que fará parte do
trabalho final: a vídeo-resenha. Lembrem-se de que a resenha é uma análise crítica,
portanto vocês devem apresentar argumentos para convencer o leitor de que a apreciação
da obra apresentada na resenha é consistente.

Embora não haja regras rígidas para a estrutura desse gênero, segue uma sugestão
das partes que devem compor o texto:

1º parágrafo: apresentação do objeto cultural resenhado.

2º parágrafo: resumo do objeto cultural resenhado.

3º parágrafo: avaliação e argumentação.

4º parágrafo: conclusão do texto.


98

Parte 2: vídeo-resenha

Planejamento

1. Formem duplas ou trios de trabalho e troquem entre si as resenhas que produziram


individualmente.
2. Orientados pela pauta de correção, em anexo, comentem as resenhas e
selecionem o conteúdo que fará parte do produto final.
3. Selecionem as passagens mais significativas dos contos que foram escolhidos para
fazer parte do trabalho. A imagem dessas passagens poderá ser mostrada no vídeo.
4. Partindo do conteúdo selecionado, redijam um roteiro de vídeo, que deve
contemplar os seguintes passos:
a. Saudação e apresentação
b. Introdução ao tema do livro abordado
c. Apresentação do livro, com indicação de autor, editora e outras
informações relevantes – explorem a materialidade da obra!
d. Resumo do enredo de alguns contos com a intenção de explorar a temática
escolhida para compor a antologia Aquela água toda
e. Avaliação crítica da obra, com leitura de trechos que comprovem as
afirmações
f. Encerramento e despedida
g. Créditos com a seguinte estrutura:

Nome do Colégio
São Paulo – SP

Créditos

Aluno 1
Aluno 2
Aluno 3

Março de 2020

5. Providencie autorização de uso de imagem e voz de todos os alunos que


aparecem ou falam no vídeo. Caso as autorizações não sejam entregues, o trabalho não
será considerado. O modelo de autorização será fornecido pela professora.
99

6. Edite o vídeo e salve-o em um pen-drive identificado com o nome de todos os


alunos do grupo em uma etiqueta. Por último, enviem ao e-mail xxxx, respeitando o prazo
de entrega, xx/xx/2020.

Observações:
• Vale conhecer alguns vlogs literários existentes na internet. Uma sugestão são os
canais literários divulgados na matéria da Revista Galileu “8 canais literários
brasileiros que você precisa conhecer”.
Acesse-os pelo site: <https://revistagalileu.globo.com/blogs/estante-
galileu/noticia/2016/03/8-canais-literarios-brasileiros-que-voce-precisa-
conhecer.html>.

• É muito importante que vocês escolham lugares silenciosos para realizar as


gravações.
• A pergunta que segue deve ser respondida após a finalização do trabalho:

Após assistir a esse vídeo-resenha, você leria os contos de Carrascoza?

3.2. LINHA ÚNICA: PROPOSTA E DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES


SOBRE AS MICRONARRATIVAS

Leitura literária - Atividade 6

Competências Específicas de Linguagem para o Ensino Fundamental (BRASIL, 2018,


p 65)
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita),
corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações, experiências,
ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à
resolução de conflitos e à cooperação.

Habilidades

(EF69LP48) Interpretar, em minicontos, efeitos produzidos pelo uso de recursos


expressivos sonoros (rimas, aliterações etc), semânticos (figuras de linguagem, por
100

exemplo), gráfico-espacial (distribuição da mancha gráfica no papel), imagens e sua relação


com o texto verbal.

(EF89LP35) Criar contos ou crônicas (em especial, líricas), crônicas visuais, minicontos
[...] com temáticas próprias ao gênero, usando os conhecimentos sobre os constituintes
estruturais e recursos expressivos típicos dos gêneros narrativos pretendidos.

(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obras


literárias, [...] tecendo, quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e
justificando suas apreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes
sociais e utilizando formas de expressão das culturas juvenis [...].

Estratégias de produção (BRASIL, 2018, p.78)


• Desenvolver estratégias de planejamento, revisão, edição, reescrita/redesign e avaliação
de textos, considerando-se sua adequação aos contextos em que foram produzidos, ao
modo (escrito ou oral; imagem estática ou em movimento etc.), à variedade linguística
e/ou semioses apropriadas a esse contexto, os enunciadores envolvidos, o gênero, o
suporte, a esfera/ campo de circulação, adequação à norma-padrão etc.
• Utilizar softwares de edição de texto, de imagem e de áudio para editar textos produzidos
em várias mídias, explorando os recursos multimídias disponíveis.
101

Produção de Micronarrativas

LINHA ÚNICA
João Carrascoza
Capa e projeto gráfico Raquel
Matsushita
Sesi - SP
102

Depois de tantas leituras de contos e microcontos, agora é a sua vez de escrever!

São duas propostas, com orientações diferentes, para que você elabore duas
micronarrativas. Não se esqueça de considerar a recepção de seus textos, ou seja, como
suas micronarrativas podem ser lidas e compreendidas por diferentes leitores. Para tanto,
pense em uma apresentação gráfica que enriqueça o texto verbal, completando-o.
Posteriormente, pensaremos em um formato para apresentar esses textos para o público.

Assim como nos textos selecionados na página anterior, observe mais uma vez
nos textos que seguem a disposição das palavras e os efeitos de sentido suscitados pelo
cruzamento do verbal com o não verbal.
103

Proposta 1

Volte à atividade literária 5, momento em que estava finalizando a leitura da


antologia de contos Aquela água toda. Nessas atividades, você selecionou metáforas e
passagens significativas dos contos de Carrascoza bem como registrou a sua interpretação
deles a partir dos títulos.

Escolha o conto que mais o impactou e preencha o quadro que segue,


identificando os elementos da narrativa selecionada.

Título:
Elementos da narrativa
Narrador

Personagens –
Destaque o
protagonista
Tempo

Espaço

Ação
Síntese
do enredo - conflito

Clímax

Desfecho

Tudo se reinventa, contos transformam-se em microcontos. Com uma frase ou


duas, entre sugestões e silêncios, a imaginação faz um convite à leitura dos contos de João
Carrascoza.

Tendo em vista os elementos elencados, transforme o conto que selecionou em


uma micronarrativa de uma única linha. Escolha um título significativo para seu
texto.
104

Proposta 2

Pela janela, dentro da janela...

O universo familiar em contexto de isolamento social

Janela como metáfora, o que pode significar?

A mensagem mais importante dos textos de João Carrascoza é a de que podemos


nos tornar leitores mais atentos das pessoas. O espaço das narrativas desse escritor é o
universo familiar em que as relações humanas são flagradas de modo poético. Carrascoza
capta com sensibilidade os movimentos interiores de seus protagonistas, seus silêncios...

Isolados em nossas casas, experimentamos um momento em que observamos


atentamente o que acontece no mundo, em nosso país, em nossa cidade, na rua onde
moramos... Notícias, gráficos, prognósticos sobre a disseminação do Corona vírus
impactam as pessoas todos os dias. Números que não mostram rostos...

Sua tarefa é produzir uma micronarrativa que traduza esse contexto de isolamento.
Uma única linha que sintetize situações e sentimentos experimentados por protagonistas
inseridos neste momento que impacta diferentemente cada um de nós. Escolha um título
significativo para seu texto.

Lembre-se de que o impacto desse gênero deriva, sobretudo, daquilo que ele não
diz, do que está silenciado. É necessário que o leitor se coloque ativamente para imaginar
um contexto, o que ocorreu antes do momento flagrado pelo texto e as possíveis
consequências que, muitas vezes, reverberam na imaginação após finalizar a leitura de
um conto. Pense nos efeitos de sentido que gostaria que seu texto provocasse nos
leitores...

Tendo em vista o poder humanizador da arte - e literatura é arte! -, a ideia é


reunir os textos produzidos a fim de compartilhar esse trabalho com um público maior.
Juntos, pensaremos em uma forma adequada ao momento para viabilizar essa ideia.

Sugestão de site, entre outros que estão disponíveis na web, para garimpar
imagens e refletir sobre o momento de isolamento.
<https://www.magnumphotos.com/theme/magnum-photos-on-covid-19/>
Magnum Photos on COVID-19 | Magnum Photos
105

See video conversations from quarantine, as well as weekly curations of new work
being made on the crisis in the face of social distancing.
<www.magnumphotos.com>

Releituras...

