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UNIVERSIDADE OESTE DO PARANÁ CENTRO DE EDUCAÇÃO,

COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL
DE MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE

WILMA NUNES RANGEL

EM CARMEN SOLER E MARIA LUISA BOMBAL

CASCAVEL – PR
2018
WILMA NUNES RANGEL

O OLHAR E A LITERATURA EM CARMEN SOLER E MARIA LUISA BOMBAL

Dissertação apresentada à Universidade


Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE – para Defesa de Mestrado,
junto ao Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Letras - nível de
Mestrado e Doutorado – área de
concentração Linguagem e Sociedade.
Linha de pesquisa: Linguagem literária e
interfaces sociais.

Orientador: Prof. Dr. Acir Dias da Silva.

CASCAVEL – PR
2018
Ficha de identificação da obra elaborada através do Formulário de Geração
Automática do Sistema de Bibliotecas da Unioeste.

Rangel, Wilma Nunes


O OLHAR E A LITERATURA EM CARMEN SOLER E MARIA LUISA
BOMBAL / Wilma Nunes Rangel; orientador(a), Acir Dias da
Silva, 2018.
230 f.

Dissertação (mestrado), Universidade Estadual do Oeste


do Paraná, Campus de Cascavel, Centro de Educação,
Comunicação e Artes, , 2018.

1. O olhar e a Literatura; . 2. Carmen Soler; Maria


Luisa Bombal;. 3. a imagem da mulher na escrita
feminina;. 4. literatura latino-americana.. I. Dias da
Silva, Acir . II. Título.
WILMA NUNES RANGEL

O OLHAR E A LITERATURA EM CARMEN SOLER E MARIA LUISA BOMBAL

Essa dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre


em Letras e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Strictu
Sensu em Letras – Nível de Mestrado e Doutorado, área de Concentração em
Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________

Prof. Dr. Acir Dias da Silva


Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE) Orientador

____________________________________

Profa. Dra. Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza


Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE) Membro Efetivo (convidado)

______________________________________

Profa. Dra. Maria Aparecida Rodrigues


Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO)
Membro Efetivo (da Instituição)

Cascavel, 29 de novembro de 2018


À Senhorinha Nunes Rangel (In memoriam) pelo olhar
baiano maternal que mais me ama.
A Sebastião Rangel, o leitor pai, herói e meu primeiro grande
amor que sempre me inspirou.
A Gabriel e Gustavo Miguel, por serem filhos e me fazer
mãe.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, à Maria Santíssima.


Agradeço ao meu irmão Helio e família. Aos meus fiéis animais de estimação,
Bidu, Nina, Bulita, Mil e Mil Two, por estarem presentes a cada leitura, virar de
página, escrita e o apagar das luzes como fiéis escudeiros.
Intenso agradecimento ao querido Acir Dias da Silva (O líder, O Mestre “Ioda”,
O Orientador que ilumina e brilha ao mesmo tempo diante do meu olhar, o
caminho antes ‘desorientado’).
Aos professores: Rita Félix, Lourdes Kaminski, Antônio Donizete, Beatriz,
Kuiava, Regina C. e Francisco Fleck, por perceberem a semente deste projeto sem
nem saber que era terra, contribuindo com ternura e sapiência. À Adriana Fiuza e
Maria Aparecida Rodrigues, pelo olhar contemporâneo ao avaliar este texto.
Às amigas do Mestrado que, direta ou indiretamente, contribuíram para meu
retorno aos estudos da literatura, em especial às amigas: Bruna Otami, Elesa Kaiser.
Ao incentivo das colegas de turma: Naiani, Adriana, Paty e Carmen.
À Eliane Mara Silveira, que, com o brilho do seu olhar, me disse: você vive de
sonhos, onde eles estão? – Iluminando assim o meu olhar, com sua amizade de três
décadas; não há palavras para agradecer.
À Elaine Corradello, por acreditar na pesquisa e transformar este processo
numa amizade. À recente amiga Francine Bordin, por aconselhar e corrigir meus
erros, ampliando o olhar e a necessidade da escrita.
À amiga Maria Cristina Lobregat, pela colaboração na fase inicial do processo
criativo, tendo seu sonho literário como alimento para o meu crescer.
Ao amigo “mineirinho da ilha”, José Artêmio, que me fez acreditar que a vida
só existe quando se sonha imensamente À Tati, pela comunicação e atenção. À
equipe Copex, especialmente ao Paulo, pela confiança e responsabilidade.
Agradeço imensamente à Maria Eugênia Soler Aponte (Matena), por nos
permitir aproximar e admirá-la pela essência no estudo de Carmen Soler.
Aos meus filhos, Gabriel e Gustavo Miguel, por estarmos juntos nesse tempo
de leitura e magia.
O MEU OLHAR

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao
nascer, Reparasse que nascera
deveras... Sinto-me nascido a cada
momento Para a eterna novidade
do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele


(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de
acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...


Se falo na Natureza não é porque saiba o que
ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)


RESUMO

Esta dissertação propõe analisar a temática “o olhar e a literatura” na lírica e no


romance latino-americano. Objetivamos apresentar a escritora Carmen Soler (1924-
1985), desconhecida em âmbito brasileiro. Sua escrita feminina lírica é o marco inicial
da poesia no contexto literário paraguaio, como poeta e revolucionária nos anos da
ditadura. Apresentamos reflexões teóricas e encaminhamentos que elucidam a
abordagem da Literatura Comparada, por meio de uma metodologia comparativa em
diversas e várias formas de arte, bem como suportes do olhar na tecnologia. Para esta
pesquisa, tem-se como corpus a obra Poemas (1970), pois é a única publicação em
vida de Carmen Soler, traçando um paralelo com a chilena Maria Luisa Bombal (1910-
1980) nos romances A última névoa (1935) e A Amortalhada (1938) - considerando o
que as difere e o que as aproxima, e, mesmo sem nunca terem se visto, são próximos
seus anseios movidos pelo amor à escrita. Este estudo também visa teorizar o olhar
e a literatura, entrecruzar a visão das autoras com o escopo teórico, bem como com
objetos da teoria literária, apoiada na música, pintura e tecnologia. O olhar que narra
nas obras tende a oferecer esse olho no olho das jovens escritoras, permitir ao leitor
vê-las, em um diálogo com obras históricas da literatura e arte, já que todo encontro
é encantador. O trabalho tem o contexto da sociedade patriarcal de 1930 a 1980,
século XX. De cunho bibliográfico, de análise comparativa, o escopo teórico se ancora,
especialmente, em Merleau-Ponty (2013), em sua obra O olhar e o espírito; em
Novaes, em sua obra O Olhar (1993); em Benjamin, em O Narrador (1994), nas obras
de Baudelaire, o olhar flâneur que vê e defende o povo em O ar e os Sonhos (1990)
e A água e os sonhos (1998), A memória, em Le Goff, História e Memória (1990). A
Literatura paraguaia, por Miguel Àngel Fernandez (2011); e sobre Bombal, Kahmann
(2010), Marcari (2013), Hosiasson (2013) e Figueiredo (2015). Além disso, há o apoio
bibliográfico e de imagens de Carmen Soler cedidas pela família da escritora.

Palavras-Chave: O olhar e a Literatura; Carmen Soler; Maria Luisa Bombal; a imagem


da mulher na escrita feminina; literatura latino-americana.
ABSTRACT

This dissertation proposes the analysis of the theme "the look and the literature" in the
lyric and in the Latin American novel. We aim to present the writer Carmen Soler (1924-
1985), unknown in Brazil. Her lyrical female writing is the starting point of poetry in the
Paraguayan literary context, as a poet and revolutionary in the dictatorship years. We
present theoretical reflections and referrals that elucidate the approach of Comparative
Literature, through a descriptive methodology. For this research, we have as corpus
the work Poemas (1970), because it is the the only publication made by Soler while
living, tracing a parallel with the Chilean Maria Luisa Bombal (1910-1980) in the novels
A Última Névoa (1935) and A Amortalhada (1938). - considering what differs them and
what approximates them, because even without having ever seen each other, however,
they are moved by the love for writing. This study also aims to theorize the look and
the literature, intercross the vision of the authors, the look that narrates in the works,
offer this eye in the eyes of young women writers, allow the reader to see them, for
every encounter is fascinating. The work has the context of the patriarchal society from
1930 to 1980, twentieth century. From a bibliographical point of view, the theoretical
scope is anchored, especially, with Merleau-Ponty (2013), in his work O olhar e o
espírito (Eye and mind); with Novaes, in his work O Olhar (1993); with Benjamin, in O
narrador (The storyteller) (1994), in the poetry of Baudelaire, among others;
Paraguayan Literature, by Miguel Àngel Fernandez (2011); and about Bombal,
Kahmann (2010) Marcari (2013), Hosiasson (2013) and Figueiredo (2015). The
memory, in Le Goff (1990), in addition to bibliographic support and images of Carmen
Soler provided by the writer's family.

Keywords: The look and the Literature; Carmen Soler; Maria Luisa Bombal; The image
of the woman in female writing; Latin American literature.
RESUMEM

Esta disertación propone analizar la temática "la mirada y la literatura" en la lírica y en


la novela latinoamericana. Objetivamos presentar a la escritora Carmen Soler (1924-
1985), desconocida en el ámbito brasileño. Su escritura femenina lírica es el marco
inicial de la poesía en el contexto literario paraguayo, como poeta y revolucionaria en
los años de la dictadura. Presentamos reflexiones teóricas y encaminamientos que
elucidan el abordaje de la Literatura Comparada, a través de una metodología
comparativa en diversas y varias formas de arte, y soportes de la mirada en la
tecnología. Para esta investigación, se tiene como corpus la obra Poemas (1970),
pues es la única publicación en vida de Carmen Soler, trazando un paralelo con la
chilena María Luisa Bombal (1910-1980) en las novelas La última niebla (1935) y La
Amortajada (1938) - considerando lo que las diferencia y lo que las aproxima, y,
aunque nunca se hayan visto, son próximos los anhelos que tienen las dos, movidos
por el amor a la escritura. Este estudio también pretende teorizar la mirada y la
literatura, entrecruzar la visión de las autoras con el ámbito teórico así como con
objetos de la teoría literaria, apoyada en la música, pintura y tecnología. La mirada
que narra en las obras tiende a ofrecer ese ojo en el ojo de las jóvenes escritoras,
permitir al lector verlas, en un diálogo con obras históricas de la literatura y arte, ya
que todo encuentro es encantador. El trabajo tiene el contexto de la sociedad patriarcal
de 1930 a 1980, siglo XX. De estilo bibliográfico, de análisis comparativo, el campo
teórico se ancla, especialmente, en Merleau-Ponty (2013), en su obra O olhar e o
espírito; en Novaes, en su obra O olhar (1993); en Benjamin, en O narrador (1994),
en las obras de Baudelaire, la mirada flâneur que ve y defiende al pueblo en O ar e os
sonhos (1990) y A agua e os sonhos (1998), la memoria, en Le Goff, História y
Memória (1990). La Literatura paraguaya, por Miguel Àngel Fernandez (2011); y sobre
Bombal, Kahmann (2010), Marcari (2013), Hosiasson (2013) y Figueiredo (2015).
Además del apoyo bibliográfico y de imágenes de Carmen Soler cedidas por la familia
de la escritora.

Palabras clave: La mirada y la literatura; Carmen Soler; María Luisa Bombal; la


imagen de la mujer en la escritura femenina; literatura latinoamericana.
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Pintura Carmen Soler, Cadeia feminina Assuncion, Py ........................ 60


FIGURA 2 - Imagem do Site Se sentindo curioso - Olhos e a formação do cérebro 63 
FIGURA 3 - O Grito – Edvard Much ......................................................................... 68 
FIGURA 4 - Pintura sem título – Carmen Soler – 1975, Estocolmo, Suíça .............. 74 
FIGURA 5 - Cadeia de mulheres - Carmen Soler .................................................... 75 
FIGURA 6 - Guernica , Pablo Picasso, 1937............................................................ 83 
FIGURA 7 - Pintura de Carmen Soler ‘As três mulheres na cela’ ............................ 90 
FIGURA 8 - Narciso 1597 – 1599. Michelangelo Merisi Caravaggio – Caravaggio Italia
................................................................................................................................ 114 
FIGURA 9 - Carmen Soler jovem ........................................................................... 141 
FIGURA 10 - Carmen na areia da praia ................................................................. 141 
FIGURA 11 - Carmen Soler – marcas da tortura.................................................... 143 
FIGURA 12 - Carmen Soler em Buenos Aires ............................................................. 145 
FIGURA 13 - Carmem Soler e Casabianca ............................................................ 146 
FIGURA 14 - Maria Luisa Bombal .......................................................................... 147 
Sumário

 
1 INTRODUÇÃO - O PRIMEIRO OLHAR A GENTE NÃO ESQUECE .................... 15 
2 O AMOR ENTRE O OLHAR E A LITERATURA ................................................... 25 
3 OLHO NO OLHO – AS TEORIAS DE CARMEN E MARIA ................................... 37 
4 O OLHAR-DE-LINCE NO BRASIL ......................................................................... 51 
4.1 O OLHAR E SER OLHADO DE CARMEM ................................................................. 71 
5 A ABELHA DE FOGO DOCE COMO O MEL E DEVASTADORA COMO O FOGO
................................................................................................................................ 102 
5.1 A ÚLTIMA NÉVOA .................................................................................................... 105 
5.2 A AMOR-TALHADA .................................................................................................. 116 
6 EM UM PISCAR DE OLHOS – CARMEN E MARIA ............................................ 137 
6.1 VINTE E POUCOS ANOS ........................................................................................ 138 
6.2 A BRECHA DA CÂMARA, OS OLHOS, O RETRATO E O DOSSIÊ ........................ 140 
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS - O ÚLTIMO OLHAR NÃO É O DE ADEUS ........... 150 
8 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 165 
9 APÊNDICE ........................................................................................................... 173 
Se te pareço noturna
e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim,
como se tu me
olhasses
E era como se a
água Desejasse...

Hilda Hils
15

1 INTRODUÇÃO - O PRIMEIRO OLHAR A GENTE NÃO ESQUECE

Quem é essa que me olha de tão longe,


com olhos que foram meus?
(Helena Kolody).

“O primeiro olhar a gente não esquece”1, neste estudo, é uma referência ao


olhar pela primeira vez a capa do livro A última névoa de Maria Luisa Bombal; tal
aproximação originou esta pesquisa, na qual nos propomos a analisar a temática “o
olhar e a literatura” na lírica e no romance latino-americano. Com o corpus,
apresentamos a escritora Carmen Soler (1924 - 1986), desconhecida em âmbito
brasileiro. Sua lírica é o marco inicial da poesia no contexto literário paraguaio, como
poeta revolucionária de combate, nos anos da ditadura paraguaia.
Na expressão “O primeiro olhar”, a natureza nos salta à imaginação e outro
olhar vem; juntamente a ele, surgem imagens, sensações, sentimentos, aceitação ou
renúncia! Assim, “foi amor à primeira vista”. De todos os sentidos humanos, o que se
fecha e adormece é o olhar, a ponto de sentirmos o tato – frio ou calor – acordamos,
despertamos o olhar. Fato que também acontece com a audição – o que dizer do
olfato, então? Olhar domina e também é dominado. Ao fazermos tais reflexões,
chegamos ao flerte, à paquera, ao namoro, ao caso, ao casamento entre O Olhar e A
Literatura.
Assim, nessa temática, temos como objetivos focalizar as obras das escritoras,
no intuito de identificar a comunicação dialética entre o olhar das autoras e suas
produções com a relação íntima da arte com a escrita, mais precisamente a arte
literária e as artes plásticas, utilizando-nos da metáfora fictícia do caso de amor entre
os dois temas. Em relação à construção da pesquisa, pretendemos traçar análises
dos poemas de Carmen Soler2, paraguaia, com os romances da chilena Maria Luisa
Bombal (1910-1980), A última névoa3 (1935) e A Amortalhada (1938). Justificamos a
opção pelos dois romances como objeto de arte desde o primeiro olhar, especialmente
pelo título da capa e pelas suposições do que seriam os romances, como quem se

1
(paráfrase da metáfora “o primeiro amor a gente não esquece).
2
Importante esclarecer que conseguimos apoio da família da escritora na pessoa de Maria
Eugenia Apontes Soler, conhecida por Matena.
3 O nome do romance, a princípio, chama nossa atenção, pois sugere fim, morte até
mesmo em A Última Ceia. Construído tal título, com o mesmo número de sílabas e sons,
gramática e linguística à parte, o tema morte vem à tona, querendo ou não. Névoa é
temperatura, clima, obscuridade, mesmo se há sol. Tais imagens já trazem ao leitor cenas
que atraem e ao mesmo tempo afastam.
16

apaixona pelo primeiro livro que lê. A capa é, para a maioria dos leitores, o primeiro
olhar, aquele que nos levará a conhecer o que há em sua essência e alma.
Com a obra lírica de Carmem e a leitura narrativa de Maria Luisa, é como se a
cada capítulo encontrássemos inúmeros olhares, o nosso olhar para o autor, o
narrador e todos os olhares dos personagens, o olhar do objeto de arte, da obra, enfim,
temos uma multiplicidade de olhares. O nosso olhar (leitor – diante do enredo
alinhado) do espaço e a aproximação física se completam de tal forma que há
momentos em que as páginas são confundidas com o rosto de quem o escreveu; tal
comparação, assim, aparenta exagero, porém, os leitores das obras de Bombal
compreenderão… Há certas obras em que a relação chega a ser afetuosa, quando,
antes de dormir e fechar o livro, há o impulso em dar o cálido beijo de boa noite, no
meio da página ou ao fechá-lo.
Buscamos, neste sentido, a Literatura como Arte, pressuposta em teorias do
conhecimento humano e elegemos, como corpus, a coletânea Poemas, da escritora
Carmen Soler (1924-1985). A obra foi sua única publicação em vida, nos anos da
ditadura paraguaia4.
Para desenvolver a proposta deste estudo, distribuímos os Capítulos da
seguinte forma: A Introdução, O primeiro olhar a gente não esquece, com notas
introdutórias, em que se trata da apresentação e introdução do tema e do referencial
teórico e metodológico.
No Capítulo I, O caso de amor entre o olhar e a literatura - abordamos as
dimensões do olhar e da literatura, os conceitos sobre o olhar e a literatura desde a
Antiguidade, ligada tanto ao instinto, à razão e ao conhecimento, refletindo
inicialmente com as autoras e as obras.
Realizamos a aproximação ou distanciamento entre Carmen e Maria Luisa,
convergindo ou divergindo a análise do estudo; produzimos o Capítulo II, Olho no olho
– As teorias de Carmen e Maria que mesclam os temas.

