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Belo Horizonte
2011
Iara Christina Silva Barroca
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 869.0(81).09
Iara Christina Silva Barroca
Figurações e ambiguidades do trágico:
experiências constituintes do estilo na obra de Lya Luft
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Suely Maria de Paula e Silva Lobo (Orientadora) – PUC Minas
______________________________________________________________
Profa. Dra. Constância Lima Duarte – UFMG
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Sousa Boaventura – CEFET MG
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Prof. Dr. Gerson Luiz Roani – UFV
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Johnny José Mafra – PUC Minas
Lya Luft
RESUMO
Ce travail a pour but de montrer le tragique comme un élément constitutif d’un style
dans l’oeuvre de Lya Luft. Pour cette recherche, nous avons analysé plusieurs
figurations assumées par le tragique dans ses romans, ainsi que les ambiguïtés qui
se constituent autour de lui autant qu’élément intégrant un style d’écriture. En
fonction de la diversité de genres littéraires auxquels Lya Luft se dédie à produire
ses textes, nous avons délimité comme corpus de ce travail les derniers romans de
l’auteur jusqu’au temps actuel: Exílio, A sentinela et O ponto cego. Face à cette
proposition, nous avons tracé des itinéraires théoriques sur le tragique, de
l’expérience de ce sens tragique dans la perspective des grecs jusqu’à l’expérience
du tragique dans l'optique nietzschéenne, qui comprend une perspective affirmative
de l’existence dans le tragique. Sur le style, des parcours théoriques ont été tracés,
pour que nous puissions lui conférer le ton qui définit l’écriture de Lya Luft autant que
trait. D’autres éléments qui constituent cette recherche sont le corps et la mémoire,
récurrents dans les récits, et qui abritent, pour cela, les plusieurs sens que le
tragique assume dans les romans de Lya Luft.
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................12
6 CONCLUSÃO ......................................................................................................203
REFERÊNCIAS.......................................................................................................208
ANEXOS .................................................................................................................219
PERSONAGENS 1
Lya Luft
12
1 INTRODUÇÃO
Lya Luft: “uma mulher gaúcha, brasileira, que faz cada vez mais [...] o que
desde os 3 ou 4 anos desejava fazer: jogar com as palavras e com personagens,
criar, inventar, cismar, tramar, sondar o insondável. Uma mulher que tenta entender
a vida, o mundo e o mistério e para isso escreve.” (LUFT apud FARIA, Palavra de
mulher, 2003, p.127).
Nascida em Santa Cruz do Sul, em 1938, Lya vem se dedicando à carreira
literária desde a década de 60, iniciada com a publicação de um livro crônicas e um
de poesias, e concretizada com a publicação de seu primeiro romance, As parceiras,
em 1980. E desde então, Lya segue traçando seus diversos percursos literários,
divididos entre a escrita de romances, de contos, de crônicas, de poesias e de
ensaios, e os trabalhos de tradução – a primeira atividade acadêmica desenvolvida
por ela, uma vez que Lya vem se dedicando às traduções desde os seus vinte anos
de idade. Nesse contexto visivelmente diverso, Lya Luft também é, atualmente,
colunista da Revista Veja, na qual escreve, quinzenalmente, para a coluna Ponto de
Vista.
É mediante essa diversidade de gêneros literários que esta pesquisa se
constitui, com o propósito de apontar as configurações que o trágico assume na obra
de Lya Luft, bem como a maneira com que essas configurações norteiam nossas
reflexões para a percepção de um estilo de escrita.
Embora se pretenda analisar a questão do trágico e do estilo nas diversas
manifestações de escrita de Lya Luft – seus romances, seus livros de crônicas, de
poesia e de reflexões –, fez-se necessário delimitar os livros que ilustrarão estas
nossas análises. Isso se deve, primeiramente, ao fato de que a obra de Lya Luft é
bastante diversificada, e, some-se a isso, a necessidade de serem feitos os devidos
recortes para o desenvolvimento da tese. Assim, escolhemos os romances Exílio
(1987), A Sentinela (1994) e O Ponto Cego (1999) como corpus deste trabalho.
13
Com o início de sua carreira literária consolidado em 1980, Lya Luft segue,
desde então, dedicando-se à arte da escrita. Seus romances se constituem como
material precioso para os estudos literários, especialmente porque abordam, de
forma pungente – dentre várias outras questões – tensões inerentes à condição
humana. Nota-se que há, em sua obra, uma grande preocupação em relação à
questão feminina, especialmente em relação ao papel que a mulher está
condicionada a representar em uma determinada sociedade. Entretanto, faz-se
necessário reconhecer que, para além dessa perspectiva, há uma inquietude maior
e mais forte, que se lança em direção à representação da condição humana. Essa
amplitude em relação à temática de Lya Luft, que, a partir do âmbito do feminino,
estende-se ao âmbito do humano, me remete às sábias palavras de Nelly Novaes
Coelho, em relação a essa estreita proximidade entre o contexto romanesco de Lya
e a realidade humana: “[...] a gaúcha Lya Luft [...] se inscreve dentro de uma das
tendências mais férteis da ficção moderna: a que registra as relações humanas,
presas à aparência inofensiva e rotineira do cotidiano, para depois ir rompendo sua
superfície tranqüila e, lá no fundo, oculto, tocar as paixões ou pulsações secretas
que revelam a duplicidade da vida vivida e / ou a mutilação interior dos seres que a
vivem.” (COELHO apud MEDINA, 1985, p. 8). E esta é uma das razões
determinantes para se pensar sobre o trágico e suas configurações na obra dessa
autora, pois entendemos que o trágico está intrinsecamente associado à condição
humana.
Denis L. Rosenfield (2001) nos afirma que é na busca de um sentido para o
trágico que se recortam diferentes abordagens da família, da política, da religião e
da ética. E a obra de Lya Luft se nos apresenta como terreno fértil para o
desenvolvimento dessas reflexões, especialmente porque ela contempla, nesse seu
espaço literário, diversificadas situações que nos aproximam, talvez, da nossa maior
inquietação, enquanto ser humano: a consciência da finitude humana, reconhecida
na presença da morte.
Esta pesquisa se motiva, então, a partir das diferentes configurações que o
trágico assume nesses espaços ficcionais: a vivência do trágico na perspectiva dos
gregos – que se assumiam capazes de suportar a dor da existência – e a vivência
do trágico na perspectiva de Nietzsche – que compreende o trágico através de uma
perspectiva afirmativa da existência.
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Pesquisar a obra de Lya Luft foi uma escolha feita já há alguns anos, quando
decidi, em 2002, dar início ao desenvolvimento de um projeto de pesquisa para o
curso do Mestrado. Inicialmente, constituía-me a certeza de que eu trabalharia em
uma linha de pesquisa que privilegiasse os textos literários produzidos por mulheres.
Entretanto, não era minha idéia de trabalhar com a autora Lya Luft, especificamente.
Essa escolha se deu, então, a partir de um encontro com a Professora Dra. Suely
Maria de Paula e Silva Lobo, em uma disciplina de Literatura Brasileira, intitulada O
conto de autoria feminina. Durante esses encontros, que também foram decisivos na
constituição do projeto de pesquisa que resultou nesta tese, foram sugeridas leituras
de alguns textos produzidos por autoras contemporâneas, o que incluiu, nessa
proposta, o nome de Lya Luft, entre os de tantas outras autoras. E desde a primeira
pesquisa realizada sobre a obra dessa escritora, constitui-se, em mim, um forte
desejo de pesquisá-la, da forma mais abrangente possível. E como essa
abrangência, especialmente em nível de obra, não seria possível de ser
desenvolvida nos estudos do Mestrado, mantive minha pesquisa inicial baseada
somente na análise do romance As parceiras, para depois, enfim, me dedicar a um
estudo mais incorporado, que privilegiasse, por sua vez, uma leitura mais cuidadosa
de toda a obra da autora. E foi essa motivação que conferiu corpo à pesquisa que
aqui pretendo desenvolver.
Ao ler todos os livros de Lya, percebi que finos traços se esboçam na
construção de sua escrita. Traços novos e reincidentes, e, portanto, constantes, não
deixam de imprimir marcas nos textos que ali se pretendem apresentar / representar.
Esses traços, a meu ver, estão estreitamente ligados ao caráter trágico que ela
confere à sua obra. Diante disso, o trágico tornou-se, nesse estudo, a motivação
maior para a pesquisa, uma vez que a hipótese que nos propomos desenvolver aqui
consiste no fato de que as formas como o trágico é representado nos textos de Lya
Luft constitui um estilo em sua obra.
Diante disso, foram traçados vários percursos teóricos, que privilegiam os
estudos sobre o trágico – desde quando definido pelos gregos até onde elaborado
por pensadores mais modernos –, sobre o estilo, sobre o corpo e sobre a memória,
procurando realçar, também neles, as ambigüidades que os constituem. Esse trajeto
nos aproxima, então, da tentativa de reconhecermos o registro dessas marcas que
apontam para um estilo de escrita. Vislumbra-se um pouco do espírito desse estilo
15
Sina
no alfinete da interpretação
se não podem amar o meu poema, deixem-no.
Nem eu ouso erguê-lo entre os dedos e aspirar
a sua liberdade.
Deixo que sonhe, gire, nasça e deite
seu mel na solidão da alma inquieta
e brote, instante imprecisado,
num escrito qualquer com o meu nome embaixo.
(LUFT, Flauta doce, 1972, p.49-50)
1
Ressalto, aqui, que a literatura de autoria feminina se constitui de muitos outros importantes e
significativos nomes, nesse seu percurso, especialmente no interstício de tempo a que me referi
acima – 1859 a 1960. Entretanto, como são inúmeras as autoras, optei por mencionar somente
aquelas que representaram a inserção dos textos de autoria feminina na literatura brasileira. Já a
obra de Clarice Lispector foi mencionada com o propósito de realçar um marco divisor de águas,
nesse tipo de produção literária, especialmente em relação às produções anteriores.
22
Muitos outros críticos tem concordado com o fato de que quando olhamos
para as mulheres escritoras coletivamente, podemos ver um imaginário
contínuo, a recorrência a certos modelos, temas, problemas, assim como
estereótipos característicos das sucessivas gerações. (SHOWALTER, 1977,
2
p.11, tradução nossa) .
É o que ela chama de female literary – literatura de mulheres – sem que isso
implique em nenhuma forma de essencialismo, pois o principal interesse de
Showalter é investigar “os modos como a autoconsciência dessa mulher escritora
tem sido traduzidos em uma forma literária” (SHOWALTER, 1977, p.11, tradução
nossa)3, sem perder de vista as transformações sofridas através dos tempos. Para
isso, ela aponta três etapas no percurso literário, que compreende as obras de
autoria feminina entre 1840 até por volta de 1960, tendo, como referencial, a cultura
2
Many other critics are beginning to agree that when we look at women writers collectively we can see
an imaginative continuum, the recurrence of certain patterns, themes, problems, and images from
generation to generation.
3
the ways in which the selfawareness of the woman writer has translated itself in a literary form.
23
dominante. A primeira etapa, então, é a que ela chama de feminine (feminina): uma
etapa prolongada, que se caracteriza pela imitação: “uma fase prolongada de
imitação das regras predominantes nos diferentes papéis sociais” (SHOWALTER,
1977, p.12, tradução nossa)4. A segunda, denominada feminist (feminist), contempla
uma espécie de ruptura, “uma fase de protesto contra esses padrões e valores, e a
defesa de direitos e valores de uma minoria, incluindo uma reinvindicação por
autonomia.” (SHOWALTER, 1977, p.12, tradução nossa)5. Por último, a fase da Self-
discovery (autodescoberta, ou a descoberta de si mesma), uma espécie de search
for identity, a que dá nome de female (feminina): “uma transformação íntima, uma
libertação da dependência da oposição, uma busca por identidade.” (SHOWALTER,
1977, p.13, tradução nossa)6.
Embora essas etapas sejam categorizadas por um tipo de postura diante da
produção literária, ressalte-se que não se trata de serem, estas, categorias rígidas e
fechadas, visto que é possível encontrá-las na obra de uma mesma escritora – no
caso de Lya Luft, em nível de obra, a presença de todas essas etapas é nitidamente
perceptível.
Como dissemos anteriormente, Lya Luft estréia sua carreira literária com a
publicação do romance As parceiras, em 1980. Um contexto que nos apresenta a
personagem Catarina, matriz de uma família de mulheres, vítima do jogo sujo da
moral patriarcal, uma vez que é dada em casamento, ainda muito jovem, a um
homem bem mais velho: “Catarina tinha catorze anos quando casou [...]. Catorze
recém-feitos. Jogaram com ela um jogo sujo.” (LUFT, As parceiras, 2003, p.11).
Diante da imposição do casamento, Catarina se viu também condenada à
maternidade precoce, numa aparente fatalidade biológica que imprime, no corpo da
mulher, a supremacia das marcas culturais:
4
a prolonged phase of imitation of the prevailing modes of the dominant roles.
5
a phase of protest against these standards and values, and advocacy of minority rights and values,
including a demand for autonomy.
6
A turning inward freed from some of the dependecy of opposition, a search for identity.”
24
jogo infantil, ela nos diz: “Eu brincava assim na meninice: de não ser eu. Não a
coitada, filha daquele Professor a que ninguém apreciava; mas outra Alice –
poderosa, inconquistável.” (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 15).
Sua família de origem, marcada pela tirania paterna, é o espaço do desamor
e da repressão. Sem mãe, ela se entrega ao jogo do espelho, no qual encontra a
Alice alada – criação de uma fantasia infantil –, que ameaça retornar na fase adulta,
para denunciar sua insatisfação enquanto esposa / mãe / dona-de-casa. E como as
personagens dos romances anteriores, Alice se entrega às obrigações domésticas,
especialmente quando se dá conta de que tudo não passa de uma fantasia:
Tão fácil conviver quando águas paradas recobrem tudo. O mundo voltou a
ser ordenado, tal como precisamos que seja. Se admitirmos o vórtice, o
abismo, o subterrâneo por trás dos espelhos, nossas bocas hão de se
escancarar num grito.
– Mãe! – chamaremos agoniados. (LUFT, Reunião de família, 2004, p.126).
Em nível de uma análise que reconhece, nos textos de Lya Luft, uma
literatura intimista feminina, realço:
Não nos propicia Lya Luft o desencanto do mal através da escrita? Vitória
sobre o Apocalipse, o texto é uma nova criação. [...] A novelista, em seu
discurso poético, íntimo, autêntico, ao ritmo do coração, propõe a solução
da loucura da vida na loucura do texto que refaz e rediz, à sua moda, a
própria vida. (LUFT, 1982, capa).
29
– Eu não sirvo para casar – dizia ela antigamente, vendo mulheres de sua
idade rodeada de filhos. Depois de casada, tarde demais, reconhecera que
tinha razão. Embora solitário, para ela o exercício da arte fora menos
complexo do que o exercício do amor humano. (LUFT, O quarto fechado,
2004, p. 15).
“O que fiz com o meu dom?”, perguntou-se. “Há quanto tempo não toco?
Mais de seis anos? E isso mudou em alguma coisa a vida de todos?
Alguém ficou mais feliz com isso?” Espalmou as mãos, dedos magros e
fortes, agora destreinados. Tinham perdido o sortilégio. Tempo demasiado
sem tocar, sufocando o ímpeto antigo. [...] Nos primeiros anos tocara muito
piano, sempre que podia ficar só. Mandava os gêmeos para a casa de
Mamãe e tocava tremendo de prazer. E de dor, porque sabia: com a falta de
exercício, perdera a agilidade. Mudara de ambiente, não tinha mais os
contatos necessários, não havia mais o seu público: nunca mais seria uma
grande pianista. Por outro lado, a nova vida não lhe trazia encantos: Renata
era desajeitada, despreparada para as coisas domésticas. (LUFT, O quarto
fechado, 2004, p. 32-33).
personalidade: “Ella: quem teria escolhido para a menina sem pai o nome ambíguo,
profético, de meia humanidade, meia ausência?” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p.
46).
Percebemos, nesse romance, os primeiros rumores de questionamentos que,
mais adiante, se concretizariam em novas decisões dessas personagens de Lya
Luft. A cena da morte de Camilo se apresenta, então, como um mosaico de
reflexões sobre as atitudes assumidas diante da vida, levando-se em conta,
principalmente, a lealdade aos desejos insubmissos. Esses questionamentos se
revelam na análise que Renata faz sobre sua própria vida – análise que revela, até
então, a culpabilidade que incide sobre a atitude de a mulher conciliar os projetos
pessoais com as obrigações familiares: “Eu traí a mim mesma quando abandonei a
música para ser infeliz no amor. Mas o que é a traição? Não estou sempre trocando
uma coisa por outra porque meu coração decide que essa outra é melhor, a ela
preciso ser leal?” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 109). E é o narrador que nos
esclarece: “Não existia traição: tudo era um constante pulsar desordenado, busca de
um sentido para a vida que se precipitava para o fim.” (LUFT, O quarto fechado,
2004, p. 109).
E é interessante pensarmos sobre a associação do nome que sugere esse
fim, Tânatos, à imagem da mulher. Ao olhar para o quadro que tanto admirava – A
ilha dos mortos –, Renata reconhece que a imagem que ela via não era a de um
barqueiro: “era [de] uma mulher.” E naquele instante, “Renata enlaçou as mãos,
dedos quietos. Não havia música em sua mente: havia quase paz. O nome ficou
ressoando dentro dela, Tânatos, Tânatos. Seria realmente uma mulher? Mas talvez
isso não tivesse nenhuma importância.” (LUFT, O quarto fechado, 2004, p. 108). A
importância talvez esteja na reflexão que essa associação pode suscitar,
especialmente do ponto de vista feminista. Ora, se Tânatos corresponde à morte, e
se a morte é a senhora de todos os destinos, seria essa imagem que revelaria,
então, na morte de algumas institucionalizações, uma nova postura para a condição
feminina, voltada para a realização de seus próprios desejos e de suas próprias
escolhas, no tempo em que esse sujeito feminino / mulher se determinar a assumi-
los? Por outro lado, é-nos possível associar a imagem da morte indissociável à da
vida: ambas, ambíguas e indefinidas, constituídas, entretanto, em um caminho de
direções que se completam. Essa reflexão ganha, ainda, mais consistência se
associada à epígrafe de Rainer Maria Rilke, posta no início da narrativa: “Quando
31
pensamos estar dentro da vida, a Morte põe-se a chorar dentro de nós.” (RILKE
apud LUFT, 1984, p.11), pois ela exprime o caráter de indissociabilidade imanente
entre a vida e a morte.
O livro de poemas Mulher no palco também foi publicado em 1984. Dedicado
à escritora Nélida Piñon, Lya reuniu, nele, poemas inéditos a alguns outros, já
publicados em Flauta doce. A poesia que se lê, aqui, flui, levemente, dos fortes ares
que inspiram o imaginário de Lya Luft: a condição da mulher, a vida, a morte e sua
própria condição, enquanto escritora. Sobre esta, cito:
Como se pode ver, Marcos era quem desempenhava as tarefas que a ordem
patriarcal instituía para as mulheres. Nessa perspectiva, é interessante notar que
esse romance é constituído mediante a inversão de papéis socialmente atribuídos a
homens e a mulheres, como veremos em uma análise adiante, mais aprofundada.
Ainda sobre a culpabilidade que incide nas escolhas de uma vida independente,
liberta dos espaços determinantemente domésticos e opressores, a personagem
intensifica o conflito preconizado por Renata, em O quarto fechado. E declara: “Não
posso me permitir ser feliz como mulher se, como mãe, abandonei meu filho.”
(LUFT, Exílio, 1991, p. 54).
Em 1988, Lya publica outro livro de poesias, intitulado O lado fatal: o único
livro circunstancialmente autobiográfico escrito por Lya Luft, já que se constitui de
poemas que esboçam o sentimento de luto pela morte de seu segundo marido, o
33
Seis anos após esse período de reclusão, Lya reabre as cortinas de seu palco
ficcional e publica, em 1994, o romance A sentinela. Uma narrativa que representa
uma mudança significativa em relação ao posicionamento da mulher diante de suas
escolhas. Como bem nos diz a própria Lya,
[...] uma casa é, mais uma vez, o meu cenário: as casas-concha, as casas-
santuário, as casas-labirinto. Uma mulher tenta decifrar-se. O amor é fruto
de êxtases e tormentos, e, mais do que em meus outros livros, os
personagens são também senhores de suas opções. (LUFT, 1994, orelha)
Aos poucos fui descobrindo: não devo ser apenas mãe, irmã, amante.
Preciso ser eu, Nora, com tudo o que isso significa e que ainda tenho que
descobrir; que preciso extrair de mim, criando caminhos como João projeta
rumos no ventre da terra; produzir com a carne da minha alma os fios que
me prenderão ao mundo. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 38).
35
Ainda nas palavras de Lya Luft, sobre essa nova fase de sua escrita, lemos:
Talvez esta seja uma virada em minha obra: personagens não mais
exclusivamente tangidos por fatalidades, mas responsáveis. É, por isso, um
livro mais esperançoso: alguém renasce em si e de si mesmo e, ainda que
guarde um último mistério indecifrável na gruta de seu pantanoso jardim (o
interno e o externo), lança-se na vida e recria o mundo. O seu mundo, que
miticamente irrompe de sua voz. De sua palavra. (LUFT, 1994, orelha).
Esses dizeres ganham corpo na voz de Nora, que se demonstra aliviada por
ter sido a sentinela de seus próprios desejos, e por ter dedicado, a eles, suas
próprias escolhas. Resistir às fatalidades é possível indo em busca do tempo
perdido, e reelaborando os possíveis dons. E, é claro, tudo a seu tempo. Diante
dessa nova atitude, Nora nos diz: “Neste momento a noite não me ameaça; a gruta
não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão fora de todo o tempo
humano.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 188).
Seguindo-se à A sentinela, foi publicado, em 1996, O rio do meio – livro que
ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes. Um livro que reúne
ficção e realidade como co-autoras das vozes que se pronunciam sobre o ofício do
escritor. Livro narrado ora em primeira, ora em terceira pessoa, Lya Luft concilia
histórias vividas com outras imaginadas, estabelecendo, assim, um jogo com o leitor,
com quem divide cumplicidades acerca da fragilidade das relações humanas, bem
como de temas como a morte e a solidão humana. Um livro cuja proposta de escrita
se pronuncia, pela própria voz autoral, em sua primeira página, em títulos de
capítulos que sugerem a composição do tecido desse texto. Assim, lemos: “Eu falo
de infância e madureza” (p. 17), “Eu falo de mulheres e destinos” (p. 37), “Eu falo de
homens e seus sonhos” (p. 59), “Eu falo da vida e suas mortes” (p. 85), “Eu falo de
ficções como realidade” (p. 107). Seguidos a esses títulos, temos, no primeiro
capítulo, intitulado Assobiando no escuro, os próprios dizeres da autora:
Isso talvez se deva ao fato da incidência de muitos dados que coincidem com
algumas épocas da vida da autora – como a infância e a adolescência –, e em
função, também, de a própria Lya Luft externalizar suas impressões sobre o seu
ofício de escrever. Eu, entretanto, não compartilho dessa visão, especialmente
porque percebo uma intencionalidade na ficcionalização dessas possíveis
realidades. Ademais, logo no início do livro, é a própria autora que nos adverte:
Qual a história que eu aqui quero contar? De gente que é muito esquisita,
de criança que é muito solitária, de um Menino que sabe muita coisa, e de
que saber é muito perigoso. O estranho é que sei sem ter conhecido, penso
o que ainda nem foi posto em palavras; mais estranho ainda, o que invento
pode mais tarde acontecer: quem verdadeiramente dita as falas, quem
comanda nesse palco? (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 77).