As tecnologias digitais possibilitam releituras muito interessantes, diferentes formatos


podem chegar mais facilmente a diferentes leitores, potencializados por imagens, movimentos
e sons combinados harmoniosamente.
Linha única foi uma das obras selecionadas, em 2013, pelo projeto Rumos Itaú Cultural,
um dos mais importantes projetos de incentivo à cultura no Brasil. A equipe de divulgação do
instituto produziu dois vídeos baseados em seis micronarrativas da obra.
Os vídeos ganharam versão em francês que foram exibidas por João Carrascoza na
Université Sorbonne Nouvelle, em Paris, em 2015.
Esse é um importante exemplo de como os textos podem ser lidos e reinventados. Ao
ser incorporada e transformada para outros formatos, a arte literária alcança novos leitores que
consomem cada vez mais textos literários através de seus celulares, uma das muitas
possibilidades criativas e contemporâneas para vocês pensarem em como fazer para que seus
textos cheguem aos leitores.
106

Letramento Literário
Ampliando os horizontes do texto literário...

Encontro com o escritor


João Anzanello Carrascoza
Dia 06/05/2020, das 12h às 13h

(EF69LP39) Definir o recorte temático da entrevista e o entrevistado, levantar


informações sobre o entrevistado e sobre o tema da entrevista, elaborar roteiro de
perguntas, realizar entrevista, a partir do roteiro, abrindo possibilidades para fazer perguntas
a partir da resposta, se o contexto permitir, tomar nota, gravar ou salvar a entrevista e usar
adequadamente as informações obtidas, de acordo com os objetivos estabelecidos.

Pense nas leituras realizadas - Aquela água toda e Linha única - e elabore três
perguntas significativas que poderão enriquecer a sua experiência como leitor. No dia
06/05, o escritor João Carrascoza poderá responder às suas perguntas e, caso não tenha
tempo para responder a todas questões, podemos enviá-las posteriormente ao escritor.

1. Sobre a leitura da obra Aquela água toda.


107

Pergunta:
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

Resposta:

______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

2. Sobre a leitura da obra Linha única.

Pergunta:
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

Resposta:

______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

3. Uma mais aberta sobre a vida, obra, ofício do escritor e recepção dos leitores.

Pergunta:

______________________________________________________________________
______________________________________________________________________

Resposta:

______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
108

Registro da Live

Elaboração de um único texto de aproximadamente 15


linhas que atenda ao itinerário que segue:

1º parágrafo – Qual foi a sua impressão sobre João


Carrascoza? Como introdução de seu texto, descreva-o,
baseando-se no encontro on-line com o escritor.

2º parágrafo – Quanto às obras lidas e estudadas, que


informações significativas a palestra acrescentou à sua
leitura?

3º parágrafo – Qual foi o momento mais significativo e


especial desse encontro com o escritor? Relate esse
momento, incorporando-o ao seu texto para finalizá-lo (conclusão).

_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
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_________________________________________________________________
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_________________________________________________________________
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109

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os finais são formas de encontrar sentido na experiência. Sem finitude não
há verdade. [...] Projetar-se para além do fim, para perceber o sentido, é algo
impossível de se conseguir, salvo sob a forma da arte (Ricardo Piglia. In:
Formas breves).

Durante dois anos, buscamos caminhos que nos lançassem para além da satisfação em
suscitar o prazer da leitura de textos literários na escola. O retorno ao ambiente acadêmico
possibilitou diferentes veredas que foram percorridas com entusiasmo e o desejo de extrair das
teorias da recepção diferentes contribuições que servissem de norte para nossa bússola.
A cada semestre, a agulha magnética apontava novas direções para que pudéssemos
refletir sobre algumas possibilidades que facilitariam o trabalho. Algumas direções se
mostraram mais possíveis, outras nem tanto. Teorias que não contemplam as práticas
pedagógicas, à formação do leitor literário, uma vez que se apoiam na figura de leitores
abstratos ou ideais. Apesar disso, todo conhecimento sempre acrescenta, estende nossos
horizontes, aprimora a nossa atuação profissional.
Conforme prevíamos, o trabalho com a obra Aquela água toda mostrou-se positivo.
Permitiu uma reflexão sobre como a literatura – enquanto linguagem artística – pode enriquecer
a nossa relação com o real e potencializar nossas emoções, oferecendo aos leitores percepções
originais sobre as relações humanas.
Para que os alunos conseguissem viver essa experiência nos contos de João Carrascoza,
elaboramos um itinerário de leitura e discussão contemplando etapas fundamentais do processo
de aprimoramento do letramento literário: Apresentação (contextualização do autor e sua obra),
Motivação (levantamento de expectativas sobre a obra e conhecimento sobre o gênero),
Primeira Leitura (solitária), Releitura e Interpretação (análise literária) e outras atividades
orientadoras para leitura autônoma dos demais contos que compõem a antologia.
Ao longo do percurso, percebemos que realizar a etapa de análise literária para cada um
dos 11 contos seria impossível devido ao tempo que esse tipo de tarefa demanda e a necessidade
de oportunizar aos alunos momentos em que pudessem exercitar a autonomia enquanto sujeitos
leitores. Tendo em vista essa constatação, optamos por uma abordagem dirigida para os quatro
primeiros contos - “Aquela água toda”, “Cristina”, “Medo” e “Grandes feitos” – por meio de
propostas didáticas que contemplassem o desenvolvimento de Habilidades e Competências
propostas pela BNCC para os Anos Finais do Ensino Fundamental BNCC. Quanto aos outros
sete contos, foram orientados a registrar suas impressões no momento anterior e posterior à
110

leitura dos contos a partir dos títulos – um levantamento prévio de hipóteses e a confirmação
ou não das expectativas após a leitura.
Para dar conta da tarefa, foi necessária uma leitura atenta da Base Nacional Comum
Curricular a fim de entender os princípios norteadores desse longo documento. A intenção foi
a de testar a aplicação dos pressupostos em propostas didáticas que objetivassem à formação
do leitor literário. Nesse sentido, a abordagem dos quatro primeiros contos focaliza aspectos
estruturais do gênero (conto) e a construção de efeitos de sentido obtidos pelo esmerado
trabalho com a linguagem realizado pelo escritor João Carrascoza. O aprofundamento da
análise linguística foi de fundamental importância para o entendimento da temática –
interpretação dos contos. Segundo Rildo Cosson,
Longe de destruir a magia das obras, a análise literária, quando bem realizada,
permite que o leitor compreenda melhor essa magia e a penetre com mais
intensidade. O segredo maior da literatura é justamente o envolvimento único
que ela nos proporciona em um mundo feito de palavras. O conhecimento de
como esse mundo é articulado, como ele age sobre nós, não eliminará o seu
poder, antes o fortalecerá porque está apoiado no conhecimento que ilumina
e não na escuridão da ignorância (COSSON, 2018, p. 29).

Embora o necessário isolamento social em virtude da pandemia tenha alterado


significativamente as relações, a aplicação das atividades foi realizada de modo geral, com
algumas limitações e adaptações ao ambiente virtual, já que a situação obrigou as escolas a
reinventar repentinamente as práticas pedagógicas.
A leitura da obra Aquela água toda foi complementada pela leitura das micronarrativas
de Linha única, do mesmo autor. Dessa maneira, os alunos puderam explorar um gênero que
dialoga com as mensagens instantâneas e cifradas dos gêneros digitais e multissemióticos. Essa
leitura resultou em interessantes produções de textos, momento em que os alunos exercitaram
algumas das Estratégias de Leituras e Produções de Textos sugeridas pela BNCC.

Sabemos que a leitura literária possibilita aos alunos se conhecerem melhor no diálogo
com o mundo feito de palavras, permitindo-lhes muitas vezes uma elaboração identitária. Nesse
sentido, esse longo percurso foi planejado para que a leitura literária na escola tivesse um
significado para além da aprendizagem de saberes escolares, e os alunos conseguissem trocar
impressões de leitura e produzissem textos a partir das reflexões suscitadas pelos contos e
minicontos de João Carrascoza. É necessário abrir espaço para acolher os sentimentos,
considerando momentos que permitam a todos expressar subjetivamente suas reações diante
dos textos, só assim a leitura literária ganha um significado especial na vida dos alunos.
111

Para encerrar o itinerário, os alunos puderam conversar com o escritor João Carrascoza
pelo Teams, momento em que puderam fazer perguntas interessantes sobre a obra, elaboradas
por eles no decorrer das leituras. A live resultou em uma experiência que ampliou
significativamente a percepção dos alunos sobre o papel da literatura e do escritor.
Investigação realizada. Uma jornada gratificante na qual certamente deixamos as nossas
pegadas para que outros – e nós mesmos – possamos, a partir desse aprendizado, ampliar o
caminho que, como sugere o poema de Antonio Machado, nunca está pronto, sempre se faz...