4 Ditadura Militar Paraguaia (1954 – 1989). Entre 1936 e 1954, o Paraguai enfrentou
golpes com a atuação das Forças Armadas e dos partidos políticos (Liberal, Colorado e
Febrerista). Em 1948, com o domínio colorado, os partidos opositores foram perseguidos; os
militantes, em sua maioria, foram exilados. O Colorado dominou (1948 a 1954), garantiu a
filiação partidária das Forças Armadas e da Polícia. Cenário político de golpes, violentas
perseguições e fortalecimento do Partido Colorado e das Forças Armadas, o terror político,
até a ascensão do general Alberto Stroessner. Em 11 de julho do mesmo ano, em eleições
sem concorrência, Stroessner articulou para ser candidato único do Partido Colorado e
ganhou as eleições à presidência com o apoio da oligarquia agropecuária e dos Estados
Unidos, que transformou o Paraguai em um laboratório da Doutrina de Segurança Nacional.
17

A obra de Carmen Soler, bem como as telas pintadas pela artista, consta da
abordagem do Capítulo III, O olhar-de-lince da Cotovia no Brasil - a metáfora usada
por Carmen no poema “A Cotovia Ferida” influenciou o título deste capítulo,
permitindo aos brasileiros pousar o olhar na arte soleriana.
O IV Capítulo, A abelha-de-fogo, doce como o mel e devastadora como o fogo
- apelido dado à Maria Luisa Bombal por Pablo Neruda, que nos serviu de inspiração
para os objetos de artes deixados pela escritora - traz sua narrativa poética, além dos
romances aqui abordados.
O encontro entre as duas mulheres que inspiraram esta pesquisa acontece no
V Capítulo, denominado: Em um piscar de olhos – Carmem e Maria - em que
permitiremos esse encontro entre o que as aproxima e as distancia nos objetos
estudados e nas afinidades como mulheres, artistas, intelectuais e escritoras. Vale
ressaltar que elas nunca se viram, seus olhares nunca se encontraram, no entanto,
ambas têm o pulsar do sangue nas veias, os olhos expressivos e vívidos que pausam
o tempo, a vida para a mão pousar no caderno, firmar a escrita e com os olhos produzir
a arte literária.
As Considerações finais, O último olhar não é o de adeus – trará os
vislumbramentos nas obras, os encontros e desencontros que buscamos serão
descritos como contribuições finais da dissertação; todavia, esse último olhar não é
de adeus, mas sim, de pausa para outras análises e de outros olhares.
A junção dos temas olhar e literatura pode considerar a hipótese de que a arte
imita a vida, no entanto, entre o fictício e o real há o olhar. Neste caso, utilizaremos as
reflexões e leituras dos teóricos da obra O Olhar de Adauto Novaes (1993). A forma
como o olhar se dá e a análise sensível que a ciência e a hermenêutica sugerem no
mundo tecnológico atual tem como base a adesão e a opção: a constante vigilância
por meio da interpretação sensível para depreender daí as possíveis significações da
arte literária.
Para as relações entre o olhar e a literatura, de cunho bibliográfico, metodologia
comparativa e com abordagem da Literatura Comparada, as reflexões teóricas
presentes neste estudo acompanham o contexto em que as obras se inserem, que é
o da sociedade patriarcal de 1930 a 1980, século XX. O escopo teórico se ancora,
especialmente, em Adauto Novaes, em sua obra O Olhar (1993), por nos oferecer
inúmeros olhares para este estudo; também, em Walter Benjamin, em O Narrador
(1994), em Merleau-Ponty, em O olhar e o espírito (2013) e O visível e o invisível
18

(1971), bem como no pensador Michel Maffesoli, em O tempo das tribos (1987) sobre
o contexto social. Sobre a Literatura paraguaia com enfoque em Carmen Soler:
Miguel Àngel Fernández, La poesia de Carmen Soler (2011), a experiência,
testemunho e narrador por Beatriz Sarlo em Cenas da vida pós-moderna (2000). A
Biografia Maria Luisa de Ágata Gligo (1984), no Posfácio de Laura Janina Hosiasson
(2013) apresenta uma linguagem contemporânea sobre Bombal, bem como a
tradução dupla dos romances A última névoa e A Amortalhada (2013), além de A voz
do corpo e a instâncias do narrar, em A Amortalhada de Maria Luisa Bombal, da
pesquisadora Juliana Fragas Figueiredo (2015) e El discurso narrativo, em la obra de
Maria Luisa de Magali Fernandez Figueiredo (2003).
Diversos autores, diferentes olhares e teorias que não só representam o olhar
antes da escrita, como vemos em O Olhar, de Adauto Novaes, em que percebemos
outra possibilidade que o sentido da visão ocupa na arte da escrita. Lévi-Strauss narra
o início de um desencontro, origem de um esquecimento:

Para ele, os antigos nos ensinam que mortos são aqueles que
perderam a memória, e não foi por acaso que os gregos escolheram
um dos sentidos para descrever a retomada da lembrança: beber a
água fresca do lago de Mnemosine. (…) ou é em virtude do prestígio
que a visão passou a ter em nossa cultura concentrando em si a
inteligência e as paixões? Por que o olhar ignora e é ignorado na
experiência ambígua de imagens que não cessam de convidá-lo a
ver? (STRAUSS apud NOVAES, 1993, p. 9).

Quando desvendamos, o olhar surge instintivamente e reconhecemos. “A


vontade de delimitar, de geometrizar, de fixar relações estáveis não se impõe sem
uma violência suplementar sobre a experiência natural do olhar” (DESCARTES, s/d,
p. 53-54).
O olhar deseja sempre mais do que é dado a ver. Para isso, nos faz
necessário que o indizível se torne prosa, participando do lado da sombra da história
e revelando o sensível que está oculto no outro lado do corpo, acolhendo-o como
um secreto prolongamento da matéria.
Pela questão jamais resolvida pelo idealismo ou pelo empirismo: como passar
do sensível ao pensado e do pensado ao sensível sem que haja domínio de um
sobre o outro? Merleau-Ponty (1971) define a forma como vê e analisa o ser humano
ao escrever: “Somos o mundo que pensa, o mundo que está no âmago da nossa
carne”. Vai além, citando Cézanne: “Eu sou a consciência da paisagem que se pensa
em mim”. “Estava propondo uma mudança radical na forma de pensar. Convidava a
19

tomar o corpo como fundamento” (MERLEAU-PONTY, 1971 apud NOVAES, 1993,


p.13).
Em nota, em O visível e o invisível, completa o seu pensamento: “definir o
espírito com o outro lado do corpo - não temos ideia de um espírito que não estivesse
de par com um corpo, que não estabelecesse sobre esse solo” (MERLEAU-PONTY,
1971 apud NOVAES, 1993, p.13). Dessa forma, inferimos que, do mesmo modo que
o corpo se adapta às evoluções sociais, o ato de olhar para o artista – no caso, duas
mulheres além de seu tempo – elabora o processo produtivo da arte literária, refletindo
por meio social, propiciando formas de narrar o que as envolve, no mais íntimo dos
relacionamentos, como a anônima narradora de A última névoa, ao que as fere
socialmente, como no caso de Carmen, que desperta a professora heroína e vai
politicamente à defesa dos oprimidos.
As teorias da obra de Novaes (1993) apresentam a proposição da significação
que o olhar tem sobre a arte literária e as artes plásticas, além de refletir no contexto
cultural contemporâneo. O olhar é - neste estudo - o intermediário para (re)elaborar
novos olhares literários e culturais. Desenvolve-se por meio das obras os diversos
olhares, o olhar feminino, o olhar sensual, o amor cego diante do olhar, o olhar
justiceiro e, por fim, o olhar da morte. Ademais, há os múltiplos olhares que as obras
abordam.
Em vistas de olhar o mundo, esta pesquisa se justifica desde sua ideia inicial,
em junho de 2016, quando do processo seletivo para ingressar no Programa de
Mestrado em Literatura Comparada da Unioeste do Paraná, ao buscar objetos de
estudo. Como pesquisadora, já havia decidido e escolhido Maria Luisa para elaborar
o pré-projeto de inscrição, mas precisava encontrar outra “Maria” e gostaria que
fosse paraguaia5.
No entanto, a pequena resenha na revista cultural Guatá de Foz do Iguaçu, no
Paraná6, fez com que o olhar de pesquisadora visse a imagem de Carmen Soler,
sobretudo o seu olhar. Após isso, realizamos uma busca sobre a escritora nos sites

5 Por ter sido influenciada na infância, entre as décadas de 80 e 90, por ouvir música
(Guarânia) junto com meu pai Sebastião Rangel, que se encantou pela cultura do país vizinho,
especialmente pelas letras belíssimas das canções. Ao trabalhar em Itaipu, entre 1976-1983,
fez muitos amigos paraguaios.
6 Disponível em: <>. A revista é produzida e editada pelo filho de pioneiros de Foz com
descendência paraguaia, o jornalista Silvio Campana. Possui página virtual e impressa; no
caso, este conteúdo só se encontra na internet, onde localizamos pela primeira vez o olhar de
Soler. O termo Guata, em guarani, significa Caminho.
20

da CAPES, onde localizamos apenas citações sobre ela como poeta revolucionária.
O Brasil conhece muito pouco sobre a produção literária paraguaia, apesar de
fazermos fronteira com os “hermanos”. Se a Literatura paraguaia é pouco conhecida,
imagine as obras femininas. Tal problemática existe, levando-nos a desconhecer a
arte e a memória do povo paraguaio.
É vital citar a diferença, por meio da proposta aqui pretendida, entre os termos
“olho” e “olhar”. Olho é o órgão receptor externo; olhar é a atividade do ser em busca
de significações. Nem sempre olhar e conhecer são absolutamente iguais, em virtude
dos demais sentidos humanos capazes de mentar a percepção. O “olhar” não se
isola, depende de um conjunto do corpo e sente o que vê como interferência.
O envolvimento visual entre o olhar e as mãos, no contexto de elaboração, é
produtor e motor do que é visto. Desde a fase do bebê, as mãos são aliadas não
apenas da visão, mas de todos os sentidos: o objeto que as mãos soltam, a audição,
a temperatura da saliva, o tato, o levar o alimento até a boca, o paladar, o que
desenha e/ou escreve, a visão. A expressão ver com os olhos e não com as mãos
confere tal dedução. As mãos também socorrem os olhos, secando as lágrimas como
um consolo. Tapando não apenas os olhos, mas também todo o rosto quando
queremos nos esconder não apenas dos outros, às vezes, de nós mesmos, é nosso
primeiro esconderijo. As mãos também são o apoio para olhar o infinito; é usada a
sombra para o vislumbre do olhar. A ausência de liberdade de alguém acusado; lá
estão as mãos detidas, impedindo qualquer gesto para aprisionar o ser humano,
pesando-lhe o frio das algemas nos pulsos.
E o que dizer do criador do gesto do adeus – ao partir de um navio. E do outro
alguém que inventou, quando o barco estivesse bem longe, tirar o lenço do bolso e
acenar tristemente o sentimento do adeus; o inventor do tchau como quem acaricia
o rosto de quem se vai. Lá, estão unidos os sentimentos, os sentidos, as sensações
e o olhar. Impossível o olhar não se unir às mãos, até mesmo quando os olhos se
fecham para sempre ao morrermos - as mãos se cruzam, sendo o único gesto não
concluído pelo dono do olhar. Para imortalizar a existência desse amor, apenas a
Literatura resta aos olhos de quem ficou.
É importante que expliquemos a imensa diferença entre ver (visível e invisível)
e olhar (visível). “Ver é pensar pela mediação da linguagem” (CHAUÍ, 1988, p. 39),
mas se “o pensamento fala com a linguagem do olhar [...] o espírito dirá que os olhos
não sabem ver” (Ibid., p. 40).
21

Para Chauí (1998), a expressão Olhos a janela da alma, na coletânea O Olhar


de Novaes (1993), significa ‘ver’:

Ver: Da raiz indo-europeia weid, ver é olhar para tomar conhecimento


e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar
que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o
que o verbo grego eidô exprime. Eidô – ver, observar, examinar,
fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber
e – no latim video – ver, olhar, perceber – e viso – visar, ir olhar, ir
ver, examinar, observar. O que vale mesmo é a colocação do tema,
algumas questões iniciais, outras levantadas no caminho, e, ainda,
aquelas que ficam, que nos remetem a outros estudos (CHAUI,
1998, p. 35).

O conhecimento exprime busca; o sentido que mais atua é o olhar, pois o que
vemos, lemos, nos leva a outros, indo além do ponto inicial. Ao desenvolvermos este
estudo, representamos a tentativa de construir esse olhar “por meio da visão das
escritoras e do escopo teórico, pois “quem olha, olha de algum lugar” (CHAUÍ, 1998,
p. 33).
Ao lermos as poesias de Carmen e a narrativa dos romances de Maria Luisa,
tentamos estudá-las e vê-las, de maneira que, por meio da escrita, fosse possível
reproduzir as imagens, os fatos visíveis, os sentimentos, as intuições, as paixões, a
revolta, a indignação, a tristeza, a dor, o amor, o ódio, a vida e a morte (invisíveis) de
cada uma, levando-nos à inspiração nesta pesquisa. Dessa forma, o leitor dessas
linhas pode vê-las e conhecê-las, bem como suas produções.
Analisamos a jovem que produziu dois romances e é citada como a primeira
escritora a narrar a sensualidade e a relação erótica da mulher com ela mesma, o
encontro amoroso e sexual entre uma mulher e um homem e a explosão sensitiva do
orgasmo, com palavras e imagens, numa rima intensa e quente. Para Chauí, (1998,
p. 38):

É a aptidão visual para o discernimento que leva Horácio, na Arte


Poética, a afirmar que “a mente é movida mais lentamente pelo
ouvido do que pelo olho, que faz as coisas parecerem mais claras”.
E é a aptidão visual para sustentar a evocação que leva Quintiliano,
nas Instituições Oratórias, a recomendar ao retórico “ser conveniente
fingir que temos diante dos olhos as imagens das coisas, das pessoas
e das palavras”.
22

Para ver melhor, é preciso instrumentalizar o olho, assim como a mente: as


teorias e outros modos de ver dos cientistas e estudiosos construíram as categorias
de aproximação de um real complexo, com múltiplas determinações numa dinâmica
dialética e concretamente vivida nas relações sociais.
Já o olhar tem algumas implicações antropológicas e filosóficas de expressão,
interpretação e contexto, podendo ter a conotação de enxergar, conhecer, registrar,
reconhecer, encontrar, seduzir e ler. Mas, faz-se necessário ter certa clareza de que
seu uso e sua construção não são neutros. Oferecemos uma definição ampla e geral
sobre a literatura: uma arte de ficção e atividade de construção humana por meio do
olhar, enquanto que, para o ver, temos olhar, enxergar, conhecer, registrar, visualizar,
reconhecer, encontrar, seduzir, ler e, posteriormente, ver e anotar ou escrever.
Tal percepção e sensoriamento dos sentidos do corpo humano, tais atividades
sinônimas de olhar são construídas, representadas e interpretadas por meio da visão.
Já se tem estabelecido que o olhar é uma construção social, o que é exemplificado
pelos diversos artigos sobre o olhar em Novaes (1993). Do mesmo modo, as
representações do espaço são “geo-grafias”, escritas, linguagens, e os produtos
desses tipos de representação.
Nossa contribuição desenvolve a temática olhar e literatura em vistas de
aproximação, possibilitada pela investigação a essa reflexão. Embora este estudo
seja modesto, é apenas o primeiro olhar. No que diz respeito ao conhecimento na
construção do pensamento em termos literários, filosóficos e científicos, a associação
entre duas escritoras se torna importante para desenvolver esta discussão.
Poucos foram como Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando
Pessoa, o engenheiro naval, que conseguiu dizer que a "vida que eu vivo - ó [...] - é
a vida que me minto" (PESSOA, 2002). A vida do “eu” representa o fator interno da
equação eu-indivíduo, o mundo da subjetividade do indivíduo, sua identidade
singular. A vida externa é a vida da mentira, do engano apreendido pelos sentidos,
configurando uma negação da realidade que se apresenta. No contexto soleriano, é
a vida imposta pelo militarismo, o domínio exterior do interior do povo.
Tomamos aqui os termos razão instrumental (o meio inserido, a situação em
que a obra foi produzida, no nosso caso, a poesia e a pintura, instrumento da artista)
e razão crítica da forma de olhar na literatura em relacionamentos e conflitos,
permitindo realizar certa leitura do corpus escolhido, de forma a destacar o que
olharam, viram, enxergaram as duas mulheres estudadas, que natureza admiraram
23

pelos vários países em que residiram, as representações, construções e percepções,


pois são grafias (escritas) do espaço, da terra; ou seja, daquilo que denominamos
geo, cada nação com sua dada linguagem territorial – linguagem na qual se escreve
(grafa) e se torna outras imagens com o leitor condicionado pelo olhar. Dessa forma,
nas obras aqui dissertadas, não existem olhares neutros.
24

Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em
celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor
do que elas?
[…] Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem
fiam;

(Bíblia de Jerusalém - Mateus 6: 26-2)


25

2 O AMOR ENTRE O OLHAR E A LITERATURA

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus


E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.
()

As dimensões do olhar e da literatura estão neste capítulo com o objetivo de


explicitar os conceitos sobre o olhar e a literatura desde a Antiguidade, ligada tanto ao
instinto como à razão e ao conhecimento. A dimensão do olhar presente neste capítulo
é voltada para a literatura enquanto híbrido potencial, associada ao olhar.
Aglutinaremos elementos que nos permitirão fitar os temas das escritoras e suas
obras. O “Olhar e a Literatura” se unem subliminarmente, por meio da visão como
paradoxo do ser humano que olha a ficção, resgatando o olhar criador literário. Como
vimos, o termo “Olhar” é polissêmico.

Fitar os olhos em. (Sin.: mirar, contemplar, encarar, examinar,


observar). Prestar atenção a. Sondar. Tomar conta de. Examinar.
Tomar em consideração. verbo intransitivo, Estar voltado para.
Ocupar-se de. Olhar com bons olhos, considerar com benevolência.
Olhar como, julgar. Olhar por, proteger, cuidar de. Olhar de esguelha,
votar desprezo ou aversão a. verbo pronominal. Mirar-se, ver a si
próprio (ao espelho, p. ex.). Também, conforme.

Pode ser considerado mais precisamente o existir, tanto que, ao nascermos, o


observar se os olhos do bebê estão abertos é analisado antes mesmo do choro.
Contrariamente, se fecham, despedem-se da vida.
26

Em referências sobre o termo olhar na medicina e/ou biologia, o olhar, por Karl
(2004)7, é deste modo colocado:

O que é “olhar”? Para o Médico e Editor do Ecce Medicus, blog do


Scienceblogs em pesquisas Karl Literalmente, olhar é “dar uma
olhada”, um golpe d’olhos. É o movimento conjugado dos globos
oculares em direção a algo ou alguém. Se, por um lado, quem não
olha fatalmente não vê, como é sabido de todos, o inverso é mesmo
possível, qual seja olhar de fato, sem nada ver. Por quê? “Ver”, assim
como seu correlato “enxergar”, parecem conferir algo de interpretativo
ao ato mesmo de olhar. A etimologia de “enxergar” é classificada como
“incerta” pelo Houaiss e pelo Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa, o que nos permite e (spec)ular (as razões desses
parênteses serão esclarecidas abaixo).
Ver é um ato natural, instintivo, fato e comum é ver e não ver, é o
conhecido olhar parado. Socialmente chamado atenção desde
criança. Trocado rapidamente pelo olhar: Olhar não pode ser um ato
objetivo, mesmo na era da visualização tecnológica, nunca a busca
pelo olhar natural, é tão intensa, olhar é natural e ao mesmo tempo
idealizado no sentido cognitivo e didático.
- Hei! Presta atenção! Olha aqui!
A expressão é forte, como se o simples ato de estar olhado,
socialmente falando, se presta, dedica, envolve comunga o instante, o
assunta, o chão o ar no tempo, unindo as ações por meio do olhar.
Em castelhano temos a palavra envidia que vem do latim invidere,
sendo composta por “in-“ “pôr sobre”, “ir para” e “videre”, o
próprio “ver”. Envidia significa, portanto, algo como “deitar o olhar
sobre” e seria um étimo possível para nosso “enxergar”. Por outro lado,
em latim ainda temos a palavra insecare, primeira pessoa do verbo
inseco, que significa “cortar, divisar”. (Scienceblogs, acesso em 20 set.
2018).

Essas questões do olhar, do papel do eu lírico e do narrador (testemunha e


protagonista da história por intermédio da ficção), (analisado pela obra lírica, por
intermédio do Eu lírico ou sujeito lírico), mesmo com toda a complexidade do mundo
pós-moderno, surgem na leitura das obras de Soler e Bombal, na medida em que
estas mulheres testemunham a história da política e do social de sua época e, por
meio de um olhar social, de combate, por justiça e ao mesmo tempo o olhar humano,
lírico e romântico, do universo feminino e da escrita feminina. Assim, transformam-se
em narradoras de questões como a ditadura e o amor – questões que aparecerão de

7
Médico e Editor do Ecce Medicus, blog do Scienceblogs em pesquisas Karl – O é a maior rede
de blogs de Ciências do mundo. Lançado em janeiro de 2006, o ScienceBlogs entrou em 2013 com
mais de 129 blogs em inglês e duas redes irmãs: o , com 25 blogs, e o , com mais de 40 blogs. O
objetivo do ScienceBlogs é criar um espaço no qual seja possível discutir Ciência de forma aberta e
inspiradora. As redes escritas em alemão e português são uma forma de transformar vozes locais em
vozes globais.
27

forma mais clara e direta quando abordarmos as escritoras. Segundo Hawayo Hiromi
Takata8, a relação entre “cortar” e “saber”, que é também verificada no vocábulo
derivado do grego “análise”, pode ter originado o “enxergar”. Incerto, de qualquer
forma, mas plausível e certamente aprovado ao menos por Michel Foucault (1984)9.
Tais ações na obra de arte encontram-se sob a responsabilidade do olhar do eu lírico
e/ou narrador.