Nestas páginas sopra o fluir do tempo que aparentemente tudo leva e tudo
devolve como as marés, e que só existe enquanto lhe dermos crédito. Falo
do tempo que é sonho, o tempo que precisa ser domesticado como um
39
A casa onde nasci, embora já não seja minha, permanece intacta em mim
como a escultura de uma caravela em uma garrafa: uma casa dentro da
memória. Nunca mais foi como aquele o cheiro de lençóis limpos nem o
aroma das comidas, as músicas das vozes amadas e o crepitar das lareiras,
nunca mais a mesma sensação de acolhimento, nunca mais pertencer a
nada com tamanha certeza. (LUFT, Mar de dentro, 2004, p. 19).
Não tenho nostalgia dessa fase, pois ela faz parte de mim. Está aqui à mão,
para ser lembrada, nítida ou fugidia – sempre intensa. A vida era uma casa
ordenada, a casa uma concha amorosa na calma cidade entre morros
azuis, a vida era a família protetora com seu fluxo de laços reproduzindo um
40
Por fim, não posso me negar a transcrever, aqui, o que nutre o cerne da
escrita de Lya Luft: a reincidente idéia de que realidade e ficção são invenções
indissociáveis em sua essência. Mesmo diante do reconhecimento de um pacto
autobiográfico, prenunciado pela foto de Lya Luft na capa do livro, conforme dito
acima, ela insiste em atestar o caráter inventivo de que também se constituem as
memórias:
Explorar o passado, mesmo reunindo memórias de uma infância boa, é
também inventar. Pois esta que recorda não é mais a que vivenciou tudo
aquilo; por outro lado, é ainda a mesma sendo duas, são uma sendo muitas.
E o real se mescla de tal maneira ao sonhado que não se desgrudam mais.
A distinção entre verdade e invenção não importa muito. Mais do que o
gesto, interessa como ele foi recebido. Mais do que a palavra, nos influencia
como ela foi ouvida. Mais do que o fato, vale onde, como e quanto ele nos
tocou. E se nada existe a não ser filtrado pela nossa sensibilidade, não é
preciso saber o que, neste relato meu, aconteceu ou foi imaginado.
Concretude e fantasia me formaram, indo e vindo como as marés que
trazem, recolhem e devolvem nossos momentos – ou os guardam lá onde
só entra a fulgurante intuição, e o cálculo exato tem de ficar de fora. Nesse
recanto somos reis e réus, exilados senhores, animais alados, somos toda
possível liberdade. Lá impera o desafio de tramar palavras e trançar
significados: afirmando ou insinuando. E aramando entrelinhas para que o
leitor, à sua maneira, nessa ilha desse mar se redescubra ou reinvente. E a
cada vez reinvente para si mesmo o estranho mundo. (LUFT, Mar de
dentro, 2004, p. 120).
conceitos sobre o trágico e sobre o estilo. Acrescento, também, que para conferir
mais visibilidade ao tipo de análise que pretendemos desenvolver, anexaremos, ao
final deste trabalho, todas as capas dos livros até aqui mencionados, em suas
primeiras edições. Como pretendemos demonstrar que o trágico, em suas diversas
configurações, é um elemento constituinte do estilo nos romances de Lya Luft, não
poderíamos deixar de observar as cintilâncias que essas ilustrações, ou até mesmo
alguns desses títulos, refletem em nossas reflexões, especialmente se nos
atentarmos para a questão do trágico e para a do estilo.
Essa consideração me remete a parte dos estudos desenvolvidos por Eliana
Scotti Muzzi (1996), sobre a perigrafia do livro. Em seu ensaio, intitulado Leitura de
títulos, ela nos afirma que o título, dentre várias outras atribuições, constitui uma
articulação fundamental do texto, que se revela como lugar de polissemia e
receptáculo de uma ideologia, tornando-se um operador de leitura extremamente
eficaz. Se, para ela, o título é um texto-ícone, que tende para um apelo visual, as
ilustrações que compõem a capa, mais que a esse caráter de apelo, devem
sensibilizar o leitor para a expressividade que se lhe vislumbra através do olhar
conferido à imagem que se constitui a partir daquele texto. Nesse caso, os termos
perigrafia (termo usado por Compagnon) ou paratexto (termo empregado por
Genette) sugerem um espaço liminar que introduz ao texto, constituído pelo que eles
consideram textos menores, que cercam e apóiam o texto principal. Além do título e
das ilustrações, sugerem-se o nome do autor, o prefácio, a dedicatória, a epígrafe,
as notas, a bibliografia, os anexos, os apêndices, o próprio sumário. Segundo
Eliana, é através desses elementos que um texto torna-se livro, que ele se submete
a uma nova dispositio – esta que permite ao leitor avaliá-lo, ter dele uma imagem,
(sem ou) antes mesmo de o ter lido. Se, ainda, no conjunto da perigrafia, o título
ocupa lugar de destaque, já que é a porta de entrada do texto, a fronteira avançada
onde se estabelecem os limites entre texto e extratexto, digo que, especialmente
nesses livros de Lya Luft, as imagens ilustradas em suas capas extrapolam esses
limites, e se impõem como uma marca inaugural do texto que ali se constituiu. Essas
imagens passam a sugerir, então, um momento mítico, inicial, no qual o destinatário
– o público ainda não leitor – é convocado a deixar a concretude de seu mundo para
entrar em um outro tipo de ordem: a ordem da linguagem, a ordem da ficção.
42
O que escrevo aqui não são simples devaneios. Sou uma mulher do meu
tempo, e dele quero dar testemunho do jeito que posso: soltando minhas
fantasias ou escrevendo sobre dor e perplexidade, contradição e grandeza;
sobre doença e morte. (LUFT, Perdas & Ganhos, 2003, p. 16).
Perdas & Ganhos abriu caminho para outros dois livros, constituídos,
também, sob a mesma ótica ensaísta deste: Múltipla escolha, publicado em 2010, e
A riqueza do mundo – de todos, o mais recente, publicado em 2011. Enquanto em
Múltipla escolha Lya Luft se encarrega de discorrer sobre alguns mitos da nossa
cultura, que, segundo ela, “embora criados por nós, dificultam essa tarefa
existencial” (LUFT, Múltipla escolha, 2010, p. 7), em A riqueza do mundo ela se
dedica a escrever sobre nossas perplexidades comuns, inerentes à família, à
educação dos filhos, à educação do ser humano. Temas sobre a miséria, sobre a
questão da moralidade versus moralismo, e os problemas mais pungentes da nossa
sociedade, que incluem guerras, fome, política e tantos outros, são, também,
criticamente abordados aqui. A visibilidade conjunta dessa proposta de escrita se faz
mediante os dizeres que imprimem a idéia de complementaridade dos dois livros.
Assim nos diz Lya Luft, em Múltipla escolha: “somos autores e personagens dessa
cena complexa. Nos vestimos nos camarins, rimos ou choramos atrás das cortinas.
Também vendemos entradas; às vezes vendemos a alma.” (LUTF, Múltipla escolha,
2010, p. 7). A riqueza do mundo parece apresentar, diante disso, uma possibilidade
para as posturas assumidas diante dos conflitos mais cotidianos. E Lya novamente
nos sugere: “cabe a nós observar, refletir, e lutar com o necessário grão de
esperança e a sólida espada da indignação – para que se cumpra o nosso destino,
que é de senhores, não servos.” (LUFT, A riqueza do mundo, 2011, p. 9).
Nesse ínterim (entre 2003 e 2011), Lya Luft também retomou suas atividades
ficcionais. Em 2004, publicou Pensar é transgredir, livro que reuniu crônicas inéditas
a outras já publicadas em jornal, e a algumas outras avulsas, que como nos diz a
própria autora, “saíram não lembro bem quando nem onde, ou apenas salvei no
computador.” (LUFT, Pensar é transgredir, 2004, p. 11). Em 2005, publicou poesias
no livro Para não dizer adeus. Na voz da autora, lemos: “Este livro de poemas –
44
alguns pouco antigos outros mais recentes, quase todos bem atuais e inéditos – é
mais um jeito de dizer tudo o que diz a minha prosa. Não com menos intensidade ou
inquietação, pois elas, como o amor, são o sal da vida.” (LUFT, Para não dizer
adeus, 2005, p. 12). Em 2006, foi publicado Em outras palavras – livro que reúne
uma coletânea de crônicas, já publicadas na Revista Veja (uma das maiores revistas
de circulação nacional, na qual Lya Luft atua como escritora da coluna Ponto de
vista, até os dias atuais). São cinqüenta e quatro textos já publicados, modificados,
entretanto, mediante algumas alterações. Sobre esse livro, ela mesma nos diz: “Em
outras palavras: novamente peço que venham pensar comigo sobre temas que me
inquietam, me assustam ou me apaixonam – o que é afinal quase a mesma coisa.”
(LUFT, Em outras palavras, 2006, p. 12). Em 2009, foi publicado O silêncio dos
amantes. Um livro de contos, escrito sob a ótica dos desencontros, das perdas, do
silêncio que domina as relações amorosas.
Em nível de literatura infantil, ressalto a publicação inaugural do livro Histórias
de Bruxa Boa (2004). Seguindo-se a ele, foram publicados. A volta da Bruxa Boa
(2007) e Criança Pensa (2009) – livro que publicou em parceria com seu filho,
Eduardo Luft.
Atualmente Lya Luft é colunista da Revista Veja, para qual escreve,
quinzenalmente, já há seis anos, na coluna Ponto de Vista – conforme mencionado
anteriormente. Sobre esse ofício, ela nos esclarece:
Não sou uma colunista política, mas tendo acesso a uma revista de tal
circulação e prestígio, devo, e posso, dividir com os leitores minhas
preocupações ou receios com relação à coisa pública, pois ela me atinge
como parte deste país em crise. (LUFT, Em outras palavras, 2006, p.12).
Acrescento, portanto, a essa menção, o fato de Lya Luft ter sido a primeira
mulher – e única até então – a ocupar o posto de colunista desse veículo de
informação nacional – um dos mais lidos ultimamente. Compreendo que não faço,
aqui, um trabalho inteiramente voltado para as questões de gênero. Entretanto, eu
não ousaria deixar de mencionar o alcance de tal reconhecimento, uma vez que
esse meio de inserção social, que deveria ser indistintamente permitido a homens e
mulheres, se abriu à mulher mediante insistentes e seculares batalhas,
especialmente na luta por um espaço no qual a mulher pudesse manifestar suas
posições políticas, sociais, e até mesmo pessoais. Se todas nós nos tornamos
mulheres, como bem define Simone de Beauvoir, é preciso um espaço para que
45
CANUTO, Tania Lamenha Moreira. De Lya Luft: símbolo, mito e tragédia. 1993. 75f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió.
CIRNE, Sylvia Ayres. Lya Luft no espelho da "Secreta mirada". 2009. 77f.
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal do Rio Grande, Rio
Grande.
DICK, Lauro João. O conteúdo léxico de floresta no Exílio de Lya Luft. 1990.
168f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre.
JUNIOR, Celso José de Lima. A Rainha Exilada: jornada psicológica de uma mulher
em busca do verdadeiro eu, em Exílio de Lya Luft. 2008. 84f. Dissertação (Mestrado
em Literatura e Interculturalidade) - Universidade Estadual da Paraíba, João Pessoa.
KUKUL, Vanessa Moro. O quarto fechado, de Lya Luft: uma ilha que emerge na
noite. 2005. 93f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual
Paulista, Assis/SP
LOPES, Maria de Lourdes Amaral Henriques. Logos e Mythos: uma reflexão crítica
sobre o feminino e a condição humana no universo imaginário de Lya Luft. 2000.
176f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte.
MELO, Cimara Valim. Lya Luft: percursos entre intimismo e modernidade. 2005.
142f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre.
PIRES, Adalgiza Maria. A ficção de Lya Luft: traços de uma leitura psicanalítica.
2000. 102f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Universidade Federal
de Alagoas, Maceió.
49
RITER, José Carlos Dussarrat. Pelos desvios familiares: realidade e ficção em Lya
Luft. 1997. 239f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre.
SENA, Adriana Vieira da. A asa esquerda do anjo. 2008. 109f. Dissertação
(Mestrado em Estudos da Linguagem) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal.
SILVA, Silvana Augusta Barbosa Carrijo. Trama tão mesma e tão vária: gêneros,
memória e imaginário na prosa literária de Lya Luft. 2009. 407f. Tese (Doutorado) -
Universidade Federal de Goiás, Goiânia.
[...] trágico, tragédia. São palavras que [...] vem sofrendo uma banalização
progressiva, um esvaziamento de seu conteúdo próprio; elas perdem seu
significado ou assumem os mais diversos sentidos, com conteúdos até
contraditórios. Para que se utilize a palavra tragédia, basta que ocorra um
evento, mesmo exterior à esfera humana, dotado de uma certa intensidade
negativa. Assim, a morte ou um terremoto são sempre tragédias. Tudo se
passa, portanto, como se o trágico tendesse a perder sentido, se tornasse
difuso através de sua dissolução, enquanto a tragédia propriamente dita
permanece relegada ao rol das coisas amorfas. Mas a principal dificuldade
que oferece a compreensão da tragédia não reside tanto neste processo de
dissolução, nem mesmo na divergência existente entre as diversas teorias
que pretendem interpretá-la. A principal dificuldade advém da resistência
que envolve o próprio fenômeno trágico. Trata-se, em verdade, de algo que
é rebelde a qualquer tipo de definição, que não se submete integralmente a
teorias. Justifica-se: deparamos na tragédia com uma situação humana
limite, que habita regiões impossíveis de serem codificadas. As
interpretações permanecem aquém do trágico, e lutam com uma realidade
que não pode ser reduzida a conceitos. (BORNHEIM, 2007, p. 71).
Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós
– desde que nascemos, vai elaborando o roteiro de nossa vida. Ela é a
grande personagem, o olho que nos contempla sem dormir, a voz que nos
convoca e não queremos ouvir, mas pode nos revelar muitos segredos.
Lya Luft
antídoto para os gregos superarem seus sofrimentos, uma vez que ele mesmo
afirma que “por causa da força de todos os seus instintos, a vida dos helenos era
mais rica em sofrimento” (MACHADO, 1985, p.19). O grego, extremamente sensível,
capaz de grande sofrimento e bastante vulnerável à dor, tem, nessa condição, um
perigo para a vida: ser levado ao pessimismo, à negação da própria existência pela
dolorosa violência dessa existência, ou seja, pela inelutável presença da morte. A
materialidade desse pessimismo radical constitui o que Nietzsche chama, em O
nascimento da tragédia, de “sabedoria popular” e de “filosofia do povo”, em A visão
dionisíaca do mundo - pessimismo ilustrado pela sabedoria de Sileno, personagem
lendário, companheiro de Dionísio. Reza a lenda que Midas, rei da Frígia,
encontrando nos bosques o sábio Sileno, que vivia por lá, bebendo, rindo e
cantando, pergunta-lhe o que existe de mais desejável para o homem, ou seja, qual
lhe é o bem mais supremo. Sem querer responder, a princípio, o sábio afinal lhe
responde, depois de pressionado:
logo, o segundo dos males é ter que morrer um dia” (MACHADO, 1985, p. 21). E
para lidar contra a dor, o sofrimento e a morte, o grego diviniza o mundo criando a
beleza, ou seja, embelezando-o: “para o grego beleza é medida, harmonia, ordem,
proporção, delimitação, mas, também, significa calma e liberdade com relação às
emoções, isto é, serenidade.” (MACHADO, 1985, p. 21). O mundo grego da beleza é
o mundo da bela aparência, e essa apologia da arte significa, para Nietzsche, uma
apologia da aparência como necessária não apenas à sustentação da vida, mas à
intensificação dela. Uma das teses principais de O nascimento da tragédia, sua
“hipótese metafísica”, é que o ser verdadeiro, o “uno originário” tem necessidade da
bela aparência para sua libertação; uma libertação da dor pela aparência. Nietzsche
expressa o papel da arte como um perfeito elo entre existência e criação. Segundo
ele, “[...] só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se
eternamente” (NIETZSCHE, 2007, p. 44). A partir dessa constatação, Nietzsche
constituirá o que ele define como “metafísica do artista”, pautada pelas figuras
antitéticas de Apolo e Dionísio, que, mediante uma aproximação vital para a cultura
helênica, faz nascer a tragédia grega.
Dionísio é percebido por Nietzsche como o principal elemento transformador
da arte grega, principalmente por ser, ele mesmo, o deus da transformação. Dionísio
está relacionado aos ciclos da natureza, o que indica que ele é o deus do vir a ser.
Suas sucessivas transformações afirmam a instabilidade da vida entre dois pólos: o
construir e o destruir. E para Nietzsche, esse impulso incontrolável de Dionísio
simboliza a pulsão de vida, embora esse mesmo deus revelasse ao homem que a
arte da individuação, vivida em excesso, também representaria grande perigo para a
vida. Diante dessa perspectiva, a tragédia só ocorre na medida em que o homem
compreende o apolíneo e o dionisíaco não mais como uma oposição, e, sim, como
diferentes maneiras de expressão da vida. Já na tragédia, a conciliação entre a força
dionisíaca e a força apolínea possibilita uma nova experiência para o saber trágico:
“a de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências
fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.” (NIETZSCHE, 2007,
p. 52)
É nesse sentido de intensificação da própria vida que pensamos na produção
literária de Lya Luft. Nos romances escolhidos como objeto de estudo - Exílio, A
sentinela e O ponto cego – essas faces do trágico se manifestam através da forte
59
consciência da inevitabilidade da morte, mas, por outro lado, essas faces também
esboçam novas maneiras de ir em busca de uma defesa em prol da própria vida.
Em Exílio, publicado em 1987, somos convocados, logo a partir das primeiras
páginas, a refletir sobre o caráter trágico anunciado por Sileno, uma vez que Lya Luft
elege, como epígrafe desse romance, os dizeres do sábio Sileno, citados por
Nietzsche, em O nascimento da tragédia. Antes mesmo de chegarmos ao corpo da
narrativa, somos surpreendidos pela inaugural reflexão:
Não foi casual a escolha dessa epígrafe para o referido romance. Nele, a
personagem narradora, anônima, empenha-se no árduo papel de resgatar a si
mesma, através de uma incessante busca pela mãe, nomeada de “Rainha Exilada”
(LUFT, Exílio, 2005, p. 13), que se suicida quando seus dois filhos ainda eram
crianças. E lutar contra a inexorável condição humana, de ser finito e vencível pelo
tempo, é uma maneira de ir em busca de um equilíbrio mediante a dolorosa verdade
de “... não ter nascido, não ser, ser nada... morrer logo.” (LUFT, Exílio, 2005, p. 7).
Diante do cenário trágico / grotesco instaurado no romance, a narradora se depara
com a realidade de uma mãe suicida e de um irmão demente. Como no primeiro
romance, As parceiras, para narrar-se é preciso voltar às origens, (re) abrigar-se no
ambiente doméstico, lugar das reminiscências familiares, a fim de que sejam
superadas as carências afetivas, para que seja, finalmente, possível encontrar um
sentido para sua própria existência. Ao contrário do cenário de As parceiras, no qual
o velho Chalé abriga conflitos de seres essencialmente familiares, Exílio se constitui
em um outro tipo de palco: uma pensão decadente e misteriosa, conhecida como a
Casa Vermelha. Nela, a única presença familiar é a de Gabriel, o irmão da
narradora. Os outros moradores não tem ligação uns com os outros: são
desgarrados que vivem ali, exilados de corpo e alma, cada um com sua pungente
história pessoal. Todos vivenciando, ao mesmo tempo, a face mais grotesca do
trágico, ou seja, as várias figurações com que a morte se lhes apresenta:
60
A Casa Vermelha carrega em seu bojo roído pelo tempo, habitado de ratos
e infectado de angústias, toda uma raça de exilados. Cada um com sua
grande nostalgia, sua insaciável sede e sua aflição, tentam adaptar-se como
podem. Uns isolando-se mais ainda, como a Mulher Manchada em sua pele
de renda; outros dando valor ao mais banal gesto de cordialidade, como as
Moças com seu drama secreto; a minha Velha, cada dia absorvendo-se
mais em sabe Deus que memórias ou esperas. Nessa idade acho que a
gente só tem memórias; agachada num presente adusto e calcinado,
contempla o passado vivo. (LUFT, Exílio, 2005, p. 42).
Que mundo, o desta Casa. Deve ter sido luxuosa: hoje abriga náufragos
que aportaram aqui Deus sabe como e de onde; e para quê. Formamos
uma fauna e tanto: as Moças, que parecem ser um casal; eu, a mulher
retraída, coberta de vitiligo, que não fala com ninguém; minha vizinha de
frente, velha e alquebrada, provavelmente um tanto caduca; e pouca gente
mais; algumas pessoas só vem para as refeições: jovens estudantes, únicos
animados à mesa. Uma pensão medíocre, pertence a uma mulher que
nunca aparece. Todos a chamam de Madame: mas mora no centro da
cidade, e certamente pouco se interessa por este lugar. (LUFT, Exílio, 2005,
p. 19).
É nesse cenário que a narradora pretende descobrir as razões pelas quais ela
foi traída pelo marido; o que, de fato, poderia ter abalado aquela vida tão
aparentemente sólida, “todo o universo falsamente indestrutível de uma pequena
família?” (LUFT, Exílio, 2005, p. 40). Ante as acusações que Marcos lhe faz,
especialmente dirigidas à sua vida profissional, a própria narradora questiona o valor
de sua profissão, bem como a inversão desse papel feminino, até então
61
perdas e ganhos...” (LUFT, Exílio, 2005, p. 41). Essa (auto) análise de sua própria
condição se diz em:
Fecho os olhos para não ver. Deito-me na cama, tapo a cabeça com o
travesseiro, não quero escutar. Acho que nunca mais vou conseguir
trabalhar. Eu, que amava minha profissão; sentia estar também parindo
aqueles bebês, vendo a vida brotar de sofrimento e sangue, esperança e
medo; rodeada de futuras mães com seus ventres distendidos e olhos um
pouco assustados, eu me sentia forte e segura. (LUFT, Exílio, 2005, p. 41).