Caminante, son tus huellas


el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

Chegamos ao final desse desafio com a certeza de que todo conhecimento é realmente
uma forma de felicidade, uma maneira de nos sentirmos mais fortalecidos e despertos para
atuar nesse mundo onde muitas tragédias são promovidas “à luz” da ignorância. Nesse
sentido, a literatura é uma viagem indispensável ao ser humano, viagem repleta de
descobertas e conhecimentos - sobre o outro e sobre nós mesmos.
112

REFERÊNCIAS

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de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

BATISTA, Ronaldo de Oliveira. Introdução à Historiografia da Linguística. São Paulo:


Cortez, 2013.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da


educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base.


Brasília: 2018. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site
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BRASIL. Ministério da Educação; Base Nacional Comum Curricular. Metodologias


Ativas. Brasília, 2020. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/pesquisar?q=Metodologias%20ativas>. Acesso
em: 11 jul. 2020.

CALLEGARI, Cesar. O vento e a nau dos criativos: importância e riscos da BNCC.


Direcional Escolas – A revista do gestor escolar, São Paulo, jul. 2019.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: ______. Literatura e Sociedade. Rio
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CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:______. Vários escritos. São Paulo. Duas
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CARRASCOZA, J. A. “Costura”. In: ______. Diário das coincidências: crônicas do


acaso e histórias reais. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016a.

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CARRASCOZA, J. A. Aquela água toda. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

CARRASCOZA, J. A. João Anzanello Carrascoza fala sobre sua obra, calcada na


descoberta infantil. Entrevista concedida a Amilton Pinheiro. Escola de Comunicação e
Artes, São Paulo, 2015a. Disponível em:
<http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producao-
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114

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2013-2014 (VÍDEO 1). Direção e produção: Itaú Cultura e João Anzanello Carrascoza.
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115

ANEXO 14
AQUELA ÁGUA TODA

Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada a que o esperava
lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou de uma vez, como se natural: iriam à
praia de novo, igualzinho ao ano anterior, a mesma cidade, mas um apartamento maior, que
o pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato, num instante
azul-azul, os pés na areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe, aquela água toda nos
olhos, o menino no mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na
memória.

É verdade, mesmo?, queria saber. A mãe confirmou. O irmão a abraçou e riram alto,
misturando os vivas. Ele flutuava no silêncio, de tão feliz. Nem lembrava mais que podia
sonhar com o sal nos lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a quentura do sol nos
ombros, o menino ao vento, a realidade a favor, e ele na sua proa…

O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou pela casa. A mãe ia de um quarto ao


outro, organizava as malas, Vamos, vamos, dava ordens, pedia ajuda, nem parecia
responsável pela alegria que causara. O menino a obedecia: carregava caixas, pegava roupas,
deixava suas coisas para depois. Temia que algo pudesse alterar os planos de viagem, e ele
já se via lá, cercado de água, em seu corpo-ilha; um navio passava ao fundo, o céu lindo,
quase vítreo, de se quebrar. Não, não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho,
aos seus pés. O menino aceitava a fatalidade da alegria, como a tristeza quando o obrigava
a se encolher — caracol em sua valva. Não iria abrir mão dela. Viver essa hora, na fabricação
de outra mais feliz, ocupava-o, e ele, ancorado às antigas tradições, fazia o possível para
preservá-la. A noite descia, e mais grossa se tornava a casca de sua felicidade.

Quando se deu conta, cochilava no sofá, exausto pelo esforço de preparar o dia
seguinte. Esforçara-se para que, antes de dormir, a manhã fosse aquela certeza, e ela seria
mesmo sem a sua pobre contribuição. Ignorava que a vida tinha a sua própria maré. O mar
existia dentro de seu sonho, mais do que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar sobre
as águas — o pai o levava para a cama, com seus braços de espuma.

4
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exclusivo para consulta.
116

Abriu os olhos: o sol estava ali, sólido, o carro de portas abertas à frente da casa, o irmão em
sua bermuda colorida, a voz do pai e da mãe em alternância, a realidade a se espalhar, o
mundo bom, o cheiro do dia recém-nascido. O menino se levantou, vestiu seu destino, foi
fazer o que lhe cabia antes da partida, tomar o café da manhã, levar as malas até o carro onde
o pai as ajeitava com ciência, a mãe chaveava a porta dos fundos, Pegou sua prancha?, ele,
Sim, como se num dia comum, fingindo que a satisfação envelhecia nele, que se habituara a
ela, enquanto lá no fundo brilhava o verão maior, da expectativa.

Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus
castelos de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia
que o tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas. Recordava-se de
estar ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica
que, para suportá-la, dormiu.

Ao despertar, saltou as horas menores — o lanche no posto de gasolina, as curvas na


descida da serra, a garagem escura do edifício, o apartamento com móveis velhos e
embolorados — e, de súbito, se viu de sunga segurando a prancha, a mãe a passar o protetor
em seu rosto, Sossega! Vê se fica parado!, ele à beira de um instante inesquecível.

Ao lado do edifício, a família pegou o ônibus, um trechinho de nada, mas demorava


tanto para chegar… E pronto: pisavam na areia, carregados de bolsas, cadeiras, toalhas,
esteiras, cada um tentando guardar na sua estreiteza aquele aumento de felicidade. O menino,
último da fila, respirava fundo a paisagem, o aroma da maresia, os olhos alagados de mar,
aquela água toda. Avaro, ele se represava. Queria aquela vivência, aos poucos.

O pai demarcou o território, fincando o guarda-sol na areia. O irmão espalhou seus


brinquedos à sombra. A mãe observava o menino, sabia que ele cumpria uma paixão. Não
era nada demais. Só o mar. E a sua existência inevitável. Sentado na areia, a prancha aos
seus pés, ele mirava os banhistas que sumiam e reapareciam a cada onda. Então, subitamente,
ergueu-se, Vou entrar!, e a mãe, Não vai lá no fundo!, mas ele nem ouviu, já corria, livre
para expandir seu sentimento secreto, aquela água toda pedia uma entrega maior. E ele queria
se dar, inteiramente, como um homem.

Foi entrando, até que o mar, à altura dos joelhos, começou a frear o seu avanço. A
água fria arrepiava. Mas era um arrepio prazeroso, o sol se derramava sobre suas costas.
Deitou de peito na prancha e remou com as mãos, remou, remou, e aí a primeira onda o
atingiu, forte. Sentiu os cabelos duros, o gosto de sal, os olhos ardendo. O desconforto de
117

uma alegria superior, sem remissão, a alegria que ele podia segurar, como um líquido, na
concha das mãos.

Pegou outra onda. Mergulhou. Engoliu água. Riu de sua sorte. Levou um caldo.
Outro. Voltou ao raso. Arrastou-se de novo pela água, em direção ao fundo, sentindo a força
oposta lhe empurrando para trás. Estava leve, num contentamento próprio do mar, que se
escorria nele, o mar, também egoísta na sua vastidão. Um se molhava na substância do outro,
era o reconhecimento de dois seres que se delimitam, sem saber seu tamanho.

O menino retornou à praia, gotejando orgulho. O sal secava em sua pele, seu corpo
luzia — ele, numa tranquila agitação. E nela se manteve sob o guarda-sol com o irmão. Até
que decidiu voltar à água, numa nova entrega.

Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro que até
doía pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas se davam a conhecer, o
menino e o mar. E, naquela mesma tarde, misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava
daquela saciedade: ele nem pedira sorvete, milho-verde, refrigerante. O menino comia a sua
vivência com gosto, distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.