E o que é “ver”? A origem é o latim videre como vimos e que, por sua
vez, vem de uma raiz indoeuropeia *weid-, comum, veja só, à palavra
grega ειδος (eidos = aparência, imagem) tão cara à Platão e que
originou as palavras “androide”, “antropoide”, “ginecoide” e tantas
outras com o significado de “assemelhado a” ou “na forma de”.
Interessante também o fato de que, em bom inglês, tal raiz tenha
originado wisdom (sabedoria), wise (sábio), wizard (mago), todas
palavras que de certa forma designam a capacidade que alguém tem
de “ver mais longe”.

A visão está associada à produção do conhecimento. Para Platão, eidos


significava além da imagem. Para nosso estudo, o olhar está associado a tal imagem
ou aparência na ficção literária, despertando e aproximando a imagem reproduzida
na escrita para o ato da leitura.

Peculiar é o termo species que também significa “aparência”,


“a(spec)to” (calma, já chegamos lá) e “visão” e deriva de uma raiz
(spec) (pronto!) que significa “olhar, ver”, raiz essa que pode ser
encontrada também em palavras como speculum, que não significa
apenas “espelho”, mas também é o nome que se dá a um instrumento
médico utilizado para ver “interiores corpóreos”, muito utilizado em
ginecologia (aliás, uma das “e(spec) ialidades” médicas); spectrum,
“imagem”, “fantasma”; specimen, “exemplo”, “signo”; spectaculum,
“espetáculo”. Raiz que, segundo Giorgio Agamben (2007), se
desdobra numa dialética bastante interessante. Species oi utilizado
para traduzir para o latim o termo filosófico eidos (acima), derivando
seu sentido para as ciências da natureza (espécie animal ou vegetal)
e para o comércio, significando “mercadoria” e, mais tarde, o próprio
dinheiro.

8 Hawayo Takata - Hawayo Kawamuru, Takata, mais tarde, nasceu em 24 de dezembro de 1900,
numa família de cortadores de abacaxi, na ilha de Kauai, Havai, em Hanamaulu. As técnicas e métodos
de ensino sofreram alterações e vários ramos do Reiki evoluíram. O que é fato é que todos os métodos
funcionam e todos derivam dos ensinamentos de Hawayo Takata. Após a sua morte, 22 mestres, que
foram preparados, levaram o Reiki aos Estados Unidos da América e daí até o resto do mundo. Desde
então, tem havido muitas adições de conteúdo num sistema muito simples. Relembramos que o sistema
que ensinou a Sra. Takata concentrou-se no aspecto de cura do Reiki, em detrimento do
desenvolvimento espiritual pessoal.
9 “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT,
1984, p. 28).
28

Em “Rua de mão única”, Walter Benjamin (2011) narra a angústia de não


encontrar as palavras adequadas para traduzir a experiência do arrebatamento. Num
capítulo específico, chamado “imagens do pensamento”, ele desdobra os detalhes de
seu olhar viajante por diversas cidades, como Paris, Nápoles e Moscou. Mas é na
cidade medieval de San Gimignano, situada no alto das montanhas da Toscana, que
Benjamin emudeceu diante da beleza: “Achar palavras para aquilo que se tem diante
dos olhos – quão difícil pode ser isso!”.
De qualquer forma, a frontalidade dos olhos no rosto humano remete à
centralidade do cérebro (BOSI, 1993). Na Renascença, o objetivo do olhar era a
perspectiva; o artista deveria aprender a olhar de perto e de longe:

O olho, janela da alma, é o principal órgão pelo qual o entendimento


pode obter a mais completa e magnífica visão dos trabalhos infinitos
da natureza. Visão e entendimento estão aqui em estreitíssima
relação: o olho é a mediação que conduz a alma ao mundo e traz o
mundo à alma. Mas não é só o olho que vê, o entendimento, valendo-
se do olho, obtém a mais completa e magnifica visão (BOSI, 1993, p.
66).

Só conseguimos ver aquilo que nos é significativo e esse fato se relaciona ao


sentido que estabelecemos entre nossas experiências e o que estamos vendo.
Precisamos decodificar os signos e compreender a sua relação em um determinado
contexto sociocultural.
Ocorrem, assim, variadas formas de olhar uma mesma situação. Explicita Bosi
(1993, p.165): “Para os Gregos e Romanos, existiam dois olhares: o receptivo e o
ativo, enfim, o ver por ver sem o ato intencional do olhar e o ver como resultado obtido
a partir de um olhar ativo”.
Na linha de pensamento de Bosi (1993), o olhar expressivo é aquele que une
mente e coração, corpo e alma, olhos e mãos e possibilita o gesto artístico. Dessa
forma, atrelado à natureza humana, está o fator criativo, pois:

No ato de perceber, ele tenta interpretar e, nesse interpretar, já


começa a criar. Não existe um momento de compreensão que não seja
ao mesmo tempo criação. Isto se traduz na linguagem artística de uma
maneira extraordinariamente simples, embora os conteúdos sejam
complexos. (BOSI, 1993, p. 167).
29

Temos, também, do ponto de vista de Merleau-Ponty (apud CHAUI, 2000, p.


40), que “Ver é ter à distância. O olhar apalpa as coisas, repousa sobre elas, viaja no
meio delas, mas delas não se apropria.” No entanto:

É preciso conceber o escritor (ou o leitor: é a mesma coisa) como um


homem perdido em uma galeria de espelhos: ali onde a sua imagem
está faltando, ali está a saída, ali está o mundo. (BARTHES, 1982, p.
51). A imaginação do leitor é líquida (Ibid., p. 60-61). No texto (na
obra), é preciso ocupar-se do ator. (Ibid., p. 69).

Assim, a literatura é relacionada ao olhar. Para Karl Eril (2016, p. 6):

Não há como tratar de literatura hoje sem levar em conta este


predomínio imagético. É esta relação conflituosa entre textos e
imagens o foco de compreensão para a produção de sentido, bem
como as possíveis abordagens visuais à literatura.

O olhar e a literatura são fruição. Em Roland Barthes (2010), o movimento de


escritura importa técnicas singelas do desenho e da música, do crítico ao escritor, do
pintor ao crítico: combina, alterna, propõe, retoma direções e ritmos, fazendo e
desfazendo percursos. O texto barthesiano, entre a luz e a sombra do mito (diríamos,
no seu intertexto mitológico: apolíneo, dionisíaco), reconhece, em figurações e
desfigurações múltiplas, os fragmentos mitográficos que nele comparecem,
desaparecem. Aliás, da mitologia à mitografia conseguimos traçar algum percurso
escritural de Barthes ou mesmo seu reverso poético.
A Literatura e O Olhar também são testemunho, registro. Ao escolher produzir
sua obra, seja lírica ou prosa, o escritor efetiva ficção, converge para o olhar da
realidade social, na maioria das vezes, ensimesmado, e o narrador é testemunha
também, sendo quase sempre protagonista da própria história. De acordo com
Benjamin (1999, p. 85):

A História é o objeto de uma construção que não se situa em um tempo


homogêneo e vazio, mas sim em um tempo ocupado pela presença
do Eterno Agora. Desta forma para Robespierre a Roma antiga era um
passado impregnado do Agora, que ele fez explodir do continuum da
História. A Revolução Francesa via a si mesma como uma Roma
rediviva. Evocava a Roma Antiga como a moda evoca as vestes do
passado. A moda tem um faro natural para o que é tópico, onde quer
que ele se embrenhe nas matas espessas dos tempos idos, é um salto
de tigre em direção ao passado. Esse salto, entretanto, se dá em uma
arena onde a classe dominante tem o comando.
30

Para o autor, o olhar, o deter-se na criação da arte, é experiência, portanto, o


tempo ocupado no agora, a reprodução do eterno produzido pelos antepassados,
mantém o eterno anterior. Cita a moda, pois o olhar feminino é sensitivo, trazendo
memórias associadas ao reflexo estampado em roupas, arquitetura e decoração. De
certa forma, o passado é usado pelo capitalismo contemporâneo como comercial em
forma de memória.
A antropóloga Danielle Perin Rocha Pitta (1997), em pesquisa sobre os
Elementos de método na obra de Michel Maffesoli, observa que, para ele, a
complexidade do mundo pós-moderno exige do cientista social a criação de novos
conceitos, ou melhor, noções, que dentro de uma perspectiva fenomenológica deem
conta da diversidade e especificidade da vida do homem comum, na sua vivência do
dia a dia. Trata-se de propor uma sociologia atenta “àquilo que em profundidade, a
vida corrente de nossas sociedades, neste momento em que finda a era moderna”
(MAFFESOLI, 1987, p. 96).
Em diálogo a essa representação da realidade que podemos encontrar nas
obras literárias, justificando nossa ênfase neste tipo de análise, retomamos Maffesoli
(1987, p. 96), quando este diz que:

O destaque dado aos diversos rituais, à vida banal, à dubiedade, aos


jogos da aparência, à sensibilidade coletiva, ao destino, em resumo, à
temática dionisíaca, se ele pôde fazer sorrir, não deixa de ser utilizado,
de diversas maneiras, em quantidade de análises contemporâneas.

A literatura pode ser objeto de discussão e tema desde Aristóteles, quando


proferiu, em sua Poética, elementos que distinguiram essas duas áreas. Para o
historiador Alexandre Maccari Ferreira (2007), em seu estudo sobre A relevância da
literatura historicamente:

A separação e o entrecruzamento desses dois campos de estudo são


elementos valiosos na busca de uma compreensão que vai além da
simples constatação, permeando objetos de reflexão e análise
estrutural de uma corrente teórica voltada à História Nova.
(FERREIRA, 2007, p. 149).

Assim, destaca Maffesoli (1987), além da ênfase evidenciada ao cotidiano e ao


banal, a importância de, na atualidade pós-moderna, se fazer uma ciência inscrita na
tradição compreensiva que proceda por verdades aproximativas. O processo da
comunicação não termina quando a mensagem codificada pelo emissor é
31

decodificada pelo receptor. Ao acrescentar informação nova em um repertório humano


individual, é preciso ter em conta que este se mostra sempre vulnerável à
circunstância que o envolve. O que se passa no exterior do seu ser normalmente
provoca alterações na sua vivência em sociedade. É o que chamamos de princípio
dialético, sendo que tal princípio está presente também no nosso processo de análise.
Entretanto, narrar algo distante não toca tanto o leitor. Ler condiz, às vezes,
com o senso comum do provérbio: ver com as mãos. É de se analisar, quando alguém
vem de viagem, pois logo queremos saber o porquê e o que aconteceu para estar
retornando. Para Walter Benjamin (1994, p. 203-204):

O saber que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas,


ou do longe temporal contido na tradição – dispunha de uma
autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela
experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata.
Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível " em si e para si
Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém,
enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é
indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é
incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje
rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse
declínio.

Analisemos o caso das artistas, em que a percepção é um dado mental para


quem escreve. Quando termina o seu trabalho, começa o do observador. Devemos
levar em consideração que o sistema sensorial orienta o observador, criando uma
ponte com os objetos já registrados em seu repertório. Para Lucrécia D'Alessio Ferrara
(1986, p. 56): "A ciência consiste em realmente distender o arco na direção da
verdade, com atenção no olhar, com energia no braço".

[...] a arte moderna abre ao receptor a possibilidade de questionar-se


sobre a natureza, valores e procedimentos... a possibilidade de criar a
metalinguagem da arte que se opõe à crítica estética: enquanto a
crítica atua como um olhar que permanece exterior à obra,
metalinguagem questiona-se a partir de sua própria interioridade...
Não se trata de descoberta de sentido, mas atribuição de significados
pela ação perceptiva. (FERRARA, 1986, p. 56).

O impacto provocado pelos novos meios de produção e a evolução dos


veículos de comunicação de massa no século XX determinaram o surgimento e a
expansão de novas técnicas de linguagem, em que o sistema produtivo fez o artista
deixar de ser apenas um elemento criador para se transformar em um codificador de
32

linguagem, por meio de um código base capaz de dominar outros sistemas de


linguagem. Assim pensa Walter Benjamin em "A Obra de Arte na Época de sua
Reprodutibilidade Técnica", marcando a tomada de consciência de novos caminhos
para a Arte e a linguagem em geral (FERRARA, 1986).
O artista é como se fosse o corajoso da história, em que coloca o seu olhar no
que todos estão vendo, mas é o único que vê o repertório e o transforma em Arte.
Ferrara (1986) ainda acrescenta:

A natureza da informação está vinculada não à sua qualidade, mas à


sua quantidade, isto é, a taxa de informação de um repertório é
qualitativamente melhor na medida em que é mais alta a sua taxa
quantitativa... Articulando reprodução e consumo de massa, nasce um
sistema de linguagem que se apoia num signo eminentemente utilitário
e supõe um receptor que articula e manifesta seu repertório através
do uso do próprio signo... O uso se incorpora à linguagem e faz do
receptor uma unidade interna à sua organização. (FERRARA, 1986,
p. 56).

O romance A última névoa apresenta essa percepção em relação à natureza.


A ‘válvula de escape’ da anônima são os elementos da natureza, com os quais
mantém o constante diálogo corajoso. A linguagem utilizada por Maria Luisa nos
episódios em torno dos elementos que fazem parte do espaço em que a narradora
caminha, olha, sente, sofre, ama e quer diante de sua solidão, estão intimamente
ligados a folhas, árvores, açude, fontes, rios, noite, dia, fogo, vento e névoa – como
protagonista inanimada e personificada chega a ser a confidente no enredo e, ao
mesmo tempo, a escrita feminina bombaleana diante da(s) imagem(ns) da mulher(es)
personagen(s) denuncia a situação feminina, sua submissão, abandono, baixa
autoestima, aproximando o leitor do tema morte e infelicidade.

A mi alrededor, un silencio indicará muy pronto que se ha agotado todo


tema de conversación y Daniel ajustará ruidosamente las barras
contra las puertas. Luego nos iremos a dormir. Y pasado mañana será
lo mismo, y dentro de un año, y dentro de diez; y será lo mismo hasta
que la vejez me arrebate todo derecho a amar y a desear, y hasta que
mi cuerpo se marchite

y mi cara se aje y tenga vergüenza de mostrarme sin artificios a la luz


del sol.
Vago al azar, cruzo avenidas y sigo andando. No me siento capaz de
huir. De huir, ¿cómo, adonde? La muerte me parece una aventura más
accesible que la huida. De morir, sí, me siento capaz. Es muy posible
desear morir porque se ama demasiado la vida. Entre la oscuridad y
33

la niebla vislumbro una pequeña plaza. Como en pleno campo, me


apoyo extenuada contra un árbol. Mi mejilla busca la humedad de su
corteza. Muy cerca, oigo una fuente desgranar una sarta de pesadas
gotas. La luz blanca de un farol, luz que la bruma transforma en vaho,
baña y empalidece mis manos, alarga a mis pies una silueta confusa,
que es mi sombra. Y he aquí que, de pronto, veo otra sombra junto a
la mía. Levanto la cabeza.10

A visão bombaleana expõe a solidão feminina, inclusive, a comunicação da


narradora com os demais personagens é restrita a ponto de o silêncio dos outros
moradores da casa indicar o encerramento da noite. A protagonista sente e olha o
processo construído nas relações entre a Anônima e os demais personagens, em um
ensurdecedor silêncio (há no decorrer da narrativa apenas 18 diálogos), compensado
pelo intenso pensamento da protagonista. Sua principal característica é observar os
que a observam. Como no fragmento em “Anônima”, ao final da noite, sai a vagar pela
madrugada afora. Se analisarmos o observador - do ponto de vista da exteriorização
do artista - pelo raciocínio de Celso Kelly, estabelecem-se três funções para a arte:

A criativa, que seria o impulso da exteriorização do artista; a lúdica,


um processo de recriação; e a comunicativa, decorrente da condição
de que a arte também é linguagem. Através desses três rumos, as
artes se integram não só na cultura, em sentido antropológico, como
na convivência social (KELLY, 1972, p. 57).

Diante do percepto, encontra-se novamente o sensorial, em que, no ponto de


vista de Merleau-Ponty (1992), olhar é algo pessoal, personificado. A maneira como
um sujeito vê uma situação ou uma mancha na parede é diferente da maneira com
que o outro olha.

Cada sentido é um mundo, isto é, absolutamente incomunicável para


os outros sentidos, e, no entanto, constrói um algo que, pela sua
10
Ao meu redor, um silêncio indicará logo que os temas de conversa se esgotaram e Daniel
ajustará ruidosamente as trancas contra as portas. Mais tarde dormiremos. E depois de amanhã será
o mesmo, e daqui a um ano; e daqui a dez anos, e será o mesmo até que a velhice venha e me roube
todo o direito de amar e de desejar, até que meu corpo murche e meu rosto esmaeça e eu tenha
vergonha de me mostrar sem artifícios à luz do sol.
Vagueio ao acaso, cruzo avenidas e continuo andando.
Não me sinto capaz de fugir. Fugir como, para onde? A morte parece-me uma aventura mais
acessível do que a fuga, Sim, sinto-me capaz de morrer. É bem possível desejar a morte porque se
ama demais a vida.
Entre a escuridão e a névoa, vislumbro uma pequena praça. Como em pleno campo, apoio-me
exausta contra uma árvore. Nas proximidades, escuto uma fonte debulhar uma fieira de gotas pesadas.
A luz branca de um farol, luz que a bruma transforma em vapor, banha e empalidece minhas
mãos, alonga aos meus pés e uma silhueta confusa, que é minha sombra. E eis que de repente vejo
outra sombra junto da minha. Levanto a cabeça (Tradução de HOSSIASSON, 2013, p. 26- 27).
34

estrutura, de imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com


eles constitui um único SER (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 202).

A filosofia e as análises de Merleau-Ponty se colocam em uma perspectiva


distinta da perspectiva da percepção e da do cientista, da perspectiva do senso
comum e da perspectiva da ciência. Estas duas últimas são colocadas em um
mesmo nível, na medida em que estão ambas voltadas para o objeto, para o mundo,
não para aquilo que faz o objeto, o mundo, vir a ser, e complementa com o ato do
olhar:

O mundo da percepção caminha coincidindo com o do movimento


(que também é visto) e inversamente o movimento tem (olhos). Do
mesmo modo, o mundo das ideias invade a linguagem (pensamos
a linguagem) que por sua vez invade as ideias (pensamos porque
falamos a linguagem). (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 202).

Em contrapartida, o pensamento de Merleau-Ponty concentra-se no fenômeno


da divisão sujeito-objeto e menta-se na ontologia do ser para explicar o caráter
fenomenológico do dualismo clássico sobre as zonas ambíguas da percepção.
Este dualismo sujeito-objeto diz respeito à relação do corpo e do mundo, ou
seja, do interior (sujeito) e exterior (mundo). Esta percepção dualística também é vista
nas narrativas literárias que aqui são analisadas, pois as escritoras, a todo tempo,
representam (na arte da escrita de ambas) a relação ontológica sujeito-objeto ou corpo
mundo. Neste sentido, a filosofia de Merleau-Ponty considera o corpo como uma
unidade, um mundo, um espaço relacionado a tudo. Assim, o olhar e o corpo no
próprio mundo das escritoras (seu sujeito, interior), suas escritas enquanto objeto
(mundo, exterior) contêm a relação entre elas e o mundo. Essa dualidade se faz
presente nas análises.
Sendo o homem de hoje um ser predominantemente visual, as correntes
psicológicas da percepção confirmam essa assertiva de que a maioria absoluta das
informações que o homem moderno recebe advém das imagens. Sobre o assunto,
Alfredo Bosi, em seu ensaio "Fenomenologia do olhar", esclarece:

O olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito,


tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que
involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o
sujeito irá, distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo
das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma
pensar... O olhar não está isolado, o olhar está enraizado na
corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade... Em
35

suma, há um ver por ver, sem o ato intencional do olhar; e há um ver


como resultado obtido a partir de um olhar ativo. (BOSI, 1993, p. 66).