Como se pode ver, o trágico parece nos alertar para o fato de que há, nele,
uma situação desmedidamente ilimitada, ou seja, a situação de uma tensão que
nunca acaba. O homem, aqui, é colocado como o grande problema: “sua maneira de
proceder na vida em sociedade é um enigma de tal ordem de complexidade que
acaba por não comportar soluções.” (MEICHES, 2000, p. 34)
E é partindo dessas proposições que tentaremos distinguir os diferentes
momentos e as diferentes acepções que o trágico passa a designar no contexto
literário de Lya Luft. Em todos os seus romances, especialmente nestes que
escolhemos como material de pesquisa, somos chamados a refletir sobre um
profundo drama existencial: a busca de uma identidade – pessoal, social ou
psicológica – como forma de resistir à própria vida. E resistir, aqui, é uma condição
que se instaura mediante uma aparente contradição: em alguns momentos, as
personagens resistem à própria vida no sentido de negar sua existência; em outros,
essas mesmas personagens resistirão, por serem tomadas por um sentimento de
insistente vontade de lutar por essa vida, seja ela como for.
Como vimos em Exílio, o contexto nos remete a situações limítrofes, cujas
complexidades não comportam soluções. A Casa Vermelha é o espelho de sua
66
própria indefinição, uma vez que abriga seres indefinidos, irreconhecíveis, anônimos.
Chama-nos a atenção, aqui, a recorrente questão do anonimato, que se configura
em distintas situações. Temos, primeiramente, o anonimato das personagens
femininas, que são definidas e nomeadas apenas por suas características físicas: as
Moças (a Loura e a Morena), a mulher coberta de vitiligo (a Mulher Manchada), a
Velha e, mais tarde, a Menina Gorda. A narradora é chamada, algumas vezes, de
Doutora, mas apenas pelo Anão – seu companheiro de infância, invisível aos olhos
dos outros. Compõem ainda esse cenário feminino a Madame – proprietária quase
sempre ausente da Casa Vermelha – e as Criadas, que são definidas pela sua
condição servil.
A Casa Vermelha também abriga homens exilados, alguns anônimos, dos
quais não se conhecem suas histórias, nomeados apenas pela profissão que
desempenham. Tudo que se sabe deles vem de pequenas observações feitas pelas
personagens femininas. Os homens nomeados na narrativa são: Gabriel, o irmão da
narradora; Marcos, o marido; Lucas, o filho; por fim, Antônio, o amante. O pai, já
morto, também é lembrado pela narradora, embora sua figura minimizada seja
apenas um referencial que se perde ao longo da narrativa, ofuscado pela presença
avassaladora da Mãe. Esse anonimato parece também ser determinante no
romance O ponto cego. Nesse romance, a história de uma família é narrada a partir
de um ponto de vista de uma criança, um menino-narrador, nomeado apenas como
Menino, que inventa e desinventa histórias, colocando em foco os dramas vividos
pelos adultos ao seu redor. Convivendo com o pai repressor, dentro de uma família
marcada pela tragédia de ter perdido seu primogênito, o Menino se vê esquecido e
desenvolve um medo extremo de crescer e passar a ser como aqueles que tanto o
aterrorizam. Essa condição do Menino narrador em manter-se pequeno, invisível às
preocupações dos adultos, parece ser uma metáfora da própria trajetória literária de
Lya Luft, esboçada também nesse romance. O ponto cego parece privilegiar, entre
tantas outras questões, uma releitura da produção literária de Lya Luft. A partir dele,
a autora parece nos revelar uma outra versão romanesca, voltada para uma nova
figuração da mulher e do trágico vivenciados por suas personagens. Assim como em
Exílio e em A sentinela, esses personagens são convocados a experimentarem uma
nova situação diante desse trágico e dessa condição feminina, imposta sobre eles.
As questões e as tensões familiares, emocionais e sociais parecem ser as mesmas.
O que muda, significativamente, é a maneira com que esses personagens entregam-
67
se aos seus destinos e às suas decisões, em relação a eles. Em O ponto cego, Lya
Luft parece se propor essa reflexão acerca de sua produção literária. Isso parece
estar declarado, decretado na epígrafe inicial do romance, em que a própria autora
nos diz:
O ponto cego é um fenômeno da visão humana segundo o qual, conforme
convergência e refração, pode-se ver o que habitualmente permanece
oculto: a possibilidade além da superfície, o concreto afirmado na miragem.
Assim eu inventei, assim eu decretei, assim é. (LUFT, O ponto cego, 2003,
p.9).
Não vou crescer mais que isso. Não quero ser adulto como esses com suas
vidas regradas, podadas, abortadas. Não quero ter de viver só no que se
delimitou como sendo o real. Não quero perder as minhas asas, por isso
não vou crescer – apenas me desenrolar. Assim me infiltro em todas as
fendas. Assim caibo em toda parte e ninguém desconfia de mim. Continuam
pensando que criança é inocente para sempre amém. (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 32).
aqui no andar de cima cuidado pelo seu Enfermeiro, ele também já morreu.
Tudo isso arma um cipoal no qual me enredo. Onde a energia de antes, o
otimismo, a vontade de viver, a alegria de fazer nascer? (LUFT, Exílio,
1991, p. 19).
inconscientemente? É esse caráter trágico que, embora funesto, aponta para uma
nova expectativa de vida para a narradora, que, mesmo diante de diversas
fatalidades, tem “acessos de otimismo e energia”, nos quais reconhece que suas
“dúvidas são apenas efeito tardio da lacuna causada pela perda prematura de (sua)
mãe, bêbada e suicida” (LUFT, Exílio, 1991, p. 84). A narradora, que ao deitar-se no
escuro lembra “intensamente (sua) mãe morta” (LUFT, Exílio, 1991, p. 63), nos diz:
A morte não nos persegue: apenas espera, pois nós é que corremos para o
colo dela. Talvez o melhor de tudo é que ela nos lembra da nossa
transcendência. Somos mais que corpo e sangue e compromissos, susto e
ansiedade: somos mistério, o que nos torna maiores do que pensamos ser.
Lya Luft
Uma das faces do trágico, percebido aqui como uma força maior, como um
sentimento de expansão da vida mesmo diante da consciência da efemeridade e
finitude dos seres e de todas as coisas, parece contradizer a sabedoria de Sileno,
citada na epígrafe inicial do romance Exílio. Seguir os preceitos dos dizeres desse
sábio seria, talvez, morrer o mais rápido possível, para que se visse e para que se
vivesse em menos condição de angústia. E não é isso que a personagem narradora
de Exílio faz. Ao contrário, diante de todas as forças inelutáveis do destino, ela
adentra a labiríntica floresta que existe à frente da Casa Vermelha com a mesma
intensidade que adentra em si mesma, em seus conflitos e aos conflitos dos seus. E,
apesar de tudo, se faz sobrevivente, quando, pela última vez, ao visitar o irmão
demente, depara-se com a grotesca situação de ver Gabriel em profundo estado de
loucura. Diante daquele cenário, resta-lhe a seguinte reflexão: “Prognóstico?
Sombrio. Mais tarde eu me lembraria do termo: na Faculdade, brincávamos entre
73
nós: a vida é uma doença crônica, de prognóstico sombrio.” (LUFT, Exílio, 1991, p.
164).
A luta incisiva pela própria sobrevivência justifica-se, mesmo diante do irmão
que, de repente, “soergue os joelhos, passa a mão no traseiro, depois vai
desenhando alguma coisa com fezes na parede” (LUFT, Exílio, 1991, p. 164),
mesmo diante daquela “fonte inesgotável de imundície” (LUFT, Exílio, 1991, p. 164).
E não se nega o caráter grotesco dessa cena: “Vou até a janela: se pudesse,
vomitaria a vida. Suicidar-me assim, vomitando a vida pela boca, não quero mais,
não quero. Puro nojo de viver.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 164). E a decisão final da
Doutora por seguir em frente nos inspira o sentimento do trágico incorporado por
Dionísio, o deus da transformação - aquele que encarna o que se define por um
exuberante sentimento de vida e de força, dentro do qual mesmo a dor trabalha
como estimulante. E essa outra face do trágico se mostra nas seguintes linhas:
Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço dentro dela.
Fiquei de fora. Mas posso me aninhar num regaço transitório entre essas
raízes cúmplices, no chão eterno. Auscultar o coração emaranhado das
coisas, que empurra as torrentes da vida e da morte que nos levam. Talvez
eu não consiga chegar em casa. Talvez, chegando, eu não possa ficar.
Quem sabe? Mas eu vou seguir em frente. (LUFT, Exílio, 1991, p. 175)
Suas atitudes grotescas, das quais ninguém poderia escapar, revelam um ser
contra o qual não se podia lutar: “... não adiantava contra o poder de Lilith”. (LUFT, A
sentinela, 1994, p.52). Esse poder invencível de Lilith nos remete ao mito de sua
criação, e parece, assim, estar estreitamente ligado ao comportamento dessa
personagem. Segundo Jean Chevalier, na tradição cabalística, Lilith seria o nome da
mulher criada antes de Eva, ao mesmo tempo que Adão, ou seja, criada não de uma
costela do homem, mas ela também diretamente da terra. Ao declarar a Adão que
eles eram, os dois, iguais, por terem vindo da terra, instaurou-se uma discussão
entre eles que fez com que Lilith, encolerizada, pronunciasse o nome de Deus e
fugisse para começar uma “carreira demoníaca” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009, p. 548). Em uma outra tradição, Lilith seria uma primeira Eva: “Caim e Abel
brigaram pela posse dessa Eva, criada independentemente de Adão e, portanto,
sem parentesco com eles. Alguns vêem aqui traços da androginia do primeiro
homem e do incesto dos primeiros casais” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.
548). Ainda segundo o mesmo autor, em uma outra acepção, “Lilith tornar-se-á a
75
Nora: “Talvez tudo isso encantasse as pessoas, também João, a quem amei desde
aquele tempo; talvez ele até tivesse desejado aquele corpinho magro de mente
adulta. Mas ninguém amava Lilith: ficava-se hipnotizado.” (LUFT, A sentinela, 1994,
p. 57). E confessa: “Lilith seria, para sempre, um assunto tabu.” (LUFT, A sentinela,
1994, p. 59).
Embora Elsa esclarecesse que teria dado à filha esse nome em função de ser
ele um “nome de princesa, um romance que lia durante a gravidez” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 53), Nora insistia em afirmar que sabia que o nome da irmã “era
nome trevoso” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 53). E essa onisciência de Nora parece
coincidir com o mistério cultivado por Rosa, que afirmava que “o espírito que vai
nascer sabe qual é seu nome, um nome predestinado; escolhe a família onde vai
nascer e a faz intuir o nome com que o batizarão” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 53).
Ou seja, isso se configurava como um acontecimento fatídico na vida de Nora, do
qual dificilmente poderia se livrar. Era desafio, também, ignorar a presença dessa
irmã, “que assombrou minha infância, roubou meus afetos, dominava a todos com
sua indiferença: quem não seria atraído por seus olhos amarelos de expressão
perversa?” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 12-13). E embora se fizesse necessária a
libertação dessa presença que Lilith exerce na narrativa, a relação entre Nora e ela
era mediada por um misto de horror e fascinação. Nora nos revela isso a partir da
seguinte declaração:
Ninguém parecia entender minha fascinação por Lilith, meu desejo de falar
nela, de ser Lilith: temida, não ignorada; indefinida talvez, mas não boba;
astuta, não rejeitada. Lilith sabia instilar veneno na alma das pessoas. [...]
Seguidamente imagino se a Lilith que eu via não era fruto dos meus medos,
um mito criado pela minha timidez e insegurança. Lilith não parecia da
família, muito menos minha irmã. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 23).
postura diante da realidade dessas mulheres nos revela um outro modo de olhar
para as personagens de Lya Luft, uma vez que elas eram vistas e analisadas, até
então, como seres unicamente pré-destinados à repressão que lhes era imposta
pelo sistema patriarcal – aqui, já em estado de decadência.
A representação de mulheres perdedoras, confinadas exclusivamente ao
ambiente familiar e predestinadas a um futuro que se consolidaria apenas com um
casamento – definido como “o melhor casamento é uma prisão cinco estrelas”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 156) - perde sua ênfase, especialmente nesse
romance. É fato que as personagens continuam enredadas no contexto familiar, mas
a família, aqui, é representada como uma instituição falida, e como fonte que
engendra grandes conflitos e repressões.
Uma labiríntica casa é, novamente, escolhida como cenário para a
representação deste novo contexto narrativo. Ver-se diante do beco sem saída da
vida – ou da morte? - torna-se, aqui, força maior em busca da própria sobrevivência
e de uma (re) identificação no mundo. Os fios da memória, ainda que tortuosos, são
os condutores dessa narrativa. A arte de tecer palavras, como Nora tece seus
tapetes, fará com que essa personagem consiga desfazer os nós e encontre os
verdadeiros rumos, ainda que ela assuma, no decorrer do texto, as várias
adversidades que a vida nos impõe.
A face do trágico se nos mostra não como na permanência da dor insuperável
de viver. Ao contrário, ela nos aponta para o desafio a que Nora se entrega contra a
própria dor: o de resistir à invencibilidade da morte, recriando uma nova vida. E é
relembrando frases e momentos que Nora se depara, constantemente, com as fortes
reflexões que a levarão a optar por uma decisão afirmativa para sua vida, ainda que
essa decisão esteja circundada de fortes rupturas, especialmente voltadas para o
papel da mulher na sociedade patriarcal. Em uma passagem do romance, ela se
lembra, por exemplo, dos dizeres de Olga – irmã por parte de pai, a quem Nora
amava e admirava desmedidamente – que lhe advertiam sobre a conquista
desnecessária de uma possível identidade ou de um novo lugar no mundo, na vida,
na própria casa:
Nora, viver é subir uma escada rolante... pelo lado que desce. A gente
passa a vida toda fazendo uma força danada para chegar mais alto, para
onde nos impelem esperança, desafios, sonhos. Mas lá de baixo nos
chamam o cansaço, a solidão, a doença, a loucura... a morte. Esta, no fim,
vai vencer. (LUFT, A sentinela, 1994, p.181).
78
Estou ligada a essa casa como se ela manejasse os cordões da minha vida.
Respiro, aspiro, toco as coisas amadas, sozinha na manhã que também se
inaugura; e não sinto pânico de estar em falta; dor de ser insuficiente. Estou
bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, observando sem
medo os trechos a percorrer. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 33)
A arte tecendo palavras, fios, sons, parece ser a única capaz de enfrentar a
vigilância mortal da sentinela. Nora descobre, no fazer artístico, o caminho para a
reconstrução dessa nova identidade, que fará com que as relações afetivas – entre
mãe, filho e amante – percam o peso de uma hierarquia estritamente relacional,
deixando a personagem livre para viver o mistério, o imprevisto, e para ter a audácia
de se lançar à própria vida. Isso se configura na seguinte passagem:
Aos poucos fui descobrindo: não devo ser apenas mãe, irmã, amante.
Preciso ser eu, Nora, com tudo o que isso significa e que ainda tenho que
descobrir; que preciso extrair de mim, criando caminhos como João projeta
rumos no ventre da terra; produzir com a carne da minha alma os fios que
me prenderão ao mundo. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 38).
Eu estava numa nova fase da vida: nem sabia direito qual, mas estava na
beira de um novo começo. Alguma coisa parecida com paz se instalava:
não a paz da fuga mas do mergulho, do resultado que vem depois do
mergulho, quando se sabe que se está começando a emergir mas não se
79
Olga também é uma das personagens que, como Nora, se vale da máscara
do trágico enquanto força vital, exuberante no papel de reerguer-se diante das
fatalidades. Talvez por ter herdado a profissão do pai – médico -, estivesse mais
acostumada a lidar com as efemeridades / enfermidades:
Para essas duas personagens, especialmente, “a vida tem muita força [...]
basta a gente saber ouvir e sua voz está ali: uma pessoa, um trabalho, uma
curiosidade, um desejo.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.166).
Na perspectiva de Penélope, que tece e desfaz, pacientemente, seus fios,
Nora cria uma colcha de retalhos a partir do filme que se passa diante dela o dia
todo, para se afirmar no que diz: “cada um tem de encontrar o jeito, a trilha; aprender
a ser senhor dos seus rumos.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.177). A tapeçaria de
Nora, não casualmente denominada Penélope, finalmente se abre. E mediante o
trágico, Nora se declara: “Igual a ela, tenho feito e refeito meu entendimento do
mundo; escolhi fios bons e ruins, errei nas direções algumas vezes, quase desisti,
recomecei.” (LUFT, A sentinela, 1994, p.177).
Já a tela de Henrique, filho de Nora, abriga outro tipo de cor: ele, menino
doce, embora sufocado pela frenética presença e pelos desmedidos cuidados da
mãe, é julgado, por ela, como um estranho, no sentido de contrariar e inverter os
parâmetros sociais, simplesmente pelo gosto de usar pequenos brincos e de
dedicar-se, integralmente, à música. No momento em que sua mãe, na ânsia de
controlar todos os passos do filho e cobrando-lhe uma postura aparentemente
correta sugere-lhe uma namorada, Henrique recebe a fala da mãe como uma
provocação, interpretada como desconfiança de sua sexualidade: “Não entendi
direito suas alusões, suas indicações, mas você... você por acaso quer saber se eu
tenho um namorado?” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 128). Deparamo-nos, no final do
romance, com essa mesma música que significava, para Henrique, “uma expressão
do mundo, uma linguagem universal no mais alto grau” (NIETZSCHE, 2007, p. 96).
Uma universalidade não caracterizada por aquela, vazia de abstração, mas, ao
80
de ver o mundo e rever seus papéis. O choro da narradora diante da morte do anão
não é um choro comum, tampouco jamais chorado em toda sua vida. A primeira
percepção de uma sublime vivência do trágico parece se esboçar a partir desse
momento, que faz do choro uma eminente marca da diferença:
Ajoelhada a seu lado, chamo alto por ele, aos soluços [...]. Já chorei assim
alguma vez, eu, que tenho chorado tanto? O choro de quem dá a luz a si
mesma, abre as pernas dolorosamente e sai dali entre gemidos fundos,
sangue e gosma. Deito-me junto dele: eu o amava. Como a um filho, ou
como a um pai? Meu homenzinho, parte de mim, fruto das minhas trevas e
nostalgias, companheiro de exílio. (LUFT, Exílio, 1991, p. 172).
Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço dentro dela.
Fiquei de fora. Mas posso me aninhar num regaço transitório entre essas
raízes cúmplices, no chão eterno. Auscultar o coração emaranhado das
coisas, que empurra as torrentes da vida e da morte que nos levam. Talvez
eu não consiga chegar em casa. Talvez, chegando, eu não possa ficar.
Quem sabe? Mas eu vou seguir em frente. (LUFT, Exílio, 1991, p. 175).
[...] minha mãe era a força negada: trazia entalada na garganta a pedra de
sua própria anulação. Meu pai tinha direito ao espaço: o melhor lugar à
mesa, a maior poltrona na sala, a força e a ordenação. As pessoas o
temiam; eu também. Minha Mãe, por alguma razão nebulosa, sempre se
submetia. Era mais inteligente do que ele, mais perspicaz, mais agradável,
muito mais estimada. Porém sempre se esforçava por falar menos que ele
nas reuniões e visitas: procurava a indefinição. (LUFT, O ponto cego, 2003,
p.18)
Embora sendo uma rainha, minha Mãe se curvava. Medo de ficar sozinha
com este filho desenquadrado, medo de tomar decisões quanto ao seu
destino – muito mais difíceis do que as que tomava no trabalho? Que anistia
minha Mãe precisava se dar para viver inteira? (LUFT, O ponto cego, 2003,
p. 19).
Como se pode ver, esses romances estão entrelaçados por uma (con)
figuração do trágico, que privilegia todo o grotesco e todo o terror como uma forma
de afirmação da própria vida. Aos personagens dos referidos romances, toda
solução parece se lhes fugir de cena. Sobreviver à Casa Vermelha, à Floresta Negra
e ao Riacho dos Renegados parece contrariar toda a noção do trágico imanente ao
ser humano: aquele do qual não se escapa, especialmente mediante a consciência
da finitude. Aqui, mais uma vez, voltamos às reflexões do sábio Sileno, para quem o
pior à condição humana não se restringe a existir ou a morrer logo, já que existe:
restringe-se, sim, a fazer, com todo esse emaranhado de peças, um grande tabuleiro
de xadrez, no qual essas peças são analisadas sob uma ótica e de um lugar muito
especial: o olhar e o lugar do outro. Talvez de um ponto de vista – de um ponto
cego? - de onde tudo é possível e, quem sabe, como nos diz a própria autora,
transparece.
84
Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
Onde todos os significados
são sutis, são mortais.
4 REVISITANDO O ESTILO
por um lado a elocução clara, ou baixa, ligada a termos próprios, e há, por outro, a
elocução elegante, jogando com esse desvio e com essa substituição, na tentativa
de dar à linguagem uma “marca estranha, pois a distância motiva o espanto, e o
espanto é uma coisa agradável”. (ARISTÓTELES apud COMPAGNON, 2001,
p.168).
Segundo Compagnon, esses dois traços do estilo, definidos como ornamento
e desvio, são inseparáveis, uma vez que, desde Aristóteles, o estilo é entendido
como um ornamento formal, definido pelo desvio em relação ao uso neutro ou
normal da linguagem. Para ele, algumas noções binárias sobre a questão do estilo,
bem conhecidas, decorrem da noção de estilo compreendida como “fundo e forma”,
“conteúdo e expressão”, “matéria e maneira”. (COMPAGNON, 2001, p. 168). O
princípio de todas essas polaridades compreende, naturalmente, o dualismo
fundamental entre linguagem e pensamento – dualismo do qual depende a
legitimidade da noção tradicional de estilo. O estilo, então, no sentido de ornamento
e de desvio, pressupõe a sinonímia, o que lhe confere, como princípio, a
possibilidade de haver várias maneiras de dizer a mesma coisa – maneiras estas
que o estilo distingue. Raymond Queneau, em seus Exercices de Style, defendeu,
em meados do século XX, o estilo como variação sobre um tema: a mesma anedota
já repetida noventa e nove vezes em todos os tons possíveis e em todos os estágios
da língua francesa. Diante dessa definição, contestar ou desacreditar o estilo
significaria refutar a dualidade da linguagem e do pensamento e,
consequentemente, rejeitar o princípio semântico da sinonímia.
A próxima acepção do estilo se nos apresenta da seguinte maneira: o estilo é
um gênero ou um tipo. Segundo a antiga retórica, o estilo, enquanto escolha entre
meios expressivos, estava ligado à noção de aptum ou de conveniência. Como
exemplo disso, Compagnon nos remete ao tratado do estilo de Demétrio, ou ainda à
Retórica de Aristóteles, em que afirma: “Não basta possuir a matéria de seu
discurso, é preciso, além disso, falar como se deve [segundo a necessidade da
situação]; é a condição para dar ao discurso uma boa aparência.” (ARISTÓTELES
apud COMPAGNON, 2001, p. 169). Mediante essa postura, o estilo passaria a
designar a propriedade do discurso, isto é, a adaptação da expressão a seus fins.