Quando percebeu, o sol era suave, a praia se despovoara, as ondas se encolhiam. Hora de ir,
disse o pai e começou a apanhar as coisas. A família seguiu para a avenida, o menino lá
atrás, a pele salgada e quente, os olhos resistiam em ir embora. No ônibus, sentou-se à janela,
ainda queria ver a praia, atento à sua paixão. Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas,
prédios novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do ônibus, tão macio… Começou
a sentir um torpor agradável, os braços doíam, as pernas pesavam, ele foi se aquietando, a
cabeça encostada no vidro...

Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou
assustado, o cobrador o sacudia abruptamente, Ei, garoto, acorda! Acorda, garoto!, um
zunzunzum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus, entre os caiçaras,
procurando num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão — e nada. Eram só
faces estranhas.

Levantou-se, rápido no seu desespero, Seus pais já desceram, o cobrador disse e


tentou acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade às
pressas e, afobado, se meteu nela de qualquer jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo
118

instante, intuindo seu desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só
precisava voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...

Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-os com a prancha. O ônibus parou,


aos trancos. O cobrador gritou, Desce, desce aí! O menino nem pisou nos degraus, pulou lá
de cima, caiu sobre um canteiro na beira da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu
correndo pelo calçadão, os cabelos de sal ao vento, o coração no escuro. Notou com alívio,
lá adiante, o pai que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua direção. Depois... depois
não viu mais nada: aquela água toda em seus olhos.
119

ANEXO 2

CRISTINA

E quando eu não queria mais que a prima Teresa perambulasse pelos meus
pensamentos, mesmo quando juntos, conversando no quintal, seu braço a resvalar no meu,
seu cheiro entrando nos meus pulmões, e quando eu só a queria comigo, frente a frente, nós
dois mudos, sem saber que a vida explodia debaixo da nossa quietude, quando eu a queria
real, fora dos meus sonhos, ela voltou para o Rio de Janeiro com a tia Imaculada.

Inconformado, fui atrás da mãe, Por quê?, e a mãe, Porque lá é a casa delas, e eu,
Mas, e a mãe, sem desconfiar que eu estava cheio de sombras, disse, Elas vêm de novo, pro
Natal.

Eu me recolhi todo, o Natal ia demorar demais, uma dor oca no coração, uma vontade
de só dormir, de não crescer. A tristeza me envelhecia, e eu não me esforçava para afastá-la.
Esquecer a prima, como quem apaga a luz do quarto, era trair o meu sentimento por ela.

Estava jogando bola com meu irmão e o Paulinho, ou empinando pipa com o Bolão, e, de
repente, a prima Teresa subia à minha memória e então eu não via mais o sol no sol, nem as
árvores nas árvores, tudo o que era continuava a ser, mas sem a quentura do meu olhar, eu
era um menino-deserto, seco de alegrias, e mesmo se me aguassem eu continuaria a ver o
mundo atrás de uma camada de verniz, incapaz de aceitar o próprio brilho.

Mas, como a chuva que espera a gente chegar em casa para cair, Cristina esperava a
hora de me salvar. Ela estudava na minha classe e, no dia em que a percebi de verdade,
descobri — no fundo, pressentia! — que as coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo
todo ao nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las. Era uma aula qualquer, a
professora distribuiu cópias de um texto e pediu para ela ler. Cristina começou suavemente
— as pernas curtas se movendo abaixo da carteira, sem tocar o chão, como num balanço —
, continuou naquela leveza, e eu fiquei olhando pra ela, e me surpreendi por olhá-la daquele
jeito, com calor; ela até reparou e, ao terminar a leitura, fez um gesto que me pareceu uma
pergunta. Eu não tinha a resposta, e foi aí que ela retirou, como uma planta da terra, a prima
Teresa da minha mente e se colocou, inteirinha, no seu lugar.

No dia seguinte, mal abri os olhos, a vida retornou, feliz. As árvores, as casas e o céu
se exibiam mais intensos enquanto eu seguia para a escola. Na sala de aula, à minha direita,
Cristina me fitava fortemente, eu me senti constrangido, mas também bonito, queria ouvir
outra vez a sua voz de sol. E, quando ela disse, ao sairmos para o intervalo, Me espera, Me
120

espera, senti que a escuridão estava se limpando de mim e fui andando pelo pátio, sem
pressa, ao lado dela.

Sentamos num banco. Quer um pedaço?, ela me ofereceu seu sanduíche, Não,
obrigado. Quer um gole?, e ela, sim, com a cabeça, Adoro suco de uva!, e aí conversamos
umas miudezas, nós dois ainda um riozinho, só a nossa história deslizando. O Bolão me
acenou. Fiz que não vi. O Paulinho e o Lucas cochichavam, dissimuladamente. Algumas
meninas nos apontavam. Uma garota veio chamá-la, Depois eu vou..., disse, e eu entendi,
com aquelas palavras ela estava dizendo que preferia ficar lá comigo. Eu sentia febre, uma
febre boa que queria continuar sentindo, a minha vida ali, com a dela, no descuido.

Daí, como se despertasse ao contrário — da realidade para o sonho —, me vi a sós


com a Cristina, juntinho, sem ninguém por perto, e tanto me animei ao imaginar essa cena,
que, de repente, eu disse, Quer ir comigo na matinê de domingo? Mal fiz a pergunta, me
encolhi, já sofrendo a sua resposta, com medo da minha esperança, mas ela afastou do
caminho as temíveis palavras “Posso pensar até amanhã?”, e respondeu no ato, Quero!.

Incrédulo, saí correndo para os dias seguintes, que passaram devagar-devagar, e


neles, buscando preservar o sigilo do nosso pacto, evitei tocar no assunto com ela, senão
com os olhos, que a procuravam e, encontrando-a, fugiam metendo-se pelas coisas afora. À
noite, encolhido no beliche, eu demorava a dormir. Inventava tramas heroicas, nas quais —
raptada por monstros, alienígenas e extraterrestres — ela gritava por socorro, e eu aparecia
imediatamente para salvá-la.

O domingo chegou, enfim, e, ao contrário dos dias anteriores, quando me distraí com
os pequenos fatos do cotidiano, fingindo esquecer nosso compromisso, despertei
visivelmente ansioso. Empurrava os ponteiros do relógio, construindo no pensamento — em
minúcias, antes de sua hora real — o encontro com Cristina.

A sessão era às quatro, às três e meia eu já estava à porta do cinema. Procurei-a entre
as pessoas na fila da bilheteria, mas não a vi. Fiquei lá, à sua espera, numa calma falsa, de
ator, que eu desconhecia. Se temia que ela não aparecesse, temia mais pelo momento de
encontrá-la, queria saltar essa etapa e me ver logo ao seu lado, assistindo ao filme — eu não
sabia o que fazer com a vida que vinha.

Enquanto Cristina não chegava, e o mundo continuava alheio a mim, observei os


cartazes dos outros filmes, andei inutilmente de lá para cá, suportando. Aos poucos, distraí-
me com o movimento no Bar do Ponto, os carros que passavam pela rua Quinze, uns casais
121

diante da sorveteria. Voltei ao cinema e, então, contra os meus planos, eu a vi lá dentro, atrás
da porta de vidro, me acenando. Me espere, eu disse, como se ela pudesse me ouvir. Enfiei-
me às pressas na fila da bilheteria, que, por sorte, já estava pequena. Comprei a entrada e, ao
chegar ao saguão, onde ela me aguardava, cabelos soltos, vestido vermelho, senti aquele
instante grande, tão grande que apenas disse, Oi, e ela respondeu, Oi, e completou, Vamos,
já vai começar! Seguimos rapidamente para a sala, mas antes paramos na bombonière, eu
queria comprar balas. Mal nos acomodamos, as luzes se apagaram.

Veio o noticiário, o Canal 100, depois vieram os trailers, e aí o filme começou. Não
me lembro direito do enredo, só sei que era uma comédia. Lembro que ríamos não tanto
pelas cenas, pouco engraçadas, mas pelas gargalhadas de um gordo que se divertia à nossa
frente. Eu não sabia como agir, mas, desafiando a minha insegurança, oferecia balas a ela,
contemplava seu rosto no escuro, desviava-me da tela. Aquele era o lugar no mundo onde
eu desejava estar! Por isso me acalmei, temendo que, com um gesto brusco meu, o encanto
se desfizesse.

