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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

FIGURAÇÕES E AMBIGUIDADES DO TRÁGICO:


experiências constituintes do estilo na obra de Lya Luft

Iara Christina Silva Barroca

Belo Horizonte

2011
Iara Christina Silva Barroca

FIGURAÇÕES E AMBIGUIDADES DO TRÁGICO:


experiências constituintes do estilo na obra de Lya Luft

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para o título de Doutor em
Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Suely Maria de Paula


e Silva Lobo

Belo Horizonte

2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Barroca, Iara Christina Silva


B277f Figurações e ambiguidades do trágico: experiências constituintes do estilo na
obra de Lya Luft / Iara Christina Silva Barroca. Belo Horizonte, 2011.
246f.: il.

Orientadora: Suely Maria de Paula e Silva Lobo


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Literatura brasileira – Crítica e interpretação. 2. Luft, Lya, 1938-. 3. O


trágico na literatura. 4. Ambiguidade. I. Lobo, Suely maria de Paula e Sivla. II.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação
em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81).09
Iara Christina Silva Barroca
Figurações e ambiguidades do trágico:
experiências constituintes do estilo na obra de Lya Luft

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para o título de Doutor em
Literaturas de Língua Portuguesa.

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Suely Maria de Paula e Silva Lobo (Orientadora) – PUC Minas

______________________________________________________________
Profa. Dra. Constância Lima Duarte – UFMG

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura – CEFET MG

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Gerson Luiz Roani – UFV

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Johnny José Mafra – PUC Minas

Belo Horizonte, 15 de novembro de 2011.


Para Alarcon,
pelo constante sim à realização dos meus sonhos e dos meus projetos pessoais,
manifestado nas diárias atitudes de distinta sabedoria, de incomparável
compreensão e de irrestrito companheirismo, em todos os momentos.

Para Suely Maria de Paula e Silva Lobo,


pela amizade e pelos preciosos ensinamentos manifestados na convivência
diária.Pelo afeto, e por ter feito de mim uma pesquisadora, uma mulher, uma
professora, uma aluna e uma pessoa distintivamente melhor.
Por ter coberto com pétalas – perfumadas –
as pedras do caminho

Para Lya Luft


– admiração maior, inspiração, motivo desta pesquisa –, pela amizade que
transcendeu as páginas dos livros e as casas das ficções.
AGRADECIMENTOS

À Professora Dra. Suely Maria de Paula e Silva Lobo, pela competência e


pela cuidadosa e refinada orientação que me deram coragem e segurança para
desempenhar, com extrema seriedade, este trabalho. Pelo calor humano da
acolhida, pelos preciosos conselhos e pela disponibilidade irrestrita à realização
deste meu projeto.
À Professora Dra. Constância Lima Duarte, pela inspiração e pelo constante
incentivo a toda e qualquer atividade de pesquisa. Pela calorosa acolhida no Grupo
de Pesquisa Letras de Minas, pela ajuda incondicional, e por todos os momentos
compartilhados.
Ao Professor Dr. Johnny José Mafra, pela incansável motivação com que
sempre me acolheu, pelas aulas preciosas, pela amizade e pela partilha de tantos
saberes – atitude imprescindível na constituição deste trabalho.
À querida Maria Inês – presença especialíssima em minha vida, amizade
imortal em meu coração – por ser verdadeiramente amiga em todas as horas.
A meus pais – pérolas – tesouros da minha vida.
A meus irmãos, Victor e Bruno, riquezas do meu mundo, pela coragem e
determinação que em mim inspiram força e resistência. E pela alegria, acima de
tudo.
Ao meu irmão Gustavo (In Memoriam), pelo sangue ainda vivo, corrente e
pulsante em minhas veias, para sempre.
Aos meus queridos familiares, que cobriram muitas arestas neste percurso.
À família do Alarcon, que, há tempos, tornou-se minha também.
Ao querido Padre Rafael Caetano Moreira, pela amizade, por toda ajuda e
pela especial presença em todos os momentos.
Ao Professor Dr. Albert Carlo Mendes, pela amizade incondicional, pelo apoio
e pelos preciosos momentos em tempos tão difíceis.
À Professora Dra. Aparecida de Araújo Oliveira, pela amizade preciosa, pelos
sábios conselhos e pelos momentos de intensa companhia.
Ao Professor Dr. Antônio Cezar Pereira Calil, diretor do Campus UFV de
Florestal, pelo irrestrito apoio à realização deste meu trabalho.
À Vera e Berenice, por tantas gentilezas e ajudas inagradecíveis.
À Cláudia Márcia da Silva Marciano – a Claudinha – por toda ajuda, e pela
constante disponibilidade em me atender, em todos os momentos.
Às queridas meninas do grupo de pesquisa Letras de Minas – pela presença,
pela amizade, pela partilha de grandes momentos. E ao Marcelo, que é presença tão
especial no nosso grupo.
À Rosário, pela amizade e pelas experiências compartilhadas.
À Luana – minha querida Luluca – pela ajuda imprescindível, e pela
delicadeza de sua amizade.
À Fátima Peres, querida amiga, pelo apoio e pelo convite a tantos novos
projetos.
Aos colegas professores do Campus de Rio Paranaíba, por todo apoio e
cooperação durante os momentos mais difíceis.
À Universidade Federal de Viçosa, pelas oportunidades concedidas para o
desenvolvimento desta pesquisa.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
A todos os amigos que se sabem do meu coração.
Eu não convoco a arte: ela é que me chama. Sua mão faz
um aceno, e corro; sua voz dá um sussurro, e morro.
Nela busco o essencial: um traço, uma vírgula podem ser
o pecado da demasia, e mal respiro para não perturbar essa
busca do momento exato em que se atinge o ponto certo, o
ponto cego – que é o não saber nada, o momento da entrega,
a pura intuição. Ali o conhecimento e a técnica, a experiência e
a prática se desprendem de nós, e ficamos sozinhos.
E tudo adquire algum significado que nem sempre
chegamos a alcançar. Mas certamente ele está à espera de
que a gente chegue à necessária simplicidade e despojamento
para poder perceber.

Lya Luft
RESUMO

Este trabalho pretende apontar o trágico como elemento constituinte de um estilo na


obra de Lya Luft. Para tal pesquisa, foram analisadas as diversas figurações que o
trágico assume especialmente em seus romances, bem como as ambigüidades que
se constituem em torno dele, enquanto elemento constituinte de um estilo de escrita.
Devido à diversidade de gêneros literários a que Lya Luft se dedica, optamos por
delimitar, como corpus deste trabalho, os últimos romances da autora, até os dias
atuais: Exílio, A sentinela e O ponto cego. Diante dessa proposta, foram traçados
itinerários teóricos sobre o trágico, desde a vivência desse sentido trágico na
perspectiva dos gregos até a experiência do trágico sob a ótica Nietzscheana, que
compreende, no trágico, uma perspectiva afirmativa da existência. Sobre o estilo,
foram também traçados percursos teóricos, para que a ele pudesse ser conferido o
tom que define, enquanto traço a escrita de Lya Luft. Outros elementos constituintes
desta pesquisa são corpo e memória, uma vez que, enquanto elementos recorrentes
nas narrativas abrigam, por isso, os diversos sentidos que o trágico assume nos
romances de Lya Luft.

Palavras-chave: Trágico. Estilo. Ambiguidades. Corpo. Memória.


RÉSUMÉ

Ce travail a pour but de montrer le tragique comme un élément constitutif d’un style
dans l’oeuvre de Lya Luft. Pour cette recherche, nous avons analysé plusieurs
figurations assumées par le tragique dans ses romans, ainsi que les ambiguïtés qui
se constituent autour de lui autant qu’élément intégrant un style d’écriture. En
fonction de la diversité de genres littéraires auxquels Lya Luft se dédie à produire
ses textes, nous avons délimité comme corpus de ce travail les derniers romans de
l’auteur jusqu’au temps actuel: Exílio, A sentinela et O ponto cego. Face à cette
proposition, nous avons tracé des itinéraires théoriques sur le tragique, de
l’expérience de ce sens tragique dans la perspective des grecs jusqu’à l’expérience
du tragique dans l'optique nietzschéenne, qui comprend une perspective affirmative
de l’existence dans le tragique. Sur le style, des parcours théoriques ont été tracés,
pour que nous puissions lui conférer le ton qui définit l’écriture de Lya Luft autant que
trait. D’autres éléments qui constituent cette recherche sont le corps et la mémoire,
récurrents dans les récits, et qui abritent, pour cela, les plusieurs sens que le
tragique assume dans les romans de Lya Luft.

Mots-clés: Tragique. Style. Ambiguïtés. Corps. Mémoire.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................12

2 LYA LUFT: BIOGRAFIA E PERCURSOS LITERÁRIOS ......................................19


2.1 Percursos Acadêmicos: Dissertações e Teses sobre a obra de Lya Luft....46
2.2 Um depoimento especial ..................................................................................51

3 AS FACES DO TRÁGICO NA ESCRITA DE LYA LUFT ......................................54


3.1 Por um sentido do trágico ................................................................................54
3.2 A dimensão trágica da realidade humana no universo romanesco luftiano56
3.3 O caráter lúcido e a embriaguez do trágico ....................................................72

4 REVISITANDO O ESTILO .....................................................................................85


4.1 Os rumores do estilo e da escritura ................................................................92
4.2 O estilo sob o olhar da Psicanálise .................................................................97
4.3 O estilo e suas ressonâncias na obra de Lya Luft .......................................104

5 CORPO E MEMÓRIA: INTERFACES DO TRÁGICO..........................................123


5.1 A memória e seus espaços físicos e mentais...............................................129
5.2 O corpo e suas deliberações..........................................................................143
5.3 O corpo constituído sob o olhar da cultura ..................................................148
5.4 O olhar e o tempo: espelhos do trágico ........................................................179

6 CONCLUSÃO ......................................................................................................203

REFERÊNCIAS.......................................................................................................208

ANEXOS .................................................................................................................219
PERSONAGENS 1

As angústias que descrevo não são minhas:


são desses rostos colados na vidraça
da minha fantasia, ditando-me
os humanos desastres que eu invento.
Fazem-me sinais que nem sempre entendo,
trocam recados que mal adivinho
mas anoto aqui do jeito que posso,
enquanto eles fazem tremer de espanto
as minhas mãos que escrevem.
Eu, de tudo me protejo. Escuto suas vozes
na sombra que habitam: deixo que falem
num tom que não é meu, encenando
no palco da minha escrita o seu drama
de espectros.
PERSONAGENS 2

Num fino traço


faço o perfil de ninguém.
Quem quer ser alguém
nesta vida sombria
parida com sangue e papel?
Mas nos círculo que traço,
o nariz, os cinco dedos na ponta do braço,
donzela esguia ou boneco de engonço,
limito um novo ser: e me abraço
a mim, no poder de gerar um sinal
que instaure no nada um todo possível.
Quem faz de nós reis, deuses, réus
da nossa eterna contradição?
No texto que faço
separo o nada do nada,
abrindo o espaço
da minha interrogação.

Lya Luft
12

1 INTRODUÇÃO

Em todas as idas e vindas, obscuramente eu sempre sabia: embora tudo


mude, nada muda porque tudo permanece aqui dentro, e fala comigo, e me
segura no colo quando eu mesma não consigo me sustentar. E depois me
solta de novo, para que eu volte a andar pelos meus próprios pés. A vida é
mãe nem sempre carinhosa, mas tem uma vara de condão especial: o
mistério com que embrulha todas as coisas, e a algumas deixa invisíveis.
(LUFT, Secreta Mirada, 2005, p.113).

Lya Luft: “uma mulher gaúcha, brasileira, que faz cada vez mais [...] o que
desde os 3 ou 4 anos desejava fazer: jogar com as palavras e com personagens,
criar, inventar, cismar, tramar, sondar o insondável. Uma mulher que tenta entender
a vida, o mundo e o mistério e para isso escreve.” (LUFT apud FARIA, Palavra de
mulher, 2003, p.127).
Nascida em Santa Cruz do Sul, em 1938, Lya vem se dedicando à carreira
literária desde a década de 60, iniciada com a publicação de um livro crônicas e um
de poesias, e concretizada com a publicação de seu primeiro romance, As parceiras,
em 1980. E desde então, Lya segue traçando seus diversos percursos literários,
divididos entre a escrita de romances, de contos, de crônicas, de poesias e de
ensaios, e os trabalhos de tradução – a primeira atividade acadêmica desenvolvida
por ela, uma vez que Lya vem se dedicando às traduções desde os seus vinte anos
de idade. Nesse contexto visivelmente diverso, Lya Luft também é, atualmente,
colunista da Revista Veja, na qual escreve, quinzenalmente, para a coluna Ponto de
Vista.
É mediante essa diversidade de gêneros literários que esta pesquisa se
constitui, com o propósito de apontar as configurações que o trágico assume na obra
de Lya Luft, bem como a maneira com que essas configurações norteiam nossas
reflexões para a percepção de um estilo de escrita.
Embora se pretenda analisar a questão do trágico e do estilo nas diversas
manifestações de escrita de Lya Luft – seus romances, seus livros de crônicas, de
poesia e de reflexões –, fez-se necessário delimitar os livros que ilustrarão estas
nossas análises. Isso se deve, primeiramente, ao fato de que a obra de Lya Luft é
bastante diversificada, e, some-se a isso, a necessidade de serem feitos os devidos
recortes para o desenvolvimento da tese. Assim, escolhemos os romances Exílio
(1987), A Sentinela (1994) e O Ponto Cego (1999) como corpus deste trabalho.
13

Com o início de sua carreira literária consolidado em 1980, Lya Luft segue,
desde então, dedicando-se à arte da escrita. Seus romances se constituem como
material precioso para os estudos literários, especialmente porque abordam, de
forma pungente – dentre várias outras questões – tensões inerentes à condição
humana. Nota-se que há, em sua obra, uma grande preocupação em relação à
questão feminina, especialmente em relação ao papel que a mulher está
condicionada a representar em uma determinada sociedade. Entretanto, faz-se
necessário reconhecer que, para além dessa perspectiva, há uma inquietude maior
e mais forte, que se lança em direção à representação da condição humana. Essa
amplitude em relação à temática de Lya Luft, que, a partir do âmbito do feminino,
estende-se ao âmbito do humano, me remete às sábias palavras de Nelly Novaes
Coelho, em relação a essa estreita proximidade entre o contexto romanesco de Lya
e a realidade humana: “[...] a gaúcha Lya Luft [...] se inscreve dentro de uma das
tendências mais férteis da ficção moderna: a que registra as relações humanas,
presas à aparência inofensiva e rotineira do cotidiano, para depois ir rompendo sua
superfície tranqüila e, lá no fundo, oculto, tocar as paixões ou pulsações secretas
que revelam a duplicidade da vida vivida e / ou a mutilação interior dos seres que a
vivem.” (COELHO apud MEDINA, 1985, p. 8). E esta é uma das razões
determinantes para se pensar sobre o trágico e suas configurações na obra dessa
autora, pois entendemos que o trágico está intrinsecamente associado à condição
humana.
Denis L. Rosenfield (2001) nos afirma que é na busca de um sentido para o
trágico que se recortam diferentes abordagens da família, da política, da religião e
da ética. E a obra de Lya Luft se nos apresenta como terreno fértil para o
desenvolvimento dessas reflexões, especialmente porque ela contempla, nesse seu
espaço literário, diversificadas situações que nos aproximam, talvez, da nossa maior
inquietação, enquanto ser humano: a consciência da finitude humana, reconhecida
na presença da morte.
Esta pesquisa se motiva, então, a partir das diferentes configurações que o
trágico assume nesses espaços ficcionais: a vivência do trágico na perspectiva dos
gregos – que se assumiam capazes de suportar a dor da existência – e a vivência
do trágico na perspectiva de Nietzsche – que compreende o trágico através de uma
perspectiva afirmativa da existência.
14

Pesquisar a obra de Lya Luft foi uma escolha feita já há alguns anos, quando
decidi, em 2002, dar início ao desenvolvimento de um projeto de pesquisa para o
curso do Mestrado. Inicialmente, constituía-me a certeza de que eu trabalharia em
uma linha de pesquisa que privilegiasse os textos literários produzidos por mulheres.
Entretanto, não era minha idéia de trabalhar com a autora Lya Luft, especificamente.
Essa escolha se deu, então, a partir de um encontro com a Professora Dra. Suely
Maria de Paula e Silva Lobo, em uma disciplina de Literatura Brasileira, intitulada O
conto de autoria feminina. Durante esses encontros, que também foram decisivos na
constituição do projeto de pesquisa que resultou nesta tese, foram sugeridas leituras
de alguns textos produzidos por autoras contemporâneas, o que incluiu, nessa
proposta, o nome de Lya Luft, entre os de tantas outras autoras. E desde a primeira
pesquisa realizada sobre a obra dessa escritora, constitui-se, em mim, um forte
desejo de pesquisá-la, da forma mais abrangente possível. E como essa
abrangência, especialmente em nível de obra, não seria possível de ser
desenvolvida nos estudos do Mestrado, mantive minha pesquisa inicial baseada
somente na análise do romance As parceiras, para depois, enfim, me dedicar a um
estudo mais incorporado, que privilegiasse, por sua vez, uma leitura mais cuidadosa
de toda a obra da autora. E foi essa motivação que conferiu corpo à pesquisa que
aqui pretendo desenvolver.
Ao ler todos os livros de Lya, percebi que finos traços se esboçam na
construção de sua escrita. Traços novos e reincidentes, e, portanto, constantes, não
deixam de imprimir marcas nos textos que ali se pretendem apresentar / representar.
Esses traços, a meu ver, estão estreitamente ligados ao caráter trágico que ela
confere à sua obra. Diante disso, o trágico tornou-se, nesse estudo, a motivação
maior para a pesquisa, uma vez que a hipótese que nos propomos desenvolver aqui
consiste no fato de que as formas como o trágico é representado nos textos de Lya
Luft constitui um estilo em sua obra.
Diante disso, foram traçados vários percursos teóricos, que privilegiam os
estudos sobre o trágico – desde quando definido pelos gregos até onde elaborado
por pensadores mais modernos –, sobre o estilo, sobre o corpo e sobre a memória,
procurando realçar, também neles, as ambigüidades que os constituem. Esse trajeto
nos aproxima, então, da tentativa de reconhecermos o registro dessas marcas que
apontam para um estilo de escrita. Vislumbra-se um pouco do espírito desse estilo
15

nas palavras da própria autora, sobre a matéria de que se constituem os seus


romances:

Em quartos, corredores e salas, secreto e trivial escorrem misturados entre


pais e filhos, morte e nascimento, rancores e amor. Casas são importantes
para mim – meus livros falam disso. É nelas que o fio passa de mão em mão,
brotando das mulheres que mal se dão conta do indizível em seus ventres. Nas
casas lançam raiz futuras lembranças que, somando-se ao que já trazemos ao
nascer, vão nos deixar mais fortes ou mais vulneráveis. (LUFT, O rio do meio
2003, p.87).

Diante desta perspectiva, este trabalho consta de quatro capítulos. No


primeiro, intitulado Itinerários autobiográficos, percursos literários, procuro
apresentar dados autobiográficos da autora, bem como a trajetória literária que se
constitui em tantos e diversos livros. No primeiro momento, procurei apresentar o
máximo de informações possíveis sobre a vida e a obra de Lya Luft, para que fosse
dada a conhecer a história de vida que subjaz aos textos que ela produz. No
segundo momento, atentei-me por realçar as premiações que ela já recebeu, as
críticas sobre os primeiros romances, entremeando os fatos reais aos ficcionais.
Tentei também expor o contexto de todos os livros publicados até então, ainda que
discorrendo sobre eles sinteticamente. Optei, assim, por realçá-los, seguindo a
ordem cronológica de cada publicação, para que fosse possível visualizar o longo
trajeto literário traçado por ela. Ainda nessa seção, sugiro uma análise de leitura das
capas dos livros, uma vez que as ilustrações que as compõem, constituem um
material fértil para a leitura do trágico enquanto elemento formador do estilo na obra
de Lya Luft. A reprodução dessas capas será anexada ao final deste trabalho, bem
como a entrevista que Lya Luft gentilmente me concedeu para fins desta pesquisa.
Para este estudo, foram preciosas as leituras de Nelly Novaes Coelho, Nádia
Battella Gotlib, Constância Lima Duarte, Luíza Lobo, Elódia Xavier e tantas outras
importantes pesquisadoras.
No segundo capítulo As faces do trágico na escrita de Lya Luft –, procuro
demonstrar como são múltiplas as figurações que o trágico assume nos romances.
Para isso, foram desenvolvidos alguns estudos sobre o caráter do trágico, desde
quando definido pelos gregos até onde elaborado por pensadores mais modernos,
como Nietzsche, Schiller, Schopenhauer, e outros. As leituras de apoio para essas
reflexões passam pelos estudos de Roberto Machado, leitor atento e crítico da
filosofia e das obras de filósofos, como Nietzsche, Deleuze, Foucault, entre outros.
16

Aqui, registro também as leituras especiais de Mauro Pergaminik Meiches, que, ao


tratar a questão do trágico sob o olhar da Psicanálise, contribuiu também no
entretecer desses textos teóricos com os textos literários que propus analisar, e as
de Johnny José Mafra, leitor exímio da cultura clássica Grega e Latina, cujas teorias
conferiram grande sustentação para minhas análises. A partir dessas leituras,
procuro esboçar uma trajetória literária que contemple momentos distintos de
representação e de vivência desse trágico.
No terceiro capítulo, intitulado Revisitando o estilo, procuro abordar a questão
do estilo, partindo de uma breve historiografia sobre a evolução e as concessões
inerentes a ele. A despeito da imprecisão de sentido relativa ao termo, tento focalizá-
lo em suas mais variadas acepções, a fim de que sejam consideradas, nelas, a
interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade com que esse termo se constitui.
Busco, também, refletir sobre os efeitos do estilo enquanto traço familiar de um
determinado tipo de escrita, bem como em que medida os conceitos sobre o estilo e
a presença dele nas narrativas são determinantes para a persistência de um estilo
trágico nos romances de Lya Luft. Para além das leituras de textos críticos sobre
essa questão, esse conceito foi também esboçado a partir da concepção que a
Psicanálise lhe confere: a de que a questão do estilo tem, no sujeito, sua referência.
Para esses suportes teóricos, são priorizadas as leituras de Antoine Compagnon,
Roland Barthes, Ana Clark Peres, Eduardo Vidal, Ruth Silviano Brandão, dentre
outras, também importantes.
No quarto capítulo, intitulado Corpo e memória: interfaces do trágico procuro
demonstrar como corpo e memória engendram o cenário narrativo de Lya Luft.
Todas as insinuações trágicas transparecem no corpo, narrado e constituído por
memórias. Nesse trajeto, proponho análises de obras que concentram, nesses
elementos, figurações do trágico como elemento constituinte de um estilo. Na
subdivisão deste capítulo – A memória e seus espaços físicos e mentais –, proponho
uma análise sobre o destaque conferidos aos lugares, e aos não-lugares na obra de
Lya Luft, uma vez que a constituição desses (não) lugares é temática recorrente nas
narrativas luftianas. No subtítulo O corpo e suas deliberações, busco associar as
teorias sobre o corpo feminino, reelaboradas por Elódia Xavier, contextualizando-as
em nível dos contextos das personagens femininas na obra de Lya Luft. Em O corpo
constituído sob o olhar da cultura, procuro demonstrar como o corpo –
especialmente o corpo feminino – é passível de um tipo de emolduragem das regras
17

constituintes do sistema patriarcal. Por fim, no subtítulo O olhar e o tempo: espelhos


do trágico procuro demonstrar, especialmente no contexto ficcional do romance O
ponto cego, como os elementos olhar e tempo estão imbuídos de vários sentidos de
que se constitui o trágico. Para a feitura desse capítulo, tão vasto e tão diverso,
entreteço, então, grande parte da teoria evocada até aqui, uma vez que essas vozes
teóricas que conclamei para sustentar minhas hipóteses constituíram-se como
pilares desse meu trabalho de pesquisa.
Diante disso, reforço que essa minha proposta de pesquisa nasce,
principalmente, da cumplicidade que se estabeleceu entre mim, enquanto leitora, e a
obra de Lya Luft. Em uma das definições que Lya atribui às suas ficções, ela nos diz:
“Minhas ficções são a ponte entre o fosso que separa o sonhado e o real. Nela
caminha quem, como eu, ofuscada pela luz que vem de cima, examina a sombra
instigante que se estende embaixo – e nessa indagação vive parte de seu destino.”
(LUFT, 2003, p.16). Eu, como ela, atrevo-me a seguir na mesma ponte, equilibrando
meus sentimentos entre o sonho de realizar esse trabalho e o caráter de realidade
que devo conferir a ele. Mas como essa proposta se esboça ancorada apenas nesse
meu desejo, seguirei até o fim desse propósito, que se torna, de agora em diante,
também parte de um destino.
Roberto da Mata diz, em A casa & a rua, que “um livro é como uma casa.”
(DAMATTA, 1997, p.5). Diante dessa minha proposta, digo que eu gostaria que essa
tese fosse como uma casa, que “tem fachada, jardim, sala de visitas, quartos,
dependência de empregada e até mesmo cozinha e porão.” Que suas páginas
iniciais sejam como “aquelas conversas cerimoniais que antigamente eram regadas
a guaraná geladinho e biscoito champanhe,” e que sirvam para dizer a vocês,
exímios leitores meus, o que se diz a uma visita de consideração: “que não repare
nos móveis”, que a dona dessa morada é modesta e bem intencionada, e “que não
houve muito tempo para limpar direito a sala ou arrumar os quartos.” Mas, mesmo
diante disso, que vocês vão, enfim, ficando à vontade e desculpando alguma e
qualquer coisa...
18

Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando


do que me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando
com o fascinante – às vezes trevoso – que espreita sobre
nosso ombro nas atividades mais cotidianas. Fazer ficção é
vagar à beira do poço interior observando os vultos no fundo,
misturados com minha imagem refletida na superfície. Tudo
isso é jogo – contraponto da vida concreta, onde não me
atraem as sombras mas o sol; [...] A literatura não emerge de
águas tranquilas: fala de minhas perplexidades enquanto ser
humano, escorre de fendas onde se move algo que,
inalcançável, me desafia.

O bom de não entendermos todas as coisas é existir alguém


que sabe.
O bom de existir alguém que sabe é não sabermos quem ele é.
O melhor de tudo isso é que mesmo sem entender, encostando
o ouvido no lugar certo, mesmo numa noite muito escura, a
gente vai escutar suas respostas.
Lya Luft
19

2 LYA LUFT: BIOGRAFIA E PERCURSOS LITERÁRIOS

Sina

Quando eu era menina, a verdade parecia estar nos livros:


ali moravam as respostas e nasciam os nomes.
Quanto mais procurei, mais me perdi na trilha das indagações:
as respostas não vinham, a verdade era miragem, a busca era
melhor que a descoberta, e nunca se chegava.
(Viver era mesmo sentir aquela fome.)
(LUFT, Para não dizer adeus, 2005, p.123).

Lya Fett Luft nasceu em 15 de Setembro de 1938, na cidade de Santa Cruz


do Sul, no Rio Grande do Sul. Nessa pequena cidade de colonização alemã, Lya
vivenciou, juntamente com seu único irmão, Ney uma infância marcada pelo
encantamento do convívio familiar, uma vez que viviam sob os cuidados de seus
pais – Arthur Germano Fett e Wally Neumann Fett – e de seus avós maternos,
Emília e Theodor Neumann.
Lya conserva, como traço dessa harmoniosa convivência familiar refletida na
infância, as lembranças de uma casa em que, frequentemente, se tocava piano,
cantava-se música alemã e as histórias eram contadas pelas avós.
Nessa pequena comunidade, constituída, em sua maioria, por famílias
alemãs, era muito comum as crianças lerem e falarem alemão. Lya, mesmo tendo
nascido no Brasil, aprendeu como língua materna, o alemão, e somente depois de
algum tempo veio a aprender o português. A convivência com um universo
estritamente adulto, alimentado por muita leitura, exerceu bastante influência em sua
formação cultural. Sob a influência do pai, que era advogado, e que foi nomeado juiz
em Santa Cruz do Sul, Lya aprendeu a ler muito cedo, visto que tinha acesso a uma
vasta biblioteca, dentro da própria casa. Seus livros vinham da Alemanha e, com
isso, já aos 11 / 12 anos, decorava poemas inteiros de Goethe e Schiller.
Seguindo essa tendência literária, já iniciada na infância, Lya formou-se em
Letras Anglo-Germânicas, e concluiu dois mestrados: um em Literatura Brasileira e
outro em Linguística Aplicada. Trabalha, desde os vinte anos, como tradutora de
alemão e de inglês, e já verteu para o português inúmeras obras de autores
consagrados, como Virginia Woolf, Günter Grass, Thomas Mann, Rainer Maria Rilke,
Bertolt Brecht, Herman Hesse, Doris Lessing, e muitos outros. Traduziu,
recentemente, o livro O compromisso, de Herta Müller – autora que ganhou o prêmio
Nobel de Literatura no ano de 2009.
20

Como escritora, Lya Luft recebeu os prêmios: Alfonsina Storni de poesia, em


Buenos Aires, (1980); Érico Veríssimo, da Assembléia do Rio Grande do Sul, pelo
conjunto de sua obra (1984); da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA),
pela melhor obra de ficção de 1996, o livro O Rio do Meio. Como tradutora, recebeu,
recentemente, o prêmio União Latina de melhor tradução técnica e científica, pela
tradução de Lete: arte e crítica do esquecimento, de Harald Weinrich.
Conforme mencionamos anteriormente, sua carreira literária teve início já na
década de 60, quando, como professora de Linguística e Literatura, começou a
escrever poesia e lançou suas primeiras manifestações poéticas nos livros: Canções
de Limiar, e Flauta doce – tema e variações (1965-1969). Nessa época, publicava,
regularmente, poemas e crônicas no jornal Correio do Povo, e também alguns
artigos de crítica literária. Foi premiada, em 1962, no Concurso Estadual de Poesias,
promovido pelo Instituto Estadual do Livro, e teve sua obra Canções de Limiar
publicada dois anos depois. Em 1972, foi publicado o livro Flauta doce, e em 1978,
foi publicada, pelo Instituto Estadual do Livro, uma coletânea de crônicas intitulada
Matéria do Cotidiano.
Para refletir esse momento inicial da escrita de Lya Luft, transcrevo um
poema de Flauta doce, intitulado Indefinição, por vislumbrar, nele, uma forte
tendência que prenuncia o que chamarei, nesta minha pesquisa, de estilo:

Não me perguntem pelo meu poema


nada sei do coração do pássaro
que a música inflama
não queiram entender minhas palavras
não me dissequem, não prendam entre vidros
essa cantiga de asas de névoa.
Nem eu, querendo, poderia esfolhar
meu verso
se digo flor é flor, se digo água
é água
mas pode ser disfarce de um segredo.
Se não podem sentir, não cortem
a árvore-de-coral dos meus silêncios
deixem ser o meu poema
poema: volta, sereno abismo
ilha-talvez-viagem
primavera calada, chuva miudinha
nos olhos dos meus mortos, abraços desencontros
(solidões) a morte a guerra
os imponderáveis anjos
o vaso de sete cordeirinhos subindo a colina ao vento
sem jamais chegar, a rosa intata, a data
perdida, o cheiro da velha casa, o relógio,
um nome aflorando as ondas da memória...
Não me queiram prender como a um inseto
21

no alfinete da interpretação
se não podem amar o meu poema, deixem-no.
Nem eu ouso erguê-lo entre os dedos e aspirar
a sua liberdade.
Deixo que sonhe, gire, nasça e deite
seu mel na solidão da alma inquieta
e brote, instante imprecisado,
num escrito qualquer com o meu nome embaixo.
(LUFT, Flauta doce, 1972, p.49-50)

A solidão das almas inquietas, a idéia de ilha-talvez-viagem e a incessante


busca pela liberdade são temas que prenunciam, já na poesia, a estréia da carreira
literária de Lya Luft também na ficção, marcada com a publicação do romance As
parceiras, em 1980. Um romance que abriga não só os conflitos interiores que
circundam o âmbito do humano, mas também aqueles que explicitam a difícil
trajetória que se constituiu, para que os textos de autoria feminina fossem
reconhecidos, também e principalmente, como uma nova configuração das
produções literárias.
Revelar os conflitos humanos e a condição de mulheres que se viam,
constantemente, confinadas aos espaços domésticos, e, assim, submetidas às
imposições que regiam o sistema patriarcal, parece ter sido a grande motivação de
Lya Luft na constituição da maioria de seus romances. A dedicação a essa temática
enfatiza, também, as marcas do percurso que constatou uma produção literária feita
por mulheres: uma trajetória inicialmente marcada, no Brasil, até o presente
momento, pela escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, quando publicou o
romance Ursula, em 1859.
Não podemos nos esquecer de Júlia Lopes de Almeida – nascida em 1862 e
autora de uma obra vasta e variada –, e de Carolina Nabuco, com o romance a
Sucessora, de 1934, como autoras que bem ilustram essa primeira etapa da
trajetória da narrativa de autoria feminina, na literatura brasileira. Através de suas
narrativas, elas reduplicam os padrões éticos e estéticos, mesmo porque, nessa
época, elas ainda não tinham se descoberto como donas do próprio destino. Mais
adiante, fomos agraciados com a obra de Clarice Lispector1: um divisor de águas na
trajetória da narrativa de autoria feminina, visto que “o discurso oblíquo e enviesado

1
Ressalto, aqui, que a literatura de autoria feminina se constitui de muitos outros importantes e
significativos nomes, nesse seu percurso, especialmente no interstício de tempo a que me referi
acima – 1859 a 1960. Entretanto, como são inúmeras as autoras, optei por mencionar somente
aquelas que representaram a inserção dos textos de autoria feminina na literatura brasileira. Já a
obra de Clarice Lispector foi mencionada com o propósito de realçar um marco divisor de águas,
nesse tipo de produção literária, especialmente em relação às produções anteriores.
22

de suas narradoras questiona, ironicamente, os sistemas de gêneros.” (XAVIER,


2002, p.159). Os contos de Laços de família, (1960), por exemplo, conferem grande
visibilidade à repressão sofrida pelas mulheres nas mais cotidianas atitudes e
práticas sociais – repressão que será frequentemente elaborada por Lya Luft, em
grande parte de sua obra. Assim, Clarice Lispector “abre caminho para uma vertente
narrativa de autoria feminina, cujos melhores frutos se concentram na década de
80;” (XAVIER, 2002, p.161). Esses novos frutos são contos e romances, que
geralmente questionam as relações de gênero sem, no entanto, encontrar soluções
para os impasses criados. A maioria das personagens de Lya Luft, por exemplo,
acabam sempre vencidas por um sistema repressor, e a ordem patriarcal, embora já
se mostre decadente, impede qualquer forma de transcendência a esses valores. A
família na obra de Lya Luft, na maioria das vezes, é-nos mostrada como instituição
falida, e fonte geradora de muitos conflitos e sucessivas repressões. A família e a
instituição do casamento passam a ser, então, nessa perspectiva luftiana, um
espaço tragicamente irrecuperável, o beco sem saída.
Essas autoras mencionadas, especialmente Lya Luft – cuja obra é objeto
desta pesquisa – ao comporem parte do cenário de representação dos textos de
autoria feminina, contribuem com as reflexões de Elaine Showalter, que, em A
Literature of Their Own: British Women Novelists from Bronté to Lessing, nos afirma:

Muitos outros críticos tem concordado com o fato de que quando olhamos
para as mulheres escritoras coletivamente, podemos ver um imaginário
contínuo, a recorrência a certos modelos, temas, problemas, assim como
estereótipos característicos das sucessivas gerações. (SHOWALTER, 1977,
2
p.11, tradução nossa) .

É o que ela chama de female literary – literatura de mulheres – sem que isso
implique em nenhuma forma de essencialismo, pois o principal interesse de
Showalter é investigar “os modos como a autoconsciência dessa mulher escritora
tem sido traduzidos em uma forma literária” (SHOWALTER, 1977, p.11, tradução
nossa)3, sem perder de vista as transformações sofridas através dos tempos. Para
isso, ela aponta três etapas no percurso literário, que compreende as obras de
autoria feminina entre 1840 até por volta de 1960, tendo, como referencial, a cultura

2
Many other critics are beginning to agree that when we look at women writers collectively we can see
an imaginative continuum, the recurrence of certain patterns, themes, problems, and images from
generation to generation.
3
the ways in which the selfawareness of the woman writer has translated itself in a literary form.
23

dominante. A primeira etapa, então, é a que ela chama de feminine (feminina): uma
etapa prolongada, que se caracteriza pela imitação: “uma fase prolongada de
imitação das regras predominantes nos diferentes papéis sociais” (SHOWALTER,
1977, p.12, tradução nossa)4. A segunda, denominada feminist (feminist), contempla
uma espécie de ruptura, “uma fase de protesto contra esses padrões e valores, e a
defesa de direitos e valores de uma minoria, incluindo uma reinvindicação por
autonomia.” (SHOWALTER, 1977, p.12, tradução nossa)5. Por último, a fase da Self-
discovery (autodescoberta, ou a descoberta de si mesma), uma espécie de search
for identity, a que dá nome de female (feminina): “uma transformação íntima, uma
libertação da dependência da oposição, uma busca por identidade.” (SHOWALTER,
1977, p.13, tradução nossa)6.
Embora essas etapas sejam categorizadas por um tipo de postura diante da
produção literária, ressalte-se que não se trata de serem, estas, categorias rígidas e
fechadas, visto que é possível encontrá-las na obra de uma mesma escritora – no
caso de Lya Luft, em nível de obra, a presença de todas essas etapas é nitidamente
perceptível.
Como dissemos anteriormente, Lya Luft estréia sua carreira literária com a
publicação do romance As parceiras, em 1980. Um contexto que nos apresenta a
personagem Catarina, matriz de uma família de mulheres, vítima do jogo sujo da
moral patriarcal, uma vez que é dada em casamento, ainda muito jovem, a um
homem bem mais velho: “Catarina tinha catorze anos quando casou [...]. Catorze
recém-feitos. Jogaram com ela um jogo sujo.” (LUFT, As parceiras, 2003, p.11).
Diante da imposição do casamento, Catarina se viu também condenada à
maternidade precoce, numa aparente fatalidade biológica que imprime, no corpo da
mulher, a supremacia das marcas culturais:

Quando casou Catarina von Sassen mal começara a menstruar. E, se já


não acreditava piamente que o sinal no dorso de sua mão vinha duma
bicada da cegonha, também não tinha certeza de como os bebês entravam
e saíam da barriga das mães. Casamento era para ela a noção difusa de
abraços e beijos demorados, e alguma coisa mais, assustadora. (LUFT, As
parceiras, 2003, p.13).

4
a prolonged phase of imitation of the prevailing modes of the dominant roles.
5
a phase of protest against these standards and values, and advocacy of minority rights and values,
including a demand for autonomy.
6
A turning inward freed from some of the dependecy of opposition, a search for identity.”
24

A família e a instituição do casamento – “o beco sem saída, onde todas nós


nos encolhíamos” (LUFT, As parcerias, 2003, p. 41) –, embora sejam
frequentemente questionadas nesse romance, não deixam de impor as regras do
jogo social e acabam apresentando a mulher como vítima inerte a essas imposições.
A dominação masculina, aqui, se faz presente até mesmo na violência corporal a
que é submetida a jovem Catarina:

Casando, Catarina deixou na cama de solteira três bonecas de rosto de


porcelana. A mãe voltou para a Alemanha, aliviada por estar a filha em boas
mãos, destino assegurado. O destino foi zeloso: caçou-a pelos quartos do
casarão, seguiu-a pelos corredores, ameaçou arrombar os banheiros
chaveados como arrombava dia e noite o corpo imaturo. (LUFT, As
parceiras, 2003, p. 13).

E diante dessa condenação, Catarina encontra sua salvação na loucura e no


suicídio: “E Catarina sucumbiu a um fundo terror do sexo e da vida.” (LUFT, As
parceiras, 2003, p.13). E é Anelise, neta de Catarina, que decide voltar ao Chalé
para nos contar essa história, na tentativa de descobrir o lance perverso da jogada
e, assim, escapar à malsinada condição familiar que acometia todas as mulheres de
sua família. Como ela mesma nos diz, “É isso que conheço da história das minhas
raízes. Uma família de mulheres.” (LUFT, As parceiras, 2003, p.14). E diante de
inúmeras descobertas que se lhe revelam, ela se vê fadada ao mesmo destino de
sua avó, condicionada por uma fatalidade inelutável. E ao final de sua proposta,
especialmente a de conhecer melhor as raízes enfermas de sua família, ela conclui:
“Vim para o Chalé, resolver sabe Deus o quê. Pensar, ficar sozinha. Repassar o
filme, avaliar o jogo. Tudo acidente ou predestinação? Raízes de Catarina von
Sassen, ou acaso da vida?” (LUFT, As parceiras, 2003, p. 120). Diante disso,
Anelise não suporta o reconhecimento do processo de repressão a que está
submetida, e, como a avó Catarina, ela também se entrega à loucura, numa atitude
de aceitação das imposições imutáveis, até então, em nível da dominação
masculina.
Logo que lançado, o livro As parceiras suscitou inúmeras críticas, realçadas
pelo fato de ele se apresentar como uma revelação literária, especialmente no que
diz respeito ao modo como ele conduz a representação da condição feminina. Essa
revelação ganhou visibilidade na voz de vários críticos e estudiosos, cujas
declarações transcrevo aqui: “Uma elegia suave, narrada com a convicção, a
25

sensibilidade e a técnica de uma escritora madura e moderna. Um livro raro e


perfeito como os melhores contos de Clarice Lispector.” (LUFT, 1990, orelha)

“Ela penetra corajosamente nas regiões escabrosas da convivência humana.


Lya mostra o rosto dos demônios que tememos.” (LUFT, 1990, orelha).
“As parceiras se identifica por seu conteúdo dramático que, carregado de
autenticidade, é simultaneamente simples em sua verdade narrativa e denso em seu
mergulho na condição humana.” (LUFT, 1990, orelha).
“A novela As parceiras é de fato uma revelação literária. Se me perguntassem
qual foi o acontecimento intelectual deste ano que mais me impressionou, diria sem
receio que foi a estréia de Lya na ficção.” (LUFT, 1990, orelha).
“Você já é, agora, autora de uma pungente sonata do crepúsculo, quase sem
precedentes entre nós.” (LUFT, 1990, orelha).
“A voz interior em As Parceiras é algo que pode ser ouvido e apreciado em
qualquer latitude. Não é som cassete, mas um grito que irrompe da própria boca em
noite de tempestade.” (LUFT, 1990, orelha).
“Em face das suas ficções, o leitor sente que está diante de uma escritora
brasileira, a atmosfera é brasileira. Mas a categoria é universal.” (LUFT, 1990,
orelha)
Como se pode ver, o romance As parceiras surge como um novo espaço de
representação dos questionamentos que constituem os laços de família, mediados,
muitas vezes, pela aparência em que se consolidam as instituições, aqui,
especialmente, a familiar.
O segundo romance de Lya Luft – A asa esquerda do anjo – foi publicado em
1981, e manteve a família como cenário de representação de diversos conflitos.
Aqui, diferentemente de As parceiras, a narradora Gisela se vê diante de uma
constante crise identitária, provocada por práticas sociais que privilegiavam a
permanência de uma dada cultura – alemã – em detrimento de outra – a brasileira.
Sempre dividida entre o ser e o pertencer a uma família, Gisela acaba cedendo às
imposições, admitindo a inércia das personagens femininas diante de práticas
repressoras. Um contexto envolto por um aparente matriarcado, concentrado na
figura de Ursula Wolf – personagem que condensa toda a rigidez da ordem
patriarcal, especialmente no que diz respeito à conservação do que ela entende por
tradição familiar. A casa regida pelo comando da temível Frau Wolf – aquela que
26

tiranizava a família toda – também abrigou transgressões: Anemarie, o ídolo da


família, desconstrói toda imagem que a aparência provoca para suprimir a essência.
Ao fugir de casa para viver com o tio adúltero, ela abre caminho para que novas
atitudes componham o cenário de questões constituintes dos romances de Lya Luft.
Ainda que ela não escape à infalível punição do destino – sim, porque aqui, todas as
personagens que ousam modificar o rumo do seu próprio destino, são tangidas por
graves punições –, e acabe morrendo de um câncer, ela se realiza nessa
transgressão, na medida em que não cede às imposições da matriarca. Gisela, ao
contrário, acaba optando pelo modelo asséptico e rigoroso de Frau Wolf. Assim,
diante da identidade não resgatada, ela se fecha numa atitude de extrema anulação
diante de qualquer possibilidade de individuação: “Fecho-me nesta casa e cumpro
minhas obrigações. Não encontrarão nada desarrumado. Servirei chá com uma torta
de camadas, que faço com perfeição.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 98).
Em 1982, é publicado o terceiro romance de Lya Luft: Reunião de família.
Alguns estudiosos consideram esse livro como parte de uma trilogia da família,
identificada, assim, em função de Reunião de família conservar o cenário familiar
dos romances anteriores, expondo, nele, a vivência de personagens que se
defrontam, permanentemente, com situações limítrofes. Mais uma vez, as estruturas
familiares e pessoais são ameaçadas por acontecimentos inesperados, que põem
abaixo as aparências em que elas se sustentavam. Ademais, vale dizer que o
caráter de atribuição a uma trilogia pode estar associado ao fato de que As
parceiras, A asa esquerda do anjo e Reunião de família foram publicados
seguidamente um ao outro.
Alice, “uma mulher comum; dessas que lidam na cozinha, tiram poeira dos
móveis, andam na rua com uma sacola de verduras, sofrem de varizes e às vezes
de insônia” (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 13), aparentemente satisfeita com
esse seu “destino de mulher”, se vê em crise por ocasião de uma reunião de família
na casa do pai. Nos jogos de espelhos que se instituem na sala de jantar, ela se vê
em uma situação dúplice, mediada pelos momentos da infância – o tempo da
menina sem mãe – e pelo tempo da mulher que a constitui como personagem de
agora. Para suportar essa crise existencial, ela cria um jogo igual ao que costumava
fazer na infância: “O jogo do tempo em que eu não era uma pacata dona-de-casa
com filhos criados, mas uma menina sem mãe; que inventava o jogo do espelho
para ser menos infeliz.” (LUFT, Reunião de família, 2004, p.10). Ainda sobre esse
27

jogo infantil, ela nos diz: “Eu brincava assim na meninice: de não ser eu. Não a
coitada, filha daquele Professor a que ninguém apreciava; mas outra Alice –
poderosa, inconquistável.” (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 15).
Sua família de origem, marcada pela tirania paterna, é o espaço do desamor
e da repressão. Sem mãe, ela se entrega ao jogo do espelho, no qual encontra a
Alice alada – criação de uma fantasia infantil –, que ameaça retornar na fase adulta,
para denunciar sua insatisfação enquanto esposa / mãe / dona-de-casa. E como as
personagens dos romances anteriores, Alice se entrega às obrigações domésticas,
especialmente quando se dá conta de que tudo não passa de uma fantasia:

Mais tarde me acomodei na vida; casada, sossegada, marido e filhos para


cuidar, o serviço doméstico e a rotina, tanto trabalho, esqueci o jogo; não
precisei mais dele. Ou tinha esquecido qual o segredo de jogar com
espelhos? Mas ultimamente tenho pensado em pôr um espelho grande na
sala. (LUF, Reunião de família, 2004, p. 38).

Como se pode ver, o destino de mulher, apesar de insatisfatório, é um


referencial seguro, uma vez que estabelece e determina as relações de gênero, bem
como os papéis a serem desempenhados. A reunião de família, ao refletir a imagem
de tantos eus fragmentados, desencadeia uma desunião ou uma desordem naquela
família, uma vez que o espelho confere visibilidade aos conflitos pessoais e
familiares. Assim, depois de um jantar tumultuado, Alice retorna, no dia seguinte, à
sua confortável rotina, que lhe ressurge como uma forma de permanecer intacta ao
seu mundo real. E como se tudo não passasse mesmo de uma fantasia, ela nos diz:

Estamos calmos e compostos. Nada temos a ver com as criaturas que


ontem se desnudaram mutuamente, arrancando máscaras, rasgando
carnes, lascando unhas. Somos apenas três pessoas comendo diante de
um espelho rachado. Foi tudo um jogo de espelhos: nossas imagens
defrontadas numa série interminável, multiplicando rostos, como nesses
corredores espelhados em que tudo se torna possível. Reflexos de reflexos
de reflexos: eis o que somos. Agora que descobrimos isso, despertamos
para a lucidez da banalidade. Estou aliviada: logo vou pegar o táxi, entrarei
no ônibus, chegarei em casa a tempo de preparar o almoço e fazer os
serviços normais de uma segunda-feira. (LUFT, Reunião de família, 2004, p.
125).

Como Anelise e Gisela, Alice se entrega ao papel de aceitar as condições a


ela impostas, por práticas familiares constituídas por padrões esquematizados.
Reassumir a rotina familiar, privada ao espaço doméstico, parece representar um
28

anestésico contra o perigoso jogo de viver. Em defesa da instituição dessa aparente


ordem, Alice nos declara:

Tão fácil conviver quando águas paradas recobrem tudo. O mundo voltou a
ser ordenado, tal como precisamos que seja. Se admitirmos o vórtice, o
abismo, o subterrâneo por trás dos espelhos, nossas bocas hão de se
escancarar num grito.
– Mãe! – chamaremos agoniados. (LUFT, Reunião de família, 2004, p.126).

É interessante notarmos como as protagonistas dessa trilogia romanesca –


Anelise, Gisela e Alice – conferem visibilidade à condição da mulher enquadrada no
espaço doméstico, sob o domínio das tarefas cotidianas.
Reunião de família também foi um livro que motivou muitas críticas. Sobre a
habilidade de Lya Luft em desvelar esse pungente sentimento de submissão a uma
realidade inatingível, em nível de realização pessoal, transcrevo: “Lya Luft não tem
parentesco em nossa literatura: suas histórias, de uma poesia mórbida, desvendam
um submundo emocional em que poucos se atreveram a penetrar.” (LUFT, 1982,
capa).
Sobre as marcas desse modo de dizer estritamente lufitiano, cito:

Ambigüidade, eis o que caracteriza a ficção de Lya Luft. [...] Participamos do


texto, nele nos integramos, somos envolvidos por ele, pela sua pungência,
pela estranheza das personagens, entre a morbidez e o devaneio, somos
dominados por esse dom, que Lya possui, de recriar a vida,
organizadamente, de dentro para fora. (LUFT, 1982, capa).

Em nível de uma análise que reconhece, nos textos de Lya Luft, uma
literatura intimista feminina, realço:

Ao assumir a linha de uma literatura intimista feminina, Lya Luft palmilha


caminhos percorridos por escritoras como Clarice Lispector e Lygia
Fagundes Telles, afirmando-se, porém, como expressão original e
absolutamente pessoal. [...] No caso da ficção de Lya Luft, o corte intimista
se faz num mergulho vertical, através da investigação de um ‘caso’
individual, que se desenha único, mas exemplar. A técnica será outra, o
modo de questionamento, diverso, a preocupação, semelhante: a questão
feminina tratada do ponto de vista da mulher. (LUFT, 1982, capa).

Sobre o efeito catártico que o romance nos possibilita, menciono:

Não nos propicia Lya Luft o desencanto do mal através da escrita? Vitória
sobre o Apocalipse, o texto é uma nova criação. [...] A novelista, em seu
discurso poético, íntimo, autêntico, ao ritmo do coração, propõe a solução
da loucura da vida na loucura do texto que refaz e rediz, à sua moda, a
própria vida. (LUFT, 1982, capa).
29

Seguindo-se a Reunião de Família, foi publicado, em 1984, o quarto romance


de Lya Luft: O quarto fechado. Um livro denso e impactante, uma vez que Lya
institui, como princípio organizador da narrativa, a morte. No velório do filho suicida,
Renata inicia um doloroso percurso em busca de sua identidade. Pianista de
sucesso, ela abandonou a carreira artística para se casar com Martim, e, assim,
atender às exigências da vida doméstica:

– Eu não sirvo para casar – dizia ela antigamente, vendo mulheres de sua
idade rodeada de filhos. Depois de casada, tarde demais, reconhecera que
tinha razão. Embora solitário, para ela o exercício da arte fora menos
complexo do que o exercício do amor humano. (LUFT, O quarto fechado,
2004, p. 15).

Os filhos gêmeos, Camilo e Carolina, nos revelam imagens da constante


divisão interior a que Renata se via submetida, tendo seus sentimentos divididos
entre o de ser uma boa mãe e uma boa esposa, e a inibição do seu dom artístico.
Sobre os gêmeos, leia-se: “Camilo e Carolina, fruto que nascera partido em dois,
dedicados a refazer essa fragmentação que talvez lhes fosse um sofrimento: por
isso teriam aqueles corpos exauridos, os grandes olhos de quem sente dor mas
nada pode dizer?” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 24). Diferenças sexuais à
parte, a identificação de Camilo e Carolina, física e intelectual, sugere as múltiplas
possibilidades além daquela, única e irrevogável, que se revela aparentemente
possível.
Sobre a resignação de um desejo de individuação, que cede lugar a uma
identificação subjugada pelos desígnios sociais, Renata não deixa de (se) questionar
sobre essa condição, que acometia, até então, todas as mulheres:

“O que fiz com o meu dom?”, perguntou-se. “Há quanto tempo não toco?
Mais de seis anos? E isso mudou em alguma coisa a vida de todos?
Alguém ficou mais feliz com isso?” Espalmou as mãos, dedos magros e
fortes, agora destreinados. Tinham perdido o sortilégio. Tempo demasiado
sem tocar, sufocando o ímpeto antigo. [...] Nos primeiros anos tocara muito
piano, sempre que podia ficar só. Mandava os gêmeos para a casa de
Mamãe e tocava tremendo de prazer. E de dor, porque sabia: com a falta de
exercício, perdera a agilidade. Mudara de ambiente, não tinha mais os
contatos necessários, não havia mais o seu público: nunca mais seria uma
grande pianista. Por outro lado, a nova vida não lhe trazia encantos: Renata
era desajeitada, despreparada para as coisas domésticas. (LUFT, O quarto
fechado, 2004, p. 32-33).

As personagens Ella, Camilo e Carolina revelam a predileção de Lya Luft por


realçar ambigüidades. Personagem de nome ambíguo, Ella personifica, ao mesmo
tempo, a morte e os desejos reprimidos, assumindo o lado dúplice de sua própria
30

personalidade: “Ella: quem teria escolhido para a menina sem pai o nome ambíguo,
profético, de meia humanidade, meia ausência?” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p.
46).
Percebemos, nesse romance, os primeiros rumores de questionamentos que,
mais adiante, se concretizariam em novas decisões dessas personagens de Lya
Luft. A cena da morte de Camilo se apresenta, então, como um mosaico de
reflexões sobre as atitudes assumidas diante da vida, levando-se em conta,
principalmente, a lealdade aos desejos insubmissos. Esses questionamentos se
revelam na análise que Renata faz sobre sua própria vida – análise que revela, até
então, a culpabilidade que incide sobre a atitude de a mulher conciliar os projetos
pessoais com as obrigações familiares: “Eu traí a mim mesma quando abandonei a
música para ser infeliz no amor. Mas o que é a traição? Não estou sempre trocando
uma coisa por outra porque meu coração decide que essa outra é melhor, a ela
preciso ser leal?” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 109). E é o narrador que nos
esclarece: “Não existia traição: tudo era um constante pulsar desordenado, busca de
um sentido para a vida que se precipitava para o fim.” (LUFT, O quarto fechado,
2004, p. 109).
E é interessante pensarmos sobre a associação do nome que sugere esse
fim, Tânatos, à imagem da mulher. Ao olhar para o quadro que tanto admirava – A
ilha dos mortos –, Renata reconhece que a imagem que ela via não era a de um
barqueiro: “era [de] uma mulher.” E naquele instante, “Renata enlaçou as mãos,
dedos quietos. Não havia música em sua mente: havia quase paz. O nome ficou
ressoando dentro dela, Tânatos, Tânatos. Seria realmente uma mulher? Mas talvez
isso não tivesse nenhuma importância.” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 108). A
importância talvez esteja na reflexão que essa associação pode suscitar,
especialmente do ponto de vista feminista. Ora, se Tânatos corresponde à morte, e
se a morte é a senhora de todos os destinos, seria essa imagem que revelaria,
então, na morte de algumas institucionalizações, uma nova postura para a condição
feminina, voltada para a realização de seus próprios desejos e de suas próprias
escolhas, no tempo em que esse sujeito feminino / mulher se determinar a assumi-
los? Por outro lado, é-nos possível associar a imagem da morte indissociável à da
vida: ambas, ambíguas e indefinidas, constituídas, entretanto, em um caminho de
direções que se completam. Essa reflexão ganha, ainda, mais consistência se
associada à epígrafe de Rainer Maria Rilke, posta no início da narrativa: “Quando
31

pensamos estar dentro da vida, a Morte põe-se a chorar dentro de nós.” (RILKE
apud LUFT, 1984, p.11), pois ela exprime o caráter de indissociabilidade imanente
entre a vida e a morte.
O livro de poemas Mulher no palco também foi publicado em 1984. Dedicado
à escritora Nélida Piñon, Lya reuniu, nele, poemas inéditos a alguns outros, já
publicados em Flauta doce. A poesia que se lê, aqui, flui, levemente, dos fortes ares
que inspiram o imaginário de Lya Luft: a condição da mulher, a vida, a morte e sua
própria condição, enquanto escritora. Sobre esta, cito:

Abro a gaveta e salta uma palavra:


dança sedutora sobre o meu cansaço,
veste-se de indefinições, retorce-se
no labirinto das ambigüidades.
Tento uma geometria que a contenha
no espaço entre dois silêncios quaisquer.
Mas ela inventa o que faço: peso de fruta
no sono da semente, assiste à minha luta
Belo enigma. Eu, mediação incompetente. (LUFT, Mulher no palco, 1992, p.
61).

Ainda sob o efeito desse lirismo poético, transcrevo:

Quero uma cartola de mágico,


mas que funcione bem,
para enfiar nela meu coração delirante
e retirar uma engrenagem melhor.
Quero esconder na manga, na bolsa,
nessa cartola encantada,
minha alma falida, a asa quebrada,
tanta contradição.
Prefiro um objeto mais útil:
calculadora de emoção, maquininha de esquecer,
relógio de sonho preso num lugar.
(Umas peças de metal enfiadas no peito:
só o essencial, para que a cara
não desabe de todo no chão.)(LUFT, Mulher no palco, 1992, p. 67).

Após Mulher no palco, Lya retorna ao espaço romanesco e publica, em 1987,


o livro Exílio – último romance da década de 80. Numa perspectiva tão mesma e tão
diversa dos romances anteriores, Exílio nos apresenta a trajetória de uma mulher –
A Doutora – que busca, no resgate das imagens da mãe suicida, compreender a
razão para vários de seus conflitos pessoais e familiares. E é ela quem nos diz: “[...]
preciso de presenças simples, para falar banalidades, porque meu coração está
povoado de assombrações.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 55).
A busca dessa realidade acontece quando a personagem decide se hospedar
em uma pensão decadente, conhecida como A Casa Vermelha. Lá, ela conviverá
32

com pessoas que retratam as mais diversificadas situações, através de suas


pungentes histórias pessoais. Diferentemente dos contextos anteriores, a
protagonista não está mais enredada nos espaços domésticos: obstetra dedicada à
carreira, a doutora se vê obrigada, muitas vezes, a abandonar o marido e o filho, em
função do seu trabalho Logo após o casamento desfeito, ela então busca respostas
que justifiquem seus (des) rumos familiares: a perda do marido, a relação ausente
com o filho Lucas, a demência de seu irmão Gabriel, a vida irreconstituível ao lado
do amante Antônio, uma vez que este dedica todo seu tempo para cuidar do filho
doente. Nesse momento de profunda crise existencial, a doutora tenta recompor sua
vida de várias formas, mas acaba envolvida pelos fantasmas que constituíram sua
infância, sofrida e mal amada.
A questão da profissionalização da mulher, embora esteja nitidamente
introduzida nesse romance, aparece também como um dado desestabilizador do
equilíbrio familiar. O sentimento de culpa, frequentemente imposto pelo jogo cultural,
passa a ser fator determinante para essa crise interior da personagem. Em relação a
essa culpabilidade, especialmente devida aos não cuidados dedicados ao filho, diz a
narradora:
Passei noites lembrando o quanto o deixara de lado correndo atrás da
minha profissão, e quantas vezes o pai cuidava dele, levava a passeios,
fazia dormir enquanto eu atendia partos. Era Marcos quem, com um
trabalho menos absorvente do que o meu, lhe dava banho quando a babá
não estava; era Marcos quem lhe contava histórias quando eu estava
cansada demais. Havia laços especiais entre eles: eu ficava de fora, sem
notar. (LUFT, Exílio, 1991, p. 45).

Como se pode ver, Marcos era quem desempenhava as tarefas que a ordem
patriarcal instituía para as mulheres. Nessa perspectiva, é interessante notar que
esse romance é constituído mediante a inversão de papéis socialmente atribuídos a
homens e a mulheres, como veremos em uma análise adiante, mais aprofundada.
Ainda sobre a culpabilidade que incide nas escolhas de uma vida independente,
liberta dos espaços determinantemente domésticos e opressores, a personagem
intensifica o conflito preconizado por Renata, em O quarto fechado. E declara: “Não
posso me permitir ser feliz como mulher se, como mãe, abandonei meu filho.”
(LUFT, Exílio, 1991, p. 54).
Em 1988, Lya publica outro livro de poesias, intitulado O lado fatal: o único
livro circunstancialmente autobiográfico escrito por Lya Luft, já que se constitui de
poemas que esboçam o sentimento de luto pela morte de seu segundo marido, o
33

psicanalista Hélio Pellegrino. Mais uma vez, a morte se constitui no texto,


destituindo-se da ficção para dar lugar à enunciação pulsante de um depoimento
pessoal. Diante dessa circunstância, é a própria Lya quem nos diz:

Insensato eu estar aqui, viva.


O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.
Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja a meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.
Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes.
Sobrevivo, mas é insensatez. (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 21).

Nesse momento autobiográfico, os poemas de amor e morte estigmatizam


essa dor, que habita o lado fatal:

Sento-me na cadeira que foi dele


onde anos a fio escreveu cartas, poemas, artigos de jornal,
bilhetes que me deixava pela casa
(e a toda hora me chamava para eu ver o que fazia).
Nela escrevo também esses poemas de amor e morte
Que falam dele agora.
Na frente do rosto afivelei a máscara
para que os outros me suportem:
atrás dela, o redemoinho
do sangue da solidão borbulha sem parar.
Minha dor ferve em mim:
todo o resto é mentira. (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 47).

E para acentuar o teor de sofrimento e luto, revelado sob um tom


extremamente pessoal, transcrevo:

Não digam que isso passa,


não digam que a vida continua,
que o tempo ajuda,
que afinal tenho filhos e amigos
e um trabalho a fazer.
Não me consolem dizendo que ele morreu cedo
mas morreu bem (quem não quereria uma morte como [essa?)
Não digam que tenho livros a escrever
e viagens a realizar.
Não digam nada.
Vejo bem que o sol continua nascendo
nesta cidade de Porto Alegre
onde vim lamber minha ferida escancarada.
Mas não me consolem:
da minha dor sei eu. (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 41).
34

Seis anos após esse período de reclusão, Lya reabre as cortinas de seu palco
ficcional e publica, em 1994, o romance A sentinela. Uma narrativa que representa
uma mudança significativa em relação ao posicionamento da mulher diante de suas
escolhas. Como bem nos diz a própria Lya,

[...] uma casa é, mais uma vez, o meu cenário: as casas-concha, as casas-
santuário, as casas-labirinto. Uma mulher tenta decifrar-se. O amor é fruto
de êxtases e tormentos, e, mais do que em meus outros livros, os
personagens são também senhores de suas opções. (LUFT, 1994, orelha)

Nora, personagem narradora, após uma infância e adolescência sofridas,


seguidas por perdas, desencontros e desafetos, decide mudar o curso de seu
próprio destino. Para isso, ela inaugura uma tecelagem, na tentativa de recompor,
como a uma colcha de retalhos, o curso de suas escolhas, e, consequentemente, de
sua própria vida. Como ela mesma nos diz, “Este é o meu território: desenrolando
fios, tramando novas urdiduras, como destapando um furo pelo qual eu mesma
escoasse para elaborar melhor o que espera ser modelado.” (LUFT, A sentinela,
1994, p. 15). A vida, aqui, reelaborada na atitude de tecer os fios, parece apontar os
rumos para uma nova identidade, destituída das imposições inerentes ao gênero.
Diante da “audácia de se jogar” e do perigoso jogo de viver, a vida se torna, para
ela, rica e plena.
Nesse cenário, mais personagens se posicionam mediante a atitude liberta
dos rótulos sociais: Olga, irmã de Nora, é uma médica bem sucedida, que leva
adiante a profissão do pai; Henrique, filho de Nora, assume suas escolhas tanto
profissionais quanto as de gênero, desconsiderando todos os parâmetros
constituintes das práticas sociais. O personagem João também revela uma postura
que inverte as condições determinadas a homens e mulheres, uma vez que tem uma
vida reclusa, em função de ter que cuidar de sua filha Lívia, abandonada pela mãe e
viciada em drogas.
Diante desse novo modo de abordagem dos conflitos humanos, Nora confere
visibilidade às múltiplas possibilidades de resistência a esses conflitos,
especialmente em nível do posicionamento que atinge a mulher. E nos revela:

Aos poucos fui descobrindo: não devo ser apenas mãe, irmã, amante.
Preciso ser eu, Nora, com tudo o que isso significa e que ainda tenho que
descobrir; que preciso extrair de mim, criando caminhos como João projeta
rumos no ventre da terra; produzir com a carne da minha alma os fios que
me prenderão ao mundo. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 38).
35

Ainda nas palavras de Lya Luft, sobre essa nova fase de sua escrita, lemos:

Talvez esta seja uma virada em minha obra: personagens não mais
exclusivamente tangidos por fatalidades, mas responsáveis. É, por isso, um
livro mais esperançoso: alguém renasce em si e de si mesmo e, ainda que
guarde um último mistério indecifrável na gruta de seu pantanoso jardim (o
interno e o externo), lança-se na vida e recria o mundo. O seu mundo, que
miticamente irrompe de sua voz. De sua palavra. (LUFT, 1994, orelha).