89
Por fim, a última acepção abordada por Compagnon ao termo estilo configura-
se na seguinte afirmativa: “o estilo é uma cultura, no sentido sociológico e
antropológico que o alemão (Kultur) e o inglês, mais recentemente o francês, deram
a essa palavra, para resumir o espírito, a visão do mundo própria a uma
comunidade, qualquer que seja a dimensão desta [..]”. (COMPAGNON, 2001, p.
172). De acordo com essa afirmação, o estilo passa a ser entendido como a “alma
de uma nação”, ou a raça, no sentido filológico do termo, isto é, como unidade da
língua e das manifestações simbólicas de um grupo. A noção de estilo, aqui, designa
um valor dominante e um princípio de unidade, um “traço familiar”, característico de
uma comunidade no conjunto de suas manifestações simbólicas. O historiador de
arte americano Meyer Schapiro começa seu artigo sobre o estilo nestes termos:
ele compreende uma noção complexa, rica, ambígua, múltipla. A palavra estilo, aqui,
em vez de ser despojada de suas acepções anteriores, em função de ter adquirido
tantas outras, acumulou-se dessas várias outras e apropriou-se de todas elas. Hoje,
quando falamos de norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, estamos, de
uma certa forma, separada ou simultaneamente, falando de um estilo.
A obra de Lya Luft, a meu ver, configura-se como um espaço favorável para a
experiência dessas diversas manifestações do estilo, a despeito do seu caráter
essencialmente ambíguo, especialmente no que diz respeito ao seu uso moderno:
humilde. Por outro lado, ela distinguia o estilo de Demóstenes do estilo de Isócrates.
Entretanto, ela solucionava essa divergência afirmando que o estilo individual era
nada mais que o estilo coletivo, mais ou menos adaptado, mais ou menos
apropriado à questão. No entanto, após a retórica, o lado deliberado e coletivo do
estilo tornou-se cada vez mais desconhecido, em função de ter sido substituído pelo
estilo como “expressão de uma subjetividade, como manifestação sintomática de um
homem.” (COMPAGNON, 2001, p. 174).
Em reação contra essa orientação, Charles Bally, aluno de Saussure, em seu
Précis de Stylistique (Compêndio de Estilística, 1905), procurou criar uma ciência da
estilística, separando, ao mesmo tempo, o estilo do indivíduo e o da literatura, assim
como Saussure havia mantido a distância entre a fala e a língua, para fazer, desta, o
objeto da ciência linguística. Note-se, então, que a estilística de Bally é um
levantamento dos meios expressivos da língua oral. A partir disso, podemos
considerar que a estilística sempre esteve do lado da estilística e da literatura. Isso
se confirma através das monografias de escritores as quais, normalmente,
terminavam por um capítulo sobre aquilo que se chamava “O estilo de André
Chénier”, ou “O estilo de Lamartine”, por exemplo, uma vez que a estilística literária
na França, na primeira metade do século XX, teve como matéria, à semelhança da
história literária de que ela dependia, grandes escritores franceses.
A partir dessa noção de estilo, uma outra se faz conhecer, através de Roland
Barthes, em Le Degré Zéro de l’Écriture [O Grau Zero da Escritura], no qual ele
distingue a língua como um dado social contra o qual o escritor nada pode, ou seja,
“ela já existe e ele deve curvar-se a ela e ao estilo, com o único sentido que se
impôs desde o romantismo, como natureza, corpo, singularidade inalienável contra a
qual ele também não tem nenhum poder, pois ela é seu próprio ser.”
(COMPAGNON, 2001, p. 174). Mesmo reconhecendo essa dualidade, esta não se
faz suficiente para que Barthes descreva a literatura. E é a partir dela que ele
elabora o conceito de escritura. Para ele,
Ana Maria Clark Peres, em seu artigo O estilo enfim, em questão, nos lembra
de algumas das formulações da concepção usual do termo:
99
O que Ana Clark nos sugere, em todos os seus estudos realizados sobre a
questão do estilo, em suas releituras e em seus novos olhares, a partir das inúmeras
teorias que se debruçam sobre a questão do estilo, é que repensemos o conceito
desse termo à luz de teorias mais recentes, com ares menos categorizantes, ou até
mesmo que simplesmente resgatemos seu sentido a partir da etimologia da palavra:
ora, se estilo deriva do latim stillus, que em seu sentido próprio designa ponteiro de
ferro ou de osso com o qual se escrevia em tábuas enceradas, e, no sentido
figurado, a maneira de escrever, não seria possível nos determos, para além dessa
maneira, na marca que se deixa ao escrever e nas leituras que se fazem dela?
“Traço de algo que falta irremediavelmente e que produz reiteradas versões de uma
construção involuntária, a mais íntima dentre tantas, na qual se manifesta a verdade
do sujeito...?” (PERES, 2000, p. 81).
Essa noção de estilo como marca, como traço que produz reiteradas versões
de uma construção involuntária, nos remete, espontaneamente, ao olhar que a
psicanálise direciona ao termo, ou seja, ao se pensar na marca, no traço, não há
como deixar de lado esse sujeito, na perseguição de um estilo: “Não me restrinjo
aqui a um sujeito histórico, coletivo, ou a uma particularidade regional ou nacional,
mas à singularidade e particularidade de um sujeito desejante, evanescente, efeito
do significante no ser falante, tal qual nos sinalizam as descobertas freudiana e
lacaniana.” (PERES, 2000, p. 83).
E é também a partir de uma interlocução com a psicanálise que pretendo
abordar, aqui, a questão do estilo. Reporto-me às reflexões de Ana Maria Clark
embasadas nos estudos de Lacan sobre o conceito de estilo. Ao final de A
Psicanálise e Seu Ensinamento, Lacan nos afirma:
A leitura que Ana Clark Peres faz desse trecho de Lacan aponta para a
seguinte reflexão:
7
A referência a essa “criança” advém da contribuição do psicanalista Juan David Nasio, que explicita
sua concepção do sujeito do inconsciente enquanto a “criança magnífica da psicanálise”.
102
Vidal, em um artigo intitulado O Estilo é o Objeto (VIDAL, 2000, p. 69). Nesse artigo,
o autor faz um breve levantamento histórico referente às formulações do discurso
sobre o estilo, realçando as proposições de Descartes e Boileau. Em termos gerais e
de forma bastante genérica, reconhece-se que o estilo consiste no modo peculiar
com que o sujeito se exprime, fala, escreve. Essa assertiva talvez esteja associada
ao fato de o estilo trazer, em sua etimologia, a função de uma cunhagem sobre uma
superfície, uma marca indelével elevada à dimensão de traço da diferença. Stilus8 é,
para os autores do chamado período clássico, uma palavra que remete a um objeto
material, de sentido concreto. E o uso figurado desse termo não o desvincula da
imagem de ferramenta utilizada para escrever.
No século de Descartes, talvez se possa estabelecer um vetor que atravessa
as diversas reflexões sobre o estilo: o ponto de partida é sempre uma idéia clara e
distinta em prol da palavra precisa para expressar uma verdade atemporal.
Justifique-se isso no fato de a obra de Descartes apontar para algumas regras que
permitiam “dirigir o espírito até torná-lo capaz de enunciar juízos sólidos e
verdadeiros sobre tudo o que se apresenta a ele” (DESCARTES apud VIDAL, 2000,
p. 69). Essas regras tinham como alvo a concisão da expressão para poder melhor
transmitir o pensamento. Já no século XVIII, o homem entra em cena, o que não
implica negligenciar as questões tratadas. Agora, porém, a marca, o traço que o
homem imprime ao texto é o que definirá seu estilo. Contrariamente ao século
anterior, agora é a imagem que primeiro impacta o olhar e, a ela, se submeterá o
pensamento. O homem compreende, também, seus modos, seus hábitos, suas
vestimentas. Surge, então, no discurso, a função do semblante, como algo que
aponta para a grande novidade do século das luzes: a de se reconhecer, nele, que
os discursos são da aparência. Assim,
8
“O latim stilus compartilha com stimulare ‘estimular’ e instigare ‘instigar’ da mesma raiz indoeuropeia
*steig, que veicula o sentido amplo de ‘picar, ferroar’ (confiram-se as formas inglesas Sting e stick,
as alemãs stechen e sticken, assim como a palavra grega stu / gma (stigma), que nos chega
através da forma latinizada stigma ‘marca de ferro em brasa’). Stilus era um instrumento utilizado
para a escrita em tabuinhas de cera e consistia em uma haste de metal, ou de osso, com uma
extremidade pontiaguda, para o traçado das letras, e outra extremidade em formato de espátula,
que servia para “apagar” e corrigir os eventuais erros.” (REZENDE, In: CLARCK PERES;
PEIXOTO; OLIVEIRA, 2003, p.41-42).
103
A vida escrita é a vida que se escreve, mesmo que não se saiba. Como a
lesma que deixa uma gosma viscosa em seu caminho. Como a lágrima que
fala em seu silêncio de dor ou alegria. [...] Ou fazem furos, com as pontas
dos estiletes [...]. (BRANDÃO, 2006, p. 23).
Assim, é preciso dizer que o tradutor é aquele que deve notar, no texto
estrangeiro, o que não se enuncia de forma explícita, levar esse texto para
além dos limites que ele se dá, sondá-lo em seu insabido, captar seu
avesso, compreender que o original é móvel. O tradutor é, ao mesmo
tempo, o futuro leitor – aquele que não saberia se restringir ao estrito uso de
sua língua materna – e o escritor, aquele que aspira nascer do que faz, de
sua poiésis. (REY, 2002, p. 76).
Embora Lya declare uma total incompatibilidade entre as coisas que escreve
e as que traduz, ela afirma que gosta muito de traduzir, e que vive esse trabalho de
forma tão intensa que “faz certos trechos quase com a mesma emoção como se
escrevesse seus próprios textos.” (LUFT, 1984, p. 8). E ainda que ela insista em se
revelar imune a essas influências, advindas de suas leituras e de suas traduções,
não é isso que ressoa em nós, leitores de sua obra, em seus romances, em seus
textos não-ficcionais. São vários os momentos, por exemplo, em que se fazem
visíveis as reflexões sobre a condição feminina, preconizadas por Virgínia Woolf,
como também os questionamentos sobre a condição humana, insistentemente
elaborados na escrita do poeta Rainer Maria Rilke. Ademais, neste mesmo caderno
de entrevistas, cita Virgínia Woolf para se explicar, assim como ela, quando
questionada sobre os prováveis sentidos para os símbolos de sua escrita9:
Lya cita Virgínia Woolf que, perguntada sobre o que significava o farol em seu
livro Passeio ao farol, respondeu: “- Quando eu escrevo, coloco as minhas emoções
e os meus símbolos. Quando o leitor for ler os meus livros, ele vai colocar os seus
símbolos e as suas emoções. Se eu decifrar os meus símbolos enquanto estiver
escrevendo, eles perderão o valor. Então, eu não me interesso pelo que significa
farol.” (LUFT, 1984, p. 9).
9
Especificamente aqui, Lya Luft cita Virgínia Woolf para, como ela, justificar-se mediante a pergunta
de qual seria o significado que ela atribuiria aos gêmeos, Camilo e Carolina, no romance O quarto
fechado.
106
autoritária matriarca Frau Wolf. Dividida entre a obrigação de seguir as duras normas
da educação alemã e a vontade de ser como as outras crianças, admirando a mãe –
uma intrusa que tenta se integrar na família germânica –, a menina cresce em meio
a essas ambivalências, censurada pelo olhar crítico da avó e sentindo-se sempre à
sombra da prima – a perfeita e preferida Anemarie. Neste romance, Gisela conta a
história de sua família, seus segredos – escondidos metaforicamente em uma
portinha no porão –, as mortes dolorosas e o anjo que guarda o mausoléu dos Wolf.
Assim também, narra-nos os anseios e as culpas que a impedem de viver uma
relação amorosa, bem como a incessante busca por sua aprovação em um lugar
onde ela jamais seria igual aos outros. Nelly Novaes Coelho, ao se referir à escrita
de Lya Luft, nos diz que
[...] como um sensível sismógrafo, ela vai registrando sinais dos surdos
movimentos que se agitam no ambíguo submundo emocional e oculto sob
aparências absolutamente normais e comuns que revelam seres
condenados pela rotina cotidiana a se repetirem eternamente, de maneira
estéril. (COELHO, 1993, p. 232).
Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua
para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a
ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado
na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó. Só eu
me sinto fora de ritmo, com o corpo miúdo, as orelhas grandes teimando em
aparecer por entre o cabelo que me obrigam a usar bem curto, “assim fica
mais forte”. Também sou canhota e não conseguiram me corrigir. (LUFT, A
asa esquerda do anjo, 2003, p. 11).
Sou uma mulher comum; dessas que lidam na cozinha, tiram poeira dos
móveis, andam na rua com uma sacola de verduras, sofrem de varizes e às
vezes de insônia. Quando meus filhos eram pequenos, houve um tempo em
que eu carregava uma sacola a mais: com restos de verduras para os dois
porquinhos-da-índia que os meninos ganharam. (LUFT, Reunião de família,
2004, p. 13).
Este reflexo familiar, essa outra face de um eu que se busca a todo tempo, já
se esboça no início do romance, no momento em que a própria Alice assume sua
consciência de outrora no habitual jogo a que se propunha brincar. E era através
desse jogo que as eventuais aparências e realidades se davam a conhecer. Nele,
passado e presente entrecruzam-se, dando-nos a conhecer a permanente condição
feminina:
O jogo: do tempo em que eu não era uma pacata dona-de-casa com filhos
criados, mas uma menina sem mãe; que inventava o jogo do espelho para
ser menos infeliz. A gente sentava na frente da outra menina e encarava:
tão intensamente, com tamanho fervor e tanta vontade de a ver mudar, que
a imagem aos poucos perdia seus contornos; ficava um borrão. Por detrás
do reflexo familiar ia-se formando outro alguém. De início, sorrateiro; depois,
dominando tudo com seu poderoso olhar. Seu nome também era: Alice. Ela:
o contrário de mim, meu reverso. Sempre à espera, por baixo da superfície.
Livre para detestar tudo o que, aqui fora, eu era obrigada a aceitar. [...] Sou
apenas uma dona-de-casa, vida exclusivamente doméstica, marido e dois
filhos que já são quase homens e nunca me deram preocupação. (LUFT,
Reunião de família, 2004, p. 10-11).
Neste romance, assim como nos anteriores, ao seu final, prevalece a imagem
da mulher submissa que, embora se fizesse consciente da necessidade de ser sua
outra face, ou de se transformar, nela, dona de suas escolhas, não se realiza, aqui.
O que resta, então, é a inevitável repetição da mesmice cotidiana, sem vislumbre de
nenhuma abertura pela qual essas personagens possam escapar da circularidade
estéril a que estão condenadas, esboçada no início e nas últimas páginas do
romance. E conclui que tudo não passou, apenas, de um jogo: um jogo de espelhos:
“O mundo voltou a ser ordenado, tal como precisamos que seja. Se admitirmos o
vórtice, o abismo, o subterrâneo por trás dos espelhos, nossas bocas hão de se
escancarar num grito.” (LUFT, Reunião de família, 2004, p. 126)
Embora o discurso de Lya Luft se deixe transparecer a partir de um tom
fortemente irônico, que repudia a falsidade dessas relações familiares e a hipocrisia
que as circundam, suas personagens ainda não conseguem se verem livres das
convenções sociais, e entregam-se ao inexorável destino de continuarem as
mesmas, mediante as mesmas condições de opressão e silêncio. Tudo parece uma
explosão de conflitos que, como a de fogos de artifícios, nos revela uma realidade
momentânea, incapturável. No dia seguinte, sem luzes, sem tremores, sem tumultos,
tudo parece se acalmar, e as pessoas, retomam suas máscaras cotidianas, voltando
ao convívio pacífico e convencional.
No romance O quarto fechado, publicado em 1984 – dois anos após Reunião
de família –, temos um contexto muito próximo das temáticas anteriores,
preconizado, entretanto, de uma outra maneira: uma nova vertente de análise das
relações humanas, mediante a irremediável presença da morte. Uma reflexão
fundamentada, talvez, na inutilidade e ineficiência das aparências – estas que
sustentam tantas situações de opressão e irremediabilidade dos fatos. Entre
delicadeza e brutalidade, Lya Luft nos expõe ao limite de consciência, em nível do
humano: o estado cônscio de inteira impotência perante a morte. E é esta a situação
realçada neste romance. As relações humanas estão deterioradas, e é no momento
de dor mais profunda que a união se instaura. As aparências são, novamente, o foco
das grandes inquietações: Martin e Renata, embora separados, dividiam o
sentimento de culpa e de inexorabilidade diante do filho morto: “A dor partilhada em
público unia-os numa intimidade que não desejavam mais.” (LUFT, O quarto
fechado, 2004, p. 13). O jogo, mais uma vez, como elemento inicial das tensões. Ao
contrário de Alice, que em Reunião de família se rende, desde criança, ao jogo de
espelhos, Camilo se sente atraído por um outro tipo de jogo: o jogo de morrer. Ao se
referir ao comportamento dos gêmeos, narra-se:
Não tinham nascido iguais. De sexos diferentes, seriam como dois irmãos
quaisquer. Parecidos, sim: pequenos, débeis. Mas com o tempo haviam-se
tornado mais e mais semelhantes. Renata sabia, todos sabiam sem
coragem de dizer: eles treinavam para ser iguais. (LUFT, O quarto fechado,
2004, p. 31).
Lya Luft, dentre seus vários livros de poesia, crônicas, ensaios e histórias
infantis, publicou sete romances, respectivamente intitulados: As parceiras, A asa
esquerda do anjo, Reunião de família, O quarto fechado, Exílio, A sentinela e O
ponto cego. Esse número é extremamente significativo para a análise em que nos
deteremos, especialmente pela cadeia de significados que o constitui: “[...] O sete
corresponde aos sete graus da perfeição [...]. Ele simboliza a totalidade do espaço e
a totalidade do tempo. [...] é o símbolo universal de uma totalidade, mas de uma
totalidade em movimento ou de um dinamismo total.” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2009, p. 826-27).
Como à criação do mundo, Lya parece também criar seu universo romanesco
em busca de uma perfeição, e encontra, em seu sétimo romance – O ponto cego –
algo “como que uma restauração das forças divinas na contemplação da obra
executada.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 826); algo que não se
determina como fim enquanto criação literária, mas algo que cede lugar a uma nova
forma de representação dos conflitos que a autora nos expõe, através, também, da
nova postura adotada por suas personagens.
Os três primeiros romances – considerados por muitos estudiosos como uma
trilogia –, retratam traços de padrões culturais irrevogáveis, inquestionáveis e
alienáveis, especialmente no que diz respeito à condição humana. Nos romances,
homens e mulheres são representados como vítimas de uma identidade formada a
partir de suas funções sociais. Há uma organização espacial determinada – casa,
quartos, cômodos, sótãos –, que contribui para essa percepção do “já no lugar”, do
aparentemente estruturado e imodificável. Resta a essas personagens apenas
inserirem-se em tal contexto. Embora seja um contexto preestabelecido, surgem-lhe
reflexões que as encaminham a uma redescoberta dos valores sociais e individuais,
especialmente no contexto familiar. Há disposição nessas personagens para irem
em busca de uma nova forma de se fazerem presentes no mundo, na sociedade e
na família da qual fazem parte. Embora essas personagens privilegiem suas buscas
identitárias e se conscientizem da necessidade de mudança, elas terminam por se
renderem à força maior do destino, abdicando-se de suas descobertas
simplesmente em função de manterem a “história da instituição familiar.” (XAVIER,
1998, p.113).
E é a partir do quarto romance – O quarto fechado – que esse universo
começa a se modificar, a evoluir. Se observarmos as citações aos romances, feitas
116
Talvez esta seja uma virada em minha obra: personagens não mais
exclusivamente tangidos por fatalidades, mas responsáveis. É, por isso, um
livro mais esperançoso: alguém renasce em si e de si mesmo e, ainda que
guarde um último mistério indecifrável na gruta de seu pantanoso jardim (o
interno e o externo), lança-se na vida e recria o mundo. O seu mundo, que
miticamente irrompe de sua voz. De sua palavra. (LUFT, 1994, orelha).
vida, à nova forma de vida intacta. Parece ser o momento de explorar novos modos
de narrar, novas posturas para assumir, novas identidades para resgatar, constituir.
E esse universo de igualdades será rica e impecavelmente retratado nos romances
Exílio, A sentinela e O quarto fechado. Neles, o contexto familiar sofre profundas
mudanças, assim como o modo de referência à condição feminina. Um novo perfil e
uma nova forma de explorar a formação psicológica das personagens protagonistas
se constituem a partir de uma reinventada forma de narrar: novos processos da
memória seletiva são constituídos, assim como são reelaboradas as pessoas que
influem nas tomadas de decisão dessas personagens, e a conscientização da
necessidade de essas personagens agirem e fazerem suas escolhas por si mesmas,
ao invés de dependerem inteiramente da decisão – ou condenação – dos outros.
Uma declaração visível dessa mudança intencional de atitude –
especialmente no que diz respeito ao comportamento da mulher – pode ser
sinalizada, dentre vários outros momentos, neste: “Estou no coração de um ciclo que
se fecha; eu sou o mar, com peixes e medusas, sou a viagem também.” (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 162). Como se pode ver, Nora – evolução de Anelise? –,
personagem principal e narradora, ao contrário das personagens femininas dos
romances anteriores, não enlouquece e não sucumbe às convenções de uma família
tida como tradicional. Não há invólucros, e não há mais sótãos: a mulher se
autoapresenta como o lugar das grandes e perigosas coisas – como o mar, seus
peixes e suas medusas –, mas também como o lugar do eu reconquistado,
reconstituído, reencontrado: “neste momento, a noite não me ameaça; a gruta não
me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão fora de todo o tempo humano.”
(LUFT, A sentinela, 1994, p. 163). Essa conscientização temporal da personagem
feminina situa a condição da mulher em um outro espaço: no espaço que privilegia o
subjetivo, o individual, a partir de uma visão do coletivo. Essa noção nos parece
sintomática da obra de Lya Luft, e nos remete a uma das configurações que o estilo
assume, para nós, nessa análise literária: a visão de um “detalhe sintomático”, que
procura “sempre descrever a rede de desvios ínfimos que permitem caracterizar a
visão de mundo de um indivíduo, assim como a marca que ele deixou no espírito
coletivo.” (COMPAGNON, 2001, p. 169).
Em Exílio, temos também esse novo ambiente romanesco, modificado pela
distinta forma com que os personagens se posicionam diante das tensões
abordadas nos primeiros romances, embora, nele, essas abordagens sejam
118
realçadas com certa timidez, especialmente no que diz respeito à nova postura da
mulher frente ao seu destino. Aqui, a história da narradora envolve uma série de
conflitos inerentes à problemática familiar: orfandade, internato, casamento,
separação, amante, direitos sobre o filho da primeira relação, dentre outros.