Mas à medida que o filme avançava, eu me convencia de que ela deveria saber o que
se passava comigo, eu precisava dizer à Cristina a minha alegria, ainda que ela, sem ter
consciência de que a causara, pudesse me responder com uma rejeição.

Então, de súbito, decidi, Vou pegar na mão dela. Tinha medo de me precipitar, e de que me
julgasse atrevido — nem imaginava que o meu coração era pequeno para aquele sentimento
que não parava de entrar nele. E, como o filme ia terminar — a gente percebe o fim chegando
—, tomei coragem e deslizei a mão pelo braço da poltrona até encontrar a sua mão. Cristina
estremeceu, virou-se para mim — e me salvou. Acolheu minha mão com um toque leve, mas
decidido, e assim ficamos, a felicidade latejando entre os meus dedos e os dela.

Logo o filme terminou e, antes que as luzes se acendessem, soltamos as mãos, como
se o mundo não merecesse saber do nosso amor. E levantamos sorrindo, não pelo mesmo
motivo das pessoas, mas, por aquele outro, só nosso.

Lá fora, a tarde ardia nos olhos, de tão bonita, o sol ia baixo no céu azul, como meus
olhos mirando os pés de Cristina a cada passo seu. Não sabia onde ela morava, mas tinha de
acompanhá-la até lá, era essa a regra, eu ouvira meu irmão comentar uma vez. Caminhamos
em silêncio, para assimilar — pelo menos no meu caso — o susto daquela iniciação.

Quando chegamos ao portão de sua casa, eu perguntei, Gostou?, ela respondeu, Gostei, e eu
queria que essa resposta se referisse mais ao nosso gesto secreto do que ao filme.
122

E aí, inesperadamente, até mesmo pra mim, eu a abracei. Trêmula, ela me recebeu,
meio sem jeito. Depois, soltou-se dos meus braços, me deu um beijo no rosto e saiu correndo.
O meu corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que
poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim.
123

ANEXO 3

MEDO

Era só um garoto. Com pai, mãe, irmão. Mas, quando deu os primei- ros passos, apoiando-
se nos móveis da casa, sentiu-se só no mundo. Precisava dos outros para ir além de si. E
tinha medo. Nem muito nem pouco. Do seu tamanho. Como o uniforme escolar que vestia.
No futuro seria um homem, o medo iria se encolher; ou ele, já grande, não se ajustaria mais
à sua medida. Por hora, estava ali, naquela manhã fria, indo para a escola, o olhar em névoa,
as mãos dentro do bolso da jaqueta. O que o salvava era a mochila presa às costas. O peso
dos cadernos e dos livros o curvava, obrigando-o a erguer a cabeça, fazendo-o parecer até
um pouco insolente. O que fazer com a sua condição? Apenas levá-la consigo! Andava às
pressas, tentando se proteger do vento que, na direção contrária, enregelava seu rosto. Queria
aprender urgentemente. Crescer o tornaria maior que o seu medo. E, sem que soubesse, a
lição daquele dia o esperava no sorriso de Diego, aluno mais velho, que ele nem conhecia
ainda — quase um homem, diriam os pais, a considerar a altura, a penugem do bigode, os
braços rijos. Na ignorância das horas por vir — que desejava fossem, senão tranquilas,
suportáveis —, o menino passou pelo portão em meio aos outros colegas — vindos também
ali para mover a roda da fortuna, antes de serem moídos por ela —, e seguiu pelo pátio até a
sua sala. A professora, mulher miúda, de fala doce, o perturbava. Já nas primeiras aulas,
percebeu que ela não era só voz leve e olhar compreensivo. A sua paciência, como giz, vivia
se quebrando. Por que ela agia daquela maneira? Não sabia. O menino com seu medo, o
tempo todo. Na hora da chamada, erguia a mão e abaixava furtivamente a cabeça, como se
a sua presença fosse um insulto. Se a professora fazia uma pergunta, antes de respondê-la,
escutava a risada de um colega, o sussurro de outro, e então pressentia que iria falhar, o que
de fato acontecia: ele, paralisado, sem resposta alguma, sob o olhar da classe inteira.
Tropeçava no perigo que ele próprio, e não o mundo, deixava em seu caminho. Queria não
ser daquele jeito. Mas era. Às vezes, entristecia-se até nas horas de alegria: quando jogava
futebol com o irmão e perdia. Ou, quando, no parque de diversões, se negava a ir na
montanha-russa, no chapéu mexicano. Era tudo o que sonhava. Experimentar aqueles
abismos. Mas não conseguia. Vai, filho!, a mãe o incentivava. Eu vou com você, o pai
prometia. Fitava o irmão que subia no brinquedo, acenava lá de cima, gritava e se divertia,
enquanto ele se segurava firme no seu medo, inteiramente fiel. Se vivia inquieto na sala de
aula pela certeza de se ver, de repente, numa situação que o intimidaria, às vezes se esquecia
de seu desconforto, encantado com o universo que a professora lhe abria, as letras do
124

alfabeto, os desenhos na lousa, um trecho de música que ela cantava, uma graça que fazia.
E aí ele ria, ria com sinceridade, e, subitamente, se reencontrava, menino-menino. No
intervalo, aquela calma provisória, quando o pátio se inundava de alunos. Na multidão,
ninguém o notava, nada tinha a recear, era a sua hora macia. E assim foi até aquela manhã.
Pegava seu sanduíche, quando percebeu que um garoto, o maior de todos, se acercava.
Espantou-se, ao dar a primeira mordida no pão e ver o outro à sua frente — tão
desproporcional se comparado aos demais alunos — o corpo comprido, a voz firme, Eu sou
o Diego, e sorrindo, Você é do primeiro ano, não é? Ele confirmou com a cabeça, para não
responder de boca cheia. E, logo que o outro disse, Eu nunca te vi aqui!, o menino sentiu
que estava diante de um desafio, como se num quarto escuro, o dedo no interruptor pronto
para acender a luz. Diego o observava com mais fome nos olhos do que na boca, seguia o
movimento de suas mandíbulas, à espera da merecida mordida. Tá bom o sanduíche?,
perguntou, e o menino respondeu Tá, e quis saber, Você já comeu o seu?, o que só serviu
para alargar a vantagem de Diego, Não, nunca trago lanche, eu sou pobre. O menino
perguntou, Quer um pedaço?, pensando que o outro se contentaria com a oferta, nem
supunha que o gesto o conduziria mais depressa a seu destino; era uma entrega superior a
que ele imaginava. Diego o mirou, satisfeito, e apanhou o pão com voracidade. Sentou-se
no chão e se pôs a comer em silêncio, um silêncio faminto que pedia o olhar do mundo —
tanto que o menino, ao seu lado, degustou a cena, orgulhoso por lhe saciar a fome. Se antes
era frágil, casca de ovo, agora ele se sentia forte. Descobria uma grande vida dentro de si.
Porque, antes que continuassem a conversa, ele sabia: fizera um amigo. E Diego, que
conhecia melhor essa cartilha, levantou-se e disse agradecido, Se alguém mexer com você,
me avise! Com a amizade de Diego, e a sua força a favorecê-lo, ninguém o afrontaria.
Imaginava ter um trunfo, mas também podia ser um erro. Como adivinhar? Estava lá para
aprender. E aprendeu rápido a lição que Diego lhe deu, na semana seguinte, ao dizer, Minha
mãe tá doente, precisa de remédio e a gente não tem dinheiro. O menino — para mostrar
que era bom aprendiz — superou a culpa e entregou ao outro, dias depois, umas cédulas que
pegara às escondidas da bolsa da mãe. E então começou um tempo em que o perigo era a
estabilidade que Diego lhe garantia. Os dois ficavam juntos no intervalo e quase sempre
encontravam-se no fim da aula no portão da escola. O amigo o acompanhava até a casa,
cumprindo a sua parte no pacto, e recebia em troca o que lhe faltava: o sanduíche, o estojo
de lápis coloridos, os pacotes de figurinhas. Diego sorria. E olhava para ele em silêncio no
momento da paga — como um aluno que desafia o mestre. O coração do menino batia alto,
incapaz de acordar a desconfiança que o embalava. Diego sorria — e sonhava. Sonhava com
125

uma bicicleta. A amizade entre eles atingiu o ápice no dia em que Diego se meteu numa
briga, quando outro marmanjo, no intervalo, esbarrou sem querer no garoto e derrubou-lhe
a garrafa de suco. Diego vingou o amigo — e foi suspenso da escola por uma semana. O
menino viu no episódio a prova de que o outro lhe era plenamente leal. E nem precisou
pensar numa recompensa: Diego a cobrou ao retornar às aulas, dizendo que precisava de
mais dinheiro para as injeções que mãe, agora, tinha de tomar. Era a vez do menino, a sua
prova. E apesar da angústia, ele mostrou que sabia tudo de gratidão: manteve-se aferrado à
sua mentira ao ver o irmão de cabeça baixa, a mãe chorando, o pai de lá para cá à procura
do dinheiro que sumira da carteira. E, então, sentado na soleira da porta de casa, dias depois,
o garoto viu Diego lá no fim da rua, pedalando uma bicicleta. Diego acenou de longe e, ao
se aproximar, abriu um sorriso para o amigo. Ele se ergueu vacilante, apoiando-se na parede.
Agora, estava mais sozinho do que nunca. E sentiu medo. Muito medo.
126