Não podemos deixar de perceber o mundo físico de modo distorcido, mas a


ciência mostra que a distorção existe e por meio dela podemos aceder a uma espécie
de visão intelectual, segunda, que corrige a falsa percepção (BOSI, 1993). A
percepção do olhar a que Bosi (1993; 1995) se refere pode ser comparada à
Fenomenologia do Olhar de Merleau-Ponty (1992), pois surge novamente uma
dualidade, dessa vez, centrada no olhar e na corporeidade, enfatizando a relação
entre a motricidade e a sensibilidade do olhar.
Considerando que a percepção e revelando que as viagens possuem
inequívoco parentesco com a atividade do olhar, no ensaio "O olhar viajante (do
etnólogo)”, o etnólogo Sérgio Cardoso (1989 apud NOVAES, 1993) observa que,
nessa passagem do olhar para a escrita, há conflitos, indecisões e rupturas:

O olhar, sabemos, não descansa sobre o plano amplo e espraiado que


define um horizonte, mas procura barreiras e limites, perscruta suas
diferenças e vazios. Trata-se de algo bem conhecido. Que qualquer
relevo ou sinuosidade, falha ou obscuridade destoe da unidade
prevista da paisagem familiar, que um ponto de descontinuidade ou
incongruência se manifeste, qualquer sinal de ruptura, inesperado ou
imprevisto, e a visão inocente distendida ou distraída vacila, estaca e
atende, convoca o olhar; contrai-se no foco vertical da atenção, no
impulso de envolver o novo e quase sempre – na tentativa vã de
devolver à paisagem sua integridade. Assim o olhar se embrenha
pelas frestas do mundo na investigação. (CARDOSO, 1989 apud
NOVAES, 1993, p. 358).

Nesse aspecto, compreendemos o olhar, o que este significa nas mais diversas
abordagens e sua relação com a literatura. Como no excerto acima, olhar o mundo é
um ato voluntário que fazemos. Assim, escrever sobre ele traz a intencionalidade do
escritor, instaurando um novo sentido sobre o contexto em que vive, além de
possibilitar que seus registros escritos deixem marcas na história, as quais permitam
compreender sua época sobre o olhar literário de quem testemunhou e escreveu
obras que representam para o leitor suas experiências de vida e análise do seu próprio
olhar.
36

Ela

Pode ser o rosto que eu não posso esquecer.


Um traço de prazer ou arrependimento
Pode ser meu tesouro ou o preço que eu tenho que pagar. [...]
Pode transformar cada dia em um paraíso ou em um inferno.
Ela pode ser o espelho dos meus sonhos.
Um sorriso refletido em um riacho
Ela pode não ser o que ela pode parecer
Dentro da sua casca
Ela, que sempre parece tão feliz no meio da multidão.
Cujos olhos podem ser tão secretos e tão orgulhosos
Ninguém pode vê-los quando eles choram.
Ela pode ser o amor, que não pode esperar para durar
Pode vir das sombras do passado.
Que eu vou me lembrar até o dia que eu morrer
Ela
Pode ser a razão pela qual sobrevivo
O porquê e o motivo de eu estar vivo […]

(She, Elvis Costello)


37

3 OLHO NO OLHO – AS TEORIAS DE CARMEN E MARIA

Quem é essa que me vê do lado de lá quando eu dela


preciso cá? Quem é essa que está em mim e eu nela
em hora sem fim? Quem é essa, quem sou eu? De
tanta pressa o vento a levou. Fiquei eu Olho no olho
O meu no seu Num retrato antigo Num estar comigo
Num olhar só meu. (Janice Janet Persuhn)

Em vistas de olhar o mundo, esta pesquisa se justifica desde sua ideia inicial,
ao encontrarmos uma pequena resenha em uma revista de cultura de Foz do Iguaçu
no Paraná, chamada Guatá11, o que fez com que o olhar de pesquisadora visse a
imagem de Carmen Soler, sobretudo o seu olhar. Buscamos no site da CAPES, em
que encontramos citações que a definiam como poeta revolucionária do Paraguai.
Deduzimos que o Brasil desconhece a sua produção literária, mesmo fazendo
fronteira com os “hermanos”.
Apesar do pouco conhecimento sobre a escritora, vimos ser possível visualizar
informações pelo Facebook, em fanpage mantida por Maria Eugênia Apontes Soler,
filha única de Carmen12. Assim, encontramos:

Carmen Soler (1924-1985) Nació en Asunción, Paraguay, el 4 de


agosto de 1924. En 1943 finaliza sus estudios secundarios y, ya
casada con Marco Aurelio Aponte, va a trabajar al Chaco paraguayo.
Allí oficia de maestra rural bilingüe (guaraní-castellano), cuando el
sistema educativo aún no lo establecía, y se encuentra por primera vez
frente a los problemas sociales: la explotación obrera en los
establecimientos tanineros, el sometimiento y la marginación de los
indígenas, las penurias de los campesinos, la particular opresión que
sufren las mujeres del pueblo. Al regresar a Asunción, se incorpora al
Partido Revolucionario Febrerista, militando en la radicalizada
corriente marxista que integraba su hermano Miguel Ángel.13

11
Disponível em: <>. A revista possui página virtual e impressa; no caso, este conteúdo só
está na internet, em que localizamos pela primeira vez o olhar de Soler. O termo Guatá, em guarani,
significa Caminho; é produzida e editada pelo filho de pioneiros de Foz com descendência paraguaia,
o jornalista Silvio Campana.
12
Pela página, é possível direcionar para outro site específico. Grande parte desse material lá
está, inclusive as obras de arte, pintadas pela artista. Além do contato via e-mail e aplicativos de
conversas online, mantivemos contato com a herdeira. O carinho e o comprometimento, a humildade
e reconhecimento da importância de nossa pesquisa enriqueceram com material pessoal e familiar
de Carmen.
13 Tradução livre nossa: Nasceu em Assunção, no Paraguai, em 4 de agosto de 1924.
Em 1943, concluiu o ensino médio e, já casada com Marco Aurélio Aponte, foi trabalhar no
Chaco paraguaio. Lá, ela oficia como professora rural bilíngue (guarani-castelhana), quando
o sistema educacional ainda não a estabeleceu, e enfrenta pela primeira vez problemas
sociais: a exploração dos trabalhadores nos curtumes, a subjugação e a marginalização dos
indígenas, as dificuldades dos camponeses, a opressão particular sofrida pelas mulheres da
38

Su padre, librepensador, abogado y periodista, fue embajador en la


Argentina en 1936 y Ministro de Relaciones Exteriores durante el
gobierno de coalición en 1946. Mientras su padre cumplía funciones
diplomáticas concurrió, junto con su hermano, al Colegio Ward, en
Ramos Mejía, provincia de Buenos Aires. Con sólo 12 años, Carmen
presidió el Centro de Estudiantes (de primaria). De regreso al
Paraguay, Carmen y Miquel Ángel finalizaron sus estudios
secundarios en el Colegio Internacional de Asunción.

Ao fazer parte dos movimentos políticos em seu país, a escritora usou sua arte
como arma de libertação, produzindo poemas de autotestemunho, de combate e de
luta – sua mais forte característica é a veia poética revolucionária.

En 1947, se unió a los Febreristas, un movimiento socialista en el que


su hermano, Miguel Angel Soler, ya estaba activo. Participó
activamente en la lucha contra el dictador Moríñigo, deseoso de
abordar las desigualdades sociales que existían en el país.
Después de la Guerra Civil de 1947, fue obligada a exiliarse en Buenos
Aires, donde continuó en contacto con el Bloque de Liberación
Febreristas, defendiendo las posiciones marxistas dentro del
movimiento.
En el exilio comenzó a componer poemas, en los que relató las
experiencias de su vida. En sus poemas están sus definiciones
estéticas, su compromiso, su anhelo por su patria. Los que datan de
1955, 1960 y 1968 contienen su testimonio de la prisión.14

O olhar de Carmen em seus poemas, sua criação, traz a lírica para registrar,
confessar e testemunhar o contexto da ditadura paraguaia, denunciando o abuso do
poder político, destacando-se como marco literário – mesmo que renegado por sua
cultura dominante da época – a jovem escritora renova formalmente a literatura de
sua época.

Últimamente ha surgido entre los nuevos la vigorosa personalidad


de Carmen Soler. Ubicada en la línea social y popular inaugurada
por Julio Correa15, Carmen Soler representa por primera vez en la

cidade. Ao retornar à Assunção, ingressou no Partido Revolucionário Febrerista, militando na


corrente marxista radicalizada, que era de seu irmão Miguel Ángel.
14
Em 1947, ela se juntou aos Febreristas, um movimento socialista no qual seu irmão, Miguel
Angel Soler, já estava ativo. Participou ativamente da luta contra o ditador Moríñigo, ansiosa para
abordar as desigualdades sociais que existiam no país. Após a Guerra Civil de 1947, foi forçada ao
exílio em Buenos Aires, onde continuou em contato com o Bloco de Libertação Febreristas, defendendo
posições marxistas dentro do movimento; no exílio, começou a compor poemas, nos quais relatou as
experiências de sua vida. Em seus poemas, estão suas definições estéticas, seu compromisso, seu
anseio por sua terra natal. Aqueles que datam de 1955, 1960 e 1968 contêm seu testemunho da prisão.
15 De enorme significado cultural para um país bilingue como o Paraguai é a produção
teatral de Julio Correa, autor de grande mérito e iniciador, na década de 1930, do teatro em
guarani com obras inspiradas no contexto histórico e político desses anos e, em particular, na
guerra do Chaco (O País Das Tentações! Por Maria Helena Guedes, 2015, p. 10).
39

poesía paraguaya la irrupción de la mujer como poeta de combate.


En sus poemas breves pero intensos, casi todos ellos en el ritmo
de romance, se combinan el acento popular con una rigurosa
intuición poética, acaso bajo la influencia del cubano Nicolás
Guillén, con quien se encuentra emparentada espiritual e
ideológicamente, más que formalmente. Augusto Roa Bastos
(1960) Revista Universidad, Nº 44, UNL, Santa Fe, Argentina.

O amigo Augusto Roa Bastos acompanha sua arte que respira e pulsa com
originalidade de quem testemunha a história de uma forma que marca além de seu
tempo. Carmen deixou admiradores que a conheceram e leitores que se encantam
por seus poemas, como o estudioso Nicandro Pereyra16:

Hace dos años conocí a esta poeta paraguaya aquí en Buenos Aires.
Entonces escuché de sus propios labios algunas de sus piezas. La oí
largamente. No eran sus labios, sin embargo, los que hablaban; su ser
íntegro era, casi atormentado, el que gemía esta música primitiva (...)
Observaba a esta mujer clara y violenta y veía en ella la imagen de
América proscripta, peregrina, lejana y vecina en cada frase, en cada
resplandor. (…) Después siguió nuestra conversación desde lejos; he
recibido sus poemas, algunas veces desde su país, otros desde el
destierro. Algunos están fechados en la cárcel.
Carmen Soler y su Paraguay son una ligazón entrañable; más bien
hay tierra, tiempo y sueño entre ambos. Yo me complazco en señalar
esta joven voz violenta de la poesía guaraní y su amor por el pueblo
olvidado, sediento de justicia. Su última carta es del 25 de mayo de
1956 y dice en ella: ‘He estado esperando esta fecha para escribirle.
Es mi manera de honrar a ese pueblo hermano’. Extractado de
Propósitos. Buenos Aires (s./d.)17.

Em contato próximo com a paraguaia Carmen, elaboramos a hipótese de que


as artistas, no universo feminino, diante dos dilemas sociais e políticos, aproximam

16
Nicandro Pereyra nasceu em Santiago del Estero, Argentina, em 21 de outubro de 1914,
quando a Primeira Guerra Mundial começou na Europa. Ele residiu em Tucumán de 1919 a 1946. É
estudante regular de direito e estudante livre de letras na Universidade Nacional de Tucumán. Contador
público nacional, ele recebeu seu doutorado em economia em 1969. Ele se juntou ao grupo La Carpa
de escritores e artistas do noroeste, na década de 1940. Ele morreu em Buenos Aires, em 2001.Obras
essenciais: Geografia lírica argentina. Quatro séculos de poesia. José Isaacson (Ediciones Corregidor,
Buenos Aires, 2003) pereyra-nicandro-santiago.html
17
Há dois anos, conheci este poeta paraguaio aqui em Buenos Aires. Então, eu ouvi algumas de
suas peças de seus próprios lábios. Eu a ouvi por um longo tempo. Não eram seus lábios, no entanto,
que falavam; todo o seu ser quase foi atormentado, que gemeu esta música primitiva (...) Vi essa mulher
clara e violenta e viu nela a imagem da América proscrito, peregrino, distante e vizinho em cada frase,
cada brilho. (...) Então ela seguiu a nossa conversa de longe; Eu recebi seus poemas, às vezes de seu
país, outros do exílio. Alguns são datados na cadeia.
Carmen Soler e seu Paraguai são um elo cativante; em vez disso, há terra, tempo e
sono entre eles. Tenho o prazer de trazer essa voz violenta jovem da poesia Guarani e seu amor pelas
pessoas esquecidas, sedenta de justiça. Sua última carta é de 25 de Maio de 1956 e diz: 'Eu estive
esperando por essa data para escrever. É a minha maneira de honrar aquela cidade-irmão. Extraído
de Propósitos. Bons ares. (s.d.)
40

a produção da arte escrita a um novo conceito de olhar na literatura, da experiência


como matéria-prima para produção literária.
Já a visão da escritora chilena Maria Luisa, nos dois romances, encara – olho
no olho - a literatura criolista18 e de cunho masculino e expõe o universo social
feminino de 1930. Seus romances de estreia - A última névoa (1935) e A Amortalhada
(1938) - inovam, rompem e fitam o olhar da morte, tema que ceifa a imaginação. No
entanto, a jovem se aventura e marca a narrativa pelo olhar amortalhado da
protagonista Ana Maria, impondo ao leitor a análise e a maneira de olhar a imagem
das mulheres.
As criações literárias das escritoras integram a literatura latino-americana,
destacando a escrita de autoria feminina na primeira metade do século XX,
constando em suas produções as temáticas mais pungentes do seu tempo: falam
de angústia, da perplexidade e do medo diante do fluir do tempo, do anseio absoluto
de eternidade, da rebeldia diante do absurdo do machismo e da política. As jovens
escritoras detêm-se especialmente na experiência feminina perante os dilemas
sociais, culturais, com força expressiva nas relações humanas, os conflitos, as
denúncias e o registro por igualdade e justiça. Esse olhar para o mundo, desgarrado
e solitário, que em Bombal é irremediavelmente trágico, em Soler, se volta ao apelo
por justiça e ética social.
Distintos territórios, cada qual com sua linguagem e seus olhares. Carmen,
ao ser exilada pela primeira vez, residiu na Venezuela; na segunda vez, na
Argentina; na terceira vez, na Suíça. Maria Luisa formou-se na França, morou na
Argentina, Estados Unidos e Inglaterra. Vemos que ambas receberam diferentes
formas de conhecimento, o que nos possibilita indagarmos o que viram acerca do
olhar, do ver e do pensar em suas diásporas?
Em relação ao olhar do narrador, da arte e do social, destacamos o estudo
de Benjamin (1985) com essa reflexão sobre o tato e a ótica:

A massa é a matriz da qual emana, no momento atual, toda uma


atitude nova com relação à obra de arte. A quantidade converteu-se
em qualidade. O número substancialmente maior de participantes
produziu um novo modo de participação. O fato de que esse modo
tenha se apresentado inicialmente sob uma forma desacreditada não

18 O criolismo é um movimento literário que foi Influenciado pelo naturalismo; procurou


retratar a vida e os costumes do mundo popular, identificando assim as características
distintivas da identidade local. No Chile, seu expoente máximo era Mariano Latorre.
http://www.memoriachilena.cl/602/w3-article-3380.html .
41

deve induzir em erro o observador. Afirma-se que as massas


procuram na obra de arte distração, enquanto o conhecedor a aborda
com recolhimento. Para as massas, a obra de arte seria objeto de
diversão, e para o conhecedor, objeto de devoção. (BENJAMIN,
1985, p. 192).

Sobre o contexto pelo qual passaram as escritoras na época da guerra, Bombal


estava vivendo nos Estados Unidos e Soler já enfrentava a ditadura e sua primeira
prisão. Neste aspecto, analisamos a obra Magia e técnica, arte e política Ensaios de
Walter Benjamin (1985).
Quanto à publicação dos poemas de Carmen Soler ao mercado editorial,
escolhemos Poemas, publicado em 1970, por ser o que encontramos em 2016, o que
não quer dizer que não houve publicações em anos anteriores, já que comprovamos
esse fato na página da escritora, mantida pela família.
Os primeiros poemas foram publicados em 1953 na Argentina e Alemanha nas
revistas Glamour, Wound Skylark, Song do progresso: “Pólvora”, “Espiga”, “Mais
minhas palavras”, “La Obrerita” e “La Alojera” (1970).
Em nota manuscrita (sem data), Carmen registrou19:

Publicaciones en periódicos extranjeros como en Uruguay en los


periódicos: La Plata, Tribuna Popular, La Mañana, Gazeta de la
Cultura, Punta del Este, La Iris, Cultura.
En la prensa Argentina: Propósitos, El Chubut y la Revista Literaria
Pan de Azul (Prov. De Bs. As.). En Ecuador: El Comercio (Quito).
En Cuba: La revista literaria Portada.
En Alemania Occidental: revista literaria KOMMA, traducida al alemán
por Walter Braun.
Yo noté que en Italia algunos poemas fueron publicados, traducidos al
italiano, pero los cortes no vinieron para mí. Lo mismo en Viena.
"Añade Carmen Soler en su manuscrito. (Portal Guarani).

Continua a esclarecer, diante do montante de material retirado e levado pela


polícia durante as três prisões pelas quais passou:

Estos poemas, ensayos y reportajes son publicaciones que podrían


reconstruir la memoria, un primer libro que publicaría en 1955 y me
secuestró a la policía en una operación en julio de 1955.
Actualmente, estoy completando un segundo (...). Me gustaría que
fuera registrado que en aquel año de 1955, para esos poemas, fui a la

19
No Equador: El Comercio (Quito). Em Cuba: A revista literária Portada.
Na Alemanha Ocidental: revista literária KOMMA, traduzida para o alemão por Walter Braun.
Eu notei que na Itália alguns poemas foram publicados, traduzidos para o italiano, mas os cortes não
vieram para mim. O mesmo em Viena". Acrescenta Carmen Soler em seu manuscrito (Fonte: Portal
Guarani: <http://www.portalguarani.com/559_carmen_soler.html>) Tradução livre nossa.
42

prisión femenina y luego fui deportada a Clorinda. Además, la policía


prohibió a los periódicos locales publicar cualquier cosa mía.
Aquí, la primera persona que los llevó fue Azucena Zelaya, que les dio
una dirección de radio ya en 1955 y más tarde incluida Alojera y La
Obrerita (en castellano, como parte Guaraní es Azucena Zelaya) en
su Columna en el diario Paraguayo.
En el exterior, Reyna Miers, escritora uruguaya, para cuyo entusiasmo
de todas las publicaciones de Montevideo, Ecuador y Cuba.
Los de Europa son debidos a Walter Braun y en Argentina al poeta
Nicandro Pereyra. Esto, junto con la aprobación de Roa Bastos, fue el
incentivo recibido, en medio de críticas que a veces son muy violentas
y contundentes.
Intelectuales, artistas y poetas amigos - Luis María Martínez; Felix de
Guarânia, Olga Blinder - entre otras - circuló sus poemas, durante
años, cuando llegaron a sus manos. Hedy González Frutos los incluyó
en sus recitales a pesar de las prohibiciones.20

É provável que Carmen tenha registro para marcar suas publicações fora do
Paraguai, haja vista que em sua primeira prisão todo seu material de escrita e de
leitura foi levado pela polícia. Os textos do manuscrito seguem na íntegra, conforme
está na página oficial de Soler, de forma a evitar interpretação equivocada de que
possa ter começado a escrever próximo da década de 1970, por coincidir com sua
primeira obra publicada.
Toda sua arte foi levada e desaparecida no contexto político em que foi
produzida. Walter Benjamin (1994) refere-se a esse conflito, vivido pela cultura e a
guerra que travam com o domínio capitalista e política social, no texto intitulado
“Estética de Guerra”, em que o elogio inicial chega ao tom de ironia.