Entretanto, há neste contexto um dado novo em relação aos romances anteriores,
uma evolução em nível da posição das personagens frente a essas tensões
familiares: é o da profissionalização da mulher, que agora sai da esfera doméstica e
atinge o espaço público pelo trabalho externo. A palavra timidez usada acima
também diz respeito a essa nova realidade, uma vez que ela se esboça
paulatinamente: nos romances anteriores, as mulheres estavam confinadas aos
espaços especificamente domésticos, sem rumores de uma profissão ou algo que
lhes conferisse algum valor em nível exterior à própria casa. Como bem nos afirma
Elódia Xavier, “O ‘destino de mulher’, apesar de insatisfatório, é um referencial
seguro; aqui, as relações de gênero estão bem esquematizadas, com todos os
papéis distribuídos. Não há erro. Como em Clarice Lispector, o espaço doméstico
anestesia e protege do perigo de viver...” (XAVIER, 1998, p. 70). Em O quarto
fechado, por exemplo, a personagem Renata já se apresenta a partir de um outro
espaço, além do doméstico: no do palco, no do mundo das artes. A conscientização
da busca por este lugar, exterior à casa, já lhe havia acometido: “ – Eu não sirvo
para casar – dizia ela antigamente, vendo mulheres de sua idade rodeadas de
filhos..” (LUFT, O quarto fechado, 1984, p. 15). E embora a personagem tivesse
essa consciência, os preceitos culturais, a lei do pai que ditava as regras do jogo
social se lhes imperaram com maior incidência: “Pianista de sucesso, Renata
descera dos palcos para o mundo de Martim, um mundo terra-a-terra, forte e
racional.” (LUFT, O quarto fechado, 1984, p. 15).
Quando me referi à palavra timidez, referi-me à maneira pela qual esse novo
contexto se aproximou das temáticas abordadas por Lya Luft. E elas se
apresentaram de maneira tímida em função de já retratarem, de um lado, a
possibilidade de uma nova vida para a mulher, e de outro, a dificuldade de suas
personagens desvencilharem-se do contexto social patriarcal. Este romance
preconiza, por exemplo, além da profissionalização da mulher, a capacidade de
decidirem-se por outra vida, que não fosse restrita somente ao âmbito do doméstico.
Isso nos é visível através da separação de Renata, que representa uma fresta na
nova representação dessa condição feminina:
119
Tentara trocar a arte pela vida doméstica, mas cedo o novo ambiente lhe
pareceu vulgar. Até ali concentrada em si mesma, não conseguia se
repartir: muita solicitação agora, e ela impotente. [...] Embora solitário, duro,
árido, para ela o exercício da arte fora menos complexo do que o exercício
do amor humano. (LUFT, O quarto fechado, 1984, p. 15-16).
No que diz respeito ao filho, ela nos narra: “Passei noites lembrando o quanto
o deixara de lado correndo atrás da minha profissão, e quantas vezes o pai cuidava
dele, levava a passeios, fazia dormir enquanto eu atendia partos.” (LUFT, Exílio,
1991, p. 45).
Note-se, nesses trechos, o ambiente feminino vislumbrado de um outro lugar:
a mulher tem uma vida exterior à da casa, mas não a vivencia paralelamente à vida
familiar. Helena Parente Cunha, em seu artigo intitulado A mulher partida: a busca
do verdadeiro rosto na miragem dos espelhos, bem nos fala desse provável tributo
120
que a mulher tem que pagar pela transgressão: “A mulher moldada ideologicamente
pelo paradigma não poderia ter chance de fugir das balizas falogocêntricas, sem
arcar com o peso da censura interna ou superego.” (SHARPE, 1997, p. 119).
Ela reafirma que embora seu texto não seja o lugar para discutir o que Freud
afirmou sobre o superego da mulher, e que tanto irritou as feministas do mundo
inteiro, há que considerar o papel condenatório à provável desobediência aos
padrões ideologicamente culturais. Segundo ela,
hábitos”, comum aos escritores de determinada época, ela é como “uma Natureza
que passa inteiramente através da fala do escritor.” (BARTHES, 1982, p.121).
Sendo, então, “um objeto social por definição, não por eleição”, está aquém da
literatura. O estilo, diferentemente, está quase além:
1999, p. 406); e também como “... o navio e a arca dos conhecimentos secretos e
das revelações que hão de vir.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 461), toda a
história de vida familiar constituinte das incólumes memórias de sua infância, e,
portanto, para a autora, inesquecíveis em sua essencialidade. E toda essa história
intocável, associada à proteção segura – já que se vê guardada em uma garrafa –,
nos aproxima de um dos sentidos conferidos ao termo garrafa, uma vez que esta,
enquanto símbolo, está diretamente associada ao segredo, ao sagrado, e, por
conseguinte, ao intocável: “O valor do frasco é metonímico, procede de seu
conteúdo, tão volátil quanto precioso, e que esse frasco ou garrafa é o único capaz
de conter porque, ao contrário dos demais vasos, a garrafa é tampada, hermética.”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.460) Logo adiante, ainda abordando o termo,
simbolicamente, acrescenta: “Contém um elixir, um filtro: elixir da longa vida”, que
proporciona “uma espécie de embriaguez.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009,
p.460). E a embriaguez, segundo Nietzsche, está estreitamente ligada à vontade de
lucidez, à questão do sonho de ser, que tem para ele a perspectiva de que se a base
do belo é o sonho de ser, então a base do sublime é inerente a uma embriaguez do
ser. Belo e sublime são vocabulários centrais na filosofia de Nietzsche. Embora ele
reconheça que a beleza é uma aparência, ele também admite que se é aparência, “é
porque há uma verdade que é a essência.” (NIETZSCHE apud MACHADO, 1985, p.
22). Em Nietzsche, este belo não tem seu sentido atribuído simplesmente à
classificação de que “as coisas belas são belas”. Para ele, “quando se diz que algo é
belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem nada se enunciar sobre sua
essência.” (NIETZSCHE apud MACHADO, 1985, p.22). E ao massacrar a essência,
a vontade, a verdadeira realidade, essa beleza torna-se, segundo ele, “uma
intensificação das forças da vida que aumentam o prazer de existir.” (NIETZSCHE,
1985, p. 23). E, diante disso, a aparência assume um caráter de necessidade, ou
seja, mesmo que a essencialidade das coisas seja vista somente a partir do que nos
é aparente, essa mesma aparência se faz inteiramente necessária para a libertação
da dor – ou do sentimento trágico. Essa perspectiva nos leva, então, a reconhecer
que o trágico se manifesta como um elemento indissociável da escrita de Lya Luft,
ainda que essa escrita tente preservar o seu caráter de realidade em relação aos
seus espaços marcadamente ficcionais. O real e o fictício parecem pactuados numa
mesma tessitura, especialmente quando tramada por uma autora para quem “o
pensado e o real não se distinguem nem cabem em palavras: rebrilham nas
127
Este livro nasce da lembrança das pessoas e das coisas, das minhas
conjeturas a respeito de tudo o que circulava entre elas – e do que se
desenhava além desse universo. Quem escreve resgata e recobra, inventa
ou transfigura. Algo pode se perder se eu for minuciosa demais na tentativa
de separar a menina da mulher: pois as duas igualmente me sustentam. É
preciso andar com cuidado entre essas presenças, as que prosseguem
comigo e as que foram se apartando levadas pelo acaso, pela morte, pelo
apagamento da memória. Pois como o vento do mar não sabe que não
existe mais o mar – e pode trazer rumor de ondas e odor de maresia a
desertos onde tudo isso pairou há milhões de anos –, também o passado
não sabe que não existe mais a história vivida. (LUFT, Mar de dentro, 2004,
p. 124).
Tudo parecia tão rotineiro: lembrei até de levar nossas escovas de dentes e
o livro que estávamos lendo juntos. Tudo cotidiano: naquela manhã
tínhamos comentado na mesa do café as notícias do jornal. Fomos para o
lugar onde você morreria menos de dois dias depois, e era uma manhã de
sol claro no Rio de Janeiro, eu no banco de trás, inclinada para diante,
acariciando seu rosto. (Até a barba você tinha feito.) Tudo absolutamente
cotidiano: você falando e rindo, disfarçando um mal-estar menor. Procuro
saber, mas não descubro se no meu coração se agachava o pressentimento
de que tudo estaria acabado em poucas horas. (Essa é a grande traição de
algumas mortes.) (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 29).
Lya Luft, através de sua voz autoral, tenta imprimir, em suas ficções, traços
que revelem a incessante busca de um sentido para o que ela mesma diz
desconhecer. E ao definir-se como escritora, nos declara:
Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando sobre o que
me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante – às
vezes trevoso – que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais
cotidianas. Fazer ficção é, para mim, vagar à beira do poço interior
observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na
superfície. [...] Minha literatura não emerge de águas tranquilas: fala de
minhas perplexidades enquanto ser humano, escorre de fendas onde se
128
Essa definição parece ir ao encontro do tecido dos versos que denotam o luto
subjacente ao sentido do trágico enquanto páthos: “Páthos é o que sofre, o
sofrimento, mas também a experiência que, para os humanos, se adquire somente
na dor.” (LOURAUX, 1988, p. 27). Esse sentido realmente trágico, marcado por um
sofrimento real, pode ser visualizado na ponte que se estabelece entre o vivido e o
desconhecido, o real e o concreto, e a ínfima distância entre a vida e a morte:
Tanto escrevi sobre a morte em livros e poemas nesses anos que sempre
achei que a entendia um pouco. Mas agora que ela me dilacerou a vida, me
rasgou o peito, me levou o amado, sinto que mal começo a compreender
sua mensagem: tirando-o de mim, a morte o devolve para que seja mais
meu. Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado. Nem Deus o
tirará daqui. (LUFT, O lado fatal, 1991, p. 43).
[...] selecionar lugares e formar imagens mentais das coisas que querem
lembrar, e guardar essas imagens nesses lugares, de modo que a ordem
dos lugares preserve a ordem das coisas, e as imagens das coisas denotem
as próprias coisas; e devemos empregar os lugares e as imagens assim
como uma tábua de cera sobre a qual são inscritas as letras. (YATES, 2007,
p. 18).
Vim ao Chalé resolver minha vida, se é que ainda há o que resolver. [...]
Cidadezinha de veraneio, o lado pobre onde moram os pescadores e o lado
dos veranistas junto ao mar. Os pescadores chamam nossa casa de “casa
dos fantasmas”. Dizem que aqui se vêem coisas, se ouvem vozes. Mas
para nós, da família, sempre foi o “Chalé”. Uma construção grande e antiga,
feia, de madeira pintada em cor ocre. Parece um caranguejo saindo da
praia, tentando escalar o morro que surge inesperado das ondas. (LUFT, As
parceiras, 2003, p. 15).
Frau Wolf abria com uma grande chave preta a porta de vidro e ferro
trabalhado, e mergulhávamos no silêncio roxo dos vitrais. Eu queria ouvir as
vozes dos nossos mortos, deviam sussurrar coisas entre si: meu avô,
minhas tias e tios mortos na juventude ou na infância; primos; alguns
parentes afastados; meu irmãozinho Otto; meus bisavós – todos hirtos,
dormindo limpos e compostos em suas gavetas de pedra que ninguém abria
mais. Os mortos eram enigmáticos textos invioláveis. (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 33).
Formamos uma estranha cena à mesa do jantar. Por que não trocam as
lâmpadas da casa por outras mais fortes? Nessa meia-luz parecemos
fantasmas. Uma segunda família janta no espelho, que vai do aparador até
o teto. Uma feia rachadura sobe do canto esquerdo até o meio e divide meu
rosto obliquamente em duas partes. (LUFT, Reunião de família, 2004, p.
55).
além, o mar. Navios.” (LUFT, Exílio, 1991, p. 19). E dentro do desenho dessa
paisagem tão elaborada, a identificação da personagem enquanto mais um ser que
habita esse espaço, reconhecido como uma pensão medíocre:
Que mundo, o desta casa. Deve ter sido luxuosa: hoje abriga náufragos que
aportam aqui Deus sabe como e de onde; e para quê. Formamos uma
fauna e tanto: as Moças, que parecem ser um casal; eu, a mulher retraída,
coberta de vitiligo, que não fala com ninguém; minha vizinha de frente, velha
e alquebrada, provavelmente um tanto caduca; e pouca gente mais; [...].
(LUFT, Exílio, 1991, p. 18-19).
A Casa Vermelha carrega em seu bojo roído pelo tempo, habitado de ratos
e infectado de angústias, toda uma raça de exilados. Cada um com sua
grande nostalgia, sua insaciável sede e sua aflição, tentam adaptar-se como
podem. Uns isolam-se mais ainda, como a Mulher Manchada em sua pele
de renda; outros dando valor ao mais banal gesto de cordialidade, como as
Moças com seu drama secreto; a minha Velha, cada dia absorvendo-se
mais em sabe Deus que memórias ou esperas. Nessa idade acho que a
gente só tem memórias; agachada num presente adusto e calcinado,
contempla o passado vivo. (LUFT, Exílio, 1991, p. 42).
Essa afirmação nos aproxima também do valor que as narrativas de Lya Luft
conferem ao tempo da infância. A imagem mítica, imponente e sagrada da catedral
parece condensar a integridade de algumas lembranças, constituídas a partir de
sensações registradas na própria linguagem:
Minha mãe não era bondosa: raramente se lembrava de mim, e era pior do
que quando me ignorava. Exigia então minha presença, eu tinha de lhe
prestar pequenos serviços: achar os livros, os óculos, um lenço. Era como
se, lembrando-se, resolvesse ao menos tirar algum proveito desse
aborrecido fato: ter uma filha. E nessas horas, quando se irritava, não tinha
uma bela voz: era a única coisa nela que ficava feia. (LUFT, Exílio, 1991, p.
33).
Naquele dia pensei: ter úlcera era só o que me faltava agora. Para disfarçar
o alarma, fui formando desenhos com migalhas de pão na toalha. E lembrei
o meu tesouro: o cascalho colorido que minha mãe guardava num gordo
frasco transparente sobre o toucador, entre perfumes, caixinhas antigas
135
com pinturas e grampos de cabelo. Quando ela saía à noite com meu pai,
[...] algumas vezes eu me esgueirava até o seu quarto; pegava a bola de
vidro com as duas mãos, esvaziava seu conteúdo na colcha de cetim da
grande cama e fingia que eram rubis, esmeraldas, diamantes. Revirara-os
entre os dedos; espiava contra a luz, tinha vontade de comê-los como flocos
de gelatina. Então seriam o meu tesouro: um pouco da beleza e do mistério
de minha mãe, só para mim.Quando ela morreu, retirando-se
definitivamente para o reino que na verdade já era o dela, foi isso que
guardei: peguei o frasco, enfiei-o no armário entre minhas roupas, e
ninguém notou. Pelo menos, naqueles dias de confusão e dor, não
reclamaram. Ficou sendo meu talismã. (LUFT, Exílio, 1991, p. 15-16).
Como se pode ver, Exílio tem como alicerce narrativo a imagem fixada na
casa, nos cômodos da Casa Vermelha, que evocam vozes e lembranças de um
tempo bastante remoto. E não é diferente com os próximos romances, A sentinela e
O ponto cego; tampouco foi diferente com os outros romances, anteriormente
analisados. O fato é que como temos trabalhado com a hipótese de que o elemento
trágico é o formador de um estilo na obra de Lya Luft, chamamos a atenção para o
fato de que é a partir de Exílio que a escrita de Lya assume um novo tom. Elementos
recorrentes como as memórias, a imagem das casas, a condição feminina e a
condição humana são reelaborados sob uma nova perspectiva. A visão da condição
feminina, especialmente no que diz respeito às prescrições da sociedade patriarcal,
é vista e abordada de uma nova forma: as personagens começam a se inserir num
136
Estou ligada a essa casa como se ela manejasse os cordões de minha vida.
Respiro, aspiro, toco as coisas amadas, sozinha na manhã que também se
inaugura; e não sinto pânico de estar em falta; dor de ser insuficiente. Estou
bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, observando sem
medo os trechos a percorrer. Vou até a cozinha, Rosa já fez o café; volto
com um caneco do líquido quente, perfumado, sento-me numa banqueta
longe do cone de luz. Este é o dia que vou dedicar à contabilidade; não da
minha pequena empresa, mas dos negócios interiores, mais difíceis de
controlar. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 33).
Certa vez minha avó passou vários meses conosco, devia estar doente.
Elsa mandou preparar um quarto estreito e mal iluminado, no térreo, ao lado
da lavanderia.
–Embaixo é silencioso e muito mais fresco – disse, como explicação. Minha
avó pareceu perfeitamente feliz. Dividiu o aposento em quarto e saleta, com
uma cortina velha; tinha um fogãozinho de duas bocas em cima de uma
mesa velha; gostava de preparar suas refeições, não acompanhava direito
os horários da família. Eu adorava ir ao seu quarto, onde pairava sempre
um aroma de água-de-colônia e de roupa limpa, vindo da lavanderia. Nunca
faltava um agrado: um biscoito, um refresco, uma história. (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 44).
137
Esta casa entra numa nova fase, como eu: a alegria, a esperança; pouco
lugar para sombras. [...] subo para o quarto equilibrando o copo de suco no
prato; leve, livre, cheia de planos como uma adolescente.. Mas ainda não
concluí minha revisão; não há só pensamentos doloridos; muita coisa
ressuma sensualidade e cor. (..) Recostada na cadeira de balanço de Ana,
observo meu quarto: não é mais o de uma menina, mas de alguém que
perdeu pedaços pela vida, recolheu o que podia, e trouxe para cá. Que
demorou para se livrar dos sapatos de criança que estorvavam seu passo.
Muita disciplina deixa o corpo triste. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 87).
Talvez [...] eu agora esteja preparada, mas não sei. Não sei nada, e isso me
alivia enormemente: não preciso mais saber. Por um caminho tortuoso voltei
a esta casa onde ainda resta um lugar secreto que preciso devassar, talvez
administrar o inadministrável... Hoje não preciso decidir. Estou no coração
de um ciclo que se fecha; eu sou o mar com peixes e medusas, e sou a
viagem também. Não há garantias, não existe segurança: alguma vez é
preciso a audácia de se jogar; de delirar [...]. Neste momento a noite não me
ameaça; a gruta não me atrai; tudo tem seu tempo. E há coisas que estão
fora de todo o tempo humano. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 188).
mãe. O “não querer crescer”10 parece ser a única possibilidade de se manter salvo
dos padrões impressos ao sistema social e familiar. Essa falta de crescimento físico,
entretanto, não inibe a percepção daquele Menino que tudo entrevê na onisciência
de seus próprios pensamentos. Para ele, são nítidos os padrões e as
predeterminações, bem como os papéis que cada um deveria desempenhar. E o
romance se caracteriza por esse modo peculiar de se narrar algumas convenções.
Em nível de uma organização do espaço físico, ao qual tanto nos referimos
anteriormente, temos uma nova associação para outros lugares (ou seria para
prováveis não-lugares11?): os que abarcam as performances sociais.
Entramos aqui no terreno das memórias privadas. De acordo com Paul
Ricoeur, existem três traços que costumam ser ressaltados em favor do caráter
essencialmente privado da memória: “Primeiro, a memória parece de fato ser
radicalmente singular: minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir
as lembranças de um para a memória do outro.” (RICOEUR, 2007, p. 107). A
memória passa a ser, então, diante dessa perspectiva, “um modelo de minhadade,
de possessão privada, para todas as experiências vivenciadas pelo sujeito.”
(RICOEUR, 2007, p. 107, grifos nossos). O segundo traço em favor dessa
privacidade da memória reside no fato de que o “vínculo original da consciência com
o passado parece residir na memória.” (RICOEUR, 2007, p.107). Ricoeur enfatiza
que embora tenha sido dito com Aristóteles, diz-se novamente com Santo Agostinho,
de forma mais enfática, que “a memória é passado, e esse passado é o de minhas
impressões; nesse sentido, esse passado é o meu passado.” (RICOEUR, 2007, p.
10
Na cultura ocidental, é significativo reconhecermos a presença dos mitos como justificativas,
normalmente constituintes de atitudes e de padrões de comportamento. A atitude do Menino, de O
ponto cego, de não querer crescer, nos remete, além das associações críticas inerentes ao próprio
romance, à figura mítica e mágica do personagem Peter Pan, que cultivava as mesmas habilidades
de onisciência e onipresença do Menino narrador. Ressalte-se, ainda, que esse mito é tratado, na
Psicanálise e na Psicologia como uma síndrome, sendo esta denominada A síndrome de Peter
Pan – um estudo desenvolvido, em princípio, por Dan Kiley, em 1983. Sobre esta síndrome, leia-
se: “Muitos são os homens que recusam comportar-se como adultos. Para eles, o crescimento
traduz-se num fenômeno extremamente penoso, poder-se-á mesmo dizer, em algo inconcebível.
As responsabilidades inerentes à maior idade são-lhes difíceis de aceitar e, mais ainda, de
compreender. [...] o caminho da vítima para a idade adulta está bloqueado por delongas fatalistas,
pensamento irracional e mágico, e um sistema de negação que roça o esquisito” (KILEY, 1983, p.
42).
11
Refiro-me, aqui, à teoria dos não-lugares desenvolvida por Marc Augé, em seu livro Não-
lugares:introdução a uma antropologia da supermodernidade. Sobre os não-lugares, explico: “Se
um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir
nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lugar. A hipótese
aqui defendida é a de que a supermodernidade é produtora de não lugares, isto é, de espaços que
não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não
integram lugares antigos [...]” (AUGÉ, 1994, p.73).
140
Essas exposições nos levam a outra consideração: a que Paul Ricoeur chama
de olhar interior. Segundo ele, “é sobre esses traços recolhidos pela experiência
comum e a linguagem corriqueira” (RICOEUR, 2007, p. 108) que se construiu a
tradição do olhar interior: tradição cujos grandes precursores se encontram na
Antiguidade tardia de matiz cristão, tendo ao mesmo tempo em Santo Agostinho sua
expressão e seu iniciador.
Mais uma vez, são as imagens da memória que denotam e, ao mesmo tempo,
compõem esses espaços. E o olhar interior – especialmente em O ponto cego – nos
aproxima desse contexto:
Em família, sem dizer nem combinar a gente determina quem são os maus,
quem são os bons. Prende neles os rótulos e todo mundo acredita. Eles
também. Minha Mãe tinha de ser a boa. Aquele era o seu papel. Meu Pai
era dos maus. Ele manejava o poder. Minha irmã era uma invenção dele, a
personagem. Minha Avó era a doidinha. As Tias contavam menos que os
outros. E não havia mais ninguém. Pois uma menininha morta muitos anos
atrás representava o fracasso e a perda. [...] (Eu não era nem bom nem
mau: eu estava de fora.) (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 28-29)
141
Esse mesmo tom pode ser visivelmente reconhecido na voz da própria autora,
em um de seus livros de ensaios:
O mundo em si não tem nenhum sentido sem o nosso olhar que lhe atribui
identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. Viver,
como talvez morrer, é recriar-se a cada momento. Arte e artifício, exercício
posto à nossa frente ao nascermos. [...] A vida não está aí apenas para ser
suportada ou vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada.
Conscientemente executada. (LUFT, Perdas e ganhos, 2003, p. 155).