ANEXO 4

GRANDES FEITOS

Porque era sábado, a família podia despertar mais tarde e viver umas horas de descuido. O
casal não iria ao trabalho nem o filho à escola; tinham os três mais tempo para si mesmos.
A semana inteira viviam a fazer o que era preciso e assim, entre atos e palavras, tocavam-se
apenas como as margens de um rio toca a paisagem que seu curso delimita. O homem, o
primeiro a acordar na casa, abriu a janela do quarto e deu com o sol já em seu esplendor,
envolvendo os espaços com uma grossa demão de luz. Um dia como aquele era quase uma
dor de tão lindo, quase não cabia no homem. Nem mesmo a janela suportava a claridade que
a atravessava para iluminar, à cabeceira da cama, o rosto de sua mulher no travesseiro. E,
mesmo sem abrir os olhos, a mulher sabia que lá fora — além de suas pálpebras e das paredes
— o verão fulgurava acima das casas. Igual ao marido, ela despertou feliz, espreguiçou-se
pronta para desfrutar aquele bônus da vida, experimentando no íntimo uma paz profunda e
sentindo que as angústias continuavam dormentes, como se vigorassem em turno
incompatível com a sua vigília — e, por isso mesmo, enquanto o destino se distraía, era hora
de se entregar à felicidade. O menino ainda dormia. O homem trancou a porta do quarto à
chave, voltou à cama e abraçou a mulher. Ficaram ali um tempo, enlaçados, desfrutando o
langor de quem nada tem a fazer, senão prolongar o seu deleite. Àquela hora só havia espaço
para a comunhão, e ela era tão visceral que o mínimo ruído a perturbaria. Se pudessem,
desligariam o canto dos pássaros e o rumor da respiração arfante que eles mesmos
produziam. Por fim, levantaram-se e foram tomar banho. Entraram no boxe, uniram-se sob
o jato da ducha, e então igual a água caudalosa, a conversa brotou e foi escorrendo dos dois,
sem pressa. Vestiram-se em seguida, sentindo a pele fresca como a manhã que continuava a
vazar pela janela adentro, e que nem dava mostras de que envelhecia — era preciso cerrar
bem os olhos para captar o seu avanço, lento. Os dois iam trocando impressões sobre fatos
mundanos, esquecidos de que aqueles momentos passavam definitivamente. Descontraídos,
queriam usufruir a manhã e, depois de arrumarem a cama, foram para a sala. De lá, ele saiu
à varanda, apanhou o jornal entre os canteiros do jardim e sentou-se na cadeira para ler as
notícias; ela seguiu para a cozinha e se pôs a preparar a mesa do café, não sem antes abrir a
porta dos fundos. O sol se infiltrava por entre os galhos das árvores no quintal; o vento,
vindo de longe, movia suavemente as folhas. Era a mesma cena, cotidiana, mas a mulher a
mirava com olhos demorados, e assim as coisas ganhavam uma nova aura — ou a aura podia
agora ser vista. O menino apareceu ali, subitamente, ainda de pijama, e ficou a ver o dia
127

funcionando, como um brinquedo, lá fora. A mulher o enlaçou e disse, Bom dia, meu amor,
e esse “meu amor” era tão sincero que, para um estranho, soaria falso — era unicamente
dela e de seu filho —, e então perguntou-lhe, Dormiu bem?, e ele, movendo a cabeça num
sim, afastou-se, atravessou a porta e foi até o quintal. Ela terminou de preparar o café, sem
reparar no que o menino fazia, mas só de tê-lo ali, próximo, sua satisfação se alargava. Tanto
quanto o marido na varanda e o filho no quintal, ela vivia o instante sem planos, e começou
então a cantar baixinho, apenas para si, evitando quebrar aquela harmonia que reinava. Não
demorou, estavam todos à mesa, a verdade no silêncio de cada um, e, enquanto conversavam
uns assuntos que estavam à mão, os momentos vinham para que os provassem — à
semelhança do pão e da manteiga. E, como tinham o sábado pela frente, o sol se aderia,
inexorável, à todas as coisas e as dores estavam adormecidas — logo despertariam, de modo
inevitável —, eles, finalmente, se levantaram da mesa e foram fazer essas coisas que todos
fazemos enquanto estamos vivos.
128

ANEXO 5

MUNDO JUSTO

Foi, foi naquele tempo que eu descobri, e de lá pra cá, ano após ano, eu só confirmo, é assim,
invariável, essa lógica do mundo, se a gente ganha alguma coisa, por mérito ou por sorte, no
minuto seguinte, pronto, trem de um lado, trem do outro, como se pra compensar, pra manter
os nossos pés bem cimentados na terra, mas eu ainda não sabia, nem desconfiava, era a época
de aprender sem ir até o fundo, pra começar eu nem me lembro de onde me veio o gosto pelo
basquete, quase ninguém se interessava, todos os garotos queriam ser craques de futebol, e
eu, de repente, louco pra ver a trajetória da bola lá no ar, girando às alturas e caindo, perfeita,
dentro do cesto, sem tocar o aro, chuá, mais bonito ainda se fosse de longe, de três pontos,
Vamos, vamos, use a tabela se precisar!, o Urso gritava, o Urso se chamava Nelson, peludo
daquele jeito, quem ia chamá-lo pelo nome?, e ele até que gostava, Não deixa o cara
arremessar, cerca ele, olha o rebote, o rebote, o Urso era rude com a gente, cobrava
empenho, mas aí, de uma hora pra outra, o Urso falava macio, a vida também fazia as suas
contas nele, regendo o justo das coisas, uma perda aqui, um ganho correspondente lá. A vó
morava com a gente, Não leve isso tão a sério!, ela dizia, sentada na cadeira da varanda,
quando me via voltar triste, É só um jogo, menino!, e a mãe, na cozinha, pulando o olhar de
uma panela a outra, o cheiro bom da comida sendo feita, Que cara é essa?, nem sempre se
ganha, filho, vai, vai tomar seu banho, e o pai, A lição de casa, a lição, é isso o que
interessa!, e eu no quarto, me enxugando, o Edu no beliche, lá nos seus quietos, sempre
mergulhado num livro, e, de repente, ele de volta ao nosso mundo, Como foi o jogo?, quantos
pontos você fez?, e aí eu já me sentia bem de novo, por estar em casa, entre a família, todos
na compreensão, e o Edu mais, porque o Edu não só perguntava, o Edu torcia, ele alegre se
eu alegre, ele me consolando se eu desanimado, o Edu, apesar de mais novo, já sabia antes
de mim, não tenho dúvida, aquela lei estava acima das outras, da gravidade, da
termodinâmica, de todas, o Edu, de tanto se enfurnar naqueles livros, sabia me ler, letra por
letra, o Edu, quando eu chegava com a vitória no rosto, me sentindo o Michel Jordan, Fiz
cinco cestas de três, sete de lance livre, ele estourava de felicidade, como se fosse o próprio
pivô do time, mas, em seguida, o Edu se metia, tchibum, no livro novamente, e ficava quieto,
como se dizendo com o seu silêncio, agora se prepare, no fim do dia tudo vai empatar. Eu
não associava uma coisa com a outra, que a vida num instante a gente não tem no instante
seguinte, eu feliz com o meu desempenho no jogo e o sono, na via oposta, demorando pra
vir, pra dar o troco, e no meio dele umas cenas assustadoras, do mundo agindo no seu maior
129