A guerra é bela, porque conjuga numa sinfonia os tiros de fuzil, os


canhoneios, as pausas entre as duas batalhas, os perfumes e os
odores da decomposição. A guerra é bela, porque cria novas
arquiteturas, como a dos grandes tanques, dos esquadrões aéreos em

20 Estes poemas, ensaios e reportagens são publicações que poderiam reconstruir a


memória, um primeiro livro que publicaria em 1955 e me sequestrou a polícia em uma
operação em julho de 1955.
Atualmente, estou completando o segundo. Eu gostaria que fosse registrado que,
naquele ano de 1955, para esses poemas, eu fui para a Prisão Feminina e depois fui
deportada para Clorinda. Além disso, a polícia proibiu jornais locais de publicar qualquer coisa
minha.
Aqui, a primeira pessoa que os levou foi Azucena Zelaya, que lhes deu um endereço
de rádio já em 1955 e, mais tarde, incluída Alojera e La Obrerita (em castelhano, como parte
Guarani é Azucena Zelaya), em sua Coluna no jornal Paraguayo.
No exterior, Reyna Miers, escritora uruguaia, para cujo entusiasmo devo todas as
publicações de Montevidéu, Equador e Cuba.
Os da Europa são devidos a Walter Braun e na Argentina ao poeta Nicandro Pereyra
(Fonte Portal Guarani: <http://www.portalguarani.com/559_carmen_soler.html>).
43

formação geométrica, das espirais de fumaça pairando sobre aldeias


incendiadas, e muitas outras. (BENJAMIN, 1994, p. 195-196).

Neste manifesto, denominado Marinetti21, o olhar que Benjamin lança em


relação à guerra é o que se tem diante dos olhos, para produzir, criar e registrar em
meio a destroços em que o olhar paira. E cita o futurista, em um dos fragmentos de
La battaglia di Tripoli22, em que o escritor, consciente do novo (destruído) que a guerra
faz ao humano em ter diante dos olhos a degradação, passa do olhar para a sua mão
por meio da escrita:

Parece desprender-se do corpo e prolongar-se em liberdade, bem


distante do cérebro, o qual, de algum modo também desprendido do
corpo agora aéreo, observa, bem alto e com assustadora lucidez, as
frases imprevisíveis que saem da caneta. (PAUL VIRILIO, 2005, p. 43-
44).

Walter Benjamin ressalta que o artista como produtor artístico deposita na arte
a transformação social, pois, por meio de sua técnica, o humano contempla a si:

Esse manifesto tem o mérito da clareza. Sua maneira de colocar o


problema merece ser transposta da literatura para a dialética.
Segundo ele, a estética da guerra moderna se apresenta do
seguinte modo: como a utilização natural das forças produtivas é
bloqueada pelas relações de propriedade, a intensificação dos
recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma
utilização antinatural. Essa utilização é encontrada na guerra, que
prova com suas devastações que a sociedade não estava
suficientemente madura para fazer da técnica o seu órgão, e que
a técnica não estava suficientemente avançada para controlar as
forças elementares da sociedade. Em seus traços mais cruéis, a
guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os
poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no
processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de
mercados. (BENJAMIN, 1994, p. 196).

O filósofo analisa profundamente o que o homem moderno faz com a técnica


evoluída e propõe outras sugestões de existência, propiciando-nos novamente o olhar

21 Poeta futurista, Marinetti publicou o romance L‟aeroplano del Papa (1912) e a


antologia de crônicas La battaglia di Tripoli (1911). Ambas as obras tratam da ligação entre
a guerra e a perspectiva do olhar aéreo, possibilitado pela expansão da aviação e as novas
técnicas de explorar o olhar em filmagens.
22 Manifesto que está na obra de Paul Virilio (2005, p. 43-44). Paul Virilio é um filósofo e
urbanista que analisa criticamente o histórico político do desenvolvimento de um pensamento
e de um conhecimento voltado à produção artística, literária e ao significado das tecnologias
no tempo e no espaço (SIQUEIRA; WOLKMER; PIERDONÁ, 2015).
44

e a forma humana de decidir o que fazer, como se o ver, o ser e o fazer fossem
sequências de decisões.
O corpus de análise escolhido para esta pesquisa, como visto anteriormente,
traz a lírica e a prosa com intensa verossimilhança, pois as escritoras vivem realidades
conflituosas e trágicas, mas produzem situações fictícias ancoradas no real. Na obra
de Carmen Soler, Poemas, em nota de capa, publicada em 1970, Ruben Yacovsky diz
que os poemas reunidos no livro foram tirados de três outros em que Carmen Soler
escreveu, porém, só publicou postumamente três obras: Na tempestade, Poemas em
dois tempos e A casa assombrada.
A análise dos temas que levaram à escrita dos poemas solerianos são - a pátria,
as mulheres, o exílio e o cárcere – todos são fundamentais ao estudo das obras. Há
ainda as obras de artes que Carmen produziu, após 1968, em que trabalharemos a
expressão do olhar nas personagens reproduzidas nas telas pintadas. Em virtude da
perseguição que a artista sofreu, apenas uma pintura recebeu a assinatura e a data,
por cautela.
Nos romances de Maria Luisa, A última névoa e A Amortalhada, temos duas
histórias que são narradas a partir de um ponto em comum. Nos dois enredos, a
personagem central é mulher, narradora de sua própria história, contada a partir de
casamentos, sentimentos sufocados, fatos que se confundem com o ter consciência
da vida melancólica, sentimental, sensual, sexual, libidinosa, profunda e metafórica.
As tramas por nós analisadas são independentes, mas se fundem pelo olhar
das personagens que contam suas rotinas. Apesar do limitado número de páginas, a
autora dispõe de um olhar delicado e profundo, sem deixar de lado as questões que
permeiam a submissão, a dominação, a opressão e o anonimato. As narradoras têm
uma relação intensa com a natureza ligada pelo cabelo, como um elo de energia e
afinidade, dialogando, segredando, relacionando onde aflora a sexualidade, a libido
altera a entrega ao amor próprio, o sentir-se mulher, até que os olhos das heroínas
encontram a paixão e a entrega carnal e instintiva.

[…] Pienso en la trenza demasiado apretada que corona sin gracia mi


cabeza. Me voy sin haber despegado los labios. Ante el espejo de mi
cuarto, desato mis cabellos, mis cabellos también sombríos. Hubo un
tiempo en que los llevé sueltos, casi hasta tocar el hombro. (BOMBAL,
2013, p. 18).23

23 Penso na trança apertada demais que coroa sem graça minha cabeça. Vou embora
sem ter desgrudado os lábios. Diante do espelho do meu quarto, solto meus cabelos, meus
45

A miserabilidade da rejeição, do abandono, o adoecer solitário, a depressão,


solidão, dor, a necessidade de aquietar a fêmea para entregar-se ao suicídio.
Relações que a sociedade e o discurso machista e criollista impunham no contexto de
1930.

Regina tiene los ojos entornados y respira con dificultad. Como para
acariciarla, toco su mano descarnada. Me arrepiento casi en seguida
de mi ademán porque, a este leve contacto, ella revuelca la cabeza
de un lado a otro de la almohada emitiendo un largo quejido. Se
incorpora de pronto, pero recae pesadamente y se desata entonces
en un llanto desesperado. Llama a su amante, le grita palabras de
una desgarradora ternura. Lo insulta, lo amenaza y lo vuelve a
llamar. Suplica que la dejen morir, suplica que la hagan vivir para
poder verlo, suplica que no lo dejen entrar mientras ella tenga olor a
éter y a sangre. Y vuelve a prorrumpir en llanto.
A mi alrededor murmuran que vive así, en continua exaltación, desde
el momento fatal en que... El corazón me da un vuelco. Veo a Regina
desplomándose sobre un gran lecho todavía tibio. Me la imagino
aferrada a un hombre y temiendo caer en ese vacío que se está
abriendo bajo ella y en el cual soberbiamente decidió precipitarse.
Mientras la izaban al carro ambulancia, boca arriba en su camilla,
debió ver oscilar en el cielo todas las estrellas de esa noche de
otoño. Vislumbro en las manos del amante, enloquecido de terror,
dos trenzas que de un tijeretazo han desprendido, empapadas de
sangre. Y siento, de pronto, que odio a Regina, que envidio su dolor,
su trágica aventura y hasta su posible muerte. Me acometen furiosos
deseos de acercarme y sacudirla duramente, preguntándole de qué
se queja, ¡ella, que lo ha tenido todo! Amor, vértigo y abandono.24
(BOMBAL, 2013, p 64).

cabelos também sombrios. Houve tempo emque eu os usava soltos, quase ate tocarem o
obro. Tradução Hosiasson, 2013, p. 18
24 Regina tem os olhos entreabertos e respira com dificuldade. Como para acariciá-la
pego sua mão descarnada. Arrependo-me quase em seguida de meu gesto porque, ao leve
contato, ela sacode a cabeça de um lado para outro do travesseiro, emitindo um logo gemido.
Ergue-se de repente, mas recai pesadamente e desabafa então num pranto desesperado.
Chama pelo amante, grita-lhe palavras de ternura dilacerante. Insulta-o, ameaça-o e torna a
chamá-lo. Suplica que a deixem morrer, que a façam viver para poder vê-lo, suplica que não
o deixem entrar enquanto ela tenha cheiro de éter e de sangue. Volta a prorromper em pranto.
Ao meu redor murmuram que vive assim, em contínua exaltação, desde o momento
fatal em que…
Meu coração dá um pulo. Vejo Regina desmanchando-se sobre um grande leito ainda
morno. Imagino-a agarrada a um homem, temendo cair nesse vazio que se caber embaixo
dela e no qual decidiu soberbamente se precipitar. Enquanto a colocavam na ambulância,
deitada para cima na maca, deve ter visto oscilar no céu todas as estrelas nesta noite de
outono. Vislumbro nas mãos do amante, enlouquecido de terro, duas tranças que lhe cortaram
de uma tesourada, empapada de sangue. Sinto de repente que odeio Regina, que invejo sua
dor, sua trágica aventura e até mesmo sua possível morte. Sou acometida por desejos
furiosos de me aproximar e de sacudi-la duramente, para lhe perguntar de que se queixa ela
que teve de tudo! Amor, vertigem e abandono. (HOSIASSON, 2013, p. 64)
46

iQUe no daria, sin embargo, mi pobre Alicia, porque te fuera concedida


en tierra una particula de la felicidad que te est6 reservada en tu cielo.
Me duele tu palidez, tu tristeza. Hasta tus cabellos parecen habdrtelas
desteiiidos las penas. ?Recuerdas tus dorados cabelIos de niiia? iY
recuerdas la envidia mia y la de las primas? Porque eras rubia te
admiribarnos, te creiamos la miis bonita. ?Recuerdas?25. (BOMBAL,
1986).

A admiração durante a leitura, conforme o leitor vai virando as páginas, está


nos vinte poucos anos de Maria Luisa, em que a técnica literária de deixar a narradora
do nevoeiro anônima é questão que nos fez, por diversas vezes, olhar a capa e
admirar a coragem ao assinar seu nome com todas as letras, deixando a imagem da
mulher tão declarada no romance, assumindo corajosamente a narradora anônima e
a protagonista com olhos lindos, que não se fecharam nem com a morte.
O romance A última névoa de Maria Luisa é polissêmico26 – possui múltiplos
significados e vários sentidos -, iconoclasta em vários aspectos e enxuta. É
provavelmente em função da brevidade de sua produção que a crítica costuma referi-
la também de forma célere, ainda que elogiosa. Imbert (2000, p. 252), quando trata
da narrativa chilena (“principalmente prosa”, é como nomeia esse capítulo dos
nascidos após 1900), determina: “Se iniciarmos com narrativas não realistas, o nome
principal é o de María Luísa [...] em que o humano e o sobre-humano aparecem em
uma zona mágica, poética pela força da visão, e não por truques de estilo”27.
Kahmann (2014), na tese Desafios éticos em face da obra de Maria Luisa,
ressalta que:
Se não fosse a escolha pela prosa, Bombal poderia ser incluída no rol
de latinoamericanas que oscilavam ora para a escrita intimista, como
a de Gabriela Mistral, com quem Maria Luísa conviveu e a quem
sempre admirou, e ora para o feminismo militante, como o de Alfonsina
Storni, que realizou uma espécie de síntese entre o romantismo e o
simbolismo. A escrita de María Luísa flerta com o surrealismo, o

25 O que não daria eu, contudo, minha pobre Alicia, pqra que lhe fosse concedida na
terra uma pequena parte da felicidade que lhe está reservada emseu céu! Sofro por sua
palidez, por sua truisteza. \parece até que seus cabelos descoraram devido aos desgostos.
Você lembra que cabelos dourados tinha em criança? E lembra a inveja que tínhamos eu e
nossas primas? Porque você era loira nós a admirávamos, achávamos que era a mais bonita.
Lembra? Tradução BERNARDINI e DEL PARDO, 1986, p,18.
26
“Polissemia”, do grego polysemos (poli = muitos, sema = significados), significa “algo que tem
muitos significados”. Sendo assim, polissemia é a propriedade que uma palavra tem de apresentar
vários sentidos.
27
Tradução de Andrea Cristiane Kahmann, UFRGS Porto Alegre, RS, Brasil
(andreak.ufpb@gmail.com) do trecho: “Si principiamos con narraciones no realistas, el nombre principal
es el de María Luísa Bombal [...] donde lo humano y lo sobrehumano aparecen en una zona mágica,
poética por la fuerza de la visión, no por trucos de estilo”.
47

onírico, o transcendental sensual e também com o mórbido. Escreve


em prosa, mas uma prosa poética, fortemente icônica, transbordante
em lirismo e na exploração dos sons e dos ritmos. (KAHMANN, 2014,
p. 21-22).

Ainda que tenha trilhado o caminho dos romances, contos, crônica poética,
críticas literárias e uma série de produções não consagradas, como roteiros
melodramáticos para o incipiente cinema criollo, Bombal obteve êxito em função de
seus romances. Primeiramente, publicou duas em espanhol: A última névoa (La última
niebla, Buenos Aires: Editorial Colombo, 1934) e A amortalhada (La amortajada,
Buenos Aires: Sur, 1938). Depois, indo morar nos Estados Unidos, reescreveu A
última névoa em inglês, sob o título The House of Mist. Essa obra é mencionada como
reescritura e não como tradução, por assim referir a própria María Luísa em discurso
na Academia Chilena de Lengua, em 22 de setembro de 1977: “Escrevi em inglês uma
nova versão da minha Última névoa – é outra novela, eu diria, ainda que baseada no
mesmo tema inicial do meu livro em espanhol” (BOMBAL, 1996, p. 316).
A partir dessa versão inglesa, seus escritos tomaram impulso em outros países:

Foi a partir daquelas publicações minhas… em inglês, que minhas


duas obras foram traduzidas e publicadas em francês, alemão,
japonês, sueco, tcheco-eslovaco. No Brasil, House of Mist, traduzida
ao português por Carlos Lacerda, com o título: Entre a vida e o sonho,
1945, obteve o prêmio de livro do ano. (BOMBAL, 1996, p. 316).

A trama é uma sequência de ações que reúne o espaço envolto em nevoeiro


com clima de morte, suspense, incertezas, paixão, traição e relações familiares que
acontecem em uma casa de campo com um lago, onde as relações são dominadas
pelos personagens masculinos, mas a narrativa é centrada na protagonista. Todos
esses elementos são arranjados por mão firme, hábil em redigir a trama que, depois
de enganar o leitor com olhares despistados, entra, como no início, o clima de traição
e morte.
A fenomenologia serve de sustentação entre as obras escolhidas para análise,
pois ela diz que devemos reaprender a ver o mundo, conceito que acompanha a
escolha pela arte paraguaia, na linguagem oral: “você só vê o que você quer”.
Ao desenvolver A Fenomenologia do olhar, Alfredo Bosi (1993, p.66) observa
que “há um ver por ver, sem o ato intencional do olhar. E há um ver como resultado
obtido a partir de um olhar ativo”. É a essa segunda categoria do olhar observador,
48

reflexivo, expressivo e analista que recorremos, em função de perceber presente nos


objetos deste estudo.
As teorias de Merleau-Ponty, em sua obra O Olhar e o Espírito, interligarão o
eu lírico soleriano; e a narradora anônima e Ana Maria nos romances de Bombal. Tais
olhares intencionais ligam-se ao ambiente de cada contexto das obras, revelando-nos
não só o sujeito que fita, mas também o “mundo percebido”28, os dois romances, “os
fios intencionais que os ligam ao seu ambiente". Ainda, revelam não só o sujeito que
percebe, mas também o "mundo percebido", como defende a teoria da
Fenomenologia de Merleau-Ponty, que é o que permitirá pensar a síntese perceptiva
sem um ato efetivo de ligação, sem uma potência ligante: o meu corpo, como sujeito
de percepção, goza de um saber habitual do mundo, de uma "ciência implícita ou
sedimentada".
A narração é primordial na análise do eu lírico e as narradoras do corpus
encaram a arte literária como uma forma de expressão ou representação que carrega
em si o olhar sobre o mundo, sobre a vida e sobre a sociedade em geral, envolvendo
os poemas com as pinturas de Carmen Soler. Essas leituras são de fundamental
importância para compreendermos a sociedade sobre outro ponto de vista que não
apenas aquele visível, mas também aquele oculto nas palavras escritas por Carmen
e Maria Luisa, na primeira metade do século XX, no contexto latino-americano.
Salientamos, ainda, que por estarmos envolvidos pelo tema Olhar, faltando
tempo e espaço de laudas, adiantamos, fora da produção dissertativa que, em anexo
externo, consta o pequeno Dossiê (inicial) de Carmen Soler, no qual se encontram
fotografias da autora com legendas e textos que se tornaram ícones no Paraguai e
nos países em que viveu.
No plano de trabalho, o dossiê receberá as páginas referentes a cada imagem.
O pequeno documento foi elaborado no formato de investigação confidencial. Como
o olhar e as reflexões incidem em vários olhares entre fronteiras, surge ambivalência
cultural da contemporaneidade. O homem articula esforços em economizar tempo, há
presença potencializada das mídias e o cume cultural da imagem chega como um
quadrado com marcas abstratas que o leva a outros olhares.
Nessas leituras, deduzimos que somos visuais com a potencialização das

28 MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2004 p. 188
MERLEAU-PONTY. Phénoménologie..., p.188.
49

mídias e o ápice da cultura da imagem. Os sujeitos estão ávidos por informações, das
mais diferentes ordens; embora as imagens pareçam uma, no entanto, se
transformam em múltiplas. O ato de olhar segue tendências espaciais, temporais e
culturais com as tecnologias e a utilização do celular. Como exemplo: usamos na capa
do material, que está no envelope pardo “o olhar tecnológico”, o código de barras 2D
(Qr code)29, direcionando o olhar para outro suporte de leitura em URL.
Esses materiais de estudos sobre Maria Luisa estão também em filme Gifs
BOMBA(L), um novo olhar com velocidade intensa e texto mais curto bibliográfico. O
minidossiê traz imagens localizadas no Memorial Chileno, mas os dossiês não fazem
parte do corpo do texto, pois, se inseríssemos como anexo, ficaria solto pela falta de
contextualização dialógica e teórica neste suporte30. No entanto, o filme de Carmen
Soler, a música do poema, bem como o filme Gifs, estão no símbolo QRCODE na
capa da Dissertação.
Os filmes “Dossiês” de Carmen Soler e Maria Luisa Bombal mostram as
imagens e fatos ou ocasiões sociais da vida das autoras, elaborados com a intenção
de aproximar o leitor das escritoras, já que ver também é conhecer.