Esses dizeres ganham corpo na voz de Nora, que se demonstra aliviada por
ter sido a sentinela de seus próprios desejos, e por ter dedicado, a eles, suas
próprias escolhas. Resistir às fatalidades é possível indo em busca do tempo
perdido, e reelaborando os possíveis dons. E, é claro, tudo a seu tempo. Diante
dessa nova atitude, Nora nos diz: “Neste momento a noite não me ameaça; a gruta
não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão fora de todo o tempo
humano.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 188).
Seguindo-se à A sentinela, foi publicado, em 1996, O rio do meio – livro que
ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes. Um livro que reúne
ficção e realidade como co-autoras das vozes que se pronunciam sobre o ofício do
escritor. Livro narrado ora em primeira, ora em terceira pessoa, Lya Luft concilia
histórias vividas com outras imaginadas, estabelecendo, assim, um jogo com o leitor,
com quem divide cumplicidades acerca da fragilidade das relações humanas, bem
como de temas como a morte e a solidão humana. Um livro cuja proposta de escrita
se pronuncia, pela própria voz autoral, em sua primeira página, em títulos de
capítulos que sugerem a composição do tecido desse texto. Assim, lemos: “Eu falo
de infância e madureza” (p. 17), “Eu falo de mulheres e destinos” (p. 37), “Eu falo de
homens e seus sonhos” (p. 59), “Eu falo da vida e suas mortes” (p. 85), “Eu falo de
ficções como realidade” (p. 107). Seguidos a esses títulos, temos, no primeiro
capítulo, intitulado Assobiando no escuro, os próprios dizeres da autora:

Este livro será um apanhado desses diálogos – portanto, pertence um


pouco aos que deles participaram comigo. Não será uma autobiografia,
embora o leitor ingênuo teime em achar que o escritor viveu todas as
experiências de seus livros. Não será uma obra da imaginação, ainda que
entre elementos reais haja outros inventados; várias dessas histórias me
foram contadas, algumas criei, outras acompanhei ou vivi. (LUFT, O rio do
meio, 2003, p. 15).

Esses dizeres, embora expressos pela própria autora, não excluíram as


propostas de análises desse livro em nível dos estudos autobiográficos, uma vez
que alguns estudiosos da obra de Lya Luft o consideram como uma autobiografia.
36

Isso talvez se deva ao fato da incidência de muitos dados que coincidem com
algumas épocas da vida da autora – como a infância e a adolescência –, e em
função, também, de a própria Lya Luft externalizar suas impressões sobre o seu
ofício de escrever. Eu, entretanto, não compartilho dessa visão, especialmente
porque percebo uma intencionalidade na ficcionalização dessas possíveis
realidades. Ademais, logo no início do livro, é a própria autora que nos adverte:

Nem sempre quando eu falar em primeira pessoa estarei relatando coisas


minhas; não estarei sendo objetiva todas as vezes em que usar da terceira
pessoa. Esse é um jogo propositado, que me dá prazer. Não me interessa
delimitar o vivido ou o inventado. A realidade objetiva – se existe – importa
menos: o mundo chega até mim filtrado por minha visão pessoal. Como nos
romances, aqui falarei por avanços e recuos, em elipses, com idas e vindas,
escondendo a ponta do fio para desembaraçar o novelo mais adiante, e não
temo repetições: são retornos numa luz um pouco mais nítida ou mais
difusa. (LUFT, O rio do meio, 2003, p. 15).

Assim, cumpre-se o propósito preliminar da constituição desse livro, afirmado


nos seguintes dizeres: “Este será, sobretudo, o meu livro das interrogações: sobre
as relações pessoais, a prodigiosa vida, o limite entre a fatalidade que nos tange e o
momento de tomarmos nas mãos as rédeas do destino.” (LUFT, O rio do meio, 2003,
p. 16).
Em 1997, é publicado Secreta mirada: um livro entremeado de prosa e
poesia, embora a proposta inicial de Lya Luft, ao escrevê-lo, era a de fazer um livro
na mesma linha de reflexões de O rio do meio, ou seja, um livro que preservasse o
tom de uma conversa ao pé do ouvido do leitor. Entretanto, nos esclarece a própria
autora: “quando eu ia escrever prosa às vezes nasciam-me poemas, e por mais que
eu quisesse fazê-los desaparecer eles insistiam em insinuar-se entre os textos em
prosa. Resolvi então dar-lhes direito à vida, e compor um livro com essas mesmas
alternâncias.” (LUFT, Secreta mirada, 1997, p. 13). E sob essa saborosa forma de
unir prosa e poesia, poemas antigos foram mesclados a novos poemas, e a outros
que, como nos diz Lya, “podem ter sido escritos por personagens meus, e como não
couberam no romance, arranjei-lhes um lugar aqui.”
Para ilustrar, portanto, esse novo jeito de proesiar algumas ficções, transcrevo
os dizeres de Lya Luft, para que, de sua própria voz, ressoe em nossos ouvidos a
canção do texto que aqui se faz escutar:

Secreta mirada é um livro sobre o amor. Mistura reflexões pessoais,


depoimentos de terceiros, observações e também pensamentos e
37

experiências de personagens dos meus vários romances. Portanto fala de


amores fictícios – que podem englobar algum amor real. Digamos que é um
romance em que o personagem central já não é a morte nem os conflitos
humanos mais sombrios, mas o sentimento amoroso, ambíguo,
surpreendente, iluminador e tantas vezes torturante. (LUFT, Secreta mirada,
1997, p. 13).

Essa série de reflexões prosopoéticas abriu caminho para a constituição do


último romance de Lya Luft, publicado na década de 90: O ponto cego, lançado em
1999. Um livro que surpreende pelas novas formas que Lya conferiu à
representação dos conflitos humanos, e, especialmente, à condição da mulher. Um
romance excepcionalmente narrado por um Menino que, do seu ponto de vista,
descreve os conflitos e os dramas de sua história familiar. Uma história entre
personagens que não se nomeiam – à exceção de Tio Nando –, sendo eles
reconhecidos, pois, pela substantivação que os designam: Menino, Mãe, Pai, Moço,
Avó, minha irmã. E logo no início do livro, é o Menino-narrador que nos diz: “Esta é a
história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História
de desvãos, do embaixo do debaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar.
História de invocações.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 16-17). Uma história que
inverte a ideal ordem aparente das coisas, para ceder lugar a novos e diversos
modos de olhar a vida, a cultura, as relações familiares, as relações de gênero, o
trágico, o tempo, e tantas outras circunstâncias. Sobre esses conflitos que ele evoca
e sobre a onipotência constituinte de seu modo de narrar, é ele mesmo quem nos
diz: “Eu sou aquele que inventa e invoca: e tudo o que assim chamei veio porque
permanecia vivo. Não se vêem essas personagens, mas lá estão, cá estão ao meu
lado, atrás dos bastidores, no meio dos cenários, enroladas nas cortinas desse
palco.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 76). Ainda sobre a pretensiosa atitude de
narrar essa história, ou a de narrar-se, nela, o Menino-narrador insiste em nos dizer:

Qual a história que eu aqui quero contar? De gente que é muito esquisita,
de criança que é muito solitária, de um Menino que sabe muita coisa, e de
que saber é muito perigoso. O estranho é que sei sem ter conhecido, penso
o que ainda nem foi posto em palavras; mais estranho ainda, o que invento
pode mais tarde acontecer: quem verdadeiramente dita as falas, quem
comanda nesse palco? (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 77).

Ainda que o Menino se reconheça como o senhor dos destinos desses


personagens, ele reconhece, também, a presença de um fatum irreversível,
concebido anteriormente a esse seu próprio roteiro. E é ele mesmo quem nos
declara:
38

Eu sou narrador e personagem, eu escrevo o roteiro, sou eu quem salta


entre os cenários e observo os bastidores. Mas às minhas costas sopra
essa voz mais forte do que eu: o anjo que fia e tece e borda, e me prende
nesse enredo. Não calculei bem os seus poderes, nisso me perdi. (LUFT, O
ponto cego, 2003, p.77)

Nesse contexto, a personagem feminina assume uma atitude de realização


pessoal inteiramente contrária à postura assumida pelas personagens anteriores.
Aqui, há uma condenação explícita dos valores patriarcais, constituídos sob
imposições de regras e de práticas sociais, pois mesmo que a figura da Mãe
mantenha-se submissa à figura do Pai, é ela que irrompe o seu próprio silêncio para
seguir em frente, em busca de um novo destino. Assim, a personagem Mãe
abandona o filho e o marido para ir viver com um moço bem mais jovem – o
personagem Moço, namorado de sua filha. Como se pode ver, novas configurações
para a família e para a condição feminina se constituíram nesse solo fértil de ficção,
o que marca uma revolução na obra de Lya Luft, especialmente no que se refere à
desconstrução dos arquétipos a que ela se propõe aqui.
Seguindo-se à publicação de O ponto cego, Lya publica, em 2000, Histórias
do tempo. Nesse livro, Lya Luft mistura ficção e reflexões, numa narrativa que se
constitui de histórias ouvidas, observadas e inventadas. Nesse jogo de realidades e
ficções, ela faz falar duas personagens – Medésima, voz que remete à realidade
cotidiana, e Altéria, a que narra quem sou. Aqui, o leitor se vê diante do mesmo
sugestivo convite feito em Secreta mirada: o de realizar diversas experiências,
constituídas, muitas vezes, de realidades e ficções. Sobre essa proposta, Lya nos
diz:
[...] este livro às vezes aparentemente desconexo anda na beira de uma
estreita diferença e forja a trama de dois livros: o da ficção e o das
realidades. Este é o seu jogo. O espanto é mais essencial do que a
compreensão. O espanto é essencial para a compreensão. Aqui se faz
poesia e memória e adivinhação, e se fala no tumulto das mudanças em
nossa vida, na derrubada de mitos e construção de outros, em
relacionamentos, e homens e mulheres e famílias. E isolamento também.
Este é um livro sobre contágio e sombra e simulacro de liberdade e também
revela algumas de minhas utopias quanto a tudo isso. (LUFT, Histórias do
tempo, 2000, p. 6).

Ainda sobre a especial proposta de constituição dessas histórias do tempo,


Lya nos declara:

Nestas páginas sopra o fluir do tempo que aparentemente tudo leva e tudo
devolve como as marés, e que só existe enquanto lhe dermos crédito. Falo
do tempo que é sonho, o tempo que precisa ser domesticado como um
39

bichinho de estimação para não nos devorar. Perdas e ganhos dependem


do nosso momento e da perspectiva de quem olha. (LUFT, Histórias do
tempo, 2000, p. 8).

Seguindo-se a essas histórias do tempo, Lya publica, em 2002, Mar de


dentro. Um livro que abrigou, no lugar de ficção e invenção, muitas histórias
pessoais de Lya Luft, sendo ele, portanto, baseado em relatos autobiográficos.
Ademais, a capa da primeira edição desse livro já nos coloca diante do pacto
autobiográfico a que a autora se propõe, uma vez que a capa se constitui de uma
foto de Lya Luft, aos três anos de idade. As histórias aqui narradas, então, são
reveladoras de fatos pertencentes ao mundo da própria autora, constituído sobre os
pilares sólidos de uma infância regada por amor e segurança. E sobre a
responsabilidade de escrever sobre si mesma, ela nos diz:

Sinto-me um pouco intrusa vasculhando minha infância. Não quero


perturbar aquela menina no seu ofício de sonhar. Não a quero sobressaltar
quando se abre para o mundo que tão intensamente adivinha, nem
interromper sua risada quando acha graça de algo que ninguém mais
percebeu. Tento remontá-la aqui num quebra-cabeças que vai formar um
retrato – o meu retrato? Certamente faltarão algumas peças. Mas falhada e
fragmentária, esta sou eu, e me reconheço assim em toda a minha
incompletude. (LUFT, Mar de dentro, 2004, p. 13).

Ainda sobre a sensação de relembrar e de nos revelar, assim, histórias,


situações e sentimentos já tão distantes, Lya narra, também, a sensação de pesar
diante de um tempo que se apresenta irrecuperável em sua temporalidade. Sobre
essas sensações, lemos:

A casa onde nasci, embora já não seja minha, permanece intacta em mim
como a escultura de uma caravela em uma garrafa: uma casa dentro da
memória. Nunca mais foi como aquele o cheiro de lençóis limpos nem o
aroma das comidas, as músicas das vozes amadas e o crepitar das lareiras,
nunca mais a mesma sensação de acolhimento, nunca mais pertencer a
nada com tamanha certeza. (LUFT, Mar de dentro, 2004, p. 19).

Sobre o vasto labirinto das lembranças, percorrido pela memória, há que se


realçar a supremacia que a intensidade dessas lembranças assume diante do
caráter nítido ou fugidio que elas possam esboçar. Nessa perspectiva, Lya Luft nos
diz:

Não tenho nostalgia dessa fase, pois ela faz parte de mim. Está aqui à mão,
para ser lembrada, nítida ou fugidia – sempre intensa. A vida era uma casa
ordenada, a casa uma concha amorosa na calma cidade entre morros
azuis, a vida era a família protetora com seu fluxo de laços reproduzindo um
40

perfil, um gesto, a cor de uns olhos, rostos de tantas idades – e eu pertencia


a tudo aquilo também. (LUFT, Mar de dentro, 2004, p. 20).

Por fim, não posso me negar a transcrever, aqui, o que nutre o cerne da
escrita de Lya Luft: a reincidente idéia de que realidade e ficção são invenções
indissociáveis em sua essência. Mesmo diante do reconhecimento de um pacto
autobiográfico, prenunciado pela foto de Lya Luft na capa do livro, conforme dito
acima, ela insiste em atestar o caráter inventivo de que também se constituem as
memórias:
Explorar o passado, mesmo reunindo memórias de uma infância boa, é
também inventar. Pois esta que recorda não é mais a que vivenciou tudo
aquilo; por outro lado, é ainda a mesma sendo duas, são uma sendo muitas.
E o real se mescla de tal maneira ao sonhado que não se desgrudam mais.
A distinção entre verdade e invenção não importa muito. Mais do que o
gesto, interessa como ele foi recebido. Mais do que a palavra, nos influencia
como ela foi ouvida. Mais do que o fato, vale onde, como e quanto ele nos
tocou. E se nada existe a não ser filtrado pela nossa sensibilidade, não é
preciso saber o que, neste relato meu, aconteceu ou foi imaginado.
Concretude e fantasia me formaram, indo e vindo como as marés que
trazem, recolhem e devolvem nossos momentos – ou os guardam lá onde
só entra a fulgurante intuição, e o cálculo exato tem de ficar de fora. Nesse
recanto somos reis e réus, exilados senhores, animais alados, somos toda
possível liberdade. Lá impera o desafio de tramar palavras e trançar
significados: afirmando ou insinuando. E aramando entrelinhas para que o
leitor, à sua maneira, nessa ilha desse mar se redescubra ou reinvente. E a
cada vez reinvente para si mesmo o estranho mundo. (LUFT, Mar de
dentro, 2004, p. 120).

Desses caminhos já traçados, entre romances, prosa, poesia e ensaios


brevemente apresentados, reconduzo-me para uma nova direção, no que diz
respeito ao esboço dos próximos trajetos literários de Lya Luft. Na verdade busquei
trazer, até aqui, uma apresentação dos diversos modos em que a escrita de Lya Luft
se constituiu. Em nível de romance, tentei, sinteticamente, apresentar os inúmeros
contextos nos quais conflitos e questões diversas se apresentam, procurando
realçar também, nessa forma tão vária e tão mesma de escrita, esses conflitos
intensificados e / ou modificados na pele de diversos personagens.
Como a meu ver, a partir do ano de 2003, o percurso literário de Lya Luft
assume uma nova direção – especialmente com o lançamento do livro Perdas &
Ganhos –, tentarei conferir visibilidade a essas novas produções de uma forma mais
abrangente e mais sucinta, uma vez que essa pesquisa (embora se proponha uma
análise em nível de toda a obra ficcional de Lya Luft) tem como corpus deste
trabalho, os romances Exílio, A sentinela e O ponto cego, cujas análises serão
referenciais para a elaboração das teorias que pretendemos desenvolver acerca dos
41

conceitos sobre o trágico e sobre o estilo. Acrescento, também, que para conferir
mais visibilidade ao tipo de análise que pretendemos desenvolver, anexaremos, ao
final deste trabalho, todas as capas dos livros até aqui mencionados, em suas
primeiras edições. Como pretendemos demonstrar que o trágico, em suas diversas
configurações, é um elemento constituinte do estilo nos romances de Lya Luft, não
poderíamos deixar de observar as cintilâncias que essas ilustrações, ou até mesmo
alguns desses títulos, refletem em nossas reflexões, especialmente se nos
atentarmos para a questão do trágico e para a do estilo.
Essa consideração me remete a parte dos estudos desenvolvidos por Eliana
Scotti Muzzi (1996), sobre a perigrafia do livro. Em seu ensaio, intitulado Leitura de
títulos, ela nos afirma que o título, dentre várias outras atribuições, constitui uma
articulação fundamental do texto, que se revela como lugar de polissemia e
receptáculo de uma ideologia, tornando-se um operador de leitura extremamente
eficaz. Se, para ela, o título é um texto-ícone, que tende para um apelo visual, as
ilustrações que compõem a capa, mais que a esse caráter de apelo, devem
sensibilizar o leitor para a expressividade que se lhe vislumbra através do olhar
conferido à imagem que se constitui a partir daquele texto. Nesse caso, os termos
perigrafia (termo usado por Compagnon) ou paratexto (termo empregado por
Genette) sugerem um espaço liminar que introduz ao texto, constituído pelo que eles
consideram textos menores, que cercam e apóiam o texto principal. Além do título e
das ilustrações, sugerem-se o nome do autor, o prefácio, a dedicatória, a epígrafe,
as notas, a bibliografia, os anexos, os apêndices, o próprio sumário. Segundo
Eliana, é através desses elementos que um texto torna-se livro, que ele se submete
a uma nova dispositio – esta que permite ao leitor avaliá-lo, ter dele uma imagem,
(sem ou) antes mesmo de o ter lido. Se, ainda, no conjunto da perigrafia, o título
ocupa lugar de destaque, já que é a porta de entrada do texto, a fronteira avançada
onde se estabelecem os limites entre texto e extratexto, digo que, especialmente
nesses livros de Lya Luft, as imagens ilustradas em suas capas extrapolam esses
limites, e se impõem como uma marca inaugural do texto que ali se constituiu. Essas
imagens passam a sugerir, então, um momento mítico, inicial, no qual o destinatário
– o público ainda não leitor – é convocado a deixar a concretude de seu mundo para
entrar em um outro tipo de ordem: a ordem da linguagem, a ordem da ficção.
42

Diante dessas considerações e associações preliminares, passarei, agora, a


discorrer sobre as novas formas de produção literária de Lya Luft, a partir da década
de 2000.
Conforme mencionado acima, Lya Luft publicou, em 2003, o livro Perdas &
ganhos. Um livro constituído de uma escrita poético-reflexiva – modo de escrita já
introduzido no livro O rio do meio, de 1996 – que privilegia temáticas já constituintes
de suas narrativas e entrelinhas poéticas. Um livro que gerou bastante polêmica,
especialmente aos olhos de parte da crítica literária, pois milhares de cópias desse
livro foram vendidas no Brasil e no exterior, conferindo-lhe, por isso, o título de Best
seller. Some-se a essa categorização as análises que o classificaram como um livro
de autoajuda, tanto pelo elevado número de exemplares vendidos como também
pelo conteúdo de seus ensaios / reflexões. A despeito dessas visões críticas, o livro
se apresenta exatamente mediante ao que se propõe – ensaios e reflexões –, numa
linguagem extremamente cuidada e bem trabalhada, isto é, numa linguagem literária
por excelência – fato que põe em xeque, a meu ver, as categorizações mencionadas
acima. Além disso, se bem nos atentarmos para o propósito de escrita contido nesse
livro, veremos que em momento algum, essas classificações foram pertinentes ao
tipo de texto que Lya Luft se propôs fazer. Note-se, por exemplo, que o primeiro
capítulo do livro, intitulado Convite, traz, como motivação, o subtítulo Procurando o
tom. Essas iniciais associações sugerem a entrada do leitor no conhecido jogo que
se estabelece – ou que deveria se estabelecer – entre autor e leitor, uma vez que o
convite pressupõe uma convocação, e a essa convocação lhe é dada o direito de
aceite ou recusa. Diante desse chamado, segue-se, então, a proposta – Procurando
o tom –, que sugere todo o cuidado em nível de enquadramento e categorização de
teorias ao tipo de reflexão ali proposta. E logo abaixo ao propósito desse tipo de
produção, surge, na voz da própria Lya Luft, a pergunta-resposta que, talvez,
classificasse o seu próprio texto. E é ela mesma quem nos pergunta / responde:

Que livro é este? Talvez um complemento ao Rio do meio, de 1996. Escrito


na mesma linha, retomando vários dos que são meus temas. Toda a minha
obra é elíptica ou circular: tramas e personagens espiam aqui e ali com
nova máscara. [...] Que livro é este, então? Eu não o chamaria de “ensaios”,
porque o tom solene e a fundamentação teórica que o termo sugere não
são jeito meu. Certamente não é romance nem ficção. Também não são
ensinamentos – que não os tenho para dar. Como em muitos campos de
atividade, surgem novos modos de trabalhar ou criar que precisam de novos
nomes. Cada um dê a esta narrativa o nome que quiser. Para mim é aquela
mesma fala no ouvido do leitor, que tanto me agrada e faço em romances
43

ou poemas – um chamado para que ele venha pensar comigo. (LUFT,


Perdas & Ganhos, 2003, p. 13-14).

Ainda sobre a dificuldade de se estabelecer uma classificação para o que


agora se escreve, Lya acrescenta:

O que escrevo aqui não são simples devaneios. Sou uma mulher do meu
tempo, e dele quero dar testemunho do jeito que posso: soltando minhas
fantasias ou escrevendo sobre dor e perplexidade, contradição e grandeza;
sobre doença e morte. (LUFT, Perdas & Ganhos, 2003, p. 16).

Perdas & Ganhos abriu caminho para outros dois livros, constituídos,
também, sob a mesma ótica ensaísta deste: Múltipla escolha, publicado em 2010, e
A riqueza do mundo – de todos, o mais recente, publicado em 2011. Enquanto em
Múltipla escolha Lya Luft se encarrega de discorrer sobre alguns mitos da nossa
cultura, que, segundo ela, “embora criados por nós, dificultam essa tarefa
existencial” (LUFT, Múltipla escolha, 2010, p. 7), em A riqueza do mundo ela se
dedica a escrever sobre nossas perplexidades comuns, inerentes à família, à
educação dos filhos, à educação do ser humano. Temas sobre a miséria, sobre a
questão da moralidade versus moralismo, e os problemas mais pungentes da nossa
sociedade, que incluem guerras, fome, política e tantos outros, são, também,
criticamente abordados aqui. A visibilidade conjunta dessa proposta de escrita se faz
mediante os dizeres que imprimem a idéia de complementaridade dos dois livros.
Assim nos diz Lya Luft, em Múltipla escolha: “somos autores e personagens dessa
cena complexa. Nos vestimos nos camarins, rimos ou choramos atrás das cortinas.
Também vendemos entradas; às vezes vendemos a alma.” (LUTF, Múltipla escolha,
2010, p. 7). A riqueza do mundo parece apresentar, diante disso, uma possibilidade
para as posturas assumidas diante dos conflitos mais cotidianos. E Lya novamente
nos sugere: “cabe a nós observar, refletir, e lutar com o necessário grão de
esperança e a sólida espada da indignação – para que se cumpra o nosso destino,
que é de senhores, não servos.” (LUFT, A riqueza do mundo, 2011, p. 9).
Nesse ínterim (entre 2003 e 2011), Lya Luft também retomou suas atividades
ficcionais. Em 2004, publicou Pensar é transgredir, livro que reuniu crônicas inéditas
a outras já publicadas em jornal, e a algumas outras avulsas, que como nos diz a
própria autora, “saíram não lembro bem quando nem onde, ou apenas salvei no
computador.” (LUFT, Pensar é transgredir, 2004, p. 11). Em 2005, publicou poesias
no livro Para não dizer adeus. Na voz da autora, lemos: “Este livro de poemas –
44

alguns pouco antigos outros mais recentes, quase todos bem atuais e inéditos – é
mais um jeito de dizer tudo o que diz a minha prosa. Não com menos intensidade ou
inquietação, pois elas, como o amor, são o sal da vida.” (LUFT, Para não dizer
adeus, 2005, p. 12). Em 2006, foi publicado Em outras palavras – livro que reúne
uma coletânea de crônicas, já publicadas na Revista Veja (uma das maiores revistas
de circulação nacional, na qual Lya Luft atua como escritora da coluna Ponto de
vista, até os dias atuais). São cinqüenta e quatro textos já publicados, modificados,
entretanto, mediante algumas alterações. Sobre esse livro, ela mesma nos diz: “Em
outras palavras: novamente peço que venham pensar comigo sobre temas que me
inquietam, me assustam ou me apaixonam – o que é afinal quase a mesma coisa.”
(LUFT, Em outras palavras, 2006, p. 12). Em 2009, foi publicado O silêncio dos
amantes. Um livro de contos, escrito sob a ótica dos desencontros, das perdas, do
silêncio que domina as relações amorosas.
Em nível de literatura infantil, ressalto a publicação inaugural do livro Histórias
de Bruxa Boa (2004). Seguindo-se a ele, foram publicados. A volta da Bruxa Boa
(2007) e Criança Pensa (2009) – livro que publicou em parceria com seu filho,
Eduardo Luft.
Atualmente Lya Luft é colunista da Revista Veja, para qual escreve,
quinzenalmente, já há seis anos, na coluna Ponto de Vista – conforme mencionado
anteriormente. Sobre esse ofício, ela nos esclarece:

Não sou uma colunista política, mas tendo acesso a uma revista de tal
circulação e prestígio, devo, e posso, dividir com os leitores minhas
preocupações ou receios com relação à coisa pública, pois ela me atinge
como parte deste país em crise. (LUFT, Em outras palavras, 2006, p.12).

Acrescento, portanto, a essa menção, o fato de Lya Luft ter sido a primeira
mulher – e única até então – a ocupar o posto de colunista desse veículo de
informação nacional – um dos mais lidos ultimamente. Compreendo que não faço,
aqui, um trabalho inteiramente voltado para as questões de gênero. Entretanto, eu
não ousaria deixar de mencionar o alcance de tal reconhecimento, uma vez que
esse meio de inserção social, que deveria ser indistintamente permitido a homens e
mulheres, se abriu à mulher mediante insistentes e seculares batalhas,
especialmente na luta por um espaço no qual a mulher pudesse manifestar suas
posições políticas, sociais, e até mesmo pessoais. Se todas nós nos tornamos
mulheres, como bem define Simone de Beauvoir, é preciso um espaço para que
45

toda e qualquer sociedade possa reconhecer, na presença dessas mulheres,


potências destituíveis de qualquer institucionalização sobre seus próprios desejos,
sobre sua própria capacidade de questionar os meios e as práticas sociais nas quais
se insere. Talvez esse fato não seja tão relevante para os dias de hoje, uma vez que
as possibilidades se multiplicaram, e amenizaram a diferença até então atribuída a
homens e mulheres. Entretanto, há alguns anos, era inteiramente vedado, às
mulheres, esse modo de inserção. Como bem nos disse Elódia Xavier, em seus
estudos sobre o corpo, especialmente sobre o corpo liberado, esse corpo “típico da
pós-modernidade, [...] que recusa uma identidade fixa, investindo na mobilidade
indentitária, admitindo a ambivalência como parte do processo libertário” (XAVIER,
2007, p. 187), as mulheres deste século estão diante de possibilidades de
conquistas fertilmente consistentes. E Lya Luft é uma escritora que confere
visibilidade a esse momento. É também a partir desse corpo liberado, passível de
ser representado tanto na ficção como na realidade que se constitui um novo cenário
para a representação dos textos literários de autoria feminina. No caso de Lya Luft,
essa atitude vai um pouco mais além, na medida em que ela passa a assumir uma
postura inteiramente pessoal, diante de textos nada ficcionais. É inegável, então,
que essa atitude de expansão de múltiplas possibilidades de expressão representa
uma tendência fortemente voltada para o social, o que permite, especialmente às
mulheres, viverem, de forma transcendente, sua vocação de ser humano, para além
daquelas impostas pelas determinações do gênero, como queria Simone de
Beauvoir.
Diante dessas considerações, esclareço, aqui, que é imprescindível o esboço
desse percurso literário, traçado por Lya Luft em mais de três décadas de muito
trabalho, para a constituição das hipóteses que pretendemos defender nesta
pesquisa, uma vez que este trabalho propõe reconhecer, na obra de Lya Luft, um
estilo de escrita, constituído mediante as diversas configurações que o trágico
assume em seus mais diversos universos ficcionais.
Como se pôde ver, esse percurso proporcionou visibilidade a temáticas
recorrentes, envoltas por inúmeros modos de narrar e/ ou representar. Ficção e
realidade parecem ter aberto, então, o palco da amplidão do indeciso, no qual o
trágico e estilo também deverão desempenhar seus papéis.
46

2.1 Percursos Acadêmicos: Dissertações e Teses sobre a obra de Lya Luft

Dentro desse mesmo percurso, e ainda mediante a iniciativa de realçar os


itinerários literários de Lya Luft, lançarei, agora, todos os trabalhos desenvolvidos
sobre sua obra, sob a forma de Dissertações e Teses. Diante de uma obra tão vasta
e diversa, foram defendidas cinqüenta dissertações de Mestrado e doze Teses de
Doutorado, entre os anos1987 a 2011. Diante disso, registro, primeiramente, as
dissertações:

ANDRADE, Ana Claúdia Pacheco de. Representações de morte de Lya Luft:


interface literatura / filosofia. 2004. 117f. Dissertação (Mestrado em Literatura e
Diversidade Cultural) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana.

AZEVEDO, Priscila Piquera. A subjetividade da voz feminina em crônicas


jornalísticas. 2010. 135f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) -
Universidade Estadual de Londrina, Londrina.

BARBOSA, Cleusa Salvino Ramos. O caráter utópico da busca identitária em


duas autoras contemporâneas: Lya Luft e Bharati Mukherjee. 2005. 83f.
Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Alagoas,
Maceió.

BARRETO, Cintia Cecilia. A representação da infância em Lya Luft. 2006.124f.


Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.

BARROCA, Iara Christina Silva. Um olhar sobre a constituição do universo


ficcional em 'As parceiras', de Lya Luft. 2005. 110f. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BATISTA, Donizete Aparecido. Espaço e Identidade em Lya Luft: Exílio. 2007.


155f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

BONALUMI, Emiliana Fernandes. Análise de similaridades e diferenças no uso


de marcadores de reformulação e padrões lexicais em Family Ties, The apple
in the dark e Soulstorm, de Clarice Lispector, e The red house, de Lya Luft.
2006. 155f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Universidade Estadual
Paulista, São José do Rio Preto.

BORGES, Florípedes do Carmo Coalho. Na contramão da história: o


Bildungsroman feminino em Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Helena Parente
Cunha. 2007. 119f. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Universidade de Brasília,
Brasília.
47

BRANDOLT, Marlene Rodrigues. O eu em O rio do meio de Lya Luft num


discurso representativo da condição feminina. 2005. 78f. Dissertação (Mestrado
em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande.

BURDE, Leani. A espessura da existência humana: perdas e ganhos na obra de


Lya Luft. 2007. 125f. Dissertação (Mestrado em Literatura) - Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis.

CALADO, Claudia Regina Rodrigues. A tradução da iconicidade em The Waves,


de Virginia Woolf, por Lya Luft. 2007. 103f. Dissertação (Mestrado.em Linguística
Aplicada) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza.

CALVES, Nathalie Mattos Garcia. A crise educacional brasileira em revista: o


“Ponto de Vista" da Veja. 2008. 155f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Fundação
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande.

CAMINO, Ana Luisa dos Santos. Trajetórias de procedimentos analíticos em As


Parceiras e Exílio de Lya Luft. 1999. 80f. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.

CANUTO, Tania Lamenha Moreira. De Lya Luft: símbolo, mito e tragédia. 1993. 75f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió.

CIRNE, Sylvia Ayres. Lya Luft no espelho da "Secreta mirada". 2009. 77f.
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande, Rio
Grande.

COSTA, Maria Aparecida Cardoso. A (des) ocultação de elementos antagônicos


em Uma aprendizagem ou Livro dos prazeres e Reunião de família. 1997. 178f.
Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Federal do Ceará, Benfica.

DICK, Lauro João. O conteúdo léxico de floresta no Exílio de Lya Luft. 1990.
168f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre.

FEHLBERG, Jamily. Melancolia e desafeto: um itinerário para a obra de Lya Luft.


2005. 135f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Vitória.

FREIRE, Silvia Barros da Silva. A crônica contemporânea de autoria feminina:


Lya Luft, Marina Colasanti e Martha Medeiros. 2009. 108f. Dissertação (Mestrado
em Letras Vernáculas) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

FREITAS, Selma Fonseca de. Percurso do exílio na condição feminina: morte e


renascimento em "As parceiras" e "Exílio" de Lya Luft. 2007. 100f. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

GENTA, Alda Maria Arrivabene. A gata e a fábula e exílio: a manifestação do


desamor no mundo moderno. 2006. 103f. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Universidade de São Paulo, São Paulo.
48

GOMES, Carlos Magno Santos. Um palco pós-moderno na narrativa de Lya Luft.


2000. 115f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília,
Brasília.

GONÇALVES, Eugênia Otoni. Reunião de família, de Lya Luft: uma abordagem do


espelho como estratégia textual. 2003. 97f. Dissertação. (Mestrado em Letras) -
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

JUNIOR, Celso José de Lima. A Rainha Exilada: jornada psicológica de uma mulher
em busca do verdadeiro eu, em Exílio de Lya Luft. 2008. 84f. Dissertação (Mestrado
em Literatura e Interculturalidade) - Universidade Estadual da Paraíba, João Pessoa.

KUKUL, Vanessa Moro. O quarto fechado, de Lya Luft: uma ilha que emerge na
noite. 2005. 93f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual
Paulista, Assis/SP

LOPES, Maria de Lourdes Amaral Henriques. Logos e Mythos: uma reflexão crítica
sobre o feminino e a condição humana no universo imaginário de Lya Luft. 2000.
176f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte.

MELO, Cimara Valim. Lya Luft: percursos entre intimismo e modernidade. 2005.
142f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre.

MIRANDA, Andrea Cabral de. A representação ficcional do poder em A memória


reudltada, de Maximiano Campos e O quarto fechado, de Lya Luft. 1999. 189f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

MOMBACH, Clarissa. A representação da cultura brasileira teuto-gaúcha na


literatura sul-rio-grandense contemporânea. 2008, 128f. Dissertação (Mestrado
em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

MORGADO, Valdoméria Neves de Moraes. O discurso educacional no artigo de


opinião: o controle do já controlado. 2010. 147f. Dissertação (Mestrado em Letras e
Linguística) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

OLIVEIRA, Lenise Grasiele de. Da Inscrição ao apagamento: memória e morte.


2009. 70f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Vale do Rio Verde, Três
Corações.

OLIVEIRA, Monique Gomes. O homem no barco dos réus: leitura da construção


das personagens masculinas na obras de Lya Luft. 1997. 185f. Dissertação
(Mestrado em Letras Vernáculas). – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro.

PIRES, Adalgiza Maria. A ficção de Lya Luft: traços de uma leitura psicanalítica.
2000. 102f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal
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PRADO, Luiz Carlos Santos. “Tempos de casas e labirintos: o lugar da avó na


trajetória feminina em Lya Luft”. 2010. 154f. Dissertação (Mestrado em Educação) -
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RELLMANN, Risolete Maria. O rio do meio da memória luftiniana: uma cartografia


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RITER, José Carlos Dussarrat. Pelos desvios familiares: realidade e ficção em Lya
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Grande do Sul, Porto Alegre.

RODRIGUES, Selma França. Configurações dos espaços em três obras de Lya


Luft. 2004. 108f. Dissertação.(Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de
Londrina, Londrina.

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personagem na obra de Lya Luft. 1990. 164f. Dissertação (Mestrado em Letras). –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

SALLES, Eneida Lopes Feijó. A presença da morte em romances de Lya Luft.


2002. 86f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Estadual de Londrina,
Londrina.

SCHNADELBACH, Rosane da Costa. “Entre o sonho e o real: um percurso pelo


universo dual construído por Lya Luft". 2003. 89f. Dissertação (Mestrado. Em
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SENA, Adriana Vieira da. A asa esquerda do anjo. 2008. 109f. Dissertação
(Mestrado em Estudos da Linguagem) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal.

SILVA, Ana Lídia de Carvalho. Sob as teias da família: a subjetividade em


construção nos romances de Lya Luft. 2000. 115f. Dissertação (Mestrado em Letras)
– Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

SILVA, Eliana Ferreira Rodrigues da. Temporalidade e angústia no romance A


asa esquerda do anjo de Lya Luft. 2007. 80f. Dissertação (Mestrado em Letras) -
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SILVA, Simone Sampaio. Gênero e literatura: dois romances de Lya Luft em


perspectiva crítica. 2001. 146f. Dissertação (Mestrado em Literatura) –. Universidade
de Brasília, Brasília.

SILVA, Suênio Stevenson. Tomaz da. Um estudo comparativo dos aspectos


distópicos em “Surfacing” de Margaret Atwood e “As parceiras” de Lya Luft.
2008. 87f. Dissertação (Mestrado em Literatura e Interculturalidade) - Universidade
Estadual da Paraíba, João Pessoa.
50

TORINHO, Maria Esther. Corpos-linguagem e subjetividades em Lya. 2008. 120f.


Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.

VARGAS, Maria Jose Ramos. Os Sentidos do silêncio: a linguagem do amor


entre mulheres na Literatura Brasileira Contemporânea. 1995. 103f. Dissertação
(Mestrado em Letras) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.

WAGNER, Mônica de Castro. Jogo de espelhos: vida e morte em Reunião de


família, de Lya Luft. 1997. 166f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Em nível de teses de doutorado, registro:

CAMPOS, Maria Elvira Brito. "Virei com os outros e Reunião de Família, em


contos e desencontros" 2003. 142f. Tese (Doutorado) - Universidade de São
Paulo, São Paulo.

CASTANHEIRA, Claudia Silva. Dinamizando as marcas da diferença: a mulher e o


discurso ficcional no fim do século XX. 2003. 208f. Tese (Doutorado) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

COSTA, Maria Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft.


1993. 215f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro.

FEITOSA, André Pereira. Mulheres-monstro e espetáculos circenses: o grotesco


nas narrativas de Ângela Carter, Lya Luft e Susan Swan. 2011. 164f. Tese
(Doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

GONÇALVES, Gracia Regina. A clausura do corpo: representação e gênero na


ficção de Lya Luft e de Margaret Laurence. 2001. 245f. Tese (Doutorado).
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

DIETSCHI, Irene Maria. Em busca do passado: o papel da memória em “As


parceiras”, Oktoberlicht e Cat’s eye. 2006. 117f. Tese (Doutorado) - Universidade
Federal de Alagoas, Maceió.

LIMA, Eliane Ferreira de Cerqueira. O encontro com o arquétipo materno:


imaginário e simbologia em Lya Luft. 2006. 217f. Tese (Doutorado) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

PAES, Iêdo de Oliveira. Na chispa de olhares, a explosão do discurso repressor:


a ficção de Lya Luft. 2007. 171f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de
Alagoas, Maceió.

RIBEIRO, Maria Goretti. A via crucis da alma: leitura mítico-psicológica da trajetória


da heroína em As Parceiras, de Lya Luft. 2003. 289f. Tese (Doutorado) -
Universidade Federal de Alagoas, Maceió.
51

SASSE, Marita Deeke. Mulheres no espelho: aspectos da narrativa de autoria


feminina. 1993. 210f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.

SILVA, Silvana Augusta Barbosa Carrijo. Trama tão mesma e tão vária: gêneros,
memória e imaginário na prosa literária de Lya Luft. 2009. 407f. Tese (Doutorado) -
Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

TOMAZ, Jerzuí Mendes Torres. Marcadores afetivos e inscrições corporais no


universo feminino de Lya Luft. 2007. 223f. Tese (Doutorado) - Universidade
Federal de Alagoas, Maceió.

2.2 Um depoimento especial

Durante todo esse tempo de pesquisa, somam-se às inúmeras entrevistas


que assisti, os diversos lançamentos de livros em que estive presente, bem como a
leitura de todo e qualquer tipo de depoimento, crítica ou mesmo de declarações
pessoais de Lya Luft. E diante de todo esse material, parte inteiramente constituinte
do corpo desta pesquisa, ainda que não realçado aqui diretamente, digo, exposto e
referencializado, escolhi transcrever, dentre essas várias atividades, o depoimento
de Lygia Fagundes Telles sobre a obra de Lya Luft, publicado em 1984. Embora já
tendo sido proferido há muitos anos, esse depoimento se mantem contemporâneo
aos traços que a escrita de Lya Luft conserva até os dias atuais. Diante disso,
transcrevo:
A burguesia só dá importância à aparência. Defender essa aparência é o
único objetivo de certas camadas da classe média que se esforçam para
ascender à chamada classe alta numa luta que às vezes fica feroz, tanto
mais cruel quanto dolorida. É o jogo do faz-de-conta. Arrumar a sala de
visitas das casas e das pessoas, nem poeira nem rasgões, fechar portas e
janelas para que o olho do outro não pesquise, não descubra o que está
debaixo do tapete ou da almofada da poltrona nobre – por que as antigas
salas de visitas permaneciam sempre numa doce penumbra? Lya Luft
deixou-se fascinar por essas salas bem arrumadas. Aos poucos foi entrando
nelas, conversando com seus moradores também arrumadíssimos, sutil e
delicadamente (ela é delicada) foi se introduzindo além dos espaços
destinados aos visitantes. Começou a conviver com pessoas e coisas: sem
alarde, sem espalhafato, foi abrindo janelas e portas. Abriu pequenas
gavetas. Envelopes. As revelações são chocantes, espantos quase
absurdos. Na ordem familiar tão bem composta, a desordem. Na
composição das hierarquias e valores harmoniosos, a paixão. O desespero.
O inconformismo abrindo brechas nas superfícies polidas. Tentam-se
remendos, acertos mas sob a luz implacável, avassaladora, nada é
poupado: a estatueta de cima do piano tem as asas coladas, é um pequeno
deus do amor reconstituído mas tão frágil, tão apressadamente, ao mais
leve toque as asas podem se desprender porque a cola foi mal preparada.
As molas da poltrona se soltaram insólitas e agora ameaçam romper o
tecido de cetim desbotado, e os espelhos (ah! tanto espelho) estão
infiltrados, de bordas amarelecidas como os retratos da galeria dourada,
52

eles pareciam perfeitos, mas estão se esfarelando na intimidade


carunchada. Objetos e pessoas se desnudam na devassa da visitante que
vai levantando pano e pele: sim, é preciso coragem. Mas a escritora é
corajosa como testemunha-participante de um tempo e de uma sociedade
que exige coragem. Nada a detém, vai em frente na sua tarefa de busca e
denúncia: a insegurança, o medo. A loucura e a solidão. A morte – eis seus
temas apaixonantes. Seus livros poderiam ser documentários, flagrantes
apenas dessas casas sobre areia, mas e a linguagem? O estilo.
Resgatando a palavra tão banalizada e tão imprecisa, conseguiu ela criar
uma obra que é documento social e arte. Intimista, afunda nos seres e nas
coisas num movimento de parafuso, e nessa verticalidade é sustentada por
uma linguagem original e exata, usando neste sentido nosso duro ofício,
simultaneamente, “a linguagem da paixão e a paixão da linguagem”, como
quer Octávio Paz. Percepção e intensidade, eis as qualidades maiores de
um escritor. Lya, intensa e perceptiva, soma a essa riqueza um alto sopro
poético, ela também é poeta. Em face das suas ficções, o leitor sente que
está diante de uma escritora brasileira, a atmosfera é brasileira. Mas a
categoria é universal. (TELLES, 1984, p. 23).

Diante desse percurso tracejado, este trabalho de pesquisa segue o seu


propósito, partindo, agora, para uma análise sobre as faces do trágico na escrita de
Lya Luft.
53

Criar personagens trágicos não significa que o autor seja pessimista


[...]. Nem sempre a filosofia de meus personagens tem muito a ver
com a minha, nem vivo as suas trajetórias. Mas sou mãe desses que
dormem dentro de mim como filhos possíveis, sementes com o sono
do fruto. É preciso não sucumbir quando naufragam. O que nos
resguarda? Que mão nos segura à margem? Talvez a crença de que
tudo faz parte do mesmo fluir: amor e solidão, nascimento e morte,
entrega e decepção. De que algum sentido existe – o essencial, que
nossa inquietação procura.
Lya Luft

O homem – qualquer homem é uma casa habitada por um poeta


que, sabendo ou não sabendo, tem um sentido trágico. Poeta que
inventa o próprio poema, poeta condenado a habitar a casa que é ele
próprio, e de repente as paredes se desmancham e não é mais casa,
sobrando o cão à porta, uma porta que não existe mais, o cão
coberto de cinzas guardando o nada.
Carlos Heitor Cony
54

3 AS FACES DO TRÁGICO NA ESCRITA DE LYA LUFT

3.1 Por um sentido do trágico

[...] trágico, tragédia. São palavras que [...] vem sofrendo uma banalização
progressiva, um esvaziamento de seu conteúdo próprio; elas perdem seu
significado ou assumem os mais diversos sentidos, com conteúdos até
contraditórios. Para que se utilize a palavra tragédia, basta que ocorra um
evento, mesmo exterior à esfera humana, dotado de uma certa intensidade
negativa. Assim, a morte ou um terremoto são sempre tragédias. Tudo se
passa, portanto, como se o trágico tendesse a perder sentido, se tornasse
difuso através de sua dissolução, enquanto a tragédia propriamente dita
permanece relegada ao rol das coisas amorfas. Mas a principal dificuldade
que oferece a compreensão da tragédia não reside tanto neste processo de
dissolução, nem mesmo na divergência existente entre as diversas teorias
que pretendem interpretá-la. A principal dificuldade advém da resistência
que envolve o próprio fenômeno trágico. Trata-se, em verdade, de algo que
é rebelde a qualquer tipo de definição, que não se submete integralmente a
teorias. Justifica-se: deparamos na tragédia com uma situação humana
limite, que habita regiões impossíveis de serem codificadas. As
interpretações permanecem aquém do trágico, e lutam com uma realidade
que não pode ser reduzida a conceitos. (BORNHEIM, 2007, p. 71).

Apontar as faces do trágico na escrita de Lya Luft é um dos grandes desafios


desta pesquisa, embora seja-nos perfeitamente visível a presença dele como um
elemento recorrente em toda a sua obra. A despeito dessa percepção,
aparentemente óbvia, nossa questão primeira diz respeito a certas dimensões que
esse elemento, em sua ampla gama de concepções, assume no texto literário de
Lya Luft. Como um dos grandes e mais antigos temas da filosofia, o trágico
perpassa vários períodos de sua história para encontrar, no idealismo alemão, um
dos seus mais relevantes momentos: a questão de sua própria (re) significação.
Segundo Denis L. Rosenfield (2001), é na busca de um sentido para o trágico que
se recortam diferentes abordagens da família, da política, da religião e da ética. E
essas abordagens nos levam a questionar quais são as formas contemporâneas do
trágico, bem como de que maneira ele também nos impõe determinados
questionamentos. Diante dessa perspectiva, a obra de Lya Luft se nos apresenta
como um vasto cenário para a composição de mais essa peça de seu jogo literário,
de novas faces que se mostram e se apresentam através de uma escrita que
contempla distintos momentos da concepção do trágico: desde o mais antigo,
efetivamente relacionado à maneira com que os gregos lidavam com a tragédia, à
vivência do que há de mais moderno, ou seja, pensá-lo como uma categoria capaz
de apresentar a essência da condição humana.
55

A epígrafe deste capítulo nos coloca diante da dificuldade, ou melhor, da


impossibilidade de se criar uma definição para o trágico, uma vez que Gerd
Bornheim já o define como “... algo que é rebelde a qualquer tipo de definição...”
(BORNHEIM, 2007, p.71). Pesquisar as faces do trágico na escrita de Lya Luft nos
coloca, também, diante dessa impossibilidade de significação – ou da inconsistência
de sentido que envolve o próprio termo –, uma vez que o trágico se configura a partir
de máscaras diversas, sem, entretanto, revelar um sentido único capaz de suprimir a
essência de outros. E é, principalmente, mediante essa característica – reveladora
de uma multiplicidade de sentidos – que nos reconhecemos em meio a um terreno
de caráter movediço e deslizante, especialmente em relação ao sentido que se
pretende entender, aqui, como trágico.
Analisar a obra literária de Lya Luft sob a luz do trágico é também reconhecer
a estreita relação entre o trágico e a obra de arte, embora seja prudente mencionar
que o aspecto trágico não pode e não deve ser tomado, exclusivamente, no âmbito
do estético, como nos adverte Bornheim. Para ele, não é suficiente fundamentar a
tragédia somente a partir da esfera da obra de arte, uma vez que não é apenas a
obra de arte que dá, a si própria, a sua tragicidade. Ao contrário, “... o trágico é
possível na obra de arte porque ele é inerente à própria realidade humana, pertence,
de um modo precípuo, ao real.” (BORNHEIM, 2007. P.72). E o que mais motiva esta
pesquisa sobre a obra de Lya Luft é reconhecer, em seus romances, as diversas
vivências da realidade humana que suas personagens representam, ou seja, as
várias máscaras a partir das quais o trágico se apresenta. Se fizermos uma breve
análise das temáticas dos romances de Lya Luft, reconheceremos, antes mesmo de
uma análise mais profunda delas, as várias faces que o trágico assume em sua
escrita, enquanto elemento que persiste em toda sua obra. Assim, essas máscaras
do trágico configuram-se de maneiras distintas, assumindo, algumas vezes, os mais
peculiares sentidos conferidos ao caráter especificamente do trágico, desde
Aristóteles a Friedrich Nietzsche, passando, nesse ínterim, por outros grandes
estudiosos, como Schelling, Hegel, Schopenhauer, Schiller, e muitos outros.
Deparar-se com uma situação humana limite é o que Lya Luft pretende fazer
na vivência da escrita de seus personagens. Em seus romances, é-nos possível
vivenciar o trágico tanto na perspectiva do grego, que tem uma propensão singular
para suportar a dor da existência, como na de Nietzsche, que compreende o trágico
através de uma perspectiva afirmativa da existência.
56

3.2 A dimensão trágica da realidade humana no universo romanesco luftiano

Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós
– desde que nascemos, vai elaborando o roteiro de nossa vida. Ela é a
grande personagem, o olho que nos contempla sem dormir, a voz que nos
convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos.
Lya Luft

Nos primeiros romances de Lya Luft – As parceiras, A asa esquerda do anjo,


Reunião de família e O quarto fechado, respectivamente -, o aspecto do trágico
analisado sob a concepção de um pessimismo e de um fado imanente, e, portanto,
imutável, é realçado na presença de personagens que vivem em busca de uma
identidade e de uma verdade familiar capazes de libertá-las de suas fatalidades.
Para isso, iniciam um jogo de “esconde-esconde”, a fim de se auto-descobrirem a
partir de estigmas familiares já traçados, em busca de um sentido para suas vidas.
Este estar em eterna busca de um sentido para a vida faz com que as personagens
luftianas perpassem os mais labirínticos conceitos do trágico, valendo-se das mais
diversas máscaras para representá-lo. Em alguns romances, essas personagens
deixam-se sucumbir ao destino, reconhecendo-se incapazes de escaparem a
qualquer tipo de predestinação fatídica a elas já conferida. Em outros, há o reverso
da situação: personagens que contrariam toda uma expectativa fatídica a elas (pre)
destinadas assumem a responsabilidade por suas próprias escolhas, sem,
necessariamente, entregarem-se a uma força maior imutável, contra a qual não se
pode lutar.
Essa força inabalável que o destino exerce sobre algumas personagens de
Lya Luft nos aproxima da concepção do valor da arte trágica para os gregos,
questionado a partir de Nietzsche. As respostas para as questões: o que é a arte,
que importância tem ela para a vida, ou que relação mantém ela com a força e a
fraqueza são alguns dos fundamentos da filosofia de Nietzsche. E ele, desde o
primeiro momento de suas reflexões, sugeriu-as a partir de uma reflexão sobre a
Grécia antiga, que sempre lhe serviu de modelo privilegiado na crítica aos valores da
decadência. Para Roberto Machado, a possibilidade de se estabelecer um ponto de
partida para as reflexões de Nietzsche encontra-se “na correlação entre uma
sensibilidade exacerbada para o sofrimento e uma extraordinária sensibilidade
artística que caracteriza os gregos e que se explica pela força de seus instintos.”
(MACHADO, 1985, p.19). Para Nietzsche, a questão era refletir sobre qual era o
57

antídoto para os gregos superarem seus sofrimentos, uma vez que ele mesmo
afirma que “por causa da força de todos os seus instintos, a vida dos helenos era
mais rica em sofrimento” (MACHADO, 1985, p.19). O grego, extremamente sensível,
capaz de grande sofrimento e bastante vulnerável à dor, tem, nessa condição, um
perigo para a vida: ser levado ao pessimismo, à negação da própria existência pela
dolorosa violência dessa existência, ou seja, pela inelutável presença da morte. A
materialidade desse pessimismo radical constitui o que Nietzsche chama, em O
nascimento da tragédia, de “sabedoria popular” e de “filosofia do povo”, em A visão
dionisíaca do mundo - pessimismo ilustrado pela sabedoria de Sileno, personagem
lendário, companheiro de Dionísio. Reza a lenda que Midas, rei da Frígia,
encontrando nos bosques o sábio Sileno, que vivia por lá, bebendo, rindo e
cantando, pergunta-lhe o que existe de mais desejável para o homem, ou seja, qual
lhe é o bem mais supremo. Sem querer responder, a princípio, o sábio afinal lhe
responde, depois de pressionado:

Miserável raça de efêmeros, filhos do acaso e da pena, por que me obrigar


a dizer o que não tens o menor interesse em escutar? O bem supremo te é
absolutamente inacessível: é não ter nascido, não ser, nada ser. Em
compensação, o segundo dos bens tu podes ter: é logo morrer.”
(NIETZSCHE apud MACHADO, 1985, p.20).

A origem da arte grega reside nessa problemática. Para os gregos, a arte e a


religião estão intimamente ligadas e são idênticas, ou seja, o mesmo instinto que
produz a arte produz a religião. Os gregos, então, criaram os deuses olímpicos ou a
arte apolínea para tornar a vida possível ou desejável, dando, assim, uma
superabundância de vida ao mundo. A criação da arte apolínea, que tem na epopéia
homérica sua mais importante realização, é, antes de tudo, a expressão de uma
necessidade. A idéia de que “a vida só é possível pelas miragens artísticas”
(MACHADO, 1985, p. 20) é o que acompanha Nietzsche, em toda sua reflexão. O
sentido preciso dessa idéia revela-se no fato de que para que o grego, povo
constantemente exposto ao sofrimento, pudesse viver, foi necessário mascarar os
terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpicos, resplandecentes
filhos do sonho. E a epopéia, como poesia da civilização apolínea, é um modo de
reação contra o saber do aniquilamento da vida. Portanto, a importância da arte
apolínea, bem como sua força como antídoto contra o inexorável, é ser capaz de
inverter a sabedoria de Sileno, criando a evidência de que “o mal supremo é morrer
58

logo, o segundo dos males é ter que morrer um dia” (MACHADO, 1985, p. 21). E
para lidar contra a dor, o sofrimento e a morte, o grego diviniza o mundo criando a
beleza, ou seja, embelezando-o: “para o grego beleza é medida, harmonia, ordem,
proporção, delimitação, mas, também, significa calma e liberdade com relação às
emoções, isto é, serenidade.” (MACHADO, 1985, p. 21). O mundo grego da beleza é
o mundo da bela aparência, e essa apologia da arte significa, para Nietzsche, uma
apologia da aparência como necessária não apenas à sustentação da vida, mas à
intensificação dela. Uma das teses principais de O nascimento da tragédia, sua
“hipótese metafísica”, é que o ser verdadeiro, o “uno originário” tem necessidade da
bela aparência para sua libertação; uma libertação da dor pela aparência. Nietzsche
expressa o papel da arte como um perfeito elo entre existência e criação. Segundo
ele, “[...] só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se
eternamente” (NIETZSCHE, 2007, p. 44). A partir dessa constatação, Nietzsche
constituirá o que ele define como “metafísica do artista”, pautada pelas figuras
antitéticas de Apolo e Dionísio, que, mediante uma aproximação vital para a cultura
helênica, faz nascer a tragédia grega.
Dionísio é percebido por Nietzsche como o principal elemento transformador
da arte grega, principalmente por ser, ele mesmo, o deus da transformação. Dionísio
está relacionado aos ciclos da natureza, o que indica que ele é o deus do vir a ser.
Suas sucessivas transformações afirmam a instabilidade da vida entre dois pólos: o
construir e o destruir. E para Nietzsche, esse impulso incontrolável de Dionísio
simboliza a pulsão de vida, embora esse mesmo deus revelasse ao homem que a
arte da individuação, vivida em excesso, também representaria grande perigo para a
vida. Diante dessa perspectiva, a tragédia só ocorre na medida em que o homem
compreende o apolíneo e o dionisíaco não mais como uma oposição, e, sim, como
diferentes maneiras de expressão da vida. Já na tragédia, a conciliação entre a força
dionisíaca e a força apolínea possibilita uma nova experiência para o saber trágico:
“a de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências
fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.” (NIETZSCHE, 2007,
p. 52)
É nesse sentido de intensificação da própria vida que pensamos na produção
literária de Lya Luft. Nos romances escolhidos como objeto de estudo - Exílio, A
sentinela e O ponto cego – essas faces do trágico se manifestam através da forte
59

consciência da inevitabilidade da morte, mas, por outro lado, essas faces também
esboçam novas maneiras de ir em busca de uma defesa em prol da própria vida.
Em Exílio, publicado em 1987, somos convocados, logo a partir das primeiras
páginas, a refletir sobre o caráter trágico anunciado por Sileno, uma vez que Lya Luft
elege, como epígrafe desse romance, os dizeres do sábio Sileno, citados por
Nietzsche, em O nascimento da tragédia. Antes mesmo de chegarmos ao corpo da
narrativa, somos surpreendidos pela inaugural reflexão:

Ah mísera estirpe de um dia, filha do acaso e da aflição, por que me


constranges a te dizer o que é preferível não ouvires? A melhor coisa,não a
podes alcançar: é não ter nascido, não ser, ser nada. A segunda melhor
coisa para ti depois disso é – morrer logo. (LUFT, Exílio, 2005, p. 7).

Não foi casual a escolha dessa epígrafe para o referido romance. Nele, a
personagem narradora, anônima, empenha-se no árduo papel de resgatar a si
mesma, através de uma incessante busca pela mãe, nomeada de “Rainha Exilada”
(LUFT, Exílio, 2005, p. 13), que se suicida quando seus dois filhos ainda eram
crianças. E lutar contra a inexorável condição humana, de ser finito e vencível pelo
tempo, é uma maneira de ir em busca de um equilíbrio mediante a dolorosa verdade
de “... não ter nascido, não ser, ser nada... morrer logo.” (LUFT, Exílio, 2005, p. 7).
Diante do cenário trágico / grotesco instaurado no romance, a narradora se depara
com a realidade de uma mãe suicida e de um irmão demente. Como no primeiro
romance, As parceiras, para narrar-se é preciso voltar às origens, (re) abrigar-se no
ambiente doméstico, lugar das reminiscências familiares, a fim de que sejam
superadas as carências afetivas, para que seja, finalmente, possível encontrar um
sentido para sua própria existência. Ao contrário do cenário de As parceiras, no qual
o velho Chalé abriga conflitos de seres essencialmente familiares, Exílio se constitui
em um outro tipo de palco: uma pensão decadente e misteriosa, conhecida como a
Casa Vermelha. Nela, a única presença familiar é a de Gabriel, o irmão da
narradora. Os outros moradores não tem ligação uns com os outros: são
desgarrados que vivem ali, exilados de corpo e alma, cada um com sua pungente
história pessoal. Todos vivenciando, ao mesmo tempo, a face mais grotesca do
trágico, ou seja, as várias figurações com que a morte se lhes apresenta:
60

A Casa Vermelha carrega em seu bojo roído pelo tempo, habitado de ratos
e infectado de angústias, toda uma raça de exilados. Cada um com sua
grande nostalgia, sua insaciável sede e sua aflição, tentam adaptar-se como
podem. Uns isolando-se mais ainda, como a Mulher Manchada em sua pele
de renda; outros dando valor ao mais banal gesto de cordialidade, como as
Moças com seu drama secreto; a minha Velha, cada dia absorvendo-se
mais em sabe Deus que memórias ou esperas. Nessa idade acho que a
gente só tem memórias; agachada num presente adusto e calcinado,
contempla o passado vivo. (LUFT, Exílio, 2005, p. 42).

Embora o contexto romanesco de Lya Luft privilegie a problemática familiar,


especialmente no que diz respeito à repressão feminina mediante a sociedade
patriarcal, Exílio nos re-apresenta essa problemática sob uma nova perspectiva em
relação aos romances anteriores: é o da profissionalização da mulher, que, tanto
nesse livro como nos outros dois, eleitos como materiais desta pesquisa sai da
esfera do propriamente doméstico / interno para atingir o espaço público / externo,
somente circundado pelo âmbito da casa. Mesmo mediante essa progressão
pessoal, a mulher, aqui, no papel da narradora, ainda não consegue se libertar dos
parâmetros sociais impostos pela cultura patriarcal. Essa ruptura com os papéis
tradicionais reservados a ela vai constituir a possível causa do desequilíbrio familiar.
Enquanto em As parceiras a narradora Anelise volta ao Chalé para relembrar sua
história familiar, bem como as possíveis causas pela sucessiva loucura e morte das
mulheres de sua família, a narradora de Exílio se hospeda na Casa Vermelha, onde
tenta reconstruir sua vida e suas perdas, mediante a vivência de diversas situações,
a partir de um mundo de enfermidades e adversidades:

Que mundo, o desta Casa. Deve ter sido luxuosa: hoje abriga náufragos
que aportaram aqui Deus sabe como e de onde; e para quê. Formamos
uma fauna e tanto: as Moças, que parecem ser um casal; eu, a mulher
retraída, coberta de vitiligo, que não fala com ninguém; minha vizinha de
frente, velha e alquebrada, provavelmente um tanto caduca; e pouca gente
mais; algumas pessoas só vem para as refeições: jovens estudantes, únicos
animados à mesa. Uma pensão medíocre, pertence a uma mulher que
nunca aparece. Todos a chamam de Madame: mas mora no centro da
cidade, e certamente pouco se interessa por este lugar. (LUFT, Exílio, 2005,
p. 19).

É nesse cenário que a narradora pretende descobrir as razões pelas quais ela
foi traída pelo marido; o que, de fato, poderia ter abalado aquela vida tão
aparentemente sólida, “todo o universo falsamente indestrutível de uma pequena
família?” (LUFT, Exílio, 2005, p. 40). Ante as acusações que Marcos lhe faz,
especialmente dirigidas à sua vida profissional, a própria narradora questiona o valor
de sua profissão, bem como a inversão desse papel feminino, até então
61

condicionado a questões estritamente domésticas, como a possível causa de seus


transtornos familiares. Na verdade, o que se busca é uma justificativa para a traição
de seu marido e pela perda de seu filho, Lucas:

Descobri o primeiro caso de Marcos quando Lucas era muito pequeno.


Incredulidade, mágoa funda, como ele pôde, como pôde? Gritei, chorei, fiz
todas as cenas que sempre censurara em outras mulheres; achava que era
preciso ser elegante em todos os momentos. Mas na hora, fui apenas um
novelo de confusão, ódio; e dor. Marcos passou noites fora de casa; voltou
pálido e atormentado. Choros, juras, promessas, reconciliação, intensas
cenas de amor, e uma viagem fingindo ser a segunda lua de mel. Mas
alguma coisa estava mudada, meu mundo sofrera uma rachadura
importante; nosso pacto fora rompido, e depois disso eu não consegui mais
sossegar. Comecei a achar que minha profissão me mantinha demais longe
de casa; não era incomum levantar e sair no meio da noite para atender;
muitos dias chegava em casa exausta no fim da tarde, mal conseguia jantar;
brincava um pouco com Lucas, e me arrastava para a cama; ou ficava
acordada até tarde, estudando um caso difícil. (LUFT, Exílio, 2005, p.43).

Essas lembranças, esses questionamentos acerca da nova postura assumida


por essa mulher, especialmente frente a uma sociedade que lhe impõe deveres e
obrigações, marcam não somente uma ruptura desses valores pré-instituídos a ela,
mas, também, uma ruptura com seus próprios valores pessoais e emocionais, que
condicionam essa mulher a um tipo de culpabilidade por qualquer tipo de fracasso
familiar. Por um momento, essa mulher profissionalmente realizada e reconhecida
perde as tão sonhadas rédeas de sua própria vida, na medida em que transfere,
para o homem, suas responsabilidades familiares. Diz-nos a própria narradora:

Passei noites lembrando o quanto o deixara de lado correndo atrás da


minha profissão, e quantas vezes o pai cuidava dele,levava a passeios,
fazia dormir enquanto eu atendia partos. Era Marcos quem, com um
trabalho menos absorvente do que o meu, lhe dava banho quando a babá
não estava; era Marcos quem lhe contava histórias quando eu estava
cansada demais. Havia laços especiais entre eles: eu ficava de fora, sem
notar. Fui para o apartamento que tinha alugado por pouco tempo, e Lucas
permaneceu em casa com o pai. Agora eu era uma mãe de fim-de-semana.
(LUFT, Exílio, 2005, p.45)

A questão das perdas da narradora vai-se associando, aqui, de uma forma


muito singular, à sua profissão. E por isso ela abandona seu trabalho, na tentativa
de reconstituir sua vida. Ao relembrar os inúmeros partos que já havia realizado, o
amor que tinha à sua profissão, bem como o quanto se sentia forte e segura diante
daqueles ventres distendidos, conclui que nunca mais teria “aquelas mãos firmes,
aquele jeito autoritário e calmo.” (LUFT, Exílio, 2005, p. 41). Talvez por não saber
avaliar as situações devidamente, por não saber “fazer o balanço correto entre
62

perdas e ganhos...” (LUFT, Exílio, 2005, p. 41). Essa (auto) análise de sua própria
condição se diz em:

Fecho os olhos para não ver. Deito-me na cama, tapo a cabeça com o
travesseiro, não quero escutar. Acho que nunca mais vou conseguir
trabalhar. Eu, que amava minha profissão; sentia estar também parindo
aqueles bebês, vendo a vida brotar de sofrimento e sangue, esperança e
medo; rodeada de futuras mães com seus ventres distendidos e olhos um
pouco assustados, eu me sentia forte e segura. (LUFT, Exílio, 2005, p. 41).