mal, minha imaginação ainda miúda se comparada com a maldade disseminada pelos
homens — isso eu descobri bem depois —, eu sem conhecer a precisão desse aparelho, e
agora, agora eu posso ver o seu mecanismo inteiro, como se o véu, que cobre suas vísceras,
fosse vidro, tão transparente, agora eu até posso ver seu coração funcionando, tic-bem-me-
quer, tac-mal-me-quer, tac-bem-me-quer, tic-mal-me-quer, a ordem dos fatores não altera as
contas exatas, sempre o mesmo resultado, sempre. Porque, se era o contrário, e o nosso time
tinha se saído bem, e eu, cestinha ou não, voltava eufórico, aí tudo seguia por outra artéria,
pra depois, claro, se encontrar lá na frente e refazer o equilíbrio, pesos alinhados, a vó, entre
as samambaias, Menino, é só um jogo!, e a mãe com a costura sobre os joelhos, Hoje vocês
ganharam, não?, e o pai, mais tarde, Quantos pontos, campeão?, e eu, no quarto, começando
a ver o outro lado já atuando, pra diminuir o placar, o Edu no beliche, encorujado, sem forças
pra segurar um livro, pra perguntar, Trinta a quinze, uma lavada, mano, e a diferença caindo
até tudo se igualar na noite funda, o Edu daquele jeito, tosse, falta de ar, tosse, a partida fora
das minhas mãos, eu, igual a todos na plateia, tendo de aceitar. E assim foi, mas eu nem
notando, se a gente está de olho num alvo, numa pessoa, deixa escapar o entorno, as outras
pessoas, no centro da quadra ninguém é o “ao redor”, e aí o Urso montou o time do colégio
pra disputar o torneio regional, eu era dos mais novos, mas já bem alto pra minha idade,
pernas compridas, Puxou o seu avô, a mãe dizia, e o Urso, Você vai ser o pivô, e eu pensei,
Caralho, que responsa!, e foi exatamente no dia em que recebemos o boletim e, pra
compensar, tinha lá aquela nota vermelha, cinco em matemática, e aí eu pedi pro pai comprar
uma bola, o aro eu mesmo adaptei com um balde velho e preguei na parede do quintal, e o
pai, Só se você der a virada em matemática, promete?, e eu, Prometo!, e, então, na prova
seguinte, oito em matemática, eu comecei a treinar arremesso em casa, jogava até no escuro,
pra não depender dos olhos, às vezes a mãe já chamando pra jantar, as luzes da cidade acesas,
e eu lá, firmando a mão, chuá, cesta de dois, chuá, cesta de três, com tabela, sem tabela,
enterrada, eu aprendendo a acertar sem ver o aro, o corpo todo a minha mira, e se tinha
alguém me marcando aí é que eu não errava, em caminho livre se aprende pouco, as pessoas
no convívio é que nos aumentam. Eu chamava o Edu, Vem, mano, joga comigo, e ele, dentro
de um livro, só as sobrancelhas de fora, Mas eu não sei jogar, e eu, Não tem problema, é só
pra me atrapalhar, e a gente ali, aquele solzão na cabeça, ele comas mãos na minha cara,
desajeitado, mas feroz como marcador, me atrapalhando bem, e era o que eu precisava, e, aí,
depois, em troca, eu tinha de ouvir ele me contar uma história, íamos perto da linha de trem,
sentávamos debaixo de uma árvore, o Edu se punha a ler em voz alta, enquanto andava sobre
os trilhos, e eu, que não era nada paciente, ficava ali, escutando ele, uma vida inteira pra
130

quem não passava de três segundos no garrafão, e no começo eu ainda comigo mesmo,
pensando em jogadas, em lances do fundo da quadra, até que de repente as palavras, então
só palavras, saíam de sua própria pele e eu, agarrando-me nelas, captava o variado do mundo,
as palavras iam me alargando a consciência, tudo maior do que eu via, as montanhas-estátuas
lá adiante, o canavial ondulando ao vento, o céu azul e sério sobre as nossas cabeças, eu sem
notar claramente, mas já pressentindo que as histórias também seguiam aquela lei, o sol nos
entristecia numa página, as sombras nos alegravam na outra, o Edu, daquele jeito, distraía a
realidade pra eu flagrar o ponto frágil dela. E o campeonato lá, semana sim, semana não, a
gente tinha um jogo aqui, ou nas cidades vizinhas, e ninguém dava nada pela nossa equipe,
mesmo depois de sete rodadas e sete vitórias, sorte, adversários fracos, motivos não faltavam
pra diminuir nosso avanço, só o Urso devia saber que a gente ia longe, o Urso não tinha
ganho nada até então, sequer chegara às oitavas, mas daquela vez o time tinha mesmo bons
jogadores, garra pra vencer, e todos obedeciam o Urso, O corta-luz, faz o corta-luz,
arremessa, arremessa, marcação por zona, o Urso, pilhado, ele devia saber que era a sua
vez, a vida toda de perdedor, tava na hora da balança pender pro lado dele, a lógica, como
uma cobra, serpenteava no meio dos fatos, juntava uma pessoa com a outra feito fios, tecia
suas infinitas combinações e o resultado, sempre exato, vinha não quando a gente queria,
mas no tempo dele, a certeza dentro da certeza, como camadas de cebola. Então, numa
partida, eu cestinha, quinze pontos, e à noite a chuva, as goteiras na casa toda, quem é que
dormia?; eu num daqueles dias ruins, como se um desaprendiz, e, depois, a travessa enorme
de batata, tanto tempo que mãe não fritava pra nós; e a gente ganhando no último minuto
dos maristas de Ribeirão, e o pai nos nervos, Vou esconder a bola, arrancar o aro do quintal,
duas notas vermelhas no boletim; e aí, sempre assim, o lado “A” dos fatos e depois o lado
“B”, ou vice-versa, até que chegamos à final, contra os meninos de Franca, a melhor de três,
o primeiro jogo aqui, trinta e seis a trinta e dois pra nós — e a vó vomitando dois dias
seguidos, Tinha de comer tanta carne de porco?, o pai ralhava —, e o segundo jogo na
quadra deles, onde os profissionais do Francana treinavam, eles encapetados naquele dia,
marcavam homem a homem, armavam a jogada sem pressa, tinham um ala que era igual o
Oscar, de onde arremessava ele acertava, chuá, o Helio Rubens na arquibancada, devia ter
ajudado os meninos lá, levamos de quarenta a vinte e oito, eu, que tinha tudo pra brilhar,
errei bola fácil, seis lances livres, a quarta falta no início do terceiro quarto, o Urso me puxou
pro banco e lá eu fiquei até o final do jogo, encolhido, a derrota doendo. Mas, naquela noite,
veio o inesperado, pra igualar os dois pratos da balança, apesar de que ele, o fato, estava ali,
noutros dias, esperando a gente vir pra se mostrar, a família ao redor da tevê, assistindo à
131