29 Conjunto de imagens simbólicas que carregam um pedaço de informação, que será


lida por um leitor de códigos de barra 2D e o levará a outra informação por endereço URL,
podendo ser de qualquer tamanho, formato e imagens. É necessário usar o celular com
aplicativo para QR, que é a sigla de Quick Response, que significa resposta rápida.
30 O material que denominamos inicialmente de Dossiês, não está vinculado nesta
Dissertação, e sim, em elaboração à parte, prévia da pesquisa futura do material no plano de
trabalho em andamento. Também, acrescentamos os de Maria Luisa, A Abelha de Fogo, com
estrutura parecida, mas com material que lembra literatura e cinema, como a capa vermelha,
a qual é associada ao tapete vermelho; isso está separado da dissertação, porém, poderemos
acrescentar na evolução final da pesquisa.
50

[...] O texto conecta entre si também coisas distantes num longo intervalo
de tempo como se sucedessem imediatamente uma à outra, de modo a
parecer que nenhuma distância de tempo tenha separado coisas que
nenhum intervalo do discurso separa. [...]

(Acir Dias da Silva)


51

4 O OLHAR-DE-LINCE NO BRASIL

“O olhar percorre as ruas como se fossem palavras escritas”


(Italo Calvino).

Nosso estudo sobre o olhar na lírica soleriana destaca cada um dos poemas e
seus múltiplos olhares; não apenas autoria e obra, mas envolve o olhar do leitor destes
poemas sob os quais ela escreveu. E perscrutar não somente o jeito de olhar que é
peculiaridade de cada um deles, mas também o modo como, em cada um, é tratado
o próprio tema do olhar.

Espejismo31

Te pensé
y exististe
Y como quise fuiste perfecto,
amplio, pleno.

Y lo supiste y aceptaste
brillar- como la luna - con luz ajena.

Y fuiste mi reflexo, y mi deseo fuiste y mi espejo.

Hasta que al fin un día


me ovidé de pensarte y desaoarecuste.

Eso es todo

(SOLER, 2014, p. 14).

Miragem é um monólogo que induz dúbias ideias; o eu lírico, como se saísse


do conto de fadas a Lâmpada do Aladim (versão feminina) e descrevesse seus três
desejos românticos. No entanto, o eu lírico considera que, por meio dos desejos que
fez, possua o domínio do seu amado. Assim, almeja: o perfeito, amplo e pleno. O ser
amado, sabendo dos desejos, diz o que ela quer ouvir, faz o que pede, a ilude em seu
devaneio. Aceita brilhar, com a luz extra de quem fez os pedidos.
Tal conquistador brilha como a lua, que só aparece por refletir a luz do sol, no
caso, o eu lírico é como se fosse o sol. Essa metáfora se torna o reflexo e os desejos

31 Tradução livre nossa – Entre Los Poetas Míos, Carmen Soler, p 14 Miragem –
Biblioteca Virtual Omegalfa – da Obra Poemas, Vol 70, 2014p 14, MiragemTe pensei/ e
exististe// E como quis foi/ perfeito/ amplo/ pleno.// E você sabia/ e aceitou/ brilhar/ - como a
lua -/ Com luz extra.// E foste meu reflexo,/ E meu desejo foste,/ E meu espelho.// Até que ao
fim./ um dia/ Me esqueci de pensar em você/ E desapareceste// Isso é tudo.
52

do eu lírico, que também é responsável por tamanha exploração egocêntrica do ser


amado, chegando a ser até espelho do eu lírico.
Com o passar do tempo, percebe que tais desejos ela já os tinha. A crítica de
Carmem é de que o feminino acredita que seus sonhos de felicidade amorosa estão
em relações construídas por padrões que brilham, refletem. E utiliza da ironia e
inocência para seguir, mas antes desaparece com o “brilhante”, pois sabe que é luz
para iluminar e não para brilhar apenas.
Mirar, espelhar – ambos podem ser considerados homólogos em seu sentido
ao olhar que aqui exploramos, uma vez que olhar e literatura envolvem mirar um texto,
um poema, um romance e espelhar suas diversas significações sociais, culturais e
políticas. O eu lírico com a expressão “Até que ao fim” ressalta a sensação de
cansaço, de concluir a situação. Assim, dispõe nos versos finais o tom fabuloso com
misto de inocência, concluindo: “Um dia. Me esqueci de pensar em você. E
desapareceste. Isso é tudo”.
Na criação lírica, tudo que o olhar vislumbra pode ser rima; depende de onde
se vê, o que se vê e como tal imagem ou situação será transcrita nos versos. A
tradição lírica, no caso de Carmen, o jogo paranomásico da rima, perde a ótica, a
limitação do que viveu com as prisões que registrou com sua poesia revolucionária
que, mesmo com o trauma, fazia versos livres, antítese percebida em cada palavra
escolhida, mas de uma sensibilidade e cuidado para não escandalizar. No entanto,
essa amenidade de artista não fugia também da indignação e revolta, como cita
Perrone-Moisés, no artigo que faz parte da obra O olhar, de Adauto Novaes: “O véu
que perturba a visão da vela impede que este revele o que venda, deixando seu
contemplador no escuro angustiante da noite” (NOVAES, 1993, p. 328).
Carmen examina com o olhar feminino aprisionado o que acontece em sua cela
de calabouço, por um pequeno diâmetro aberto pelo destino no telhado; esse fiozinho
de luz, por um teimosinho fio da lua, imagina tudo que ouve, sente, cria e reproduz,
deixando a visionária no escuro angustiante do calabouço.
O pensamento soleriano está, com efeito, embebido na pureza, uma vez que
se inscreve na natureza e registra o divino pela simplicidade, do uni para o pluri, do
aqui para o universal, do macrocosmo da experiência que domina com elementos
simples, comuns, não visto, traçando em sua lírica o místico e o político. Essa
característica miúda, um fio argumentativo, permite amarrar os traços às referências
de maior impacto na filosofia de Carmen, independentemente do capitalismo histórico,
53

do materialismo histórico, da cultura paraguaia e da política da ditadura. Reiteramos,


contudo, que Carmen conquista o lugar específico na literatura latino-americana e na
lírica de seu país.
Para Soler, tudo o que olha é pão para seu espírito, céu para o seu voo, sol
para nutrir a semente dos seus versos, fio de esperança em tinta, em tela da
imaginação em um futuro. Sentir-se viva, mesmo estando “amortalhada”, é reconhecer
os símbolos ocultos da época triste da História paraguaia, transformada em fatias de
poemas, que, em sua maioria, possuem entre três e cinco estrofes e passam de nove
a 25 versos. Mas, diferentemente dos tradicionais poetas românticos e simbolistas,
não almeja o mundo interior onírico como futuro e meta; almeja apenas as portas da
gaiola aberta para poder voar. Tal característica de desejo de justiça e liberdade a
torna poeta filósofa, que questiona como a olham, como olham seu povo e registra
sua incapacidade de mudar o que lhe pesou tanto estar presa ao que via. Podemos
encontrar esse contexto no poema “A Alondra Herida” (SOLER, 1977, p. 16).
A arte literária, no entanto, pode colaborar no sentido de superarmos esse
distanciamento em relação à vida e a quem a produziu – a sua autoria. Ela possui a
mágica de lapidar o comum, o banal ou, no que se refere à escrita, dar vida a outro
mundo paralelo, tão envolvente que, ao chegar à nossa visão, o que costuma ser
condenado à inércia (por nossa ilimitada sensibilidade) pode apagar o que passa
despercebido aos nossos olhos pelo automatismo da rotina e nos oferece luz, brilho e
significados para o que era raro, a realidade.
Para Perrone-Moisés e sua teoria sobre “Pensar é estar doente dos olhos”, na
já citada obra O Olhar de Adauto Novaes, explana, já com o título, e vai mais adiante:

Cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto visível ao


olhar do mundo. Cada corpo dispõe de um jeito de olhar que lhe é
próprio e essa particularidade condiciona também sua visibilidade
como corpo diferente dos outros. Inicio com essas evidências para
preparar o enfoque de um fenômeno poucas vezes visto; o de uma
pessoa que não contemplou com dispor de um único olhar mas quis
dispor de vários, enfrentando o risco de se perder a si mesma de vista.
(NOVAES, 1993, p. 327).

Soler e sua poesia expõem o que viu e teve como experiência, transmitindo
esse olhar “calabouço” em sua arte, sendo capaz de denunciar com o simples, o
comum e o que ninguém vê ou quer ver.
54

O filósofo Maurice Merleau-Ponty, em O Visível e o Invisível, introduz tal


reflexão e Interrogação, de que essa percepção sensitiva do artista em relação ao
homem comum é justamente esse automatismo. Não paramos para olhar:

Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos - fórmulas


desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e ao filósofo
desde que abre os olhos, remetem para uma camada profunda de
“opiniões” mudas, implícitas em nossa fica. Mas essa fé tem isto de
estranho: se procurarmos articulá-la numa tese ou num enunciado, se
perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa
ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e
contradições. (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 17).

A atenção que o filósofo Walter Benjamin dedica aos fenômenos da


modernidade, com o objetivo da “história das mentalidades”, o levou à metáfora “As
flores do mal” para compreender o capitalismo modernista. A preocupação de
Baudelaire em relação ao materialismo histórico, de estar na contramão da história,
ou seja, de produzir a arte literária sob o olhar dos vencidos, contexto em que tudo
tem seu preço; a arte poética de Baudelaire apodera-se especificamente de elementos
da cultura diante dos seus olhos para, por meio da escrita, revelar o martírio em seu
interior. O sentido perturbador em “As flores do mal” é, segundo Benjamin, uma forma
de se opor ao empreendimento capitalista.
A desarticulação das relações espaçotemporais, intrínseca à modernidade,
está na lírica de Baudelaire como forma de resistência. O caráter enigmático de suas
alegorias está singularmente ligado à história e é especificamente por não transcender
a história que sua poesia contém enigmas e não mistérios.
O próprio título Carmen sugere o eu lírico observador, que descreve o foco
central e seu desfecho, o que já é entregue aos olhos do leitor. A personificação é
proposital no sentido forte e intenso da antítese liberdade/ prisão, voo/ ferida, filho/mãe
como elementos a serem intenções de quem lê para se aproximar da linguagem
paralela diante da mensagem, séria, ideológica, humana e política deixada pela mãe
para o seu filho.
55

La alondra herida32

Yo no puedo cantarte, hijo de mi tierra.


Mi voz, entrelazada a tu corona de espinas
sólo puede sangrar por tus heridas.

Yo no puedo cantarle a tu miseria, a tu


debilidad de anquilostomas,
al vacío de tu hambre acostumbrada.
Yo no puedo cantar le a tus cadenas, al
yugo que doblega tus espaldas,
al catre pelado bajo el techo que llueve
su importância de paja.

Yo no puedo cantarte y no te canto. Que


cante pra ti la alondra ciega, em su
artística jaula emparedada, su estupidez
de flores perfumadas, amores, besos,
aguas cristalinas. Que te hable el arroyo
que murmura, de la fuente que baja
cantarina,
del jazmín que perfuma nuestras calles
e las noches de luna.
Que te cante la alondra ciega, yo veo tu
destino de hospital sin vendas:
yo soy la alondra herida.

Yo no puedo cantarte y no te canto. Yo


grito na tu voz de rebeldía,
yo golpeo os tu puño libertario.
Soy ladrillo no tu pecho amurallado,
destello na tu mirada taladrante,
palabra, na tu mensaje solidario.
Soy fibra de tu carne el trabajo,
soy llama la antorcha que levantadas el
arco de triunfo de tu brazo.

Yo ansío tus ansias postergadas:

32 Tradução livre nossa. A cotovia ferida – Eu não posso cantar para ti, filho de minha
terra./ Minha voz, entrelaçada a tua coroa de espinhos/ só posso sangrar por tuas feridas. //
Eu não posso cantar a tua miséria/ a tua debilidade de cansaço,/ O vazio de sua fome
acostumada./ Eu não posso cantar para as tuas correntes,/ Ao jugo que dobra as tuas costas,/
A cama pelada sob o telhado que chove/ sua importância de palha. // Eu não posso cantar
para ti e não canto./ Que cante para ti a cotovia cega/ Em sua artística jaula emparedada/ Sua
estupidez de flores perfumadas,/ amores, beijos, águas cristalinas. Que te fale o riacho que
murmura,/ Da fonte que cai cantando,/ do jasmim que perfuma nossas ruas/ nas noites de
luar./ Que cante para ti a cotovia cega, eu vejo/ teu destino de hospital sem vendas:/ Eu sou
a cotovia ferida.// Eu não posso cantar para ti e não canto./ Eu grito em tua voz de rebeldia,/
Eu golpeio em teu punho libertário./ Sou tijolo em seu peito murado,/ brilho em seu olhar
penetrante,/ palavra, em tua mensagem solidária./ Sou fibra da tua carne no trabalho,/ Eu sou
a chama na tocha que levanta/ O arco do triunfo do seu braço.// Eu sou ânsia para suas
ansiedades adiadas:/ hoje eu não posso cantar para ti, te cantarei amanhã/ quando tua voz
poder cantar comigo/ a felicidade da pátria libertada!
56

hoy no puedo cantarte, te cantaré


mañana cuando pueda tu voz cantar
conmigo
!la dicha de la patria liberada!
(SOLLER, 2014, p. 23).

A poetisa Carmen Soler, por mais que utilize alegorias, a natureza, o mito, a
cultura, bem como alegorias da própria natureza e arquétipos dignos para o leitor criar
outra leitura, como Baudelaire, há encantamento, leveza, enigmas, mistério, um
verdadeiro misto de revolta em forma de canto, como no poema “A cotovia ferida”.
Nesta análise, esse poema, na voz lírica, apresenta a metáfora símbolo da
mensagem que quer transmitir, pois reflete sobre o tempo do cárcere que viveu por
três vezes; as obras que produziu nesse período oculto, seja nos poemas, seja na
maioria de suas telas, são comprovações do trauma que viveu historicamente, como
data, nome dos locais ou pessoas. Porém, registra-as ao produzir sua arte por meio
da expressão “Yo no puedo cantar-te”: assim, inicia o poema da Cotovia ferida,
também literalmente o codinome dado a Carmen; o estar ferido sangra, é traumático,
no entanto, o eu lírico lamenta o não poder cantar para o filho da sua terra.
A expressão “filho da minha terra” não se refere ao filho biológico, e sim, a
qualquer filho, a todos os filhos da sua terra. O amor maternal apresenta o
desencadear do poema e declara ao concluir que só pode sangrar pelas feridas desse
filho.

Yo no puedo cantarte, hijo de mi tierra.


Mi voz, entrelazada a tu corona de
espinas sólo puede sangrar por tus
heridas.

O discurso do eu lírico no segundo recorte, repete que não pode cantar, não
apenas pelas feridas, mas sim, por inúmeros motivos que a entristecem. E discorre
sobre as injustiças sociais como: miséria, doenças, fome, as correntes, o peso nas
costas, a cama nua e o teto descoberto. Justifica o seu não cantar.

Yo no puedo cantarle a tu
miseria, a tu debilidad de
anquilostomas,
al vacío de tu hambre
acostumbrada. Yo no puedo
cantar le a tus cadenas, al
yugo que doblega tus
espaldas,
57

al catre pelado bajo el techo que


llueve su importância de paja.

Após, é o momento decisivo – são pontes de mão dupla de acesso para o


deslocamento do eu lírico direto entre o ambiente fechado (cadeia ou sela) e o aberto
(vista de janela grande, como se pudesse ser a cotovia ferida e o filho da sua pátria),
onde possa entrar luz e ver o pássaro. O tom do discurso direto e indireto interage
pela impossibilidade de realizar as ações, no entanto, passa para o filho, formando
uma ação desenvolvida pelo externo e estimulada pelo interno.
Após dar voz ao seu interlocutor inicialmente frágil, nos próximos versos, o
sujeito lírico, envolto em espírito de luta e justiça, desperta o filho de sua terra como
um herói para o combate, em que transmite seus planos, gestos, ações decisivas e
qualidades para outro sujeito indiretamente: “Eu golpeio em teu punho libertário. Sou
tijolo em seu peito murado”.
Há sintonia entre o eu lírico e o filho de sua pátria, a parte pelo todo, e a
metonímia tem o efeito de ideal de identidade nos elementos: golpe/punho,
tijolo/muro, brilho/olhar, palavra/mensagem, fibra/carne, chama/tocha e arco do
triunfo/braço.
O desfecho do eu lírico em seu discurso retoma o terceiro elemento, a Cotovia
ferida e cega e não só ela, o discurso acopla nestes versos os amores, beijos, águas
cristalinas, nascentes de rios, fontes, as ruas, a coite com lua e retoma a metáfora:
“Que te cante a cotovia cega, eu a vejo em seu destino...”.

Yo no puedo cantarte y no te
canto. Que cante pra ti la
alondra ciega, em su artística
jaula emparedada, su
estupidez de flores
perfumadas, amores, besos,
aguas cristalinas. Que te
hable el arroyo que murmura,
de la fuente que baja
cantarina,
del jazmín que perfuma
nuestras calles e las noches de
luna.
Que te cante la alondra ciega,
yo veo tu destino de hospital
sin vendas:
yo soy la alondra herida.
58

Deixa e confirma que o eu lírico não é a cotovia ferida que vê, e sim, que pede
para que cante, apesar de cega. A natureza faz parte da estrofe, riacho, flores, noite,
luar e a cotovia cega, vista pelo eu lírico e seu destino. Porém, na conclusão da estrofe
a metáfora retoma para concluir. “Eu sou a cotovia ferida”. O eu lírico repete ao
interlocutor filho de sua terra que não pode cantar e reforça a certeza em: “… e não
canto”, pois o ato de cantar subentende alegria, assim, muda a ação para “Eu grito
em tua voz de rebeldia”. Transfere o seu ato direto de gritar e indiretamente conclui o
segundo verso, a ação para a segunda pessoa, em discurso indireto para o filho de
sua pátria.
A arte soleriana denuncia ao afirmar que não pode cantar para o filho de sua
terra, por saber quem é o filho da sua terra, como está, como e onde vive. Contundente
com a realidade, o poema revela a cada verso o olhar abandonado, a face pálida, o
físico esquelético e a alma do herdeiro de sua terra. O quarteto final descreve o sujeito
lírico, refere-se ao futuro e repete que hoje não pode cantar para o filho da sua terra,
mas cantará amanhã, quando o interlocutor pode cantar junto à felicidade da pátria
livre.

Yo ansío tus ansias postergadas:


hoy no puedo cantarte, te cantaré
mañana cuando pueda tu voz cantar
conmigo
!la dicha de la patria liberada!

A reelaboração que entrecruza os conceitos de literatura e história, narrativa e


memória, em Soler, nos remete a Jacques Le Goff (1990) e à importância da escrita,
seja ela em prosa ou verso como documento coletivo e histórico:

Nos templos, cemitérios, praças e avenidas das cidades, ao longo das


estradas até "o mais profundo da montanha, na grande solidão", as
inscrições acumulavam-se e obrigavam o mundo greco-romano a um
esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da
lembrança. A pedra e o mármore serviam na maioria das vezes de
suporte a uma sobrecarga de memória. Os "arquivos de pedra"
acrescentavam à função de arquivos propriamente ditos um caráter de
publicidade insistente, apostando na ostentação e na durabilidade
dessa memória lapidar e marmórea. (LE GOFF,1990, p. 374).

A comunicação também esteve na produção artística de Carmen; ao se sentir


aprisionada, não estava só; ao conversar com quem convivia, independentemente de
que lado da cela estava, fez parte dos fatos que a levaram à escrita, além de construir
59

a identidade de alguns períodos (no caso de “Alondra herida”, a ditadura latino-


americana, especificamente no Paraguai) e do homem desses períodos; está voltando
o olhar para novas visões de leitura e elaborando um momento cultural de areias
movediças. A falta do óbvio – papel e lápis – não a deixou fora da história.