A partir dessa citação, podemos nos posicionar diante de uma outra


configuração conferida ao trágico e à tragédia moderna: o conflito é centrado no
indivíduo.
Para Ricoeur, a tragédia grega é a manifestação “inteira de essência do
trágico; compreender o trágico é repetir o trágico grego não como um caso particular
da tragédia, mas como a origem da tragédia, isto é, simultaneamente, seu começo e
seu surgimento autêntico.” (RICOEUR, 1960, p. 198). Percebe-se, aqui, que, para
esse autor, toda outra tragédia seria análoga a esta, que funcionaria como um guia a
delimitar uma definição mais precisa, entretanto polissêmica, sobre esse caráter
trágico, que se estende ao longo da história humana. É certo que as formas da
história se transformaram, e, com elas, as práticas sociais, que também se
organizaram e ultrapassaram, de diferentes maneiras, os preceitos legislados pelos
tabus e desenvolvidos esteticamente nas tragédias. E essas transformações,
embora tenham conferido ao trágico diferentes versões, não conseguiram
desvencilhar-se do sentimento de mal estar despertado por ele. Sentimento que
sempre pareceu e que, nos atuais dias, continua parecendo irremediável.
Mauro Pergaminik Meiches, autor do livro A travessia do trágico em análise,
afirma que o trágico depende de interpretações. Se o trágico depende de
interpretações, isso significa que ele se particulariza com as interpretações que lhe
são conferidas. Por outro lado, Meiches também nos apresenta o trágico como
“categoria ou princípio filosófico, que ultrapassa a sua concretização na tragédia
grega, podendo manifestar-se em todo tipo de linguagem artística e filosófica”
(MEICHES, 2000, p. 21), o que nos leva a pensar que o trágico também se inscreve
na linha do universal. Esses apontamentos, ainda que aparentemente contraditórios,
são apenas alguns de tantos outros que fazem parte de uma série de questões,
levantadas por Mauro Meiches, acerca do sentido do trágico, bem como do sentido
que ele atinge na vivência psicanalítica. Embora esse livro seja fruto de uma
63

pesquisa de doutorado voltada para os estudos do trágico relacionados à


Psicanálise, ele também se constitui de sábia e múltipla escolha de caminhos,
pretéritos e presentes, percorridos pela crítica social e literária, em busca de novos
contornos conferidos à questão do trágico, considerando suas mais diversas
acepções.
A partir da elaboração desse trajeto conceitual, configuram-se, também,
contornos e desígnios que nos levam a pensar em uma essencialidade para esse
aspecto do trágico, em qualquer situação humana. E a busca por essa essência do
caráter trágico se constitui, na maioria das vezes, pela ambivalência:

Em muitos níveis, mas veiculada de maneira absoluta no jogo da língua, a


ambivalência é a mola fundamental que faz funcionar um efeito de
irresolução, fundante do trágico junto com o sentimento de caminho sem
volta, até um limite paroxístico. Com as coisas acontecidas sempre por
decifrar-se e nunca plenamente resolvidas, fica fácil apontar o sentimento
de efemeridade que sugere uma base tão movediça. (MEICHES, 2000, p.
20).

Diante disso, percebemos que o trágico também se constitui a partir de um


incessante e contínuo movimento das formas, sejam elas adquiridas na escritura do
texto que o estabelece, na sua própria tessitura ou na constituição de sua definição.
E, por isso, ele mesmo pode ser visto como uma outra forma de abordagem de
determinada situação, ou seja, ele passa a indicar, também, um lugar de passagem
e de transformação. E para Meiches,

[...] falar de transformação, da transitoriedade de qualquer forma é,


intrinsecamente, nomear o trágico. Ele torna-se, dessa maneira, quase
onipresente, embora sua presença nem sempre se faça sensível; ele
nomeia o funcionamento de uma condição, que é humana porque é também
uma condição do discurso que define o homem, atingindo assim um grau
supremo de ambivalência. (MEICHES, 2000, p. 21).

Ainda segundo ele, um desejo de permanência corresponde à superação


dessas formas – desejo que é talvez gerado em função da percepção do movimento
irrefreável das coisas do mundo:

A discussão trágica entre os tempos novos e antigos, sua convivência


possível, desejável para que se estabeleça a marca de um percurso
humano transmissível através das gerações, exala, com profusão, uma
atmosfera de mal estar. É, em um grande espelho estético e histórico, uma
discussão análoga àquela que uma análise instaura: nela digladiam o velho
e o novo, a luta pela preservação ou transformação de algumas marcas; o
ajuste necessário e de antemão temporário com as constelações que não
param de surgir. (MEICHES, 2000, p.21)
64

Essas considerações, além de nos alertarem para os perigos de uma


pretensa vontade de definição do trágico, ao mesmo tempo nos fazem conscientes
da carência de significados que esse termo admite. E mesmo reconhecendo essa
impossibilidade de ressignificação, é preciso pensar, sobretudo, nos percursos nos
quais ele se estende, para se apresentar como fonte de superação para a maior
questão humana: a consciência da morte. E é sob esse prisma que o autor, tão
mencionado acima, nos apresenta a possibilidade de se falar sobre o trágico sob um
outro aspecto: o de que ele designa uma dimensão fundamental da experiência
humana. E me questiono, a partir desse aspecto outro, em que medida ele não
tenha designado uma dimensão fundamentalmente humana desde sempre, ainda
que sob outros vértices. Mauro Meiches afirma que, embora tenham sido os gregos
os primeiros a materializá-lo em obras para o palco e a pensá-lo como uma
categoria estética, o trágico transcendeu esse seu berço de origem e assumiu essa
dimensão inexoravelmente ligada à condição humana. Para ele, “na tragédia
moderna sabe-se que o herói está desde o início em guerra com ele mesmo, o
drama é interiorizado, tornando-se um drama subjetivo.” (MEICHES, 2000, p. 11), ou
seja, nesse tempo moderno, o conflito está centrado no indivíduo. Ao considerar que
são as interpretações que conferem a alguma situação o caráter trágico, o autor nos
leva a pensar em uma visão reducionista do termo, uma vez que, adotando-o sob
essa perspectiva, ou seja, de acordo com o senso comum, diríamos que as coisas
acontecem tragicamente quando elas estão ligadas a qualquer tipo de catástrofe.
Essa é a prática discursiva cotidiana aplicada ao sentido do trágico. Uma
interpretação, tradicionalmente milenar, designa o trágico como esse lugar do pior,
do mais terrível que poderia ocorrer a alguém. Talvez por já ter sido pensado “como
uma espécie de essência, de conteúdo profundo e verdadeiro que reveste a
condição humana, em qualquer tempo da história, [...] que sinaliza um conhecimento
através da dor” (MEICHES, 2000, p. 22), e como fala de um pior que está sempre a
nos espreitar, o trágico tenha sido destituído de suas múltiplas possibilidades de
significação para reduzir-se, somente, às vivências catastróficas. E embora a
catástrofe tenha sido o momento decisivo para alcançar o efeito do espetáculo
trágico grego, uma vez que era através dela que o paroxismo sentimental ante a
perdição do protagonista atinge um ponto culminante, que lhe conferiu um “lugar de
visibilidade absoluta” (MEICHES, 2000, p. 22), ela ocultou o que ainda era possível
ao espectador, segundo Werner Jaeger: o esforço de ele ascender “do sentimento à
65

reflexão, do afeto trágico ao conhecimento trágico” (JAEGER apud MEICHES, 2000,


p. 22). De acordo com essa visão, o trágico estaria intrinsecamente ligado a esse
trabalho de conhecimento, que passa inexoravelmente pela dor, embora apenas
sentir não fosse suficiente para definir uma condição trágica: era preciso também
sabê-la trágica. E a dor estaria ligada exatamente à nova situação do homem: a
consciência da irremediável dor de existir.
Na tragédia grega, “o herói deixa de se apresentar como modelo, como era na
epopéia e na poesia lírica: ele tornou-se problema” (VERNANT; NAQUET apud
MEICHES, 2000, p. 22). Não se trata, aqui, de reconhecer a situação em que o
homem tem problemas a resolver, uma vez que isso é evidente e comum. Trata-se
de se reconhecer, nessa situação,

que ele é o problema, e não há como deixar de sê-lo. Em uma tradução


moderna da proposição trágica, de uma vez para sempre, o homem estaria
condenado a lidar com o sentimento de mal estar próprio de quem já sabe
que terá, para viver sob qualquer forma de organização humana, de adquirir
o conhecimento que possibilite a convivência com outro homem: isto implica
regras e proibições para aquilo que todos sabem ser próprio do homem.
(MEICHES, 2000, p. 22-23).

Como se pode ver, o trágico parece nos alertar para o fato de que há, nele,
uma situação desmedidamente ilimitada, ou seja, a situação de uma tensão que
nunca acaba. O homem, aqui, é colocado como o grande problema: “sua maneira de
proceder na vida em sociedade é um enigma de tal ordem de complexidade que
acaba por não comportar soluções.” (MEICHES, 2000, p. 34)
E é partindo dessas proposições que tentaremos distinguir os diferentes
momentos e as diferentes acepções que o trágico passa a designar no contexto
literário de Lya Luft. Em todos os seus romances, especialmente nestes que
escolhemos como material de pesquisa, somos chamados a refletir sobre um
profundo drama existencial: a busca de uma identidade – pessoal, social ou
psicológica – como forma de resistir à própria vida. E resistir, aqui, é uma condição
que se instaura mediante uma aparente contradição: em alguns momentos, as
personagens resistem à própria vida no sentido de negar sua existência; em outros,
essas mesmas personagens resistirão, por serem tomadas por um sentimento de
insistente vontade de lutar por essa vida, seja ela como for.
Como vimos em Exílio, o contexto nos remete a situações limítrofes, cujas
complexidades não comportam soluções. A Casa Vermelha é o espelho de sua
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própria indefinição, uma vez que abriga seres indefinidos, irreconhecíveis, anônimos.
Chama-nos a atenção, aqui, a recorrente questão do anonimato, que se configura
em distintas situações. Temos, primeiramente, o anonimato das personagens
femininas, que são definidas e nomeadas apenas por suas características físicas: as
Moças (a Loura e a Morena), a mulher coberta de vitiligo (a Mulher Manchada), a
Velha e, mais tarde, a Menina Gorda. A narradora é chamada, algumas vezes, de
Doutora, mas apenas pelo Anão – seu companheiro de infância, invisível aos olhos
dos outros. Compõem ainda esse cenário feminino a Madame – proprietária quase
sempre ausente da Casa Vermelha – e as Criadas, que são definidas pela sua
condição servil.
A Casa Vermelha também abriga homens exilados, alguns anônimos, dos
quais não se conhecem suas histórias, nomeados apenas pela profissão que
desempenham. Tudo que se sabe deles vem de pequenas observações feitas pelas
personagens femininas. Os homens nomeados na narrativa são: Gabriel, o irmão da
narradora; Marcos, o marido; Lucas, o filho; por fim, Antônio, o amante. O pai, já
morto, também é lembrado pela narradora, embora sua figura minimizada seja
apenas um referencial que se perde ao longo da narrativa, ofuscado pela presença
avassaladora da Mãe. Esse anonimato parece também ser determinante no
romance O ponto cego. Nesse romance, a história de uma família é narrada a partir
de um ponto de vista de uma criança, um menino-narrador, nomeado apenas como
Menino, que inventa e desinventa histórias, colocando em foco os dramas vividos
pelos adultos ao seu redor. Convivendo com o pai repressor, dentro de uma família
marcada pela tragédia de ter perdido seu primogênito, o Menino se vê esquecido e
desenvolve um medo extremo de crescer e passar a ser como aqueles que tanto o
aterrorizam. Essa condição do Menino narrador em manter-se pequeno, invisível às
preocupações dos adultos, parece ser uma metáfora da própria trajetória literária de
Lya Luft, esboçada também nesse romance. O ponto cego parece privilegiar, entre
tantas outras questões, uma releitura da produção literária de Lya Luft. A partir dele,
a autora parece nos revelar uma outra versão romanesca, voltada para uma nova
figuração da mulher e do trágico vivenciados por suas personagens. Assim como em
Exílio e em A sentinela, esses personagens são convocados a experimentarem uma
nova situação diante desse trágico e dessa condição feminina, imposta sobre eles.
As questões e as tensões familiares, emocionais e sociais parecem ser as mesmas.
O que muda, significativamente, é a maneira com que esses personagens entregam-
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se aos seus destinos e às suas decisões, em relação a eles. Em O ponto cego, Lya
Luft parece se propor essa reflexão acerca de sua produção literária. Isso parece
estar declarado, decretado na epígrafe inicial do romance, em que a própria autora
nos diz:
O ponto cego é um fenômeno da visão humana segundo o qual, conforme
convergência e refração, pode-se ver o que habitualmente permanece
oculto: a possibilidade além da superfície, o concreto afirmado na miragem.
Assim eu inventei, assim eu decretei, assim é. (LUFT, O ponto cego, 2003,
p.9).

Ver o habitualmente oculto, reconhecer uma possibilidade além da superfície:


eis a premissa para essa nova fase de escrita, que contempla sublimar a
irremediável condição de finitude. Uma sublimação que se faz notar tanto na
presença da autora, em sua condição de escrever esse sentimento, como na das
personagens, em sua condição de representar essas inquietações.
É interessante notar que todas as epígrafes desse romance foram extraídas
de seus romances anteriores. Isso se configura, para nós, como uma tentativa de
tornar-nos visível esse novo caminho literário. Os confinamentos, a solidão, a morte
e a loucura parecem estar, agora, sob a mira do ponto cego: o invisível que
direciona para um outro lugar, para um novo modo de ver e entender a cultura.
Querer estar sempre na condição de Menino, que não cresce e que não quer
crescer, parece ser uma das importantes questões do romance, pois do lugar de
criança não contaminada com os pré-conceitos dos adultos – portanto situada num
ponto estrategicamente privilegiado de baixo –, ela vê o mundo dos adultos e pode,
dessa maneira, reconhecer as contradições de sua família. Posicionado de modo
estratégico, o Menino podia ver tudo sem ser visto. Desse ponto camuflado, ele tudo
via, e as contradições de sua família pareciam diluírem-se nesse universo. Tudo
ficava-lhe transparente, chegando mesmo a conseguir construir entendimentos
sobre os assuntos não ditos e, talvez por isso, os mais complexos de sua família,
como, por exemplo, as fraquezas e as traições do seu pai severo, o estranho e
insondável olhar de sua mãe, o porquê da depressão do tio, a estrutura psicótica de
sua avó que, para ele, parecia destinada a ter a juventude acabada sem a realização
de seus desejos. A consciência de uma necessidade de se manter oculto faz-se
presente nos seguintes dizeres:
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Não vou crescer mais que isso. Não quero ser adulto como esses com suas
vidas regradas, podadas, abortadas. Não quero ter de viver só no que se
delimitou como sendo o real. Não quero perder as minhas asas, por isso
não vou crescer – apenas me desenrolar. Assim me infiltro em todas as
fendas. Assim caibo em toda parte e ninguém desconfia de mim. Continuam
pensando que criança é inocente para sempre amém. (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 32).

É a partir dessa visão, desse ponto de vista de um narrador infante, que


nasce um novo sentido para o trágico, constituído, aqui, numa atitude de afirmação
da vida acima e apesar de tudo, especialmente de todo um contexto do qual,
teoricamente, não se poderia escapar. Experimentar o trágico, nesse romance, é
vivenciar uma nova expansão da vida, que encontra, na busca, um novo sentido,
uma nova forma de estar no mundo. E o Menino nos diz isso quando narra a decisão
de vida de sua mãe: a de não se submeter a posturas que privilegiem as
convenções sociais, as regras sociais tidas como corretas. O valor da vida parece
renascer de uma perda irreparável, entretanto necessária para a decisão de
mudança, como nos aponta a seguinte reflexão da narradora:

Minha Mãe, a que mais me interessava, a que realmente algum dia me


amou e me foi tirada, a que procurava por mim mas se perdeu de mim na
voragem, minha Mãe com audácia e dor se buscou e se achou, e se
recusou a continuar pagando o injusto preço. E foi viver a sua história. Ela
ao menos se salvou no chamado da vida. Ela finalmente para si mesma
disse: Sim. (LUFT, O ponto cego, 2003, p.142).

A personagem narradora de Exílio também nos coloca diante de várias


situações de experimentação do trágico, e a primeira delas se dá a partir das linhas
iniciais do romance, nas quais ela é insultada pelo Anão, “companheiro de infância,
engraçado e sinistro” (LUFT, Exílio, 1991, p. 13), que a compara com sua mãe,
alcoólatra e suicida: “Você está cada vez mais parecida com a Rainha Exilada”
(LUFT, Exílio, 1991, p. 13). O trágico, especialmente aqui, é percebido como a
experimentação de uma dor que busca ser vencida pelo sublime nietzschiano, isto é,
um sublime sobre o qual não pesará nenhuma conotação moral: “ele é um jogo com
o infinito, naquilo que isto pressupõe de sensação, afetos extremados, percepção e
esquecimento de uma condição.” (MEICHES, 2000, p. 127). E isso se faz perceber
pelo enredo do romance, que nos apresenta uma personagem, que tenta encontrar
uma identidade, um lugar para si no mundo, a partir de uma análise sobre sua
história familiar. Mesmo diante de uma dolorosa história de vida – o suicídio da mãe,
a morte do pai, a loucura do irmão, a traição do marido, a perda do filho Lucas e a
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doença incurável do filho de Antônio, o amante -, a Doutora (como é chamada pelo


Anão) decide exilar-se para que, a partir desse silêncio e dessa ausência profunda
do visível e do reconhecível, possa ressurgir uma nova mulher. Uma mulher não
mais assombrada por seres e por vozes invisíveis, que ecoam sobre um passado
funesto, que se presentifica em vários momentos da narrativa, mas uma mulher
capaz de sublimar esse passado e essas novas vozes nesse mesmo momento
presente.
Assim como a floresta que a narradora persegue, obcecada, o romance tem
uma tessitura labiríntica e enigmática, que a conduz a um lugar de fantasia e de
liberdade: “O melhor da Casa Vermelha são as paisagens: à frente, a floresta
tentacular; atrás, o despenhadeiro bruto, abaixo a cidade fumacenta; mais além, o
mar. Navios.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 19). E embora esse caminho seja tido como o
lugar da esperança, como uma quimera, ele não deixa de se configurar, também,
como um espaço ameaçador, especialmente na medida em que promove à
narradora o encontro consigo mesma e, conseqüentemente, com sua identidade.
Essa análise nos remete “ao mistério ambivalente da floresta”, que, segundo Jean
Chevalier “gera, ao mesmo tempo, angústia e serenidade, opressão e simpatia,
como todas as poderosas manifestações da vida.” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009, p. 439). Ademais, ainda segundo esse autor, para alguns psicanalistas
modernos a floresta simboliza o inconsciente, devido a seu caráter obscuro e
profundo enraizamento: “os terrores da floresta, tal como os terrores pânicos, seriam
inspirados, segundo Jung, pelo medo das revelações do inconsciente.”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 439).
A luta para sobreviver à realidade dos fatos, a busca por “um exuberante
sentimento de vida e de força, dentro do qual mesmo a dor trabalha como
estimulante” (MEICHES, 2000, p. 127), parecem esboçadas nos seguintes dizeres
da narradora, ao narrar sua condição mediante a decisão de reencontrar-se:

Cheguei balançando entre a esperança frenética e o medo sombrio. Uma


grande tempestade na minha vida até ali organizada; Antônio, a tábua de
salvação. Encalhei aqui, o tempo passa, e às vezes já parece muito
conseguir sobreviver até o fim do dia. Digo a mim mesma o que disse tantas
vezes às mulheres de grandes ventres distendidos a quem ajudava a parir:
Agüente mais um pouco, um pouco só. Então sobrevivo a mais um dia de
espera e dor. E perdas. As recentes, feridas como sangue vivo: deixei
minha casa, profissão, amigos, cidades, segurança, e meu único filho,
Lucas. [...] Perdas antigas: quase esquecidas, mas agora reavivadas, e
cheias de pus; o tempo as infeccionou, e eu nem sabia: a morte de minha
mãe; de meu pai; a morte de meu irmão, pois de certa forma, embora viva
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aqui no andar de cima cuidado pelo seu Enfermeiro, ele também já morreu.
Tudo isso arma um cipoal no qual me enredo. Onde a energia de antes, o
otimismo, a vontade de viver, a alegria de fazer nascer? (LUFT, Exílio,
1991, p. 19).

A vivência desse “sentimento de expansão da vida, [...] um prazer [...]


produzido pelo sentimento de uma parada das forças vitais durante um breve
instante imediatamente seguido por um derramamento dessas mesmas forças ainda
mais forte” (MEICHES, 2000, p. 126) parece ser a força propulsora da narradora.
Mesmo diante da reconstituição da morte da mãe, da doença do irmão que se lhe
torna claramente irremediável, há uma resistência a não deixar-se destruir por suas
fatalidades familiares. A busca por uma nova maneira de ser, de agir, de fugir dos
traumas causados pelo afeto materno que nunca existiu, sugere, nessa narrativa,
uma “alegria trágica”, isto é, o trágico visto não como sinônimo de resignação, de
pessimismo, de abatimento ou de esmagamento do homem pela fatalidade, mas
como excesso de força constituinte de uma afirmação da vida. E para superar o que
revelam as lembranças da mãe, bem como de sua morte, essa personagem não
pode contar com outra forma de sobrevivência, senão esta: afirmar-se diante do
impiedoso reconhecimento de impotência diante da vida – ou seria diante da morte?
Da ausente relação com a mãe, restam-lhe, apenas, recordações: “De nossa mãe,
lembro o abraço negado, o olhar fugidio, o sorriso ausente; lembro sua andança
pelos corredores, copo na mão; lembro perfume, e gim; o passo nem sempre
seguro; silêncios demorados, crises de riso. Crises.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 63). Do
pai, o que se sabe é que, como nos diz a narradora, “devia tê-la amado muito”
(LUFT, Exílio, 1991, p. 63), uma vez que ela nunca o vira perder a paciência com a
mãe: “Teve fama de marido apaixonado pela bela alcoólatra” (LUFT, Exílio, 1991, p.
63). Um sentimento de parada das forças vitais parece acometer a narradora,
especialmente no momento em que ela relembra a morte da mãe: “Eu teria nove
anos; Gabriel, três. Ela, cada vez pior; mais tarde fui reconstruindo a história, com
lembranças, comentários alheios, alguma revelação involuntária de meu pai, que
depois da morte dela raramente pronunciava seu nome [...].” (LUFT, Exílio, 1991, p.
63).
Como a um quadro, é-nos possível pintar a cena descrita por ela, ao nos
narrar tal situação; uma abordagem do trágico que sugere todo o horror suscitado
pelo relato de um tipo de morte arbitrária, ou seja, não aquela pela qual se espera,
de maneira irremediável e consciente, mas aquela para qual se entrega -
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inconscientemente? É esse caráter trágico que, embora funesto, aponta para uma
nova expectativa de vida para a narradora, que, mesmo diante de diversas
fatalidades, tem “acessos de otimismo e energia”, nos quais reconhece que suas
“dúvidas são apenas efeito tardio da lacuna causada pela perda prematura de (sua)
mãe, bêbada e suicida” (LUFT, Exílio, 1991, p. 84). A narradora, que ao deitar-se no
escuro lembra “intensamente (sua) mãe morta” (LUFT, Exílio, 1991, p. 63), nos diz:

Minha mãe estava deitada na cama, um pouco atravessada, quase tão


branca quanto a colcha de cetim. Junto de seu grande corpo abandonado
numa posição esquisita, de costas, mas torcido para o lado, Gabriel também
dormia, parecendo um bebê que acabasse de mamar; ainda tinha entre os
lábios o bico escuro do seio de nossa mãe. Fiquei paralisada com aquele
seio nu: o robe desalinhado. [...] Eu estava um pouco tonta. No quarto havia
uma confusão de cheiros. O perfume dela, a bebida, o copo ainda no
criado-mudo. Mas havia algo mais, que não identifiquei; um cheiro doce que
me dava náusea. De repente tive sono; deitei-me do outro lado de minha
mãe, só para descansar um pouquinho e saborear aquela tão inusitada
intimidade.[...] Dormi, desmaiei, fugi da realidade inaceitável? Não sei.
Acordei com muitos rostos inclinados sobre nós, pares de olhos
arregalados. (LUFT, Exílio, 1991, p. 64)

A consciência da necessidade de uma (re) identificação advem,


primeiramente, desse reencontro com um passado aparentemente distante, que faz
ecoar na memória algumas lembranças encobridoras, revisitadas, no tempo de
agora, a partir de um outro olhar: um olhar reflexivo, que como os vários espelhos
nas quinas dos cômodos, refletem outras realidades doentias. E essa consciência se
mostra em:
O cascalho do tempo escoa na memória: conto fatos da minha vida como
quem contasse carneiros. Só que não quero dormir: preciso estar lúcida
para desatar o nó do meu destino emperrado e complexo. Embora tenham
passado tantos anos, ainda sinto a solidão de menina: mas me pesa muito
mais. (LUFT, Exílio, 1991, p. 16).

A vontade dessa lucidez de ser, aqui, parece nos remeter ao sentido


nietzschiano de embriaguez, digo, à questão do sonho de ser, que tem, para
Nietzsche, a seguinte perspectiva: “Se o belo tem como base um sonho de ser, o
sublime tem por base uma embriaguez do ser.” (MACHADO apud MEICHES, 2000,
p. 132). Essa embriaguez está associada à exuberância, ao excesso que Nietzsche
tanto valoriza como elemento fundamental da catarse. E a situação romanesca de
Exílio, bem como a de vários outros romances de Lya Luft, nos coloca diante da
concepção de tragédia moderna, na qual “[...] sabe-se que o herói está desde o
início em guerra com ele mesmo” (MEICHES, 2000, p. 11), ou seja, o drama é
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interiorizado, tornando-se, assim, um tipo de drama essencialmente subjetivo.


Transpondo o pensamento de Mauro Meiches sobre uma visão moderna do aspecto
do trágico, eu diria que, modernamente, uma situação é trágica não somente por
envolver sofrimento, sacrifício e morte, mas, principalmente, porque “não permite
nenhuma atitude simples e direta, porque tal curso de ação possível conduz a um
emaranhado certo / errado, culpa / inocência, compulsão / liberdade de escolha.”
(MEICHES, 2000, p. 11).
Essas tensões, que aparentemente esboçam apenas um certo tipo de
dualismo e enfatizam um caráter eminentemente ambivalente , são abordadas por
Lya Luft como premissa para sua produção literária. E como já foi dito, a presença
do trágico está circundada por questões ambivalentes não somente no que diz
respeito ao seu caráter contraditório, incerto e irresoluto, mas, mais ainda, no que
tange à complementaridade que esse termo proporciona a essas tensões, tornando-
as o menos dualista e contraditória possível.

3.3 O caráter lúcido e a embriaguez do trágico

A morte não nos persegue: apenas espera, pois nós é que corremos para o
colo dela. Talvez o melhor de tudo é que ela nos lembra da nossa
transcendência. Somos mais que corpo e sangue e compromissos, susto e
ansiedade: somos mistério, o que nos torna maiores do que pensamos ser.
Lya Luft

Uma das faces do trágico, percebido aqui como uma força maior, como um
sentimento de expansão da vida mesmo diante da consciência da efemeridade e
finitude dos seres e de todas as coisas, parece contradizer a sabedoria de Sileno,
citada na epígrafe inicial do romance Exílio. Seguir os preceitos dos dizeres desse
sábio seria, talvez, morrer o mais rápido possível, para que se visse e para que se
vivesse em menos condição de angústia. E não é isso que a personagem narradora
de Exílio faz. Ao contrário, diante de todas as forças inelutáveis do destino, ela
adentra a labiríntica floresta que existe à frente da Casa Vermelha com a mesma
intensidade que adentra em si mesma, em seus conflitos e aos conflitos dos seus. E,
apesar de tudo, se faz sobrevivente, quando, pela última vez, ao visitar o irmão
demente, depara-se com a grotesca situação de ver Gabriel em profundo estado de
loucura. Diante daquele cenário, resta-lhe a seguinte reflexão: “Prognóstico?
Sombrio. Mais tarde eu me lembraria do termo: na Faculdade, brincávamos entre
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nós: a vida é uma doença crônica, de prognóstico sombrio.” (LUFT, Exílio, 1991, p.
164).
A luta incisiva pela própria sobrevivência justifica-se, mesmo diante do irmão
que, de repente, “soergue os joelhos, passa a mão no traseiro, depois vai
desenhando alguma coisa com fezes na parede” (LUFT, Exílio, 1991, p. 164),
mesmo diante daquela “fonte inesgotável de imundície” (LUFT, Exílio, 1991, p. 164).
E não se nega o caráter grotesco dessa cena: “Vou até a janela: se pudesse,
vomitaria a vida. Suicidar-me assim, vomitando a vida pela boca, não quero mais,
não quero. Puro nojo de viver.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 164). E a decisão final da
Doutora por seguir em frente nos inspira o sentimento do trágico incorporado por
Dionísio, o deus da transformação - aquele que encarna o que se define por um
exuberante sentimento de vida e de força, dentro do qual mesmo a dor trabalha
como estimulante. E essa outra face do trágico se mostra nas seguintes linhas:

Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço dentro dela.
Fiquei de fora. Mas posso me aninhar num regaço transitório entre essas
raízes cúmplices, no chão eterno. Auscultar o coração emaranhado das
coisas, que empurra as torrentes da vida e da morte que nos levam. Talvez
eu não consiga chegar em casa. Talvez, chegando, eu não possa ficar.
Quem sabe? Mas eu vou seguir em frente. (LUFT, Exílio, 1991, p. 175)

A Sentinela, romance publicado em 1994, é, assim como Exílio e O ponto


cego, uma narrativa que abre novos espaços para a representação da condição
feminina, tema tão privilegiado por Lya Luft. Nesse romance, alguns personagens
renascem de um trágico contexto familiar, numa sublime forma de enaltecimento da
própria vida, mesmo diante de situações de extrema fatalidade. Nora, por exemplo,
enquanto personagem principal e narradora do romance, experimenta várias
figurações de um tipo de trágico que assola sua trajetória existencial.
Em um contexto em que se vê rejeitada pela mãe, tendo vivido sua infância
entre poucos afetos do pai e constantes maldades da irmã, Lilith, Nora ainda
vivencia duas grandes catástrofes familiares: o suicídio da irmã e a violenta morte do
pai. Nesse cenário funesto, a vida de Nora começa a se constituir a partir de uma
sucessão de esperas e buscas, que se voltam para a esperança de que ela se
inscreva dentro daquele espaço familiar.
Para isso, suas buscas concentram-se na luta incessante pelo verdadeiro
amor de sua mãe - que é visto como um sentimento totalmente dedicado apenas à
Lilith -, pela preservação de uma grande paixão, iniciada ainda na sua infância, pelo
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alcance do apoio incondicional da meio-irmã, Olga, e pela fuga do casamento “sem


amor”, que lhe daria seu bem mais precioso: o filho Henrique.
Lilith é um importante fio condutor dos conflitos dessa narrativa. O capítulo
que introduz essa personagem tem, como epígrafe, os dizeres de Emily Dickinson,
que se fazem extremamente pertinentes quanto ao caráter obscuro dessa
personagem: “Não é preciso ser um quarto, para ser mal-assombrado. Não é preciso
ser uma casa; A mente tem corredores que superam qualquer lugar concreto.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 47). Lilith se apresenta exatamente sob esse perfil: uma
criatura grotesca e mal assombrada. Uma personagem morta, de quem “não há
fotos na casa” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 51); uma criatura morta-viva, que se faz
presença visível e sensível naquela casa: “Assim, mesmo morta, decomposta e
esquecida por quase todos, Lilith continuou a me perseguir e travar minha vida.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 12).
Elsa, mãe de Nora e Lilith, não esconde sua preferência pela filha “esquisita”.
E Nora nos revela isso, ao declarar:

Elsa me considerava a intrusa e me disse isso com todas as letras, com a


desinibição permitida pela velhice; Lilith fora a plenitude, uma criança
perfeita; mas, mal a mãe se recuperara do que chamava os “desastres” da
gravidez e parto, chegara eu, a não esperada, o “acidente”. Mirrada, de um
moreno sem brilho, e tristonha. (LUFT, A sentinela, 1994, p.51)

Suas atitudes grotescas, das quais ninguém poderia escapar, revelam um ser
contra o qual não se podia lutar: “... não adiantava contra o poder de Lilith”. (LUFT, A
sentinela, 1994, p.52). Esse poder invencível de Lilith nos remete ao mito de sua
criação, e parece, assim, estar estreitamente ligado ao comportamento dessa
personagem. Segundo Jean Chevalier, na tradição cabalística, Lilith seria o nome da
mulher criada antes de Eva, ao mesmo tempo que Adão, ou seja, criada não de uma
costela do homem, mas ela também diretamente da terra. Ao declarar a Adão que
eles eram, os dois, iguais, por terem vindo da terra, instaurou-se uma discussão
entre eles que fez com que Lilith, encolerizada, pronunciasse o nome de Deus e
fugisse para começar uma “carreira demoníaca” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009, p. 548). Em uma outra tradição, Lilith seria uma primeira Eva: “Caim e Abel
brigaram pela posse dessa Eva, criada independentemente de Adão e, portanto,
sem parentesco com eles. Alguns vêem aqui traços da androginia do primeiro
homem e do incesto dos primeiros casais” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.
548). Ainda segundo o mesmo autor, em uma outra acepção, “Lilith tornar-se-á a
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inimiga de Eva, a instigadora dos amores ilegítimos, a perturbadora do leito


conjugal” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.548). E assim, enquanto mulher
desdenhada ou abandonada por causa de outra, Lilith representará, também, os
ódios contra a família, o ódio aos casais e aos filhos. Nesse âmbito de acepções, é
importante ressaltar que Lilith também evoca a imagem trágica das Lâmias na
mitologia grega: “seres fabulosos de que os gregos se serviam para assustar as
crianças” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.534).
Como se pode ver, Lilith parece não só assumir todas essas acepções
conferidas ao seu nome, mas, também, exercer a força que elas lhe conferem. Essa
força determinante de destinos e situações se revela mediante alguns
acontecimentos e fatalidades na vida de Nora, para quem “Lilith jogava com as
pessoas um jogo” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 56) que ela não compreendia. Esse
jogo de terror e as fatalidades de sua vida eram entendidos por Nora como
manifestações da força fatídica de Lilith A incompreensão desse jogo era também
permeada pelos momentos de fascínio e terror que circundavam Nora, que, em
diversos momentos na narrativa, a reconhece: “Nunca entendi essa devoção canina
que alguns de nós tínhamos por ela, essa complacência com seu lado perverso, o
lado noturno que toda criança tem, mas nela dominava.” (LUFT, A sentinela, 1994,
p. 53). Domínio e fascinação são vocábulos que não podemos desprezar, na
constituição do caráter dessa personagem. Lilith era dotada de onisciência e
sabedoria invejáveis: “... sempre se vangloriava de que lia pensamentos...” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 56). Essa constante condição de onisciência e soberania nos
remete a uma outra acepção a que Jean Chevalier lhe confere, ao compará-la “à
Lua negra, à sombra do inconsciente, aos impulsos obscuros.” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 548). Isso se nos apresenta visível no momento em que
Nora descreve o fascínio que tem pelo avançado nível de conhecimento da irmã,
destemida de tudo e de todos. Lilith, ao cultivar hábitos como sair para o jardim
quando estava quente, subir na figueira ou ficar no peitoril de sua janela, não
hesitava em chamar Nora para afirmar-se, diante dela, como um ser de sabedoria e
coragem inatingíveis. Era uma criança que não tinha medo de ficar sonâmbula:
achava lindo ficar sonâmbula, ao contrário das outras crianças, e declarava-se:
“Quero ser lunática.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 57). Segundo ela, lunática era
“alguém hipnotizado pela lua.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 57), e a referência à
comparação de Lilith à lua, sugerida anteriormente, advém do seguinte desabafo de
76

Nora: “Talvez tudo isso encantasse as pessoas, também João, a quem amei desde
aquele tempo; talvez ele até tivesse desejado aquele corpinho magro de mente
adulta. Mas ninguém amava Lilith: ficava-se hipnotizado.” (LUFT, A sentinela, 1994,
p. 57). E confessa: “Lilith seria, para sempre, um assunto tabu.” (LUFT, A sentinela,
1994, p. 59).
Embora Elsa esclarecesse que teria dado à filha esse nome em função de ser
ele um “nome de princesa, um romance que lia durante a gravidez” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 53), Nora insistia em afirmar que sabia que o nome da irmã “era
nome trevoso” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 53). E essa onisciência de Nora parece
coincidir com o mistério cultivado por Rosa, que afirmava que “o espírito que vai
nascer sabe qual é seu nome, um nome predestinado; escolhe a família onde vai
nascer e a faz intuir o nome com que o batizarão” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 53).
Ou seja, isso se configurava como um acontecimento fatídico na vida de Nora, do
qual dificilmente poderia se livrar. Era desafio, também, ignorar a presença dessa
irmã, “que assombrou minha infância, roubou meus afetos, dominava a todos com
sua indiferença: quem não seria atraído por seus olhos amarelos de expressão
perversa?” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 12-13). E embora se fizesse necessária a
libertação dessa presença que Lilith exerce na narrativa, a relação entre Nora e ela
era mediada por um misto de horror e fascinação. Nora nos revela isso a partir da
seguinte declaração:

Ninguém parecia entender minha fascinação por Lilith, meu desejo de falar
nela, de ser Lilith: temida, não ignorada; indefinida talvez, mas não boba;
astuta, não rejeitada. Lilith sabia instilar veneno na alma das pessoas. [...]
Seguidamente imagino se a Lilith que eu via não era fruto dos meus medos,
um mito criado pela minha timidez e insegurança. Lilith não parecia da
família, muito menos minha irmã. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 23).

Diante dessa expectativa de uma auto-reconstituição, Nora se expõe a


momentos de profunda inconstância, que oscilam entre situações de muita angústia
e de pleno sentimento do vazio. E essa alternância de sentimentos inconstantes a
persegue até o momento em que decide “tomar nas mãos as rédeas de sua vida”, e
ser a senhora de suas escolhas. Essa decisão implica a ela, enquanto personagem
que não se reconhece mais apenas como uma vítima exclusivamente acometida por
fatalidades - especialmente as familiares -, uma nova atitude: a de reconhecer-se,
também, enquanto parte constituinte de seu próprio destino, assumindo, nele, as
responsabilidades de suas próprias escolhas éticas, morais e pessoais. Essa nova
77

postura diante da realidade dessas mulheres nos revela um outro modo de olhar
para as personagens de Lya Luft, uma vez que elas eram vistas e analisadas, até
então, como seres unicamente pré-destinados à repressão que lhes era imposta
pelo sistema patriarcal – aqui, já em estado de decadência.
A representação de mulheres perdedoras, confinadas exclusivamente ao
ambiente familiar e predestinadas a um futuro que se consolidaria apenas com um
casamento – definido como “o melhor casamento é uma prisão cinco estrelas”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 156) - perde sua ênfase, especialmente nesse
romance. É fato que as personagens continuam enredadas no contexto familiar, mas
a família, aqui, é representada como uma instituição falida, e como fonte que
engendra grandes conflitos e repressões.
Uma labiríntica casa é, novamente, escolhida como cenário para a
representação deste novo contexto narrativo. Ver-se diante do beco sem saída da
vida – ou da morte? - torna-se, aqui, força maior em busca da própria sobrevivência
e de uma (re) identificação no mundo. Os fios da memória, ainda que tortuosos, são
os condutores dessa narrativa. A arte de tecer palavras, como Nora tece seus
tapetes, fará com que essa personagem consiga desfazer os nós e encontre os
verdadeiros rumos, ainda que ela assuma, no decorrer do texto, as várias
adversidades que a vida nos impõe.
A face do trágico se nos mostra não como na permanência da dor insuperável
de viver. Ao contrário, ela nos aponta para o desafio a que Nora se entrega contra a
própria dor: o de resistir à invencibilidade da morte, recriando uma nova vida. E é
relembrando frases e momentos que Nora se depara, constantemente, com as fortes
reflexões que a levarão a optar por uma decisão afirmativa para sua vida, ainda que
essa decisão esteja circundada de fortes rupturas, especialmente voltadas para o
papel da mulher na sociedade patriarcal. Em uma passagem do romance, ela se
lembra, por exemplo, dos dizeres de Olga – irmã por parte de pai, a quem Nora
amava e admirava desmedidamente – que lhe advertiam sobre a conquista
desnecessária de uma possível identidade ou de um novo lugar no mundo, na vida,
na própria casa:

Nora, viver é subir uma escada rolante... pelo lado que desce. A gente
passa a vida toda fazendo uma força danada para chegar mais alto, para
onde nos impelem esperança, desafios, sonhos. Mas lá de baixo nos
chamam o cansaço, a solidão, a doença, a loucura... a morte. Esta, no fim,
vai vencer. (LUFT, A sentinela, 1994, p.181).
78

E o que essa personagem se propõe, nessa narrativa, é apontar estratégias


para enfrentar esse destino sinistro, aparentemente imutável. As perdas se diluem
na autoconfiança que a protagonista adquire através de seus teares, possibilitando-a
tecer uma nova identidade, não mais sujeita a relações impostas pela ditadura
familiar, mas buscada e assumida por um novo ser, que se assume dono de uma
nova posição na esfera do plano familiar, social, individual e psicológico. No
presente da enunciação, ela declara:

Estou ligada a essa casa como se ela manejasse os cordões da minha vida.
Respiro, aspiro, toco as coisas amadas, sozinha na manhã que também se
inaugura; e não sinto pânico de estar em falta; dor de ser insuficiente. Estou
bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, observando sem
medo os trechos a percorrer. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 33)

A arte tecendo palavras, fios, sons, parece ser a única capaz de enfrentar a
vigilância mortal da sentinela. Nora descobre, no fazer artístico, o caminho para a
reconstrução dessa nova identidade, que fará com que as relações afetivas – entre
mãe, filho e amante – percam o peso de uma hierarquia estritamente relacional,
deixando a personagem livre para viver o mistério, o imprevisto, e para ter a audácia
de se lançar à própria vida. Isso se configura na seguinte passagem:

Aos poucos fui descobrindo: não devo ser apenas mãe, irmã, amante.
Preciso ser eu, Nora, com tudo o que isso significa e que ainda tenho que
descobrir; que preciso extrair de mim, criando caminhos como João projeta
rumos no ventre da terra; produzir com a carne da minha alma os fios que
me prenderão ao mundo. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 38).

O trágico se manifesta nesse romance também como uma pulsão de vida, um


desafio que se lança à irremediável consciência da finitude, através de vários pontos
de (re) criação. Alternado entre a consciência da possibilidade de mudança de vida
aliada à inevitável consciência da presença da morte, Nora transita entre fases de
profundo recolhimento e de uma exuberante vontade de viver. Como ela mesma nos
diz, “após a longa hibernação, pulsou em mim um vago, mas intenso, desejo de
viver.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 84). O obscuro, o sombrio e o mistério já não são
mais elementos da morte: são substâncias que compõem a vida – a nova vida que,
a partir deles, seria possivelmente recriada:

Eu estava numa nova fase da vida: nem sabia direito qual, mas estava na
beira de um novo começo. Alguma coisa parecida com paz se instalava:
não a paz da fuga mas do mergulho, do resultado que vem depois do
mergulho, quando se sabe que se está começando a emergir mas não se
79

distingue o que vai aparecer na superfície. E mesmo assim, a gente vai.


(LUFT, A sentinela, 1994, p.136).

Olga também é uma das personagens que, como Nora, se vale da máscara
do trágico enquanto força vital, exuberante no papel de reerguer-se diante das
fatalidades. Talvez por ter herdado a profissão do pai – médico -, estivesse mais
acostumada a lidar com as efemeridades / enfermidades:

Olga é dessas pessoas a quem as contrariedades da vida, em vez de


derrubar, fortalecem. Vencia nela, quase sempre, uma natureza saudável;
gostava de rir, de caminhar, gostava de bichos e de gente. Sua escolha de
profissão foi natural [...]. (LUFT, A sentinela, 1994, p.155).

Para essas duas personagens, especialmente, “a vida tem muita força [...]
basta a gente saber ouvir e sua voz está ali: uma pessoa, um trabalho, uma
curiosidade, um desejo.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.166).
Na perspectiva de Penélope, que tece e desfaz, pacientemente, seus fios,
Nora cria uma colcha de retalhos a partir do filme que se passa diante dela o dia
todo, para se afirmar no que diz: “cada um tem de encontrar o jeito, a trilha; aprender
a ser senhor dos seus rumos.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.177). A tapeçaria de
Nora, não casualmente denominada Penélope, finalmente se abre. E mediante o
trágico, Nora se declara: “Igual a ela, tenho feito e refeito meu entendimento do
mundo; escolhi fios bons e ruins, errei nas direções algumas vezes, quase desisti,
recomecei.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.177).
Já a tela de Henrique, filho de Nora, abriga outro tipo de cor: ele, menino
doce, embora sufocado pela frenética presença e pelos desmedidos cuidados da
mãe, é julgado, por ela, como um estranho, no sentido de contrariar e inverter os
parâmetros sociais, simplesmente pelo gosto de usar pequenos brincos e de
dedicar-se, integralmente, à música. No momento em que sua mãe, na ânsia de
controlar todos os passos do filho e cobrando-lhe uma postura aparentemente
correta sugere-lhe uma namorada, Henrique recebe a fala da mãe como uma
provocação, interpretada como desconfiança de sua sexualidade: “Não entendi
direito suas alusões, suas indicações, mas você... você por acaso quer saber se eu
tenho um namorado?” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 128). Deparamo-nos, no final do
romance, com essa mesma música que significava, para Henrique, “uma expressão
do mundo, uma linguagem universal no mais alto grau” (NIETZSCHE, 2007, p. 96).
Uma universalidade não caracterizada por aquela, vazia de abstração, mas, ao
80

contrário, de uma espécie ligada a “uma nítida e completa determinação”


(NIETZSCHE, 2007, p. 96). E é essa determinação com a qual nos deparamos, nas
últimas páginas do romance, que faz com que Nora se reconheça, de fato, capaz de
recomeçar sua vida, a partir de um olhar que a levará a uma escolha estritamente
pessoal, destituída de qualquer outro parâmetro que não seja, exclusivamente, o seu
– lembrando-se de que haverá sempre um sentido lacunar, ausente, que não se
permite conhecer:

Estou no coração de um ciclo que se fecha; eu sou o mar com peixes e


medusas, e sou a viagem também. Não há garantias, não existe segurança:
alguma vez é preciso audácia de se jogar; de delirar, como Henrique, neste
momento, jogando alto sua música na noite, com pedaços de entranhas, de
pensamento, de coração. [...] Neste momento a noite não me ameaça; a
gruta não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão fora de todo
o tempo humano. [...] A mulher subiu a escada, deixando apenas uma luz
acesa na sala, voltada para rosas pálidas num vaso escuro. Entrou no seu
quarto e da janela viu a noite. A música cessara; a casa parecia apagar-se
fundida na treva exterior. Mas era preciso mais para definir o vasto mistério
de tudo. Então, da sua alta janela escura, a mulher pôs-se a cantar.
Primeiro num murmúrio, depois cada vez mais alto. [...] Cantava sem se
importar com nada mais, cantava jorrando fios de música sobre as coisas
todas, como tentáculos. E do seu canto foi brotando o mundo: dele
nasceram as árvores e os carros e as casas; os caminhos dos amantes; as
grutas da noite, o ventre do dia. A morte nascia dessa música. E a vida
também: (LUFT, A sentinela, 1994, p. 188-189).

Essa determinação também caracteriza uma nova configuração para a


afirmação da vida diante do trágico vivenciado pelos personagens de Exílio e de O
ponto cego. Em Exílio, a morte do anão – companheiro fiel da Doutora – parece
configurar toda a ruptura com o grotesco e com as vivências funestas dessa
narradora, dando-lhe lugar a um novo modo de sobreviver. O anão parecia
representar o real das coisas: “este aqui foi o filho da minha solidão, da minha
orfandade, da loucura de Gabriel, da sede de minha mãe, filho do pântano que nos
engole a todos.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 173). Talvez a figura do anão suprimisse
tudo o de que a realidade concreta nos afasta: o almejado senso de normalidade, de
sanidade, de identidade. Assim, a busca por uma condição de vida ideal para esses
personagens não poderia ser refletida na vida deles enquanto a presença desse ser
grotesco, embora extremamente familiar, não se desvinculasse de seu papel na vida
da narradora. Nora, na narrativa, assume exilar-se de suas principais funções,
especialmente como mulher: a de mãe, a de esposa, a de filha. Em um emaranhado
de sensações que não se dividem e que caracterizam, constantemente, uma postura
de exilar-se mediante qualquer situação, (re) nasce, nela também, uma nova forma
81

de ver o mundo e rever seus papéis. O choro da narradora diante da morte do anão
não é um choro comum, tampouco jamais chorado em toda sua vida. A primeira
percepção de uma sublime vivência do trágico parece se esboçar a partir desse
momento, que faz do choro uma eminente marca da diferença:

Ajoelhada a seu lado, chamo alto por ele, aos soluços [...]. Já chorei assim
alguma vez, eu, que tenho chorado tanto? O choro de quem dá a luz a si
mesma, abre as pernas dolorosamente e sai dali entre gemidos fundos,
sangue e gosma. Deito-me junto dele: eu o amava. Como a um filho, ou
como a um pai? Meu homenzinho, parte de mim, fruto das minhas trevas e
nostalgias, companheiro de exílio. (LUFT, Exílio, 1991, p. 172).

A morte / o fim do anão sinaliza a vida / o início, o recomeço de um novo


modo de viver e escapar às fatalidades que tanto assombram o universo romanesco
familiar de Lya Luft – momento tão esperado (embora sem êxito algum) pelas
personagens de seus primeiros romances... A personificação da morte através do
anão abre espaço para uma auto-afirmação da vida, reconhecida, até então, como
um fatídico destino imutável. E contrariamente a essa visão, a narradora declara:

Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço dentro dela.
Fiquei de fora. Mas posso me aninhar num regaço transitório entre essas
raízes cúmplices, no chão eterno. Auscultar o coração emaranhado das
coisas, que empurra as torrentes da vida e da morte que nos levam. Talvez
eu não consiga chegar em casa. Talvez, chegando, eu não possa ficar.
Quem sabe? Mas eu vou seguir em frente. (LUFT, Exílio, 1991, p. 175).

Em O ponto cego, o êxito dessa nova personagem, que experimenta o trágico


como uma exuberância de vida, é pronunciado na epígrafe que abre o último
capítulo do livro: “o ponto cego é onde a gente pode sempre dizer: não. O ponto
mais cego é onde a gente não sabe quem disse não primeiro.” (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 130). Esse texto, ao mesmo tempo que prenuncia uma figuração pessimista
para o trágico, abre também espaço para novas indagações, propostas pelo
narrador Menino, que se consolidam no final da narrativa. É interessante notar que
temos, nas páginas iniciais do romance, uma situação de extrema submissão, por
parte da personagem Mãe, aos valores a ela atribuídos pelo personagem Pai -
postura que não persiste até o final da narrativa. Uma seqüência de mudança de
atitudes parece se consolidar, frente às personagens, uma vez que no início do
romance lemos:
82

[...] minha mãe era a força negada: trazia entalada na garganta a pedra de
sua própria anulação. Meu pai tinha direito ao espaço: o melhor lugar à
mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação. As pessoas o
temiam; eu também. Minha Mãe, por alguma razão nebulosa, sempre se
submetia. Era mais inteligente do que ele, mais perspicaz, mais agradável,
muito mais estimada. Porém sempre se esforçava por falar menos que ele
nas reuniões e visitas: procurava a indefinição. (LUFT, O ponto cego, 2003,
p.18)

Essa atitude de submissão adotada pela Mãe frente à obediência e à


subserviência aos anseios do Pai, é claramente percebida pelo Menino, uma vez
que eram da Mãe as empresas que herdara de seu pai, em função de ser a única
filha. Para o Menino, isso significava que ela, sim, a Mãe, era realmente a dona.
Mas, como nos diz o narrador, “o mando era do marido, eram dele a voz poderosa, o
passo determinado, o aparente poder” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 19). E essa
condição da Mãe norteava, de certa forma, várias outras reflexões, proferidas sob o
ponto de vista do Menino, que constantemente narrava:

Embora sendo uma rainha, minha Mãe se curvava. Medo de ficar sozinha
com este filho desenquadrado, medo de tomar decisões quanto ao seu
destino – muito mais difíceis do que as que tomava no trabalho? Que anistia
minha Mãe precisava se dar para viver inteira? (LUFT, O ponto cego, 2003,
p. 19).

Ainda nesse contexto, o Menino descreve situações, como: “Meu pai


precisava controlar tudo e todos; sobretudo essa que era a sua mulher.” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 22); “Minha mãe tinha de ser a boa. Aquele era o seu papel.”
(p.28). “Para mim meu pai era um deus, pois comandava os destinos, e minha mãe
o servia.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 62). Estes, dentre vários outros momentos
de descrição dessa postura feminina - de curvar-se às atribuições conferidas ao
homem -, parecem não coincidir com a postura final da Mãe que, segundo o próprio
Menino, “se salvou no chamado da vida” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 142),
dizendo sim para si mesma. O trágico pode ser, aqui, percebido através do silêncio,
do peso da dor que desencadeia uma extravagante força de necessidade de vida.
Essa postura de supervalorização da vida vai de encontro ao que tradicionalmente
se espera da dor, uma vez que ela é entendida, na maioria das vezes, como
expressão máxima do pessimismo e provável vontade de entrega a um fim – assim
como nos afirma o sábio Sileno, ao declarar que o melhor para o ser humano, após
ter nascido, é morrer logo.
83

Como se pode ver, esses romances estão entrelaçados por uma (con)
figuração do trágico, que privilegia todo o grotesco e todo o terror como uma forma
de afirmação da própria vida. Aos personagens dos referidos romances, toda
solução parece se lhes fugir de cena. Sobreviver à Casa Vermelha, à Floresta Negra
e ao Riacho dos Renegados parece contrariar toda a noção do trágico imanente ao
ser humano: aquele do qual não se escapa, especialmente mediante a consciência
da finitude. Aqui, mais uma vez, voltamos às reflexões do sábio Sileno, para quem o
pior à condição humana não se restringe a existir ou a morrer logo, já que existe:
restringe-se, sim, a fazer, com todo esse emaranhado de peças, um grande tabuleiro
de xadrez, no qual essas peças são analisadas sob uma ótica e de um lugar muito
especial: o olhar e o lugar do outro. Talvez de um ponto de vista – de um ponto
cego? - de onde tudo é possível e, quem sabe, como nos diz a própria autora,
transparece.
84

ROSTO COM DOIS PERFIS

Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
Onde todos os significados
são sutis, são mortais.

Não quero perder o momento


belo. Quero vivê-lo mais,
com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.

Então me corto ao meio e me solto


de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa.
Duplo coração:
a que se contempla e a que nunca
se entende,
a que viaja sem saber se chega
– mas não desiste jamais.
Lya Luft
85

4 REVISITANDO O ESTILO

Quinta noção a ser examinada, depois da literariedade, da intenção, da


representação e da recepção: a relação do texto com a língua. Foi com o
nome de estilo que escolhi abordá-la, porque essa palavra pertence ao
vocabulário corrente da literatura, ao léxico popular do qual a teoria literária
tenta em vão libertar-se. (COMPAGNON, 2001, p.165)

Abordar a questão do estilo na literatura constitui-se, em nível de pesquisa,


um longo e árduo desafio, especialmente se considerarmos o fato de que o estilo, já
há um bom tempo, vem se tornando, no campo das letras, um conceito “fora de
moda”, e, assim, rejeitado pelas pesquisas universitárias. Os estudos sobre o estilo,
muito frequentes em outros países desde a Antiguidade Clássica, saem de moda no
Brasil, gradativamente, a partir da década de 80, nas áreas de letras e linguística. É
curioso observar que na França e em outros países europeus de língua francesa,
esses estudos saem de cena algumas décadas antes, mas a ela retornam com
grande vitalidade a partir da década de 90. No entanto, tal retorno no Brasil não se
fez consistente, e ainda se faz de forma bastante tímida e isolada. E é em função
dessa timidez e desse isolamento que alguns críticos parecem tentar,
cuidadosamente, recuperar o termo estilo, ainda que sob uma nova perspectiva –
desvinculada, por exemplo, da disciplina Estilística.
Como nos indica Antoine Compagnon, em seu livro O demônio da teoria, a
língua literária constitui-se a partir de um lugar comum, embora ela se caracterize
por seu estilo, “em contraste com a língua de todos os dias, que carece de estilo”
(COMPAGNON, 2001, p. 165). Segundo ele, o estilo figura como “um meio-termo”
entre a língua e a literatura, da mesma maneira que a estilística se configura como
lugar para o estudo do estilo entre a linguística e a crítica.
Essa evidência do estilo e essa validade da estilística foram, precisamente, o
que a teoria literária contestou. A despeito disso, o estilo – assim como a literatura, o
autor, o mundo e o leitor – resistiu a esses ataques:

Por mais que se decrete a morte do autor, que se denuncie a ilusão


referencial, que se critique a ilusão afetiva, ou se assimilem os desvios
estilísticos a diferenças semânticas, o autor, a referência, o leitor, o estilo
sobrevivem na opinião geral e vem à tona logo que os censores relaxam a
vigilância, mais ou menos como esses micróbios que julgávamos
erradicados para sempre e que voltam para nos lembrar que estão vivos.
(COMPAGNON, 2001, p. 66).
86

Focalizar o estilo em suas variadas acepções e levar em conta sua


interdisciplinaridade, ou a sua transdisciplinaridade, mobilizam também as primeiras
intenções dos autores Ana Maria Clark Peres, Sérgio Alves Peixoto e Silvana Maria
Pessôa de Oliveira – organizadores do livro O estilo na contemporaneidade – em
reunirem ensaios sobre as diversas configurações que o estilo assume diante do e
no texto literário. E refletir sobre esse espaço do estilo na contemporaneidade, bem
como sobre as acepções que se tornam pertinentes nas abordagens críticas nos
tempos ditos “pós-modernos” ou “hipermodernos”, é também propósito desta minha
pesquisa.
No capítulo propriamente dedicado ao estilo, Antoine Compagnon opõe
posições extremas, apresentando a fortuna crítica do conceito e relativizando as
condenações sumárias de hoje. No entanto, antes de entrar na evolução histórica do
termo, o autor fala da ambiguidade própria ao conceito de estilo, que oscilaria entre
os extremos da necessidade e da liberdade: se por um lado o estilo, bem como
qualquer outro sistema linguístico, possui um aspecto coercitivo na medida em que
obriga o indivíduo a seguir determinadas regras, de outro, ele também permite que
cada indivíduo tenha a liberdade de desenvolver seu próprio estilo - uma espécie de
marca registrada - que o distingue do sistema preestabelecido e coercitivo.
Essa imprecisão de sentido para o estilo manifesta-se também na afirmação
de que “a palavra estilo não tem origem em vocabulário especializado.”
(COMPAGNON, 2001, p. 66). Para Compagnon, ele não é reservado à literatura e
nem mesmo à língua: a noção de estilo abrange várias áreas da atividade humana,
como a história e a crítica da arte, a antropologia, a sociologia, a moda, o esporte,
enfim, todas essas esferas, de certa forma, se valem constantemente desse termo –
fato que o autor considera uma séria desvantagem, “talvez fatal” (COMPAGNON,
2001, p. 166), para uma conceituação teórica.
E na tentativa de esclarecer uma série de significações atribuídas ao termo
estilo, Compagnon nos apresenta uma breve historiografia, bastante especializada,
desse termo. Para isso, recorre às acepções de Aby Warburg e Oscar Bloch e nos
diz:
Estilo, 1548, no sentido de “maneira de exprimir seu pensamento”, de onde
se originaram os sentidos modernos, sobretudo falando-se das belas- artes
no século XVII. Empréstimo do latim stilus, escrito também stylus, de onde
vem a ortografia do francês, segundo o grego stylos “coluna”, por falsa
analogia; esta significa propriamente “buril servindo para escrever”, sentido
tomado de empréstimo mais ou menos em 1380. [...] Tinha sido tomado de
87

empréstimo em mais ou menos 1280, nas formas stile, estile, no sentido


jurídico de “maneira de proceder”, de onde “métier”, depois, maneira de
combater, no século XV e “maneira de agir” (em geral), ainda usual no
século XVII, hoje usado somente em locuções tais como (fazer) mudar de
estilo [...] estilística, 1872, foi tomado ao alemão stylistik (atestado desde
1800). (WARBURG; BLOCH apud COMPAGNON, 2001, p.167).

A partir dessa apresentação histórica, que expõe os numerosos aspectos da


noção de estilo, Compagnon passa a uma nova conceituação: as denotações
teoricamente configuradas ao termo, que, em nossa análise futura, especialmente
no que diz respeito ao valor que esse termo assume, na obra de Lya Luft, nos serão
de grande valia.
A primeira definição apóia-se na afirmação de que o estilo é uma norma, ou
seja, “o valor normativo e prescritivo do estilo é o que lhe está associado
tradicionalmente”. (COMPAGNON, 2001, p. 167). O estilo, assim, é inseparável de
um julgamento de valor, uma vez que o bom estilo é um modelo a ser imitado, um
cânone.
Seguindo-se a esta, temos o estilo definido como um ornamento. Essa
concepção ornamental do estilo evidencia-se na retórica, “de acordo com a posição
entre as coisas e as palavras (res e verba) ou entre as duas primeiras partes da
retórica, relativas às idéias (inventio e dispositio) e a terceira, relativa à expressão
através das palavras (elocutio).” (COMPAGNON, 2001, p. 168).
Como lembram as numerosas metáforas que jogam com o contraste entre o
corpo e a roupa, ou entre a carne e a maquiagem, o estilo, enquanto lexis,
apresenta-se a partir de uma variação contra um fundo comum, podendo ser
entendido como um efeito. Dessa noção de efeito é que surge a suspeita do estilo
enquanto bajulação, hipocrisia e mentira. Na Retórica, Aristóteles distingue, assim, o
efeito do argumento, e esclarece a procura do efeito pela imperfeição moral do
público, chegando, através dessa explicação, a manifestar seu desprezo pelo estilo,
“seguindo uma tradição bem definida posteriormente”. (COMPAGNON, 2001, p.
168). Para ele, “os poetas, só dizendo futilidades a seu respeito, pareciam dever ao
estilo a glória que adquiriam”. (ARISTÓTELES apud COMPAGNON, 2001, p. 168).
O estilo é também um desvio. Nas mesmas páginas em que Aristóteles o
identifica ao efeito e ao ornamento, ele também se define pelo desvio em relação ao
uso corrente: “a substituição de uma palavra por uma outra dá à elocução uma
forma mais elevada”. (ARISTÓTELES apud COMPAGNON, 2001, p.168). Assim, há
88

por um lado a elocução clara, ou baixa, ligada a termos próprios, e há, por outro, a
elocução elegante, jogando com esse desvio e com essa substituição, na tentativa
de dar à linguagem uma “marca estranha, pois a distância motiva o espanto, e o
espanto é uma coisa agradável”. (ARISTÓTELES apud COMPAGNON, 2001,
p.168).
Segundo Compagnon, esses dois traços do estilo, definidos como ornamento
e desvio, são inseparáveis, uma vez que, desde Aristóteles, o estilo é entendido
como um ornamento formal, definido pelo desvio em relação ao uso neutro ou
normal da linguagem. Para ele, algumas noções binárias sobre a questão do estilo,
bem conhecidas, decorrem da noção de estilo compreendida como “fundo e forma”,
“conteúdo e expressão”, “matéria e maneira”. (COMPAGNON, 2001, p. 168). O
princípio de todas essas polaridades compreende, naturalmente, o dualismo
fundamental entre linguagem e pensamento – dualismo do qual depende a
legitimidade da noção tradicional de estilo. O estilo, então, no sentido de ornamento
e de desvio, pressupõe a sinonímia, o que lhe confere, como princípio, a
possibilidade de haver várias maneiras de dizer a mesma coisa – maneiras estas
que o estilo distingue. Raymond Queneau, em seus Exercices de Style, defendeu,
em meados do século XX, o estilo como variação sobre um tema: a mesma anedota
já repetida noventa e nove vezes em todos os tons possíveis e em todos os estágios
da língua francesa. Diante dessa definição, contestar ou desacreditar o estilo
significaria refutar a dualidade da linguagem e do pensamento e,
consequentemente, rejeitar o princípio semântico da sinonímia.
A próxima acepção do estilo se nos apresenta da seguinte maneira: o estilo é
um gênero ou um tipo. Segundo a antiga retórica, o estilo, enquanto escolha entre
meios expressivos, estava ligado à noção de aptum ou de conveniência. Como
exemplo disso, Compagnon nos remete ao tratado do estilo de Demétrio, ou ainda à
Retórica de Aristóteles, em que afirma: “Não basta possuir a matéria de seu
discurso, é preciso, além disso, falar como se deve [segundo a necessidade da
situação]; é a condição para dar ao discurso uma boa aparência.” (ARISTÓTELES
apud COMPAGNON, 2001, p. 169). Mediante essa postura, o estilo passaria a
designar a propriedade do discurso, isto é, a adaptação da expressão a seus fins.
89

Os chamados tratados da retórica distinguiam três tipos de estilo: o stilus


humilis (simples), o stilus mediocris (moderado), e o stylus gravis (elevado ou
sublime). Esses três estilos eram associados por Cícero, no Orator, às três escolas
as de eloquência, reconhecidas como o asiatismo, caracterizadas pela abundância
ou pela empolação; o aticismo, pelo gosto seguro; e o gênero ródio, caracterizado
como gênero intermediário. Na Idade Média, Diomedes identificou esses três estilos
aos grandes gêneros. Depois, Donat, em seu comentário de Virgílio, relacionou-os
aos temas das Bucólicas, das Geórgicas e da Eneida, isto é, à poesia pastoril, à
poesia didática e à epopéia. Essa tipologia dos três tipos de estilo, difundida desde
então com o nome de rota Virgilii, “roda de Virgílio”, desfrutou de uma longa
estabilidade, de mais de mil anos. Ela corresponde a uma hierarquia familiar, média,
nobre, que engloba o fundo, a expressão e a composição. Esses três tipos de estilo
são igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi, uma vez que é a noção
de estilo que se acha na origem da noção de gênero, ou, mais precisamente, é
através da noção de estilo que as diferenças genéricas foram tratadas por muito
tempo. Isso se deve ao fato de que era a teoria dos três estilos que classificava os
discursos e os textos.
Essa teoria dos três tipos de estilo, além de não excluir uma análise estilística
mais detalhada, torna mais precisas as características próprias do estilo de cada um,
particularmente o dos poetas e oradores, que eram considerados como modelos de
estilo. Entretanto, nem por isso essas diferenças estilísticas devem ser consideradas
como expressão de individualidades subjetivas. Se o estilo é propriedade do
discurso, ele deve ter, então, a objetividade de um código de expressão. Ele se torna
mais ou menos (bem) adaptado, ou convém mais ou menos à questão na medida
em que se particulariza. Nesse sentido, então, podemos dizer que o estilo está
ligado a uma escala de valores e a uma prescrição. Cícero também já observava, no
Orator, que os três estilos correspondiam aos três objetivos a que o orador se
propõe: probere, delectare e flectere, respectivamente traduzidos por provar,
encantar e comover.
90

A próxima definição do estilo nos coloca diante da seguinte afirmativa: o estilo


é um sintoma. A associação do estilo ao indivíduo manifestou-se, pouco a pouco, a
partir do século XVII. La Mothe Le Vayer opôs, por exemplo, o estilo individual aos
caracteres genéricos. Em seguida, Dumarsais e D’Alembert descreveram o estilo
como individualização do artista (RASTIER apud COMPAGNON, 2001, p.170).
Desde então, a inseparável ambigüidade do termo estilo, em seu emprego
contemporâneo, se faz claramente visível. Essa imprecisão do estilo se nos
apresenta a partir de suas duas vertentes conceituais: ele é objetivo, se pensarmos
nele como código de expressão; e subjetivo, quando o pensamos enquanto reflexo
de uma singularidade:

Segundo a concepção moderna, herdada do romantismo, o estilo está


associado ao gênio, muito mais que ao gênero, e ele se torna objeto de um
culto, como Flaubert, obcecado pelo trabalho do estilo. “O estilo para o
escritor tanto quanto a cor para o pintor, é uma questão não de técnica, mas
de visão”, escreverá Proust, por ocasião da revelação estética de O Tempo
Redescoberto, concluindo assim a transição para uma definição do estilo
como visão singular, marca do sujeito no discurso. (COMPAGNON, 2001, p.
170).