(Arthur Schopenhauer)
Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua
para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a
ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado
na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó. [...]
(LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 11).
Aquela voz: seu Max tem voz de mulher embora seja homem. Uma voz de
mulher ou de menina, não sei bem se provocante ou desvalida. Algumas
vezes crio coragem e olho bem antes que minha mãe me puxe pela mão,
temos de ir embora: sua avó não gosta de esperar. Mas vi seu Max: nariz
pontudo, olhos aguados que não encaram a gente: espreitam. O corpo é
magro, mas o ventre avançado me deixa uma impressão de pecado e
despudor. É de seu Max que tenho medo, ou do que ele espera ali na porta
de onde parece nunca se afastar, exposto e humilhado, talvez chamando
alto, quando não passa ninguém na rua, Vem, vem, vem? (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 12).
que não admitiam discussões: eram sentenças” (LUFT, A asa esquerda do anjo,
2003, p. 14), Gisela convivia com a inquietante sensação de ser uma estrangeira
naquela família, que cultuava o valor das inscrições em suas aparentes relações.
Sua mãe era também vista como uma “intrusa” àquele impenetrável ambiente, no
qual se reverenciava a cultura alemã. Os questionamentos e conflitos que
perpassam a narrativa residem, em sua maioria, no choque cultural entre os
costumes brasileiros e alemães. A questão da língua também nos revela o
deslocamento dessas personagens mediante aquela doutrina familiar. A narradora
se divide entre Gisela ou Guísela, porque embora as marcas da cultura indicassem a
sua verdadeira identidade, ela também se via capaz de (re) criar uma identidade
própria para si mesma, independente da queda dos modelos que se lhe eram
transferidos. Um exemplo manifesto entre o modo de imposição cultural tirânico e o
conflito que se instaurava entre a consciência do não pertencimento àquele
universo, assim como a percepção das tensões entre as gerações, esboça-se pela
atitude de reflexão que a narradora assume frente a algumas atitudes de sua mãe,
que se mantinha submissa e entregue às imposições. Gisela, ao contrário, denuncia
essa atitude mediante o reconhecimento de uma possibilidade de recriação de uma
nova identidade, de um novo perfil, especialmente para as mulheres daquela família:
se essa destituição não lhe bastasse, era preciso cultivar e transferir esses valores,
para manter vivo o discurso da tradição. Essa atitude, provavelmente, foi uma das
que inibiu e solapou, durante muito tempo, a posição da mulher perante o mundo a
que ela realmente pertence. Nessa mesma linha de reflexão, transcrevo esse modo
de inserção, forçado e autoritário, a que as personagens eram submetidas, num ato
de extrema destituição de um eu, próprio e interior:
Minha mãe: Maria da Graça Moreira Wolf, único nome estrangeiro que um
dia inscreveriam na parede do jazigo. Dela herdei os olhos pretos, que em
mim ficavam deslocados: não combinavam com o cabelo desbotado, a pele
branca. Mas ela não me transmitiu o que eu mais desejava ter: a alegria, a
capacidade de adaptação. Era possível que partilhássemos, sem comentar,
a sensação de estarmos no lugar errado. Maria da Graça numa família de
Helgas e Heidis. E eu, Guísela ou Gisela? Minha mãe pronunciava Gisela; o
resto da família dizia Guísela, à maneira alemã que eu detestava. (LUFT, A
asa esquerda do anjo, 2003, p. 16-17).
Guísela para uma, Gisela para outra. À noite, fantasmas, de dia, dúvidas. E
eu? Eu me sentia exposta, avaliada e reprovada. Os exercícios de piano
iam mal; a letra gótica saía mole da mão canhota; as orelhas de abano
pareciam piorar a cada dia, minha avó sugeriu que eu dormisse com uma
touca apertada, para corrigi-las. Quando eu pedi minha mãe que me
arranjasse a touca, ela me abraçou e disse que nunca havia notado minhas
orelhas. Esses pequenos problemas, dizia, se resolvem por si, com a idade.
Sua avó gosta de levar as coisas para o lado trágico. O que era trágico, eu
quis saber. Ela não conseguiu explicar e eu adormeci imaginando que
trágico devia ser o Anjo do Jazigo, imóvel, duro, exilado, fingindo não ouvir
as barrigas estourando na noite calada. (LUFT, A asa esquerda do anjo,
2003, p.42)
exemplar” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 18), e que, talvez por isso,
“nunca a censuravam” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 18), transcrevo as
indagações de Gisela sobre o comportamento plácido da prima:
O que aconteceu com Anemarie provou que “família” era apenas um nome,
baile de máscaras, talvez sobretudo uma aflição. Pois esta massa com
tantas cabeças, olhos e bocas e nomes, predestinada a juntar-se
paulatinamente no Jazigo, fragmentou-se em estilhaços. Desde aquela hora
fomos sombras apartadas, esquivas, suspeitando umas das outras: este
teria sabido? aquela teria adivinhado? Alguma outra teria sido cúmplice da
trama, da ignomínia, da traição? Pois Anemarie traíra a família Wolf. Antes,
era como se a tocadora de violoncelo, quase irreal, fosse a nossa
identidade. Ela era o melhor de nós, nos preservava. Desmoronada a
estátua, nos dispersamos. Só a sombra do Anjo ainda nos possibilitava
fingir de maneira convincente que éramos uma família respeitável, a
FAMILIE WOLF. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 67).
descobriu como abrigo para um corpo estranho até o momento em que ela se liberta
desse corpo, metaforizado pela figura grotesca do verme que expele.
Vale dizer do processo de preparação para essa libertação, que compreende
várias formas de desintegração, como a familiar, a social, a cultural e,
principalmente, a subjetiva. Esse processo se compõe mediante uma cuidadosa
estratégia textual, original em relação aos romances anteriores. As falas que
antecedem os capítulos – ou a sequência do parto – são introduzidas em
parênteses, e se apresentam em fontes destacadas em itálico. Isso parece nos
indicar um prólogo? uma apresentação da cena ao leitor? Lya Luft não nomeia a
técnica, e acreditamos que a esta não cabem, mesmo, nomeações. O importante é
observar o modo como ela escolheu para chamar a atenção do leitor para a
seriedade daquele processo. Dessa forma, uma epígrafe aparentemente comum
sugere a insuficiência de sentido para iluminar o leitor nessa forma tão original de
expressividade. Ressalte-se, ainda, a questão da perigrafia do livro, já mencionada
em capítulos anteriores, que se vê esboçada nessa técnica reincidente de chamar a
atenção do leitor para algo preliminar ao texto que ali irá se seguir. Como as
epígrafes, enquanto estratégias textuais, são de extrema significação na obra de Lya
Luft, optei por colocá-las nesse meu texto, priorizando a forma em que elas
naturalmente aparecem no livro de Lya Luft. Uma atitude que pode sugerir exaustão
na leitura, uma vez que se apresentam mediante longas citações, ainda que
selecionadas em suas partes. Entretanto, não poderia deixar de realçar essa opção
única, já que em nenhum outro romance / livro essa mesma técnica foi utilizada.
Ademais, há inteira intenção em aproximar essa listagem de fatos, associados à
uma ordem, para conferir visibilidade ao caráter ritualístico do texto.
Assim, como a um ritual, transcrevo essa preparação que perpassa todo o
romance, e se esboça, conforme já explicado, nos textos que precedem os capítulos
do livro. No primeiro deles, intitulado Exílio, lemos:
em cima dela. Meu ventre repuxa. [...] Respiro fundo. A criatura se contorce
dentro de mim. Vou aguardar mais um pouco. Reunir coragem; desta vez
não adiantam fuga nem evasivas. Nem sonho. (LUFT, A asa esquerda do
anjo, 2003, p. 9-10)
Deito-me outra vez, ainda não estou preparada para o grande parto.
Imagino que não haverá sangue. Meu corpo, esticado na cama, sente
melhor as vibrações do animal aprisionado; meu ventre cresceu nos últimos
dias. Preciso me libertar. Há três dias enterraram Leo, único homem a quem
amei – mas esse amor também foi insuficiente. [...] Não colocaram Leo no
Jazigo: afinal ele não chegou a pertencer à família que o Anjo intocado
guarda no cemitério. O Anjo tem algo da plácida beleza de Anemarie. Nada
de sexo e violência. Também não permiti que ninguém me violasse, nem
mesmo Leo. Nada me demoveu, nem a piedade e o dilaceramento que senti
quando, na primeira separação, ele me dizia, agoniado: Não faça isso
comigo, Gisela, não faça isso comigo. Enquanto meu coração chorava por
ele, no ventre endureciam as pedras de gelo. Eu era toda contradição e
dilaceramento. Talvez agora por castigo tenha sido conspurcada da maneira
mais terrível: de dentro para fora, essa coisa que deseja ser expelida. Terei
coragem de, num ritual último, abrir a boca como nunca abri as pernas e
parir minha purificação? [...] (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 29-
30).
É bom estar aqui deitada, sozinha. Seria bom dormir, sem sonhos, se não
fosse isso que ainda tenho que executar, esta noite sem falta, porque meu
corpo já não consegue conter seu habitante. Essa coisa doente, comprida,
pelada, que estica e encolhe e volta a arremeter, dando-me náuseas, um
corpo onde talvez não se distinga cabeça e cauda, revirando-se no bafo das
minhas entranhas, emanações lembrando as do corredor atrás da porta de
seu Max na minha infância. Quero me libertar: ser pura [...]. Viro-me na
cama, que faz esse rangido indecente. Puxo os joelhos, encolhida suporto
melhor o volume da coisa dentro de mim. Hoje você vai sair, maldito. Será
um parto no qual não passarei vergonha e humilhação, porque ninguém
estará aqui, ninguém me verá aberta e arquejante como as mulheres que
escancaram as pernas nos filmes. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003,
p.65-66).
158
Por fim, temos o prenúncio desse processo de libertação narrado nos dizeres
antecedentes ao último capítulo, intitulado O parto:
Não tenho certeza de agüentar isso que preciso fazer, mas meu habitante
se revolve agora com tamanha violência dentro de mim, sofro convulsões
como se fosse gerar um filho: um fruto. Receio vomitar. Estragaria tudo. E
se, na sua impaciência, ele resolver arremeter e sair e rasgar-se ao meio e
tudo recomeçar no escuro em mim? Preciso agir depressa, tomar decisões
friamente, como faria Frau Wolf. Mas não sei que posição assumir. O ódio
precisa ser maior do que o nojo, o medo maior do que a sensação de
ridículo. O melhor é me deitar de bruços. Despejei o leite no cinzeiro. Mas
na cama fica incômodo, receio derramar o leite e estragar tudo; talvez caia
da cama em meio à agonia. E se houver sangue? Então, eu, que sempre fui
tímida e tive horror ao inusitado, deito-me no chão, esticada de barriga para
baixo, e como estou muito magra as tábuas ferem meus ossos. [...] O leite
está no chão à minha frente. Sinto-me enlouquecer no assoalho feito um
bicho abrindo a boca. Meu habitante faz um movimento intenso, deve ter
farejado a isca, o leite diz: Vem, vem, vem. Vem, maldito! chamo em
silêncio. E começo a sofrer convulsões prolongadas como num parto, vi
mulheres retorcendo-se e arquejando assim em filmes, e ele vem. Sem
olhos. Sem nariz. Sem identidade, arrasta-se pelo meu estômago, vai
chegar ao esôfago, não agüento, fecho a boca, engulo muitas vezes, ele
quer subir contra meus movimentos mas se enrodilha no estômago. Como
dói. Não suporto este horror. Levanto-me com dificuldade, estou pesada, se
baixar os olhos agora verei um ventre grávido. Tenho a boca cheia de saliva
e nojo. Minha avó cuspiu no caixão de Anemarie. Como conservar a boca
aberta? Com a mão esquerda pego a escova de dentes na pia no canto do
meu quarto. Comprida demais. Então, com raiva, quebro a ponta de cerdas,
deito-me outra vez no chão, com o cabo da escova segurando os maxilares,
ferindo a carne, sinto o gosto do sangue que escorre. Estou escancarada. É
um parto, ele vem novamente, seu couro áspero roça minhas mucosas,
contraindo seus anéis, ele vem! Respiro com dificuldade, grandes arrancos,
lágrimas grossas, estou parindo, grotesca e desesperada. (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p.101-102).
159
copo de leite vai me salvar?” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 85). O sentido
do verme enquanto símbolo destruidor da libido é evocado no momento em que
Gisela nos narra as diversas formas de salvação para os personagens da família
Wolf, compreendendo, junto a eles, também o seu processo de salvação:
Para tia Marta, a salvação foram as receitas de bolo; para minha avó, a
salvação foi Anemarie; para tia Helga, a salvação foi a morte; para seu Max,
no corredor da minha infância, a salvação não veio nunca. Para minha mãe,
a salvação foi adaptar-se. Para meu pai, a salvação está na espera do
suspiro que povoa a casa. Por muitos anos pensei que só me salvaria se
fechasse meu corpo, se endurecesse o ventre, se me negasse, adquirindo a
postura ereta e as maneiras secas de Frau Wolf. A salvação de Leo teria
sido possuir meu corpo e ser o meu dominador? Para mim, a salvação
estará num copo de leite? Talvez a salvação de toda a família Wolf tivesse
ficado escondida no quartinho do porão. E ninguém possuía a chave. Lá eu
poderia colocar meu habitante quando saísse de mim; ele espojaria o corpo
enrodilhado na densa poeira atrás da porta por onde só passaria uma
criança ou um anão. (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 85-86).
O amor é a morte? Devagar meu habitante se vira, o leite acabou mas ele
ainda está faminto, vira-se na minha direção, balançando pesadamente a
parte erguida do corpo. Vira-se mais, sei que vai me encarar. Minha
identidade – qual é a minha identidade? Ele vai me fitar, sem olhos, sem
nariz, sem feições. Sem identidade como eu – qual é o meu nome? Onde
fica o meu lugar? Como se deve amar? Neve ou fogo? (LUFT, A asa
esquerda do anjo, 2003, p. 109).
161
De acordo com essa afirmação, o estilo passa, então, a ser entendido como a
“alma de uma nação”, ou a raça, no sentido filológico do termo, isto é, como unidade
da língua e das manifestações simbólicas de um grupo. Isso se confirma em vários
momentos da narrativa, como, por exemplo, na exigência de se falar somente em
alemão, mesmo as pessoas da família que jamais tivessem visitado a Alemanha, a
disciplina insistentemente cobrada pela matriarca, e, especialmente, o fato de Gisela
ter convivido com a dúplice questão referente à sua identidade. Mesmo vendo-se
completamente desintegrada daquela família e daqueles padrões, ela mantém os
costumes que tanto questionava. Numa miscelânea de sentimentos, ela parece se
redimir da sentença: “dúvidas e culpas foram a soma dos anos de infância.” (LUFT,
A asa esquerda do anjo, 2003, p. 52) quando expele o verme, numa atitude que
busca representar um certo tipo de libertação da infusão cultural dos valores
alemães sobre os costumes brasileiros – estes, de fato, pertencentes à sua
nacionalidade. Entretanto, assume as mesmas atitudes de comando exercidas pela
avó, como se o valor dominante não mais pudesse ser destituído daquele corpo.
Contrariamente aos seus propósitos, Gisela nos declara: “Os trabalhos domésticos
que antes detestava agora me faziam bem. Preferia a vassoura a um bom livro. Com
que prazer eu seguia atrás da empregada, correndo novamente o pano onde ela não
tirara bem o pó.” (LUFT, A asa esquerda do anjo, 2003, p. 81). Assim, Gisela tornou-
se “uma boa dona de casa” e entregou-se ao cumprimento assíduo de várias
obrigações. Diante desse sentenciamento de vida, e também diante do recorrente
desejo de perfeição, Gisela batiza o camafeu de Frau Wolf de Anemarie, como uma
atitude de incorporação dos mais puros e genuínos valores alemães:
162
12
Essa teoria foi desenvolvida por Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir, no capítulo I da
terceira parte, intitulado Os Corpos Dóceis. Segundo ele, houve, durante a época clássica, uma
descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Dessa forma, seria possível encontrarmos vários
sinais dessa grande atenção dedicada ao corpo – “ao corpo que se manipula, se modela, se treina,
que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam.” Para dar início a suas
reflexões sobre a teoria da docilidade, ele sugere o exemplo do livro do Homem-máquina, livro que
foi escrito, simultaneamente, em dois registros: “no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas
haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro técnico-
político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por
processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros
bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação:
corpo útil, corpo inteligível.” A noção de docilidade é, então, aquela que une ao corpo analisável o
corpo manipulável.
163
13
Esses métodos são: em primeiro lugar, a escala do controle: “não se trata de cuidar do corpo, em
massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo
detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da
mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo.”; em
seguida, o objeto de controle: “não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou
a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; [...]”;
Enfim, a modalidade, que “implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os
processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação
que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos.” (FOUCAULT, 1987, p. 118).
164
fechado e Exílio são tangenciadas por esses corpos imobilizados, na medida em que
eles abrigam constantes atitudes de submissões até então silenciosas e
inquestionáveis. Diante disso, o trágico assume, nesses romances, um caráter de
irremediável inexorabilidade fatídica, contrário ao que assumirá nos romances A
sentinela (1994) e O ponto cego (1999). Nestes, torna-se visível que “a alegria
trágica é a consciência aguda de uma condição de efemeridade” (MEICHES, 2000,
p. 142), e que essa consciência impulsiona a necessidade de mudança perante a
sujeição aos parâmetros. A vida passa a se tornar uma responsabilidade subjetiva,
desvinculada da imobilidade procedente de uma dinâmica fatalista.
Em nível de uma essência da tragédia, transcrevo os dizeres de Johnny José
Mafra, em que ele nos afirma que a essência da tragédia é algo presente no próprio
ato de criação. E, aqui, associamos essa essencialidade à criação das
configurações que o trágico assume nos romances de Lya Luft, para que elas sejam
pensadas como elementos fundadores e constituintes na formação de um estilo de
escrita:
Na sequência da criação pode-se perceber a essência da tragédia. Primeiro
fez-se o mundo, com todos os seus adornos e com o caudal de forças que a
natureza ostenta. Por último fez-se o homem, por último e em decorrência,
como parte do mundo, como força viva, capaz de confrontar-se com o
esplendor da natureza. Dessa forma, o homem está embutido no mundo,
participa da mesma força cósmica, mas, ao mesmo tempo, está preso
irreparavelmente a determinada ordem que essa força imprime em todas as
coisas. Daí, o conflito, que chamamos trágico, entre o homem, ser
inteligente e dono da verdade, e a força cega da natureza. O trágico decorre
do sentido da ordem em que o homem está inscrito, e o cosmos tanto pode
ser o mundo com todos os seus mecanismos, como pode ser a justiça, o
bem, ou o coração do próprio homem. (MAFRA, 2010, p. 71-72).
velar estão estreitamente ligados aos que Lya Luft elege para realçar o sentido do
trágico, uma vez que frestas, fendas, fosso, espreitas, e tantas outras palavras
abrigam esse sentido obscuro, velado e pressentido que, por vezes, adorna o
trágico. Se “o que desencadeia a tragédia no coração ou na vida do homem é uma
falha, aqui chamada falha trágica” (MAFRA, 2010, p.73), podemos dizer que O ponto
cego nos aproxima, com muita propriedade, do sentido que essa falha trágica
comporta, uma vez que “O ponto cego é um fenômeno da visão humana segundo o
qual, conforme convergência e refração pode-se ver o que habitualmente
permanece oculto: a possibilidade além da superfície, o concreto afirmado na
miragem. Assim eu inventei, assim eu decretei, assim é.” (Lya Luft, O ponto cego,
2003, p. 11). É interessante notar, também, como os próprios títulos desses
romances prenunciam uma transfiguração no modo de Lya Luft se apropriar de um
novo sentido para o trágico, especialmente enquanto elemento constituinte de um
estilo de escrita. Se observarmos os títulos dos romances anteriores – As parceiras,
Reunião de família, A asa esquerda do anjo, O quarto fechado, Exílio –, veremos
que todos eles atraem nossa percepção para situações precisas e presumíveis,
especialmente em nível de contextualização. Ao contrário disso, A sentinela e O
ponto cego parecem cativar nosso olhar exatamente para o improvável, o impreciso,
o invisível que se instaura mesmo diante da genuína capacidade de olhar e
vislumbrar alguma coisa. E são essas sutis mudanças que encaminham nossas
reflexões para uma nova abordagem do corpo, da memória, do estilo e do trágico no
texto de Lya Luft. Se seguirmos o percurso de seus romances, veremos que o livro A
sentinela abre espaço para uma realidade inovadora na obra dessa autora. Embora
a emancipação do feminino tenha sido levemente preconizada em Exílio, é no
contexto de A sentinela que essa emancipação se solidifica. Enquanto somos
recebidos, já nas primeiras páginas de Exílio, pela única citação14 contida nesse
livro: “[...] A melhor coisa, não a podes alcançar: é não ter nascido, não ser, ser
nada. A segunda melhor coisa para ti depois disso é – morrer logo.” (LUFT, O Exílio,
1991, p. 9), as epígrafes de A sentinela, ao contrário, nos surpreendem, na medida
em que nos colocam diante da possibilidade de nos defrontarmos com o inexorável.
14
No livro Exílio, essa epígrafe vem indicada como uma fala do Sábio Sileno, citada por Nietzsche,
extraída do livro O nascimento da tragédia, de Nietzsche. Diante disso, lançarei a referência
diretamente à Lya Luft, uma vez que ela se apropriou dos dizeres desenvolvidos por Nietzsche em
O nascimento da tragédia. A citação original encontra-se em NIETZSCHE, Friedrick. O
nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo.Trad. J. Guinsburg.São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 33).
168
poderíamos deixar de nos referirmos a ela justamente porque esta parece ser,
também, a idéia que o papel da imaginação assume em A sentinela. Se pensarmos
que uma realidade pode ser distorcida, isto é, corrigida pela imaginação, veremos
que o sentido conferido à imaginação está, aqui, profundamente ligado à idéia de
uma faculdade de formar imagens que ultrapassem a realidade, e, assim, a uma
faculdade de sobre-humanidades. Some-se a isso o fato de que a inscrição de
Camille Paglia, já mencionada aqui, também nos aproxima da plenitude que o
trágico assume enquanto elemento constituinte dos romances de Lya Luft.
O sentido que o termo imaginação sugere, então, parece ser o mesmo
sentido para o qual lançamos nosso olhar em direção ao trágico: uma força capaz de
transformar / corrigir o irremediável mediante atitudes que convertam a dor ou o
sofrimento em ações que engendram uma expansão da vida. Essas ações também
compreendem, nesse universo, a unificação do aparente contraste dor / alegria em
mecanismos constantemente re-elaboladores para a constituição dessa força, uma
vez que “dor e alegria estão sempre se suplantando, o que faz com que ambas
retornem e exijam (gerem) novas formas, novas aparências.” (MEICHES, 2000, p.