Deve-se com efeito perguntar a que está por seu turno ligada esta
transformação da atividade intelectual revelada pela "memória
artificial" escrita. Pensou-se na necessidade de memorização dos
valores numéricos (entalhes regulares, cordas com nós, etc.) como
também numa ligação com o desenvolvimento mento do comércio. É
necessário ir mais longe e relacionar esta expansão das listas com a
instalação do poder monárquico. A memorização pelo inventário, pela
lista hierarquizada não é unicamente uma atividade nova de
organização do saber, mas um aspecto da organização de um poder
novo. (LE GOFF, 1990, p. 376).

O uso de alegorias, arquétipos e metáforas, pela constatação de que a


representação explicita uma conversa próxima (pelo eu lírico) que, no entanto,
alimenta-se por meio do outro com o qual dialoga, permite a construção de um novo
parâmetro com base na recepção, como no caso da tela em que as personagens
aparecem sem grade, havendo amenosidade do convívio, como veremos
posteriormente.
O leitor, nesse prisma - com os temas que abordamos - age como uma
personagem com novos matizes: por sua intervenção, coloca a obra no horizonte
dinâmico da experiência. Conduzir a questão do fenômeno literário ao domínio da
experiência passa por fatores como recondução da teoria para uma consciência
estética, histórica e, ainda, considera os atos de ler, interpretar e compreender como
elementos circundantes de um processo móvel – para quem lê o poema ou foca a
pintura, que viabiliza a possibilidade de uma obra ultrapassar oposições, como sentido
original e sentido recebido, e dialogicamente formar, modificando percepções.
A validação da ação do leitor permite estabelecer uma unidade dialética: a obra
vive na medida em que age e a ação da obra inclui tanto aquilo que acontece na
consciência que a recebe como aquilo que se cumpre na própria obra.
A interação entre a obra e a humanidade existe na medida em que o texto faz
apelo a uma interpretação e age por intermédio de uma multiplicidade de
significações. E o efeito dessa ação será, inevitavelmente, a refiguração do olhar.

Os textos poéticos de Carmen Soler não nasceram em armários


fechados à luz da vida, mas nas trincheiras da luta revolucionária.
60

Não quero dizer que sua prática tenha sido estranha a um escopo
de valores mais elevados do que aqueles que infectam os
panfletos usuais, seja no campo da literatura ou na vida cultural. A
fim de compreender a dimensão especial que adquirem em face
de uma perspectiva mais ampla, a redução de suas criações ao
campo da poesia social ou política talvez tenha que ser evitada.
Mas também não deve ser despojada dessa estrutura
revolucionária que a torna uma figura chave na poesia paraguaia.
(FERNANDEZ, 2016, s./p.).

FIGURA 1 - Pintura Carmen Soler, Cadeia feminina Assuncion, Py

Aqui, chamaremos a pintura de “Mulheres sem grades”33; é possível comparar


com as outras duas telas, que aparentam ser sequência de estilo, que segue o Espaço
– cadeia, as cores, sombrias e as personagens mulheres, incluindo no espaço e
situação o olhar presente da artista, como uma forma de ‘autorretrato’ ausente, no
entanto, presente.
A pintora retrata a cadeia feminina. Sua aproximação com as três personagens
pode ser provada pelo ângulo e a distância, a ausência de grades e a liberdade na
imagem disposta na tela; não significa que estão livres, e sim, que estão na mesma
cela e presas. Assim, deduzimos que as três personagens estão no mesmo ambiente
que a pintora, que é observada por outras três mulheres, porém, sérias, tristes, uma
delas revoltada e presas - matematicamente são quatro mulheres. Se a obra foi
rasgada no lado direito, há a possibilidade de serem muitas.
Os traços no canto superior da tela são mais sombrios, mesclando cores de um
marrom-escuro ao mais suave. A perspectiva da primeira personagem revela que,
apesar de presa, apresenta olhos estão mais vívidos, o rosto, do lado esquerdo,
recebe alguns raios do sol ou se destaca uma marca mais clara que o tom da pele,

33 A tela não possui título nem data; nominamos assim para facilitar a classificação da
Arte soleriana.
61

propiciando a impressão de ser uma cicatriz na moça de cabelos longos e olhos


grandes. Em primeiro plano, compartilha o olhar de forma frontal. Estão na posição de
ouvinte, de alguém que com elas conversa, sugerindo cumplicidade, intimidade e
coleguismo.
Destacamos ainda que, ao lado direito, temos a intuição de que a obra artística
sofreu algum dano, em razão de uma imperfeição na tela, sendo possível, por essa
constatação, que nessa cela (pintada) pudesse haver outras personagens mulheres
que compartilhavam o mesmo espaço de convivência da carceragem, porém, foram
de alguma forma retiradas por um rasgo – como se rasgassem o tecido bruto da tela.
Novaes (1993) reflete:

Um ato de acolhimento: dar (ao menos) um olhar, conceder um olhar,


pôr os olhos sobre alguém, deitar-lhe um olhar – tudo vem a ser prestar
atenção o que é um sinal ou uma esperança de favor (o ver com bons
olhos) se não de benévola aceitação. Quantas orações e quantas
súplicas se abrem com locuções como essas! O olhar é a linguagem
da vontade e da força antes de ser órgão do conhecimento. (BOSI
apud NOVAES, 1993, p. 78).

O acolhimento entre as mulheres que ocupam a cela é de terem o olhar


recíproco ao ver os mesmos objetos diante dos metros quadrados onde ficam; além
disso, são cúmplices, uma vez que estão juntas na ausência de liberdade, na
indignação pelo sistema que oprime, fere, isola, agride, violenta e lhes tira a liberdade
de serem mulheres.
O conjunto da imagem, de um olhar “vigilante”, para Novaes (1993, p. 9):

Quando conseguimos desvendar os olhos, reconhecemos: a vontade


de delimitar, de geometrizar, de fixar relações estáveis não se impõe
sem uma violência suplementar sobre a experiência natural do olhar.
Mas esse olhar vigilante provoca uma resposta: só existe mundo da
ordem pra quem nunca se dispôs a ver.

Dentre as diferentes formas de analisar o olhar, Novaes (1993) inclui que a


estética:

A tela sugere ainda, no caso, se analisarmos pela estética social de


beleza, poderíamos dizer que a primeira personagem possui um grau
de beleza maior que a segunda, seja pelos cabelos, formato do rosto
ou o olhar que se destaca na tela.
Já, a segunda, em relação a que está a sua frente, há semelhança nos
contornos da face, na cor da pele, havendo a hipótese de serem irmãs,
sendo a primeira mais jovem, porém, a do segundo plano aparenta
traços de quem é mais velha, com o riso preso, a expressão do rosto
fechada, ao encarar a que está a sua frente, o olhar invejoso e “pelas
62

costas” nos trazendo até mesmo o medo de nossas mães em que um


dia, pousasse sobre nós o mau olhado está presente na pintura.
(NOVAES, 1993).

Para Bosi, a situação analisada no quadro é a seguinte: a crença no mau olhado


será talvez um dos universais antropológicos de todos os tempos. O mau olhado que
seca as plantas e faz definhar as crianças mais belas expostas à inveja dos passantes
e dos falsos amigos. É provável que as pessoas civilizadas desdenhem os corações
simples e timoratos que procuram afastar com uma figa ou um ramo de arruda os
maus olhados que os possam molestar, mas todos admitem a existência da inveja,
aquela paixão tão bem definida por Santo Tomás como “a tristeza provocada pelo
bem alheio”. Ora, rigorosamente, a palavra “inveja”, em latim “invidia”, decomposta
em seus elementos, significa contra-olhado, in-contra, vid- tema de visão. Inveja e
mau olhado são a mesma palavra para a mesma coisa. Quem diz uma, diz a outra
(BOSI, 1993 apud NOVAES, 1993, p. 78).
O estudo semântico da fala corrente é um desafio para explorar minas ainda
inexaustas: Estar de olho, ficar de olho, não perder de olho e trazer de olho marcam
um grau de interesse do sujeito que beira à vigilância. O olho cioso é inventivo. A
gelosia é uma grade estreita feita no olho da parede pelo olho do amante, que não
suporta ver a amada ser vista pelo olho do outro. Zeloso, jalous, geloso, celoso, ciosos
(de “cio”) são a mesma palavra e o mesmo olhar (BOSI, 1993 apud NOVAES, 1993,
p. 78).
A importância da fenomenologia do olhar, de Alfredo Bosi, introduz a teoria: os
psicólogos da percepção são unânimes em afirmar que a maioria absoluta das
informações que o homem moderno recebe lhe vem por imagens. O homem de hoje
é um ser predominantemente visual. Alguns chegam à exatidão do número: 80% dos
estímulos seriam visuais.
Sabe-se que a relação do olho com o cérebro é íntima, estrutural. Sistema
nervoso central e órgãos visuais externos estão ligados pelos nervos óticos, de tal
sorte que estrutura celular da retina nada mais é que uma expansão diferenciada da
estrutura celular do cérebro (BOSI, 1993 apud NOVAES, 1993, p. 77-78).
63

FIGURA 2 - Imagem do Site Se sentindo curioso - Olhos e a formação do cérebro34

“Olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Chauí
(1998), quando retoma a teoria cartesiana, afirma que a visão não é aquilo que se
presencia no primeiro golpe de vista, mas busca ver o interior do próprio visível.
Para a mulher e mãe Carmen Soler, o olhar que amanhecia e não repousava
no calabouço e na solidão do aprisionamento e da violência que sofreu teve como
amparo sua arte na poesia e na pintura. Para o pesquisador Acir Dias da Silva (2007,
p. 96): “Enxergar implica discutir os termos desse olhar, observar com ele o mundo,
mas colocá-lo também em foco. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao
que está fora do campo, tornando-o também visível.”
Mesmo assim, deixou publicações na Argentina, Chile, Uruguai, Alemanha e
Suécia, em periódicos, revistas e jornais. Sua voz ecoou em palestras literárias,
rádios, programas televisivos e aulas que ministrou na Suécia sobre a Literatura na
América do Sul. Familiares resgatam aos poucos o valor de sua arte.
Há a necessidade intelectual de reconhecê-la como ícone de referência
literária, por sua luta social e revolucionária em busca da dignidade humana de sua
gente.

[...] tal ocasião muito propícia para um exame a fundo da realidade


nacional precisamente, porque a gravidade do conflito obrigava a uma
tomada de consciência enérgica, capaz de transcender as inibições

34 Fonte da imagem: www.sesentindocurioso.com.br


64

geradas por una prolongada pressão coletiva sobre o escritor [...].


(RODRIGUEZ-ALCALÁ; CARUGATI, 2000, p. 208).

A sensibilidade e expressão de Soler no rosto destaca o olhar; apesar do título


que batiza o “carrasco”, ele pode ser comparado a um espelho, ao mesmo tempo em
que sua expressão facial bruta, fechada, muda e violenta, a testa franzina, o olhar
reflete sobre o da narradora da poesia, tanto que o olhar não encara sua pintora: ele
se desvia.
O Brasil conhece muito pouco da Literatura Paraguaia, mesmo fazendo
fronteira com esse país. Tal problemática existe e desconhecemos a arte, memória de
luta e resistência dessas protagonistas, que olharam o mundo de forma a tentar
transformar o que não aceitaram como injustiça, como preconceito de gênero,
sexualidade, submissão, opressão, perseguição, prisão, tortura, exílio e autoexílio.
Esses são conceitos que se repetem ao longo dos períodos literários universais, mas
é no século XX que começam a aparecer com mais força dentro da literatura latino-
americana, fortalecidas talvez pelos movimentos feministas, avanços sociais e
sufrágio feminino.
Dessa forma, há uma barreira que não nos permite ultrapassar e reconhecer
que no país vizinho, Paraguai, e nos países latino-americanos há literatura e literatura
de autoria feminina. Para Jacques Le Goff, em História e Memória: “Com o
desenvolvimento da escrita estas "memórias vivas" transformam-se em arquivistas”.
No entanto, poderão ser visitadas tais experiências se batermos os olhos.
Nessa visão desoladora, é visto, por meio da rede mundial de computadores,
no site da Omegalfa35, a coletânea Los Poetas Mios, de Carmen Soler, em espanhol
e alguns poemas em guarani, tendo digitalmente o original Poemas (Ed. Aquí poesía,
Montevideo, 1970) na biblioteca virtual, contendo 49 páginas.
A obra lírica compõe-se de temas amplos, podendo ser classificada como
“poesia social”, “poesia comprometida”, “poesia de la consciência”, “poesia de
combate” ou “poesia de revolução”. A definição estética soleriana é seu compromisso;
a nostalgia por sua pátria, sua denúncia social. As prisões em 1955, 1960 e 1968
transformam-se em testemunho de sua experiência no cárcere.
Assim, diante desse panorama, lançamos o olhar para essa escritora,
atravessamos a ponte da resistência e apreciamos a literatura paraguaia,

35 Disponível em: <http://carmensoler.wix.com/inicio#!>.


65

aproximando-nos da personalidade intelectual, humana e de heroína da mulher e


escritora Carmen Soler.
Neste sentido, demarcado o espaço-tempo que é alvo, são investigados os
aspectos sociais, políticos e históricos e as ligações entre o individual e o coletivo, a
língua, o folclore, as tradições, os mitos, as imagens e as sensações.

Al pincel sobre el muro36


(Para: Olga Blinder)

Hay un pincel que canta sobre el


muro, con nuevo ritmo, viejas
realidades.
Trae al presente antiguas
claridades, realza en sombras un
presente oscuro.

Pero es pincel con nombre de


futuro y cuanto roza en vida se
transforma. Por dar forma a una
idea se deforma en grandes ojos,
en inmensos puños.

Es un pincel de antiguo y nuevo


cuño, es el pincel de siempre, el
verdadero,
que en cada tiempo encuentra su
madero a la vez atrevido y oportuno.

Es un pincel valiente, un pincel


puro que a falsa caridad no se
rebaja, pinta verdades, por la
verdad trabaja sereno el pulso,
el corazón seguro.
Es un pincel sincero y yo procuro
decir lo que su fibra anhela y
siente: tener siempre esa mano
y esa frente lo lleven cantando
sobre el muro.

(SOLER, 2014, p. 07).

36 Tradução livre nossa: Ao pincel sobre o muro (Para Olga Blinder) Há um pincel que
canta sobre o muro/ Com novo ritmo, velhas realidades./ Traz ao presente antigas claridades,/
realiza em sombras um presente escuro. // Mas és pincel com nome de futuro/ E quando
esbarra com a vida se transforma/ em grandes olhos e imenso punhos.// É um pincel de
antiguidade e novo cunho/ Es o pincel de sempre, e verdadeiro,/ que em cada tempo encontra
sua madeira/ cada vez atrevido e oportuno// É um pincel valente, um pincel puro/ que a falsa
caridade não o rebaixa/ pinta verdades, pela verdade trabalha/ serenando o pulso, o coração
seguro// É um pincel sincero eu o procuro/ Dizer-lhe que sua fibra anseia e sente/ tem sempre
essa mão e essa testa/ que o levem cantando sobre o muro.
66

No poema, temos já no título os elementos pincel, representando a Arte e o


muro como um obstáculo de acesso. No entanto, os elementos se unem e se
encontram, originando a comunicação do que estava distante, separado,
impossibilitado, em algum momento, de se verem, se tocarem. Porém, se fundem no
mais forte de qualquer estilo de Arte – a expressão, a forma de chegar a se comunicar,
a entrega total de sua razão de existir –; com seu canto, o pincel incorpora outro dom;
com o muro, adapta seu palco e canta trazendo seu passado obscuro, ecoando na luz
para o futuro. A simplicidade do texto leva ao eu lírico seu desejo de revolucionar as
barreiras; a coragem propicia olhos enormes e punhos fechados.
A busca de Carmen para colocar sua experiência em forma de poesia é sua
principal característica; soma-se aqui a tentativa de criar alegorias e personagens,
além de recriar a linguagem própria e original de sua pátria em cada um de seus
personagens inanimados e temas sociais, bem como das metáforas, personificações
e antíteses. Ainda, em raros poemas, há a presença de sentimentos mais amenos e
temas que representam a imagem feminina.
Referimo-nos, principalmente, à sua relação com a natureza, em temas que
normalmente fogem à lírica, tais como a política, violência, revolução, especialmente,
vindos de uma jovem mulher.
Um dos poemas escritos (retirado de Carmen) e memorizado por ela durante a
sua prisão, em 1968, em “La Técnica”, como chamavam, retratava a polícia que se
dedicava a assuntos da ditadura paraguaia.
O objeto de arte, para Carmen, tem olhar, rosto, mãos, voz e gritos.
O poema “Alguém gritou” utiliza o anonimato com a expressão popular: Viva a
Liberdade!

Alguien gritó37

Alguien gritó:
¡Viva la libertad!
y respondió la sangre.

Alguien gritó:
¡Muera el tirano!,
y respondió la sangre.

37 Tradução livre nossa. Alguém gritou. Alguém gritou: /Viva a liberdade! /E respondeu
o sangue.
//Alguém gritou: /Morte ao tirano! /E respondeu o sangue// De manhã, /gritará o
sangue: /Viva a liberdade! /Morte ao tirano!, //E o povo /responderá!.
67

Mañana,
gritará la
sangre: Viva la
libertad!
¡Muera el tirano!,

¡y el
pueblo
respon
derá!

(SOLER, 2014, p. 6).

A resposta dada ao eu lírico, ao final dos versos, foi sangue e silêncio. Outro eu
lírico repete novamente: Viva a liberdade! Acrescenta: Morte ao tirano! Sangue
novamente. Pela manhã, não haverá apenas silêncio, o sangue que grita “Viva a
liberdade e morte ao tirano” e o povo responderá!
A poetisa conclui com uma exclamação, alertando que apenas com gritos
conseguiremos a liberdade. É preciso perceber que o sangue precisa ser defendido,
não isolados, e sim, unidos.
A comparação do título Alguém gritou com a pintura de Edvard Munch d’O Grito
(1893) é inevitável. O estudo comparativo das artes poéticas e plásticas envolve, antes
de tudo, o conhecimento amplo do estudo da linguagem, no que diz respeito a suas
diversas abordagens de expressão. Gotthold Ephraim Lessing (apud GOMBRICH,
1995), em seu Laocoonte o de los limites de la pintura y de la poesia, estabelece que
a pintura e a poesia apresentam expressões deveras diversificadas, importantes em
qualquer análise comparativa que se pretenda fazer.
O que na poesia é palavra, na pintura, é cor. Cabe, assim, ao estudioso, ao
adentrar uma obra de pintura, buscar mensurar o quanto a cor expressa o estado de
espírito da artista, na mesma proporção que a palavra densifica ou suaviza a
expressão do poeta. Duas linguagens diversas, portanto, mas em que, não obstante,
suas diferenças podem ser compreendidas em um mesmo esquema ou proposta
temática.
Aproximando-os, há semelhanças no título e no tema, morte, entre poética de
Carmem em “Alguém gritou” e a obra do norueguês expressionista. Para Munch, por
motivos estéticos do expressionismo e de modo particular, tem origem na história
particular do próprio pintor.
68

A fonte de inspiração d’O Grito pode ser encontrada na vida


pessoal do próprio Munch, um homem educado por um pai
controlador, que assistiu em criança à morte da mãe e de uma
irmã. Decidido a lutar pelo sonho de se dedicar à pintura, Munch
cortou relações com o pai e integrou a cena artística de Oslo. A
escolha não lhe trouxe a paz desejada, bem pelo contrário. No
início da década de 1890, Laura a sua irmã favorita, foi
diagnosticada com bipolaridade sendo internada num asilo
psiquiátrico.
Novamente os olhos do artista, estão diante da perda e da morte,
visão e audição se mesclam, vê e ouve o desespero da irmã ao
ser levada para o internamento. (HELLER, 1973, p. 44).

Observe que a tela representada parece contorcida sob o efeito de emoções,


como o medo, aflição, incerteza, dor e tristeza. As linhas curvas do céu e da água,
assim como a linha da ponte, conduzem o observador à boca da figura, que se abre
num grito perturbador, ou seja, um grito de desespero. As linhas distorcidas também
podem estar associadas ao som do grito.
Em Soler, também há o grito, confirmando o paralelo de que há apenas uma
pessoa que grita “Alguém”; no entanto, a importância, o elo surpreende ao transbordar
tal subjetividade poética que representa a união de um grupo de amigos
revolucionários contra a ditadura paraguaia.
Entretanto, na lírica, há a resposta do receptor ao primeiro grito: sangue. A
segunda pessoa, pois a primeira já se silenciou com a morte, grita: Viva a liberdade”.