Segundo Compagnon, foi esse sentido que a estilística, enquanto nova


disciplina do século XIX herdou do termo, então esvaziado, após o fim da retórica.
Como traço sintomático, a noção de estilo entrou, então, com todo vigor, para
o vocabulário das artes plásticas, a partir do fim do século XVIII. Essa grande
importância na crítica e na história da arte está ligada ao problema da atribuição e
da autenticidade das obras, o que faz com que o estilo fosse tomado como um valor
de mercado. A partir dessa acepção, o estilo tornou-se, então, o conceito
fundamental da história da arte, por especificar minúcias e singularidades que
identificariam o artista.
Foi a partir, então, dessa importância que o estilo adquiriu na história da arte
que a noção de estilo reapareceu nos estudos literários, com o sentido de detalhe
sintomático, sobretudo em Leo Spitzer, cujos estudos sobre o estilo procuram
descrever, com precisão, a rede de desvios ínfimos que permitem caracterizar a
visão de mundo de um indivíduo, assim como a marca que ele deixou no espírito
coletivo. Ressalte-se, aqui, que o estilo como visão, tal como Proust o definia, é
também o ponto de partida da crítica da consciência e da crítica temática, que,
segundo Compagnon, poderiam ser descritas como estilísticas das profundidades.
(COMPAGNON, 2001, p. 172).
91

Por fim, a última acepção abordada por Compagnon ao termo estilo configura-
se na seguinte afirmativa: “o estilo é uma cultura, no sentido sociológico e
antropológico que o alemão (Kultur) e o inglês, mais recentemente o francês, deram
a essa palavra, para resumir o espírito, a visão do mundo própria a uma
comunidade, qualquer que seja a dimensão desta [..]”. (COMPAGNON, 2001, p.
172). De acordo com essa afirmação, o estilo passa a ser entendido como a “alma
de uma nação”, ou a raça, no sentido filológico do termo, isto é, como unidade da
língua e das manifestações simbólicas de um grupo. A noção de estilo, aqui, designa
um valor dominante e um princípio de unidade, um “traço familiar”, característico de
uma comunidade no conjunto de suas manifestações simbólicas. O historiador de
arte americano Meyer Schapiro começa seu artigo sobre o estilo nestes termos:

Por “estilo” compreende-se a forma constante – e às vezes, os elementos,


as qualidades e a expressão constantes – na arte de um indivíduo ou de um
grupo de indivíduos. O termo se aplica também à atividade global de um
indivíduo ou de uma sociedade, como quando se fala de um “estilo de vida”
ou do “estilo de uma civilização”. (SCHAPIRO apud COMPAGNON, 2001, p.
172).

E a dificuldade desse modo de definição do estilo logo se configura, uma vez


que o estilo aparece como desígnio de uma constante, tanto num indivíduo quanto
numa civilização. A justificativa para o humanismo presente nessa analogia ancora-
se na sequencia seguinte: “O estilo é uma manifestação da cultura como totalidade;
é o signo visível de sua unidade. O estilo reflete e projeta a “forma interior” do
pensamento e do sentimento coletivos [...]”. (COMPAGNON, 2001, p. 172).
Nessa imensa generalização, o estilo, no sentido mais amplo, é visto como
um conjunto de traços formais detectáveis, e ao mesmo tempo, como sintoma de
uma personalidade de um grupo, de um período ou de um indivíduo.
De alguma forma, todos esses aspectos do estilo enumerados por
Compagnon – norma, ornamento, desvio, gênero, sintoma, cultura – giram em torno
da dicotomia da necessidade e da liberdade, e ilustram um fenômeno, apresentado
pelo autor, como a questão básica, a saber, da sinonímia: “dizer ou fazer várias
coisas no mesmo estilo (aspecto da necessidade) e dizer ou fazer a mesma coisa
em vários estilos (aspecto da liberdade) são os dois lados de uma mesma moeda”
(OTTE, 2003, p. 22). Assim, o estilo é visto como identidade e diferença ao mesmo
tempo.
Como se pode ver, o estilo está longe de ser um conceito puro. Ao contrário,
92

ele compreende uma noção complexa, rica, ambígua, múltipla. A palavra estilo, aqui,
em vez de ser despojada de suas acepções anteriores, em função de ter adquirido
tantas outras, acumulou-se dessas várias outras e apropriou-se de todas elas. Hoje,
quando falamos de norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, estamos, de
uma certa forma, separada ou simultaneamente, falando de um estilo.
A obra de Lya Luft, a meu ver, configura-se como um espaço favorável para a
experiência dessas diversas manifestações do estilo, a despeito do seu caráter
essencialmente ambíguo, especialmente no que diz respeito ao seu uso moderno:

Ele denota ao mesmo tempo a individualidade – registrada na célebre frase


de Buffon, “o estilo é o próprio homem” -, a singularidade de uma obra, a
necessidade de uma escritura e ao mesmo tempo uma classe, uma escola
(como família de obras), um gênero (como família de textos situados
historicamente), um período (como o estilo Luís XIV), um arsenal de
procedimentos expressivos, de recursos a escolher. O estilo remete ao
mesmo tempo a uma necessidade e a uma liberdade. (COMPAGNON,
2001, p. 166-167).

4.1 Os rumores do estilo e da escritura

Após o desaparecimento da retórica no século XIX, a estilística herdou a


questão do estilo. Segundo as observações de Bloch e Wartburg, essa
nomenclatura, tomada de empréstimo ao alemão, surgiu no francês na segunda
metade do século XIX, e logo várias objeções surgiram ao termo. Isso se deu,
especialmente, no questionamento sobre em que medida seria válida uma
classificação que vai até aos indivíduos, isto é, discussões que remetem a uma
antiga problematização, embasada no seguinte questionamento: pode haver uma
ciência do particular? A partir, especialmente, dessa questão, a estilística passou a
ser compreendida como uma matéria instável, em função da polissemia do estilo,
sobretudo em razão da tensão, do frágil equilíbrio – ou mesmo do equilíbrio
impossível – que caracteriza uma noção que pertence, ao mesmo tempo, ao público
e ao privado, à multidão e ao indivíduo. Compagnon nos afirma que:
“inevitavelmente o estilo tem dois aspectos, um aspecto coletivo e um aspecto
individual, ou um lado voltado para o socioleto e um outro voltado para o idioleto,
para usarmos palavras modernas.” (COMPAGNON, 2001, p. 173). Assim, a antiga
retórica mantinha coesos esses dois aspectos do estilo, ou seja, por um lado, ela
acreditava que os estilos não eram em número infinito, nem mesmo que eram
múltiplos, mas que se reduziam a três, conhecidos como elevado, medíocre e
93

humilde. Por outro lado, ela distinguia o estilo de Demóstenes do estilo de Isócrates.
Entretanto, ela solucionava essa divergência afirmando que o estilo individual era
nada mais que o estilo coletivo, mais ou menos adaptado, mais ou menos
apropriado à questão. No entanto, após a retórica, o lado deliberado e coletivo do
estilo tornou-se cada vez mais desconhecido, em função de ter sido substituído pelo
estilo como “expressão de uma subjetividade, como manifestação sintomática de um
homem.” (COMPAGNON, 2001, p. 174).
Em reação contra essa orientação, Charles Bally, aluno de Saussure, em seu
Précis de Stylistique (Compêndio de Estilística, 1905), procurou criar uma ciência da
estilística, separando, ao mesmo tempo, o estilo do indivíduo e o da literatura, assim
como Saussure havia mantido a distância entre a fala e a língua, para fazer, desta, o
objeto da ciência linguística. Note-se, então, que a estilística de Bally é um
levantamento dos meios expressivos da língua oral. A partir disso, podemos
considerar que a estilística sempre esteve do lado da estilística e da literatura. Isso
se confirma através das monografias de escritores as quais, normalmente,
terminavam por um capítulo sobre aquilo que se chamava “O estilo de André
Chénier”, ou “O estilo de Lamartine”, por exemplo, uma vez que a estilística literária
na França, na primeira metade do século XX, teve como matéria, à semelhança da
história literária de que ela dependia, grandes escritores franceses.
A partir dessa noção de estilo, uma outra se faz conhecer, através de Roland
Barthes, em Le Degré Zéro de l’Écriture [O Grau Zero da Escritura], no qual ele
distingue a língua como um dado social contra o qual o escritor nada pode, ou seja,
“ela já existe e ele deve curvar-se a ela e ao estilo, com o único sentido que se
impôs desde o romantismo, como natureza, corpo, singularidade inalienável contra a
qual ele também não tem nenhum poder, pois ela é seu próprio ser.”
(COMPAGNON, 2001, p. 174). Mesmo reconhecendo essa dualidade, esta não se
faz suficiente para que Barthes descreva a literatura. E é a partir dela que ele
elabora o conceito de escritura. Para ele,

Língua e estilo são forças cegas; a escritura é um ato de solidariedade


histórica. [...] Escrituras, existem várias em um determinado momento, hoje,
por exemplo, mas elas não são em número infinito; são somente algumas
dentre as quais é preciso escolher. Na realidade, são somente quatro – a
elaborada, a populista, a neutra e a falada [...] talvez mesmo três, pois a
segunda, a populista, não é senão uma variante da primeira, a elaborada.
(BARTHES apud COMPAGNON, 2001, p. 174-5).
94

Dessa forma, se existem três tipos de escrituras, estas bem podem


correlacionarem-se aos três estilos da velha retórica – o alto, o médio e o baixo.
Pode-se dizer, então, que o que Barthes fez, a partir dessa associação, foi
reinventar, com o nome de escritura, o que a retórica denominava estilo: “a escolha
geral de um tom, de um éthos.” (COMPAGNON, 2001, p. 175). Este tom entendido
como o elemento propiciador do dizer ou fazer várias coisas no mesmo estilo –
aspecto da necessidade - e dizer ou fazer a mesma coisa em vários estilos –
aspecto da liberdade.
Como se pode perceber, o estilo se sustenta a partir de uma definição
imprecisa e contraditória, isto é, mesmo mediante essas adversidades conceituais,
há o propósito de relativizá-las, ao máximo, em função de acreditarmos, também,
que duas verdades podem se afirmar de maneiras distintas, sem serem
necessariamente contraditórias. Em função disso, compartilhamos com a seguinte
assertiva: “o estilo é identidade e diferença ao mesmo tempo.” (PERES; PEIXOTO;
OLIVEIRA, 2005, p. 22). No passado, para que cada estilo fosse considerado novo,
ele deveria se destacar do anterior, para, assim, afirmar-se como diferente, criando
características que identificassem, cada uma de suas manifestações, como
pertencentes à mesma corrente estilística. O estilo seria, assim, tanto responsável
pela criação de um diferencial para fora quanto de uma identidade para dentro –
explicação provável para que ele seja entendido tanto como um desvio da norma
quanto a própria norma.
Se pensarmos que nos grandes estilos do passado houve um revezamento
de uma época a outra, podemos considerar que a era pós-medieval foi também
marcada pelos estilos individuais. Isso porque, com a invenção do indivíduo do
Renascimento (BURCKHARDT, 1991), aparecem os grandes nomes da pintura, da
literatura e das outras artes, que representavam, cada um por si, seu estilo, e cujas
obras, apesar dos traços comuns da sua época, se tornaram inconfundíveis por
conservarem a marca pessoal – o estilo individual – do artista. Assim, a
individualidade compreendia a afirmação de uma identidade (aspecto da
necessidade) no decorrer da produção artística que, ao mesmo tempo, procurava
sua diferenciação (aspecto da liberdade) em relação aos contemporâneos.
Nota-se que Compagnon não se detém a uma fundamentação histórica
detalhada da questão do estilo, talvez em função de considerá-la implícita quando
descreve as referidas acepções do termo, uma vez que estão inseridas nas suas
95

respectivas épocas. Mas há que se registrar, aqui, a definição negativa do estilo


como desvio (écart): parte de um conceito mais recente, elaborado pelo fundador da
Estilística – Leo Spitzer -, em meados do século XX. Talvez a inexistência de um
estilo mais abrangente, como nos séculos passados, em relação aos dias de hoje,
seja um dos motivos dessa chamada redução do estilo a um gesto de negação:
visão que transformou a Estilística de Spitzer numa investigação dos traços mínimos
que pudessem salvar a identidade do autor através da constatação de um
denominador comum. O estilo, então, para ele, não é mais uma escolha consciente
do autor, mas, enquanto desvio, é expressão de um “etymon espiritual”, de uma “raiz
psicológica”:
Quando eu lia romances franceses modernos, cultivava o hábito de
sublinhar as expressões cujo desvio em relação ao uso geral me
impressionava; e muitas vezes as passagens assim acentuadas, logo que
reunidas, pareciam tomar uma certa consistência. Eu me perguntava se não
se poderia estabelecer um denominador comum para todos ou quase todos
esses desvios: não se poderia achar o radical espiritual, a raiz psicológica
dos diferentes traços de estilo que marcam a individualidade de um
escritor? (SPITZER apud COMPAGNON, 2001, p.185).

Para Spitzer, o traço de estilo se apresenta à interpretação como sintoma,


individual ou coletivo, da cultura da língua. E assim como na história da arte, ele se
manifesta por um detalhe, um fragmento, um traço sutil e marginal que permite
reconstruir toda uma visão de mundo. Assim, cada um dos estudos sobre estilo de
Spitzer “considera sério tanto um detalhe linguístico quanto o sentido de uma obra
de arte” (SPITZER apud COMPAGNON, 2001, p. 186), procurando identificar, assim,
uma visão de mundo coletiva e individual; um pensamento não racional, mas
simbólico, como princípio de uma obra.
Essa linguagem simbólica de Spitzer, que valoriza a detecção de um “radical
espiritual” e de uma “raiz psicológica” na busca de um estilo, facilitou a reação de
alguns estruturalistas. Observa-se no pós-estruturalismo, e também na questão
abordada por Jacques Derrida sobre a différance, uma continuação do movimento
de oposição contra a estilística. Se o jogo entre a identidade e a diferença era fator
constitutivo para o estilo, a monopolização dessa diferença acabava não apenas
com o “denominador comum” de Spitzer, mas com qualquer tentativa que se
voltasse para acabar com o princípio da identidade. Assim, a rejeição do
pensamento binário, moldado nos termos da forma e do conteúdo, ou de outras
categorias afins, significou necessariamente o fim do estilo, em função de que a
idéia fundamental do estilo consiste em poder dizer coisas diversas da mesma
96

maneira ou dizer a mesma coisa de formas diversas. E dizer a mesma coisa em


outras palavras é, para os adversários da Estilística, dizer outra coisa.
O filósofo Neslon Goodman, em O estatuto do estilo, se posiciona de maneira
extremamente elegante e convincente, no que diz respeito às suas impressões
sobre o estilo. Uma de suas considerações aponta para o fato de que a sinonímia
não é de modo algum indispensável para que o estilo exista, ou seja, para que se
reconheça, no estilo, alguma legitimidade. A sinonímia é, certamente, suficiente para
que haja o estilo, mas não deve ser entendida como uma condição sine qua non
para a existência dele. Segundo ele, a condição necessária do estilo, na realidade, é
mais flexível e bem menos impositiva. Ele observa que “a distinção entre o estilo e o
conteúdo não supõe que a mesma coisa possa ser dita exatamente de diferentes
maneiras. Supõe somente que o que é dito possa variar de maneira não
concomitante com as maneiras de dizer.” (GOODMAN apud COMPAGNON, 2001, p.
188). Isso significa que, para recuperar o estilo, não somos obrigados a crermos na
sinonímia exata e absoluta, mas somente admitir que há maneiras muito diferentes
de dizer coisas muito semelhantes e, ao contrário, maneiras muito semelhantes de
dizer coisas diversas. Logo, na visão de Goodman, o estilo supõe, simplesmente,
que uma variação de conteúdo não deve implicar uma variação de forma
equivalente, isto é, com a mesma amplitude, com a mesma força, assim como
também a relação entre forma e conteúdo não deve ser biunívoca.
Essas considerações, para Goodman, servem-lhe de base para uma outra
definição de estilo: o estilo como assinatura:

O estilo como assinatura aplica-se tanto ao indivíduo quanto ao movimento


ou à escola e à sociedade: em cada um desses níveis, ele permite resolver
as questões de atribuição. Consiste num traço familiar que reconhecemos
mesmo se não estamos em condições de descrevê-lo, detalhá-lo ou
analisá-lo. (COMPAGNON, 2001, p. 189).

Reitera, também a partir dessa (re) definição, o conceito de complexidade


inerente ao termo, definindo-o como uma característica complexa, capaz de
distinguir um indivíduo ou um grupo. A precisão dessa assertiva inscreve-se em:

Um traço de estilo, a meu ver, é um traço exemplificado pela obra e que


contribui para situá-la num conjunto dentro de certos conjuntos significativos
de obras. Os traços característicos de tais conjuntos de obras – não os
traços de um artista ou de sua personalidade ou de um lugar, ou de um
período ou de seu caráter – constituem o estilo. (GOODMAN apud
COMPAGNON, 2001, p. 189).
97

Entendemos, assim, que o estilo, muitas vezes, parece estar mais


intimamente ligado à questão das variações dos traços familiares do que à noção de
traço familiar, enquanto “denominador comum”, propriamente dito.
De qualquer forma, dentre essas variações, há que se considerar, também, os
três aspectos tidos como inevitáveis e insuperáveis do estilo: o de que ele é uma
variação formal, a partir de um conteúdo ou contexto, sutilmente estável; o de que
ele realmente é um conjunto de traços característicos de uma obra, através da qual
se permite identificar e reconhecer, de forma mais intuitiva e menos analítica, o seu
autor; e o de que ele é uma escolha entre várias escrituras. O que parece não ter
contribuído, de fato, com essas várias noções sobre o estilo são as definições de
norma, prescrição ou cânone atribuídas a ele. E talvez seja devido a essas noções,
que compreendem, visivelmente, um caráter inteiramente impositivo e inflexível, que
o estilo tenha sido rejeitado, ou considerado “fora de moda”, especialmente pelas
pesquisas universitárias. Embora não seja pretensão deste trabalho redefini-lo, há a
idéia consciente de reavivá-lo, de repensá-lo enquanto mecanismo precioso de
enunciação, principalmente no texto literário.

4.2 O estilo sob o olhar da Psicanálise

A palavra em si é matéria dúctil para o fazer literário, ela mesma é coisa,


objeto. Coisa em si, como barro moldável, mas também como cristal
ressonante. O cristal das palavras é uma metáfora de Freud para dizer que
a linguagem, como o cristal, tem uma estrutura também reveladora do
sujeito. (BRANDÃO, 2006, p. 22).

Abordar a questão do estilo, especialmente mediante a necessidade de situá-


lo em meio às suas inúmeras acepções, nos convoca a (re) pensá-lo, também, no
campo de outras áreas do saber. Para este trabalho, reconhecemos a premência de
abordá-lo, por exemplo, sob a ótica da Psicanálise, que se nos apresenta como
fonte preciosa para as reflexões que aqui propomos, uma vez que tratamos a
questão do estilo como algo indissociável daquele que escreve. Por um lado, é uma
conceituação difícil e intrincada, que nos coloca diante de definições que não
alcançamos, em função de não termos o domínio necessário dos termos e de suas
aplicações. Por outro, não podemos desconsiderar essa conceituação, ainda que a
abordemos de maneira mais simples e menos detalhada, já que nosso propósito
para esta pesquisa não consiste em elucidar um conceito para o estilo, tampouco
98

esgotá-lo em suas definições, e sim em levantar questões que o redefinam enquanto


elemento fundamental a ser considerado nos textos literários.
Como já dissemos anteriormente, de Aristóteles a Roland Barthes e os pós-
estruturalistas, vários estudiosos debruçaram-se sobre a controversa noção de
estilo. E muito deliberou-se e teorizou-se a respeito desse termo – fato que talvez
justifique o possível esgotamento e conseqüente desprestígio do estilo,
especialmente nos estudos acadêmicos dos chamados tempos modernos: tempos
de estudos comparativistas e interculturais, que privilegiam uma intensa
interatividade conceitual, totalmente distanciada dos conceitos focalizados,
determinados e categorizados, exclusivamente votados para as atribuições do termo
a situações linguísticas, como o definia a Estilística.
Outra razão para essa desvalorização do termo estilo deva-se, talvez, à idéia
de indefinição imanente ao termo: o que se haveria de dizer a respeito de uma
disciplina que tem como objeto de estudo algo que é uma noção controversa, ou
seja, uma disciplina cujos pressupostos epistemológicos definem-se a partir de uma
indefinição? E é esse conceito de indefinição que nos aproxima da Psicanálise,
enquanto elemento também estrutural da noção de estilo, especialmente quando
nos detemos à análise dos significantes inerentes ao termo.
Roland Barthes, em O Grau Zero da Escritura, já se posiciona diante da
complexa aventura ao tentarmos abordar o termo. Ao enfatizar a supremacia do
significante em relação ao significado, ele nos remete a uma das questões que
envolvem o denso e impreciso conceito de estilo: a questão da expressividade –
elemento que sinaliza o caráter deslizante e inapreensível inerente ao estilo:

Eu não considero [o estilo como uma decoração supérflua e bonita]. É uma


aventura muito complexa. Durante séculos, o trabalho do estilo foi alienado
em ideologias que já não são as nossas. [...] [Mas] ele não é o bem-
escrever [...] e não pode ser reduzido a uma intenção de boniteza
pobremente estética. [...] O estilo é uma espécie de satisfação da viagem.
[...] Não me deixarei encerrar na oposição entre o estilo por um lado e algo
que seria mais sério [a escritura] por outro. O que é sério é estar no
significante. (BARTHES apud PERES, 2000, p.80).

Ana Maria Clark Peres, em seu artigo O estilo enfim, em questão, nos lembra
de algumas das formulações da concepção usual do termo:
99

1. estilo enquanto revestimento formal de um conteúdo preexistente,


“aspecto de um enunciado, resultante de escolhas basicamente voluntárias
– forma “expressiva”, em suma, como quer a Estilística tradicional;
2. estilo enquanto maneira “original”, de falar ou escrever;
3. estilo enquanto “desvio” de uma norma, o que geraria, no campo da
literatura, o estabelecimento, a priori, do que é literário versus o que não é
literário, instaurando-se princípios estéticos, ou de literariedade, atemporais
e imutáveis. (PERES, 2000, p. 81).

Observe-se que o fundamento subjacente a essas três formulações é a


expressividade, e a partir dela, afloram novos questionamentos: será que
“poderíamos restringir estilo a esse bem escrever, ou a essa intenção de boniteza
pobremente estética, no dizer de Barthes? Ao enunciado expressivo, que se oporia
ao enunciado neutro estudado pela Gramática, como insistem ainda os [...]
estilicistas tradicionais?” (PERES, 2000, p. 81). A partir desses questionamentos,
Ana Maria Clark Peres nos alerta quanto à postura crítica do próprio Barthes,
referida acima, que, em 1953, em o Grau Zero da Escritura, já criticava essas
formulações tão em voga na época: “Escrever bem [...] é ingenuamente mudar um
complemento de lugar, é pôr ‘em relevo’ uma palavra, pensando obter assim um
ritmo ‘expressivo’. Ora, a expressividade é um mito: ela nada mais é que a
convenção da expressividade.” (BARTHES apud PERES, 2000, p. 81).
Creio que esse caráter convencional atribuído à expressividade advém de
reflexões próprias à idéia de expressão, uma vez que ela não se sustenta diante da
concepção de texto que se tem hoje, em função, especialmente, do avanço das
formulações teóricas no campo da linguística e dos estudos literários. Para Roland
Barthes, “a língua do escritor é menos um fundo que um limite extremo; é o lugar
geométrico de tudo aquilo que ele não poderia dizer sem perder – tal como Orfeu
olhando para trás –, a estável significação de seu andar e o gesto essencial de sua
sociabilidade.” (BARTHES, 1974, p. 122).
Ainda sobre a questão da expressão, a noção de expressividade tem seu
fundamento na idéia de uma escolha consciente, intencional e pré-concebida do
autor de expressar algo, ou seja, um significado pré-estabelecido, para o qual
haveria uma forma e um significante determinados. Estamos diante, aqui, então, da
insustentável e equivocada oposição entre fundo e forma, ou significado e
significante, que, se tomada como verdadeira, tornará igualmente verdadeira a
afirmação de que por detrás de todo enunciado há um significado.
100

Em O rumor da língua, Barthes refuta tal hipótese, afirmando que:

A frase é como trançado de vários códigos: um código linguístico [...], um


código acional [...], um código hermenêutico [...], um código simbólico [...].
Então não mais podemos ver o texto como agenciamento de um fundo e de
uma forma; o texto não é dúplice, mas múltiplo; no texto só há formas, ou,
mais exatamente, o texto, em seu conjunto, não é mais do que uma
multiplicidade de formas – sem fundo. (BARTHES, 1988, p. 137).

O que Ana Clark nos sugere, em todos os seus estudos realizados sobre a
questão do estilo, em suas releituras e em seus novos olhares, a partir das inúmeras
teorias que se debruçam sobre a questão do estilo, é que repensemos o conceito
desse termo à luz de teorias mais recentes, com ares menos categorizantes, ou até
mesmo que simplesmente resgatemos seu sentido a partir da etimologia da palavra:
ora, se estilo deriva do latim stillus, que em seu sentido próprio designa ponteiro de
ferro ou de osso com o qual se escrevia em tábuas enceradas, e, no sentido
figurado, a maneira de escrever, não seria possível nos determos, para além dessa
maneira, na marca que se deixa ao escrever e nas leituras que se fazem dela?
“Traço de algo que falta irremediavelmente e que produz reiteradas versões de uma
construção involuntária, a mais íntima dentre tantas, na qual se manifesta a verdade
do sujeito...?” (PERES, 2000, p. 81).
Essa noção de estilo como marca, como traço que produz reiteradas versões
de uma construção involuntária, nos remete, espontaneamente, ao olhar que a
psicanálise direciona ao termo, ou seja, ao se pensar na marca, no traço, não há
como deixar de lado esse sujeito, na perseguição de um estilo: “Não me restrinjo
aqui a um sujeito histórico, coletivo, ou a uma particularidade regional ou nacional,
mas à singularidade e particularidade de um sujeito desejante, evanescente, efeito
do significante no ser falante, tal qual nos sinalizam as descobertas freudiana e
lacaniana.” (PERES, 2000, p. 83).
E é também a partir de uma interlocução com a psicanálise que pretendo
abordar, aqui, a questão do estilo. Reporto-me às reflexões de Ana Maria Clark
embasadas nos estudos de Lacan sobre o conceito de estilo. Ao final de A
Psicanálise e Seu Ensinamento, Lacan nos afirma:

Todo retorno a Freud que dá matéria a um ensinamento digno desse nome


só se produzirá pela via por onde a verdade mais escondida se manifesta
nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que pretendemos
transmitir àqueles que nos seguem. Ela tem um nome: um estilo. (LACAN,
1966, p. 458).
101

A leitura que Ana Clark Peres faz desse trecho de Lacan aponta para a
seguinte reflexão:

A verdade em questão nada mais seria que a verdade lógica (axiomática)


do fantasma fundamental, ou da manifestação de versões desse fantasma
nas revoluções da cultura [...]. O percurso dessas atualizações constituiria
um estilo. Se o fantasma é o paradigma que revela a verdade do sujeito, ou
7
da “criança”, a forma sobre a qual se apóia seu desejo, essa “criança” não
poderia deixar de estar em questão na construção de um estilo. (PERES,
2000, p. 83).

Esse fantasma, ao qual Ana Clark associa fundamentalmente o estilo,


constitui-se a partir do próprio princípio organizador da matriz fantasmática: a de
entender o sujeito na posição de objeto. Na perspectiva lacaniana, esse fantasma
seria uma resposta do sujeito ao desejo enigmático do Outro: “encenação primitiva –
na qual o sujeito procura se constituir naquilo que falta ao Outro –, verdade-ficção,
escrita-matriz de todos os nossos atos, poderíamos considerar essa montagem
fantasmática como o que de mais infantil há em nós.” (PERES, 2000, p. 83). E o que
há de mais infantil em nós pode nos remeter à idéia de uma originalidade, aberta a
novas ordens, a novos comandos, a novas associações – um processo singular de
reinvenção. Isso seria também o estilo: uma via marcada por reiteradas e insistentes
reinvenções de si mesmo, a partir do Outro. Embora essa seja uma abordagem
completamente distinta da preconizada pela Estilística tradicional, é inegável o
caráter sedutor que a envolve, especialmente porque se propõe apontar, nos textos
literários, não só os aspectos expressivos do enunciado, mas propõe também ir em
busca da atualização de uma verdade que se manifesta, reiteradamente, a partir de
uma insistência significante de construções fantasmáticas, em sua repetição
multiforme, idênticas e incessantemente diversificadas – cenas em que o sujeito se
coloca, então, como objeto do desejo do Outro, reeditando-se, assim, o princípio
organizador da matriz fantasmática, que particulariza o sujeito na posição de objeto.
Em outras palavras, o estilo se manifestaria, aqui, na constância da diferença
naquilo que se repete.
Prosseguindo nossas reflexões sobre os rumores do estilo na Psicanálise,
apontamos nosso olhar para uma outra – não menos complementar – leitura: a de
que “a questão do estilo teve no sujeito sua referência”. É o que nos afirma Eduardo

7
A referência a essa “criança” advém da contribuição do psicanalista Juan David Nasio, que explicita
sua concepção do sujeito do inconsciente enquanto a “criança magnífica da psicanálise”.
102

Vidal, em um artigo intitulado O Estilo é o Objeto (VIDAL, 2000, p. 69). Nesse artigo,
o autor faz um breve levantamento histórico referente às formulações do discurso
sobre o estilo, realçando as proposições de Descartes e Boileau. Em termos gerais e
de forma bastante genérica, reconhece-se que o estilo consiste no modo peculiar
com que o sujeito se exprime, fala, escreve. Essa assertiva talvez esteja associada
ao fato de o estilo trazer, em sua etimologia, a função de uma cunhagem sobre uma
superfície, uma marca indelével elevada à dimensão de traço da diferença. Stilus8 é,
para os autores do chamado período clássico, uma palavra que remete a um objeto
material, de sentido concreto. E o uso figurado desse termo não o desvincula da
imagem de ferramenta utilizada para escrever.
No século de Descartes, talvez se possa estabelecer um vetor que atravessa
as diversas reflexões sobre o estilo: o ponto de partida é sempre uma idéia clara e
distinta em prol da palavra precisa para expressar uma verdade atemporal.
Justifique-se isso no fato de a obra de Descartes apontar para algumas regras que
permitiam “dirigir o espírito até torná-lo capaz de enunciar juízos sólidos e
verdadeiros sobre tudo o que se apresenta a ele” (DESCARTES apud VIDAL, 2000,
p. 69). Essas regras tinham como alvo a concisão da expressão para poder melhor
transmitir o pensamento. Já no século XVIII, o homem entra em cena, o que não
implica negligenciar as questões tratadas. Agora, porém, a marca, o traço que o
homem imprime ao texto é o que definirá seu estilo. Contrariamente ao século
anterior, agora é a imagem que primeiro impacta o olhar e, a ela, se submeterá o
pensamento. O homem compreende, também, seus modos, seus hábitos, suas
vestimentas. Surge, então, no discurso, a função do semblante, como algo que
aponta para a grande novidade do século das luzes: a de se reconhecer, nele, que
os discursos são da aparência. Assim,

à arrogância da figura e à enfatuação da estatura, soma-se a aspiração a


um saber exaustivo sobre a natureza e a ciência. Nessa trama discursiva se
forjará o fantasma do grande homem, uma construção que atravessa
incólume os tempos sem sequer desconfiar que o dito homem é o estranho
numa morada que não lhe pertence: a língua. Com o advento do discurso

8
“O latim stilus compartilha com stimulare ‘estimular’ e instigare ‘instigar’ da mesma raiz indoeuropeia
*steig, que veicula o sentido amplo de ‘picar, ferroar’ (confiram-se as formas inglesas Sting e stick,
as alemãs stechen e sticken, assim como a palavra grega stu / gma (stigma), que nos chega
através da forma latinizada stigma ‘marca de ferro em brasa’). Stilus era um instrumento utilizado
para a escrita em tabuinhas de cera e consistia em uma haste de metal, ou de osso, com uma
extremidade pontiaguda, para o traçado das letras, e outra extremidade em formato de espátula,
que servia para “apagar” e corrigir os eventuais erros.” (REZENDE, In: CLARCK PERES;
PEIXOTO; OLIVEIRA, 2003, p.41-42).
103

analítico, foi construído o fantasma, revelando-se a sua função de


encobrimento da falta do Outro. (VIDAL, 2000, p. 73).

O fantasma do grande homem pôde ser construído, então, a partir da


psicanálise, na sua função de velar o fato de que o sujeito não é dono de sua própria
casa, nem da língua que fala, e sua suposta integridade é miragem da sua
consciência, que busca apagar os traços da sua divisão subjetiva. Assim, a clássica
fórmula abordada por Buffon – “o estilo é o próprio homem” – será pontuada, por
Lacan, com uma interrogação: “o estilo é o homem... o homem a que se endereça?”
(VIDAL, 2000, p. 75). O objeto, designado com a letra a, responde, assim, a questão
do estilo para Lacan: “o estilo é o modo peculiar como o objeto se faz letra suportado
pela escritura daquele que é nomeado autor. O objeto a faz o texto, solicitando
apenas o consentimento do escritor que, não sem evocar sua angústia, é obrigado a
depor as armas.” (VIDAL, 2000, p. 76). Portanto, o estilo não deve ser visto como
um modo de escrever como preconiza certa análise literária dos escritos através de
sua dissecação crítica. Segundo Eduardo Vidal, a análise de cunho universitário
resta impotente na medida em que se defronta com a ausência do objeto que,
talvez, esteja no cerne da escritura. O objeto é, portanto, o que mais resiste a
qualquer apreensão ideal de acordo com um modelo ou uma forma. A condição do
discurso analítico consiste em ler a letra, inscrevendo o escrito em um laço social,
com a função de convocar o sujeito a colocar algo de si. A partir dessa perspectiva,
“o escrito constitui um endereço chegando ao destino em que se efetua a sua
textualidade. Assim, o estilo não se reduz a uma marca inerente ao texto, mas
aponta ao endereço que comanda.” (VIDAL, 2000, p. 77). E é segundo essa prática
da letra, da escritura à leitura, com a reescritura que esse vetor comporta, que
podemos dizer, sob os cuidados da Psicanálise, que o que se transmite é um estilo.
Embora esse estilo se nos apresente como um termo circundado de
intrincadas e específicas formulações, ora determinadas pela lingüística, ora pela
psicanálise, cabe-nos relativizá-lo, mediante esses conceitos, como fator
preponderante e consistente nos escritos literários, uma vez que tentar suprimi-lo é,
de certa forma, tentar extinguir o sujeito que se esboça nele e a partir dele. Se
pensarmos novamente no stilus enquanto marca, traço, não temos como deixar de
lado esse sujeito, na busca de um estilo. Cabe lembrar que esse sujeito, aqui, não
se restringe a um sujeito histórico, coletivo, ou a uma particularidade regional ou
nacional, mas à singularidade e particularidade de um sujeito desejante,
104

evanescente, efeito do significante no ser falante, tal qual nos sinalizam as


descobertas freudiana e lacaniana:

A vida escrita é a vida que se escreve, mesmo que não se saiba. Como a
lesma que deixa uma gosma viscosa em seu caminho. Como a lágrima que
fala em seu silêncio de dor ou alegria. [...] Ou fazem furos, com as pontas
dos estiletes [...]. (BRANDÃO, 2006, p. 23).

4.3 O estilo e suas ressonâncias na obra de Lya Luft

Assim, é preciso dizer que o tradutor é aquele que deve notar, no texto
estrangeiro, o que não se enuncia de forma explícita, levar esse texto para
além dos limites que ele se dá, sondá-lo em seu insabido, captar seu
avesso, compreender que o original é móvel. O tradutor é, ao mesmo
tempo, o futuro leitor – aquele que não saberia se restringir ao estrito uso de
sua língua materna – e o escritor, aquele que aspira nascer do que faz, de
sua poiésis. (REY, 2002, p. 76).

Pode soar estranha a escolha desta epígrafe para abordar as ressonâncias


do estilo na obra de Lya Luft, uma vez que na referida citação, o autor Jean-Michel
Rey se reporta à questão da tradução. Estranhezas à parte, esta não foi uma
escolha casual. Ela deve-se, primeiramente, ao fato de a escritora Lya Luft ter
exercido, durante muitos anos de sua vida, a árdua tarefa de tradutora, e de esta ter
sido, também, uma de suas primeiras atividades intelectuais. Essa experiência de
tradução, de futuro leitor do próprio texto que se traduz certamente se constitui como
um traço importante na obra de Lya Luft, se considerarmos o fato de que “o contato
com a língua estrangeira provoca nesse sujeito, submetido à voragem da palavra do
outro, no momento de seu trabalho, na encruzilhada de duas línguas, um movimento
de renovação, através de uma travessia marcada por uma alquimia ou feitiçaria
verbal que faz multiplicar suas imagens, produzindo associações inesperadas.”
(BRANDÃO, 2006, p. 50).
Sabemos que é insuficiente essa associação, entre tradutor e escritor, na
indicação de um estilo de escrita, entretanto, não podemos negar a lucidez da
afirmação: “o escritor é, antes de tudo, um leitor.” (BRANDÃO, 2004, p. 3), isto é, “o
escritor é aquele que lê, aquele que aponta para outro lugar, quase apagando as
diferenças entre escritura e leitura.” (BRANDÃO, 2006, p. 11). E na escrita de Lya
Luft estão manifestos, avidamente, os seus desejos de leitura. Tendo traduzido
vários autores, do inglês e do alemão, dentre eles Virgínia Woolf, Rainer Maria Rilke,
Thomas Mann, Doris Lessing e Hermann Hesse, Lya se declara amante da escrita
105

de muitos deles, e, de forma bastante especial, da de Rainer Maria Rilke. Na maioria


dos livros de Lya Luft – romances, crônicas, poesia, reflexões e ensaios – há a
ressonância do pensamento de Rilke, que tanto a inspirou no seu modo mais
particular de ler e de escrever. Em uma entrevista, transcrita em um caderno de
estudos sobre autores gaúchos (LUFT, 1984), Lya, ao ser questionada sobre a
comum curiosidade em torno da posição do tradutor / escritor diante do texto de um
outro autor, e também sobre qual a relação entre as coisas que traduz e as que
escreve, se manifesta:

Em primeiro lugar, a minha literatura e as traduções são dois departamentos


distintos. Nada a ver uma coisa com a outra. É uma maneira diferente de
pensar, de criar e de trabalhar. A minha literatura vem de dentro, e eu tenho
de tratar de não criar muito. A tradução é uma recriação em termos. Eu
preciso colocar as idéias do autor, o clima, a atmosfera, a linguagem do
autor num português fluente que não pareça traduzido, mas que, por outro
lado, dê ao leitor o clima do original. (LUFT, 1984, p.8)

Embora Lya declare uma total incompatibilidade entre as coisas que escreve
e as que traduz, ela afirma que gosta muito de traduzir, e que vive esse trabalho de
forma tão intensa que “faz certos trechos quase com a mesma emoção como se
escrevesse seus próprios textos.” (LUFT, 1984, p. 8). E ainda que ela insista em se
revelar imune a essas influências, advindas de suas leituras e de suas traduções,
não é isso que ressoa em nós, leitores de sua obra, em seus romances, em seus
textos não-ficcionais. São vários os momentos, por exemplo, em que se fazem
visíveis as reflexões sobre a condição feminina, preconizadas por Virgínia Woolf,
como também os questionamentos sobre a condição humana, insistentemente
elaborados na escrita do poeta Rainer Maria Rilke. Ademais, neste mesmo caderno
de entrevistas, cita Virgínia Woolf para se explicar, assim como ela, quando
questionada sobre os prováveis sentidos para os símbolos de sua escrita9:
Lya cita Virgínia Woolf que, perguntada sobre o que significava o farol em seu
livro Passeio ao farol, respondeu: “- Quando eu escrevo, coloco as minhas emoções
e os meus símbolos. Quando o leitor for ler os meus livros, ele vai colocar os seus
símbolos e as suas emoções. Se eu decifrar os meus símbolos enquanto estiver
escrevendo, eles perderão o valor. Então, eu não me interesso pelo que significa
farol.” (LUFT, 1984, p. 9).

9
Especificamente aqui, Lya Luft cita Virgínia Woolf para, como ela, justificar-se mediante a pergunta
de qual seria o significado que ela atribuiria aos gêmeos, Camilo e Carolina, no romance O quarto
fechado.
106

Ambiguidades à parte, note-se, aqui, a precisão e a sensibilidade de Ruth


Silviano Brandão, ao descrever a estreita relação entre o escritor e os seus outros
textos: “Os escritos de Outros especiais, interiores e exteriores, estão ou estiveram
dentro e fora de quem escreve [..]” (BRANDÃO, 2006, p.12). Para ela, nós, leitores,
somos passageiros da voz alheia, na medida em que escrevemos e tentamos nos
reconhecer nos “textos-espelhos em que nos debruçamos. Identificação criada pelo
fascínio; a esperança de sermos os destinatários ideais do texto don-juanesco.”
(BRANDÃO, 2006, p.13). Isso também é traço, é marca, é estilo de uma escrita em
que se inscreve o sujeito. Se o estilo é, também, o Outro a quem nos endereçamos,
como nos afirma Lacan, o objeto a se configura no desejo de nos constituirmos a
partir desse outro que vemos, e a quem direcionamos o nosso olhar. Lembremos
que para Aristóteles, a metáfora, se usada habilmente, poderia dar ao estilo, de fato,
o caráter de “ar estrangeiro” e inapreensível que o circunda. Mas é Lacan, em suas
considerações sobre a arte, que nos afirma, no seu artigo intitulado Maurice
Merleau-Ponty – escrito em homenagem ao filósofo: “[...] o que o artista nos concede
acesso é o lugar daquilo que não poderia de forma alguma ser visto.” (LACAN, 2001,
p. 254), ou seja, tornar visível o invisível, a partir de um olhar. E é este, também, o
papel do escritor. Os dizeres de Catherine Millot também nos remetem a essa
condição de criar (se) a partir de um olhar: “[...] o que o artista cria não é outra coisa
senão uma visão, ou melhor, o que esta faz surgir como vazio, por efeito de trompe
l’oeil: um olhar. A obra realiza essa coisa que de outra forma seria impossível: tornar
visível um olhar.” (MILLOT, 1991, p. 59).
São os múltiplos olhares, (a) firmados em uma escrita que se faz de
diferentes modos, que dão consistência ao caráter do estilo que procuro realçar, na
obra de Lya Luft. Mediante a declaração de escrever sobre as coisas que não
conhece, chegam-nos, através da obra de Lya Luft, os vários olhares, os inúmeros
tons que se configuram como um estilo, um traço, uma marca, um modo de escrita.
Umberto Eco, em seu livro Seis passeios pelo bosque da ficção, nos diz que o
homem, ou aquele que escreve, constrói, imaginariamente, um certo perfil de autor:
um certo estilo de escrita. E, além disso, um certo perfil de leitor: um estilo de leitura,
ou seja, o estilo seria o conjunto das estratégias textuais que o autor e o leitor
utilizam na interação que os movimenta. Essa acepção do estilo pode nos parecer
arrogante no sentido de que pretende determinar uma fórmula, definida e imutável,
para a questão do estilo. Mas ela resgata um pouco do caráter relativista do termo,
107

na medida em que aquele que escreve cria, imaginariamente, um perfil de autor.


Esse perfil, especificamente no que se refere à obra de Lya Luft, pode ser percebido
nos diversos tons de que a autora se reveste para o seu fazer literário. Com maior
ou menor incidência, esses tons oscilam entre o individual e o coletivo, entre o
grotesco e o trágico, entre o real e o ficcional. Esse tom se faz visível, também, nas
temáticas de seus romances, assim como nas de suas poesias, uma vez que
continua, de forma nada ficcional, presente nas atuais produções da autora.
Uma trajetória do estilo, enquanto um tom de escrita, deve ser pensada a
partir de uma ótica já instaurada desde o primeiro romance de Lya Luft até o seu
lançamento mais recente – o livro Múltipla escolha –, identificado na categoria de
ensaios. É a partir desse trajeto que acompanharemos, com maior nitidez, os
rumores do estilo e suas nuances no texto literário de Lya Luft.
Em seus romances, podemos perceber o tom questionador que envolve os
seus textos, especialmente no que diz respeito à condição feminina marcada por
parâmetros tidos como convencionais. A narrativa de autoria feminina em geral,
especialmente da década de 90 em diante, se nos apresenta a partir de
protagonistas femininas, que passam a ser sujeitos da própria história, (re)
conduzindo suas vidas mediante valores redescobertos, através de um processo de
autoconhecimento. Este processo se nos configura como conteúdo próprio dessas
narrativas, uma vez que ele nos leva, desde a personagem enredada em seus laços
de família, ou em suas próprias dúvidas ou questões existenciais, à personagem,
enfim, liberada, desimpedida, dona de seu destino e de suas escolhas.
A obra de Lya Luft é um excelente exemplo desse percurso. Na década de
80, ela publica quatro romances – As parceiras, 1980, A asa esquerda do anjo,
1981, Reunião de família, 1982 e O quarto fechado, 1984. Neles, respectivamente,
as personagens se apresentam estreitamente condicionadas ao contexto familiar em
que estão inseridas, às inquestionáveis relações de gênero a que estão submetidas
e à impossibilidade de escaparem das mazelas inerentes a esses matizes femininos,
fadados sempre ao fracasso e a um destino, muito bem conhecido e experimentado
por elas, como malsinado. Tudo parecia caminhar para o tão narrado beco sem
saída. Em um tracejo breve, temos, nesses primeiros romances, um tom que
privilegia o silêncio, a submissão, a irremediável consciência da necessidade de
essas personagens sucumbirem ao destino – destino traçado pela sociedade
patriarcal. Suas figuras femininas são presas de uma inquietante ambigüidade: seja
108

Anelise, narradora de As parceiras, que descobre a si mesma em meio a


preconceitos, disfarces, morbidez, loucura, erotismo e tragédias que explodem à
vista de todo mundo (como o estupro ocorrido com o menino Zico, filho da caseira
Nazaré) ou se ocultam em silêncio, absorvidas pelas paredes, como a avó Catarina;
seja Gisela, de A asa esquerda do anjo, sempre dividida entre duas culturas, dois
países e oprimida pelo medo constante de jamais vir a pertencer a nada ou a
ninguém; ou seja Alice e seu duplo no espelho, de Reunião de Família.
Em As parceiras, temos, ao final do romance, essa conscientização na voz de
Anelise – personagem principal, narradora –, que se vê fadada a baixar sua cabeça,
voltar para casa e recomeçar de onde sempre esteve: da clausura, do sótão, de seu
próprio confinamento, de sua própria desilusão, de sua constante solidão. Após a
decisão de investigar sobre seu passado familiar, e sobre as raízes enfermas das
mulheres de sua família, Anelise revisitou, também, sua condição de mulher, fadada
à impossibilidade de uma auto-afirmação. Não é casual o nome da “casa dos
fantasmas” (LUFT, As parceiras, 2003, p. 15) atribuído ao antigo Chalé, em uma
cidadezinha de veraneio, onde a família costumava passar suas férias. Os
fantasmas – não só os atuais de Anelise, mas os de todas as mulheres daquela
família – ainda permaneciam todos lá. E em meio àquelas mulheres solitárias,
suicidas e mal-amadas, Anelise se entrega à irremediável realidade: “ao beco sem
saída onde todas nós nos encolhíamos.” (LUFT, As parceiras, 2003, p. 41). A
indiferença à solidão, à condição feminina se faz visível, principalmente, na
consciência que a personagem adquire ao final do romance, de que tudo são
aparências:
O mar que amei: fragmentos de pessoas, o último grito de Adélia afogado
nas espumas. Encolho as pernas, abraço os joelhos, encosto a cara no brim
áspero da calça. Sei que Otávio está pensando em mim agora mesmo: os
pensamentos se encontram, se tocam, se beijam. Uma paixão sem sexo,
sem sentido. Sem vida. Fecho os olhos: quando vou conseguir fechar assim
o coração? Me encerrar em mim, como outros nas aparências, na loucura?
Quem sabe faço do Chalé meu sótão. Uma doida a mais não pesa nessa
família. [...] Nas paredes, vou pendurar uns esboços daqueles anjos de tia
Dora, guardei alguns, são lindos. Perfeitos. Minha tia pinta monstros depois
de desenhar anjos. Mas todo mundo compra as telas, põe na parede, olha:
tão verdadeiros, os crânios calvos, as caras descosidas. – Família de
perdedoras, tiazinha. (LUFT, As parceiras, 2003, p. 126).

Essa configuração do feminino está também profundamente representada no


romance A asa esquerda do anjo. Guísela ou Gisela, criada em uma rígida família
alemã, sofre por se sentir exilada em um mundo comandado por sua avó, a temida e
109

autoritária matriarca Frau Wolf. Dividida entre a obrigação de seguir as duras normas
da educação alemã e a vontade de ser como as outras crianças, admirando a mãe –
uma intrusa que tenta se integrar na família germânica –, a menina cresce em meio
a essas ambivalências, censurada pelo olhar crítico da avó e sentindo-se sempre à
sombra da prima – a perfeita e preferida Anemarie. Neste romance, Gisela conta a
história de sua família, seus segredos – escondidos metaforicamente em uma
portinha no porão –, as mortes dolorosas e o anjo que guarda o mausoléu dos Wolf.
Assim também, narra-nos os anseios e as culpas que a impedem de viver uma
relação amorosa, bem como a incessante busca por sua aprovação em um lugar
onde ela jamais seria igual aos outros. Nelly Novaes Coelho, ao se referir à escrita
de Lya Luft, nos diz que

[...] como um sensível sismógrafo, ela vai registrando sinais dos surdos
movimentos que se agitam no ambíguo submundo emocional e oculto sob
aparências absolutamente normais e comuns que revelam seres
condenados pela rotina cotidiana a se repetirem eternamente, de maneira
estéril. (COELHO, 1993, p. 232).

Esses movimentos são finamente elaborados no início e no final do romance.


No início, podemos analisá-lo como a tradição incutida ao cotidiano das mulheres,
desde meninas:

Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua
para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a
ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado
na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó. Só eu
me sinto fora de ritmo, com o corpo miúdo, as orelhas grandes teimando em
aparecer por entre o cabelo que me obrigam a usar bem curto, “assim fica
mais forte”. Também sou canhota e não conseguiram me corrigir. (LUFT, A
asa esquerda do anjo, 2003, p. 11).

Destaquemos nessa citação os vocábulos ritual e ritmo, palavras das quais a


narradora procura se libertar, para, enfim, ir em busca de uma nova identidade, de
um novo lugar que ela pudesse habitar, longe das imposições culturais de sua
família. E após narrar seus desencantos, Gisela, assim como Anelise, também
sucumbe-se ao encolhimento, à impotência diante de suas convenções familiares.
Diante do verme que ela expele, em um ímpeto de grotesca revolta, narra o contexto
de profunda indiferença e passividade femininas, indagando-se / nos:
Minha mãe suspira no corredor. Anemarie toca com o corpo unido ao
violoncelo, de onde brota a voz do anjo. Dos abraços do tio Stefan brotou a
morte. O amor é morte? Devagar meu habitante se vira, o leite acabou mas
ele ainda está faminto, vira-se na minha direção, balançando pesadamente
110

a parte erguida do corpo.Vira-se mais, sei que vai me encarar. Minha


identidade – qual é a minha identidade? Ele vai me fitar, sem olhos, sem
nariz, sem feições. Sem identidade como eu – qual é o meu nome? Onde
fica o meu lugar? Como se deve amar? Neve ou fogo? (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p.109).

Esse contexto de submissão à família, à vida doméstica, no qual a mulher da


década de 80 ainda está inserida, aparece registrado, também, na vivência das
personagens de Reunião de Família. É nesse espaço intrincado, confuso e
problemático que se situa Alice, a personagem narradora do romance. Uma mulher
tranqüila, pacificamente ajustada aos deveres da casa – especialmente aos de
esposa e mãe que a vida lhe exigia. Uma serenidade apenas aparente, pois na
realidade, Alice vivia se contrapondo com aquela outra Alice: a do espelho – uma
simulação, talvez, de “Alice no país dos espelhos”, de Lewis Carroll. Essa aparente
consciência de uma mulher comum revela, dentre outros aspectos, como as tarefas
domésticas assumem, para essa mulher, papéis de refúgio, de âncora ou de defesa
dos interesses estreitamente familiares. E a própria Alice nos diz:

Sou uma mulher comum; dessas que lidam na cozinha, tiram poeira dos
móveis, andam na rua com uma sacola de verduras, sofrem de varizes e às
vezes de insônia. Quando meus filhos eram pequenos, houve um tempo em
que eu carregava uma sacola a mais: com restos de verduras para os dois
porquinhos-da-índia que os meninos ganharam. (LUFT, Reunião de família,
2004, p. 13).

Entregue de corpo e alma à rotina familiar, com seus imutáveis e repetitivos


trabalhos, essa Alice responsável, ordeira e disciplinada consegue manter,
submersa e silenciosa, a outra Alice – reflexo vivo, desde sua infância – que o
espelho revela. Em relação ao constante hábito infantil de se fazer passar por essa
outra Alice, ela nos declara: “Eu brincava assim na meninice: de não ser eu. Não a
coitada, filha daquele Professor a quem ninguém apreciava; mas doutra Alice –
poderosa, inconquistável. (LUFT, Reunião de família, 2004, p.15). Contrariamente
aos seus anseios infantis, ela, como a uma reprodução de Alice no país das
maravilhas, parece se recriar em seu mundo de agora: o de “Alice no país das
fantasias”. Logo abaixo à citação anterior, temos, nos mesmos dizeres dessa
personagem, que se disse não querer ser a coitada, e sim a outra – poderosa e
inconquistável – a conscientização de sua impossibilidade de ser outra, mediante a
força do hábito das convenções sociais e familiares:
111

Tudo fantasia. Mais tarde habituei-me à minha vida doméstica e segura;


fora dela fico desamparada como um bicho que, despido da casca, expõe
um corpo viscoso e mole, onde qualquer caco de vidro no chão pode
penetrar, liquidando essa vida rastejante. (LUFT, Reunião de família, 2004,
p. 15).

Este reflexo familiar, essa outra face de um eu que se busca a todo tempo, já
se esboça no início do romance, no momento em que a própria Alice assume sua
consciência de outrora no habitual jogo a que se propunha brincar. E era através
desse jogo que as eventuais aparências e realidades se davam a conhecer. Nele,
passado e presente entrecruzam-se, dando-nos a conhecer a permanente condição
feminina:
O jogo: do tempo em que eu não era uma pacata dona-de-casa com filhos
criados, mas uma menina sem mãe; que inventava o jogo do espelho para
ser menos infeliz. A gente sentava na frente da outra menina e encarava:
tão intensamente, com tamanho fervor e tanta vontade de a ver mudar, que
a imagem aos poucos perdia seus contornos; ficava um borrão. Por detrás
do reflexo familiar ia-se formando outro alguém. De início, sorrateiro; depois,
dominando tudo com seu poderoso olhar. Seu nome também era: Alice. Ela:
o contrário de mim, meu reverso. Sempre à espera, por baixo da superfície.
Livre para detestar tudo o que, aqui fora, eu era obrigada a aceitar. [...] Sou
apenas uma dona-de-casa, vida exclusivamente doméstica, marido e dois
filhos que já são quase homens e nunca me deram preocupação. (LUFT,
Reunião de família, 2004, p. 10-11).

Neste romance, assim como nos anteriores, ao seu final, prevalece a imagem
da mulher submissa que, embora se fizesse consciente da necessidade de ser sua
outra face, ou de se transformar, nela, dona de suas escolhas, não se realiza, aqui.
O que resta, então, é a inevitável repetição da mesmice cotidiana, sem vislumbre de
nenhuma abertura pela qual essas personagens possam escapar da circularidade
estéril a que estão condenadas, esboçada no início e nas últimas páginas do
romance. E conclui que tudo não passou, apenas, de um jogo: um jogo de espelhos:

Tudo foi um jogo de espelhos: nossas imagens defrontadas numa série


interminável, multiplicando rostos, como nesses corredores espelhados em
que tudo se torna possível. Reflexos de reflexos: eis o que somos. Agora
que descobrimos isso, despertamos para a lucidez da banalidade. Estou
aliviada: logo vou pegar o táxi, entrarei no ônibus, chegarei em casa a
tempo de preparar o almoço e fazer os serviços normais de uma segunda-
feira. [...] Eu levarei minha vida comum, dona-de-casa, mulher que vive para
a família, lida na cozinha, tira poeira dos móveis, anda na rua com sacolas
de verduras, às vezes sofre de insônia, coisa perfeitamente normal. (LUFT,
Reunião de família, 2004, p. 125-126).

Apesar das revelações feitas pelo espelho, das desmistificações provocadas


por aquela reunião familiar, prevalece, para, além disso, o sentido das máscaras e a
necessidade premente das aparências, em defesa da dignidade e da ordem familiar:
112

“O mundo voltou a ser ordenado, tal como precisamos que seja. Se admitirmos o
vórtice, o abismo, o subterrâneo por trás dos espelhos, nossas bocas hão de se
escancarar num grito.” (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 126)
Embora o discurso de Lya Luft se deixe transparecer a partir de um tom
fortemente irônico, que repudia a falsidade dessas relações familiares e a hipocrisia
que as circundam, suas personagens ainda não conseguem se verem livres das
convenções sociais, e entregam-se ao inexorável destino de continuarem as
mesmas, mediante as mesmas condições de opressão e silêncio. Tudo parece uma
explosão de conflitos que, como a de fogos de artifícios, nos revela uma realidade
momentânea, incapturável. No dia seguinte, sem luzes, sem tremores, sem tumultos,
tudo parece se acalmar, e as pessoas, retomam suas máscaras cotidianas, voltando
ao convívio pacífico e convencional.
No romance O quarto fechado, publicado em 1984 – dois anos após Reunião
de família –, temos um contexto muito próximo das temáticas anteriores,
preconizado, entretanto, de uma outra maneira: uma nova vertente de análise das
relações humanas, mediante a irremediável presença da morte. Uma reflexão
fundamentada, talvez, na inutilidade e ineficiência das aparências – estas que
sustentam tantas situações de opressão e irremediabilidade dos fatos. Entre
delicadeza e brutalidade, Lya Luft nos expõe ao limite de consciência, em nível do
humano: o estado cônscio de inteira impotência perante a morte. E é esta a situação
realçada neste romance. As relações humanas estão deterioradas, e é no momento
de dor mais profunda que a união se instaura. As aparências são, novamente, o foco
das grandes inquietações: Martin e Renata, embora separados, dividiam o
sentimento de culpa e de inexorabilidade diante do filho morto: “A dor partilhada em
público unia-os numa intimidade que não desejavam mais.” (LUFT, O quarto
fechado, 2004, p. 13). O jogo, mais uma vez, como elemento inicial das tensões. Ao
contrário de Alice, que em Reunião de família se rende, desde criança, ao jogo de
espelhos, Camilo se sente atraído por um outro tipo de jogo: o jogo de morrer. Ao se
referir ao comportamento dos gêmeos, narra-se:

Quando menores brincavam disso muitas vezes, o jogo de morrer, e era


sempre sugestão de Camilo. Deitavam-se, cruzavam as mãos no peito,
fechavam os olhos. No começo Carolina fazia força para não rir. Mas aos
poucos ia sendo levada. Algumas vezes se transfiguravam, concentrados
na gravidade do brinquedo: um nevoeiro os recobria, uma onda os queria
engolir, sugava, sugava-os pelos pés. Empalideciam, a respiração tornava-
113

se lenta e superficial, o grande sono os tragaria para sempre? Era Carolina


quem rompia o jogo, levantava-se tonta, corria até o irmão. Precisava
chamar por ele, tocar nele para que voltasse, tão absorvido estava em
jogar. (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 29-30).

Como as tensões de Lya Luft perpassam pelas impossibilidades, temos, em O


quarto fechado, um exemplo do estilo trágico – o traço do trágico helênico-
pessimista, em que o ser se encontra fadado a um destino irremediável. Camilo,
diante da impossibilidade de se assumir com uma identidade excludente, que poria à
prova as convenções de sua família, não tem outra saída senão morrer – ou matar-
se na sua própria identidade. Sobre a necessidade de se fazer parecido com
Carolina, sua irmã gêmea – talvez para minimizar os impactos familiares diante de
sua escolha sexual –, lemos:

Não tinham nascido iguais. De sexos diferentes, seriam como dois irmãos
quaisquer. Parecidos, sim: pequenos, débeis. Mas com o tempo haviam-se
tornado mais e mais semelhantes. Renata sabia, todos sabiam sem
coragem de dizer: eles treinavam para ser iguais. (LUFT, O quarto fechado,
2004, p. 31).

Essa dualidade sexual, individual e familiar – tensões próprias das motivações


de Lya Luft, enquanto escritora – se manifesta a partir da intensidade atribuída às
atitudes consideradas anticonvencionais. Repudiar a condição liberta da mulher,
ignorando sua profissão ou qualquer outra forma de sobrevivência – senão aquela
reconhecida no âmbito estreitamente doméstico –, repudiar a opção homossexual do
filho: questionamentos explicitamente notáveis no romance, que parecem por em
xeque toda legitimidade conferida aos aparentes padrões familiares, que organizam
e determinam papéis sociais. A escolha pelas aparências se nos mostra
desnecessária especialmente quando questionada frente à irremediável condição
comum a todos nós, isto é, a que homens e mulheres estão submetidos,
independentemente de serem um ou outro: a da morte. Destaque-se, no próprio
romance, o momento dessa revelação, ou desse posicionamento de igualdade
perante essa inevitável condição:

Se pudesse falar, o morto diria: No fundo do poço encontrei Vida e Morte,


masculino e feminino, o Eu e o Outro entredevorando-se como uma
serpente que engole a própria cauda. Da treva e do delírio saltou a Morte de
braços abertos: bêbada de mistério. (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 96).
114

A leitura desses excertos nos aproxima da obra de Lya Luft na medida em


que nos permite visualizá-la como espaço que busca se ancorar em um constante /
contínuo processo de evolução. E é esse tom de evolução – mediante a série de
acepções que essa palavra incorpora – que irá conduzir nossas impressões sobre a
necessidade de se reconhecer a proeminência do estilo na constituição do texto
literário de Lya Luft. O estilo, nessa obra, percebido especialmente como um traço,
como uma marca, como uma assinatura “num traço familiar que reconhecemos
mesmo se não estamos em condições de descrevê-lo, detalhá-lo e analisá-lo.”
(COMPAGNON, 2001, p.189).
Considerando a trajetória de escrita desses romances, podemos observar
como seus textos sinalizam para uma identidade estilística. Os parâmetros culturais,
os papéis femininos, as tensões aparentemente binárias que compõem o universo
ficcional de seus livros, a condição humana explorada sob diversas formações
psicológicas a partir de suas personagens e muitos outros possíveis motivos,
parecem conduzir nosso olhar para essa análise permeada de acontecimentos,
espaços e personagens inextricavelmente vinculados uns aos outros. E é esta
análise que nos convoca a pensarmos no tom de evolução que se entretece, em seu
texto, também como um estilo. Dentre as várias acepções conferidas ao termo
evolução, opto por transcrever apenas as que confluem para o sentido que
pretendemos realçar. Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, evolução
corresponde a:

1. Passagem sucessiva de coisas, pessoas, acontecimentos; 2. Movimento


ou deslocamento gradual e progressivo em determinada direção; 5. O
desenrolar de acontecimentos ou atos a partir de um momento ou situação
inicial, numa sucessão em que cada novo elemento é em parte determinado
ou condicionado pelo(s) anterior(es); 6. Conjunto de mudanças ou
modificações sucessivas que fazem surgir algo que de início era apenas
potencial; 7. Processo lento e contínuo de transformação, esp. aquele em
que certas características ou elementos, a princípio simples, parciais ou
indistintos, tornam-se mais complexos, mais completos ou mais
pronunciados [...]. (FERREIRA, 1999, p. 855).