137), e, assim, passamos a ter, diante disso,
(LUFT, A sentinela, 1994, p.15). Como se pode ver, a personagem feminina, aqui, já
não mais se encontra condicionada à falta de perspectivas para uma
individualização de seus desejos, nem mesmo à submissão ancestral que incide
sobre suas escolhas. Ao metaforizar a própria vida na imagem do tapete, Nora se
permite trançar, em fios e em bordados, seu próprio destino, uma vez que estes
admitem, sempre, novas formas, novas imagens, novos contornos. E para reafirmar
essas possibilidades, ela mesma nos diz:
Lilith, minha irmã, que assombrou minha infância, roubou meus afetos,
dominava a todos com sua indiferença: quem não seria atraído por seus
olhos amarelos, de expressão perversa? [...] Mesmo morta, decomposta e
esquecida por quase todos, Lilith continuou a me perseguir. (LUFT, A
sentinela, 1994, p. 12-13).
Aos poucos fui descobrindo: não devo ser apenas mãe, irmã, amante.
Preciso ser eu, Nora, com tudo o que isso significa e que ainda tenho que
descobrir; que preciso extrair de mim, criando caminhos como João projeta
rumos no ventre da terra; produzir com a carne da minha alma os fios que
me prenderão ao mundo. Lancei minha primeira âncora: comprei a casa,
inauguro aqui meu ateliê [...] (LUFT, A sentinela, 1994, p. 34).
medicina, e se refere a essa sucessão da seguinte maneira: “Essa menina vai levar
meu facho adiante.” (LUFT, A sentinela, 1994, p. 17).
Nessa associação de tarefas determinadas para homens e mulheres,
percebemos que as personagens femininas – especialmente as matriarcas –
conduzem as prescrições, e baseiam suas atitudes também mediante essas
prescrições. Essas atitudes foram inicialmente modificadas em Exílio, quando a
personagem se apresenta sob o nome de A Doutora, dona de uma profissão
reconhecidamente importante (médica), e exercida fora do âmbito do doméstico – o
que introduz, de certa forma, essa inversão de papéis de que falei acima. No
capítulo intitulado Pater dolorosus, presumimos, por esse título, a inversão desses
papéis, visivelmente contemplados na imagem oposta à da Mater dolorosa. E é A
doutora que nos narra a reincidência da cena, adaptada ao personagem masculino,
Antônio:
Havia uma coisa que ele não conseguiria administrar: sua filha Lívia,
afundada num pântano de drogas e rejeição, manobrada pela mãe, difícil de
lidar, ora doce, ora mulher vulgar. João nunca aceitou a realidade. Nem eu
saberia dizer qual é a realidade. A filha dele era uma náufraga: agarrava-se
mortalmente a quem quisesse acudi-la; qualquer recurso servia para não ir
inteiramente ao fundo. [...] João se debatia: não suportava algemas nem
condições, e agora precisava submeter-se às leis desordenadas da vida da
filha. [...] Talvez com Lívia ele quisesse se redimir: não podia dizer-lhe que
não queria laços; com filho, Olga sempre repete, não existe aposentadoria;
não se é alforriado dessa servidão, que pode ser deslumbramento e funda
angústia. (LUFT, A sentinela, 1994, p. 31).
1515
Essa falha trágica, em grego, é hamartía. Aristóteles, na Poética, capítulo 13, explica a natureza
da tragédia e fala nessa falha trágica: “Como a composição das tragédias mais belas não é simples,
mas complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade (porque tal é o
próprio fim desta imitação), evidentemente se segue que não devem ser representados nem
homens muito bons que passem da boa à má fortuna – caso que não suscita terror nem piedade,
mas repugnância –, nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há
coisa menos trágica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito; não é conforme aos
sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. [...] Resta, portanto, a situação
intermediária. É a do homem que não se distitngue muito pela virtude e pela justiça; e cai no
infortúnio, tal acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro;[...]”
(ARISTÓTELES apud MAFRA, 2010, p. 74). Embora Aristóteles não desenvolva pormenores a
respeito da hamartía, ele insiste em que “na tragédia, dá-se a passagem da dita para a desdita,
‘não por malvadez do herói, mas por algum erro grave.’” (MAFRA, 2010, p. 74), as leituras e
reflexões, segundo Johnny Mafra, levam a descobrir que a hamartía pode estar no herói ou em
situação anterior que envolve a sua vida. (MAFRA, 2010, p. 74).
179
ponto cego parece ter coroado esse sentido do trágico de que tanto vimos falando,
especialmente em nível de uma abordagem contemporânea do termo. Várias
estratégias de escrita nos levam a essas ilações, principalmente por ser, este, o
último romance de Lya Luft publicado até então, e em função de ele também se
apresentar em forma de um ciclo que não se encerra, simplesmente, pelo fato de ser
o último livro, mas de uma nova fase que se inicia, constituída sobre bases que
agregam novas revelações, sobretudo no que diz respeito aos espaços, ao estilo
que aqui se configura e nas novas versões que os conflitos pessoais e familiares
assumem diante de seus personagens. Diante desses inúmeros e distintos sinais,
procuraremos, então, estabelecer uma ordem para realçá-los, não para esgotá-los
em análises, mas para que esbocem o alinho e o extremo cuidado com que o texto
de Lya Luft é elaborado.
Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? [...] É janela do
corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo,
aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento. [...] Ó
admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria
capaz de absorver as imagens do universo?
(Leonardo da Vinci)
(Eu, com meus dois olhos, enxergo melhor: não por serem dois,
mas porque o ângulo oblíquo é mais agudo.)
(Lya Luft, em O ponto cego).
O ponto cego é um livro que nos traz muito do valor que a ambiguidade
assume nos textos de Lya Luft, especialmente no mérito que ela confere a
ambigüidades que constituem, aqui, os diversos modos de olhar. E talvez por isso
esse romance seja, aos meus olhos, o mais denso, o mais complexo e o mais difícil.
Essa relevância que Lya atribui ao caráter do ambíguo é declaradamente assumida
por ela, uma vez que ela mesma diz: “Preciso admitir que a ambivalência é a nossa
salvação para não morrermos na poeira da mesmice.” (LUFT, O ponto cego, 2003,
p.66).
E isso se materializa no corpo desse livro em várias cenas, de várias formas.
Uma delas se dá na voz do Menino narrador, quando ele descreve a cena em que
180
vê, pela primeira vez, uma moça calçada com um par de sapatos de cores
diferentes. Eram sapatos de cetim, com salto alto, um vermelho e outro verde. E o
Menino logo se questiona: “Mas então a gente podia ousar assim? Sapatos de cores
diferentes, o instigante diverso? (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 82). E diante desse
questionamento, procede mais uma constatação: “Começo a chorar como se me
tivessem arrancado um pedaço. Era por não ter sabido antes que o diferente podia
ser legitimado, que a liberdade existia mas não estava ao meu alcance, ainda não.”
(LUFT, O ponto cego, 2003, p. 82). Como se pode ver, a legitimação do diferente
compõe o novo modo imperativo de reconstituição de novos sentidos para o que já
está determinado. E mais adiante, numa crise de choro incontida, o Menino nos
revelava que a razão daquele choro era uma só: o susto da percepção do
tragicamente imutável:
[ele chorava] Era de susto: um desses inesperados sustos que a vida nos
causa quando descobrimos que, se quase tudo é possível, pouco é
permitido. E me foi revelado também, nesse par de sapatos desconexos,
que o ambíguo é muito mais sedutor do que o resolvido e o explicado. Eu
para sempre preferiria o infiltrado, o insinuado, e o destilado: todo esse
mundo no qual gente como meu Pai seria estrangeiro e exilado. Eu era o
rei. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 83).
diferente dos demais. Aqui, a voz narrativa se permite ousar e usar de um tom que
engendra autenticidade, domínio e dominação sobre sua própria conduta.
Ao evocar a presença de muitos personagens, retomada através de epígrafes
que concentram vozes dos habitantes de seus romances anteriores, Lya reconstitui
um novo modo de narrar, de agir e de recriar atitudes diante dos conflitos
familiarmente instituídos em suas ficções. Ao dar voz a uma criança,
especificamente a um Menino narrador, um novo modo de olhar se constitui, e se
configura como elemento fértil no tecido desse texto. Pela primeira vez, um Menino
relata suas impressões sobre as convenções, especialmente no que diz respeito à
família, enquanto lugar de instituição de valores. Surge, então, desse olhar, uma
história de amor e cumplicidade entre mãe e filho – talvez uma das únicas relações
concretizadas em toda a obra de Lya Luft, uma vez que a afetividade entre os
personagens anteriores era experimentada mediante vivências irreconciliáveis dos
mais diversos sentimentos. Todas as personagens esboçavam, com muita
clarividência, suas irrecuperáveis carências afetivas, principalmente aquelas que se
constituíam em nível do amor materno. Aqui, contrariamente a essa observação, a
imagem da mãe parece simbolizar o templo do amor, o abrigo para as diferenças
daquele filho “sonhado, desejado: - Você foi o filho da minha maturidade, que eu
tanto quis. Você foi minha alegria renovada.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 17).
Embora a figura do pai apareça caricaturada pelas atribuições de ordem e de poder,
conferidas, até então, ao gênero masculino, é o silêncio e a aparente submissão da
mãe, manifestos no seu modo de olhar, que darão um novo vigor a essa narrativa.
Aqui, a memória enquanto registro das reminiscências cede lugar para a
inscrição dos acontecimentos em um tempo presente, no qual se constituem muitas
impressões: impressões sobre a vida, sobre a família, sobre as pessoas, sobre o
que devemos fazer com o tempo que nos é dado.
E para começar a nos dizer dessa atitude liberta diante do modo de narrar, o
Menino nos sentencia: “Eu que invento e desinvento, eu que manejo os cordéis, eu
decidi parar de crescer.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 15). Interessante, também, é
o que o Menino nos diz sobre o motivo dessa narrativa: “Esta é a história de um
Menino e da Mãe do Menino: uma história de muita sombra. História de desvãos, do
embaixo do debaixo, do secreto. Narração de olhares, de um olhar. História de
invocações.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 17). E é esse olhar, discreto e marginal,
que trança os fios desse texto. Embora reconheçamos que os estudos sobre o olhar,
182
tanto na literatura como em várias áreas do saber, são múltiplos e infinitos, não
poderia deixar de realçar algumas refinadas considerações sobre esse especial
modo de ver. Uma referência ao olhar, bem próxima a da atitude que esse Menino
narrador nos propõe – ver além do que é realmente visível –, pode ser destacada
nas palavras de Adauto Novaes, que pronunciam:
O olhar deseja sempre mais do que o que lhe é dado a ver. Para isso, foi
também necessário que o indizível se tornasse prosa, participando do lado
de sombra da História e revelando o sensível que está oculto no outro lado
do corpo, acolhendo-o como um secreto prolongamento da matéria. É
através dessa fissura que, guardando o sentido originário, a theoria – que
os romanos traduziram por contemplatio, o olhar com admiração – pode
descobrir que existe uma plenitude invisível de um mundo imperfeito.
(NOVAES, 1988, p. 9-10).
Eu sempre observo meu Pai daqui da minha perspectiva. Quando ele não
percebe eu o encaro, erguendo um pouco a cabeça. Agora há uma
novidade. Ele finalmente se decidiu: trocou a venda por um olho de vidro,
azul como o outro, igualzinho. Mas eu sei que com esse olho ele não pode
me ver. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 80).
183
Como se pode ver, expressões como “como sempre” e “o que era raro” são
exemplos que denotam a naturalidade com que convivem as situações que
exprimem uma aparente ambigüidade. Cabe também observarmos, nessa citação, o
momento de inserção da voz autoral no texto. Como a uma justificativa para um fato
tão inusitado, especialmente em nível de posturas e de atitudes narrativas, Lya Luft
parece se redimir, em suas palavras, da ousadia de sua própria criação. E num
ímpeto de culpabilidade (trágica?) – ou mesmo sob o impulso da necessidade de
externalizar, ao leitor a falta de domínio sobre sua própria criação – Lya nos afirma
que não querida ter inventado esse personagem. Entretanto, ele transbordava sua
imaginação, e criá-lo era uma forma de ultrapassar os limites da própria imaginação
– o que nos remete ao caráter de sobre-humanidades que a imaginação condensa.
Esse caráter é também revelador do olhar que acomete o próprio ofício de escrever,
que, muitas vezes, extrapola os desígnios do próprio autor – o que pode ser
pensado também em nível de ambivalência, já que ao autor, são conferidos todos os
aparentes poderes sobre sua própria criação.
Retomando a questão da força que o olhar concentra nessa narrativa, temos,
no segundo momento em que o Moço é definitivamente apresentado a todos da
família, uma relação iniciada simplesmente através do impacto motivado por essa
força do olhar. É interessante notar o caráter de relevância que o incomum passa a
assumir diante do que é visivelmente comum:
185
Entrou na sala e parou, um rapaz comum, nem feio nem bonito, nada
especial a não ser que era a visita do destino. Podia ser uma pessoa
qualquer, esse namorado de minha irmã, uma pessoa: mas em seus
calcanhares vinham muitas sombras agitadas, querendo desarrumar as
nossas vidas. Minha Mãe entrou na sala vindo do corredor e também
estacou. E o vento se recolheu, as águas do riacho correram em direção
invertida. Começava uma história dessas em que a gente só acredita se
viveu. Minha Mãe e o Moço se olharam pela primeira vez – e foram
tragados. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 123).
Como se pode ver, o sentido do trágico parece dotado de todo esse caráter
de inversão que se configura no anúncio desse instante, metaforizado pelo
recolhimento do vento e pela direção invertida em que as águas correram. Ser
tragado pelo olhar intensifica o sentido de impotência diante de um desígnio maior,
e, assim, inesperado – um dos sentidos do trágico.
É o olhar que também se reveste de um outro sentido para demarcar a nova
postura da mulher, sobretudo no que se refere às suas escolhas. No capítulo
intitulado História de Mãe e Moço, o Menino descreve a força reincidente desse
silencioso modo de agir / amar, quando descreve novamente o encontro de sua Mãe
com o namorado de sua irmã:
Minha Mãe e aquele Moço, quando não se viam se olhavam. Quando não
se tocavam, se roçavam. Nesse ponto de cegueira os dois se perdiam de
nós, e eu perdera o mando. Minha irmã percebeu alguma coisa? Só quem
fosse cego não notaria, e mesmo que fosse cego teria de perceber, pois
escorria entre eles dois um mel, e aromas – não havia como não sentir. Ela
podia não ter notado, mas naquele instante mesmo fora excluída. Ninguém
soube na hora, ninguém na verdade nunca soube com todas as letras, mas
foi assim. Assim foi estabelecido no mundo inteiro. (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 124).
excluída: “A Mãe e o Moço. E os olhos deles! A fonte da dor. O poço da dor. O fogo
da dor. A possibilidade da dor doendo tanto quanto. O quadrângulo da dor: Mãe,
Moço, Menino. E a irmã do Menino. Desta vez o Pai ficaria de fora.” (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 124-125).
Olhar e cegueira também se entrecruzam nesse universo de ambigüidades, e
se completam ainda que denotem adversidades. Assim, o olhar que sustenta a
cintilância dos sentimentos para alguns personagens parece ser o mesmo que
também desvia a clarividência de outros. Uma passagem interessante como
observação desse processo se dá no instante em que o Menino insiste em dizer da
maneira com que o mundo se transformava mediante a mais simples possibilidade
de encontro entre a Mãe e o Moço, e, com isso, como esse modo de olhar incidia
sobre todos eles: Menino, Moço, Pai e Mãe:
Podemos notar que a condição de ser adulto, aos olhos desse Menino, inibe a
tomada de decisões, e implica na obrigação de ter que pertencer a um sistema que
dita normas e submete regras. Diante de um real delimitado, uma das formas de
permanência passa a ser o mascaramento da própria realidade, manifestado na
imagem do Menino / criança, a quem é dado (a) total liberdade de imaginar. A Mãe
do Menino também compartilha dessa posição, experimentada no seu modo de
pensar, quando diz ao próprio Menino; “Tudo existe. Tudo que a gente inventa
existe, se a gente quer, existe lá no seu mundo, do seu jeito. [...] Podemos inventar
qualquer coisa que nos dê alegria, que nos ajude a escapar. Um amigo, um cavalo,
um caminho.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 31). Vale retomarmos, aqui, o valor da
189
imaginação para esse texto de Lya Luft. Inventar (se) é uma forma de alegria, uma
forma de escapar às condicionalidades impostas à própria vida. Assim como Nora,
em A sentinela, que reelabora, nos tapetes, os fios do seu próprio destino, o Menino,
aqui, recria, através da imaginação, suas próprias condições de permanência: “Com
a matéria de minha solidão fabriquei um amuleto, um objeto mágico. De mentira ou
de verdade, que importância tem? O que eu imagino se abre para mim sem
restrições nem limites.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 35). Sim, o amuleto possui e
encerra uma força mágica, pois realiza aquilo que pretende simbolizar: “uma relação
muito especial entre aquele que o traz consigo e as forças que [ele] representa.”
Assim, ele “fixa todas as forças [...], firma o homem no cerne dessas forças, fazendo
crescer sua vitalidade, tornado-o mais real, garantindo-lhe uma condição melhor
após a morte.” (ELIT apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 49). Como se
pode ver, a imaginação assume, mais uma vez, a propriedade de formar imagens
que ultrapassam a realidade, criando, assim, um modo de as pessoas
permanecerem nela. E o Menino insiste: “(o inventado é o dom dos que não
acreditam demais no comprovado. Sete pode ser um número par: basta que a gente
acredite.)”. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 49).
Ainda sob o poder mágico de Peter Pan, o Menino defende as características
que essa permanente condição de infante lhe confere:
sido outros, com cenários e papéis a cumprir muito antes de eu sequer entrar no
palco deles.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 67).
Uma passagem interessante no que se revela, nesse romance, como um
progresso do comportamento feminino mediante as determinações – atitudes muito
importantes quando discutidas em nível de gênero, especialmente –, se manifesta
no discurso entre mãe (Matriarca) e filha ( a Mãe do Menino). E assim o Menino nos
conta: “– Numa relação há sempre um que se curva e outro que comanda. Trate de
ser aquele que detém o poder – disse minha Avó, que se vangloriava ter mandado
em meu avô a vida toda: “Ele manda na empresa, eu mando nele.” (LUFT, O ponto
cego, 2003, p. 68).
Não podemos deixar de nos lembrarmos do arquétipo edípico que se constitui
nessa narrativa. Primeiro, pela configuração psicanaliticamente reconhecida na
tríade dos capítulos: 1) História de Mãe e de Menino; 2) História de Pai e Mãe; 3)
História de Menino sozinho. Em seguida, já nas primeiras páginas, temos a
explicação: “Esta é a história de um Menino e da Mãe do Menino: uma história de
muita sombra. História de desvãos, do embaixo do debaixo, do secreto.” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 17). Por fim, entremeados por muitos outros momentos, o que
mais se destaca, a meu ver, em nível de representação desse arquétipo, é o
momento em que o Menino nos interroga: “Por que razão ser importante para meu
Pai é mais importante do que ser importante para minha Mãe, se, afinal de contas,
quem realmente importa, na casa, na vida, é minha Mãe?” (LUFT, O ponto cego,
2003, p. 64).
Em seguida, temos o momento em que ele descreve a sensação que o
acomete, quando presencia (fantasia?) a relação sexual entre seu Pai e sua Mãe:
– Mas os passos enérgicos de meu Pai trazem o cheiro dele, sua força e
sua impaciência: – Menino, levanta daí, vá brincar. E me pegando com força
pelos ombros me faz levantar, enquanto diz à minha Mãe: – É bem seu
filho, esse aí. O que será que ele está sempre enxergando embaixo dos
móveis? [...] Nesse momento sou tocado por outra sensação: a de que nada
é realmente meu, nada permanece, tudo é precário. Os encantamentos
podem ser roubados, não sou dono de mim mesmo. Quem eu tenho de
amar pode querer o meu mal. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 66).
que vai-se rasgando nos cantos até as orelhas, o sangue escorre quente
pelo meu pescoço, a dor me dilacera, mas nenhum som sai dessa garganta
insuficiente. (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 80-81).
da Mãe, que lhe confere plena visibilidade. Como ele mesmo nos diz, “Neste grupo
de minha família eu sou o mais estranho. Se não fosse por minha Mãe eu nem
existiria: seria sombra, bicho, boneco.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 73-74).
A história do Menino é totalmente humana, assim como a de Édipo. Neste,
esse caráter de humanidade se dá
[...] Finjo que não sei, não vejo nem comento. Brinco, invento, e também
obedeço aos que invoquei. Quem conhece mais a solidão do que alguém
diferente, insuficiente, frustrante, alguém que fica de fora até no tamanho?
Eu não cresceria mais de qualquer jeito, então era coisa predestinada – ou
decidi não crescer, e era premeditado? (Ou, vendo que não crescia mais,
tornei isso minha decisão, decidi em cima do decidido – e assim consegui
me apossar do meu destino?) (LUFT, O ponto cego, 2003, p. 74).
Note-se, aqui, como a opção de não querer crescer está condicionada ao fato
de o Menino não querer se encontrar com as “perigosas possibilidades lá na frente”,
embora essa idéia seja contradita por ele mesmo, ao assumir que “nem tudo pode
ser desinventado depois que se iniciou”, isto é, o tempo é iniludível em sua
essencialidade trágica. É interessante notarmos, também, a reincidência da figura do
anão, especialmente no momento em que o Menino se vê rendido aos sinais do
tempo. O anão, enquanto elemento partícipe das forças telúricas é considerado um
deus da natureza. Diante das virtudes mágicas que se lhe atribuíram, ele se
aproxima das figuras dos gênios e dos demônios, é tido, também, como a imagem
dos desejos pervertidos18. Assim, a idéia de uma força pertencente à natureza
parece sustentar a idéia de um domínio sobre o destino: “Como meu Pai na sua
prepotência, como minha Avó na sua loucura, aqui eu sou o senhor. Aqui eu tenho o
mando. Aqui ordeno, invento, desarrumo e conformo segundo o meu saber. Eu sou
o Anão.” (LUFT, O ponto cego, 2003, p.114), ou seja, deter esse domínio, ainda que
ficticiamente, é um modo de sobreviver às designações do tempo, em relação ao
destino. A figura do anão, ainda que designe uma certa autonomia sobre o destino
do Menino, não é suficiente para afastar, dele, a consciente presença da Moira:
18
Conforme definições do Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, (2009, p. 49-
50)
198
Percebe-se, aqui, que mais forte do que a idéia de impotência diante dos
desígnios incontroláveis, inacessíveis e irrevogáveis, em nível do humano, é a idéia
de resistência diante da consciência da presença do trágico. Dizer sim ao não é uma
forma de admitir-se capaz de resistir a esses tantos e desconhecidos desígnios. A
visibilidade conferida ao tempo que se passou e, consequentemente, àquele que o
Menino não controlou, se explicita em:
Falam em contratar também uma enfermeira para tomar conta de mim, pois
do jeito que estou dou muito trabalho, preciso de exercícios especiais, de
apanhar um pouco de sol na sacada com a manta de lã nos joelhos. Preciso
que leiam histórias para mim também, pois minha visão está cada dia pior.