novela, o verão forte de suar dentro de casa, e a mãe, ajudando a vó a se sentar na cadeira lá
fora, Aqui tá mais fresco, e o pai, atrás das duas, Ventinho bom, e eu, encolhido no sofá,
caramujando, pra desviar da tristeza da tarde, também saí, arrastei uma cadeira até eles, e o
Edu veio por último, pra não ficar sozinho na sala, se bem que o Edu era ele mesmo, em
qualquer lugar, um livro na mão e ele desgrudado desse nosso mundo, mundo que o pai dizia
ser sólido igual barra de ferro, mas eu discordava dele, eu achava que o real não se pegava,
tinha seus contornos definidos, a igreja ali na frente igreja, o canavial lá adiante canavial, a
pedra na mão pedra, mas, às vezes, eu sentia que o mundo era miragem, como quando, de
relance, eu mirava a cesta e atirava a bola, sabendo que não ia acertar, que o aro de metal
estava nos meus olhos e não lá no alto, pregado na tabela, eu achava que a gente, todas as
pessoas no nosso tempo maior, viam o mundo por uma neblina de sol, as coisas sem ser o
que eram, de verdade, pra nós. Aí a mãe contou um episódio, o pai fez uma pergunta, a vó
já no cochilo, ela sempre com ela, se preparando, a vó no aceite de tudo, e, de repente, o
Edu, do meu lado, a voz baixinha, apontando lá pros altos, e, então, eu vi, elas todas, e eram
tantas, tantas, espetadas no céu, as estrelas, as estrelas, até doía a gente ver, de tão bonitas,
por si só, e no conjunto, espalhadas. O Edu, muito do silencioso, lia uma por uma, bem
natural, como as palavras, e elas deviam dar num texto que ele entendia, porque ele grudado
inteirinho naquela página da noite, e aí eu me peguei a imitá-lo, e fixei tão fundo o olhar
nelas, que, do nada, me senti subindo, subindo, como se fosse pra uma enterrada, o nariz
tocando o azul escuro do céu! Tudo igual de novo, o justo justo, e aí o terceiro jogo era em
campo neutro, Jaboticabal, a gente ainda com a lembrança da derrota, todo mundo quieto,
no seu sozinho, o pressentimento, Não vai dar, os caras são melhores, e até o Urso, a gente
ouvia a mentira no grito dele, Vamos lá, vocês já ganharam uma vez!, e, pronto, o jogo
começou! A lei estava lá, funcionando, alheia ao barulho das torcidas, eles na frente, dez a
oito, depois a gente, cartoze a doze, falta aqui, falta ali, o ala deles fazendo uma cesta de três,
chuá, e eu também, chuá, e eu de novo, chuá, mais três, no placar vinte e dois a vinte e dois,
o Urso pedindo pressão na quadra toda, e eu, assim, do nada, esqueci daquela responsa, com
o pé na diversão, jogando sem peso nenhum, como lá em casa, no escuro, sabendo, sem
precisar olhar onde estava o aro, e chuá, chuá, e mais uma, chuá, de três pontos, o Urso
rindo, o técnico deles roendo as unhas, Caralho, o que deu nesse moleque?, e eu, num giro,
com ajuda da tabela, mais dois, e eles, claro, querendo me quebrar, eu no rebote dentro do
garrafão, cotovelada no rosto, e ela lá, a justiça fria, fria, o pivô deles expulso, a gente
ampliando, depois umas bolas perdidas, eles de novo, vingativos, empate, trinta e cinco a
trinta e cinco. E assim foi até o final, eu uma enterrada, falta no nosso ala, mais dois pontos
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de lance livre, uma de três pra eles, e aí deu no que deu, quarenta e seis a quarenta e um pra
nós, quem diria, campeões, campeões, desculpa aí, Helio Rubens. Então, na alegria da
comemoração, nas tantas coisas que se faz quando a gente está nela, em grupo, todos naquela
hora de grandeza, de rir de si e dos demais, um mais eufórico provocando o Urso que ia
sentado no primeiro banco, sem falar nada, o Urso, acho que ele nem acreditava ainda na
nossa vitória, os quilômetros, os quilômetros foram se encolhendo, e eis que já estávamos
chegando na cidade, um quarteirão a mais — o colégio. Ali, aquele vozerio de despedida, o
time se desfazendo, dois pra aquela rua, três pra aquela outra, e eu sozinho, voltando ao
mundo, devagar, e, de repente, dava pra ver, entre as casas lá embaixo, uma aglomeração de
gente, pros lados da linha de trem, e, no mais, a cidade no silêncio, sem vento pra tirar o jeito
de estátua das árvores, nenhum galho a cair na minha frente, tudo no seu resguardo pra eu
ouvir, pra eu descobrir. E aí, não sei porquê, me veio a certeza, a justiça se fazendo à revelia
da gente, pela ordem dessa lei, e aí eu reduzi o passo, não querendo aceitar aquilo que vinha,
já no avançado da realidade, e pensei primeiro na vó, podia ser com ela, pela idade, mas não
era, eu sabia; pensei no pai, mas o pai não, ele sobrava de saúde; pensei na mãe, mas a mãe,
eu me sentia no ventre dela de novo, não querendo vir à vida, me demorando, pra não saber.
E aí, lá embaixo, eu vi de novo, por um outro ângulo, aquela gente toda perto da linha de
trem, e, como se tudo luz, eu vi no fundo desse meu ver, na plena claridade, o Edu, o Edu
com um livro na mão, andando sobre os trilhos, trem de um lado, que ele via, trem do outro
que ele não viu, o Edu, o Edu, ele sabia do resultado bem antes de mim.
133

ANEXO 6

Espaço, lugar e tempo

Por Visca

Andar faz parte da minha rotina. Um exemplo: 5h30 da manhã toca o despertador. Minha
filha adolescente, que entrou no 8o ano, me chama já pronta. Pai? Vamos? Respondo: Sim.
O susto do horário já não permite aquele “Bom dia” gostoso. Me troco rápido, lavo o rosto,
escovo os dentes e pergunto: Comeu alguma coisa? Bebo um copo de água, confiro a
carteira, as chaves, pergunto: Vamos? Saímos. Cedo, a hora passa muito rápido. 6h05 já no
ponto. Ela pega o celular, pluga o fone com aquele ar de desprezo com o dia que começa e
o coloca no ouvido. 6h10 o coletivo chega. Subimos. É verão e está escuro. As ruas estão
vazias, pessoas com sono sobem aos poucos, mas não dá tempo de ficar totalmente lotado.
Já temos que descer. Tchau, se cuida. Volto só e aflito, sempre pensando em como ocupar
melhor esses frágeis espaços de tempo, sempre falta algo pra dizer a ela.
134

Quando comecei a ler o Aquela água toda para fazer este trabalho, fui logo fisgado por certa
angústia sobre a frágil relação que temos com nossos espaços, tempos, lugares, relações
pessoais e situações ao longo da vida. Essa sensação acabou sendo um dos pontos de partida
no projeto.

Para mim, fazia sentido que, para encontrar o caminho de construção dessas imagens, eu
tivesse que chegar o mais próximo possível dos espaços onde estariam exemplos
semelhantes de tempos e situações perdidas; as experiências marcantes que estavam
presentes nos contos de João Anzanello Carrascoza. Vi que o trabalho não estava no meu
estúdio, nos meus guardados, referências, cadernos de desenho, tão pouco na internet. Tive
que ir buscá-lo lá fora.
135

Andar a pé por conta de minha logística pessoal ajudou nisso, então diariamente desconstruí
meu ir e vir, criando pequenos e diferentes percursos em busca desses lugares de tempo,
“lugares fluxo”. Andando pela cidade, usei a fotografia como pesquisa. Já no estúdio, a
repetição desse observar: organizando e editando esses registros. Uma nova repetição surge
enquanto desenho fragmentos dessas cenas e incorporo outros elementos de lembranças
pessoais e dos contos. Depois, veio a pintura e a aquarela — seu descontrole associando
semelhanças entre as imagens e construindo, assim, esta série de ilustrações.
136

Só tenho a agradecer a Carrascoza e sua poética com


Aquela água toda, que me proporcionou de forma muito
sensível a oportunidade de olhar melhor para o tempo
presente. Sem essas histórias, eu certamente não teria
encontrado essas imagens. Agradeço também ao Alceu
Nunes e à editora pelo convite para o trabalho.

***

Equilibrado e repleto de realismo e sensibilidade, Aquela


água toda é um dos
principais exemplos da
força emotiva da prosa de João Anzanello Carrascoza. No
conto que dá nome a esta coletânea, um simples domingo de
verão na praia se transforma, pelas mãos do autor, em um
exemplo singelo de beleza. Já em “Passeio”, a expectativa
por um fim de semana diferente leva toda a família a um
estado de excitação e suspense. O primeiro beijo, descrito
no conto “Cristina”, vem carregado de todo desejo inocente
da primeira juventude. Mas também existem lembranças
dolorosas, como a cobrança do aluguel atrasado no conto
“Paz”, que incita um jovem garoto a se preocupar com a
mãe. Conjunto expressivo da obra de um dos principais
contistas contemporâneos, Aquela água toda é magistral.
Nesta nova edição, o artista plástico e ilustrador Visca compõe algumas imagens que
expressam toda a potência e delicadeza das palavras de um dos autores mais sensíveis do
país.

*****

Visca é ilustrador e artista plástico. Ilustrou o novo livro de João Anzanello


Carrascoza, Aquela água toda, que acaba de ser lançado pelo selo Alfaguara.

Disponível em: <http://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Espaco-lugar-


e-tempo>. Acesso em: 14 dez. 2019.

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