Essas conceituações estão muito próximas do que pretendemos chamar de


estilo na obra de Lya Luft. A trajetória romanesca que procuro retratar praticamente
nos impõe essa condição evolutiva. Se pensarmos que temos, analiticamente, um
processo de criação contínuo, sucessivamente modificado e reconhecível – ainda
que não o detalhemos em análises –, estaremos reconhecendo a presença de um
estilo.
115

Lya Luft, dentre seus vários livros de poesia, crônicas, ensaios e histórias
infantis, publicou sete romances, respectivamente intitulados: As parceiras, A asa
esquerda do anjo, Reunião de família, O quarto fechado, Exílio, A sentinela e O
ponto cego. Esse número é extremamente significativo para a análise em que nos
deteremos, especialmente pela cadeia de significados que o constitui: “[...] O sete
corresponde aos sete graus da perfeição [...]. Ele simboliza a totalidade do espaço e
a totalidade do tempo. [...] é o símbolo universal de uma totalidade, mas de uma
totalidade em movimento ou de um dinamismo total.” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009, p. 826-27).
Como à criação do mundo, Lya parece também criar seu universo romanesco
em busca de uma perfeição, e encontra, em seu sétimo romance – O ponto cego –
algo “como que uma restauração das forças divinas na contemplação da obra
executada.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 826); algo que não se
determina como fim enquanto criação literária, mas algo que cede lugar a uma nova
forma de representação dos conflitos que a autora nos expõe, através, também, da
nova postura adotada por suas personagens.
Os três primeiros romances – considerados por muitos estudiosos como uma
trilogia –, retratam traços de padrões culturais irrevogáveis, inquestionáveis e
alienáveis, especialmente no que diz respeito à condição humana. Nos romances,
homens e mulheres são representados como vítimas de uma identidade formada a
partir de suas funções sociais. Há uma organização espacial determinada – casa,
quartos, cômodos, sótãos –, que contribui para essa percepção do “já no lugar”, do
aparentemente estruturado e imodificável. Resta a essas personagens apenas
inserirem-se em tal contexto. Embora seja um contexto preestabelecido, surgem-lhe
reflexões que as encaminham a uma redescoberta dos valores sociais e individuais,
especialmente no contexto familiar. Há disposição nessas personagens para irem
em busca de uma nova forma de se fazerem presentes no mundo, na sociedade e
na família da qual fazem parte. Embora essas personagens privilegiem suas buscas
identitárias e se conscientizem da necessidade de mudança, elas terminam por se
renderem à força maior do destino, abdicando-se de suas descobertas
simplesmente em função de manterem a “história da instituição familiar.” (XAVIER,
1998, p.113).
E é a partir do quarto romance – O quarto fechado – que esse universo
começa a se modificar, a evoluir. Se observarmos as citações aos romances, feitas
116

em páginas anteriores, veremos que elas nos conduzem a um mapeamento dessa


evolução que se pretende também como estilo, principalmente a partir do momento
em que nos tornam visíveis o conjunto de mudanças ou de modificações sucessivas
das quais um novo contexto e uma nova ressignificação ressurgem no texto literário.
A linguagem de O quarto fechado, que, para mim, se apresenta como o rio do
meio dessa divisão numérica dos romances, já nos indica uma nova forma de
questionamento, uma nova postura diante dos conflitos, antecessora à nova fase
romanesca, na qual seriam publicados os romances Exílio, A sentinela e O ponto
cego. A partir dele, uma nova realidade se instaurou diante da vida e da morte, e é
também a partir dessa realidade que os romances seguintes nos apresentarão a
evolução da postura de suas personagens, a evolução do estilo não como um
denominador comum, mas enquanto marca cultural, enquanto sintoma de um dado
momento social, histórico, quiçá particular.
Lya Luft já nos adverte, em A sentinela – livro publicado dez anos após O
quarto fechado –, quanto ao caráter revirador de sua nova obra. Em carta a Pedro
Paulo de Sena Madureira, citada na orelha do próprio livro, ela nos diz:

Talvez esta seja uma virada em minha obra: personagens não mais
exclusivamente tangidos por fatalidades, mas responsáveis. É, por isso, um
livro mais esperançoso: alguém renasce em si e de si mesmo e, ainda que
guarde um último mistério indecifrável na gruta de seu pantanoso jardim (o
interno e o externo), lança-se na vida e recria o mundo. O seu mundo, que
miticamente irrompe de sua voz. De sua palavra. (LUFT, 1994, orelha).

Reitero um dos trechos finais de O quarto fechado, no qual as sombras


dessas novas personagens já se fazem mais nítidas:

No fundo do poço encontrei o enlace, a Vida e a Morte, Masculino e


Feminino, o Eu e o Outro, entredevorando-se como uma serpente que
engole a própria cauda. Da treva e do delírio saltou a Morte de braços
abertos: prostituta, donzela, promessa, danação. Ela me chamando, bêbada
de mistério, eu precisava entender: quem me aguarda no regaço dela? Que
silêncio, que nova linguagem? Em todo trajeto até a fazenda, Camilo
soubera: alguém, alguém que um dia amei, está à minha espera. Sem rosto,
sem nome, guardado para mim, intacto. (LUFT, O quarto fechado, 1984,
p.117-118).
Esse encontro com o enlace de importantes instâncias aparentemente
binárias, como feminino e masculino, vida e morte, o eu e o outro, dá vida e
ressignificação a um traço de escrita anterior a este. Diante de não saber qual o
melhor silêncio, ou qual a nova linguagem, tudo parece se nos revelar: a metáfora
do sonhado amor à espera – “sem nome, sem rosto, guardado” – dá lugar ao amor à
117

vida, à nova forma de vida intacta. Parece ser o momento de explorar novos modos
de narrar, novas posturas para assumir, novas identidades para resgatar, constituir.
E esse universo de igualdades será rica e impecavelmente retratado nos romances
Exílio, A sentinela e O quarto fechado. Neles, o contexto familiar sofre profundas
mudanças, assim como o modo de referência à condição feminina. Um novo perfil e
uma nova forma de explorar a formação psicológica das personagens protagonistas
se constituem a partir de uma reinventada forma de narrar: novos processos da
memória seletiva são constituídos, assim como são reelaboradas as pessoas que
influem nas tomadas de decisão dessas personagens, e a conscientização da
necessidade de essas personagens agirem e fazerem suas escolhas por si mesmas,
ao invés de dependerem inteiramente da decisão – ou condenação – dos outros.
Uma declaração visível dessa mudança intencional de atitude –
especialmente no que diz respeito ao comportamento da mulher – pode ser
sinalizada, dentre vários outros momentos, neste: “Estou no coração de um ciclo que
se fecha; eu sou o mar, com peixes e medusas, sou a viagem também.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 162). Como se pode ver, Nora – evolução de Anelise? –,
personagem principal e narradora, ao contrário das personagens femininas dos
romances anteriores, não enlouquece e não sucumbe às convenções de uma família
tida como tradicional. Não há invólucros, e não há mais sótãos: a mulher se
autoapresenta como o lugar das grandes e perigosas coisas – como o mar, seus
peixes e suas medusas –, mas também como o lugar do eu reconquistado,
reconstituído, reencontrado: “neste momento, a noite não me ameaça; a gruta não
me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão fora de todo o tempo humano.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 163). Essa conscientização temporal da personagem
feminina situa a condição da mulher em um outro espaço: no espaço que privilegia o
subjetivo, o individual, a partir de uma visão do coletivo. Essa noção nos parece
sintomática da obra de Lya Luft, e nos remete a uma das configurações que o estilo
assume, para nós, nessa análise literária: a visão de um “detalhe sintomático”, que
procura “sempre descrever a rede de desvios ínfimos que permitem caracterizar a
visão de mundo de um indivíduo, assim como a marca que ele deixou no espírito
coletivo.” (COMPAGNON, 2001, p. 169).
Em Exílio, temos também esse novo ambiente romanesco, modificado pela
distinta forma com que os personagens se posicionam diante das tensões
abordadas nos primeiros romances, embora, nele, essas abordagens sejam
118

realçadas com certa timidez, especialmente no que diz respeito à nova postura da
mulher frente ao seu destino. Aqui, a história da narradora envolve uma série de
conflitos inerentes à problemática familiar: orfandade, internato, casamento,
separação, amante, direitos sobre o filho da primeira relação, dentre outros.
Entretanto, há neste contexto um dado novo em relação aos romances anteriores,
uma evolução em nível da posição das personagens frente a essas tensões
familiares: é o da profissionalização da mulher, que agora sai da esfera doméstica e
atinge o espaço público pelo trabalho externo. A palavra timidez usada acima
também diz respeito a essa nova realidade, uma vez que ela se esboça
paulatinamente: nos romances anteriores, as mulheres estavam confinadas aos
espaços especificamente domésticos, sem rumores de uma profissão ou algo que
lhes conferisse algum valor em nível exterior à própria casa. Como bem nos afirma
Elódia Xavier, “O ‘destino de mulher’, apesar de insatisfatório, é um referencial
seguro; aqui, as relações de gênero estão bem esquematizadas, com todos os
papéis distribuídos. Não há erro. Como em Clarice Lispector, o espaço doméstico
anestesia e protege do perigo de viver...” (XAVIER, 1998, p. 70). Em O quarto
fechado, por exemplo, a personagem Renata já se apresenta a partir de um outro
espaço, além do doméstico: no do palco, no do mundo das artes. A conscientização
da busca por este lugar, exterior à casa, já lhe havia acometido: “ – Eu não sirvo
para casar – dizia ela antigamente, vendo mulheres de sua idade rodeadas de
filhos..” (LUFT, O quarto fechado, 1984, p. 15). E embora a personagem tivesse
essa consciência, os preceitos culturais, a lei do pai que ditava as regras do jogo
social se lhes imperaram com maior incidência: “Pianista de sucesso, Renata
descera dos palcos para o mundo de Martim, um mundo terra-a-terra, forte e
racional.” (LUFT, O quarto fechado, 1984, p. 15).
Quando me referi à palavra timidez, referi-me à maneira pela qual esse novo
contexto se aproximou das temáticas abordadas por Lya Luft. E elas se
apresentaram de maneira tímida em função de já retratarem, de um lado, a
possibilidade de uma nova vida para a mulher, e de outro, a dificuldade de suas
personagens desvencilharem-se do contexto social patriarcal. Este romance
preconiza, por exemplo, além da profissionalização da mulher, a capacidade de
decidirem-se por outra vida, que não fosse restrita somente ao âmbito do doméstico.
Isso nos é visível através da separação de Renata, que representa uma fresta na
nova representação dessa condição feminina:
119

Tentara trocar a arte pela vida doméstica, mas cedo o novo ambiente lhe
pareceu vulgar. Até ali concentrada em si mesma, não conseguia se
repartir: muita solicitação agora, e ela impotente. [...] Embora solitário, duro,
árido, para ela o exercício da arte fora menos complexo do que o exercício
do amor humano. (LUFT, O quarto fechado, 1984, p. 15-16).

Em Exílio, essa realidade avança um pouco mais: a Doutora, ou a Rainha


Exilada – como é chamada a personagem principal –, é uma mulher forte, que se
recompõe em meio a tantos outros órfãos, também exilados por não se configurarem
aos padrões entendidos como convencionais. Assumindo sua profissão de médica
obstetra e dedicando-se inteiramente a ela, a Doutora já nos expõe a uma realidade
modificada, evoluída (especialmente em relação á Renata): a de conciliar a intensa
vida profissional com a vida familiar. Mas ainda não é o momento da revelação da
nova condição feminina, abordada por Lya Luft, nessa nova trilogia romanesca.
Mesmo mediante uma profissão notavelmente reconhecida, a Doutora vem
representar, também, o legado da culpa deixado pela ideologia da sociedade
patriarcal: a mulher ocupa novos espaços, consegue sair do ambiente doméstico,
mas se culpa mediante essas conquistas pessoais, já que entende que essas
conquistas não são conciliáveis à esfera familiar, isto é, os conflitos entre marido e
mulher, entre mãe e filho intensificam-se na medida em que a mulher não se dedica
inteiramente à vida familiar. Isso se manifesta com muita nitidez quando a
personagem descobre o primeiro caso de Marcos, seu marido, que passa noites fora
de casa, e sempre que volta, chega atormentado e pálido. E essa culpabilidade em
relação ao provável fracasso de seu casamento se inscreve em:

Comecei a achar que minha profissão me mantinha demais longe de casa;


não era incomum levantar da cama e sair no meio da noite para atender a
um parto; [...] Talvez Marcos tivesse razão em procurar outra mulher: se ele
não era um canalha, eu devia ter minhas culpas. (LUFT, Exílio, 1991, p. 43).

No que diz respeito ao filho, ela nos narra: “Passei noites lembrando o quanto
o deixara de lado correndo atrás da minha profissão, e quantas vezes o pai cuidava
dele, levava a passeios, fazia dormir enquanto eu atendia partos.” (LUFT, Exílio,
1991, p. 45).
Note-se, nesses trechos, o ambiente feminino vislumbrado de um outro lugar:
a mulher tem uma vida exterior à da casa, mas não a vivencia paralelamente à vida
familiar. Helena Parente Cunha, em seu artigo intitulado A mulher partida: a busca
do verdadeiro rosto na miragem dos espelhos, bem nos fala desse provável tributo
120

que a mulher tem que pagar pela transgressão: “A mulher moldada ideologicamente
pelo paradigma não poderia ter chance de fugir das balizas falogocêntricas, sem
arcar com o peso da censura interna ou superego.” (SHARPE, 1997, p. 119).
Ela reafirma que embora seu texto não seja o lugar para discutir o que Freud
afirmou sobre o superego da mulher, e que tanto irritou as feministas do mundo
inteiro, há que considerar o papel condenatório à provável desobediência aos
padrões ideologicamente culturais. Segundo ela,

[...] todos nós, homens e mulheres e em conformidade com as


características generalizantes, passamos pelo processo de internalização
dos códigos da cultura patriarcal restritiva, que não aceitam infração sob
pena de provocar o sentimento de culpa [...]. A mulher brasileira das últimas
décadas teria que pagar o seu tributo pela transgressão. (SHARPE, 1997,
p.119).

Mas ainda assim, a despeito dessa culpabilidade feminina frente aos


desafetos familiares, a personagem narradora de Exílio, ao contrário de Anelise, de
Renata, de Gisela e de Alice, decide “seguir em frente”, apesar de tudo. O traço
sintomático da clausura, do invólucro, do rastejar-se, do confinar-se em si mesma,
abre espaço para uma nova representação da mulher, num novo estilo de escrita: no
da identidade que se constitui em diferentes modos de agir, ou seja, numa
identidade que se afirma enquanto diferença.
O ponto cego, último romance de Lya Luft – publicado em 1999 –, parece
coroar as figurações ambivalentes do estilo, especialmente no que diz respeito ao
seu caráter ambivalente: o de ser objetivo, enquanto código de expressão, e o de
ser subjetivo, enquanto reflexo de uma singularidade. Essa objetividade circunscreve
todo o universo romanesco de Lya Luft, uma vez que esse lugar de exposição do
feminino adquire feições e fisionomias próprias, decorrentes, especialmente, da
situação das mulheres ancoradas às raízes históricas que as constituíram. Já o tom
da subjetividade, enquanto marca de uma singularidade, parece direcionar nosso
olhar para o reflexo de um eu que se expressa através de uma escrita na sua própria
escrita. Essa aproximação entre o eu e uma escrita que o inscreve nos direciona ao
olhar que Roland Barthes direciona para a questão do estilo. Em O Grau Zero da
Escritura, ele assinala que seu objetivo é estudar “uma realidade formal”, que
independe da língua e do estilo. A essa realidade ele nomeia escritura: “uma
solidariedade histórica”, um termo que emerge, segundo ele, entre a língua e o
estilo. Para ele, se a língua pode ser considerada como “um corpo de prescrições e
121

hábitos”, comum aos escritores de determinada época, ela é como “uma Natureza
que passa inteiramente através da fala do escritor.” (BARTHES, 1982, p.121).
Sendo, então, “um objeto social por definição, não por eleição”, está aquém da
literatura. O estilo, diferentemente, está quase além:

[...] imagens, um fluxo verbal, um léxico nascem do corpo e do passado do


escritor, e tornam-se pouco a pouco os próprios automatismos de sua arte.
Assim, sob o nome de estilo, forma a linguagem autárquica que só
mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor: [...] é uma forma sem
destinação, o produto de um impulso, não de uma intenção [...]. É a parte
privada do ritual; eleva-se a partir das profundezas míticas do escritor [...] é
propriamente um fenômeno de ordem germinativa, a transmutação de um
Humor [...]; seu segredo é uma lembrança encerrada no corpo do escritor.
(BARTHES, 1982, p.122-123).

Barthes confere ao estilo um certo caráter de brutalidade, em função de não


considerá-lo como produto de uma intenção. É interessante notar, também, que
embora nos seja visível que a grande preocupação de Barthes é a definição de
escritura, ele destaca pontos na concepção do estilo que bem mais tarde, em O
prazer do texto, ele irá ressaltar no próprio conceito de escritura. Essa aproximação
se dá nas seguintes colocações: o estilo nasce do corpo e do passado do escritor; o
estilo é inconsciente; o estilo é a lembrança encerrada no corpo do escritor.
A mesma noção de insistência que Barthes confere à escritura perpassa pelo
estilo que também pretendo realçar aqui.
Conforme já foi dito antes, Lya Luft parece fazer, em O ponto cego, mais que
uma completa reviravolta na postura de suas personagens: ela mesma, enquanto
autora, parece também revisitar, reler, criticamente, sua própria obra. Esse romance
é especialmente imbuído de seus antigos personagens, que ilustram epígrafes e nos
conferem um olhar de uma certa unidade em relação à sua obra. O sétimo romance:
“O sete encerra [...] uma ansiedade pelo fato de que indica a passagem do
conhecido ao desconhecido: um ciclo concluído, qual será o próximo?”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 828). E é isso que Lya Luft parece realizar
aqui: a concretização da evolução de um pensamento, de um estilo que se desvia
dos tradicionais parâmetros culturais e sociais. Parece haver uma cadeia de
sentidos que envolve o prazer da criação desse novo mundo, especialmente se visto
enquanto sétimo: “[...] uma restauração das forças divinas na contemplação da obra
executada.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 828).
122

Cada epígrafe parece ter sido minuciosamente escolhida, como menção –


talvez honrosa – àquelas personagens desoladas, desencontradas, abandonadas,
submetidas a imposições de ordem aparentemente ideais. Aqui, a personagem
narradora renasce completamente para a vida. Já a família, embora continue sendo
representada como a fonte geradora de conflitos e repressões, se nos apresenta
como instituição falida, desreferencializada da suposta segurança que o casamento
lhe conferia.
Sob o olhar de uma criança – personagem principal chamado apenas de
Menino –, a narrativa se constitui em meio a conflitos, a perdas, a dúvidas e a vários
desencontros. Há que se observar que o universo romanesco é o mesmo no qual se
constituem os romances anteriores: a casa, o ver por detrás das portas, o olhar do
alto das escadas. Distintamente, a postura dos personagens: pela primeira vez se
narra a partir do ponto de vista de uma criança, que não queria crescer – queria ter,
para sempre, sete anos – e que atendia simplesmente por Menino: “Eu que invento
e desinvento, eu que manejo os cordéis, eu decidi parar de crescer”. (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 15).
A referência ao número sete, embora já tenha sido sugerida aqui, é também
feita no próprio romance, pelo Menino: “Para sempre sete anos – esse número é o
mais bonito: são sete os patamares, sete os pecados e sete os mares, sete a conta
do mentiroso, gatos dourados têm sete vidas, bela é a lua sobre o campo quando a
morte começa a desdobrar as asas”. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 21).
123

Qual a história que aqui desejei contar? De alegria e


descoberta, de medo e segredo, de afetos. De uma criança
assistindo ao que se revelava quando alta noite a gente abre
os olhos assombrados. [...] Houve uma infância feliz e
protegida numa casa com jardim e um lago que nascia de um
oculto olho d’água (que eu imaginava com íris de cor, pupila,
pálpebras, e um abrir-e-fechar secretíssimo que outros não
podiam ver). Mas havia o embaixo dos móveis e o atrás das
portas, havia a possibilidade de tudo não ser o que parecia.
Havia sempre uma convocação para o risco e a surpresa. Tudo
isso prendeu-se em mim como um quadro há tanto tempo na
parede, que se o removerem, ficará no reboco outro quadro,
desenhado em poeira e teias, silêncio e sobressalto.
Lya Luft

5 CORPO E MEMÓRIA: INTERFACES DO TRÁGICO

Tudo nasce da minha fantasia, da memória; da funda garganta do


pensamento, onde nem eu penetro mas de onde sou parida todos os dias,
dormindo e acordada: É de lá que venho, dedos enredados nos fios que
transformo em tapetes. [...] Este é o meu território: desenrolando fios,
tramando novas urdiduras, como destapando um furo pelo qual eu mesma
124

me escoasse para elaborar melhor o que espera ser modelado. (LUFT, A


sentinela, 1994, p.15).

Corpo e memória configuram-se, neste estudo, como artifícios imprescindíveis


na constituição das narrativas de Lya Luft. Especialmente em seus romances,
podemos sentir os efeitos que esses corpos e essas memórias suscitam, enquanto
elementos narrativos. A força da imaginação estritamente criativa parece
transcender o espírito da lembrança para corporificar-se em seres / personagens
mais vívidos, ainda que eles sejam reconhecidos, simplesmente, como seres de
papel. Estes, muitas vezes, marcados pela diferença que se expressa a partir da
constituição de um corpo que os adorna. A memória, aqui, não se nos apresenta
como um elemento constitutivo de veracidade junto aos fatos, embora O lado fatal
(poesia, publicado em 1988), e Mar de Dentro, publicado em 2002, sejam
considerados, pela própria Lya Luft, como os únicos livros “circunstancialmente
autobiográficos” já escritos por ela.
Por se tratar de um estudo sobre a obra de Lya Luft, enfatizo que, a despeito
da presença dessas produções autobiográficas no conjunto de sua obra, a memória
não será analisada em seu contexto puramente memorialístico, e sim sob o olhar
que a indica como uma fonte constituinte de personagens / corpos e de situações
diversas, acerca da realidade e dos conflitos humanos. Afinal, “memória e palavra,
no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível”. (BOSI,
1992, p. 28). Reverter o tempo em favor de si mesmo é o que caracteriza, também, a
vivência das personagens de Lya Luft, que, em sua maioria, se acreditam capazes
de reconstituírem suas vidas, assim como suas frustrações, suas opressões, suas
submissões e muitas outras tensões a partir de uma realidade entendida como
realidade familiar. Tudo parece, então, partir de uma constante necessidade de
rememoração, capaz de conduzir situações específicas no que diz respeito à
vivência de diversas circunstâncias de afetos e desafetos, de doenças, de opressão,
de abandono, de traumas, de conflitos, e, dentre várias outras, a da
responsabilidade sobre as escolhas que cada personagem assume no decorrer de
suas vivências fictícias. Em se tratando do pacto autobiográfico explicitado nos livros
de memórias da autora, não poderia deixar de realçar, aqui, o enlace entre as
memórias da vida vivida e as que entendemos como memórias da ficção. Tanto em
Mar de Dentro – memórias da infância – como em O lado fatal – a vivência da morte
de seu segundo marido, Hélio Pellegrino –, a necessidade de se escrever sobre um
125

tempo passado real e vivido, e, ao mesmo tempo, a de se inscrever nele, se nos


apresenta nas primeiras páginas desses livros. O que Philippe Lejeune chama de
pacto autobiográfico se cumpre, portanto, em ambos os textos. Em Mar de Dentro, a
presença desse tipo de escrita, na qual se relatam fatos da própria vida, se anuncia
em: “Aqui não se fazem memórias: aqui se trama a arte. Esta não é apenas a minha
voz, mas a de muitas águas. Aqui não se organiza simplesmente um livro: aqui se
fala de encantamentos. Quem não os aprecia, não deve me ler.” (LUFT, Mar de
dentro, 2004, p. 7). Embora a autora afirme que neste livro não se fazem memórias,
elas são, sim, o tecido consistente dessa narrativa. Ao dizer que “aqui não se
organiza simplesmente um livro”, entendemos que talvez, nos livros, não caibam
somente os encantamentos. As “inúmeras vozes”, que poderiam comprometer o tom
autobiográfico do livro, por não se apresentarem através de uma única voz, também
abrem espaço para uma Lya que se vê dividida em várias, especialmente quando
lança o seu olhar vívido de hoje aos tempos de uma infância remota – mas somente
no tempo: “Aquela criança são muitas: são mulheres, são pássaros (são bruxas),
foram galhos da mesma raiz da minha história. Com seu olhar de retrato e as roupas
de criança, trançando passado e futuro, desenharam o jardim das improváveis
memórias.” (LUFT, Mar de dentro, 2004, p.17). E embora a autora declare: “Sinto-me
um pouco intrusa vasculhando minha infância.” (LUFT, Mar de dentro, 2004, p. 13),
ela não abre mão de registrar as impressões de um tempo muito precioso: o tempo
das reais lembranças, que, como discutiremos adiante, é um dos traços constituintes
do estilo em sua escrita. Além da descrição dos sentimentos, dos espaços e dos
registros mentais do passado, há a preocupação em descrever e em registrar os
lugares físicos, também constituintes de suas narrativas ficcionais: “A casa onde
nasci, embora já não seja minha, permanece intacta em mim como a escultura de
uma caravela em uma garrafa: uma casa dentro da memória.” (LUFT, Mar de dentro,
2004, p. 19). A imagem dessa casa, que permanece intacta “como a escultura de
uma caravela em uma garrafa”, nos remete, intuitivamente, à essencialidade do
trágico, entendida por Gerd Bornheim como algo “inerente à própria realidade
humana”, e pertencente, assim, “de um modo precípuo, ao real.” (BORHEIM, 2007,
p. 72). E como estamos nos referindo a fatos de uma dada realidade, não
poderíamos deixar de realçar, também aqui, o caráter do trágico enquanto formador
do estilo na obra de Lya Luft. Podemos visualizar, na imagem da caravela, entendida
como “[...] navios, por excelência, dos descobrimentos marítimos...” (FERREIRA,
126

1999, p. 406); e também como “... o navio e a arca dos conhecimentos secretos e
das revelações que hão de vir.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 461), toda a
história de vida familiar constituinte das incólumes memórias de sua infância, e,
portanto, para a autora, inesquecíveis em sua essencialidade. E toda essa história
intocável, associada à proteção segura – já que se vê guardada em uma garrafa –,
nos aproxima de um dos sentidos conferidos ao termo garrafa, uma vez que esta,
enquanto símbolo, está diretamente associada ao segredo, ao sagrado, e, por
conseguinte, ao intocável: “O valor do frasco é metonímico, procede de seu
conteúdo, tão volátil quanto precioso, e que esse frasco ou garrafa é o único capaz
de conter porque, ao contrário dos demais vasos, a garrafa é tampada, hermética.”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.460) Logo adiante, ainda abordando o termo,
simbolicamente, acrescenta: “Contém um elixir, um filtro: elixir da longa vida”, que
proporciona “uma espécie de embriaguez.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009,
p.460). E a embriaguez, segundo Nietzsche, está estreitamente ligada à vontade de
lucidez, à questão do sonho de ser, que tem para ele a perspectiva de que se a base
do belo é o sonho de ser, então a base do sublime é inerente a uma embriaguez do
ser. Belo e sublime são vocabulários centrais na filosofia de Nietzsche. Embora ele
reconheça que a beleza é uma aparência, ele também admite que se é aparência, “é
porque há uma verdade que é a essência.” (NIETZSCHE apud MACHADO, 1985, p.
22). Em Nietzsche, este belo não tem seu sentido atribuído simplesmente à
classificação de que “as coisas belas são belas”. Para ele, “quando se diz que algo é
belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem nada se enunciar sobre sua
essência.” (NIETZSCHE apud MACHADO, 1985, p.22). E ao massacrar a essência,
a vontade, a verdadeira realidade, essa beleza torna-se, segundo ele, “uma
intensificação das forças da vida que aumentam o prazer de existir.” (NIETZSCHE,
1985, p. 23). E, diante disso, a aparência assume um caráter de necessidade, ou
seja, mesmo que a essencialidade das coisas seja vista somente a partir do que nos
é aparente, essa mesma aparência se faz inteiramente necessária para a libertação
da dor – ou do sentimento trágico. Essa perspectiva nos leva, então, a reconhecer
que o trágico se manifesta como um elemento indissociável da escrita de Lya Luft,
ainda que essa escrita tente preservar o seu caráter de realidade em relação aos
seus espaços marcadamente ficcionais. O real e o fictício parecem pactuados numa
mesma tessitura, especialmente quando tramada por uma autora para quem “o
pensado e o real não se distinguem nem cabem em palavras: rebrilham nas
127

entrelinhas e florescem na intuição.” (LUFT, Mar de dentro, 2004, p. 34). Mas é o


caráter de realidade que prevalece no discurso da própria autora, destacado na
seguinte declaração:

Este livro nasce da lembrança das pessoas e das coisas, das minhas
conjeturas a respeito de tudo o que circulava entre elas – e do que se
desenhava além desse universo. Quem escreve resgata e recobra, inventa
ou transfigura. Algo pode se perder se eu for minuciosa demais na tentativa
de separar a menina da mulher: pois as duas igualmente me sustentam. É
preciso andar com cuidado entre essas presenças, as que prosseguem
comigo e as que foram se apartando levadas pelo acaso, pela morte, pelo
apagamento da memória. Pois como o vento do mar não sabe que não
existe mais o mar – e pode trazer rumor de ondas e odor de maresia a
desertos onde tudo isso pairou há milhões de anos –, também o passado
não sabe que não existe mais a história vivida. (LUFT, Mar de dentro, 2004,
p. 124).

Ainda transitando pelo universo memorialístico, temos, em O lado fatal,


memórias que se fazem narradas em seu mais alto grau de expressividade, ou seja,
na poesia. Os poemas nascem a partir de um doloroso “depoimento pessoal”, no
qual o testemunho da experiência de uma grande perda se compõe também na
sensação de extrema impotência diante da morte. Mediante a efemeridade do
cotidiano, aparentemente tão concreto e indissolúvel, essas lembranças se dão
escritas, como testemunhas dessa situação circunstancialmente vivenciada:

Tudo parecia tão rotineiro: lembrei até de levar nossas escovas de dentes e
o livro que estávamos lendo juntos. Tudo cotidiano: naquela manhã
tínhamos comentado na mesa do café as notícias do jornal. Fomos para o
lugar onde você morreria menos de dois dias depois, e era uma manhã de
sol claro no Rio de Janeiro, eu no banco de trás, inclinada para diante,
acariciando seu rosto. (Até a barba você tinha feito.) Tudo absolutamente
cotidiano: você falando e rindo, disfarçando um mal-estar menor. Procuro
saber, mas não descubro se no meu coração se agachava o pressentimento
de que tudo estaria acabado em poucas horas. (Essa é a grande traição de
algumas mortes.) (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 29).

Lya Luft, através de sua voz autoral, tenta imprimir, em suas ficções, traços
que revelem a incessante busca de um sentido para o que ela mesma diz
desconhecer. E ao definir-se como escritora, nos declara:

Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando sobre o que
me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante – às
vezes trevoso – que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais
cotidianas. Fazer ficção é, para mim, vagar à beira do poço interior
observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na
superfície. [...] Minha literatura não emerge de águas tranquilas: fala de
minhas perplexidades enquanto ser humano, escorre de fendas onde se
128

move algo que, inalcançável, me desafia. Escrevo quase sempre sobre o


que não sei. (LUFT, O rio do meio, 2003, p. 13-14).

Essa definição parece ir ao encontro do tecido dos versos que denotam o luto
subjacente ao sentido do trágico enquanto páthos: “Páthos é o que sofre, o
sofrimento, mas também a experiência que, para os humanos, se adquire somente
na dor.” (LOURAUX, 1988, p. 27). Esse sentido realmente trágico, marcado por um
sofrimento real, pode ser visualizado na ponte que se estabelece entre o vivido e o
desconhecido, o real e o concreto, e a ínfima distância entre a vida e a morte:

Tanto escrevi sobre a morte em livros e poemas nesses anos que sempre
achei que a entendia um pouco. Mas agora que ela me dilacerou a vida, me
rasgou o peito, me levou o amado, sinto que mal começo a compreender
sua mensagem: tirando-o de mim, a morte o devolve para que seja mais
meu. Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado. Nem Deus o
tirará daqui. (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 43).

É possível também reconhecermos, no trágico, sua força sublime: aquela que


abre caminho para o novo, na qual há, simultaneamente, uma afirmação da vida
diante do reconhecimento de uma história que já passou, cronologicamente, e de
outra que jamais passará, ou seja, a que se constituiu no interior do sujeito. Para
isso, é necessário nos atentarmos para os significantes e para as marcas que
compõem a representação de uma imagem desse ser escrito, inscrito no próprio
texto, enquanto testemunho perante a exuberância que revela nesse novo sentido
para o trágico: o do sublime. Lya Luft parece reconhecer (–se) nesse peculiar modo
de sublimação: “Hoje, três meses e dois dias depois de sua morte, levantei-me da
mesa onde escrevia, mudei de lugar os móveis e a máquina. Não era para ter
melhor luz ou mais sossego: era apenas para ver o pôr-do-sol. (Foi o primeiro sinal
de que ainda estou viva.)” (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 61).
Aqui, somos levados ao que Nietzsche entende como finalidade da tragédia.
Para ele,
[...] a finalidade da tragédia é produzir alegria. A tragédia, mostrando o
destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz sofrimento, mas
alegria; uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação, mas
a expressão de uma resistência ao próprio sofrimento. (NIETZSCHE apud
MACHADO, 1985, p.31).

Alegria e resistência parecem cintilografadas na fala: “(Foi o primeiro sinal de


que ainda estou viva.)” (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 61). Nesses dizeres,
especialmente, lutar contra as palavras parece não ter sido a luta mais vã.
129

5.1 A memória e seus espaços físicos e mentais

[...] selecionar lugares e formar imagens mentais das coisas que querem
lembrar, e guardar essas imagens nesses lugares, de modo que a ordem
dos lugares preserve a ordem das coisas, e as imagens das coisas denotem
as próprias coisas; e devemos empregar os lugares e as imagens assim
como uma tábua de cera sobre a qual são inscritas as letras. (YATES, 2007,
p. 18).

Partindo dessas primeiras considerações sobre a memória, em seu caráter


estritamente memorialístico, lançar-nos-emos ao labiríntico bosque das outras
memórias: aquelas que pretendem formar as imagens mentais, a fim de que essas
imagens denotem as próprias coisas; aquelas nas quais, como a um bloco mágico,
preservamos a lembrança de fatos escolhidos em detrimento do esquecimento de
tantos outros indesejáveis.
Em sua obra, Lya Luft privilegia a memória enquanto um precioso elemento
na composição de seu palco ficcional. Os conflitos humanos e os espaços físicos em
que a problemática da condição humana se instaura são elaborados a partir de
reminiscências pretéritas, que quase sempre incidem sobre atitudes do momento,
presente e futuro, em que são narradas.
Desde o primeiro romance de Lya – As parceiras –, os acontecimentos se dão
a partir da rememoração de dores e opressões passadas. Geralmente, as vozes
narrativas partem de um tempo entendido como presente em busca de revelações,
que, para elas, teriam suas raízes na infância. Para essas personagens, resgatar o
passado seria a única possibilidade de conhecerem a verdadeira causa de suas
fadadas escolhas, ou mesmo as raízes de suas malsinadas vidas. Essas revelações
se dão através de lugares determinados, pois o imaginário romanesco de Lya
parece insistir na necessidade de denotar espaços físicos, geralmente
correspondentes aos espaços mentais: o espaço dos conflitos humanos – a mente –
parece se organizar como o espaço – físico – da própria casa. Temos, então, nos
romances, como representação da casa e desse espaço físico a que nos referimos,
a presença do Chalé, da Casa Vermelha, do quarto fechado, da sala onde
aconteciam as reuniões de família, do jazigo da FAMILIE WOLF, da casa de frente
para o mar. São determinados e determinantes, nesses espaços concretos, os
espaços para as abstrações: o lugar de pensar, o lugar de reviver, o lugar de agir.
Uma presença marcante, por exemplo, é o sótão da casa de veraneio, o conhecido
130

Chalé, onde Anelise se reencontra com o seu passado: um lugar de recolhimento –


ou de morte? – singularmente destinado ao reencontro com os fantasmas familiares:

Vim ao Chalé resolver minha vida, se é que ainda há o que resolver. [...]
Cidadezinha de veraneio, o lado pobre onde moram os pescadores e o lado
dos veranistas junto ao mar. Os pescadores chamam nossa casa de “casa
dos fantasmas”. Dizem que aqui se vêem coisas, se ouvem vozes. Mas
para nós, da família, sempre foi o “Chalé”. Uma construção grande e antiga,
feia, de madeira pintada em cor ocre. Parece um caranguejo saindo da
praia, tentando escalar o morro que surge inesperado das ondas. (LUFT, As
parceiras, 2003, p. 15).

Em A asa esquerda do anjo, esses lugares selecionados, especialmente para


a formação das imagens mentais, se constituem na imagem do jazigo, onde se
elencam todas as pessoas da família Wolf:

Frau Wolf abria com uma grande chave preta a porta de vidro e ferro
trabalhado, e mergulhávamos no silêncio roxo dos vitrais. Eu queria ouvir as
vozes dos nossos mortos, deviam sussurrar coisas entre si: meu avô,
minhas tias e tios mortos na juventude ou na infância; primos; alguns
parentes afastados; meu irmãozinho Otto; meus bisavós – todos hirtos,
dormindo limpos e compostos em suas gavetas de pedra que ninguém abria
mais. Os mortos eram enigmáticos textos invioláveis. (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 33).

Em Reunião de família, em uma sala misteriosa, uma mesa de jantar e um


espelho compõem o cenário da ordem, da submissão, dos futuros questionamentos
e dos reflexos dos fantasmas ali presentes:

Formamos uma estranha cena à mesa do jantar. Por que não trocam as
lâmpadas da casa por outras mais fortes? Nessa meia-luz parecemos
fantasmas. Uma segunda família janta no espelho, que vai do aparador até
o teto. Uma feia rachadura sobe do canto esquerdo até o meio e divide meu
rosto obliquamente em duas partes. (LUFT, Reunião de família, 2004, p.
55).

O espaço nesse romance, especialmente observado sob o reflexo do espelho,


mais que aos conflitos, parece direcionar nosso olhar para a questão da hierarquia,
da ordem que se dava através de lugares deliberadamente marcados: “Meu pai está
na cabeceira. [...] Aretusa à minha direita. [...] Evelyn à minha frente, ao lado do
marido.” (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 55-56). É importante ressaltar, aqui, a
visão da narradora, que já se posiciona consciente da farsa da representação da
família: máscaras e farsa são palavras que lhe vem através da imagem do espelho.
Em total consciência da decadência familiar, a narradora conclui:
131

Que grande farsa representamos diante do espelho. [...] Estamos


decadentes, estamos podres. [...] Apenas a família do espelho, em sua
existência de sombras, não liga para essas coisas, o seu mundo é outro. Ali,
todos estão salvos. (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 56).

Em O quarto fechado, temos a imagem da morte personificada na vida de um


morto, repensada na medida em que ocupa o espaço físico de uma sala, onde todos
se posicionam em torno do caixão em que um dos filhos gêmeos estava sendo
velado:
Havia poucas pessoas velando o morto àquela hora, nas cadeiras junto às
paredes laterais da sala onde tinham arredado móveis para dar lugar. Os
que saíam da casa erguiam a gola do casaco, franziam a testa, antes de
mergulharem num mundo aniquilado pelo nevoeiro. A névoa grudava-se na
casa, querendo entrar, enroscava-se nas plantas, nas pessoas, insistente e
desesperada. Mesmo assim, ao sair todos respiravam fundo o ar molhado:
era melhor do que a atmosfera lá dentro, o enjoativo odor da morte, velas e
flores, e corpos de pessoas que sofriam. [...] No meio da sala, sobre pernas
de metal enfiadas na sombra, o caixão e seu passageiro pareciam boiar
numa água escura. O pai, ao lado dele, esticou as pernas procurando uma
posição melhor, mas encolheu-as de novo, envergonhado de mover-se
ainda. [...] Da outra margem Renata observava disfarçadamente o marido.
(LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 14).

Mais adiante a essa descrição, há outra manifestação interessante da


questão do espaço físico, no que diz respeito ao fato de a ordem dos lugares
preservar a ordem das coisas: somente depois de morto, a mãe consegue acomodar
o amor do filho em seu coração: “Morto, o filho começava a ocupar o coração de
Renata como quem se acomoda num quarto.” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p.
89).
Em Exílio, a Casa Vermelha é o lugar onde os conflitos se alojam. Em meio a
personagens distintos, a narradora busca se reconhecer mediante aquelas outras
pessoas, que não tem nenhum tipo de ligação nem física nem familiar. O cenário é
uma casa decadente, em que cada personagem vive exilado, refugiado em seus
próprios conflitos. É nessa estranha e nova família, destituída de valores sociais
determinantes e predeterminados, que a Doutora também irá se lançar, em busca do
mistério que circunda sua vida: a morte da mãe suicida e o estado de demência em
que vive o irmão louco e seu enfermeiro. Decadência, sombras e mistério integram
uma trama que se desvelará a partir de profundas e marcantes lembranças. Sobre o
cenário que compõe a Casa Vermelha, temos a nítida visão do exterior que abriga
os conflitos interiores: “O melhor da Casa Vermelha são as paisagens: à frente, a
floresta tentacular; atrás, o despenhadeiro bruto, abaixo a cidade fumacenta; mais
132

além, o mar. Navios.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 19). E dentro do desenho dessa
paisagem tão elaborada, a identificação da personagem enquanto mais um ser que
habita esse espaço, reconhecido como uma pensão medíocre:

Que mundo, o desta casa. Deve ter sido luxuosa: hoje abriga náufragos que
aportam aqui Deus sabe como e de onde; e para quê. Formamos uma
fauna e tanto: as Moças, que parecem ser um casal; eu, a mulher retraída,
coberta de vitiligo, que não fala com ninguém; minha vizinha de frente, velha
e alquebrada, provavelmente um tanto caduca; e pouca gente mais; [...].
(LUFT, Exílio, 1991, p. 18-19).

De acordo com Frances Yates, uma das atribuições conferidas ao papel da


memória é a de que “as imagens das coisas denotem as próprias coisas.” (YATES,
2007, p.18). Essa atribuição é perfeitamente perceptível nesse contexto narrativo,
em que a Casa é o símbolo do encontro de suas personagens com suas próprias
incertezas. Em outra passagem do romance, essa imagem de singularidade e de
desolação se constitui mediante a seguinte descrição:

Esta é uma casa singular; alguns no bairro a chamam de Castelinho, mas a


maioria a conhece como Casa Vermelha; pois é esta a cor desbotada de
suas paredes, dentro e fora, lascas de tinta saindo por toda parte como pele
velha revelando feridas mais velhas ainda, em tom alaranjado. Uma das
construções mais originais que já vi: pena estar transformada numa pensão
decadente. (LUFT, Exílio, 1991, p. 28).

É possível observarmos, aqui, que a imagem da descrição da casa está


intimamente ligada à imagem de cada um de seus moradores: a velha caduca, a
mulher manchada, as moças enamoradas. As paredes desbotadas parecem denotar
as identidades subvertidas, as lascas de tinta aludindo à mulher manchada. O salão
de refeições – o lugar de encontro de todos aqueles convivas estrangeiros para si
mesmos e para os outros – também denota essa condição de precariedade humana:

O salão de refeições é mal iluminado por dois lustres sempre empoeirados


e lâmpadas fracas. Dois ventiladores tentavam em vão espantar o calor. [...]
No fundo do salão, o soturno Enfermeiro palitava os dentes; logo iria subir
com a bandeja de Gabriel. A Velha mais sonhava do que comia: pelas
maneiras via-se que fora uma dama. As moças beliscavam sua sobremesa
entre longos silêncios, por fim a Loura passou para a companheira o seu
pudim quase inteiro. Atrás da mesa da Velha, a Mulher Manchada estava
como sempre com uma revista aberta junto do prato: fingia ler, ou realmente
lia? Passava tanto tempo sem virar a página que acredito que a revista era
apenas um truque: assim, não precisa comunicar-se com ninguém. Os
estudantes, em duas mesas mais afastadas, pareciam as únicas pessoas
realmente vivas: falavam animadamente, riam alto. Não faziam parte da
Casa Vermelha. (LUFT, Exílio, 1991, p.34-35).
133

A cada narração de um novo conflito, a Casa Vermelha se apresenta como


um palco dos sentimentos indecifráveis, embora tenha sido através dele que a
narradora reconstituiu, em suas lembranças, a figura da mãe, e se viu capaz de
reconhecer, nessa mesma figura, as pulsações secretas de uma vida sucumbida ao
isolamento e à mutilação dos desejos mais secretos. E ainda que o questionamento
sobre “o que faço neste lugar decadente, com essas pessoas com as quais nada me
liga, longe do meu mundo arrumado e certo?” (LUFT, Exílio, 1991, p. 42) perpasse
toda a narrativa, é nesse espaço que a narradora constitui uma nova postura diante
de sua identidade, reaproximando, assim, a noção de identidade à noção de gênero
– gender –, uma vez que “tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora
cauteloso, de interpretar uma realidade plena de sanções, tabus e prescrições.”
(BUTLER, 1988, p.139). Deixar o mundo “arrumado e certo” é condição axial para a
reaproximação de uma realidade pungente, não condizente com a realidade
opressora imposta pelas verdades constituintes do sistema patriarcal. Nesse
cenário, a vida é repensada, reinterpretada mediante a contemplação de um
“passado vivo”, presentificado pela memória:

A Casa Vermelha carrega em seu bojo roído pelo tempo, habitado de ratos
e infectado de angústias, toda uma raça de exilados. Cada um com sua
grande nostalgia, sua insaciável sede e sua aflição, tentam adaptar-se como
podem. Uns isolam-se mais ainda, como a Mulher Manchada em sua pele
de renda; outros dando valor ao mais banal gesto de cordialidade, como as
Moças com seu drama secreto; a minha Velha, cada dia absorvendo-se
mais em sabe Deus que memórias ou esperas. Nessa idade acho que a
gente só tem memórias; agachada num presente adusto e calcinado,
contempla o passado vivo. (LUFT, Exílio, 1991, p. 42).

O perfil dessas lembranças infectadas de angústias é também o perfil


reminiscente da imagem da mãe. A escolha por um lugar decadente, que abriga
realidades pungentes, deslocadas de um lugar ideologicamente determinado, é
talvez a fonte basilar da constituição dessa narrativa. A opção por “selecionar
lugares e formar imagens mentais das coisas” (YATES, 2007, p. 18) que se pretende
lembrar, bem como guardar as referidas imagens nesses lugares, parece ter sido
uma escolha da autora. A reconstituição da imagem da mãe que a narradora busca
parece delinear-se também a partir de uma imagem concreta, registrada, aqui,
através da fotografia:
Encolho-me sobre a colcha, ajeito o travesseiro nas costas, contra o metal
frio da cabeceira; apóio os braços nos joelhos, e o queixo em cima dos
braços. [...]. Na parede em frente da minha cama, um único enfeite; porque
tirei todo o resto, quadrinhos e bibelôs de mau gosto, e escondi sobre o
134

armário um Coração de Maria em cores berrantes. Em troca, pendurei


naquela parede um retrato emoldurado: uma menina e seu irmãozinho.
Nossa mãe morreu há pouco tempo, na fotografia vestimos luto fechado, e
temos a cara perplexa de todos os órfãos: como foi que ela nos abandonou,
assim, como? Mas essa expressão também aparece nos nossos poucos
retratos anteriores; porque de certa forma nossa mãe nunca esteve
realmente conosco. Eu, magrinha, morena, feiosa; Gabriel, gordinho e louro,
aqueles olhos claros. Tirávamos poucos retratos. Só famílias alegres
querem ficar registradas. Nós, não tínhamos motivo. (LUFT, Exílio, 1991, p.
27).

Considerando ainda a preciosa função da memória, especialmente entendida


por nós como um elemento indivisível da constituição do espaço romanesco de Lya
Luft, não podemos deixar de realçar a questão da infância, que é também um lugar
de registro de significativas lembranças. Segundo Béatrice Didier,

A infância é esta ‘espaciosa catedral’ onde as mulheres gostam de retornar,


e se recolher: parece-lhes que lá é possível reencontrar sua verdadeira
identidade, como numa nostalgia de sua integridade original. Nostalgia
talvez de uma linguagem, feita mais de balbucios e gritos, sensações e
imagens do que palavras. (DIDIER apud BARROCA, 2009, p. 50).

Essa afirmação nos aproxima também do valor que as narrativas de Lya Luft
conferem ao tempo da infância. A imagem mítica, imponente e sagrada da catedral
parece condensar a integridade de algumas lembranças, constituídas a partir de
sensações registradas na própria linguagem:

Minha mãe não era bondosa: raramente se lembrava de mim, e era pior do
que quando me ignorava. Exigia então minha presença, eu tinha de lhe
prestar pequenos serviços: achar os livros, os óculos, um lenço. Era como
se, lembrando-se, resolvesse ao menos tirar algum proveito desse
aborrecido fato: ter uma filha. E nessas horas, quando se irritava, não tinha
uma bela voz: era a única coisa nela que ficava feia. (LUFT, Exílio, 1991, p.
33).

O texto que se constitui a partir da recordação ecoa praticamente em todo o


romance. A despeito disso, como temos insistido na importância das imagens
enquanto elementos que denotam alguma coisa ou algum sentimento, não
poderíamos deixar de realçar a imagem reminiscente que se constituiu a partir de
simples migalhas de pão, no momento em que a narradora tenta se desviar do risco
de um secreto diagnóstico de mal estar:

Naquele dia pensei: ter úlcera era só o que me faltava agora. Para disfarçar
o alarma, fui formando desenhos com migalhas de pão na toalha. E lembrei
o meu tesouro: o cascalho colorido que minha mãe guardava num gordo
frasco transparente sobre o toucador, entre perfumes, caixinhas antigas
135

com pinturas e grampos de cabelo. Quando ela saía à noite com meu pai,
[...] algumas vezes eu me esgueirava até o seu quarto; pegava a bola de
vidro com as duas mãos, esvaziava seu conteúdo na colcha de cetim da
grande cama e fingia que eram rubis, esmeraldas, diamantes. Revirara-os
entre os dedos; espiava contra a luz, tinha vontade de comê-los como flocos
de gelatina. Então seriam o meu tesouro: um pouco da beleza e do mistério
de minha mãe, só para mim.Quando ela morreu, retirando-se
definitivamente para o reino que na verdade já era o dela, foi isso que
guardei: peguei o frasco, enfiei-o no armário entre minhas roupas, e
ninguém notou. Pelo menos, naqueles dias de confusão e dor, não
reclamaram. Ficou sendo meu talismã. (LUFT, Exílio, 1991, p. 15-16).

Tesouro, mistério, talismã: imagens que ressoam memórias. A preciosidade


do ato de lembrar na escrita de Lya Luft se revela na medida em que a memória se
faz novo elemento de recolhimento de estruturas pretéritas individuais e
particularidades. Para cada personagem, em cada romance, há uma situação
ficcionalmente imaginada, tramada e planejada para lançar ao tempo presente um
olhar crítico, capaz de desvendar roupagens diversas, que encobrem realidades
pessoais, familiares, sociais, e tantas outras:

Espalho sobre a colcha os retratos de minha mãe. Mas a melhor lembrança


está no fundo das retinas, na ponta dos dedos. Uma mulher tão grande,
dama antiga de sólida aparência: no entanto, toda fragilidade, medo. Sede.
Perdição. Corpo de parideira, mas o coração no exílio. Tinha uma pele
muito doce: eu raramente a tocava, ela não queria; encolhia-se toda, nossos
abraços e beijos tinham de ser breves e superficiais. Parecia feita para o
amor e a vida, mas era ligada à banda da morte. O Anão estava certo: uma
rainha exilada. Talvez só morrendo entrasse no seu reino para matar sua
grande sede Guardo as fotos. Tiro do armário o frasco de pedrinhas
coloridas. Derramo as bolinhas na cama, meu tesouro. Quantas vezes
minha mãe tomou isso nas mãos, deixou correr entre os dedos, contemplou
à luz do seu abajur? O que lhe teria significado, antes daquele tiro? (LUFT,
Exílio, 1991, p. 142).

Como se pode ver, Exílio tem como alicerce narrativo a imagem fixada na
casa, nos cômodos da Casa Vermelha, que evocam vozes e lembranças de um
tempo bastante remoto. E não é diferente com os próximos romances, A sentinela e
O ponto cego; tampouco foi diferente com os outros romances, anteriormente
analisados. O fato é que como temos trabalhado com a hipótese de que o elemento
trágico é o formador de um estilo na obra de Lya Luft, chamamos a atenção para o
fato de que é a partir de Exílio que a escrita de Lya assume um novo tom. Elementos
recorrentes como as memórias, a imagem das casas, a condição feminina e a
condição humana são reelaborados sob uma nova perspectiva. A visão da condição
feminina, especialmente no que diz respeito às prescrições da sociedade patriarcal,
é vista e abordada de uma nova forma: as personagens começam a se inserir num
136

contexto em que a principal condição a que estão fadadas é a da responsabilidade


sobre suas próprias escolhas.
Em A sentinela, por exemplo, o espaço físico da casa é a tapeçaria onde
Nora, personagem narradora, contabiliza ganhos pessoais e sociais. Sob uma outra
perspectiva, essa personagem se mantém ligada ao espaço doméstico, não o tendo,
porém, como fonte de opressão, resignação e subserviência. A casa, mais uma vez,
é o que estrutura os conflitos emocionais, a matéria da mente:

Estou ligada a essa casa como se ela manejasse os cordões de minha vida.
Respiro, aspiro, toco as coisas amadas, sozinha na manhã que também se
inaugura; e não sinto pânico de estar em falta; dor de ser insuficiente. Estou
bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, observando sem
medo os trechos a percorrer. Vou até a cozinha, Rosa já fez o café; volto
com um caneco do líquido quente, perfumado, sento-me numa banqueta
longe do cone de luz. Este é o dia que vou dedicar à contabilidade; não da
minha pequena empresa, mas dos negócios interiores, mais difíceis de
controlar. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 33).

A imagem da casa se destaca como ponto de partida para as reflexões, como


nos romances anteriores. Entretanto, os ambientes da casa são muito mais leves, e
trazem lembranças bastante suaves. Uma casa onde se pode respirar aspirar, tocar
coisas amadas – realidades apenas sonhadas pelas personagens dos romances
anteriores. A preocupação agora não é apenas uma volta à infância, em busca de
raízes familiares. A questão é contabilizar e administrar os “negócios interiores”, as
novas realidades. Um novo tom também se configura para as imagens de avó, bem
como para os espaços ocupados por ela. Em vez de sótãos, a avó de Nora passou
vários meses morando com eles em um quarto “estreito e mal iluminado”, mas “no
térreo, ao lado da lavanderia.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 44). Uma avó que, ao
contrário de Catarina, por exemplo, optou por sua própria independência, ainda que
apenas doméstica:

Certa vez minha avó passou vários meses conosco, devia estar doente.
Elsa mandou preparar um quarto estreito e mal iluminado, no térreo, ao lado
da lavanderia.
–Embaixo é silencioso e muito mais fresco – disse, como explicação. Minha
avó pareceu perfeitamente feliz. Dividiu o aposento em quarto e saleta, com
uma cortina velha; tinha um fogãozinho de duas bocas em cima de uma
mesa velha; gostava de preparar suas refeições, não acompanhava direito
os horários da família. Eu adorava ir ao seu quarto, onde pairava sempre
um aroma de água-de-colônia e de roupa limpa, vindo da lavanderia. Nunca
faltava um agrado: um biscoito, um refresco, uma história. (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 44).
137

Não havia mais proibições, precauções excessivas e obliteração de verdades;


não havia mais medo de raízes familiares enfermas. As enfermidades pareciam
outras, de tempos entendidos como modernos – como a opção sexual de Henrique,
por exemplo. Ainda sob o efeito desse novo tom narrativo, reconhecemos uma nova
postura feminina: a de assumir-se mulher, ainda que tardiamente: “[...] a vida
começou a me chamar. Após a longa hibernação, pulsou em mim um vago, mas
intenso desejo de viver. Nesse território que verdejava formou-se um olho de
furacão: eu me tornava, tardiamente, mulher.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 84). E
ainda sobre essa nova postura que se instaura no romance, especialmente através
da analogia entre a imagem da casa e a imagem do ser que associa suas
lembranças a ela, mencionamos:

Esta casa entra numa nova fase, como eu: a alegria, a esperança; pouco
lugar para sombras. [...] subo para o quarto equilibrando o copo de suco no
prato; leve, livre, cheia de planos como uma adolescente.. Mas ainda não
concluí minha revisão; não há só pensamentos doloridos; muita coisa
ressuma sensualidade e cor. (..) Recostada na cadeira de balanço de Ana,
observo meu quarto: não é mais o de uma menina, mas de alguém que
perdeu pedaços pela vida, recolheu o que podia, e trouxe para cá. Que
demorou para se livrar dos sapatos de criança que estorvavam seu passo.
Muita disciplina deixa o corpo triste. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 87).

Essa nova fase, especialmente no que diz respeito à condição feminina


conscientemente reelaborada, também se expressa nas novas atitudes daquela
mulher que, antes, buscava na infância uma explicação palpável para suas
frustrações. Nesse romance, especialmente, a revelação de uma nova identidade
feminina, destemidamente assumida, se configura nas diferentes posturas e nos
diversos modos de a mulher lidar com seus novos estigmas: “Sento-me na cadeira e
deixo o sabor silvestre da fruta me confortar: é uma das sensualidades que ainda me
permito. Nem sempre foi assim: quando desabrochei, foi com todo o primitivo ímpeto
de um rio forte muito tempo represado.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 89). Como se
pode ver, esse novo cenário narrativo não mais sustenta a representação da
condição feminina através de um universo em que as personagens se veem
enredadas num contexto familiar sufocante e opressor, ancorado por ameaças
ancestrais. De agora em diante, a representação feminina se dá a partir de
personagens que tomam, nas mãos, as rédeas de sua vida, e passam, assim, a
serem senhoras de suas escolhas. A avidez de tudo conhecer, de ter que encontrar
explicação para toda aquela condição de repressão atávica, se desconstrói a partir
138

de um discurso que não se penaliza por desconhecer-se. O que parece renascer


dessa nova postura é a sensação de alívio diante do desconhecido, em lugar da
sensação historicamente secular de silêncio e medo. Ainda que perdurada por
séculos, a ordem patriarcal perde espaço nas novas relações de gênero,
especialmente no que diz respeito à socialização da mulher. O trabalho de Heleieth
Saffioti, intitulado A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, estuda a
posição da mulher na família e na sociedade em geral, desde a colonização até os
dias de hoje. E nos mostra que tanto a família patriarcal, como a escravagista e a
poligâmica são espécies de matrizes que permeiam todas as esferas do social,
tornando-se, assim, o ponto de partida de nossa organização presente, na qual
convivem várias práticas familiares diferentes. Embora essa estrutura insista em se
manter, o romance A sentinela já reflete a decadência e o desgaste dessa estrutura.
Isso pode ser visto na nova constituição do espaço doméstico, que não mais denota
o lugar da submissão aos costumes, ao sistema social: nele, é também possível
apontar a evolução desses costumes, especialmente na vida daquelas mulheres
que, agora, passam a exercer diversas atividades profissionais:

Talvez [...] eu agora esteja preparada, mas não sei. Não sei nada, e isso me
alivia enormemente: não preciso mais saber. Por um caminho tortuoso voltei
a esta casa onde ainda resta um lugar secreto que preciso devassar, talvez
administrar o inadministrável... Hoje não preciso decidir. Estou no coração
de um ciclo que se fecha; eu sou o mar com peixes e medusas, e sou a
viagem também. Não há garantias, não existe segurança: alguma vez é
preciso a audácia de se jogar; de delirar [...]. Neste momento a noite não me
ameaça; a gruta não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão
fora de todo o tempo humano. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 188).

Percebe-se que a casa conserva o caráter do secreto, do não administrável,


do recôndito, embora essa intimidade preservada não mais coincida,
necessariamente, com a situação de opressão e isolamento subjacentes à condição
a que aquelas mulheres se viam submetidas. O declínio do patriarcado, assim como
uma nova forma de organização do empoderamento dessas mulheres ganha
considerável amplitude no romance O ponto cego, em que o narrador – o Menino –
se propõe à contínua atividade de observar e de questionar os papéis que a mulher
deve assumir perante a casa e a família. E os questionamentos se dão, em sua
maioria, através das observações narradas a respeito do comportamento de sua
139

mãe. O “não querer crescer”10 parece ser a única possibilidade de se manter salvo
dos padrões impressos ao sistema social e familiar. Essa falta de crescimento físico,
entretanto, não inibe a percepção daquele Menino que tudo entrevê na onisciência
de seus próprios pensamentos. Para ele, são nítidos os padrões e as
predeterminações, bem como os papéis que cada um deveria desempenhar. E o
romance se caracteriza por esse modo peculiar de se narrar algumas convenções.
Em nível de uma organização do espaço físico, ao qual tanto nos referimos
anteriormente, temos uma nova associação para outros lugares (ou seria para
prováveis não-lugares11?): os que abarcam as performances sociais.
Entramos aqui no terreno das memórias privadas. De acordo com Paul
Ricoeur, existem três traços que costumam ser ressaltados em favor do caráter
essencialmente privado da memória: “Primeiro, a memória parece de fato ser
radicalmente singular: minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir
as lembranças de um para a memória do outro.” (RICOEUR, 2007, p. 107). A
memória passa a ser, então, diante dessa perspectiva, “um modelo de minhadade,
de possessão privada, para todas as experiências vivenciadas pelo sujeito.”
(RICOEUR, 2007, p. 107, grifos nossos). O segundo traço em favor dessa
privacidade da memória reside no fato de que o “vínculo original da consciência com
o passado parece residir na memória.” (RICOEUR, 2007, p.107). Ricoeur enfatiza
que embora tenha sido dito com Aristóteles, diz-se novamente com Santo Agostinho,
de forma mais enfática, que “a memória é passado, e esse passado é o de minhas
impressões; nesse sentido, esse passado é o meu passado.” (RICOEUR, 2007, p.

10
Na cultura ocidental, é significativo reconhecermos a presença dos mitos como justificativas,
normalmente constituintes de atitudes e de padrões de comportamento. A atitude do Menino, de O
ponto cego, de não querer crescer, nos remete, além das associações críticas inerentes ao próprio
romance, à figura mítica e mágica do personagem Peter Pan, que cultivava as mesmas habilidades
de onisciência e onipresença do Menino narrador. Ressalte-se, ainda, que esse mito é tratado, na
Psicanálise e na Psicologia como uma síndrome, sendo esta denominada A síndrome de Peter
Pan – um estudo desenvolvido, em princípio, por Dan Kiley, em 1983. Sobre esta síndrome, leia-
se: “Muitos são os homens que recusam comportar-se como adultos. Para eles, o crescimento
traduz-se num fenômeno extremamente penoso, poder-se-á mesmo dizer, em algo inconcebível.
As responsabilidades inerentes à maior idade são-lhes difíceis de aceitar e, mais ainda, de
compreender. [...] o caminho da vítima para a idade adulta está bloqueado por delongas fatalistas,
pensamento irracional e mágico, e um sistema de negação que roça o esquisito” (KILEY, 1983, p.
42).
11
Refiro-me, aqui, à teoria dos não-lugares desenvolvida por Marc Augé, em seu livro Não-
lugares:introdução a uma antropologia da supermodernidade. Sobre os não-lugares, explico: “Se
um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir
nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lugar. A hipótese
aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que
não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não
integram lugares antigos [...]” (AUGÉ, 1994, p.73).
140

107). É através desse traço que a memória garante a continuidade temporal da


pessoa e de uma provável identidade inerente a ela. Essa continuidade é o que
permite a remontagem do presente vivido, sem qualquer ruptura, até os
acontecimentos mais remotos da infância:

De um lado, as lembranças distribuem-se e se organizam em níveis de


sentido, em arquipélagos, eventualmente separados por abismos, de outro,
a memória continua sendo a capacidade de percorrer, de remontar no
tempo, sem que nada, em princípio, proíba prosseguir esse movimento sem
solução de continuidade. (RICOEUR, 2007, p. 108).

Ainda segundo ele, é especialmente nas narrativas que a memória no singular


e as lembranças no plural se articulam. Dessa forma, retroceder rumo à infância é,
ao mesmo tempo, assumir uma diferenciação e uma continuidade reconhecida no
sentimento de que as coisas se passaram em uma outra época. Essa alteridade, por
sua vez, serve de ancoragem para a diferenciação entre os lapsos do tempo e a
história que se procede na base do tempo entendido como cronológico. Finalmente,
em terceiro lugar, ele aponta o fato de que

[...] é à memória que está vinculado o sentido da orientação na passagem


do tempo; orientação em mão dupla, do passado para o futuro, de trás para
frente, por assim dizer, segundo a flecha do tempo da mudança, mas
também do futuro para o passado, segundo o movimento inverso de trânsito
da expectativa à lembrança, através do presente vivo. (RICOEUR, 2007, p.
108).