(LUFT, O ponto cego, 2003, p. 139).
199
Como se pode ver há coisas que estão fora do domínio do humano, em uma
condição permanente, ainda que esteja representada em nível de ficção, isto é, nem
sempre à ficção é dada a escolha de escape a algumas realidades.
Essa idéia do destino ou fatalidade como “tudo que seja conseqüência ou
efeito inevitável de algum acontecimento” (MAFRA, 2010, p. 80) – idéia
constantemente evocada na obra de Lya Luft, e fortemente representada no
romance O ponto cego – me traz à mente os versos do canto final da tragédia Édipo,
de Sêneca, especialmente por expressarem o sentido que aqui se pretendeu
vislumbrar, em nível dos desígnios humanos e em nível dos desígnios que
antecedem esse humano. Em função disso, transcrevo:
Somos joguetes dos fados. Cedei aos fados. Nossos cuidados, inquietos,
não podem mudar os fios do fuso fatal. Tudo o que fazemos vem do alto e
Láqueses guarda os destinos fiados por sua roca que sua mão jamais fiará
de novo. Tudo segue um caminho certo e um dia traz marcado o que
acontecerá no outro: ao próprio deus não é lícito modificar as coisas, que
correm ligadas a suas causas. Cada um segue uma ordem determinada,
que nenhuma prece modifica: a muitos o próprio medo prejudica; muitos
encontram seu destino enquanto temem o destino. (SÊNECA, 1982, p. 103).
artístico, com seu sorriso, como criança que joga.” (MACHADO, 1985, p. 29). Nisso
parece consistir a alegria trágica.
Finalmente, retomo a questão do olhar para me referir, agora, à questão do
estilo. Um estilo que se manifesta, aqui, como traço da diferença, reforçada por uma
nova configuração do trágico – ao mesmo tempo tão vária e tão mesma – nos
romances de Lya Luft.
Ao nos ancorarmos na célebre frase de Schopenhauer – o estilo é a
fisionomia do espírito –, reafirmamos, nela, mais uma vez, o trágico como elemento
formador do estilo em toda a obra de Lya Luft. Um trágico que compreende, aqui, a
essencialidade retratada em O ponto cego, mediante vários modos de olhar.
Entendemos, assim, que se a fisionomia do espírito é o estilo, podemos dizer que o
estilo é, também, um modo de olhar.
O trágico configura-se, então, como um modo eminentemente luftiano de
olhar, assumido pelos dizeres: “(Eu, do meu ponto de vista, vejo tudo.)” (LUFT, O
ponto cego, 2003, p. 60).
E sobre a força do olhar que incide sobre esse romance, recorro às palavras
de Marilena Chauí para dizer: “o olhar ensina um pensar generoso que, entrando em
si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O olhar,
identidade do sair e do entrar em si, é a definição mesma do espírito.” (CHAUÍ,
1988, p.61).
Foi o olhar generoso que Lya Luft conferiu à condição humana em suas
ficções que me trouxe até aqui, sustentando a convicção de que o estilo constitui-se
como um traço, esboçado em um modo de olhar peculiarmente trágico,
especialmente sobre o âmbito do humano. Afinal, como ela mesma nos diz,
“naturalmente se alguém nos ponderasse que é preciso cautela, haveríamos de
virar-lhe as costas, e rir. E essa é uma das mais privilegiadas condições de ser –
apenas e inteiramente – humano.” (LUFT, Secreta mirada, 1997, p.114).
202
Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça. [...]
No final, ela vence, pois desde o nascimento esse é o nosso destino
ela brinca um pouco com sua presa antes de comê-la. Mas
continuamos vivendo com grande interesse e inquietação pelo maior
tempo possível, da mesma forma que sopramos uma bolha de sabão
até ficar bem grande, embora tenhamos absoluta certeza de que vai
estourar.
Irvin D. Yalom
6 CONCLUSÃO
(Lya Luft)
ponto cego, não mais sucumbem ao funesto sentido do trágico, encerrado na morte
ou na loucura desses personagens. Diante de novas e de tão mesmas fatalidades,
essas personagens assumem, também na arte, a criatividade necessária para
manterem-se vivas. Um movimento de expansão da vida lhes ressurge, então, como
uma adesão ao viver, numa experiência que “consiste em exaltar, de maneira
incondicional, a inafiançável transitoriedade da vida.” (BOAVENTURA, 2009, p. 90).
Nas próprias palavras de Lya Luft, a arte é entendida como um precioso abrigo para
a exacerbação desse movimento em favor da própria vida, ainda que ele surja diante
de inúmeras adversidades e alternâncias. Em Secreta mirada, é ela quem nos
declara:
Observo as alternâncias da natureza no meu jardim onde se resumem
tantos milagres. Mal se poderia acreditar, há alguns dias ainda, que desse
capim banal, desse canteiro escuro, dessa planta fechada sobre si,
nasceriam de novo luz, movimento, cor – e tão sedutores desenhos. Assim
como palavras, silêncios, sinais, e materiais variados, até gestos, podem
conter, muito mais do que nós mesmos, isso que se chama arte. (LUFT,
Secreta mirada, 1997, p. 49).
também, uma análise para o estilo sob o ponto de vista da Psicanálise, a fim de que
esse sentido fosse também vislumbrado na obra de Lya Luft.
No quarto capítulo, apresentamos os elementos corpo e memória como
interfaces do trágico, uma vez que compuseram o cenário para o desenlace de
muitas reflexões sobre o estilo trágico na obra de Lya Luft. Dentro dessa
perspectiva, a memória foi pensada em seus espaços físicos e mentais, bem como a
maneira com que esses espaços se configuram nos romances. O elemento corpo foi
apresentado mediante suas deliberações, que envolvem a teoria reelaborada por
Elódia Xavier, no livro Que corpo é esse?. Através dele, analisou-se as
configurações do corpo, bem como sua constituição mediante o olhar de uma dada
cultura. Dentro dessas mesmas interfaces do trágico, o olhar e o tempo também são
refletidos como espelhos do trágico, visto que são elementos preciosos na
constituição dos romances, especialmente no cenário de O ponto cego.
Decorre-se, então, diante disso, que é possível notar o quanto a retomada a
esses contextos narrativos esboçou as diferentes formas com que Lya Luft se
apropriou de vários sentidos para o trágico, especialmente na medida em que ela
privilegia as ambigüidades como uma forma de permanência – assim como
Nietzsche priorizou a alegria como antídoto contra o caráter inelutável do trágico.
Dessa forma, diante da exposição das recorrentes temáticas que compõem o
cenário romanesco de Lya Luft, e diante da contemporaneização que ela conferiu a
essas temáticas, ouso dizer que o trágico é o estilo constituinte da obra de Lya Luft.
Neste estudo, especificamente, quis demonstrar que, a despeito de toda e qualquer
fatalidade, impera, sobre o texto de Lya Luft, o sentido alegre de que se compõe o
trágico nietzscheano. Uma alegria que “constitui a força por excelência, seja
simplesmente por dispensar, precisamente, a esperança – a força maior em
comparação com a qual toda esperança aparece como derrisória, substitutiva,
equivalente a um sucedâneo e a um produto de substituição.” (ROSSET, 2000, p.
29), experimentada na arte criativa de reinventar-se a todo instante. Sobre essa
alegria maior, que concentra, na arte, uma forma de permanência, Lya Luft nos diz,
“a alegria maior e a maior estranheza é que eu não convoco a arte, mas ela me
chama: sua mão faz um aceno, e corro; sua voz dá um sussurro, e morro. Ela, enfim,
me traz sentido e forma, e algum tipo de permanência.” (LUFT, Secreta mirada,
1997, p. 18).
206
Eu, com todos os meus medos, também ousei registrar, aqui, as impressões
sobre a obra de uma autora. E quero agora, que o resultado deste trabalho não
traga em si um tom pretensioso de completude. Que seja, sim, mais uma ponte entre
tantas importantes travessias que já foram feitas, percebidas e pensadas até então.
Afinal, “no circo da vida às vezes somos animais treinados, somos trapezistas,
domadores e domados. Conhecemos truques e ardis, muitas vezes executamos os
passos certos e os gestos quase perfeitos. Mas viver é um salto sem rede.” (LUFT,
Secreta mirada, 1997, p. 57).
“Passos certos e gestos quase perfeitos”: isso eu me propus tentar alcançar,
entender desde o início, embora eu sempre soubesse que essa experiência se
constituiria, também em mim, através de um “salto sem rede”. Entretanto, encontrei
aqui, no espaço deste meu texto, mais que um abrigo para minhas ideias, um refúgio
para os meus modos de ver, de pensar e de sentir os textos de uma autora tão
fascinante. Olhar para este trabalho, ainda que constituído sob minhas várias
limitações, me traz mais espanto que alegria, porque este texto se constitui, em mim,
também como uma maneira de resistência e de identificação ao mundo a que
pertenço, pois “nesse recanto somos reis e réus, exilados senhores, animais alados,
somos toda a possível liberdade.”
208
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ANEXOS
Lya, você iniciou suas produções literárias com os livros Canções de Limiar,
Flauta doce e Matéria do Cotidiano. Mas o que foi realmente determinante para
que você decidisse entrar, de fato, no mundo da ficção?
LYA: “Desde criança muito pequena, numa casa onde havia muitos livros e se
contavam muitas histórias, desejei jogar esse jogo (assim me parecia então):
inventar pessoazinhas e brincar com palavras. Para mim personagens eram como
bonequinhos que a gente inventava. Muito insegura intelectualmente, escrevi crônica
de jornal e poesia, e publiquei, e só aos 27 anos me animei a escrever um pequeno
romance, antes uma novela. Mostrei para um velho amigo escritor, que disse: “Tudo
muito bonito, muito bem escrito, mas não acontece nada, poucos fatos! Você não é
ficcionista. Fique no que faz bem, crônica e poesia.” Mais de dez anos depois, tentei
contos, e mandei a meu então editor, Pedro Paulo Madureira, da Nova Fronteira,
para quem eu traduzia bastante. Resposta dele: “Seus contos são publicáveis,
posso publicar.mas são todos romances abortados.Você é uma romancista! Sente e
escreva romance”. Dois anos depois,surgiram As Parceiras, e eu tinha 40 anos, mas
penso que foram bons recados, pois amadureci.”
Quais são – ou quais foram – suas afinidades literárias? E por que esses
autores ou obras se tornaram afins ao seu modo de ler o mundo?
LYA: Foram diversas afinidades em diversas fases da vida. Na infância, o mundo
das fadas. Na adolescência, Érico Veríssimo com O Continente. Mais tarde, Lygia
Fagundes Telles com seus contos e romances. (Ao contrário do que se pensa,
pouca afinidade com Clarice, embora a admire muito.). Sempre Rilke na juventude,
em poesia, comecei com grande afinidade por Cecília Meirelles. Mas com o tempo
vão-se esfumaçando essas afinidades eletivas, eu acho.
O que você definiria por trágico? Pode-se dizer que você é uma autora que
escreve, de certa forma, sobre o trágico? Em que sentido você o vê, o
interpreta ou o recria?
LYA: Não sei a diferença entre ver, interpretar e recriar. Mas o trágico é exatamente,
para mim, no meu texto, esse ser tangido pelas fatalidades, não ter saída. Ou ser
uma “saída” Mortal.
Se você fosse escrever um romance, hoje, qual seria o tema a que você se
dedicaria a ficcionalizar? Por quê?
LYA: Eu estou escrevendo um romance, lendo meu mais recente texto de ficção O
Silêncio dos Amantes, contos. Nunca penso racionalmente a respeito disso. Meu
tema é sempre a estranheza da vida. Neste livro novo, que apenas se esboça, há
um espelho no fundo de um corredor, e nesse espelho um mar, e penso que no fim
de tudo a personagem entenderá que a realidade é a do espelho, aqui fora é tudo
sonho. Mas ainda há muito por escrever, imaginar, explorar no fundo de mim
mesma.
Em entrevista recente, sobre o livro Perdas e Ganhos, você disse que este é
um livro que já está distante. Em que sentido você se refere a essa distância?
O que você diria sobre a classificação que normalmente é conferida a esse
livro: Best seller ou autoajuda? Alguma dessas categorizações foi a sua
intenção?
LYA: Acho que caracterizar como auto-ajuda é fruto de ignorância ou má vontade.
Ninguém pode ser tão tolo assim. Best seller foi apenas um acaso, o livro vendeu
muito. Mas no Brasil, vender muito parece significar má qualidade. Porém ninguém
perguntaria a Marguerite Yourcenar se seu Memórias de Adriano, que vendeu
muitíssimo, é best seller ou autoajuda....Esse tema é ridículo. O “Perdas” foi apenas
irmão mais moço do Rio do Meio, e mais velho da Riqueza do Mundo....nada mais.
Como você definiria o ato de sua escrita: um dom finamente elaborado, apenas
intuição, ou um conjunto de sensações que não cabem em você mesma?
LYA: Precisa ter um talento, saber a certa altura: Eu nasci para isso, pois é o que
me dá alegria, realização, plenitude. Precisa trabalho no sentido de ser exigente com
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o texto, e o meu eu elaboro muito, na busca de mais simplicidade sem perder certo
refinamento. E coisas mais que não sei explicar, mas que devem fazer parte de
qualquer arte.
Como foi – ou como tem sido – para você a produção de Literatura infantil?
Como surgiram as primeiras idéias para o livro Histórias de Bruxa boa, que
não se contiveram apenas nele e provocaram o A volta da Bruxa boa? Gostaria
que você falasse um pouco, também, da experiência de escrever em parceria
com seu filho Eduardo.
LYA: Depois do Histórias da Bruxa Boa e A Volta da bruxa Boa, decidi escrever algo
para crianças um pouco maiores (embora isso da idade seja muito relativo),
digamos, de oito a dez anos. Quis introduzir algo de filosofia para crianças, não
mencionando filósofos etc, mas instigando a pensar. Como meu filho mais moço,
Prof. Eduardo Luft, da PUCRS, é doutor em filosofia por Heidelberg, e conversamos
muito, pedi a ele que me assessorasse para eu não escrever bobagens. Foi escrito a
quatro mãos, basicamente por emails, e nos divertimos muito.
As bruxas um e dois nasceram de histórias que fui inventando para minha neta
Isabela, filha de minha filha Susana, que é medica pediatra, quando a mãe esperava
as irmãzinhas gêmeas. Isabela tinha menos de quatro anos. Morávamos na mesma
casa, e ela muitas vezes vinha dormir comigo. Comecei a inventar umas histórias
sobre eu ser uma bruxa boa disfarçada de avó, e ela minha aprendiz de bruxinha. A
coisa foi evoluindo,comecei a anotar no computador para não esquecer,e poder
relatar mais tarde ás meninas que estavam por nascer. Um dia olhei,e achei que
davam um livro,o primeiro da Bruxa. A editora Record gostou, convidou a mãe das
gêmeas, que também é pintora, para ilustrar, achei que ficou uma delícia.
Poucos anos depois vi que ainda tinha coisas a falar para crianças, como a questão
da morte (por que não tenho vovô?), de preconceito e de novos casamentos (tem tio
Vitor na história, quando entrou em nossa vida, depois de eu ficar viúva duas vezes,
meu atual companheiro), e escrevi outras histórias, sempre com enorme alegria.
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Parece que tem dado certo. Possivelmente mais Bruxas virão no futuro, não sei. O
retorno de parte de crianças e adultos tem sido muito bom.
O que é, para você, escrever na revista Veja, digo, o que isso representa para
sua atividade literária – a propósito, você considera esse tipo de escrita como
algo literário?
LYA: Sendo escritora, tudo que escrevo é literário, claro. São apenas artigos, como
as crônicas que escrevi por anos em um ou outro jornal. É trabalho, mas é prazer.
Não sofro qualquer pressão, ou censura, portanto é apenas outra forma de
expressão, e não é nova na minha trajetória. No começo estranhei o número imenso
de leitores, mais de um milhão. Mas logo tratei de esquecer isso, para não me sentir
paralisada.....
Eu gostaria que você falasse um pouco sobre sua predileção pelo poeta Rainer
Maria Rilke. Como se estabeleceu essa aproximação entre você e os escritos
de Rilke, e por que eles a tocaram de forma tão constituinte?
LYA: Ganhei de meu pai, na adolescência, poemas de Rilke em alemão, num livro
em papel seda, bem fininho, e mal comecei a ler tive esse deslumbramento que
nunca cessou. Cada página, cada poema, me atinge de novo, pungente e fundo.
Como escrevi acima, por essa mistura de belo e sinistro, pelo uso incrível da palavra
e das imagens, e pelas combinações que faz, pela estética, tudo. E todo o resto que
não se explica.
Como você define sua experiência com a poesia? Quais são os critérios para
dizer que um livro será poesia e não romance e não crônicas e não contos e
não ensaios? Como isso se define na sua técnica literária?
LYA: Não defino nada e nem penso em técnica literária. Algo nasce como poema, e
pronto. Os artigos, eu sento para escrever como artigos, porque tenho compromisso
com a revista. Os romances são mais lentos, é uma longa dança de sedução entre
os temas e a autora, as personagens e a autora, as personagens entre si, uma
música lenta, e na sombra, meio penumbra, de onde aos poucos vão se destacando,
se criando e enlaçando, e desfazendo e refazendo em outras formas e outras
relações. Ou não. Nunca penso em mim em termos de técnica, mas de intuição,
escuta do meu interior, contemplação das personagens, e das tramas, e minha
prazerosa e atenta intervenção nisso tudo.
Qual é a ideia que a acomete no momento em que você escreve, digo, para
quem e por que você escreve, e qual é a idéia que você gostaria que se
constituísse em nível de sua obra?
LYA: Muitas idéias. Às vezes um vazio, que é a escuta do que poderá vir--- ou não,
às vezes é só silêncio e aí vou fazer outra coisa. Pintar, por exemplo, pinto umas
coisas muito simples, mas me divirto enormemente. Se o livro quiser ser escrito, ele
voltará a me importunar, e eu corro atrás. Não sei o que significaria essa “idéia que
se constituísse em nível de minha obra”
No livro Palavra de Mulher, você é definida assim: “Lya Luft: uma mulher
gaúcha, brasileira, que tenta jogar com as palavras e com personagens, criar,
inventar, cismar, tramar, sondar o insondável. Uma mulher que tenta entender
a vida, o mundo e o mistério e para isso escreve.” Quem é Lya Luft hoje, digo,
como você se definiria diante dessas palavras, bem como o que mudou dessa
Lya para a dos dias de hoje?
LYA: Continuo jogando com palavras e temas e personagens. Continuo querendo
entender o mundo, mas talvez mais consciente de que não entenderei, e que por
isso é que escrevo. A frase não é minha mas acredito nela: “O mais importante não
são as respostas, são as perguntas.” Porque não há respostas.
Como você analisa a obra de Nélida Piñon e a de Lygia Fagundes Telles nesse
contexto que apresenta textos literários produzidos por mulheres? Você
reconhece alguma proximidade entre as temáticas que elas abordam e os seus
romances / livros?
LYA: Não sei dizer. Todos os livros do mundo que tratam de família,
relacionamentos, com uma visão em parte feminina, são relacionados de alguma
forma. Lygia dizia, quando eu era jovem, que éramos as duas da mesma família
literária, o que me dava naquele tempo certo orgulho. Mas escrevemos diferente,
Nélida idem. Somos amigas, nos queremos bem, nos respeitamos, somos três
mulheres escrevendo, como tantas neste mundo. Nos vemos raríssimamente, nos
comunicamos pouquíssimo, mas estamos aí.
Qual é a sua postura diante da crítica literária, que, muitas vezes, vê seus
livros mais recentes – Múltipla escolha e A riqueza do mundo – como um
retrocesso na sua carreira literária? E o que essa crítica representa quando
você está escrevendo esse tipo de livro?
LYA: Acho uma tolice abismal achar que escrever artigos ou ensaios seja
retrocesso, se sempre fiz isso. Vão primeiro ver minha obra. Não me diz nada.
Como você reflete sobre a morte e sobre o tempo – temas tão recorrentes em
suas ficções – nos dias de hoje, digo, o que mudou, em nível de análises, de
idéias e de abordagens feitas pela autora de As parceiras para a autora de A
riqueza do mundo? A propósito, você considera este – sair da ficção para a
realidade – um processo autoral muito diferente? O que exige mais ou menos
de você, enquanto autora?
LYA: Nunca saí da ficção para a realidade, repito: sempre fiz ficção e poesia e
crônica e artigos. Talvez hoje em nível de idéias, nos artigos eu seja mais
contundente, mais objetiva, não sei bem. Mais corajosa um pouco?, saindo mais de
mim mesma? Mais ainda as questões sociais, política, economia---sempre como
amadora e observadora.
Por que você não assume, na sua literatura, o teor de feminismo que muitas de
suas personagens representam? Se, em O rio do meio, nós lemos de você
mesma: “Eu falo de mulheres e destinos”, por que não revelar uma tendência
que talvez seja naturalmente própria aos textos de autoria feminina?
LYA: Quem disse que não assumo nada disso? E o que você diria que é assumir o
feminismo? Escrever que os homens são vis, por exemplo? A sociedade injusta com
as mulheres? Isso é o óbvio, já foi mais do que martelado. Talvez eu fale
indiretamente nas minhas personagens, mas também escrevo homens sofridos e
injustiçados.
É que eu nunca penso em mim como mulher: sou uma pessoa. Um ser humano.
Como tal, quero dignidade, respeito, liberdade, para mim e para todos, homens,
mulheres, crianças, as raças todas. O feminismo teve seu papel importante, me
parece que se esmaeceu, não sei, não me importa muito. Vejo cada vez mais
mulheres com funções importantes e bem desempenhadas no mundo todo ou em
grande parte dele: é a natural evolução das coisas e da sociedade, com ajuda da
luta de muitas. Nunca recusei nada, nunca neguei nada, mas me parece até um
pouco ultrapassado desfraldar hoje bandeira feminista.
Você também disse, em entrevista recente, que não gosta “dessa coisa de
autoria feminina”, e que você gostaria, ao contrário, de escrever com o “vigor
de um homem”. Qual a possível supremacia que o vigor de um homem poderia
exercer sobre a posição de uma mulher, isto é, qual é o valor que você confere
a esse vigor masculino, para querer escrever como um homem? Não seria esta
uma postura inteiramente antifeminista, contrária ao seu sentido mais genuíno,
uma vez que somos mulheres, e que essa nossa condição é inegável?
LYA: Essa minha frase veio numa entrevista em que mencionei a tolice de certo
crítico que anos atrás, querendo me elogiar, disse que sou mulher mas escrevo com
mão de homem. Nada mais. Talvez eu tenha reagido com certa intensidade.
E não vi até hoje nenhuma explicação convincente, para mim, da diferença entre
texto masculino e feminino. Um desconhecido, lendo Clarice e Machado, diria logo:
isso é homem, isso é mulher? Me pareceria candura demais pensar nisso.