Essas exposições nos levam a outra consideração: a que Paul Ricoeur chama
de olhar interior. Segundo ele, “é sobre esses traços recolhidos pela experiência
comum e a linguagem corriqueira” (RICOEUR, 2007, p. 108) que se construiu a
tradição do olhar interior: tradição cujos grandes precursores se encontram na
Antiguidade tardia de matiz cristão, tendo ao mesmo tempo em Santo Agostinho sua
expressão e seu iniciador.
Mais uma vez, são as imagens da memória que denotam e, ao mesmo tempo,
compõem esses espaços. E o olhar interior – especialmente em O ponto cego – nos
aproxima desse contexto:

Em família, sem dizer nem combinar a gente determina quem são os maus,
quem são os bons. Prende neles os rótulos e todo mundo acredita. Eles
também. Minha Mãe tinha de ser a boa. Aquele era o seu papel. Meu Pai
era dos maus. Ele manejava o poder. Minha irmã era uma invenção dele, a
personagem. Minha Avó era a doidinha. As Tias contavam menos que os
outros. E não havia mais ninguém. Pois uma menininha morta muitos anos
atrás representava o fracasso e a perda. [...] (Eu não era nem bom nem
mau: eu estava de fora.) (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 28-29)
141

Como se pode ver são incisivas as marcas do que já é pré-determinado,


especialmente no que diz respeito ao olhar sobre o domínio em que a instituição
família ainda se inscreve. Embora seja apenas nesse romance que a mulher
realmente inverte o seu papel, recusando-se a “continuar pagando o injusto preço”
(p.142) pelas imposições sociais, os conflitos e os caminhos que apontaram para
essa iniciativa se mostram manifestos. A performance do Menino, enquanto um
olhar de fora daquele contexto, se constitui, também, a partir de um olhar onisciente
que avança em relação à condição feminina, e, assim, estende-se para uma reflexão
bem mais abrangente: a que permeia a condição humana. Através desse olhar do
Menino, percebemos “o ponto cego”, como uma falha trágica – oculta, invisível –,
determinante de destinos e papéis tangenciados pelo próprio instinto imanente ao
trágico. Podemos perceber, nessa reflexão, a presença do pensamento de
Nietzsche, especialmente quando ele aponta a “arte como um modelo alternativo
para a racionalidade.” (MACHADO, 1985, p. 8). A obra de Lya Luft abre espaço para
o aprimoramento dessa perspectiva, uma vez que é notável a constante
preocupação da autora em racionalizar o que aqui chamo de instinto do trágico,
especialmente no que diz respeito ao valor dessa racionalidade, que implica na
“positividade da arte como experiência trágica da vida.” (MACHADO, 1985, p. 9).
Essa experiência trágica se revela, por exemplo, na reflexão do Menino / narrador
em relação às contingências que circundam o âmbito do humano. Ressalto, antes
mesmo de me remeter a um dos excertos em que esse caráter se faz visível, à
questão do trágico como formador de um estilo na obra de Lya Luft. Como se poderá
ver, o traço que compõe o cenário do trágico enquanto elemento formador de uma
inscrição na escrita de Lya se apresenta sob várias impressões, especialmente nas
que se nos revelam nos diversos gêneros em que sua escrita se constitui.
Perceberemos que o traço marcante dessa linguagem se institui mediante diversas
instâncias, como, por exemplo, na voz do narrador desse romance, na própria voz
autoral, em um de seus livros de ensaios, assim como na voz que emerge de suas
poesias. Em nível de romance, transcrevo a voz do narrador:

Todo mundo recebe o seu papel ao nascer, e antes de nascer.


Desempenhá-lo bem é uma das muitas artes da vida. É preciso
compartimentar: aqui ser feliz, ali desgraçado; com essa pessoa ser eu,
com a outra ser inventado; aqui vestir um traje, ali virá-lo do avesso.
Compartimentar para perdurar. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 29).
142

Esse mesmo tom pode ser visivelmente reconhecido na voz da própria autora,
em um de seus livros de ensaios:

O mundo em si não tem nenhum sentido sem o nosso olhar que lhe atribui
identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. Viver,
como talvez morrer, é recriar-se a cada momento. Arte e artifício, exercício
posto à nossa frente ao nascermos. [...] A vida não está aí apenas para ser
suportada ou vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada.
Conscientemente executada. (LUFT, Perdas e ganhos, 2003, p. 155).

Por fim, valho-me da poesia em versos que abrigam o traço da contingência


imanente à experiência trágica, que se revela no sentido do que se constitui como
humano:
Deus, eu faço parte do teu gado:
esse que confinas em sonho e paixão
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo, Deus,eu faço parte da manada
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas
com teu olhar absorto.
Deus,eu faço parte do teu gado
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo, explicação, perdão
E permanência. (LUFT, Secreta mirada, 1997, p. 159).

As marcas do tempo parecem confirmar esse estado de permanência do ser


humano no mundo. Permanecer, ainda que na condição de objeto dominado por um
destino, é também uma maneira de se afirmar diante do trágico. E essa idéia se
estende junto à constituição do estilo na obra de Lya Luft. Se observarmos o trajeto
dessas reflexões temáticas, veremos que a questão do tempo e a da permanência
são recorrentes na arte de sua escrita. O poema transcrito acima nos aproxima
muito dessas idéias, especialmente em relação ao tom dedicado a elas, uma vez
que se (re) apresentam em um de seus últimos livros de poesia, intitulado Para não
dizer adeus, publicado oito anos após o Secreta mirada. Vejamos, então, como essa
idéia se (re) constitui:

O tempo não existe, nem dentro nem fora.


Esses peixes de opala são nomes que nadam na memória:
são rostos, são risos, são prantos, são as horas felizes.
O tempo não existe, pois tudo continua aqui, e cresce
143

como se arredonda uma árvore pesada de frutos que são peixes,


que são nomes de nomes, são rostos com máscaras.
O tempo não existe. Sou apenas o aqui e o presente, e o atrás disso,
como um rio que corre mas não passa
– pois ele é sempre, em mim, agora.
(LUFT, Para não dizer adeus, 2005, p. 29).

Ainda em nível de observação, vale ressaltar o título desses livros – Secreta


Mirada e Para não dizer Adeus –, uma vez que já se esboçam, neles, as sugestivas
situações de indeterminação do tempo e de permanência:
Essa idéia de permanência contida nos excertos nos aproxima do sentido que
pretendemos conferir ao trágico na obra de Lya Luft. O teor de um estilo trágico se
concentra em experiências de linguagens distintas, entretanto mediadas por um
mesmo ponto cego, indecifrável e indefinível, especialmente no nível da
racionalidade.
Diante disso, insistiremos na questão do trágico, enquanto formador de um
estilo na obra de Lya Luft, a partir de novas associações entre o corpo e a memória
– elementos também constituintes de um traço que compõe o que neste estudo
chamamos de estilo trágico.

5.2 O corpo e suas deliberações

O estilo é a fisionomia do espírito. Esta é mais iniludível que a do corpo.

(Arthur Schopenhauer)

No livro Sobre o ofício do escritor, de Arthur Schopenhauer, cuja


apresentação, notas e revisão de tradução foram cuidadosamente feitas por Franco
Volpi, encontramos a definição de estilo que escolhi como ponto de partida para as
novas reflexões, acerca do corpo e de suas deliberações, no espaço romanesco
luftiano. Se o estilo é a fisionomia do espírito, então o espírito trágico é a fisionomia
da obra de Lya Luft, enquanto corpo que conserva uma inscrição, um traço, uma
marca assinalada pela diferença. Isso implica nas diferentes formas em que a
fisionomia, o corpo, o espírito e a memória se manifestam no universo trágico que se
constitui na escrita de Lya Luft. Esses elementos confluem para a definição que
Nelly Novaes Coelho conferiu à obra dessa autora: uma “dorida e impiedosa
radiografia do universo social e moral da classe média gaúcha, de tradição
germânica e, por extensão, da sociedade tradicional cristã-burguesa.” (COELHO,
144

1993, p. 231). Compreendemos, a partir disso, que a constituição desses corpos,


enquanto estereótipos do feminino, configuram-se especialmente nos primeiros
romances, em que as personagens vivem submetidas e condicionadas a realidades
estanques e imutáveis, pela simples condição de serem mulheres, e de terem que
seguir um padrão de condutas entendido pela sociedade patriarcal como ideal.
Como já foi dito, essa realidade começa a se modificar a partir de Exílio, na medida
em que as personagens recriam as situações de abandono e de submissão em que
vivem, partindo da análise de outras novas personagens, que já se veem capazes
de decidirem seus destinos, sem a (pre) dominância dos impulsos culturais e sociais.
Aqui, a família já não se apresenta mais como o alicerce das relações humanas: na
pensão, conhecida como a “Casa Vermelha”, os laços familiares se constituem a
partir de pessoas que não tem nenhuma ligação umas com as outras, e que vivem
exiladas com seus conflitos existenciais. A convivência com essa nova realidade
preconiza, então, novas maneiras de representação do corpo feminino na obra de
Lya Luft.
Elódia Xavier, em seu livro intitulado Que corpo é esse? O corpo no
imaginário feminino, abre espaço para o estudo das diversas configurações que o
corpo assume nos textos de autoria feminina. Apoiando-se na teoria de Elisabeth
Grosz, sobre os “corpos reconfigurados”, Elódia reelabora diversos conceitos que
configuram o corpo “como um lugar de inscrições sociais, políticas, culturais e
geográficas.” (GROSZ, 2000, p. 84). A partir deles, são criadas, então, dez
diferentes tipologias para a representação desses corpos, enquanto espaços para
diversas inscrições: “corpo invisível, corpo subalterno, corpo disciplinado, corpo
envelhecido, corpo imobilizado, corpo refletido, corpo violento, corpo degradado,
corpo erotizado e corpo liberado.” (XAVIER, 2007, p. 26).
Na obra de Lya Luft essa categorização se concretiza de maneiras diversas,
na medida em que os corpos constituem personagens em constante processo de
transformação. Se pensamos no estilo também como uma marca da diferença, não
podemos negar o trajeto de evolução desses personagens, bem como o da
representação de suas diversificadas inscrições. A presença de figuras imaginárias
na obra de Lya Luft – como anjos, anões, duendes – é o que fortalece o espaço de
constituição de um novo tipo de corpo, capaz de mascarar e de subverter as
inscrições determinadas aos corpos entendidos como reais, e, assim,
estereotipadamente marcados como lugares do masculino e do feminino. Essa
145

concepção nos aproxima do que Judith Butler define por performance. O


performático, para ela, não conserva o caráter profundo, genuíno e individual de
uma cultura, como muitos assim o compreendem: o performático significa não o real,
genuíno, mas exatamente o contrário, isto é, a artificialidade, a encenação. Para
Judith Butler, o gênero é uma construção performática, uma construção cultural
imitativa e contingente. O gênero é “um estilo corporal, um ato, por assim dizer, que
tanto é intencional como performativo, onde performativo sugere uma construção
dramática e contingente de sentido.” (BUTLER, 2003, p.197). O gênero é
considerado, então, uma “ficção regulatória”, e incorpora a performatividade através
da repetição de normas que dissimulam suas próprias convenções. E novamente
insisto no fato de que o universo romanesco de Lya Luft se configura como um
espaço de permanência dessas convenções, alternadas por um estilo que se
configura também na diversidade e na repetição de estereótipos narrativos. E antes
mesmo de iniciar o trajeto analítico que pretendemos fazer sobre a reincidente
presença dos corpos nas narrativas, valho-me do argumento de Michel Foucault
sobre o papel da escrita na constituição de corpos:

O papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um


‘corpo’. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de
doutrina, mas sim [...] como o próprio corpo daquele que, transcrevendo
suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas [...]
(FOUCAULT, 2004. p. 152).

Assim, parece-nos compreensível a constante escolha pelos corpos


imaginários em suas narrativas, geralmente representados pelas figuras de anões,
gnomos, anjos e fantasmas, provavelmente configurados a partir da recriação e da
apropriação de leituras que povoaram o universo imaginário de Lya Luft. Afinal, “os
escritos de Outros especiais, interiores e exteriores, estão ou estiveram dentro e fora
de quem escreve [..]” (BRANDÃO, 2006, p. 12). São essas imagens que subvertem
a noção do paradigma de dependência, de recolhimento e de culpabilidade que
incidem sobre as personagens femininas nos romances de Lya Luft. Através da
figura do anão, as vozes levantam questionamentos, e numa trajetória de recriação
e inversão de papéis, essas questões se desdobram em novas posturas,
visivelmente modificadas, especialmente no que diz respeito aos padrões de
conduta permitida socialmente. Caberia aqui uma associação ao que Elódia Xavier
entende por corpo invisível, uma vez que essas figuras se anulam mediante sua
146

constituição física, para cederem espaço à representação onisciente dos


questionamentos que apontam para a necessidade de mudança frente aos padrões
culturais. Esse corpo invisível pode abarcar, também, uma outra acepção de
invisibilidade: a das mulheres marcadas pela constante resignação, e, assim,
inexistentes e invisíveis como sujeitos do próprio destino. Diante disso, o romance
As parceiras, se configura, a meu ver, como o espaço privilegiado para essa
situação de invisibilidade. As relações afetivas e familiares se dão no plano do
invisivelmente imaginado. A amizade entre Anelise e Adélia, as relações familiares
entre a narradora, seus pais, suas tias, seu marido e seu filho, as relações íntimas e
amorosas constituem-se mais a partir de uma necessidade de se fazerem existir do
que do modo com que realmente se apresentam na narrativa. E isso se repetirá no
cenário de Exílio, homônimo e nas situações até certo ponto homônimas de As
parceiras.
Os corpos subalternos, envelhecidos, degradados e imobilizados são também
recorrentes, uma vez que abrigam os sentimentos de carência, inferioridade e
submissão, inerentes às personagens. Corpos violentados pela fome e pela miséria
espiritual, pela degradação dos espaços físicos e mentais, como reconhecemos em
Exílio, tanto na degradação da Casa Vermelha como na condição debilitada de seus
personagens. Corpos violentados como o de Catarina, que sofria abusos sexuais do
próprio marido, e o de Zico, filho de Nazaré, estuprado e morto na praia do Chalé,
em As parceiras. Corpos liberados como o de Nora, o de Henrique, o de Otávio e o
de tantos outros personagens. Como se pode ver, esses corpos também constituem
um estilo, um traço de representatividade das questões humanas no romance de
Lya Luft.
Corpo e memória compõem o universo de estilo enquanto norma, desvio,
ornamento, traço e marca da diferença através de um insistente processo de
repetição. E esse processo se instaura, no texto, com tamanha persistência que
chega a se aproximar de um tipo de atributo para o estilo. A idéia da diferença a
partir da incansável repetição vai ao encontro do que o admirável poeta Manoel de
Barros chamou de dom do estilo: “repetir, repetir – até ficar diferente. Repetir é um
dom do estilo.” (BARROS, 2007, p. 11). Essa repetição é visível nos cenários
ficcionais que ornamentam as narrativas de Lya Luft. Em nível de discurso, essa
repetição se transpõe a partir de diferentes perfis. Pensemos, pois, nesses perfis a
partir das considerações de Michel Foucault sobre o discurso. Segundo Foucault
147

(1999), o discurso sofre três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se


compensam: tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privilegiado ou exclusivo
do sujeito que fala. Isso parece justificar o processo de silenciamento e de exclusão
que as mulheres sofreram – ou ainda vem sofrendo – ao longo da história, uma vez
que tanto na lei, como na tribuna, como na própria literatura o sujeito que fala é
sempre masculino. Vemos nos romances de Lya Luft a predileção pelas vozes
femininas. Entretanto, elas se pronunciam mediante a consonância com regras e
convenções instituídas pelo sistema patriarcal vigente até então, fato que confere
mais visibilidade e destaque ao discurso masculinizado. E para Foucault, a procura
pelos significados da contínua representação interior da experiência, através de
repetições recorrentes em busca de um acontecimento real no passado psíquico,
somente explicaria as causas de uma neurose ou de uma patologia, isto é, não
explicaria a questão do domínio do discurso do homem sobre a mulher. Segundo
ele, o fracasso das mulheres está presente nos discursos que constroem as
expectativas em torno da mulher como aquela que tem, a seu exclusivo encargo, a
tarefa de zelar pela família e pelo lar. Suas funções restringem-se à procriação, à
administração da casa, à educação dos filhos e à conservação da ordem e dos
valores entendidos como os da família. Entendo, diante disso, que grande parte das
frustrações que as personagens de Lya Luft apresentam está ligada à incapacidade
de essas personagens desempenharem, com o êxito que se lhes é esperado, essas
funções. Adicione-se a isso a culpabilidade que lhes era atribuída mediante o
imaginário social, uma vez que não desempenhavam os papéis como seus. O cultivo
dessa culpabilidade acaba por encaminhar muitas personagens de Lya Luft a
situações tragicamente marcadas por mortes, suicídios, loucura e enfermidades
diversas. O discurso maniqueísta e opressor é constituinte dos romances luftianos.
Mesmo tratando de universos distintos, as vozes dos romances parecem irmanadas
por um tipo de memória que realça as situações de angústia, de dor e de
desolamento frente à inexorabilidade da condição feminina. Embora sejam as
mulheres as vozes fortes e determinantes da casa, essas vozes são reflexos dos
paradigmas estipulados pelo comportamento modalizador, e, consequentemente,
inalterável. Exemplos dessa necessidade rígida de se manterem os costumes
podem ser destacados em várias passagens nos romances de Lya Luft. Entretanto,
essa rigidez é essencialmente preservada em A asa esquerda do anjo. Analisemos,
pois, algumas situações que revelam esse sentido de preservação cultural.
148

5.3 O corpo constituído sob o olhar da cultura

No primeiro capítulo, intitulado O exílio, deparamo-nos com a extrema


necessidade de organização familiar e do cumprimento de atividades pré-
estipuladas, como uma atitude particularmente atávica:

Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua
para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a
ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado
na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó. [...]
(LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 11).

Podemos observar, através do excerto acima, a instituição de um sistema de


organização que já não mais condiz com a expectativa daquela narradora, que
embora menina, não se enquadra aos padrões da família Wolf: “Só eu me sinto fora
do ritmo, com o corpo miúdo, as orelhas grandes teimando em aparecer por entre o
cabelo que me obrigam a usar bem curto, “assim fica mais forte”. Também sou
canhota e não conseguiram me corrigir.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p.
11). Assim como havia a determinação dos lugares, dos horários e das tarefas,
havia também a determinação do que era ou não permitido às crianças da família –
o que não a impedia de inibir seus medos: “Seu Max fazia parte das tantas coisas
que não eram “para criança”. O mundo adulto era o nascedouro dos meus medos
[...].” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 12). As inquietações já se
acomodavam naquele olhar de criança que observava e compreendia situações ao
seu redor: a postura do “seu Max”, sempre suspeita, e o mundo adulto que se
constituía à sua volta:

Aquela voz: seu Max tem voz de mulher embora seja homem. Uma voz de
mulher ou de menina, não sei bem se provocante ou desvalida. Algumas
vezes crio coragem e olho bem antes que minha mãe me puxe pela mão,
temos de ir embora: sua avó não gosta de esperar. Mas vi seu Max: nariz
pontudo, olhos aguados que não encaram a gente: espreitam. O corpo é
magro, mas o ventre avançado me deixa uma impressão de pecado e
despudor. É de seu Max que tenho medo, ou do que ele espera ali na porta
de onde parece nunca se afastar, exposto e humilhado, talvez chamando
alto, quando não passa ninguém na rua, Vem, vem, vem? (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 12).

O deslocamento da narradora em relação à família que pertencia se evidencia


pelos costumes que ela mesma não consegue manter, e também pelos padrões de
conduta que ela não se permite cultivar. Essa narrativa concentra situações que
149

insistem em registrar um tipo de tratado sobre os dogmas da cultura alemã, de uma


forma bem mais abrangente em relação aos outros romances. Penso no estilo,
especificamente nesse contexto, como um traço maior da diferença, no que se
refere à maneira em que os conflitos pessoais emergem, também e principalmente,
a partir de situações e verdades aparentemente indiscutíveis. Como nos outros
romances, as tensões nascem de questionamentos advindos do olhar de uma
criança, que se revela através das memórias cultivadas na infância. Narrar os
costumes implica também criticá-los. E como acontece em relação à maioria das
personagens de Lya Luft, a visão crítica que se expõe a partir das memórias é uma
das reais possibilidades de desvelar máscaras e cenários em que a hipocrisia da
aparente ordem familiar se instaura e se reveste de realidade. E o que a
personagem narradora Gisela se propõe, para além do reconhecimento de uma
identidade de si mesma nesse contexto impenetrável, é denunciar as formas
castradoras que ainda imperam sobre aqueles outros integrantes, pertencentes a
uma família puramente germânica. Os espaços concretos da casa são
determinadamente marcados para abrigarem os conflitos pessoais, também
metaforizados por mínimas frestas – o que reforça a idéia de a escrita de Lya Luft
conservar traços tipicamente inerentes ao seu peculiar modo de narrar e de (re)
velar esses conflitos. O jazigo é também um ícone do espaço físico do romance,
uma vez que concentra a inscrição de toda uma hierarquia entre gerações: “FAMILIE
WOLF, dizia a inscrição sobre o portal do Jazigo no cemitério. Lá estavam os nossos
mortos. Os vivos sentavam-se na casa de minha avó. Alguns pareciam
antecipadamente mortos.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 15). Ressalte-
se, ainda, a imponência do monumento que abrigava as pessoas da família,
referidas como “enigmáticos textos invioláveis” (LUFT, A asa esquerda do anjo,
2003, p. 33):

O Jazigo me impressionava. Como éramos importantes, eu sentia, desde os


pais de meu avô Wolf tínhamos sido destaque naquele quadrado de granito
rosa e interior de mármore, uma verdadeira mansão entre as outras baixas
e brancas. [...] De longe podia-se ler por cima da porta do Jazigo a
inscrição: FAMILIE WOLF. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 32-33).

Em um cenário rigorosamente comandado “sob o império” da matriarca Frau


Wolf, “que tiranizava a família toda” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 14), ao
controlar as reuniões de família, todos os domingos, e ao avaliá-las com “opiniões
150

que não admitiam discussões: eram sentenças” (LUFT, A asa esquerda do anjo,
2003, p. 14), Gisela convivia com a inquietante sensação de ser uma estrangeira
naquela família, que cultuava o valor das inscrições em suas aparentes relações.
Sua mãe era também vista como uma “intrusa” àquele impenetrável ambiente, no
qual se reverenciava a cultura alemã. Os questionamentos e conflitos que
perpassam a narrativa residem, em sua maioria, no choque cultural entre os
costumes brasileiros e alemães. A questão da língua também nos revela o
deslocamento dessas personagens mediante aquela doutrina familiar. A narradora
se divide entre Gisela ou Guísela, porque embora as marcas da cultura indicassem a
sua verdadeira identidade, ela também se via capaz de (re) criar uma identidade
própria para si mesma, independente da queda dos modelos que se lhe eram
transferidos. Um exemplo manifesto entre o modo de imposição cultural tirânico e o
conflito que se instaurava entre a consciência do não pertencimento àquele
universo, assim como a percepção das tensões entre as gerações, esboça-se pela
atitude de reflexão que a narradora assume frente a algumas atitudes de sua mãe,
que se mantinha submissa e entregue às imposições. Gisela, ao contrário, denuncia
essa atitude mediante o reconhecimento de uma possibilidade de recriação de uma
nova identidade, de um novo perfil, especialmente para as mulheres daquela família:

Todos falávamos alemão na casa de minha avó, embora à exceção dela


todos tivéssemos nascido no Brasil. Minha mãe passara dificuldades, mas
aprendera o novo idioma usando um vocabulário simples, errando
declinações, falando com um sotaque do qual eu achava graça. Às vezes
pedia-me que explicasse alguma palavra cujo sentido não pegara bem. Eu
sentia um pouco de pena, mas ela encarava tudo com bom humor, mesmo
o fato de eu ser obrigada a falar só em alemão também com meu pai em
casa. [grifos meus] (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p.16).

Percebe-se o tom crítico com que Gisela se refere à situação de submissão e


subserviência que sua mãe assumia diante daquela família, especialmente a de
abandonar a própria língua materna para aprender a outra, em função de “abrandar
a desaprovação da nova família” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 14).
Percebe-se o pesar de Gisela em relação à atitude de resignação da mãe, que a
todo momento tentava se adaptar a costumes tão diferentes. Note-se, também, a
crítica ao “bom humor” com que a mãe lidava com aquelas imposições. Na verdade,
esse bom humor de que Gisela nos fala ridiculariza, sutilmente, a situação de
subjugação a que a mulher se entrega, destituindo-se de seus próprios valores para
agregar-se a outros, externos e exteriores aos seus próprios e individuais. E, como
151

se essa destituição não lhe bastasse, era preciso cultivar e transferir esses valores,
para manter vivo o discurso da tradição. Essa atitude, provavelmente, foi uma das
que inibiu e solapou, durante muito tempo, a posição da mulher perante o mundo a
que ela realmente pertence. Nessa mesma linha de reflexão, transcrevo esse modo
de inserção, forçado e autoritário, a que as personagens eram submetidas, num ato
de extrema destituição de um eu, próprio e interior:

Minha mãe: Maria da Graça Moreira Wolf, único nome estrangeiro que um
dia inscreveriam na parede do jazigo. Dela herdei os olhos pretos, que em
mim ficavam deslocados: não combinavam com o cabelo desbotado, a pele
branca. Mas ela não me transmitiu o que eu mais desejava ter: a alegria, a
capacidade de adaptação. Era possível que partilhássemos, sem comentar,
a sensação de estarmos no lugar errado. Maria da Graça numa família de
Helgas e Heidis. E eu, Guísela ou Gisela? Minha mãe pronunciava Gisela; o
resto da família dizia Guísela, à maneira alemã que eu detestava. (LUFT, A
asa esquerda do anjo, 2003, p. 16-17).

Note-se que a busca pelo reconhecimento da presença de uma identidade


genuína não é suficiente para transpor as regras culturais, sentenciadas pelo
discurso que constitui essas diferenças. O exílio, então, parece abrigar essa
necessidade de concentração e reflexão diante das questões sociais, familiares,
femininas. Essa associação advem dos espaços físicos, constantemente
reconfigurados, nos romances de Lya Luft. Entre sótãos, espelhos, casas, quartos,
ilhas e penhascos, os questionamentos se instauram mediante um tipo de exílio
voluntário, que pode nos aproximar do estilo trágico como constituinte do universo
familiar. A família, enquanto elemento recorrente na obra de Lya Luft, também se
nos apresenta como um mosaico de sentimentos, impulsivos e impulsionadores de
situações que extrapolam o sentido do coletivo e reincidem no âmbito do individual.
Num cenário em que “tudo precisava ser recomendado, ensaiado, mil vezes
lembrado: gestos, expressões, linguagem, tudo falsificado na montagem daquele
teatro em que se fraudava, até o menor resquício, a nossa identidade.” (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 36), ainda há espaço para o reconhecimento de uma
situação confortavelmente individual a que chamei de exílio voluntário. Nesse não
lugar comum, é possível sentir-se Gisela, e reconhecer-se também nela: “[...] meu
verdadeiro nome é Gisela. Gisela Moreira Wolf, no seu exílio particular e na sua
guerra secreta.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 22).
Mauro Pergaminik Meiches, em seu livro A travessia do trágico em análise,
nos dá grande suporte reflexivo para tratarmos a questão do trágico, enquanto
152

elemento formador de um estilo na obra de Lya Luft. Ao fazer um longo percurso


sobre a constituição da tragédia e do trágico, ele nos traz considerações
importantes, refletidas através dos textos de Aristóteles, André Green, Lacan, e
muitos outros. Para o que pretendo realçar, valho-me de suas reflexões acerca da
família, especialmente visualizada por ele como o lugar da culpa. E como família,
culpa e culpabilidade são elementos intimamente ligados à constituição do universo
ficcional de Lya Luft, não poderia deixar de destacar, aqui, algumas de suas
reflexões. Ao nos dizer que “dentro do universo das alianças (philia), o assunto de
família é um manancial fantástico de temas” (MEICHES, 2000, p. 51), ele contribui
para nossas reflexões acerca dos espaços que se constituem em ambientes
visivelmente familiares, especialmente no que diz respeito à domesticidade instituída
nos lares, concretamente representados pela imagem das casas. Como dissemos,
essas casas abrigam, em seus espaços concretos – salas, quartos, sótãos – muitos
dos conflitos individuais, e conservam a importância da especificidade desses
lugares. Ao citar um texto de Aristóteles em sua Poética, capítulo XIV, sobre a
questão dos melhores meios de produzir os sentimentos de terror e piedade na
tragédia, ele decide citar, também, um comentário de André Green sobre o referido
texto de Aristóteles. E é nessa reflexão que me ancoro para elaborar uma idéia
sobre o papel que o trágico desempenha na constituição da família representada na
ficção de Lya Luft, enquanto instituição de regras, valores, preceitos e princípios: “A
família é [...] o espaço trágico por excelência. Sem dúvida porque os laços de amor –
portanto de ódio – são nela os primeiros em data e em importância.” (GREEN apud
MEICHES, 2000, p. 51). Essa assertiva está intimamente direcionada aos padrões
familiares constituídos no contexto luftiano. A família é o centro desse espaço
ficcional, e sobre ela edificam-se traumas, enfermidades, conflitos, ambivalências.
Estes se nos revelam por meio de vozes narradoras, na medida em que passam de
um estágio de ignorância – já que recriam situações a partir de um olhar que se volta
para as tensões vivenciadas na infância – para um estágio de (auto) (re)
conhecimento, através de suas representações. Essa transformação se dá no
momento em que essas personagens não se vêem mais como simples reprodutoras
de seus conflitos, mas, principalmente, como representantes de grande parte deles.
Gisela, por exemplo, na medida em que nos expõe os conflitos inerentes ao seu mal
estar enquanto membro deslocado na família a que pertence, nos expõe também
esse trajeto que se traça entre a ignorância e o reconhecimento. Em uma das
153

inúmeras passagens em que ela se vê diante da dúplice condição de que se


constitui sua identidade fragmentada, notamos, também, a capacidade que ela
representa de refletir e de concluir definições importantes naquele contexto
narrativo. Ao narrar uma cena em que provocara perguntas indicativas de uma
possível diferença entre o modo de pensar de sua mãe e de sua avó, ela nos revela:

Guísela para uma, Gisela para outra. À noite, fantasmas, de dia, dúvidas. E
eu? Eu me sentia exposta, avaliada e reprovada. Os exercícios de piano
iam mal; a letra gótica saía mole da mão canhota; as orelhas de abano
pareciam piorar a cada dia, minha avó sugeriu que eu dormisse com uma
touca apertada, para corrigi-las. Quando eu pedi minha mãe que me
arranjasse a touca, ela me abraçou e disse que nunca havia notado minhas
orelhas. Esses pequenos problemas, dizia, se resolvem por si, com a idade.
Sua avó gosta de levar as coisas para o lado trágico. O que era trágico, eu
quis saber. Ela não conseguiu explicar e eu adormeci imaginando que
trágico devia ser o Anjo do Jazigo, imóvel, duro, exilado, fingindo não ouvir
as barrigas estourando na noite calada. (LUFT, A asa esquerda do anjo,
2003, p.42)

Exemplos muito próximos dessa experiência de reconhecimento pela


representação se manifestam em todos os romances. A visibilidade desse
procedimento de interação entre o que se vê do passado (infância) e o que se recria
no momento presente da narrativa perpassa grande parte dos romances, uma vez
que são constituídos de reminiscências. E pensando ainda nesse trajeto de (auto)
reconhecimento por que passam as personagens de Lya Luft, transcrevo outra
situação em que a constatação de um movimento trágico circundante do universo de
Lya é reluzente. Em A asa esquerda do anjo, contexto puramente determinado pelo
domínio da cultura e pela preservação de uma identidade genuinamente tradicional,
o defrontar-se com o reconhecimento de uma aparência estruturante das instituições
– aqui, especialmente, a da instituição familiar – se dá no momento em que Gisela
compreende a ambivalência entre o que se institui e o que se constitui. Anemarie,
personagem que se exibe como modelo de impecabilidade, é a escolhida para
recriar a imagem da impossibilidade de se aproximar da perfeição, fato que, para
nós, é mais uma engenhosidade inerente à arte trágica. Assim, é através da
descrição de Anemarie que chegaremos à aparência estruturante das relações
familiares. Nela, podemos perceber muitos atributos constituintes de um modelo
muito próximo ao da perfeição: “a predileta da família”, “cabelo dourado caindo até
os quadris quando os trançava”, “a neta amada de Frau Wolf” (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 13). Ainda sobre a perfeição de Anemarie, que “era
154

exemplar” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 18), e que, talvez por isso,
“nunca a censuravam” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 18), transcrevo as
indagações de Gisela sobre o comportamento plácido da prima:

Como conseguia ser sempre assim, plácida, harmoniosa, agradando a todo


mundo, até nossa avó, aparentemente sem esforço? Ela era o melhor das
nossas reuniões de família, quando vinha do internato. Verdade que não me
concedia muita atenção, mas quando eu me aproximava mostrava-se doce
também comigo. Deixava-se admirar, deixava-se amar – permanecia
intocada. Abraçava o violoncelo, colocava-o entre as pernas (aquilo me
parecia um pouco indecente) e a música gerada no abraço era melancólica,
pesada: fazia-me pensar no Anjo do Jazigo. A voz dele, o tatalar de suas
asas de bronze produziriam som igual. Majestoso e sensual. O Anjo – moça
ou rapaz? O Anjo – o que haveria sob as vestes de metal? Anemarie:
cabelo de ouro, vestido de veludo azul, mesma cor da pedra do seu único
anel. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p.19).

Podemos perceber uma aproximação entre a figura do Anjo e a de Anemarie,


ambos, no romance, como modelos de perfeição inatingível. Entretanto, a
ambivalência que os constitui é também declarada. O questionamento sobre “o que
haveria sob as vestes de metal?”, insinuando um caráter dúbio sobre o
desconhecido – sobre uma identidade desconhecida? –, sugere, também, o
questionamento sobre o que haveria sob a veste perfeitamente combinada de
Anemarie, ou mesmo o que haveria por detrás daquela feição harmoniosa e plácida,
constituinte de um modelo do belo, do perfeito, do incomparável, ou mesmo o que
haveria sob aquela imagem que envolvia o sentido do majestoso e, ao mesmo
tempo, o do sensual. Mais adiante, perceberemos que Gisela explicita essa
aproximação entre o caráter ambíguo e perverso que constitui a figura do anjo e a
de Anemarie: “Noto que Anemarie é parecida com nosso Anjo no que esse tem de
ambíguo, pureza e perversão.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 61). E
quando em meio àquela situação de absoluta ordem familiar a relação de Anemarie
com seu tio Stefan é revelada, revelam-se, também, as máscaras que compõem a
perfeição daquele cenário estreitamente familiar. Assim, torna-se mais visível como
o caráter de perversão encontra abrigo no solo fértil da aparência. Sob as imagens
de lucidez, imponência e perfeição, os conflitos humanos se instauram e constituem
um processo de transgressão silenciosa, entendido como uma traição aos princípios
e aos supostos modelos de perfeição. Como Anelise, em As parceiras, Gisela
parece entender que a traidora não era só a morte, mas a vida também. E assim ela
nos diz:
155

O que aconteceu com Anemarie provou que “família” era apenas um nome,
baile de máscaras, talvez sobretudo uma aflição. Pois esta massa com
tantas cabeças, olhos e bocas e nomes, predestinada a juntar-se
paulatinamente no Jazigo, fragmentou-se em estilhaços. Desde aquela hora
fomos sombras apartadas, esquivas, suspeitando umas das outras: este
teria sabido? aquela teria adivinhado? Alguma outra teria sido cúmplice da
trama, da ignomínia, da traição? Pois Anemarie traíra a família Wolf. Antes,
era como se a tocadora de violoncelo, quase irreal, fosse a nossa
identidade. Ela era o melhor de nós, nos preservava. Desmoronada a
estátua, nos dispersamos. Só a sombra do Anjo ainda nos possibilitava
fingir de maneira convincente que éramos uma família respeitável, a
FAMILIE WOLF. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 67).

Percebemos, através dessa passagem, como o “espaço trágico” pode ser


visto também como “o espaço do desvelamento e da revelação das relações
originárias de parentesco [...]” (GREEN, 1969, p. 18), uma vez que foi esse tipo de
relação que impulsionou o desfacelamento da ordem e da perfeição aparentemente
instituídas naquele ambiente familiar. E como Gisela se vê diante do reconhecimento
de uma identidade, que se lhe apresenta mediante uma situação ilusória, permeada
pelo fingimento inerente à real aparência de alguma ordem sobre as coisas, ela nos
aproxima, de certa forma, do caráter de subjetividade que constitui uma identidade.
Ao contrário do que prega o discurso da cultura, cultivado por consistentes
atitudes reforçadas pela repetição de hábitos, manifesta-se, na enunciação, uma
trajetória diferente, embora as vozes narrativas conservem a aparência como
elemento substancial para a constituição de uma identidade, envolta mais pelo seu
caráter subjetivo do que pelo propriamente cultural. Como nos afirma André Green,
as relações de parentesco “nos revelam qualquer coisa de essencial sobre a
subjetividade que é inseparável do trágico, trazendo à luz a relação do sujeito com
seus genitores ou que o estudo destas relações só pode ser plenamente concebido
no quadro do trágico, para desvelar seu papel constituinte da subjetividade.”
(GREEN, 1969, p. 54).
É importante ressaltar que dentro dessa mesma perspectiva de reflexão,
deparamo-nos, em todos os romances, com relações constituintes de um caráter
essencialmente próximo da subjetividade imanente ao trágico. O contexto narrativo
de A asa esquerda do anjo nos coloca diante desse desfacelamento, especialmente
quando Gisela atribui à família um caráter comum. Para ela, família designa
simplesmente um nome; baile de máscaras que insiste em realçar a aparência em
detrimento da essência; ou, ainda, uma aflição – esta, a meu ver, como a mesma
que acompanhou Gisela em todo tempo da narrativa, isto é, desde quando ela se
156

descobriu como abrigo para um corpo estranho até o momento em que ela se liberta
desse corpo, metaforizado pela figura grotesca do verme que expele.
Vale dizer do processo de preparação para essa libertação, que compreende
várias formas de desintegração, como a familiar, a social, a cultural e,
principalmente, a subjetiva. Esse processo se compõe mediante uma cuidadosa
estratégia textual, original em relação aos romances anteriores. As falas que
antecedem os capítulos – ou a sequência do parto – são introduzidas em
parênteses, e se apresentam em fontes destacadas em itálico. Isso parece nos
indicar um prólogo? uma apresentação da cena ao leitor? Lya Luft não nomeia a
técnica, e acreditamos que a esta não cabem, mesmo, nomeações. O importante é
observar o modo como ela escolheu para chamar a atenção do leitor para a
seriedade daquele processo. Dessa forma, uma epígrafe aparentemente comum
sugere a insuficiência de sentido para iluminar o leitor nessa forma tão original de
expressividade. Ressalte-se, ainda, a questão da perigrafia do livro, já mencionada
em capítulos anteriores, que se vê esboçada nessa técnica reincidente de chamar a
atenção do leitor para algo preliminar ao texto que ali irá se seguir. Como as
epígrafes, enquanto estratégias textuais, são de extrema significação na obra de Lya
Luft, optei por colocá-las nesse meu texto, priorizando a forma em que elas
naturalmente aparecem no livro de Lya Luft. Uma atitude que pode sugerir exaustão
na leitura, uma vez que se apresentam mediante longas citações, ainda que
selecionadas em suas partes. Entretanto, não poderia deixar de realçar essa opção
única, já que em nenhum outro romance / livro essa mesma técnica foi utilizada.
Ademais, há inteira intenção em aproximar essa listagem de fatos, associados à
uma ordem, para conferir visibilidade ao caráter ritualístico do texto.
Assim, como a um ritual, transcrevo essa preparação que perpassa todo o
romance, e se esboça, conforme já explicado, nos textos que precedem os capítulos
do livro. No primeiro deles, intitulado Exílio, lemos:

O copo de leite na mesa-de-cabeceira. Na cama de latão, os imaculados


lençóis onde sempre dormi sozinha. [...] Preciso concentrar-me neste ritual:
ficarei aliviada e limpa depois do horrendo parto. Deitar-me nesta cama
branca e deixar que meu corpo expulse esse violador. Por muito tempo
esteve esquecido. Hibernava? Pensei que morrera, ou não passava de um
daqueles medos que me atormentavam antigamente, eu era a criança mais
esquisita da família Wolf. Uma família tão importante [...] Mas meu inquilino
reviveu. Fênix monstruosa, assoma na noite, enche meu estômago, rasteja
até a garganta como se do lado de fora dos meus lábios alguém me
chamasse, vem, vem, vem. [...] Estou sentada na beira da cama, e quando
me deito a velha estrutura range como se fizessem movimentos indecentes
157

em cima dela. Meu ventre repuxa. [...] Respiro fundo. A criatura se contorce
dentro de mim. Vou aguardar mais um pouco. Reunir coragem; desta vez
não adiantam fuga nem evasivas. Nem sonho. (LUFT, A asa esquerda do
anjo, 2003, p. 9-10)

Anteriormente ao segundo capítulo, intitulado O anjo, pode-se ler:

Deito-me outra vez, ainda não estou preparada para o grande parto.
Imagino que não haverá sangue. Meu corpo, esticado na cama, sente
melhor as vibrações do animal aprisionado; meu ventre cresceu nos últimos
dias. Preciso me libertar. Há três dias enterraram Leo, único homem a quem
amei – mas esse amor também foi insuficiente. [...] Não colocaram Leo no
Jazigo: afinal ele não chegou a pertencer à família que o Anjo intocado
guarda no cemitério. O Anjo tem algo da plácida beleza de Anemarie. Nada
de sexo e violência. Também não permiti que ninguém me violasse, nem
mesmo Leo. Nada me demoveu, nem a piedade e o dilaceramento que senti
quando, na primeira separação, ele me dizia, agoniado: Não faça isso
comigo, Gisela, não faça isso comigo. Enquanto meu coração chorava por
ele, no ventre endureciam as pedras de gelo. Eu era toda contradição e
dilaceramento. Talvez agora por castigo tenha sido conspurcada da maneira
mais terrível: de dentro para fora, essa coisa que deseja ser expelida. Terei
coragem de, num ritual último, abrir a boca como nunca abri as pernas e
parir minha purificação? [...] (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 29-
30).

Nos dizeres que antecedem o terceiro capítulo, intitulado As sementes,


temos:
Levanto-me da cama e vou ao banheiro. As funções do corpo continuam,
embora tantas pessoas que amei estejam mortas e meu pai definhe em seu
quarto, Leo tenha sido enterrado, e eu nem conseguisse chorar quando o
meteram na terra. Fazia algum tempo que eu não ia ao cemitério: o
estranho é que só resta um único lugar naquelas paredes, como se a família
aguardasse meu pai para encerrar seu ciclo. Eu ficarei de fora. Volto e
deito-me outra vez. O copo de leite começa a cobrir-se de nata. Meu
inquilino se aquieta por um momento, antes da grande arremetida. Nenhum
ruído senão o palpitar do meu reloginho, casa de gnomos perversos, e
esses passos perdidos nos degraus. Minha mãe talvez, parando um pouco
para respirar onde a escada faz uma dobra. Mas não tenho medo; todo o
horror agora se concentrou no meu próprio corpo. (LUFT, A asa esquerda
do anjo, 2003, p. 46).

Anteriormente ao quarto capítulo, intitulado A Rainha da Neve, leia-se:

É bom estar aqui deitada, sozinha. Seria bom dormir, sem sonhos, se não
fosse isso que ainda tenho que executar, esta noite sem falta, porque meu
corpo já não consegue conter seu habitante. Essa coisa doente, comprida,
pelada, que estica e encolhe e volta a arremeter, dando-me náuseas, um
corpo onde talvez não se distinga cabeça e cauda, revirando-se no bafo das
minhas entranhas, emanações lembrando as do corredor atrás da porta de
seu Max na minha infância. Quero me libertar: ser pura [...]. Viro-me na
cama, que faz esse rangido indecente. Puxo os joelhos, encolhida suporto
melhor o volume da coisa dentro de mim. Hoje você vai sair, maldito. Será
um parto no qual não passarei vergonha e humilhação, porque ninguém
estará aqui, ninguém me verá aberta e arquejante como as mulheres que
escancaram as pernas nos filmes. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003,
p.65-66).
158

Antes do quinto capítulo, intitulado O peixinho dourado, Gisela nos diz:

Está aqui dentro de mim a coisa solitária. Viva, repugnante, atormentou


minha infância e voltou depois que Leo morreu. Eu lhe dei vida: ela é minha.
Que solidão: eu no meu quarto, meu inquilino em mim. Cada um roendo seu
fio, abrindo seu caminho: eu na solidão, ele no meu ventre gelado. O leite
na mesa-de-cabeceira cobriu-se todo de uma nata perolada. Deve ser
assim a pele disso que me violentou. Uma coisa lustrosa, escorregadia das
minhas umidades ocultas. Vem, maldito – penso. [...] Quem diria que esse
copo de leite vai me salvar? [...] Meu ventre está inchado e duro. O que
contou a empregada, quando eu era menina, sobre a amiga que sofria
deste mal? O bicho era atraído por leite, gostava de leite. E se a gente
conseguisse agüentar, o violador saía dos labirintos, distendendo e
encolhendo seus anéis, rastejava até a garganta. Mas tinha de sair inteiro,
porque, sobrando um pedaço, voltaria a crescer. Não podia haver
precipitação, o danado era assustadiço. Sem querer poderíamos fechar a
boca na agonia e partir-lhe o corpo em dois: um líquido pegajoso correria
por entre nossos dentes, como o que brotava do corpo das minhocas nos
anzóis de meus primos. Os meninões riam do meu nojo, vem olhar, sua
burra, vem. Eu fugia. Hoje, não posso mais fugir. Não quero deixar o leite no
copo, e não tenho tigela aqui, então despejo no cinzeiro que está na mesa,
embora eu nunca tenha fumado. Frau Wolf desaprovava mulher que fuma.
(LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 85-86).

Por fim, temos o prenúncio desse processo de libertação narrado nos dizeres
antecedentes ao último capítulo, intitulado O parto:

Não tenho certeza de agüentar isso que preciso fazer, mas meu habitante
se revolve agora com tamanha violência dentro de mim, sofro convulsões
como se fosse gerar um filho: um fruto. Receio vomitar. Estragaria tudo. E
se, na sua impaciência, ele resolver arremeter e sair e rasgar-se ao meio e
tudo recomeçar no escuro em mim? Preciso agir depressa, tomar decisões
friamente, como faria Frau Wolf. Mas não sei que posição assumir. O ódio
precisa ser maior do que o nojo, o medo maior do que a sensação de
ridículo. O melhor é me deitar de bruços. Despejei o leite no cinzeiro. Mas
na cama fica incômodo, receio derramar o leite e estragar tudo; talvez caia
da cama em meio à agonia. E se houver sangue? Então, eu, que sempre fui
tímida e tive horror ao inusitado, deito-me no chão, esticada de barriga para
baixo, e como estou muito magra as tábuas ferem meus ossos. [...] O leite
está no chão à minha frente. Sinto-me enlouquecer no assoalho feito um
bicho abrindo a boca. Meu habitante faz um movimento intenso, deve ter
farejado a isca, o leite diz: Vem, vem, vem. Vem, maldito! chamo em
silêncio. E começo a sofrer convulsões prolongadas como num parto, vi
mulheres retorcendo-se e arquejando assim em filmes, e ele vem. Sem
olhos. Sem nariz. Sem identidade, arrasta-se pelo meu estômago, vai
chegar ao esôfago, não agüento, fecho a boca, engulo muitas vezes, ele
quer subir contra meus movimentos mas se enrodilha no estômago. Como
dói. Não suporto este horror. Levanto-me com dificuldade, estou pesada, se
baixar os olhos agora verei um ventre grávido. Tenho a boca cheia de saliva
e nojo. Minha avó cuspiu no caixão de Anemarie. Como conservar a boca
aberta? Com a mão esquerda pego a escova de dentes na pia no canto do
meu quarto. Comprida demais. Então, com raiva, quebro a ponta de cerdas,
deito-me outra vez no chão, com o cabo da escova segurando os maxilares,
ferindo a carne, sinto o gosto do sangue que escorre. Estou escancarada. É
um parto, ele vem novamente, seu couro áspero roça minhas mucosas,
contraindo seus anéis, ele vem! Respiro com dificuldade, grandes arrancos,
lágrimas grossas, estou parindo, grotesca e desesperada. (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p.101-102).
159

Como se pode ver, o processo de desconstrução da aparente identidade que


lhe foi incutida se dá mediante um ritual de desapropriação desses valores,
metaforizados na figura do verme. Note-se que, mesmo diante do reconhecimento
de receber um intruso em si, já alojado em seu corpo sem que tenha tido sua
permissão, há sempre as marcas do que lhe foi impresso pelas vias da
disseminação cultural. Para se chegar à decisão final de expelir aquela figura
instituidora de seus medos e aflições, foi preciso agir friamente, com base nas
atitudes de Frau Wolf, tão criticadas por Gisela.
É importante observarmos, também, as várias associações que a figura do
verme pode sugerir para a constituição de uma nova subjetividade da narradora.
Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o verme é “o símbolo da vida que
renasce da podridão e da morte.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 943). Na
concepção da evolução biológica, “o verme marca a etapa primordial da dissolução,
da decomposição. Em relação ao inorgânico, ele indica a via ascendente da energia
primordial em direção à vida.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 943). Há,
ainda, aqui, uma afirmativa baseada na interpretação de Jung, “segundo a qual o
verme simboliza o aspecto destruidor da libido, e não seu aspecto fecundador.”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 943) E dentre várias outras associações,
ressalte-se que “em todas essas lendas o verme aparece como um símbolo de
transição, da terra à luz, da morte à vida, do estado larvário ao vôo espiritual.”
(CHEVALIER; GUEERBRANT, 1990, p. 943-944). Diante dessas considerações,
podemos perceber a estreita ligação entre as ambivalências que circundam a
constituição de uma identidade, ora fragmentadas em nível de subjetivação, ora
inteiramente compostas pelo pragmatismo inerente à cultura de uma sociedade, ora
representadas por atitudes contrárias ao que se espera no senso comum, como, por
exemplo, o parto de Gisela, ocorrido às avessas: “Não tive um filho de Leo, não abri
minhas pernas, mas pari esta criatura que, enrodilhada, bebe o leite que lhe ofereci.”
(LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 109). Podemos entrever todas as acepções
sugeridas acima metaforizadas na figura do verme instaurado no ventre de Gisela. O
“símbolo da vida que renasce” se presentifica no momento em que Gisela encara,
destemida, sua condição: uma estrangeira naquela casa, naquela família, naquela
cultura. Uma intrusa que solidificou, na imagem do verme, seus temores e culpas:
“Vem: estou me preparando com a força das lembranças, que também preciso
expulsar de mim, os medos, as culpas. Os desejos podados. Quem diria que esse
160

copo de leite vai me salvar?” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 85). O sentido
do verme enquanto símbolo destruidor da libido é evocado no momento em que
Gisela nos narra as diversas formas de salvação para os personagens da família
Wolf, compreendendo, junto a eles, também o seu processo de salvação:

Para tia Marta, a salvação foram as receitas de bolo; para minha avó, a
salvação foi Anemarie; para tia Helga, a salvação foi a morte; para seu Max,
no corredor da minha infância, a salvação não veio nunca. Para minha mãe,
a salvação foi adaptar-se. Para meu pai, a salvação está na espera do
suspiro que povoa a casa. Por muitos anos pensei que só me salvaria se
fechasse meu corpo, se endurecesse o ventre, se me negasse, adquirindo a
postura ereta e as maneiras secas de Frau Wolf. A salvação de Leo teria
sido possuir meu corpo e ser o meu dominador? Para mim, a salvação
estará num copo de leite? Talvez a salvação de toda a família Wolf tivesse
ficado escondida no quartinho do porão. E ninguém possuía a chave. Lá eu
poderia colocar meu habitante quando saísse de mim; ele espojaria o corpo
enrodilhado na densa poeira atrás da porta por onde só passaria uma
criança ou um anão. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 85-86).

E ao se deparar com a realidade palpável, esboçada pela presença do verme


expelido, surge-lhe uma nova configuração para sua identidade. Ao declarar que
“meu habitante e eu somos a única criatura viva neste quarto.” (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 109), Gisela se vê livre da morte efetivamente física.
Entretanto, a condição de sobrevivente em que se encontra não lhe permite decifrar
os enigmas constituídos pelos dogmas familiares. Expelir o verme parece
representar uma posição de invencibilidade perante a vida, quase como o decifrar
enigmático da esfinge. Essa invencibilidade desvendada, porém, não é suficiente
para integrar as definições de identidade que Gisela tanto buscou. O fato de ela ter
sobrevivido à expulsão metafórica dos rígidos costumes, do que lhe era proibido e
recalcado, não a livrou dos questionamentos acerca da construção de sua
identidade, tampouco a fez se aproximar da subjetividade constituinte de um novo
modo de ser. O caminho percorrido pelas lembranças conferiu visibilidade apenas à
distância do caminho a se percorrer:

O amor é a morte? Devagar meu habitante se vira, o leite acabou mas ele
ainda está faminto, vira-se na minha direção, balançando pesadamente a
parte erguida do corpo. Vira-se mais, sei que vai me encarar. Minha
identidade – qual é a minha identidade? Ele vai me fitar, sem olhos, sem
nariz, sem feições. Sem identidade como eu – qual é o meu nome? Onde
fica o meu lugar? Como se deve amar? Neve ou fogo? (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 109).
161

Vale ressaltar que o romance A asa esquerda do anjo contempla marcas de


um tipo de estilo bastante peculiar: as que traduzem traços específicos da cultura
alemã. Retomo, aqui, a última acepção conferida, por Antoine Compagnon ao termo
estilo, configurada na seguinte afirmativa:

[...] o estilo é uma cultura, no sentido sociológico e antropológico que o


alemão (Kultur) e o inglês, mais recentemente o francês, deram a essa
palavra, para resumir o espírito, a visão do mundo própria a uma
comunidade, qualquer que seja a dimensão desta [...] (COMPAGNON,
2001, p. 172).

De acordo com essa afirmação, o estilo passa, então, a ser entendido como a
“alma de uma nação”, ou a raça, no sentido filológico do termo, isto é, como unidade
da língua e das manifestações simbólicas de um grupo. Isso se confirma em vários
momentos da narrativa, como, por exemplo, na exigência de se falar somente em
alemão, mesmo as pessoas da família que jamais tivessem visitado a Alemanha, a
disciplina insistentemente cobrada pela matriarca, e, especialmente, o fato de Gisela
ter convivido com a dúplice questão referente à sua identidade. Mesmo vendo-se
completamente desintegrada daquela família e daqueles padrões, ela mantém os
costumes que tanto questionava. Numa miscelânea de sentimentos, ela parece se
redimir da sentença: “dúvidas e culpas foram a soma dos anos de infância.” (LUFT,
A asa esquerda do anjo, 2003, p. 52) quando expele o verme, numa atitude que
busca representar um certo tipo de libertação da infusão cultural dos valores
alemães sobre os costumes brasileiros – estes, de fato, pertencentes à sua
nacionalidade. Entretanto, assume as mesmas atitudes de comando exercidas pela
avó, como se o valor dominante não mais pudesse ser destituído daquele corpo.
Contrariamente aos seus propósitos, Gisela nos declara: “Os trabalhos domésticos
que antes detestava agora me faziam bem. Preferia a vassoura a um bom livro. Com
que prazer eu seguia atrás da empregada, correndo novamente o pano onde ela não
tirara bem o pó.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 81). Assim, Gisela tornou-
se “uma boa dona de casa” e entregou-se ao cumprimento assíduo de várias
obrigações. Diante desse sentenciamento de vida, e também diante do recorrente
desejo de perfeição, Gisela batiza o camafeu de Frau Wolf de Anemarie, como uma
atitude de incorporação dos mais puros e genuínos valores alemães:
162

Fecho-me nesta casa e cumpro minhas obrigações. Não encontrarão nada


desarrumado. Servirei chá com uma torta de camadas, que faço com
perfeição. Tenho na gola do vestido o camafeu que foi de Frau Wolf e que
batizei com o nome de Anemarie. Segredo só meu. Porque minha avó
também está morta, e deve intimidar o Anjo na entrada do Jazigo. (LUFT, A
asa esquerda do anjo, 2003, p. 98).

Como se pode ver, a noção de estilo, aqui, designa um valor dominante e um


princípio de unidade, um “traço familiar”, característico de uma comunidade no
conjunto de suas manifestações simbólicas. E foram exatamente esses traços que
vieram constituir, para nós, o estilo no universo ficcional de A asa esquerda do Anjo.
E em se tratando de um estudo que contempla o corpo como elemento também
constituinte de um estilo, vale retomarmos o conceito de corpo disciplinado, uma das
tipologias dos corpos, criada por Arthur Frank, e evocada por Elódia Xavier, em seu
livro Que corpo é esse?. A característica básica desse tipo de corpo “é a carência
garantida pela disciplina.” (XAVIER, 2007, p.58). Assim, “as regras impostas
convivem com a noção de carência sem solucioná-la, impedindo, porém, a
desintegração. Trata-se de um corpo previsível, uma vez que ser previsível é tanto o
meio quanto o resultado final das regras impostas.” (XAVIER, 2007, p.58).
Com base na teoria de Michel Foucault, sobre os corpos dóceis12, e na de
Pierre Bourdieu, sobre a violência simbólica – teorias que, segundo Elódia,
completam as idéias expostas sobre o corpo disciplinado de Arthur Frank –, ela
encaminha suas reflexões para a análise dos atributos que compõem esse tipo de
corpo. Ao citar Michel Foucault, ela nos indica como ele explicita todo o poder da
disciplina: Para ele, “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser
utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (FOUCAULT, 1987, p.118). No

12
Essa teoria foi desenvolvida por Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir, no capítulo I da
terceira parte, intitulado Os Corpos Dóceis. Segundo ele, houve, durante a época clássica, uma
descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Dessa forma, seria possível encontrarmos vários
sinais dessa grande atenção dedicada ao corpo – “ao corpo que se manipula, se modela, se treina,
que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam.” Para dar início a suas
reflexões sobre a teoria da docilidade, ele sugere o exemplo do livro do Homem-máquina, livro que
foi escrito, simultaneamente, em dois registros: “no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas
haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro técnico-
político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por
processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros
bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação:
corpo útil, corpo inteligível.” A noção de docilidade é, então, aquela que une ao corpo analisável o
corpo manipulável.
163

âmbito dessa docilidade, ele sugere métodos13 que controlam as operações do


corpo, e estes são os que constituem as disciplinas: “esses métodos que permitem o
controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de
suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar as “disciplinas”.” (FOUCAULT, 1987, p. 118). Essa descoberta do corpo
como alvo e objeto do poder, suscitou uma teoria geral do adestramento, no centro
da qual reside essa noção de docilidade. Para Foucault, em qualquer sociedade, “o
corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações,
proibições ou obrigações.” (FOUCAULT, 1987, p. 118). E essa disciplinaridade a que
o corpo se submete pode ser notada na maioria dos romances de Lya Luft. Percebe-
se que as imposições, as limitações, as proibições e as obrigações de que nos fala
Foucault são representadas de diversas formas por seus personagens. Outra
visibilidade às forças que cada tipo de corpo incorpora pode ser conferida, também,
a partir do conceito de força simbólica – teoria defendida por Arthur Frank. Para ele,
a força simbólica é “uma forma de poder que se exerce sobre os corpos,
diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física.” (FRANK, 1996, p.
50). Diz-se isso porque no caso dos corpos disciplinados e dóceis, os procedimentos
dessa ação transformadora através do corpo são mais rigorosos e evidentes, uma
vez que incluem punições e prêmios. A violência simbólica, entretanto, tem uma
ação transformadora,

[...] que se manifesta de maneira invisível e insidiosa, através de interações


prolongadas com as estruturas de dominação. O resultado visível é um só:
a submissão às regras em todos os níveis. As instituições – Família, Igreja,
Escola e Estado – são agentes que contribuem para a dominação, que se
institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de
conceder ao dominante. (XAVIER, 2007, p. 58).

Nos romances de Lya Luft, podemos visualizar essa submissão às regras, em


diversos níveis, como no social, no psicológico, no emocional, uma vez que a
instituição família é o centro de onde nasce a maioria dos conflitos. No caso de A

13
Esses métodos são: em primeiro lugar, a escala do controle: “não se trata de cuidar do corpo, em
massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo
detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da
mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo.”; em
seguida, o objeto de controle: “não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou
a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; [...]”;
Enfim, a modalidade, que “implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os
processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação
que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos.” (FOUCAULT, 1987, p. 118).
164

asa esquerda do Anjo, especificamente, essa força simbólica está intimamente


presente nas relações de determinação de regras e poderes, uma vez que seus
personagens representam os chamados agentes contribuintes para a dominação.
Note-se que mesmo tendo reconhecido os aparentes atributos que adornam o termo
família - baile de máscaras –, Gisela se rende à adesão que o dominado não pode
deixar de conceder ao dominante, especialmente no momento em que assume o
mesmo posto de sua avó, caracterizado pelas mesmas posturas e atitudes – o que
não deixa de ser uma maneira invisível e insidiosa de demonstrar como as
estruturas de dominação engendram o corpo, sem que, para isso, tenham que
deixar marcas visíveis de coação.
Como já foi dito anteriormente, entendemos que os primeiros romances de
Lya Luft – As parceiras, A asa esquerda do anjo e Reunião de família – compõem
uma trilogia, em função de abordarem, de uma maneira bem próxima, questões
inerentes à condição feminina, e, também, em função de terem sido publicados
seguidamente um ao outro. Esses conflitos – como a maioria dos outros retratados
nos romances de Lya Luft – são, geralmente, realçados a partir de um olhar, que se
desloca a partir de um ambiente interiormente familiar (casa) para outro
interiormente íntimo (mente). Personagens habitam casas e corpos que lhes
instituem preceitos, convenções e formas diversas, e representam, de certa forma, o
que Elódia Xavier chamou de corpo imobilizado. Em A dominação masculina, Pierre
Bordieu enfatiza, constantemente, o efeito da violência simbólica sobre o corpo
feminino através de “injunções continuadas, silenciosas e invisíveis”, que levam as
mulheres a aceitar como naturais e inquestionáveis “as prescrições e proscrições
arbitrárias” (BORDIEU, 1999, p. 77) impressas em seus corpos. E esses efeitos
podem ser verificados na constituição dos romances acima citados. As personagens
que compõem essa primeira trilogia são todas sentenciadas por esse conceito de
corpo imobilizado, uma vez que se entregam, inquestionável e naturalmente, aos
desígnios de submissão prescritos pelos costumes da sociedade patriarcal. É
importante realçarmos esses dados, porque, como este estudo trabalha com a
hipótese de que o trágico é constituinte de um estilo na obra de Lya Luft, faz-se
necessária a visualização de uma trajetória de evolução ou de reconfiguração para o
que entendemos por trágico, e, até mesmo, para o que entendemos por dom do
estilo, isto é, uma marca da diferença pela repetição. Podemos notar, então, que as
personagens de As parceiras, Reunião de família, A asa esquerda do anjo, O quarto
165

fechado e Exílio são tangenciadas por esses corpos imobilizados, na medida em que
eles abrigam constantes atitudes de submissões até então silenciosas e
inquestionáveis. Diante disso, o trágico assume, nesses romances, um caráter de
irremediável inexorabilidade fatídica, contrário ao que assumirá nos romances A
sentinela (1994) e O ponto cego (1999). Nestes, torna-se visível que “a alegria
trágica é a consciência aguda de uma condição de efemeridade” (MEICHES, 2000,
p. 142), e que essa consciência impulsiona a necessidade de mudança perante a
sujeição aos parâmetros. A vida passa a se tornar uma responsabilidade subjetiva,
desvinculada da imobilidade procedente de uma dinâmica fatalista.
Em nível de uma essência da tragédia, transcrevo os dizeres de Johnny José
Mafra, em que ele nos afirma que a essência da tragédia é algo presente no próprio
ato de criação. E, aqui, associamos essa essencialidade à criação das
configurações que o trágico assume nos romances de Lya Luft, para que elas sejam
pensadas como elementos fundadores e constituintes na formação de um estilo de
escrita:
Na sequência da criação pode-se perceber a essência da tragédia. Primeiro
fez-se o mundo, com todos os seus adornos e com o caudal de forças que a
natureza ostenta. Por último fez-se o homem, por último e em decorrência,
como parte do mundo, como força viva, capaz de confrontar-se com o
esplendor da natureza. Dessa forma, o homem está embutido no mundo,
participa da mesma força cósmica, mas, ao mesmo tempo, está preso
irreparavelmente a determinada ordem que essa força imprime em todas as
coisas. Daí, o conflito, que chamamos trágico, entre o homem, ser
inteligente e dono da verdade, e a força cega da natureza. O trágico decorre
do sentido da ordem em que o homem está inscrito, e o cosmos tanto pode
ser o mundo com todos os seus mecanismos, como pode ser a justiça, o
bem, ou o coração do próprio homem. (MAFRA, 2010, p. 71-72).

Podemos perceber, nos romances aqui estudados, como, de fato, o trágico


decorre do sentido que uma ordem inscrita inspira em seus personagens. Uma
ordem que não está necessariamente ligada à morte ou a qualquer situação
catastrófica, mas, sim, a uma situação irreconciliável, que não tem solução nem
mesmo como a morte. Se o trágico, segundo Gerd Borheim, decorre do conflito
entre duas situações opostas: “o homem e o mundo em que ele se insere”
(BORHEIM, 2007, p. 70), entendemos, a partir disso, que o mundo nos expõe a
constantes situações de contingência, irresolutas mediante a nossa capacidade de
percebê-las. E acrescento: “Na desgraça e no conflito está a dimensão da tragédia:
o homem como vítima de acontecimentos ou de descrições que ultrapassam os
limites de sua competência.” (MAFRA, 2010, p. 71). Nessa perspectiva, foram
166

criados os personagens e o contexto romanesco de Lya Luft: os mesmos em sua


essencialidade trágica, diferentes, porém, em suas maneiras de padecer o trágico.
Essas diferentes maneiras de representação do trágico podem ser
observadas nos romances A sentinela (1994) e O ponto cego (1999), por
encaminharem nossas reflexões sobre o corpo, a memória, o estilo e,
especialmente, sobre o próprio trágico para outro tipo de análise, uma vez que esses
elementos são configurados em novos contextos narrativos. Embora ambos os
romances também sejam constituídos a partir de lembranças pretéritas, envoltas por
situações observadas ainda na infância, o momento presente da narrativa configura-
se, enquanto espaço ficcional, como uma nova oportunidade para que sejam
repensados os conflitos e as atitudes de superação perante os mesmos.
Diferentemente de todos os romances anteriores, especialmente no que diz respeito
aos novos espaços narrativos, esses dois últimos parecem revelar a consciência da
responsabilidade que cada um deve ter sobre a sua subjetividade, e, assim, sobre
suas escolhas. Ao contrário dos personagens anteriores, frequentemente tangidos
por fatalidades e dominados por um sistema de ideologias vigente, estes
transmudam o sentimento do trágico enquanto contingência para um trágico que
“não é sinônimo de resignação, de pessimismo, de abatimento ou de esmagamento
do homem pela fatalidade; ele constitui um sintoma de força, isto é, um ‘excesso de
força’ [...], um fenômeno de pura afirmação da existência.” (HAAR, 1993, p.222).
Esse sentido do trágico também nos inspira a retomar o que Nietzsche chama de
finalidade da tragédia:

Segundo Nietzsche a finalidade da tragédia é produzir alegria. A tragédia,


mostrando o destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz
sofrimento, mas alegria; uma alegria que não é mascaramento da dor, nem
resignação, mas a expressão de uma resistência ao próprio sofrimento.
(MACHADO, 1985, p. 31).

E resistir ao sofrimento é o propósito dos personagens de A sentinela e de O


ponto cego. Note-se, já nesses títulos, a visível presença da essencialidade trágica,
como algo que se pode entrever, notar, perceber, sendo, no entanto, imodificável em
sua natureza. O significado de sentinela abriga várias acepções, entre elas, a de
“ato de guardar, vigiar ou espiar” (FERREIRA, 1999, p. 1838), e também a de estar
associada ao vocábulo velório, no sentido de “ato de velar, com outros, um defunto”
(FERREIRA, 1999, p. 2055). Como se pode ver, os termos guardar, vigiar, espiar e
167

velar estão estreitamente ligados aos que Lya Luft elege para realçar o sentido do
trágico, uma vez que frestas, fendas, fosso, espreitas, e tantas outras palavras
abrigam esse sentido obscuro, velado e pressentido que, por vezes, adorna o
trágico. Se “o que desencadeia a tragédia no coração ou na vida do homem é uma
falha, aqui chamada falha trágica” (MAFRA, 2010, p.73), podemos dizer que O ponto
cego nos aproxima, com muita propriedade, do sentido que essa falha trágica
comporta, uma vez que “O ponto cego é um fenômeno da visão humana segundo o
qual, conforme convergência e refração pode-se ver o que habitualmente
permanece oculto: a possibilidade além da superfície, o concreto afirmado na
miragem. Assim eu inventei, assim eu decretei, assim é.” (Lya Luft, O ponto cego,
2003, p. 11). É interessante notar, também, como os próprios títulos desses
romances prenunciam uma transfiguração no modo de Lya Luft se apropriar de um
novo sentido para o trágico, especialmente enquanto elemento constituinte de um
estilo de escrita. Se observarmos os títulos dos romances anteriores – As parceiras,
Reunião de família, A asa esquerda do anjo, O quarto fechado, Exílio –, veremos
que todos eles atraem nossa percepção para situações precisas e presumíveis,
especialmente em nível de contextualização. Ao contrário disso, A sentinela e O
ponto cego parecem cativar nosso olhar exatamente para o improvável, o impreciso,
o invisível que se instaura mesmo diante da genuína capacidade de olhar e
vislumbrar alguma coisa. E são essas sutis mudanças que encaminham nossas
reflexões para uma nova abordagem do corpo, da memória, do estilo e do trágico no
texto de Lya Luft. Se seguirmos o percurso de seus romances, veremos que o livro A
sentinela abre espaço para uma realidade inovadora na obra dessa autora. Embora
a emancipação do feminino tenha sido levemente preconizada em Exílio, é no
contexto de A sentinela que essa emancipação se solidifica. Enquanto somos
recebidos, já nas primeiras páginas de Exílio, pela única citação14 contida nesse
livro: “[...] A melhor coisa, não a podes alcançar: é não ter nascido, não ser, ser
nada. A segunda melhor coisa para ti depois disso é – morrer logo.” (LUFT, O Exílio,
1991, p. 9), as epígrafes de A sentinela, ao contrário, nos surpreendem, na medida
em que nos colocam diante da possibilidade de nos defrontarmos com o inexorável.
14
No livro Exílio, essa epígrafe vem indicada como uma fala do Sábio Sileno, citada por Nietzsche,
extraída do livro O nascimento da tragédia, de Nietzsche. Diante disso, lançarei a referência
diretamente à Lya Luft, uma vez que ela se apropriou dos dizeres desenvolvidos por Nietzsche em
O nascimento da tragédia. A citação original encontra-se em NIETZSCHE, Friedrick. O
nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo.Trad. J. Guinsburg.São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 33).
168

A sentença de morte anunciada em Exílio, como a melhor solução para a condição


de estar vivo, transveste-se em uma incontida vontade de sobre-viver, mesmo diante
da consciência da finitude humana. No primeiro capítulo de A sentinela, intitulado Os
teares, somos acolhidos pela epígrafe de Camille Paglia, que diz: “[...] a realidade
deve ser distorcida; isto é, corrigida pela imaginação.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.
7).
Esse fato nos traz à mente as considerações que Gaston Bachelard
desenvolveu sobre a imaginação.
Bachelard resume, na introdução a A água e os sonhos, sua inovadora
concepção de imaginação. Ao contrário da tradição intelectualista, que entende a
imagem como “simulacro sem vida própria, sem significação autônoma, sem
essencialidade” (PESSANHA, 1988, p. 153), ele vê, na imaginação, não uma
faculdade de passiva reprodução de objetos, de fabricação ou manipulação de
meras cópias ou duplos dos chamados objetos reais. Na linhagem intelectualista, o
significado da imagem está fora da própria imagem, e deve, portanto, ser buscado
mediante um indispensável trabalho de tradução, naquilo que a significação dessa
imagem é capaz de reproduzir ou de repetir com maior ou menor fidelidade, embora
a significação “clara” só se revele sob a forma de um conceito. E é contra essa
tradição que Bachelard se rebela, uma vez que ela menospreza a imaginação e
desvirtua a natureza da verdadeira imagem. Para ele, “a imaginação não é, como
sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade
de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma
faculdade de sobre-humanidade.” (BACHELARD apud PESSANHA, 1988, p.149). E
nos esclarece:

A imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito


diversas e seria necessária uma palavra especial para designar a imagem
imaginada. Tudo que é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora
deve ser creditado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem
funções completamente diferentes da imaginação reprodutora. A ela
pertence essa função do irreal que é psiquicamente tão útil quanto a função
do real, frequentemente evocada pelos psicólogos para caracterizar a
adaptação de um espírito à realidade etiquetada por valores sociais.
(BACHELARD apud PESSANHA, 1988, p. 153).

Embora essa postura de Bachelard esteja profundamente ligada a uma crítica


à psicanálise, especialmente em função da distinção entre a imaginação reprodutora
e a imaginação criadora, quando aplicadas à apreciação de uma obra de arte, não
169

poderíamos deixar de nos referirmos a ela justamente porque esta parece ser,
também, a idéia que o papel da imaginação assume em A sentinela. Se pensarmos
que uma realidade pode ser distorcida, isto é, corrigida pela imaginação, veremos
que o sentido conferido à imaginação está, aqui, profundamente ligado à idéia de
uma faculdade de formar imagens que ultrapassem a realidade, e, assim, a uma
faculdade de sobre-humanidades. Some-se a isso o fato de que a inscrição de
Camille Paglia, já mencionada aqui, também nos aproxima da plenitude que o
trágico assume enquanto elemento constituinte dos romances de Lya Luft.
O sentido que o termo imaginação sugere, então, parece ser o mesmo
sentido para o qual lançamos nosso olhar em direção ao trágico: uma força capaz de
transformar / corrigir o irremediável mediante atitudes que convertam a dor ou o
sofrimento em ações que engendram uma expansão da vida. Essas ações também
compreendem, nesse universo, a unificação do aparente contraste dor / alegria em
mecanismos constantemente re-elaboladores para a constituição dessa força, uma
vez que “dor e alegria estão sempre se suplantando, o que faz com que ambas
retornem e exijam (gerem) novas formas, novas aparências.” (MEICHES, 2000, p.
137), e, assim, passamos a ter, diante disso,

Uma construção que concebe o mundo a partir de um dinamismo que é, ao


mesmo tempo, indiferente a todo movimento sentimental, e propiciador de
todos os estados sentimentais que podemos experimentar, levando em
conta, evidentemente, apenas os afetos trágicos, e não as nuances que
deles podemos derivar. Essa dinâmica junta as sublimidades advindas do
apolíneo e do dionisíaco. Propiciadora da alegria e da dor trágica, ela é
cíclica, sempiterna, ávida de futuro. (MEICHES, 2000, p. 137).

Apolo e Dionísio caminham juntos na construção de imagens solidificadas


pelas confusas lembranças da infância, que conduzem essa narrativa numa postura
dinamicamente mais cíclica e mais ávida de futuro, em relação aos outros romances.
Embora o enredo de A sentinela conserve traços das temáticas anteriores, o livro se
diferencia dos demais em função de, nele, configurarem-se novos lugares para a
representação dos mesmos conflitos. Dona de uma tapeçaria, Nora chamou sua
empresa de Penélope, admitindo ser, a escolha desse nome, “nada original para
uma tapeçaria.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 15). Ao contrário da atitude de placidez
e de aceitação da personagem Penélope, de Ulisses, Nora declara: “Não
desmancho de noite o que foi feito de dia para adiar um compromisso; vou sempre
em frente, parece que passei a vida desenrolando novelos, combinando cores.”
170

(LUFT, A sentinela, 1994, p.15). Como se pode ver, a personagem feminina, aqui, já
não mais se encontra condicionada à falta de perspectivas para uma
individualização de seus desejos, nem mesmo à submissão ancestral que incide
sobre suas escolhas. Ao metaforizar a própria vida na imagem do tapete, Nora se
permite trançar, em fios e em bordados, seu próprio destino, uma vez que estes
admitem, sempre, novas formas, novas imagens, novos contornos. E para reafirmar
essas possibilidades, ela mesma nos diz:

Só os tapetes floresceram: especialmente esses, de seda, que eu mesma


faço, e são poucos: árvores, aves-do-paraíso, animais de fábula, frutas,
mãos, olhos espreitando. Às vezes uma caverna secreta. Este é meu
território: desenrolando fios, tramando novas urdiduras, como destapando
um furo pelo qual eu mesma me escoasse para elaborar melhor o que
espera ser modelado. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 15).

Esses dizeres expressam, também, o sentido do trágico enquanto resistência,


ou enquanto afirmação da própria vida diante das irremediabilidades. A consciência
da presença dessa força, que impulsiona um sentido maior para a reafirmação da
vida, se reflete na atitude consciente da personagem em reconhecer-se responsável
pelas suas escolhas, e, assim, recriar, nelas e em si mesma, as possibilidades de
(re) elaborar o que ainda espera ser modelado – a condição feminina? A condição
humana? O trágico?
É interessante notarmos a escolha de Nora por uma empresa que sobrevive
do ato de tecer, ou seja, da constante atitude que engendra ações de reelaborar, de
reconstituir, de fazer ou de desfazer linhas geralmente já traçadas, desenhos já
constituídos. O sentido conferido ao trabalho de tecelagem como um “trabalho de
criação, um parto”, reside no fato de que “quando o tecido está pronto, o tecelão
corta os fios que o prendem ao tear e, ao fazê-lo, pronuncia a fórmula de bênção
que diz a parteira ao cortar o cordão umbilical do recém-nascido.” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 872). Isso nos aproxima do conceito da atividade de
tecelagem como uma tradução da “anatomia misteriosa do homem”. Um mistério
que é, talvez, alimentado pelo fato de a atitude de cortar os fios abrigar,
simultaneamente, dois sentidos contrários: o início e o fim, a vida e a morte. Assim,
entendemos que “tecido, fio e tear são [...] símbolos do destino”, uma vez que
“servem para designar tudo o que rege ou intervém no nosso destino” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 872). Tecer, então, é criar novas formas, e essa é a
atividade a que Nora se dedica.
171

Em nível da diferença no modo de abordagem dos conflitos em relação aos


romances anteriores, é interessante notar as novas atribuições aos sentimentos que,
antes, eram narrados em tons de martírio e sofreguidão. Na maioria dos outros
romances, a solidão, por exemplo, estava associada a um sentimento funesto, que
inspirava agudo sofrimento, aniquilamento e permanente estado de impotência
diante das circunstâncias. Tudo parecia nascer, então, desse estado de solidão –
nos sótãos, nos quartos fechados, nos exílios, nas reuniões de família em que os
mortos se faziam mais vivos que as pessoas lá presentes. Aqui, confere-se uma
nova tonalidade ao termo, o que se nos apresenta como um precioso indicativo de
contemporaneização não só do trágico, mas, também e principalmente, dos
sentimentos que constituíram tantos outros personagens. Assim, Nora reconhece
que: “[...] talvez nesta nova fase de minha vida, eu tenha que aprender os benefícios
da solidão, sem terror.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 16). Um outro exemplo dessa
nova configuração do modo com que Nora decide lidar com o imprevisível ou com o
inesperado, pode ser pensado a partir da sublimação que ela encontra em
atividades que não se restringem ao âmbito do estritamente doméstico. Ao narrar
sua forma de lidar com a ausência de João, reconhece, na arte, uma possibilidade
de salvação: “Hoje, sem os abraços de João, só diante do papel e das telas consigo
delirar um pouco.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 17). Essa sensação de liberdade
para deli(be)rar é um modo de transgredir o sentido a que as personagens femininas
estavam condicionadas anteriormente. Embora o espaço físico, concentrado na
figura da casa, ainda seja mantido como o lugar dos conflitos humanos, é nele
também que as novas atitudes perante as adversidades se revelam. Assim, Nora se
vê “ligada a essa casa como se ela manejasse os cordões de [sua] vida” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 30), mas se declara inteiramente confortável mediante sua nova
condição de vida: “Estou bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim,
observando sem espanto os trechos a percorrer.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 30).
Um fato inusitado nesse romance é a ausência da figura do anão – elemento
comumente presente nos romances anteriores. Nele, concentravam-se onisciência,
sabedoria, intuições e instruções. Como disse a narradora de Exílio, A doutora,
“ninguém sabe do que são capazes os anões.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 20). A eles,
eram confiadas as verdades, as orientações, a real visibilidade dos submundos que
diversos personagens habitaram. Aqui, todas essas associações parecem impressas
no corpo de Lilith:
172

Lilith, minha irmã, que assombrou minha infância, roubou meus afetos,
dominava a todos com sua indiferença: quem não seria atraído por seus
olhos amarelos, de expressão perversa? [...] Mesmo morta, decomposta e
esquecida por quase todos, Lilith continuou a me perseguir. (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 12-13).

E ainda que uma imagem temível, assustadora e grotesca se cristalizasse na


figura de Lilith, era essa a feição que constituiria, mais tarde, os traços do filho de
Nora, Henrique. Ainda considerando a ausência da figura do anão, vale dizer que a
ausência dele não inibe a presença das vozes que perseguem os personagens de
Lya Luft. A diferença é que agora, essas vozes assumem um tom bastante diferente
daquele, ameaçador, com que se pronunciavam. Mais que predizeres, essas vozes
são norteamentos, indicativos de novas direções. A voz que intimidava fria e
obscuramente os pensamentos dos personagens anteriores irrompe o espaço da
intuição, e cede lugar à lucidez dos pensamentos: “Um dedo cálido toca meu ombro,
clareia tudo abaixo de mim: teares lustrosos, novelos coloridos, prontos para
desenrolar minhas histórias e produzir os objetos dos meus sonhos.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 30). Como se pode ver, os termos cálido e clareia nos transmitem
a leveza do momento de agora, em relação aos contextos descritos anteriormente.
Retomando a questão da diferença de postura assumida pela personagem
feminina, especialmente a partir dessas novas nuances apresentadas nessas
narrativas – A sentinela e O ponto cego -, é interessante notarmos as novas
configurações que essas personagens femininas assumem nesse contexto. Em
relação à responsabilidade sobre as atribuições domésticas, fortemente incutidas
nos personagens anteriores, Nora se descobre capaz de não incorporar somente
esses atributos, e revela:

Aos poucos fui descobrindo: não devo ser apenas mãe, irmã, amante.
Preciso ser eu, Nora, com tudo o que isso significa e que ainda tenho que
descobrir; que preciso extrair de mim, criando caminhos como João projeta
rumos no ventre da terra; produzir com a carne da minha alma os fios que
me prenderão ao mundo. Lancei minha primeira âncora: comprei a casa,
inauguro aqui meu ateliê [...] (LUFT, A sentinela, 1994, p. 34).

Além de Nora, que se dedica à arte de inaugurar o próprio negócio, temos a


personagem Olga –irmã de Nora – que é médica, e que, embora repreendida por
Elsa por essa sua escolha, lidava com naturalidade com essa repressão. É possível
visualizar, também, nessa personagem, como Lya Luft se apropria do trágico
173

enquanto uma atitude de expansão da vida mediante situações irremediáveis. Pode-


se ver isso no momento em que Nora nos diz sobre Olga:

Olga é dessas pessoas a quem as contrariedades da vida, mesmo uma


separação forçada pelo pai adorado, aos oito anos, em vez de derrubar,
fortalecem. Vencia nela, quase sempre, uma natureza saudável; gostava de
rir, de caminhar, gostava de bichos e de gente. Sua escolha de uma
profissão foi natural: Mateus tinha diploma de médico, embora sem exercer:
era mais um laço entre os dois, que certamente aguçava a contrariedade de
minha mãe. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 135).

Outras situações que nos aproximam dessa nova apropriação do trágico


podem ser pensadas em nível de todo o contexto desse romance, já que parece
haver, nele, uma especial inversão dos papéis a serem representados: tudo parece
se realizar em prol da liberdade de escolhas do personagem feminino, o que
concede, à mulher, novas formas de realização pessoal, independentes das
prescritas pelo sistema patriarcal. Como se pode ver aqui, Nora, embora tenha sido
rejeitada pela mãe, reconstitui sua vida a partir de um novo trabalho e de uma nova
forma de lidar com seus conflitos. A relação entre ela e o filho Henrique também
pressupõe um amadurecimento dos personagens de Lya Luft, uma vez que estes
estavam, normalmente, subordinados a prescrições aparentemente inabaláveis.
Outro fato interessante são as figuras masculinas nos romances de Lya Luft. Os
homens não são tratados de forma excludente nas narrativas, mas são geralmente
retratados como elementos frágeis, inertes e impotentes diante do fardo cultural que
se veem condenados a sustentar. Um exemplo disso é o personagem Mateus, pai
de Nora, caracterizado por atitudes oscilantes entre aconselhamentos e
autoritarismos. Sobre isso, Nora nos diz: “Para muita gente meu pai era uma espécie
de conselheiro; [...]”, mas “na fazenda, era outro homem: imperioso, mãos fortes
dominando rédeas, nadando em braçadas vigorosas no rio, dando grandes risadas
em conversa com os peões. [...] Em raras ocasiões ele, como eu, se rebelava.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 17-18). Mesmo diante dessa dúplice postura, ele
conservava o perfil de autoritário, que caracterizava a imagem do homem daqueles
tempos: “Mateus era um homem dos velhos tempos: político, fazendeiro, entrava em
casa de botas, fumando charuto, chamava pela mulher no seu vozeirão.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 17). Embora essas atitudes varonis o constituíssem, ele, médico
formado, sem nunca ter exercido a profissão, deixa a sua filha Olga o legado da
174

medicina, e se refere a essa sucessão da seguinte maneira: “Essa menina vai levar
meu facho adiante.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 17).
Nessa associação de tarefas determinadas para homens e mulheres,
percebemos que as personagens femininas – especialmente as matriarcas –
conduzem as prescrições, e baseiam suas atitudes também mediante essas
prescrições. Essas atitudes foram inicialmente modificadas em Exílio, quando a
personagem se apresenta sob o nome de A Doutora, dona de uma profissão
reconhecidamente importante (médica), e exercida fora do âmbito do doméstico – o
que introduz, de certa forma, essa inversão de papéis de que falei acima. No
capítulo intitulado Pater dolorosus, presumimos, por esse título, a inversão desses
papéis, visivelmente contemplados na imagem oposta à da Mater dolorosa. E é A
doutora que nos narra a reincidência da cena, adaptada ao personagem masculino,
Antônio:

Você, pater dolorosus, sentado na poltrona, mesinha ao lado. O rosto


voltado para mim era o seu, mas tão grave, suplicante, e triste. No seu colo,
atravessado como um grande bebê, um adolescente. Muito comprido,
desengonçado, esquelético; um longo braço pendurado até o chão; pés
magros e brancos; todo ele flácido, como se lhe faltassem músculos; a
cabeça sustentada na curva do braço paterno oscilava nesse forte apoio.
(LUFT, Exílio, 1991, p. 129).

Como se não lhe bastasse essa associação, A doutora insiste em representar


essa inversão de papéis também quando compara a atitude de dedicação de
Antônio, confinado ao espaço doméstico para cuidar do filho doente, à dela,
sugerindo que como ela exerce outra profissão, não tem tempo suficiente para se
dedicar aos cuidados do próprio filho, Lucas: “Havia em toda a sua postura para com
o Menino tamanha dedicação como nunca tive com Lucas, que era bonito e
saudável; um tão terno amor que nele não caberia nada mais: nem eu. Senti,
instintivamente: aqui não há lugar para mim.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 129).
Em A sentinela, uma situação bem próxima a esta se constitui na relação
entre João e sua filha Lívia, viciada em drogas, expulsa da casa da mãe e tendo que
ser assumida pelo pai, até o momento em que foi internada em uma clínica. Sobre a
difícil tarefa de ter que assumir os cuidados da filha, e, assim, coordenar uma
situação inadministrável, lemos:
175

Havia uma coisa que ele não conseguiria administrar: sua filha Lívia,
afundada num pântano de drogas e rejeição, manobrada pela mãe, difícil de
lidar, ora doce, ora mulher vulgar. João nunca aceitou a realidade. Nem eu
saberia dizer qual é a realidade. A filha dele era uma náufraga: agarrava-se
mortalmente a quem quisesse acudi-la; qualquer recurso servia para não ir
inteiramente ao fundo. [...] João se debatia: não suportava algemas nem
condições, e agora precisava submeter-se às leis desordenadas da vida da
filha. [...] Talvez com Lívia ele quisesse se redimir: não podia dizer-lhe que
não queria laços; com filho, Olga sempre repete, não existe aposentadoria;
não se é alforriado dessa servidão, que pode ser deslumbramento e funda
angústia. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 31).

Como se pode perceber, essa inversão de papéis nos aproxima, também, de


uma nova configuração para o trágico, diferentemente daquela que se encaminha
em única direção para o sofrimento, a clausura, a morte, o fim. Lya Luft parece se
apropriar de um sentido para o trágico que extrapola os limites controlados pela
cultura ou pelos desígnios do gênero: o trágico passa a se constituir, para ela, como
algo intrinsecamente ligado à atmosfera do interior humano, na qual se estabelecem
conflitos imprevisíveis e indecifráveis, e justamente por isso, motivadores da
permanência diante das intempéries.
O contexto de A sentinela é instigante, também, nesse sentido de nos
aproximar do estritamente humano. Inicialmente porque é o primeiro romance em
que todos os personagens são plenamente responsáveis por suas escolhas, e as
assumem, com muita propriedade, diante da sociedade. São conflitos que
pertencem, de certa forma, a todos nós, especialmente porque são conflitos comuns
ao território familiar. E essa aproximação com o pessoal, com o que se constitui no
interior humano, é-nos apresentada de uma forma muito interessante, já que é o
único romance em que todos os personagens tem nome, e são esses nomes que
intitulam os capítulos. Acrescente-se a isso o fato de todos os personagens serem
apresentados mediante uma epígrafe, que parece condensar a essencialidade –
trágica? – de cada um. Em função disso, ilustrarei essas associações, uma vez que
considero preciosa essa atitude estética que Lya Luft elegeu para se apropriar de
um novo sentido para o trágico. O capítulo intitulado Elsa (mãe de Nora),
personagem que se distingue das demais, uma vez que preserva posturas
conservadoras e atitudes de reclusão, se nos apresenta mediante a epígrafe de
Clarice Lispector: “Toda a história de uma vida é história de aflições.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 23). Sobre Lilith, uma epígrafe de Emily Dickinson, que parece
traduzir não só a presença grotesca de mais essa personagem morta / viva, mas a
de várias outras situações já aqui analisadas, especialmente no que diz respeito ao
176

que chamo de espaços concretos, espaços mentais e não-lugares: “Não é preciso


ser um quarto, para ser mal-assombrado. Não é preciso ser uma casa; A mente tem
corredores que superam qualquer lugar concreto.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 41).
Sobre Mateus e seu condicionamento ao vício da filha, somos acolhidos pela
epígrafe de Camille Paglia: “Muitíssima coisa está sendo varrida para debaixo do
tapete: espanto e terror, esse é o nosso destino.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 55).
Em relação à João, ele se nos apresenta mediante os dizeres de Mário Quintana,
reveladores, aqui, do sentimento de terror e de piedade que circundam a relação
entre João e seu filho doente: “E deitado nas lájeas desertas, cobri meu rosto com
teu lenço de seda escura.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 75). Sobre Henrique, nada
mais apropriado que as palavras de Carlos Drummond de Andrade, uma vez que
elas nos aproximam da noção do trágico enquanto uma expansão das forças vitais,
mesmo diante do irrecuperável: “Para fora do tempo arrasto os meus despojos e
estou vivo na luz que baixa e me confunde.” (LUFT, 1994, p.91). Sobre Lívia, lemos
a epígrafe de Hélio Pellegrino, que nos prepara para a situação de dependência
química a que a personagem está submetida: “Arranco-a de mim como se o fizesse
de pedra ou árvores. [...] Lanço-a do meu flanco, feita vômito ou fera.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 113). Para nos apresentar Olga, Lya elege as palavras de
Marguerite Yourcenar para ilustrar, com mestria, o sentido ambivalente do trágico
(especialmente apropriado para essa personagem), que consegue extrair do
sentimento de dor a alegria, e fazer da destruição um sobressalto para o recomeço:
“A vida tem brasas, um calor (esse calor que os mortos não têm mais), sobressaltos,
mistura de luz brilhante e fumaça negra, e, como o fogo, alimenta-se da destruição.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 131). Por fim, temos, para a apresentação de Nora,
personagem principal, as preciosas palavras de Lygia Fagundes Telles, que abrigam
todo sentido de transformação, de conquista, de apropriação de novos valores, de
novos conceitos, de um novo estilo, configurado em traços marcados pela diferença
que institui a presença do entrelugar, da terceira margem: “[...] fragmentos do real e
do imaginário aparentemente independentes, mas sei que há um sentimento comum
costurando uns aos outros no tecido das raízes. Eu sou essa linha.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 151). E não parece ter sido casual a escolha do nome Nora para
constituir o título do nono – e último – capítulo, já que o número nove é repleto de
sentidos, e muitos deles iluminam as reflexões que desenvolvemos, especialmente
com base nesse romance, sobre uma nova abordagem para o trágico, para o estilo,
177

e, principalmente, para a condição feminina. Segundo Jean Chevalier e Alain


Gheerbrant, o número nove tem um valor ritual nos escritos homéricos, uma vez que

Deméter percorre o mundo durante nove dias à procura de sua filha


Perséfone; Latona sofre durante nove dias e nove noites as dores do parto;
as nove Musas nascem de Zeus, por ocasião de nove noites de amor. Nove
parece ser a medida das gestações, das buscas proveitosas e simboliza o
coroamento dos esforços, o término de uma criação. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2009, p. 642).

Pode-se perceber, então, a proximidade de sentido entre o número nove e o


desfecho do romance, principalmente se associarmos a postura final de Nora ao
“coroamento dos esforços” e ao “término de uma criação.” Após uma trajetória de
redescobertas e revelações, Nora coroa seus esforços quando se reconhece
incapaz de tudo conhecer e modificar. Ao perceber que o reconhecimento de muitos
de seus conflitos – pessoais, sociais, emocionais – é insuficiente para dominar o que
lhe pregara o destino, ela se posiciona numa atitude de extrema consciência dessa
incapacidade de compreender ao assumir que “há coisas que devem ficar ocultas”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 161) e ao nos revelar também, uma de suas
conclusões: “Não sei nada, e isso me alivia enormemente: não preciso saber.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 162). Em relação a seu filho Henrique, cujo
comportamento a assustava e cujas palavras lhe tocavam como “lâminas de vidro
afiado” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 111), Nora também decide se libertar do que
julgava como um “caminho tortuoso”, principalmente em relação à postura e às
escolhas do filho. Ao aceitar o caminho escolhido por Henrique, ela nos narra:

Henrique está tocando, a voz do instrumento avança, cambaleia, gira. É seu


jeito de lançar as antenas para o mundo, identificar-se com o mistério,
entregar-se, inteiro, às coisas todas, as coisas palpáveis e as insondáveis:
essa é sua tela, seu fio, sua cor: meu filho constrói seus rumos. Talvez esta
seja minha última oportunidade de conviver com ele: deixar que mergulhe,
que vá. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 162).

Essa nova fase, na qual mergulham esses personagens, encaminha nossas


reflexões para uma outra associação ao número nove, também bastante pertinente:

Sendo o último da série dos algarismos, o nove anuncia ao mesmo tempo


um fim e um recomeço, isto é, uma transposição para um plano novo.
Encontrar-se-ia aqui a idéia de novo nascimento e de germinação, ao
mesmo tempo que a da morte; [...] Exprime o fim de um ciclo, o término de
uma corrida, o fecho do círculo. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.
642).
178

Em se tratando, também, do último capítulo, é a própria Nora que nos diz:


“Estou no coração de um ciclo que se fecha; eu sou o mar com peixes e medusas,
sou a viagem também.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 162). Como se pode ver,
comungam, aqui, as idéias de germinação e nascimento, através do sentido
conferido ao termo viagem, assim como a palavra morte incorpora o sentido de
encerrar um ciclo, uma trajetória. Diante dessas novas posturas, e sustentando
ainda o sentido de renascimento inerente ao número nove, Nora decide, finalmente,
inaugurar sua tapeçaria, e inicia o último capítulo do livro dizendo:

Penélope inaugura amanhã oficialmente. Igual a ela, tenho feito e refeito


meu entendimento do mundo; escolhi fios bons e ruins, errei nas direções
algumas vezes, quase desisti, recomecei. Um verdadeiro filme passa diante
de mim, o dia todo; [...] Cada um tem de encontrar o jeito, o modo, a trilha;
aprender a ser senhor dos rumos.
– Somos inocentes –, digo baixinho, e escuto passos nas lajes. (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 153).

Esse é o sentido mais contemporâneo do trágico de que a autora se apropria:


o reconhecimento de algo que persiste incontrolável, ainda que sob o pressuposto
domínio consciente sobre as competências humanas, conciliável, porém, mediante
as possibilidades que se convertem em novos modos de se fazer senhor de seus
próprios caminhos. Em função disso, entendemos que “a contradição irreconciliável
(finito / infinito), que impõe ao homem limites, leva-o à transgressão do que é justo e
do que é reto, isto é, à hýbris, ou à supervalorização das próprias forças.” (MAFRA,
2010, p.72). Podemos pensar, ainda, que se “o que desencadeia a tragédia no
coração ou na vida do homem é uma falha, aqui chamada falha trágica1516”,
(MAFRA, 2010, p.73), a salvação parece estar, então, na inocência que nos envolve
frente à perplexidade gerada por essa falha trágica que nos espreita. E o romance O

1515
Essa falha trágica, em grego, é hamartía. Aristóteles, na Poética, capítulo 13, explica a natureza
da tragédia e fala nessa falha trágica: “Como a composição das tragédias mais belas não é simples,
mas complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade (porque tal é o
próprio fim desta imitação), evidentemente se segue que não devem ser representados nem
homens muito bons que passem da boa à má fortuna – caso que não suscita terror nem piedade,
mas repugnância –, nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há
coisa menos trágica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito; não é conforme aos
sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. [...] Resta, portanto, a situação
intermediária. É a do homem que não se distitngue muito pela virtude e pela justiça; e cai no
infortúnio, tal acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro;[...]”
(ARISTÓTELES apud MAFRA, 2010, p. 74). Embora Aristóteles não desenvolva pormenores a
respeito da hamartía, ele insiste em que “na tragédia, dá-se a passagem da dita para a desdita,
‘não por malvadez do herói, mas por algum erro grave.’” (MAFRA, 2010, p. 74), as leituras e
reflexões, segundo Johnny Mafra, levam a descobrir que a hamartía pode estar no herói ou em
situação anterior que envolve a sua vida. (MAFRA, 2010, p. 74).
179

ponto cego parece ter coroado esse sentido do trágico de que tanto vimos falando,
especialmente em nível de uma abordagem contemporânea do termo. Várias
estratégias de escrita nos levam a essas ilações, principalmente por ser, este, o
último romance de Lya Luft publicado até então, e em função de ele também se
apresentar em forma de um ciclo que não se encerra, simplesmente, pelo fato de ser
o último livro, mas de uma nova fase que se inicia, constituída sobre bases que
agregam novas revelações, sobretudo no que diz respeito aos espaços, ao estilo
que aqui se configura e nas novas versões que os conflitos pessoais e familiares
assumem diante de seus personagens. Diante desses inúmeros e distintos sinais,
procuraremos, então, estabelecer uma ordem para realçá-los, não para esgotá-los
em análises, mas para que esbocem o alinho e o extremo cuidado com que o texto
de Lya Luft é elaborado.

5.4 O olhar e o tempo: espelhos do trágico

Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? [...] É janela do
corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo,
aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento. [...] Ó
admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria
capaz de absorver as imagens do universo?
(Leonardo da Vinci)

Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino [...] Narração


de olhares, de um olhar. História de invocações
(Lya Luft, em O ponto cego).

(Eu, com meus dois olhos, enxergo melhor: não por serem dois,
mas porque o ângulo oblíquo é mais agudo.)
(Lya Luft, em O ponto cego).

O ponto cego é um livro que nos traz muito do valor que a ambiguidade
assume nos textos de Lya Luft, especialmente no mérito que ela confere a
ambigüidades que constituem, aqui, os diversos modos de olhar. E talvez por isso
esse romance seja, aos meus olhos, o mais denso, o mais complexo e o mais difícil.
Essa relevância que Lya atribui ao caráter do ambíguo é declaradamente assumida
por ela, uma vez que ela mesma diz: “Preciso admitir que a ambivalência é a nossa
salvação para não morrermos na poeira da mesmice.” (LUFT, O ponto cego, 2003,
p.66).
E isso se materializa no corpo desse livro em várias cenas, de várias formas.
Uma delas se dá na voz do Menino narrador, quando ele descreve a cena em que
180

vê, pela primeira vez, uma moça calçada com um par de sapatos de cores
diferentes. Eram sapatos de cetim, com salto alto, um vermelho e outro verde. E o
Menino logo se questiona: “Mas então a gente podia ousar assim? Sapatos de cores
diferentes, o instigante diverso? (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 82). E diante desse
questionamento, procede mais uma constatação: “Começo a chorar como se me
tivessem arrancado um pedaço. Era por não ter sabido antes que o diferente podia
ser legitimado, que a liberdade existia mas não estava ao meu alcance, ainda não.”
(LUFT, O ponto cego, 2003, p. 82). Como se pode ver, a legitimação do diferente
compõe o novo modo imperativo de reconstituição de novos sentidos para o que já
está determinado. E mais adiante, numa crise de choro incontida, o Menino nos
revelava que a razão daquele choro era uma só: o susto da percepção do
tragicamente imutável:

[ele chorava] Era de susto: um desses inesperados sustos que a vida nos
causa quando descobrimos que, se quase tudo é possível, pouco é
permitido. E me foi revelado também, nesse par de sapatos desconexos,
que o ambíguo é muito mais sedutor do que o resolvido e o explicado. Eu
para sempre preferiria o infiltrado, o insinuado, e o destilado: todo esse
mundo no qual gente como meu Pai seria estrangeiro e exilado. Eu era o
rei. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 83).

Outra materialização da ambigüidade nesse texto se constitui pelas inversões


que o sentido do que já inerente ao ambíguo sofre, em nível de desconstrução, por
parte do narrador. Nesse romance, por exemplo, ele nomeia ponto cego a partir de
uma noção contrária ao que essa expressão costuma indicar. Em seu sentido mais
comum, o ponto cego é, num veículo automóvel, “a área que não se pode avistar por
meio dos retrovisores.” (FERREIRA, 1999, p. 1605), e na anatomia, ele corresponde,
em cada retina, à “área por onde penetra o nervo óptico, assim chamada por não
existirem, no local, receptores sensoriais, não havendo, portanto, resposta à
estimulação.” (FERREIRA, 1999, p. 1605). Como se pode ver, o ponto cego
corresponde àquilo que desperta nossa percepção de materialidade para algo que
se mantém invisível aos nossos olhos. E Lya Luft, ao recriar uma definição para o
que ela pretende chamar de ponto cego, nos atesta: “O ponto cego é um fenômeno
da visão humana segundo o qual, conforme convergência e refração, pode-se ver o
que habitualmente permanece oculto. [...] Assim eu inventei, assim eu decretei,
assim é.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 11). Percebe-se, além da inversão de
sentidos que a autora provoca, que ela confere a esse romance um tom bastante
181

diferente dos demais. Aqui, a voz narrativa se permite ousar e usar de um tom que
engendra autenticidade, domínio e dominação sobre sua própria conduta.
Ao evocar a presença de muitos personagens, retomada através de epígrafes
que concentram vozes dos habitantes de seus romances anteriores, Lya reconstitui
um novo modo de narrar, de agir e de recriar atitudes diante dos conflitos
familiarmente instituídos em suas ficções. Ao dar voz a uma criança,
especificamente a um Menino narrador, um novo modo de olhar se constitui, e se
configura como elemento fértil no tecido desse texto. Pela primeira vez, um Menino
relata suas impressões sobre as convenções, especialmente no que diz respeito à
família, enquanto lugar de instituição de valores. Surge, então, desse olhar, uma
história de amor e cumplicidade entre mãe e filho – talvez uma das únicas relações
concretizadas em toda a obra de Lya Luft, uma vez que a afetividade entre os
personagens anteriores era experimentada mediante vivências irreconciliáveis dos
mais diversos sentimentos. Todas as personagens esboçavam, com muita
clarividência, suas irrecuperáveis carências afetivas, principalmente aquelas que se
constituíam em nível do amor materno. Aqui, contrariamente a essa observação, a
imagem da mãe parece simbolizar o templo do amor, o abrigo para as diferenças
daquele filho “sonhado, desejado: - Você foi o filho da minha maturidade, que eu
tanto quis. Você foi minha alegria renovada.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 17).
Embora a figura do pai apareça caricaturada pelas atribuições de ordem e de poder,
conferidas, até então, ao gênero masculino, é o silêncio e a aparente submissão da
mãe, manifestos no seu modo de olhar, que darão um novo vigor a essa narrativa.
Aqui, a memória enquanto registro das reminiscências cede lugar para a
inscrição dos acontecimentos em um tempo presente, no qual se constituem muitas
impressões: impressões sobre a vida, sobre a família, sobre as pessoas, sobre o
que devemos fazer com o tempo que nos é dado.
E para começar a nos dizer dessa atitude liberta diante do modo de narrar, o
Menino nos sentencia: “Eu que invento e desinvento, eu que manejo os cordéis, eu
decidi parar de crescer.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 15). Interessante, também, é
o que o Menino nos diz sobre o motivo dessa narrativa: “Esta é a história de um
Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do
embaixo do debaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar. História de
invocações.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 17). E é esse olhar, discreto e marginal,
que trança os fios desse texto. Embora reconheçamos que os estudos sobre o olhar,
182

tanto na literatura como em várias áreas do saber, são múltiplos e infinitos, não
poderia deixar de realçar algumas refinadas considerações sobre esse especial
modo de ver. Uma referência ao olhar, bem próxima a da atitude que esse Menino
narrador nos propõe – ver além do que é realmente visível –, pode ser destacada
nas palavras de Adauto Novaes, que pronunciam:

O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver. Para isso, foi
também necessário que o indizível se tornasse prosa, participando do lado
de sombra da História e revelando o sensível que está oculto no outro lado
do corpo, acolhendo-o como um secreto prolongamento da matéria. É
através dessa fissura que, guardando o sentido originário, a theoria – que
os romanos traduziram por contemplatio, o olhar com admiração – pode
descobrir que existe uma plenitude invisível de um mundo imperfeito.
(NOVAES, 1988, p. 9-10).

Essa plenitude que se estabelece entre o secreto e o invisível compõe muitas


das cenas que o Menino nos relata, principalmente em momentos que denotam a
relação estabelecida entre ele e sua mãe. Assim, o fato de o Menino se consentir a
condição de ser permanentemente uma criança, especialmente no sentido de não
crescer fisicamente, parece lhe garantir os constantes cuidados da mãe, afinal,
como ele mesmo nos diz, “[...] pensei que se ficasse para sempre pequeno eu teria
mais chances: o que resta a uma Mãe senão cuidar do seu Menino?” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 15). Ainda sobre essa condição de não querer crescer, talvez
esta fosse a forma possível de ele escapar aos rótulos familiares, incluindo a
sucessão das atitudes e dos comportamentos do pai. Como no diz ele, “sendo
adulto, eu perderia a minha perspectiva, as oportunidades de inventar se afunilariam
e se fechariam as portas daqueles corredores. Eu não queria ser igual ao meu Pai
que pensa que tudo controla mas deixa escapar o essencial. Então tomei a minha
decisão.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 15-16). Não querer ser igual ao pai e,
assim, “deixar escapar o essencial” é uma situação que também remete à questão
do olhar. O Menino, que tudo via, sobressai ao Pai, que tem a vista de um olho só.
Isso também confere, ao Menino, maior autonomia em relação ao próprio Pai,
devido à deficiência visual desse personagem. Sobre isso, o Menino nos diz:

Eu sempre observo meu Pai daqui da minha perspectiva. Quando ele não
percebe eu o encaro, erguendo um pouco a cabeça. Agora há uma
novidade. Ele finalmente se decidiu: trocou a venda por um olho de vidro,
azul como o outro, igualzinho. Mas eu sei que com esse olho ele não pode
me ver. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 80).
183

A decisão de não crescer, de não ter que assumir as responsabilidades,


especialmente as responsabilidades sobre as próprias escolhas, é o tema central
dessa narrativa. Nesse universo ficcional, a memória cede lugar ao tempo, uma vez
que ele é o que recria a idéia de permanência. Como o Menino nos diz, “O tempo
que rói e corrói precisa ser reinstaurado, quem conta histórias pode sobrepor muitas
camadas de imaginário e real pois sabe que os limites são tênues, e poderosa a
liberdade com todos os seus perigos.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 16).
É muito interessante observarmos a reincidência do olhar nesse romance,
bem como a maneira como ele incide sobre as atitudes do corpo. Permanecer
pequeno é a garantia de poder olhar, sempre, a partir de uma única e, portanto,
própria perspectiva. Em várias incidências do olhar na voz do Menino, temos a
declaração da importância desse constante manter-se em desnível ao que se
apresenta como real. Em uma de suas declarações, o Menino nos diz dessa
possibilidade de, enquanto Menino que não cresce enxergar no mesmo nível das
superfícies: “Estou sempre com os olhos na altura das mesas, vejo superfícies
limpas ou empoeiradas, em cima delas às vezes alinho minhas criaturas e
contemplo seus dramas.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 87).
Interessante notar como se dá o impacto entre as atitudes que envolvem os
vários modos de olhar, estes constituídos por sentidos que se antecipam mediante
prenúncios inconscientes, em um modo familiar, entretanto estranho, pressentido
através de um olhar intuitivo. Isso se revela, com muita nitidez, no momento em que
o Menino descreve a primeira visita do Moço à casa de seus pais. Esse
comportamento estranhamente familiar se institui quando o Menino se revela,
inconscientemente, diante de situações entendidas, por ele, como ameaçadoras à
ordem do que lhe parece racional, e, portanto, possivelmente visível. Tudo começa,
então, quando o Moço decide passar o fim de semana no sítio da família, e, assim,
ficar conhecido entre todos eles. Essa nova presença parece introduzir, com
bastante propriedade, a complexidade que o olhar assume nesse contexto. Um olhar
que previu: “... quando o visitante se aproximava, tudo começou a se desalinhavar,
como dentro deste meu corpo.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 122). Diante dessa
antecipação, pressentida no próprio corpo, ele se dedica, então, a buscar respostas
para suas intuições em vez de responder implicâncias corriqueiras, triviais. Isso
acontece quando ele presencia atitudes habitualmente comuns, em nível de
convivência familiar, mescladas a outras bastante incomuns, e, reconhece, nessa
184

combinação, a visibilidade de um acontecimento muito mais complexo. E tudo


começa assim:

O fim de semana no sítio começou como qualquer outro [...]. Eu estava


sentado em meu lugar, junto da mesa, sobre almofadas – porque embora já
tivesse feito oito anos, ainda era pequeno demais. Meu coração, vidro
derretido. Nada descia até o estômago. Fingi beber leite enquanto tentava
escutar dentro de mim o galope antecipado. O que seria? O que viria? O
que pendia no ar, pesado e fechado e perfeito, decisões tomadas, o golpe
dado, assinados os acordos e feitos os nós?
Minha irmã finalmente desceu, mordiscou uma fruta, bebeu café preto,
beijou o rosto do Pai como sempre, e o da Mãe – o que era raro. [grifos
nossos] Passou por mim e em vez de me chamar de boboca acariciou o alto
da minha cabeça: – E aí baixinho? Eu odiava quando me chamavam assim,
mas naquele dia não me importei. Não me importei porque estava
prestando atenção, já escutava longe e pressentia perto as ameaças todas.
Quando o carro se aproximava botei a mão neste meu peito magrinho: o
coração pateava. Quem era esse que estava chegando para nós? (Esse eu
não queria ter inventado. Esse personagem transbordava da minha
fabricação.) (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 122-123).

Como se pode ver, expressões como “como sempre” e “o que era raro” são
exemplos que denotam a naturalidade com que convivem as situações que
exprimem uma aparente ambigüidade. Cabe também observarmos, nessa citação, o
momento de inserção da voz autoral no texto. Como a uma justificativa para um fato
tão inusitado, especialmente em nível de posturas e de atitudes narrativas, Lya Luft
parece se redimir, em suas palavras, da ousadia de sua própria criação. E num
ímpeto de culpabilidade (trágica?) – ou mesmo sob o impulso da necessidade de
externalizar, ao leitor a falta de domínio sobre sua própria criação – Lya nos afirma
que não querida ter inventado esse personagem. Entretanto, ele transbordava sua
imaginação, e criá-lo era uma forma de ultrapassar os limites da própria imaginação
– o que nos remete ao caráter de sobre-humanidades que a imaginação condensa.
Esse caráter é também revelador do olhar que acomete o próprio ofício de escrever,
que, muitas vezes, extrapola os desígnios do próprio autor – o que pode ser
pensado também em nível de ambivalência, já que ao autor, são conferidos todos os
aparentes poderes sobre sua própria criação.
Retomando a questão da força que o olhar concentra nessa narrativa, temos,
no segundo momento em que o Moço é definitivamente apresentado a todos da
família, uma relação iniciada simplesmente através do impacto motivado por essa
força do olhar. É interessante notar o caráter de relevância que o incomum passa a
assumir diante do que é visivelmente comum:
185

Entrou na sala e parou, um rapaz comum, nem feio nem bonito, nada
especial a não ser que era a visita do destino. Podia ser uma pessoa
qualquer, esse namorado de minha irmã, uma pessoa: mas em seus
calcanhares vinham muitas sombras agitadas, querendo desarrumar as
nossas vidas. Minha Mãe entrou na sala vindo do corredor e também
estacou. E o vento se recolheu, as águas do riacho correram em direção
invertida. Começava uma história dessas em que a gente só acredita se
viveu. Minha Mãe e o Moço se olharam pela primeira vez – e foram
tragados. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 123).

Como se pode ver, o sentido do trágico parece dotado de todo esse caráter
de inversão que se configura no anúncio desse instante, metaforizado pelo
recolhimento do vento e pela direção invertida em que as águas correram. Ser
tragado pelo olhar intensifica o sentido de impotência diante de um desígnio maior,
e, assim, inesperado – um dos sentidos do trágico.
É o olhar que também se reveste de um outro sentido para demarcar a nova
postura da mulher, sobretudo no que se refere às suas escolhas. No capítulo
intitulado História de Mãe e Moço, o Menino descreve a força reincidente desse
silencioso modo de agir / amar, quando descreve novamente o encontro de sua Mãe
com o namorado de sua irmã:

Minha Mãe e aquele Moço, quando não se viam se olhavam. Quando não
se tocavam, se roçavam. Nesse ponto de cegueira os dois se perdiam de
nós, e eu perdera o mando. Minha irmã percebeu alguma coisa? Só quem
fosse cego não notaria, e mesmo que fosse cego teria de perceber, pois
escorria entre eles dois um mel, e aromas – não havia como não sentir. Ela
podia não ter notado, mas naquele instante mesmo fora excluída. Ninguém
soube na hora, ninguém na verdade nunca soube com todas as letras, mas
foi assim. Assim foi estabelecido no mundo inteiro. (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 124).

É interessante notar, também, o sentimento de liberdade que compõe a


personagem feminina de Lya Luft, referindo-me, aqui, especificamente à
personagem da Mãe – liberdade antes não permitida sequer em nível de
pensamento, ainda que muito pleiteada e sonhada pela maioria de suas
personagens. Parece haver uma permanente transgressão de sentidos, manifestada
na insistência em revelar, em diversos níveis, outros modos de olhar. Podemos
pensar nessa transgressão a partir da constante desconstrução de rótulos tão
aparentemente evidentes. Observemos, por exemplo, o modo com que o Menino
narra a situação entre a Mãe e o namorado de sua irmã. Percebemos que não se
instaura um triângulo amoroso mediante essa situação. Contrariamente ao que se
espera, o Menino se refere a um quadrângulo amoroso, do qual a figura do Pai é
186

excluída: “A Mãe e o Moço. E os olhos deles! A fonte da dor. O poço da dor. O fogo
da dor. A possibilidade da dor doendo tanto quanto. O quadrângulo da dor: Mãe,
Moço, Menino. E a irmã do Menino. Desta vez o Pai ficaria de fora.” (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 124-125).
Olhar e cegueira também se entrecruzam nesse universo de ambigüidades, e
se completam ainda que denotem adversidades. Assim, o olhar que sustenta a
cintilância dos sentimentos para alguns personagens parece ser o mesmo que
também desvia a clarividência de outros. Uma passagem interessante como
observação desse processo se dá no instante em que o Menino insiste em dizer da
maneira com que o mundo se transformava mediante a mais simples possibilidade
de encontro entre a Mãe e o Moço, e, com isso, como esse modo de olhar incidia
sobre todos eles: Menino, Moço, Pai e Mãe:

E cada vez que minha Mãe e o Moço se defrontavam, mesmo no mais


trivial, o mundo era outro. O olhar deles era uma celebração da vida. Meu
Pai, tão cioso da sua propriedade, sua posse e sua presa, dessa vez ficou
cego. Vivia numa perspectiva de onde não se enxerga o essencial. Pois não
parecia ligar: e na verdade concretamente nada havia, nem um beijo, nem
um descaramento, nem um toque a mais. Só os fios da necessidade deles
de serem um do outro, o sim definitivo, o sim. Por isso, por arrogância, por
cegueira ou por destino, meu Pai foi o mais que todos exilados. Com isso eu
me alegrava muito. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 125).

Mais uma vez, deparamo-nos, aqui, com as ambivalências provocadas


também pelo modo de olhar. Enquanto o olhar, para a figura do Pai, se constitui
como um exílio, para a personagem da Mãe e do Moço ele se configura como uma
celebração da vida. Contraste de idéias à parte, o trágico não deixa de incidir aqui. E
é aqui, também, que o estilo se configura como um traço marcado pela diferença,
celebrando o que Manoel de Barros tão bem instituiu como dom do estilo. Dom que,
na obra de Lya Luft, concretiza grande vigor nesse romance.
Pensar nas formas com que Lya reverte o sentido do trágico nos faz pensar,
também, nas formas contemporâneas que adornam esse elemento na ficção dessa
autora. Reconhecemos isso ao percebermos, em O ponto cego, a exímia
capacidade de enfrentamento do inadiável. Se, conforme nos afirma Mauro Meiches,
“o enfrentamento do inadiável, ou melhor, do inexorável, é um ensinamento trágico
da maior vitalidade” (MEICHES, 2000, p. 152), abraçamos esse ensinamento no que
ele assume de mais contemporâneo na obra de Lya Luft.
187

Para isso, recorro a algumas considerações que Giorgio Agamben elaborou


sobre o que é o contemporâneo, iniciadas a partir de perguntas que, segundo ele,
compõem o limiar de seus ensaios: “De quem e do que somos contemporâneos? E,
antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?” (AGAMBEN, 2009, p. 57). Diante
dessas iniciais questões, surge a primeira definição de que “o poeta – o
contemporâneo – deve manter fixo o olhar no seu tempo.” (AGAMBEN, 2009, p. 62).
Como elemento motivador de uma outra definição, ele questiona: “Mas o que vê
quem vê o seu próprio tempo, o sorriso demente do seu século?” (AGAMBEN, 2009,
p. 62). Diante dessa motivação, ele propõe, então, uma segunda definição da
contemporaneidade: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu
tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para
quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros.” (AGAMBEN, 2009, p. 62).
E pensarmos na trajetória literária de Lya Luft, é uma das formas de percebermos
como ela entrecruzou essa obscuridade imanente ao tempo. Em nível de produção
literária, a análise da constituição dos primeiros romances pode nos indicar, com
clareza, “uma dorida e impiedosa radiografia do universo social e moral da classe
média gaúcha, de tradição germânica e, por extensão, da sociedade tradicional
cristã burguesa.” (COELHO, 1993, p. 231), isto é, uma revelação baseada na
vivência de tendências provocadas pelos anseios de uma época. Ao analisarmos o
seu último romance, veremos como essas questões se mantem fixas a uma mesma
base, na qual se concentram os mesmos conflitos, e, ao mesmo tempo, como esses
conflitos são constituídos mediante novas percepções. Isso não significa,
necessariamente, que Lya Luft apenas tenha modificado seu modo de escrever. Ao
contrário, ela manteve um modo de escrita fixado nos conflitos de seu tempo, que
permanecem até os dias de hoje, modificados, porém, em suas novas formas de
expressão. Essa postura de reelaborar questões inerentes ao passado, de
transformá-las e de colocá-las em relação com outros tempos nos aproxima do
sentido de contemporaneidade que Lya Luft confere a elementos recorrentes em sua
obra – como a questão dos conflitos humanos, as tensões que se estabelecem entre
vida e morte, masculino e feminino, o um e o outro, os modos do trágico, e tantos
outros.
Diante dessas considerações, entendemos que o contemporâneo, na obra de
Lya, abriga o sentido de que “o contemporâneo não é apenas aquele que,
percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele
188

que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo


em relação com outros tempos [...]” (AGAMBEN, 2009, p. 72). O romance O ponto
cego engendra um pouco dessa idéia, especialmente se ela for pensada em nível da
abrangência que o elemento tempo admite nessa narrativa. Um tempo imaginário,
onde a visibilidade da infância cede lugar ao escamoteamento da passagem do
tempo – um tempo que, mesmo se admitindo como fictício, também passa,
transpondo, da ficção para a realidade, o seu caráter iniludível. E esse não seria
mais um dos atributos do trágico?
Como já foi dito anteriormente, tudo nasce, nesse romance, do olhar de um
Menino que não quer crescer. E o percurso que ele traça, para se manter nessa
incontestável condição, nos atrai através das várias justificativas que ele mesmo
elabora em favor dos benefícios que lhe são conferidos apenas no período da
infância. E esse Menino se compraz na sua qualidade de narrador: um narrador
ensimesmado em seus próprios desejos e desígnios. E é ele quem se (nos)
determina:
Não vou crescer mais que isso. Não quero ser adulto como esses com suas
vidas regradas, podadas, abortadas. Não quero ter que viver só no que se
delimitou como sendo o real. Não quero perder minhas asas, por isso não
vou crescer – apenas me desenrolar. Assim me infiltro em todas as fendas.
Assim caibo em toda parte e ninguém desconfia de mim. Continuam
pensando que criança é inocente para sempre amém. Essa é a minha
grande vantagem. Eu sou o narrador, e não preciso de platéia. Sou o
espreitador, e não preciso olhar de frente. Vago pelos corredores e subo
nos telhados, entro nos quartos, desço as escadas, limpo um canto de
jardim – mas preservo o enigma. Esse é o meu divertimento. Eu gosto do
embaixo, do debaixo, do escuro. Meu lugar é onde se represa o tempo e a
minha vontade se exerce. Ali todos estão para sempre, e me olham e se
olham, partes da mesma interminável história de cada pessoa, na qual
importa o sonho e a vigília é nada. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 32).

Podemos notar que a condição de ser adulto, aos olhos desse Menino, inibe a
tomada de decisões, e implica na obrigação de ter que pertencer a um sistema que
dita normas e submete regras. Diante de um real delimitado, uma das formas de
permanência passa a ser o mascaramento da própria realidade, manifestado na
imagem do Menino / criança, a quem é dado (a) total liberdade de imaginar. A Mãe
do Menino também compartilha dessa posição, experimentada no seu modo de
pensar, quando diz ao próprio Menino; “Tudo existe. Tudo que a gente inventa
existe, se a gente quer, existe lá no seu mundo, do seu jeito. [...] Podemos inventar
qualquer coisa que nos dê alegria, que nos ajude a escapar. Um amigo, um cavalo,
um caminho.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 31). Vale retomarmos, aqui, o valor da
189

imaginação para esse texto de Lya Luft. Inventar (se) é uma forma de alegria, uma
forma de escapar às condicionalidades impostas à própria vida. Assim como Nora,
em A sentinela, que reelabora, nos tapetes, os fios do seu próprio destino, o Menino,
aqui, recria, através da imaginação, suas próprias condições de permanência: “Com
a matéria de minha solidão fabriquei um amuleto, um objeto mágico. De mentira ou
de verdade, que importância tem? O que eu imagino se abre para mim sem
restrições nem limites.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 35). Sim, o amuleto possui e
encerra uma força mágica, pois realiza aquilo que pretende simbolizar: “uma relação
muito especial entre aquele que o traz consigo e as forças que [ele] representa.”
Assim, ele “fixa todas as forças [...], firma o homem no cerne dessas forças, fazendo
crescer sua vitalidade, tornado-o mais real, garantindo-lhe uma condição melhor
após a morte.” (ELIT apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 49). Como se
pode ver, a imaginação assume, mais uma vez, a propriedade de formar imagens
que ultrapassam a realidade, criando, assim, um modo de as pessoas
permanecerem nela. E o Menino insiste: “(o inventado é o dom dos que não
acreditam demais no comprovado. Sete pode ser um número par: basta que a gente
acredite.)”. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 49).
Ainda sob o poder mágico de Peter Pan, o Menino defende as características
que essa permanente condição de infante lhe confere:

Um menino é secreto e observador. Dissimulado: guarda o que acontece, o


que dizem, gritam, gemem as mulheres e os homens ao seu redor, no
concreto e no pensado. Vai tendo a sua visão do mundo, sua perspectiva
nem sempre cega: mulheres aqui, homens ali. Mulheres assim, homens
assado. Crianças nada. Por toda parte, aparências: a verdade cresce nas
fendas como cogumelos. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 41).

É interessante notar as percepções conferidas ao olhar desse Menino. Ao


afirmar suas virtudes – um menino é secreto e observador –, contrapõe-nas ao se
definir, também, como dissimulado, especialmente por guardar coisas que,
aparentemente, acontecem fora do domínio do infantil. Note-se, também, a crítica
aos lugares preestabelecidos, quando determina mulheres aqui, homens ali.
Mulheres assim, homens assado. Crianças nada. E o mais importante: a sutileza da
consciência do trágico mediante essa perspectiva, engendrada na frase: Por toda
parte, aparências: a verdade cresce nas fendas como cogumelos. E num tom
extremamente crítico à hipocrisia de que se constituem as aparências, ele
acrescenta:
190

Se eu me tornar adulto, serei igual a eles, perdendo a minha perspectiva,


arrastado para fora do abrigo da minha pequenez: já não poderei tecer nem
tramar. Serei a negação que promove a segurança: não olhar o perigoso,
não escutar o proibido, não puxar as fantasias pela barra da saia para que
venham, para que cedam, para que voem. (LUFT, O ponto cego, 2003, p.
41).

Como se pode ver, o Menino não deixa de criticar a postura de cultivo da


aparência em detrimento da essência das realidades. Vale dizer que aqui, pela
primeira vez, é a voz do Menino (masculina?) que empodera a personagem
feminina, para que ela assuma um outro tom de voz, e, com ele, uma nova postura.
Essa sensibilidade masculina metaforizada no amor do Menino pela Mãe se
manifesta amiúde, geralmente envolta por um ideal de solidariedade. Isso acontece,
por exemplo, quando o Menino tenta readaptar o discurso paterno / masculino em
favor não só da figura da mãe / feminino, mas em favor da liberdade que todo ser
humano deveria ter. Em uma cena em que a personagem da Mãe decide internar
sua própria mãe em uma clínica, em função do avançado estado de loucura em que
ela se encontrava, lemos:

[Mãe] – Que Deus me perdoe se tomei a decisão errada a respeito da


mamãe.
[Pai] – Foi a decisão certa, e você sabe disso. Não era mais possível
tomarem conta dela em casa, lá ela está protegida de si mesma.
[Menino] Achei isso muito bonito. Todo mundo devia ser protegido de si
mesmo, das suas decisões erradas, de dizer sim na hora do não, ou não na
hora do sim. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 50).

Podemos observar como o Menino se apropria de uma sentença proferida


pelo Pai (masculino) e a destaca em um nível que transcende os limites entre o
feminino e o masculino – atitude a que se dedica Lya Luft, em toda sua obra. A
indicação de que todo mundo devia ser protegido de si mesmo inclui, a meu ver, os
desígnios do destino, e nossa postura diante deles. E nisso também reside o trágico.
Sobre a condição feminina, especificamente, o Menino condensa, do seu ponto de
vista, essa designação. Ao nos preparar para o sim definitivo que sua Mãe daria a
suas próprias escolhas, ele nos adverte sobre essa nova condição assumida pela
personagem feminina: “Talvez minha Mãe tenha se cansado dessa falta de si
mesma e desse peso do outro, e precisasse de algo que nenhum de nós pode lhe
dar. Só quem faria isso seria o predestinado e o premeditado também.” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 61). Sobre os papéis, principalmente em nível do que pertence
ao masculino e ao feminino, ele nos diz: “É muito esquisito isso de pai e mãe terem
191

sido outros, com cenários e papéis a cumprir muito antes de eu sequer entrar no
palco deles.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 67).
Uma passagem interessante no que se revela, nesse romance, como um
progresso do comportamento feminino mediante as determinações – atitudes muito
importantes quando discutidas em nível de gênero, especialmente –, se manifesta
no discurso entre mãe (Matriarca) e filha ( a Mãe do Menino). E assim o Menino nos
conta: “– Numa relação há sempre um que se curva e outro que comanda. Trate de
ser aquele que detém o poder – disse minha Avó, que se vangloriava ter mandado
em meu avô a vida toda: “Ele manda na empresa, eu mando nele.” (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 68).
Não podemos deixar de nos lembrarmos do arquétipo edípico que se constitui
nessa narrativa. Primeiro, pela configuração psicanaliticamente reconhecida na
tríade dos capítulos: 1) História de Mãe e de Menino; 2) História de Pai e Mãe; 3)
História de Menino sozinho. Em seguida, já nas primeiras páginas, temos a
explicação: “Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de
muita sombra. História de desvãos, do embaixo do debaixo, do secreto.” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 17). Por fim, entremeados por muitos outros momentos, o que
mais se destaca, a meu ver, em nível de representação desse arquétipo, é o
momento em que o Menino nos interroga: “Por que razão ser importante para meu
Pai é mais importante do que ser importante para minha Mãe, se, afinal de contas,
quem realmente importa, na casa, na vida, é minha Mãe?” (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 64).
Em seguida, temos o momento em que ele descreve a sensação que o
acomete, quando presencia (fantasia?) a relação sexual entre seu Pai e sua Mãe:

Tenho uns três anos. Estou deitado no chão de tábuas enceradas, só de


calçãozinho, o frescor da madeira contra o peito me faz bem, está calor.
Assim deitado, rosto encostado no assoalho, espio debaixo de um móvel.
Rolinhos de poeira, sombras, movimentos pelas beiras. Pela primeira vez
me toca a certeza do íntimo e do secreto. Algo rebrilha numa fresta entre as
tábuas. Uma euforia me acende, minha pele se arrepia de tanta sedução,
essa oferenda é para mim, isso é meu, só meu. Uma criança não possui
nada além do seu medo e da sua fantasia, mas nessa hora eu possuo
aquilo, pelo menos a sensação daquela beleza, aquela pungência é minha.
(LUFT, O ponto cego, 2003, p. 65).

Como se pode ver, subentende-se que a reconstituição da cena edipiana está


sugerida nos dizeres: essa oferenda é para mim, isso é meu, só meu, especialmente
192

na possibilidade que eles denotam em nível de posse da Mãe. A condição trágica da


impossibilidade de posse também se mostra na condição de posse do sentimento
daquilo que não se nomeia enquanto dor pungente que desencadeia. Seguida a
essa dor de existir, recai sobre o Menino a consciência – trágica? – do não
pertencimento de nada, e da precariedade do ser humano diante dos desígnios do
destino. Percebemos isso quando ele nos narra o momento em que seu Pai
descobre sua presença debaixo do móvel:

– Mas os passos enérgicos de meu Pai trazem o cheiro dele, sua força e
sua impaciência: – Menino, levanta daí, vá brincar. E me pegando com força
pelos ombros me faz levantar, enquanto diz à minha Mãe: – É bem seu
filho, esse aí. O que será que ele está sempre enxergando embaixo dos
móveis? [...] Nesse momento sou tocado por outra sensação: a de que nada
é realmente meu, nada permanece, tudo é precário. Os encantamentos
podem ser roubados, não sou dono de mim mesmo. Quem eu tenho de
amar pode querer o meu mal. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 66).

Percebemos, aqui, que o Menino, além de reconhecer a precariedade


subjacente ao caráter do que é – ou do que se apresenta como sendo –,
aparentemente, permanente, sugere uma alusão ao que Sigmund Freud chamou de
Totem e Tabu. Se analisarmos as considerações que o Menino faz, especialmente
no que diz respeito ao seu não pertencimento de coisa alguma, à sua vontade de
não crescer para não suceder ao Pai, e aos vários desafetos que ele mesmo
constata em nível de afetividade familiar – Quem eu tenho de amar pode querer o
meu mal –, veremos que os princípios totêmicos também perpassam pelo romance,
ainda que eles tenham sido tocados pela freqüente escolha de Lya Luft na
composição de seus textos: a de inverter o sentido já estabelecido das coisas, a fim
de provocar outros sentidos, também possíveis, especialmente se analisados sob
um outro ponto de vista, ou sob uma nova ótica. Essa questão alcança uma
visibilidade maior quando o Menino nos fala de um sonho que o acomete com certa
freqüência:
Tenho um repetido sonho assustador: estou sentado numa das enormes
poltronas de couro verde-escuro no escritório de meu Pai, em casa, onde
reina o aroma de couro, cachimbo e livros. Esse é o meu santuário, o lugar
que eu desejo e temo, onde em geral estou proibido de entrar. Não é lugar
para criança. Mas eu entro, eu vou: quando ele está no trabalho, ou de
noite, quando dormem, eu me escondo embaixo de sua escrivaninha e faço
de conta que é o meu castelo. Ali, tudo o que eu determino se cumpre. No
sonho, perninhas curtas balançando longe do tapete, vejo meu Pai
aproximar-se com um livro aberto na mão, preparando-se para sentar na
sua poltrona. Naturalmente ele não me vê. E o meu medo, o meu terror, é
que ele não me enxergue e sente em cima de mim, e me esmague com a
sua presença enorme. Tento lhe dizer isso, quero gritar, abro muito a boca
193

que vai-se rasgando nos cantos até as orelhas, o sangue escorre quente
pelo meu pescoço, a dor me dilacera, mas nenhum som sai dessa garganta
insuficiente. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 80-81).

Como se pode ver, configura-se, aqui, uma visão anti-totêmica do que se


constituiu da relação entre Pai e filho / Menino, posto que quem sobrevive à ameaça
engendrada em sonho de ser morto, para que não ocupe o lugar do Pai, é o Menino.
E essa idéia de inversão do totem se completa em: “Quando eu for adulto vou ser
bem diferente desse homem. Bem diferente. Eu preferia era ser menina, porque aí,
quando fosse adulto, virava mulher e não homem, não essa criatura estranha,
peluda, resfolegante e suja mesmo quando limpa, como meu Pai. (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 90).” Em uma passagem mais adiante, em que o Menino pressupõe o
ciúme do Pai por sua irmã, percebemos a idéia de posse como algo estruturante da
questão do totem: “Será que nosso Pai se devorava de ciúme? Alguém ia roubar
mais uma propriedade sua, essa que ele criara e determinara, essa filha que o
ajudara a enganar a morte?” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 121). Note-se a questão
do totem presentificada nas palavras que caracterizam a irmã do Menino: uma
propriedade do Pai, essa que ele criara e determinara.
Retomando a questão do olhar, reflito agora sobre as questões que ele instila
sobre o trágico, metaforizadas, especialmente neste romance, no elemento tempo.
Conforme já dissemos anteriormente, O ponto cego é um romance que
abarca, de forma densa e diversa, muitos sentidos para o que vimos chamando de
trágico e de estilo. Uma diversidade concentrada em um corpo, estilizado pelas
marcas que o tempo – real ou imaginário? – pode imprimir nele. Criar uma idéia de
permanência, mediante a concepção de que podemos exercer um domínio sobre a
(não) passagem do tempo, é uma atitude que se configura, também, como um
sentido para o trágico. Na figura do personagem Menino, não são somente as
habilidades perceptíveis ao mundo da criança que florescem. Criou-se, também,
através desse personagem, uma idéia de domínio sobre o tempo, ou da não
passagem desse tempo. Não crescer significa, para o Menino, não se tornar adulto.
Não se tornar adulto o destitui de assumir qualquer responsabilidade, especialmente
a responsabilidade que nos é dada, desde que nascemos: a de nos reconhecermos
finitos, limitados a um (in) determinado tempo. Assim, a consciência dessa finitude
nos coloca diante da árdua tarefa de sabermos fazer algo com este tempo que nos
foi dado. Resistir nele – ou a ele – é o que nos impulsiona à alegria trágica.
194

Sabemos que a essência da tragédia está no coração do homem, que “é o


centro de todos os acontecimentos”. (MAFRA, 2010, p. 73). Diante disso, pode-se
dizer que “o trágico é constituído de elementos que participam das ações humanas
ou que entram na tessitura dos acontecimentos.” (MAFRA, 2010, p. 73). Temos,
então, a Hamartía, a Hýbris e a Moira ou destino como componentes, ou como
condições do trágico.
A associação que se estabelece aqui, entre o tempo e o trágico, contempla
uma dessas condições: a Moira, ou o destino. E transcrevo: “Da mesma raiz de
heimarméne é o vocábulo Moira17, que significa ‘parte’ ou ‘lote’, e desse sentido
deve ter passado, por extensão, a designar aquilo que a cada um cabe em sorte na
vida, ou seja, o destino.” (PEREIRA apud MAFRA, 2010, p. 81). Com esse nome, os
gregos designavam a “força superior e externa, contra a qual se tornam impotentes
todas as iniciativas humanas. A Moira “é um poder ‘inacessível’, ‘eterno’,
‘irrevogável’ e muitas vezes ‘duro’, que ‘fixa o teor e decurso da vida humana’”
(HELMUT GROSS apud FREIRE, 1969, p. 16). Dessa forma, sendo idêntico ou não
a Zeus, “ o Destino ou Moira ou Fatalidade é o ser todo-poderoso e onisciente, é a
força à qual se contrapõe a finitude do homem.” (MAFRA, 2010, p. 82).
Percebemos, diante disso, como a irremediabilidade do passar do tempo,
representada em O ponto cego, está estreitamente ligada às condições do trágico.
Essa condição de ser estranho ao que naturalmente se concretiza como algo
comum – aqui, especificamente, sobre o fato de o menino não crescer – é a
expressão de máxima importância que o Menino confere ao poder que lhe é dado
sobre seu próprio destino – o que remete, aqui, à história de Édipo, como contada
por Sófocles.
A história de Édipo, segundo Sófocles, parece conduzir a ação do destino em
duas direções: a do plano dos deuses e a do plano dos homens. Vê-se, no plano
superficial da história, que a ação humana é mediada pelo exercício pleno da
vontade e da liberdade – o que, de certa forma, acontece com o Menino, na medida
em que se reconhece dotado de poderes e de liberdade de escolha sobre seu
próprio destino. Ademais, sua história é edipianamente constituída através da figura
17
Para os latinos, a Moira era chamada Parca ou Parcae (as Parcas), o que, para os gregos, é o
mesmo de as Erínias. As Parcas eram deusas filhas de Nix (Noite) e chamavam-se Cloto,
Láqueses e Átropos. Suas funções se constituíam em tecer o fio da vida, distribuir a sorte e cortar
o fio da vida dos humanos. Temos ainda, na tragédia grega, a identificação entre a Moira e Zeus,
uma vez que ela “exprime o fado de cada um e é a expressão da essência divina, particularmente
na manifestação de dois atributos: justiça e providência.” (MAFRA, 2010, p. 81).
195

da Mãe, que lhe confere plena visibilidade. Como ele mesmo nos diz, “Neste grupo
de minha família eu sou o mais estranho. Se não fosse por minha Mãe eu nem
existiria: seria sombra, bicho, boneco.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 73-74).
A história do Menino é totalmente humana, assim como a de Édipo. Neste,
esse caráter de humanidade se dá

[...] até o momento em que se frustram todas as ações para evitar a


profecia, e tudo se desmorona. Frustram-se as ações humanas cada vez
que, diante de acontecimentos aparentemente inocentes, se vê cumprir o
oráculo, numa demonstração de que, acima dos homens, está o poder ou o
desígnio dos deuses, com uma dinâmica que se contrapõe à dinâmica
humana. (MAFRA, 2010, p. 84).

Em relação ao Menino, esse caráter é constantemente reelaborado sob as


perspectivas do tempo, e da autonomia que o Menino julga ter sobre esse tempo. Ao
Menino, frustram-se suas ações humanas no momento em que se vê
irremediavelmente acometido pelos sinais do tempo: essa irremediabilidade da ação
do tempo acoplada ao destino se institui mediante a ambivalência que circunda o
poder do Menino de inventar esse tempo, e a de, simultaneamente, manter-se refém
dele, determinado por uma instância maior, ou seja, pelo destino. Leiamos:

[...] Finjo que não sei, não vejo nem comento. Brinco, invento, e também
obedeço aos que invoquei. Quem conhece mais a solidão do que alguém
diferente, insuficiente, frustrante, alguém que fica de fora até no tamanho?
Eu não cresceria mais de qualquer jeito, então era coisa predestinada – ou
decidi não crescer, e era premeditado? (Ou, vendo que não crescia mais,
tornei isso minha decisão, decidi em cima do decidido – e assim consegui
me apossar do meu destino?) (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 74).

Observemos, aqui, o sentido de clarividência que recai sobre essa


ambivalência, constituída nas palavras predestinada e premeditado. Esses
vocábulos denotam a ilusoriedade das nossas decisões ao que já está determinado
pelo destino. A interrogação sugere o que o Menino não pode compreender, e a
mesma pergunta nos remete à dinâmica fatalista a que Kitto se referiu quanto ao
destino de Édipo. Segundo ele, o que aconteceu a Édipo “é parte da teia geral da
vida humana” (KITTO, 1972, p.256). E Fergusson acrescenta a essa assertiva que
“Édipo sofre sob forças que não pode nem controlar nem compreender – fantoche
do destino; mas, ao mesmo tempo, quer, e inteligentemente determina, cada um de
seus movimentos” (FERGUSSON apud MAFRA, 2010, p. 84-85). O Menino, ainda
que, como Édipo, determine seus movimentos diante das circunstâncias, confessa a
196

necessidade de ordem e limite que o acomete, o que implica no reconhecimento


dessas instâncias mesmo na vida de um herói trágico:

Quando me canso das minhas imaginações, quero o de fora e o concreto.


Às vezes também eu preciso de ordenação e limite. Então convoco a
realidade mais cotidiana: subo na balaustrada na varanda e me sento
balançando as pernas. Sei que minha Mãe logo vai chegar correndo, com
medo de que eu caia ou me jogue, insegura com essa minha pequena
liberdade. Depois desse lapso de tempo que é só meu, ela vai me chamar
de volta com seus cuidados e serei prisioneiro das coisas banais que um
Menino tem de cumprir. Em alguns momentos, isso me salva do impreciso
infinito. [...] E quando soprasse o vento, aquele vento, um grande cavalo
cor-de-mel, um cavalo mágico – que eu já vi algumas vezes – carregaria
tudo isso em suas asas para dentro do sossegado definitivo. (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 105).

Note-se como o lapso do tempo a que o Menino se refere se instaura como


elemento mediador entre a vida e a morte, entre a permanência e a instabilidade.
Para suportar a dor da finita existência, é preciso criar situações nas quais se
manifestem, diante da nossa pequena liberdade, a mais ingênua sensação de poder
diante da sustentabilidade da nossa permanência.
Se podemos afirmar que “isso é tragédia, isso é o Destino. Esse é o sentido
da Moira” (MAFRA, 2010, p.85), podemos dizer, também, que ela é a condição
determinante do trágico em O ponto cego. Embora o Menino se determine não
crescer, ele sofre as designações impostas pelo tempo, que agem contrariamente às
suas próprias determinações. E diante dessa sua irremediável condição, é ele
mesmo quem nos diz: “Fiz um pacto e executei os rituais, mas começo a ver que
mais do que narrei estou sendo narrado: pois não parei simplesmente de crescer.
Estou mudando de muitas formas. Minha altura continua a mesma, mas por dentro
eu ainda cresço.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 77). Como se pode ver, não é
suficiente instituir pactos e cumprir rituais: o destino é mais forte, e a ele são
confiadas as determinações inerentes ao tempo. Como o próprio Menino nos
adverte, “Não adianta correr nem se debater, pois o tempo come as beiradas da
gente, corta e recorta e rói, cobre e recobre, e nos encerra em seu oval perfeito – e
como os mortos, hibernamos. (E também a isso eu digo: Sim.)” (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 106).
A atitude insistente do não querer crescer também metaforiza a idéia de
domínio sobre o tempo. Se o tempo de vida não passa conforme seus atributos
naturais, o tempo da morte também não chega, uma vez que a idéia de finitude está
197

estreitamente ligada à idéia de temporalidade, isto é, de permanência. Essa idéia


atinge visibilidade na voz do Menino, que nos diz:

E a minha vida, o que é? Perigosas possibilidades lá na frente, por isso não


quero crescer. Prefiro o mundo visto deste prisma. Parei de crescer mas
meu corpo sofre: vivo cansado, caminho devagar, o sol me incomoda e a
minha voz não é a mesma. Isso que eu não entendo começa a me
preocupar. Pois nem tudo pode ser desinventado depois que se iniciou.
(LUFT, O ponto cego, 2003, p. 85-86).

Note-se, aqui, como a opção de não querer crescer está condicionada ao fato
de o Menino não querer se encontrar com as “perigosas possibilidades lá na frente”,
embora essa idéia seja contradita por ele mesmo, ao assumir que “nem tudo pode
ser desinventado depois que se iniciou”, isto é, o tempo é iniludível em sua
essencialidade trágica. É interessante notarmos, também, a reincidência da figura do
anão, especialmente no momento em que o Menino se vê rendido aos sinais do
tempo. O anão, enquanto elemento partícipe das forças telúricas é considerado um
deus da natureza. Diante das virtudes mágicas que se lhe atribuíram, ele se
aproxima das figuras dos gênios e dos demônios, é tido, também, como a imagem
dos desejos pervertidos18. Assim, a idéia de uma força pertencente à natureza
parece sustentar a idéia de um domínio sobre o destino: “Como meu Pai na sua
prepotência, como minha Avó na sua loucura, aqui eu sou o senhor. Aqui eu tenho o
mando. Aqui ordeno, invento, desarrumo e conformo segundo o meu saber. Eu sou
o Anão.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p.114), ou seja, deter esse domínio, ainda que
ficticiamente, é um modo de sobreviver às designações do tempo, em relação ao
destino. A figura do anão, ainda que designe uma certa autonomia sobre o destino
do Menino, não é suficiente para afastar, dele, a consciente presença da Moira:

E se na verdade a gente não decide nada? Se o destino é quem escolhe, e


todas essas mudanças que não entendo e ninguém parece entender
aconteceram em mim antes de eu escolher – portanto eu só pensei estar
optando, apenas me adonei da minha própria fatalidade? (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 118).

Percebemos, através do destaque conferido à palavra antes, a idéia de um


fatum anterior, intensificado pela idéia de um adonar da própria fatalidade. E nisso
reside a idéia do trágico, aqui determinada pela Moira, enquanto “força superior e

18
Conforme definições do Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, (2009, p. 49-
50)
198

externa, contra a qual se tornam impotentes todas as iniciativas humanas.” (GROSS


apud FREIRE, 1969, p.16). Essa impotência se explicita, nitidamente, em:

A visão de um Menino parecia certeira: oblíqua vindo das zonas inferiores,


do fundo do tempo aparentemente manobrado. Mas por baixo a correnteza
mastigava as areias. A força de um Menino: o mundo que ele vê como
ninguém mais. Aquilo que ele persegue nos corredores da noite, nos
beirais. Ele pode exorcizar um cavalo cor-de-mel que começa a mover as
ocultas asas. (A impotência de um Menino é que às vezes a morte joga fora
o certo e recolhe o errado.) (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 127).

A idéia de domínio sobre o predestinado, simultaneamente associada à de


impotência diante das fatalidades, assim como a idéia de impotência transcrita
acima – A impotência de um Menino é que às vezes a morte joga fora o certo e
recolhe o errado – parecem exorcizadas na metáfora do domínio representada pelas
figuras dos bichos de seda. Ao matá-los, o Menino se coloca como senhor e
determinante do tempo deles, numa tentativa de justificar a não obediência do tempo
às suas próprias ordens, ou mesmo numa forma de sublimar sua própria impotência
diante dos desígnios que estavam por vir. E é ele que nos determina:

Eu, o Anão, eu o Gnomo, eu o que persegue as mais remotas


possibilidades e ouve até mesmo o roçar das peles na noite, eu que assino
e confirmo as minhas escolhas com minha caneta dourada – eu decidi. E
me custou muito, e me rasgou. Tanto me doeu o que acontecia e tanto que
atormentou o que estava por vir, que um dia tirei de baixo da cama os meus
confidentes famintos e insidiosos, derramei tudo no assoalho e esmaguei
um a um com os pés. E se contorciam feito loucos e sua vida espirrou deles
como talvez um dia a minha vá espirrar de mim, quando minha pele rachar.
Porque eu dera ordens ao tempo mas ele não me obedecia direito, algo
escorrera das bordas, incontrolável: as mutações que eu sofria e as vozes
que eu ouvia me ameaçavam por toda parte. E aí, com os pés sujos
daquela gosma, eu mais uma vez decidi e disse: sim. Eu sou aquele que diz
sim ao não. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 132-133).

Percebe-se, aqui, que mais forte do que a idéia de impotência diante dos
desígnios incontroláveis, inacessíveis e irrevogáveis, em nível do humano, é a idéia
de resistência diante da consciência da presença do trágico. Dizer sim ao não é uma
forma de admitir-se capaz de resistir a esses tantos e desconhecidos desígnios. A
visibilidade conferida ao tempo que se passou e, consequentemente, àquele que o
Menino não controlou, se explicita em:

Falam em contratar também uma enfermeira para tomar conta de mim, pois
do jeito que estou dou muito trabalho, preciso de exercícios especiais, de
apanhar um pouco de sol na sacada com a manta de lã nos joelhos. Preciso
que leiam histórias para mim também, pois minha visão está cada dia pior.
(LUFT, O ponto cego, 2003, p. 139).
199

Diante desse estado de decadência, impera, sobre o Menino, a consciência


do caráter irrevogável do tempo, e das impossibilidades humanas diante dessa
predeterminação. Junto a ela, retoma-se a presença da falha trágica, sugerida nos
seguintes dizeres:
Mas a verdade é que em algum momento meu passo falhou; se tive dons eu
os confundi, apertei botões errados, desestruturei o que pretendia construir.
Eu, que me julguei único dono dos segredos, senhor da pedra de onde o
Diabo se mira e ri sozinho, eu, que alforriei minha Mãe para que ela
finalmente tivesse a sua vida – eu não fiz parte dessa sua escolha: isso eu
não soube prever. Perdi o controle sobre minhas histórias, como se agora
elas me inventassem, mais competentes do que eu. Também não pude
prever o desequilíbrio do tempo no meu relógio, os ponteiros girando ao
contrário ou mais depressa, para lá, para cá. Nem consegui calcular os
preços que todos pagaríamos, porque a gente tem de pagar por suas
escolhas ou suas maquinações. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 139).

Ao contrário de Anelise, em As parceiras, O Menino parece ter descoberto o


lance perverso da jogada, e, com ele, uma forma de redenção, aqui esboçada
através da palavra. Ao reconhecer-se diante de sua condição de precariedade
humana, na qual seu próprio corpo sucumbiu aos efeitos inelutáveis do tempo, ele
insiste, na mesma medida, em reconstituir-se mediante a idéia contrária a que
estabeleceu no início do romance, isto é, de assumir-se diante de uma ordem, que
lhe surge anteriormente aos seus próprios desígnios: “Não posso agora dizer não e
crescer normalmente, e ser um menino e um rapaz e um homem e ter uma vida e
depois morrer?” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 140). Essa reversão pressupõe,
então, a desconstrução de uma identidade para a reconstrução de uma outra,
baseada em uma nova história, emanada, talvez, da própria pele:

Impossível narrar melhor, pois estou sendo desmontado, desenrolado,


destronado e relatado como jamais pensei. Se eu pudesse, apagaria esta
história e começaria a sair da minha pele, nascendo mais uma vez como
fazem os bichos-da-seda depois de cada sono. Mas não diviso a saída nem
tenho mais forças. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 140-141).

Podemos perceber aqui a estreita relação que também se estabelece entre o


olhar, o tempo e o trágico, concentrada na aparente onisciência / onipotência
representada pelo narrador. Este, embora resolva “[...] colocar as coisas em ordem”,
uma vez que é o narrador, reconhece-se diante da impossibilidade de manejar os
cordões da própria narrativa, acentuando a essencialidade trágica que circunda o
âmbito do humano, irrevogável mesmo em nível de ficção. Para isso, o Menino nos
diz:
200

[...] resolvi colocar as coisas em ordem. Pois eu sou o narrador. (Porém


pode acontecer que dos espaços inocentes brotem formas que multiplicam
os significados e tomam a si as decisões: não percebi isso, eu estava cego.
Dei os nós mas não podia prever que alguns deles nem o Demônio poderia
desatar.) (LUFT, 2003, p. 129).

Como se pode ver há coisas que estão fora do domínio do humano, em uma
condição permanente, ainda que esteja representada em nível de ficção, isto é, nem
sempre à ficção é dada a escolha de escape a algumas realidades.
Essa idéia do destino ou fatalidade como “tudo que seja conseqüência ou
efeito inevitável de algum acontecimento” (MAFRA, 2010, p. 80) – idéia
constantemente evocada na obra de Lya Luft, e fortemente representada no
romance O ponto cego – me traz à mente os versos do canto final da tragédia Édipo,
de Sêneca, especialmente por expressarem o sentido que aqui se pretendeu
vislumbrar, em nível dos desígnios humanos e em nível dos desígnios que
antecedem esse humano. Em função disso, transcrevo:

Somos joguetes dos fados. Cedei aos fados. Nossos cuidados, inquietos,
não podem mudar os fios do fuso fatal. Tudo o que fazemos vem do alto e
Láqueses guarda os destinos fiados por sua roca que sua mão jamais fiará
de novo. Tudo segue um caminho certo e um dia traz marcado o que
acontecerá no outro: ao próprio deus não é lícito modificar as coisas, que
correm ligadas a suas causas. Cada um segue uma ordem determinada,
que nenhuma prece modifica: a muitos o próprio medo prejudica; muitos
encontram seu destino enquanto temem o destino. (SÊNECA, 1982, p. 103).

Como se pode ver, a irremediabilidade imanente ao trágico é constituída


apriorísticamente ao humano. Diante disso, caberia-nos, como antídoto a essa
predestinação, o reconhecimento da alegria trágica, capaz de reverter o caráter
funesto que a circunda em uma expansão das forças vitais, reconstituídas nas
diversas maneiras de se sustentar diante do que se nos apresenta como
irremediável. Como Mauro Meiches, creio, também, que todos nós

[...] podemos, à maneira trágica, ver na dor a condição fundamental de


qualquer criação e aceitar atravessá-la porque, de onde estamos, o sentido
disto é jubiloso. Trata-se do que Nietzsche chamou de “dor elegíaca de uma
perda eterna”, a experimentação do irremediável, o clímax que culmina uma
busca e nos prepara para uma transformação. (MEICHES, 2000, p. 154).

Ou como nos disse Roberto Machado, “a tragédia é bela na medida em que o


movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto
201

artístico, com seu sorriso, como criança que joga.” (MACHADO, 1985, p. 29). Nisso
parece consistir a alegria trágica.
Finalmente, retomo a questão do olhar para me referir, agora, à questão do
estilo. Um estilo que se manifesta, aqui, como traço da diferença, reforçada por uma
nova configuração do trágico – ao mesmo tempo tão vária e tão mesma – nos
romances de Lya Luft.
Ao nos ancorarmos na célebre frase de Schopenhauer – o estilo é a
fisionomia do espírito –, reafirmamos, nela, mais uma vez, o trágico como elemento
formador do estilo em toda a obra de Lya Luft. Um trágico que compreende, aqui, a
essencialidade retratada em O ponto cego, mediante vários modos de olhar.
Entendemos, assim, que se a fisionomia do espírito é o estilo, podemos dizer que o
estilo é, também, um modo de olhar.
O trágico configura-se, então, como um modo eminentemente luftiano de
olhar, assumido pelos dizeres: “(Eu, do meu ponto de vista, vejo tudo.)” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 60).
E sobre a força do olhar que incide sobre esse romance, recorro às palavras
de Marilena Chauí para dizer: “o olhar ensina um pensar generoso que, entrando em
si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O olhar,
identidade do sair e do entrar em si, é a definição mesma do espírito.” (CHAUÍ,
1988, p.61).
Foi o olhar generoso que Lya Luft conferiu à condição humana em suas
ficções que me trouxe até aqui, sustentando a convicção de que o estilo constitui-se
como um traço, esboçado em um modo de olhar peculiarmente trágico,
especialmente sobre o âmbito do humano. Afinal, como ela mesma nos diz,
“naturalmente se alguém nos ponderasse que é preciso cautela, haveríamos de
virar-lhe as costas, e rir. E essa é uma das mais privilegiadas condições de ser –
apenas e inteiramente – humano.” (LUFT, Secreta mirada, 1997, p.114).
202

Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça. [...]
No final, ela vence, pois desde o nascimento esse é o nosso destino
ela brinca um pouco com sua presa antes de comê-la. Mas
continuamos vivendo com grande interesse e inquietação pelo maior
tempo possível, da mesma forma que sopramos uma bolha de sabão
até ficar bem grande, embora tenhamos absoluta certeza de que vai
estourar.
Irvin D. Yalom

CANÇÃO DO RIO DO MEIO

Um rio jorra entre o porão e o sótão da nossa vida:


leva dores e amores, nosso último riso há tanto tempo.
Mas numa curva qualquer, porque ainda respiramos, tudo
Pulsa outra vez e brilha de ousadia
sabendo que temos pela frente algum calor,
e um rumor de águas na areia.

Passa no meio de nós, entre o sonho do sótão


e o medo dos porões, o rio da vida:
que me leve para diante ainda uma vez, e muitas,
que venha até mim com sua água turva
ou clara de esperança, toda a audácia e o fervor
que pareciam idos.
Lya Luft
203

6 CONCLUSÃO

Estes são meus objetos:


têm uma pátina que não é do tempo,
é minha dor
roçando neles sua mão aflita.
Este é o meu rosto:
uns olhos que, de procurar demais, olham
só para dentro. E se tudo desemboca na morte,
esse é o meu destino. É para lá que vou,
esperança e protesto,
segurando o candelabro dos amores
que me iluminaram na vida.
(Resistirão, singularmente, ao meu último sopro?)

(Lya Luft)

Este trabalho se propôs apontar o trágico como um elemento constituinte do


estilo na obra de Lya Luft. Para isso, foi necessário traçar um percurso, através do
qual procuramos analisar, cuidadosamente, as diversas configurações que ele
assumiu, em cada tipo de texto literário. Privilegiamos, decerto, os cenários dos
romances Exílio, A sentinela e O ponto cego para um estudo mais atencioso sobre
essas configurações. Entretanto, não deixamos de priorizar, também, o contexto
narrativo dos romances anteriores a estes – As parceiras, A asa esquerda do anjo,
Reunião de família e O quarto fechado –, ainda que tenhamos dedicado, a eles, uma
proposta de análise menos abrangente. Isso se justifica pelo fato de que ao
escolhermos abordar a questão do trágico, bem como suas ambigüidades, na
formação de um estilo de escrita, decidimos, também, dividir os cenários dessas
análises, na tentativa de elucidarmos contextos que se distinguem entre os modos
de representação desse mesmo trágico. Nos primeiros romances, por exemplo,
reconhecemos personagens inteiramente fadados aos seus trágicos destinos, ora
inescapáveis pela tradição e / ou cultura, ora por estarem predestinados àquelas
fatalidades que lhes eram, mais que irrecuperáveis, constituintes. Nesses romances,
o trágico se configurou mediante uma visão fatalista, e, portanto, pessimista, na
vivência desses personagens, representada em nível do que é inerente ao humano.
Já nos romances posteriores, essa constituição passa por um processo de
aprimoramento, especialmente em relação ao sentido que o trágico assume nesses
novos contextos. Ao recriar novas formas de inserção de seus personagens àqueles
(sub) mundos, Lya Luft recria, também, novas formas de eles resistirem às
fatalidades. Assim, personagens como A doutora, Nora e a Mãe do Menino, de O
204

ponto cego, não mais sucumbem ao funesto sentido do trágico, encerrado na morte
ou na loucura desses personagens. Diante de novas e de tão mesmas fatalidades,
essas personagens assumem, também na arte, a criatividade necessária para
manterem-se vivas. Um movimento de expansão da vida lhes ressurge, então, como
uma adesão ao viver, numa experiência que “consiste em exaltar, de maneira
incondicional, a inafiançável transitoriedade da vida.” (BOAVENTURA, 2009, p. 90).
Nas próprias palavras de Lya Luft, a arte é entendida como um precioso abrigo para
a exacerbação desse movimento em favor da própria vida, ainda que ele surja diante
de inúmeras adversidades e alternâncias. Em Secreta mirada, é ela quem nos
declara:
Observo as alternâncias da natureza no meu jardim onde se resumem
tantos milagres. Mal se poderia acreditar, há alguns dias ainda, que desse
capim banal, desse canteiro escuro, dessa planta fechada sobre si,
nasceriam de novo luz, movimento, cor – e tão sedutores desenhos. Assim
como palavras, silêncios, sinais, e materiais variados, até gestos, podem
conter, muito mais do que nós mesmos, isso que se chama arte. (LUFT,
Secreta mirada, 1997, p. 49).

Diante disso, tornou-se possível compreender, no trágico, também um sentido


maior, impulsionador de resistir à transitoriedade da vida. Esse sentido se
vislumbrou possível diante do trajeto que se estabeleceu nesta pesquisa, uma vez
que, através dele, procurou-se mostrar como as diversas figurações, em momentos
distintos do trágico, se constituíram como o estilo da escrita de Lya Luft.
Para isso, tratou-se, no primeiro capítulo desta tese, da apresentação de
dados biográficos, bem como dos percursos literários feitos por Lya Luft, além de ter
sido apresentado, também nele, ainda que sumariamente, o contexto de grande
parte de sua obra ficcional.
No segundo capítulo, foram traçadas as possíveis faces que o trágico
assumiu enquanto elemento constituinte da obra de Lya Luft. Para isso, foram
buscadas teorias várias, que nos aproximaram de possíveis sentidos para o trágico,
desde a antiguidade aos tempos mais modernos. Partindo disso, foi feita uma
análise sob a dimensão trágica com que a realidade humana é retratada nos
romances de Lya Luft. Por fim, discorreu-se sobre o caráter de lucidez e de
embriaguez que incide sobre o trágico, com base especificamente na teoria de
Friedrich Nietzsche.
No terceiro capítulo, buscou-se revisitar o estilo, sob uma perspectiva que
abordasse sua historiografia, bem como seus rumores na escritura. Buscou-se,
205

também, uma análise para o estilo sob o ponto de vista da Psicanálise, a fim de que
esse sentido fosse também vislumbrado na obra de Lya Luft.
No quarto capítulo, apresentamos os elementos corpo e memória como
interfaces do trágico, uma vez que compuseram o cenário para o desenlace de
muitas reflexões sobre o estilo trágico na obra de Lya Luft. Dentro dessa
perspectiva, a memória foi pensada em seus espaços físicos e mentais, bem como a
maneira com que esses espaços se configuram nos romances. O elemento corpo foi
apresentado mediante suas deliberações, que envolvem a teoria reelaborada por
Elódia Xavier, no livro Que corpo é esse?. Através dele, analisou-se as
configurações do corpo, bem como sua constituição mediante o olhar de uma dada
cultura. Dentro dessas mesmas interfaces do trágico, o olhar e o tempo também são
refletidos como espelhos do trágico, visto que são elementos preciosos na
constituição dos romances, especialmente no cenário de O ponto cego.
Decorre-se, então, diante disso, que é possível notar o quanto a retomada a
esses contextos narrativos esboçou as diferentes formas com que Lya Luft se
apropriou de vários sentidos para o trágico, especialmente na medida em que ela
privilegia as ambigüidades como uma forma de permanência – assim como
Nietzsche priorizou a alegria como antídoto contra o caráter inelutável do trágico.
Dessa forma, diante da exposição das recorrentes temáticas que compõem o
cenário romanesco de Lya Luft, e diante da contemporaneização que ela conferiu a
essas temáticas, ouso dizer que o trágico é o estilo constituinte da obra de Lya Luft.
Neste estudo, especificamente, quis demonstrar que, a despeito de toda e qualquer
fatalidade, impera, sobre o texto de Lya Luft, o sentido alegre de que se compõe o
trágico nietzscheano. Uma alegria que “constitui a força por excelência, seja
simplesmente por dispensar, precisamente, a esperança – a força maior em
comparação com a qual toda esperança aparece como derrisória, substitutiva,
equivalente a um sucedâneo e a um produto de substituição.” (ROSSET, 2000, p.
29), experimentada na arte criativa de reinventar-se a todo instante. Sobre essa
alegria maior, que concentra, na arte, uma forma de permanência, Lya Luft nos diz,
“a alegria maior e a maior estranheza é que eu não convoco a arte, mas ela me
chama: sua mão faz um aceno, e corro; sua voz dá um sussurro, e morro. Ela, enfim,
me traz sentido e forma, e algum tipo de permanência.” (LUFT, Secreta mirada,
1997, p. 18).
206

Espero que este trabalho tenha demonstrado as diversas possibilidades que a


obra de Lya Luft abriga, sobre temas tão vastos e, portanto, constituintes do ser
humano. Que o trágico, em sua essencialidade, possa ser pensado mais no sentido
de uma força maior que no sentido pessimista que o termo geralmente contem. E
que a alegria seja a força maior acima de tudo. Destituo-me, aqui, de qualquer
intenção peremptória em nível de uma teorização tanto para o trágico como para a
obra de Lya Luft. Restrinjo os propósitos desta minha pesquisa a uma contribuição
para as reflexões do que se tem nomeado por trágico e estilo, especialmente na
construção dos textos de autoria feminina. Afinal, como ao Menino, de O ponto cego,
eu também digo que do meu ponto de vista, o ponto cego, tudo é possível, e
transparece. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 62). Sobre o sentido do trágico que se
constituiu como o estilo de Lya Luft, eu também me valeria das sábias palavras do
Menino narrador para dizer: Se eu lhe desse um nome seria: Alegria. (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 116).
Por fim, ouso transpor o pensamento de Rilke sobre o que o ato de criação
literária representa, para ele, assim como para a ficção de Lya Luft – se é que este
já não é um estilo interiorizado, devido à predileção da autora pelo poeta. Ainda
assim, insisto:

Para Rilke, o trabalho demiúrgico do escritor não está acima ou fora do


humano. Talvez o preceda – e esse é o aspecto mítico e ancestral da sua
poesia. Ou apenas o revele na sua verdadeira grandeza – e esse deve ser o
segredo de sua força e permanência. (RILKE, 2001, p.12)).

Essa força e permanência, bem como o que precede o humano, se concretiza


nas palavras de Lya Luft, ao declarar:

Apesar de todos os medos, escolho a ousadia.


Apesar dos ferros, construo a dura liberdade.
Prefiro a loucura à realidade, e um par de asas tortas aos limites da
comprovação e da segurança.
Eu, Altéria, sou assim.
Pelo menos assim quero me imaginar: a que explode o ponto e arqueia a
linha, e traça o contorno que ela mesma há de romper.
A máscara do Arlequim não serve apenas para o proteger quando espreita
a vida, mas concede-lhe o espaço de reinventar.
Desculpem, mas preciso lhes dizer:
eu
quero o delírio. (LUFT, Histórias do tempo, 2000, p. 171).
207

Eu, com todos os meus medos, também ousei registrar, aqui, as impressões
sobre a obra de uma autora. E quero agora, que o resultado deste trabalho não
traga em si um tom pretensioso de completude. Que seja, sim, mais uma ponte entre
tantas importantes travessias que já foram feitas, percebidas e pensadas até então.
Afinal, “no circo da vida às vezes somos animais treinados, somos trapezistas,
domadores e domados. Conhecemos truques e ardis, muitas vezes executamos os
passos certos e os gestos quase perfeitos. Mas viver é um salto sem rede.” (LUFT,
Secreta mirada, 1997, p. 57).
“Passos certos e gestos quase perfeitos”: isso eu me propus tentar alcançar,
entender desde o início, embora eu sempre soubesse que essa experiência se
constituiria, também em mim, através de um “salto sem rede”. Entretanto, encontrei
aqui, no espaço deste meu texto, mais que um abrigo para minhas ideias, um refúgio
para os meus modos de ver, de pensar e de sentir os textos de uma autora tão
fascinante. Olhar para este trabalho, ainda que constituído sob minhas várias
limitações, me traz mais espanto que alegria, porque este texto se constitui, em mim,
também como uma maneira de resistência e de identificação ao mundo a que
pertenço, pois “nesse recanto somos reis e réus, exilados senhores, animais alados,
somos toda a possível liberdade.”
208

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219

ANEXOS

ANEXO A - ENTREVISTA LYA LUFT

Entrevista Lya Luft – Por Iara Barroca, em Novembro de 2011.

Lya, você iniciou suas produções literárias com os livros Canções de Limiar,
Flauta doce e Matéria do Cotidiano. Mas o que foi realmente determinante para
que você decidisse entrar, de fato, no mundo da ficção?
LYA: “Desde criança muito pequena, numa casa onde havia muitos livros e se
contavam muitas histórias, desejei jogar esse jogo (assim me parecia então):
inventar pessoazinhas e brincar com palavras. Para mim personagens eram como
bonequinhos que a gente inventava. Muito insegura intelectualmente, escrevi crônica
de jornal e poesia, e publiquei, e só aos 27 anos me animei a escrever um pequeno
romance, antes uma novela. Mostrei para um velho amigo escritor, que disse: “Tudo
muito bonito, muito bem escrito, mas não acontece nada, poucos fatos! Você não é
ficcionista. Fique no que faz bem, crônica e poesia.” Mais de dez anos depois, tentei
contos, e mandei a meu então editor, Pedro Paulo Madureira, da Nova Fronteira,
para quem eu traduzia bastante. Resposta dele: “Seus contos são publicáveis,
posso publicar.mas são todos romances abortados.Você é uma romancista! Sente e
escreva romance”. Dois anos depois,surgiram As Parceiras, e eu tinha 40 anos, mas
penso que foram bons recados, pois amadureci.”

Como foi a experiência de publicação de três romances seguidos: As


parceiras, 1980; A asa esquerda do anjo, 1981 e Reunião de família, 1982?
Houve alguma motivação especial para que estes romances tenham sido
constituídos tão seguidamente?
LYA: Foi apenas natural, e totalmente inesperado para mim também. Como se
depois de 40 anos se houvesse aberto uma represa, e as histórias, personagens,
cimas, se acumulavam. Em 83 eu na verdade já tinha pronto O Quarto fechado, mas
pedi a meu editor que o guardasse para 84, pois eu mesma achava demais, um livro
por ano. Mais tarde aprendi que é tolice: a gente deve escutar o ritmo de sua arte, e
pronto.

Os romances publicados até o final da década de 80 privilegiam visões que


esboçam uma representação para a questão da família, da morte, da condição
feminina e, principalmente, para a condição humana. Como você explicaria
essa predileção temática, se assim a isso eu posso chamar, e por que esses
conflitos tanto povoam o seu imaginário ficcional?
LYA: Não faço a menor idéia. Sempre observei, e sempre me fascinaram as
questões existenciais humanas, sendo as principais, para mim, relacionamentos
amorosos (incluindo familiares), vida e morte, e o sentido de tudo que nunca
encontraremos. Cada escritor tem seu território: esse é o meu, em ficção e poesia.
Nele me sinto bem, e mesmo temas sombrios escrevo com grande alegria, grande
prazer. Muito lúdico.
220

Percebe-se, em todos os seus romances, a constante presença de situações


que nos remetem aos contos de fadas. Essa postura tem alguma ligação com
suas leituras de infância? Quais foram os livros mais lidos – especialmente na
sua infância – e quais deles mais a marcaram?
LYA: Toda a minha obra se enraíza profundamente nos contos de fadas, que me
eram contados, e depois passei a ler, com fascinação. Para mim era tudo real — na
verdade a realidade não existe. Existe o que inventamos. Também sobre ela.O belo
sinistro, pois são contos de grande beleza, e muita crueldade. Algo parecido
encontrei já adolescente na poesia de minha outra grande influência, Rainer Maria
Rilke: belo e enigmático.

De que forma o trabalho de tradução a que você se dedicou – e dedica até os


dias de hoje – exerceu influência sobre o que você escreveu e ainda escreve?
LYA: Traduzir foi o exercício permanente que talvez tenha me ajudado a ter essa
total naturalidade com o escrever, pois escrevo como respiro, embora seja muito
exigente com meu texto, reescreva, delete, rearrume muito até o final. Traduzi
durante muitos anos várias horas todos os dias. Porém no estilo, penso que o
tradutor-escritor aprende a se defender, a instaurar mais e mais firmemente seu
estilo próprio, defendendo-se de tantos outros com que lida no curso de uma vida de
tradutor. Ou, traduzindo Virginia Woolf, eu correria o risco de escrever “à la Virginia
Woolf”,etc etc etc.

Qual foi o trabalho de tradução mais marcante em sua carreira de tradutora?


LYA: Talvez “Cadernos de Malte Laurids Brigge”, texto em prosa de Rilke.
Fascinante.

Qual é a diferença entre a Lya que traduz e a Lya ficcionista?


LYA: A tradutora, ao ligar seu computador cada manhã, é toda uma grande orelha
escutando o que seu colega estrangeiro, vivo ou morto, quis dizer, e como ele
gostaria que eu o dissesse em português para melhor aproximar sua obra deste
leitor brasileiro. Quando escrevo textos meus, sou toda voltada para dentro,
sondando meu inconsciente, de onde tudo brota, escutando minha fantasia,
atendendo a meus impulsos, desejos, prazer e intuição em linguagem e trama. A
autora Lya Luft não quer nada de fora, muito menos teoria, regras, ensinamentos. O
livro é quem se escreve em mim.

Percebo, enquanto pesquisadora, que os romances A sentinela e O ponto cego


inauguram um novo cenário em suas ficções. Neles, personagens não são
mais inteiramente tangidas por fatalidades, mas, sim, responsáveis por suas
próprias escolhas. Como foi feito esse percurso de reelaboração ficcional,
diante de situações tão contrárias, constituintes de seus romances anteriores?
LYA: Isso começou com A Sentinela, de 94, escrito após seis anos de afasia,
quando pensei que nunca mais escreveria nada, só ficaria traduzindo. Nora, a
personagem central, no meio das fatalidades todas, borda seus quadros,
metaforicamente escolhe e dirige e combina fios e cores e desenhos. Mas só me dei
conta disso quando o livro estava pronto! Foi a primeira vez que uma personagem
minha “dava a volta por cima”. Como eu estava dando, depois de um momento
muito sombrio de minha vida, seis anos antes.
221

Quais são – ou quais foram – suas afinidades literárias? E por que esses
autores ou obras se tornaram afins ao seu modo de ler o mundo?
LYA: Foram diversas afinidades em diversas fases da vida. Na infância, o mundo
das fadas. Na adolescência, Érico Veríssimo com O Continente. Mais tarde, Lygia
Fagundes Telles com seus contos e romances. (Ao contrário do que se pensa,
pouca afinidade com Clarice, embora a admire muito.). Sempre Rilke na juventude,
em poesia, comecei com grande afinidade por Cecília Meirelles. Mas com o tempo
vão-se esfumaçando essas afinidades eletivas, eu acho.

O que você definiria por trágico? Pode-se dizer que você é uma autora que
escreve, de certa forma, sobre o trágico? Em que sentido você o vê, o
interpreta ou o recria?
LYA: Não sei a diferença entre ver, interpretar e recriar. Mas o trágico é exatamente,
para mim, no meu texto, esse ser tangido pelas fatalidades, não ter saída. Ou ser
uma “saída” Mortal.

Se você fosse escrever um romance, hoje, qual seria o tema a que você se
dedicaria a ficcionalizar? Por quê?
LYA: Eu estou escrevendo um romance, lendo meu mais recente texto de ficção O
Silêncio dos Amantes, contos. Nunca penso racionalmente a respeito disso. Meu
tema é sempre a estranheza da vida. Neste livro novo, que apenas se esboça, há
um espelho no fundo de um corredor, e nesse espelho um mar, e penso que no fim
de tudo a personagem entenderá que a realidade é a do espelho, aqui fora é tudo
sonho. Mas ainda há muito por escrever, imaginar, explorar no fundo de mim
mesma.

De todos os romances publicados até hoje, qual é o seu predileto ou qual é o


mais pungente, aos seus olhos? Por quê?
LYA: Talvez O Ponto cego, pela inocência do menino trágico. E porque pela
primeira vez realizei um velho projeto, uma criança narrando os dramas e sombras
de sua família e de seus próprios sofrimentos. Outro, anterior, seria o Exílio, com a
figura terna e sinistra e enigmática do Anão, que não sei de onde veio... mas até
hoje me impressiona.

Em entrevista recente, sobre o livro Perdas e Ganhos, você disse que este é
um livro que já está distante. Em que sentido você se refere a essa distância?
O que você diria sobre a classificação que normalmente é conferida a esse
livro: Best seller ou autoajuda? Alguma dessas categorizações foi a sua
intenção?
LYA: Acho que caracterizar como auto-ajuda é fruto de ignorância ou má vontade.
Ninguém pode ser tão tolo assim. Best seller foi apenas um acaso, o livro vendeu
muito. Mas no Brasil, vender muito parece significar má qualidade. Porém ninguém
perguntaria a Marguerite Yourcenar se seu Memórias de Adriano, que vendeu
muitíssimo, é best seller ou autoajuda....Esse tema é ridículo. O “Perdas” foi apenas
irmão mais moço do Rio do Meio, e mais velho da Riqueza do Mundo....nada mais.

Como você definiria o ato de sua escrita: um dom finamente elaborado, apenas
intuição, ou um conjunto de sensações que não cabem em você mesma?
LYA: Precisa ter um talento, saber a certa altura: Eu nasci para isso, pois é o que
me dá alegria, realização, plenitude. Precisa trabalho no sentido de ser exigente com
222

o texto, e o meu eu elaboro muito, na busca de mais simplicidade sem perder certo
refinamento. E coisas mais que não sei explicar, mas que devem fazer parte de
qualquer arte.

Ultimamente, você tem publicado livros ensaísticos, que discorrem,


normalmente, sobre temas cotidianos. Por que a opção em se dedicar à escrita
desse tipo de livros, digo, por que não mais ficção?
LYA: Engano seu: publiquei ficção em 2009, O Silêncio dos Amantes, e de momento
escrevo um romance, de título provisório “O Espelho que me observa”. E se olharem
bem, meus poemas, como “Para não Dizer Adeus”, são histórias. Escrevo crônica
desde os vinte e poucos anos! É um bom exercício de mais objetividade, é outro tipo
de escrita, gosto muito. Não sei por que a um pintor não se pergunta: por que faz
cerâmica, e óleo, e aquarela, e escultura, e instalações, e algo mais? Mas pergunta-
se ao escritor!
Muitos escritores escrevem vários gêneros, quando surge vontade, ocasião, sei lá.
Parece apenas natural.Virginia Woolf escrevia romances, artigos vários, publicou
palestras que dava para mulheres muito simples (A Room of One’s Own), e até um
livrinho sobre artes do seu cachorro,”Flush”. Ninguém achou nada demais. Clarice,
aqui no Brasil, manteve anos a fio uma coluna de assuntos femininos e domésticos
num grande jornal carioca, dando receitas, comentando roupas (babadinhos,frufrus),
algo totalmente fora do que se imagina Clarice. Ninguém critica, nem questiona.
Então, é apenas natural. Por alguma razão, de vez em quando me perguntam e
questionam sobre isso. Acho que virou mania das pessoas...

Como foi – ou como tem sido – para você a produção de Literatura infantil?
Como surgiram as primeiras idéias para o livro Histórias de Bruxa boa, que
não se contiveram apenas nele e provocaram o A volta da Bruxa boa? Gostaria
que você falasse um pouco, também, da experiência de escrever em parceria
com seu filho Eduardo.
LYA: Depois do Histórias da Bruxa Boa e A Volta da bruxa Boa, decidi escrever algo
para crianças um pouco maiores (embora isso da idade seja muito relativo),
digamos, de oito a dez anos. Quis introduzir algo de filosofia para crianças, não
mencionando filósofos etc, mas instigando a pensar. Como meu filho mais moço,
Prof. Eduardo Luft, da PUCRS, é doutor em filosofia por Heidelberg, e conversamos
muito, pedi a ele que me assessorasse para eu não escrever bobagens. Foi escrito a
quatro mãos, basicamente por emails, e nos divertimos muito.
As bruxas um e dois nasceram de histórias que fui inventando para minha neta
Isabela, filha de minha filha Susana, que é medica pediatra, quando a mãe esperava
as irmãzinhas gêmeas. Isabela tinha menos de quatro anos. Morávamos na mesma
casa, e ela muitas vezes vinha dormir comigo. Comecei a inventar umas histórias
sobre eu ser uma bruxa boa disfarçada de avó, e ela minha aprendiz de bruxinha. A
coisa foi evoluindo,comecei a anotar no computador para não esquecer,e poder
relatar mais tarde ás meninas que estavam por nascer. Um dia olhei,e achei que
davam um livro,o primeiro da Bruxa. A editora Record gostou, convidou a mãe das
gêmeas, que também é pintora, para ilustrar, achei que ficou uma delícia.
Poucos anos depois vi que ainda tinha coisas a falar para crianças, como a questão
da morte (por que não tenho vovô?), de preconceito e de novos casamentos (tem tio
Vitor na história, quando entrou em nossa vida, depois de eu ficar viúva duas vezes,
meu atual companheiro), e escrevi outras histórias, sempre com enorme alegria.
223

Parece que tem dado certo. Possivelmente mais Bruxas virão no futuro, não sei. O
retorno de parte de crianças e adultos tem sido muito bom.

Qual a diferença entre a escritora Lya Luft ficcionista, a romancista, a poeta, a


tradutora e a colunista da Veja?
LYA: Nenhuma e tudo. A mão que escreve no computador é a mesma. A postura,
como escrevi acima em alguma das respostas, é outra. Na ficção, liberdade
absoluta. Nos artigos, me prendo a certa objetividade e o número de caracteres ....
além da data de entrega....Mas sempre me divirto muito.

Alguns críticos literários defendem a idéia de que o escritor deve desempenhar


um papel intelectual. Você se reconhece mediadora desse papel? De que
maneira você sente que o desenvolve?
LYA: Nem penso nisso. O que os críticos acham não me interessa muito, a não ser
quando apontam em meu texto algo que me ilumine. Não sou uma intelectual: sou
uma escritora. E já me dá bastante trabalho.

O que é, para você, escrever na revista Veja, digo, o que isso representa para
sua atividade literária – a propósito, você considera esse tipo de escrita como
algo literário?
LYA: Sendo escritora, tudo que escrevo é literário, claro. São apenas artigos, como
as crônicas que escrevi por anos em um ou outro jornal. É trabalho, mas é prazer.
Não sofro qualquer pressão, ou censura, portanto é apenas outra forma de
expressão, e não é nova na minha trajetória. No começo estranhei o número imenso
de leitores, mais de um milhão. Mas logo tratei de esquecer isso, para não me sentir
paralisada.....

Você pensa em voltar a escrever romances?


LYA: Já respondi. Eu me considero além disso no fundo sempre uma ficcionista.
Não pretendo parar.

Eu gostaria que você falasse um pouco sobre sua predileção pelo poeta Rainer
Maria Rilke. Como se estabeleceu essa aproximação entre você e os escritos
de Rilke, e por que eles a tocaram de forma tão constituinte?
LYA: Ganhei de meu pai, na adolescência, poemas de Rilke em alemão, num livro
em papel seda, bem fininho, e mal comecei a ler tive esse deslumbramento que
nunca cessou. Cada página, cada poema, me atinge de novo, pungente e fundo.
Como escrevi acima, por essa mistura de belo e sinistro, pelo uso incrível da palavra
e das imagens, e pelas combinações que faz, pela estética, tudo. E todo o resto que
não se explica.

Sobre um estilo de escrita, que define traços comuns e recorrentes ao modo


de expressão de um autor, Schopenhauer nos diz que “o estilo é a fisionomia
do espírito.” Como você interpreta essa assertiva, em relação à sua obra?
LYA: Nunca penso nesses termos. Tenho o meu estilo, que um entendedor ou até
um leitor comum reconhece, mas não sei de que ele se constitui. Foi-se criando ao
natural, e se depurando, e é meu. Mas,de novo: Nunca penso nesses termos.
224

Por que as ambigüidades que circundam as esferas do humano são sempre


elementos motivadores de sua escrita?
LYA: Porque somos ambíguos, somos muitos, e por isso somos interessantes como
matéria de ficção desta autora aqui, desde quando eu era menininha. As franjas, o
avesso, os silêncios, o não-dito, as contradições, nos enriquecem como pessoas e
personagens, ao menos para mim.

Você já pensou, nesses tantos anos de carreira literária, em parar de escrever?


Quais seriam os prováveis motivos que a levariam a isso?
LYA: Nunca pensei. Parei nos seis anos que mencionei acima, entre Exílio e A
Sentinela, porque estava em estado de choque por uma razão pessoal, eu acho.
Voltei naturalmente, e nunca penso em parar porque não vejo motivo. Espero ter
lucidez e alegria para escrever até o fim, quem sabe?

Como você define sua experiência com a poesia? Quais são os critérios para
dizer que um livro será poesia e não romance e não crônicas e não contos e
não ensaios? Como isso se define na sua técnica literária?
LYA: Não defino nada e nem penso em técnica literária. Algo nasce como poema, e
pronto. Os artigos, eu sento para escrever como artigos, porque tenho compromisso
com a revista. Os romances são mais lentos, é uma longa dança de sedução entre
os temas e a autora, as personagens e a autora, as personagens entre si, uma
música lenta, e na sombra, meio penumbra, de onde aos poucos vão se destacando,
se criando e enlaçando, e desfazendo e refazendo em outras formas e outras
relações. Ou não. Nunca penso em mim em termos de técnica, mas de intuição,
escuta do meu interior, contemplação das personagens, e das tramas, e minha
prazerosa e atenta intervenção nisso tudo.

Como você gostaria de ser vista, enquanto escritora que é?


LYA: Uma escritora séria, que se respeita e quer ser respeitada, mas muito simples,
reservada, recolhida aqui em sua casa, avessa a badalações, e difícil de atrair com
coisas intelectuais.

Qual é a ideia que a acomete no momento em que você escreve, digo, para
quem e por que você escreve, e qual é a idéia que você gostaria que se
constituísse em nível de sua obra?
LYA: Muitas idéias. Às vezes um vazio, que é a escuta do que poderá vir--- ou não,
às vezes é só silêncio e aí vou fazer outra coisa. Pintar, por exemplo, pinto umas
coisas muito simples, mas me divirto enormemente. Se o livro quiser ser escrito, ele
voltará a me importunar, e eu corro atrás. Não sei o que significaria essa “idéia que
se constituísse em nível de minha obra”

Você percebe, nos textos literários, uma contribuição para a formação


humanística do homem? Você se propõe a contribuir para isso, com seus
textos?
LYA: Eu não me proponho nada disso. Não penso em contribuir com nada, acho
que seria pretensioso. Me proponho escrever um bom texto, tão bom quanto sou
capaz, dentro de meus muitos limites. Possivelmente alguns deles façam alguma
pessoa parar para pensar um pouco. Ou lhe darão um momento de beleza. De
emoção. De introspecção. De desejo de mudar alguma coisa. Mas eu não estarei lá
para saber, o que aliás me dá uma enorme liberdade.
225

No livro Palavra de Mulher, você é definida assim: “Lya Luft: uma mulher
gaúcha, brasileira, que tenta jogar com as palavras e com personagens, criar,
inventar, cismar, tramar, sondar o insondável. Uma mulher que tenta entender
a vida, o mundo e o mistério e para isso escreve.” Quem é Lya Luft hoje, digo,
como você se definiria diante dessas palavras, bem como o que mudou dessa
Lya para a dos dias de hoje?
LYA: Continuo jogando com palavras e temas e personagens. Continuo querendo
entender o mundo, mas talvez mais consciente de que não entenderei, e que por
isso é que escrevo. A frase não é minha mas acredito nela: “O mais importante não
são as respostas, são as perguntas.” Porque não há respostas.

Sabemos que para pertencer à Academia Brasileira de Letras, é preciso, antes


de tudo, de uma iniciativa pessoal e particular: a de se candidatar ao posto de
alguma das cadeiras acadêmicas. Você já teve essa iniciativa alguma vez? Por
que não estar junto de Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles, já que todas
vocês são consideradas grandes revelações literárias, especialmente no
contexto de produção literária de autoria feminina do século XX?
LYA: Fui sondada e convidada várias vezes, desde muitos anos, quando Lygia
entrou, por exemplo. Não acredito em grupos, em associações, sou muito reservada,
gosto de estar quieta na minha casa. Não sou humilde o bastante, talvez, para fazer
campanha e pedir votos, quem sabe? Tenho lá amigos amados, como Lygia, Nélida,
o falecido Scliar e outros, mas não me atrai em nada. Não me imagino acadêmica.
Posso um dia mudar? Posso. Mas acho difícil.

Como você analisa a obra de Nélida Piñon e a de Lygia Fagundes Telles nesse
contexto que apresenta textos literários produzidos por mulheres? Você
reconhece alguma proximidade entre as temáticas que elas abordam e os seus
romances / livros?
LYA: Não sei dizer. Todos os livros do mundo que tratam de família,
relacionamentos, com uma visão em parte feminina, são relacionados de alguma
forma. Lygia dizia, quando eu era jovem, que éramos as duas da mesma família
literária, o que me dava naquele tempo certo orgulho. Mas escrevemos diferente,
Nélida idem. Somos amigas, nos queremos bem, nos respeitamos, somos três
mulheres escrevendo, como tantas neste mundo. Nos vemos raríssimamente, nos
comunicamos pouquíssimo, mas estamos aí.

Qual é a sua postura diante da crítica literária, que, muitas vezes, vê seus
livros mais recentes – Múltipla escolha e A riqueza do mundo – como um
retrocesso na sua carreira literária? E o que essa crítica representa quando
você está escrevendo esse tipo de livro?
LYA: Acho uma tolice abismal achar que escrever artigos ou ensaios seja
retrocesso, se sempre fiz isso. Vão primeiro ver minha obra. Não me diz nada.

Por que essa atual predileção pelos ensaios em vez de ficção?


LYA: Continuo escrevendo ficção, como já disse acima. Mas um romance é mais
elaborado, exige mais tempo, outro mergulho, outra postura. Escrever ensaios e
artigos é uma outra maneira de expressão, que sempre cultivei. Só que não era tão
conhecida, nem sempre reunia em livro, etc etc etc. Não há predileção. Há
circunstância. E na verdade acho que isso não tem a menor importância.
226

Como você define o seu fazer literário: escolha, prazer, modo de


sobrevivência, amor, dom, dedicação, compromisso, ou outra função
qualquer?
LYA: Dom,---sendo isso inclinação--- e prazer, alegria.

Quais são os futuros planos da escritora Lya Luft?


LYA: Terminar meu romance, que vai levar tempo. Escrever direito meus artigos na
Veja. Talvez mais literatura infantil, a Bruxa Boa ainda espia sobre meu ombro, e me
divirto imensamente com ela. E tudo o mais que através de mim quiser ser escrito.

Qual é o seu lugar sagrado na ficção e na vida real?


LYA: Na literatura é meu momento de quietude, aqui no computador ou na minha
poltrona predileta, olhando a paisagem aqui, ou a mata na minha casinha de
Gramado. Escutando a natureza.
Na vida real? Meu lugar sagrado é minha casa, e qualquer parte do mundo com
minha família, marido, filhos, netos, e, claro, os bons amigos.

Como você reflete sobre a morte e sobre o tempo – temas tão recorrentes em
suas ficções – nos dias de hoje, digo, o que mudou, em nível de análises, de
idéias e de abordagens feitas pela autora de As parceiras para a autora de A
riqueza do mundo? A propósito, você considera este – sair da ficção para a
realidade – um processo autoral muito diferente? O que exige mais ou menos
de você, enquanto autora?
LYA: Nunca saí da ficção para a realidade, repito: sempre fiz ficção e poesia e
crônica e artigos. Talvez hoje em nível de idéias, nos artigos eu seja mais
contundente, mais objetiva, não sei bem. Mais corajosa um pouco?, saindo mais de
mim mesma? Mais ainda as questões sociais, política, economia---sempre como
amadora e observadora.

Para quem você escreve, hoje?


LYA: Para quem sempre escrevi: alguém imaginário, algum amigo imaginário, talvez
meu leitor. E para mim mesma.

Quais são as marcas indeléveis da cultura alemã na escritora brasileira Lya


Luft?
LYA: Nasci e vivi numa cidadezinha de descendentes de imigrantes alemães, hoje
uma cidade universitária. Meu pai era advogado, e fundou a Faculdade de Direito
que foi semente dessa universidade. Em sua biblioteca pessoal havia literatura
alemã, francesa, italiana, brasileira e portuguesa. Eu me alimentava disso, era
apenas natural. Falava alemão com minhas avós, embora elas também fossem
brasileiras. Penso que a literatura e alguns costumes me influenciaram. Ainda
fazemos Natal com árvore enfeitada e músicas, ainda gosto muito de ler alemão,
mas não falo mais tão bem. Tudo foi sendo natural. Sempre me rebelei
modestamente contra certa rigidez germânica, que hoje não creio que exista mais,
ou é rara. A gente escutava Mozart e Brahms e cantava velhas canções alemãs,
mas também brasileiras. Nada fanático, na nossa casa. Se há rastros disso na
minha literatura, os estudiosos devem descobrir.
227

O que mais te incomoda em nível autoral: críticas, cobranças, leituras


equivocadas, etc.?
LYA: Cobranças do tipo “por que não escreve mais ficção e menos artigos?”, e
leituras equivocadas, como essa tolice imensa da auto-ajuda no Perdas. De resto,
pouca coisa me incomoda. Me aborrece acharem que sempre falo de mim mesma.

Por que você não assume, na sua literatura, o teor de feminismo que muitas de
suas personagens representam? Se, em O rio do meio, nós lemos de você
mesma: “Eu falo de mulheres e destinos”, por que não revelar uma tendência
que talvez seja naturalmente própria aos textos de autoria feminina?
LYA: Quem disse que não assumo nada disso? E o que você diria que é assumir o
feminismo? Escrever que os homens são vis, por exemplo? A sociedade injusta com
as mulheres? Isso é o óbvio, já foi mais do que martelado. Talvez eu fale
indiretamente nas minhas personagens, mas também escrevo homens sofridos e
injustiçados.
É que eu nunca penso em mim como mulher: sou uma pessoa. Um ser humano.
Como tal, quero dignidade, respeito, liberdade, para mim e para todos, homens,
mulheres, crianças, as raças todas. O feminismo teve seu papel importante, me
parece que se esmaeceu, não sei, não me importa muito. Vejo cada vez mais
mulheres com funções importantes e bem desempenhadas no mundo todo ou em
grande parte dele: é a natural evolução das coisas e da sociedade, com ajuda da
luta de muitas. Nunca recusei nada, nunca neguei nada, mas me parece até um
pouco ultrapassado desfraldar hoje bandeira feminista.

Você também disse, em entrevista recente, que não gosta “dessa coisa de
autoria feminina”, e que você gostaria, ao contrário, de escrever com o “vigor
de um homem”. Qual a possível supremacia que o vigor de um homem poderia
exercer sobre a posição de uma mulher, isto é, qual é o valor que você confere
a esse vigor masculino, para querer escrever como um homem? Não seria esta
uma postura inteiramente antifeminista, contrária ao seu sentido mais genuíno,
uma vez que somos mulheres, e que essa nossa condição é inegável?
LYA: Essa minha frase veio numa entrevista em que mencionei a tolice de certo
crítico que anos atrás, querendo me elogiar, disse que sou mulher mas escrevo com
mão de homem. Nada mais. Talvez eu tenha reagido com certa intensidade.
E não vi até hoje nenhuma explicação convincente, para mim, da diferença entre
texto masculino e feminino. Um desconhecido, lendo Clarice e Machado, diria logo:
isso é homem, isso é mulher? Me pareceria candura demais pensar nisso.

Gostaria que você escrevesse, em algumas linhas, como você se definiria


como autora, e também qual é a leitura que você faz da sua própria obra. Um
texto que revelasse O autor por ele mesmo, isto é, quem é a autora Lya Luft
para a escritora Lya Luft, bem como os propósitos que engendram suas obras.
LYA: Penso que já escrevi extensamente sobre isso acima. Não tenho propósitos ao
escrever, a não ser escrever direito, respeitando a mim e ao eventual leitor, tendo
prazer com isso, tento de certa forma, em parte, organizar minimamente, na escrita,
nas tramas, personagens ou temas, meu sentimento do mundo, com suas angústias
e encantamentos.
Sou uma pessoa simples numa profissão muito complexa. Sou uma pessoa tímida,
demais exposta pelos seus livros. Sou uma pessoa que tem um pungente
sentimento do mundo, empatia pelo ser humano, sentimento de fraternidade, e me
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entristecem a solidão, a violência, a injustiça me causa funda indignação. Sou uma


ficcionista que também é poeta, e que escreve pequenos ensaios,e artigos, porque
talvez neles consiga expressar mais objetivamente sentimentos como indignação e
repulsa.
Sou uma autora que escreve com prazer, sem angústia pela página em branco, pois
se não tenho nada a dizer fico calada, sei que a palavra voltará em seu tempo.
Sou uma pessoa, e uma autora, que preza extremamente sua liberdade, e a
dignidade. Portanto, também a dos outros.
Sou quieta, recolhida, por escolha crescente, prefiro observar, e falar nos meus
textos.
Sou uma mulher no limiar da velhice, em busca de simplicidade, curtindo afetos e
tecendo tranquilos projetos, nada mais.
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