FIGURA 3 - O Grito – Edvard Much


69

Morte ao Tirano. Já há a identificação do receptor ao segundo eu lírico. Porém,


o terceiro, a enviar o grito, já não pede por Viva a liberdade, apenas por Morte ao
Tirano. O poema encerra com o coletivo de que o povo responderá. Tanto no poema
quanto na pintura não há um desfecho final, uma conclusão. Todavia, ambos gritam
por vida, liberdade, paz e justiça.
A morte, que para o expectador do quadro persegue Munch, em Soler,
evidencia a tentativa de gritar por viver a liberdade, as respostas ao sistema agressivo
e antipoético, reais no momento histórico em que a autora usa sua arte para gritar
pelo sangue de seu povo. A morte é tema e resposta para quem pede liberdade!
Reduz os gritos a sangue. Assim, em ambos, o tema da morte decorre da
própria biografia, em que a criação artística na poetisa e no pintor norueguês tem
origem em um sentimento que resolve se expressar pelo grito contra a presença da
dor e da perda. Com subjetividade, entende-se o duelo do poder social da época com
a ansiedade, desespero e indignação com os fatos.
“O Grito”, de Edvard Munch, é um ícone perturbador da arte moderna com
quem podemos perfeitamente nos identificar. Nós sabemos o que é estar em uma
situação que gere medo. A causa dessas ilusões nada mais é do que a mudança de
direção de um raio de luz quando passa de um meio para outro.
Os olhos e o cérebro interpretam os raios de luz que recebem como se
estivessem sempre se propagando em linha reta, sem considerar o desvio sofrido na
refração e construindo uma imagem virtual pelo prolongamento em linha reta dos raios
recebidos. Por isso, as imagens formadas não correspondem exatamente à realidade,
com objetos aparentando estar em posições diferentes das reais. Na verdade, nós
temos em “O Grito” uma imagem do interior, “dentro para o exterior, “fora”, ou seja, o
medo que sentimos extravasa, deformando a imagem real.
O expressionismo é o movimento que costuma ser entendido como a
deformação da realidade para expressar mais subjetivamente a natureza e o ser
humano, oferecendo primazia à expressão dos sentimentos mais que à descrição
objetiva da realidade. Entendido dessa forma, o expressionismo é extrapolável a
qualquer época e espaço geográfico.
O norueguês descreveu assim a experiência que o levou a pintar a sua obra-
prima:

Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se;


de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei,
70

apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e


sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus
amigos continuaram a andar, enquanto eu ficava para trás
tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza
medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza.

Munch imortalizou essa impressão no quadro O Desespero, que representa um


homem de cartola e meio de costas, inclinado sobre uma vedação num cenário em
tudo semelhante ao da sua experiência pessoal. Não contente com o resultado,
Munch tentou uma nova composição, dessa vez, com uma figura mais andrógina, de
frente para o observador, numa atitude menos contemplativa e mais desesperada. Tal
como o seu precursor, essa primeira versão d’O Grito recebeu o nome de O
Desespero.
Ao observarmos ao fundo, notamos que temos um céu de cores quentes, em
oposição ao rio em azul (cor fria), que sobe acima do horizonte, característica do
expressionismo (no qual o que interessa para o artista é a expressão de suas ideias
e não um retrato da realidade). A figura humana também está em cores frias, azul,
como a cor da angústia e da dor, sem cabelo, para demonstrar um estado de saúde
precário. Os elementos descritos estão tortos, como se reproduzindo o grito dado pela
figura, como se entortando com o berro, algo que reproduza as ondas sonoras.
Quase tudo está torto, menos a ponte e as duas figuras que estão no canto
esquerdo. Tudo se abalou com o grito; apenas o que não se abalou (supostamente
seus amigos, como descrito acima) é a ponte, que é de concreto e não é "natural"
como os outros elementos, assim, continua reta.
Introjetamo-nos em relação ao quadro e passamos a ver o mundo torto,
disforme e isso nos afeta diretamente, de maneira que participamos quase
interativamente da obra. Ou seja, a obra representa um ser num momento de profunda
angústia e desespero existencial. O pano de fundo é a doca de Oslofjord (em Oslo)
ao pôr do sol. O Grito é considerado como uma das obras mais importantes do
expressionismo e adquiriu um estatuto de ícone cultural, ao lado da Mona Lisa de
Leonardo da Vinci.38

38 Fonte: Do Blog Esc. Est. Mario Quirino.


71

4.1 O OLHAR E SER OLHADO DE CARMEM

Ao examinar cada ensaio em si mesmo e em sua expansão - quer dizer, em


direção a outros textos e a poemas, e em expansão de sentido, quando alcançam
outros autores e outras reflexões - fica demonstrado constarem três grandes direções
fundamentais: a experiência histórica, a experiência estética e a experiência da Arte,
que é a verdade que respira as obras de Carmen.
A contradição, então, parece caracterizar o período, principalmente na
justaposição de seus aspectos popular e estético (defendido pela intelectual). O
contraditório marca tanto a concepção de poesia como a de história, pois se concebe
a poesia como reação, como anti- (que o desconforto de Baudelaire em relação aos
novos tempos parece ilustrar). Tal antagonismo não impede a adesão da poesia aos
sinais da novidade, do futuro, da exaltação às máquinas, por exemplo, o que ocorreu
nas Vanguardas.
Quanto à história, esta, na modernidade, ganha sua relativização. Se por um
lado passa a ser compreendida como processo dialético de contrapostos, por outro
deixa de se constituir única, o registro de uma (dominante) experiência de mundo - a
ocidental, nesse caso.
Assim, não há olhar – como não há uma história, mas há olhares e histórias, o
que implica tempos outros em/a um só tempo. Mas poesia e história, se colocadas em
oposição por Carmen, quando produz sua arte em forma de poema de combate como
arma que produz anti-história, teremos outras formas de olhar para a obra dessa
jovem exaurida em sua arte. Isso propicia a imagem da escritora-crítica como a
metáfora Sol-Ler; as duas composições são dupla face de sua originalidade ao
mundo.
A memória eternizada pelos poemas de Carmen preserva o itinerário triste e
trágico experienciado pelo pior período em que viveu o povo paraguaio – são
lembranças – fatos, desabafos, outros lamentados, como se alguém desenhasse um
roteiro de horror, o fugir pelas fronteiras para sobreviver deixando seu país, a família,
os amigos e sua gente.
Para Le Goff, a memória é como se fosse a vida em cicatriz e a escrita, a cura,
como cita:

A coisa mais notável é sem dúvida "a divinização da memória e a


elaboração de uma vasta mitologia da reminiscência na Grécia
72

arcaica" como diz com propriedade Vernant, que generaliza a sua


observação: "Nas diversas épocas e nas diversas culturas, há
solidariedade entre as técnicas de rememoração praticadas, a
organização interna da função, o seu lugar no sistema do eu e a
imagem que os homens fazem da memória". (LE GOFF, 1990, p. 378).

Este é o mapa da vida da mulher Carmen, que clama por exigir direitos, lamenta
pelos que sofrem e sofre por eles e com eles, reconstituindo o que de melhor tem sua
arte de escrever, pois até o mais puro da árvore guarani lhe arrancaram, o papel, as
folhas e o lápis. Mesmo assim, a MEMÓRIA é o elemento mágico que a faz decorar,
ainda que lhe tivessem arrancado os olhos, tema deste trabalho, mesmo assim, para
essa jovem mulher, sobraria a memória para revisitar e o traço. Ainda que não fosse
visto, seria transformado em arte, coisa que o artista, durante o dia, muitas vezes,
esforça por continuar a fazê-la no instante que virá. Também, quando sente a
lembrança lhe doer, ao ver a cotovia voar livre, mesmo ferida e cega; seu sonho não
se esvai; são as mesmas etapas que fazem as penas dos pássaros crescerem a olhos
vistos.
A menina professora levantar-se-á e, passo a passo, caçando o que lhe foi
roubado, por mãos de sua filha e neta, sua marca e o sangue do povo do país vizinho
Paraguai, será publicada, traduzida, se transformando em conhecida e famosa pela
América Latina; não será mais olhar… mas será, eternamente, Literatura.
No que diz respeito ao olhar, há quem duvide que falar de poesia é falar de
olhar. Quem sabe esse registro, do olhar e a alma da poetisa, encontrou na arte
plástica a forma de reproduzir, por meio de outra arte, a experiência do cárcere? A
pintura fez parte da vida de Carmen Soler, que nos deixou quadros e esculturas que
nos fazem pensar na impossibilidade de não constar nas obras as cores sombrias, as
marcas de dor, a expressão de trauma.
“Pólvora e espiga” é uma metáfora social na qual Carmem Soler usa ao
elemento pólvora, armamento que destrói e tira a vida e a espiga de trigo, pão, que
alimenta e sustenta. A poetisa leva para o tema os tipos sociais. A cegueira é usada
pela escritora, que caracteriza a cotovia e agora o Humberto, como vemos adiante. O
símbolo do cego, cegar, cegueira, pode estar tanto no visível ‘fora’ como no “invisível”,
na subjetividade.
73

Pólvora e espiga39

Polvora y espiga
Humberto era su nombre;
su apellido era Garcete.
¡Lo segaron!
Lo segaron
porque como el grano estallaba
apasionado y maduro,
porque daba el pan prohibido,
porque era como el trigo
sano y puro.
Lo segaron
con una guadaña ciega,
bajo una nocha sin ojos,
en una prisión sombría/

bocas oscuras
escupieron odio y fuego;
treinta y dos lenguas hambrientas
lamieron su carne tierna
y abrieron en su piel blanca
treinta y dos agujeros negros.
¡Treinta y dos bocas vacías
se llenaron en sus venas!
¡Así apagaron su aliento
y encendieron su recuerdo!

¡Así durmieron su cuerpo


y despertaron su fuerza!

Porque los mártires


no tienen muerte.
Se van, pero se quedan.
Los detienen, pero siguen.
Él, somos nosotros.
¡Él somos nosotros ahora!
¡Su sangre está viva!
Su sangre caída
se ha levantado.
¡Humberto Garcete!
¡Destello y consigna!

39 Tradução livre nossa: ¡Pólvora y espiga! Pólvora e espiga/ Humberto era o seu nome;/
O seu apelido era Garcete./ O ceifaram!/ O ceifaram./ Porque como o grão estala/ Apaixonado
e maduro,/ Porque dava o pão proibido,/ Porque era como o trigo./ São e puro./ O ceifaram/
Com uma foice cega,/ Sob uma noite sem olhos,/ Em uma prisão sombria.// Armadilha com
dentes de gelo/ Lhe explicaram sua condição/ Trinta e duas bocas escuras/ Cuspiram ódio e
fogo;/ Trinta e duas línguas famintas/ Lamberam sua carne doce/ E abriram sua carne branca./
Trinta e dois buracos negros./ Trinta e duas bocas vazias// Encheram suas veias!/ Então
apagaram seu fôlego/ E acenderam sua memória!// Assim dormiram seu corpo/ E
despertaram a sua força!// Porque os mártires/ Não têm morte./Se vão mas ficam/ O
prenderam, mas continuam/ Somos nós agora!/ seu sangue está vivo!/ Seu sangue fica/ Ele
levantou-se./Humberto Garcete!/ fulgor e lema!/ Pólvora e espiga - Assunção, 1 de maio de
1954, Carmen Soler.
74

Carmem Soler

O eu lírico narra o trauma de um homem, de nome Humberto, cegado com uma


faca cega; retiraram seus olhos e passou uma noite sem os olhos em uma prisão
sombria. A linguagem literária leva a escrita soleriana ao efeito sensitivo, pois, sem os
olhos, a presença ou ausência de luz e a prisão não mudariam a realidade do
personagem.
A atitude que envolve ódio e fogo, o elemento da natureza, no caso, é produto
bélico. O real e o imaginário unem as mãos em um só verso: incendiaram “olhar de
fora” suas lembranças “olhar de dentro”.
No poema, há o duelo entre o bem e o mal, assim as antíteses são exploradas
como recurso entre as duas forças, o dominador e o dominado. Em dormiram seu
corpo – é uma ação indireta – passiva. No entanto, o fazendo dormir (há a
possibilidade de ser para sempre) despertou a ação direta/despertar/ – Esqueceram
do detalhe: “Despertaram sua força”.
Há ainda a necessidade de não desistir de que chegará o olhar do mártire. Com
poderes invencíveis, visto que, mesmo com a morte física, o sangue do seu povo está
vivo. Assim, o eu lírico torna o personagem tipo Humberto Garcete em lema exemplar
do dia em que a espiga venceu a pólvora.

FIGURA 4 - Pintura sem título – Carmen Soler – 1975, Estocolmo, Suíça

Ao primeiro olhar, a pintura acima, que ilustra como imagem o poema “Pólvora
e Espiga”, nos lembra uma máscara. Ao analisarmos nitidamente, a obra possui as
75

características da Senhorinha que está na cela (abaixo). Com pinceladas nebulosas,


caminhos em forma de rugas, remonta a duas veias fortes, saltando acima da testa
em um segmento que vai até o final da tela superior. As rugas da face estão secas,
sem cor e brilho, sendo possível, ainda, terem sido pintadas com a ponta dos dedos,
associando a digital. Os olhos abertos indicam vida e esperança, podendo ser
associados os elementos olhos abertos com o distanciamento dos olhos de Humberto,
o tirar para deixá-lo cego.

FIGURA 5 - Cadeia de mulheres - Carmen Soler

Na criação desse outro objeto de arte “Cadeia de mulheres”, a pintora reproduz


uma personagem próxima da grade da cela. O aproximar do seu olhar com o da
personagem demonstra uma intimidade. A pintora posiciona-se frente a frente à obra
que produz, deixando ao expectador a sensação de que, no instante em que olha,
está de frente ao que produz, sendo característica nos rostos e pinturas de Carmen
Soler esse olhar de frente (mesmo se estiver de ponta-cabeça), pois, assim, preenche
todo o espaço após a grade. A esse mesmo vislumbrador do quadro, oferece a
oportunidade de também estar em frente da Senhora que está dentro da cela. Da
artista, só se pode compreender que esse elo entre ela e a Senhora é o mesmo; ela
também está presa, só é vizinha da Senhora, porém, sustenta ao expectador da tela
que seu olhar também está preso diante da Senhora presa.
As cores sombrias, ausência de luz, sufocam a situação, no entanto, a
expressão do olhar é o que há de mais claro na tela, acompanhado pelas bochechas
76

pálidas, o rosto magro e as rugas fortemente expressivas da testa, que demonstram


a inquietação e perturbação do ambiente em que se encontra, tendo quatro linhas
fortes como se fossem pintadas com as digitais. As olheiras sobressaem diante da
magreza da face e os longos cabelos de um cinza mais claro parecem se unir ao cinza
das grades, formando uma coisa só, grudada, misturada ao deformado pescoço, como
se a qualquer instante começasse a se desmanchar como se fosse pó e se tornasse
cinzas a cair no chão, a qualquer momento.
Sobretudo, as grades continuarão firmes, fixas, mas as cinzas poderão ser
levadas com o vento. A personagem da cela tem na boca uma palavra a ser
pronunciada; a pintora a escuta em forma de tinta, magreza, palidez, olheiras, quatro
rugas, cabelos, pescoço… Ouve seu lamento enquanto se torna cinzas; junta cada
nanocinza e, ao primeiro contato com o vento, assopra para a liberdade.
A poesia de Carmen é de denúncia, de emergência, com veia pulsante como
um grito de socorro pela sua própria vida. Poderíamos dizer que a escrita a salvou, se
é que a ficção por meio da poesia pode ter esse poder. Soler pode provar que sim,
assim como contraria o princípio de todo leitor de lírica que se encanta com a beleza
poética; no caso da que estamos nos referindo, há uma verdade cruel em forma de
rima.
Com sua única publicação em vida, Poesias (1970), o sistema cultural
dominante não tinha bons olhos para os temas que envolviam pessoas, suor, rebelião,
desejos de justiça e liberdade. Carmen Soler coloca os leitores na presença de uma
experiência criativa inegável e, no seu melhor, alcança a plenitude expressiva. Com
todas as situações por sua atuação política, não desistiu de seus ideais. O que mais
impressiona é o constante crescimento intelectual e intenso amor por seu país, o
Paraguai.
Vemos que ficção e História se mesclam para dar vida ao período mais triste
da política social latino-americana, que foi a ditadura, surgindo os poemas. Para o
crítico Miguel Angél Férnandes, a característica principal de Carmen Soler é que
inspira sua poesia como arma de libertação.

Seu tema é amplo e há expressões nele que estão profundamente


ligadas à sua paixão pelo povo.
Nessa poesia de amplo espectro temático, expressivo e semântico,
existe, além ou além dos textos de denúncia e combate, um profundo
temperamento psíquico, em poemas de amor, solidariedade e
compaixão humana. Uma investigação mais detalhada do seu
77

conteúdo e suas características expressivas, deve ter detalhes que


por falta de dados confiáveis sobre o seu processo genético hoje
ainda não podemos assumir.

Seu legado40 ganhou vida com publicações póstumas por amigos e familiares,
possuindo as seguintes obras, conforme nos enviou sua filha. Reproduzimos aqui o
texto original e traduzido por ela:

Os livros41 publicados com seus poemas e alguns com biografia


e notas de acompanhamento:

- Poemas Ed. Aqui poesia. Montevidéu, 1970, texto de Lapela de


Ruben Yacovsky.
- Na Tempestade. Ed. Cartago. Buenos Aires, 1986.
Apresentação e contracapa de Hamlet Lima Quintana. Poemas
selecionados por ela, já muito doentes.

- A cotovia ferida. Ed Arandurá. Assunção, 1995.


Primeiro livro que poderia ser publicado no Paraguai após a queda
de Stroessner.

Biografia em retalhos e Apresentação escrita por María Eugenia


Aponte Soler (Matena). Contracapa com texto de Augusto Roa
Bastos. Ilustraçõegravuras de Olga Blinder selecionadas por ela.

- Poesia reunida. Ed. Servilibro. Assunção 2011, Apresentação


de Gloria Rubín, Secretaria de Mulheres da Presidência do
Paraguai, Coleção "A mulher paraguaia no bicentenário". Prefácio,
Luis María Martínez.

Em retalho: Fatos sobre sua vida e sua luta de seu marido Carlos
Luis Casabianca. Coletar poemas dos dois livros anteriores,
inéditos e uma carta. (Em seu trabalho, parece que Casabianca
era o autor)

- Antologia poética, Carmen Soler. Ed. La Marea, Buenos Aires,


2016. Biografia e prólogo de Matena Aponte Soler. Inclui inéditos,
correspondência, notas, opiniões, notas e conferências de
escritores sobre o seu trabalho. (Em Assunção, a Servilibro
vende).42

40 Em contato com Maria Eugênia Aponte Soler, conhecida como Matena (apelido, pois
quando era criança não conseguia pronunciar seu nome todo; ao ser perguntada qual seu
nome, respondia Matena), filha de Carmen Soler, por meio de e-mails, obtemos algumas
informações que foram de muita importância sobre sua obra. Houve diálogo com muita
compreensão e interesse em participar da construção desta pesquisa. Tivemos acesso a outro
panorama no site Wix oficial, editado e administrado por Matena, onde encontramos o
contexto de produção da autora.
41 O corpo do texto contém os dados das Referências, pois não obtivemos acesso ao
material, nem aos livros e nem pela internet; nesse momento, não fazem parte do nosso
acervo de pesquisa inicial.
42 Informações obtidas por e-mail com Matena.
78

Os poemas abordam a simplicidade do povo paraguaio, com sua pobreza,


exploração, abandono, com a valorização da língua materna guarani, falada pelas
crianças que recebia nas carteiras da escola interiorana da jovem professora. Está
fortemente valorizando o que tem em seu país, a natureza, o folclore, a mitologia, os
sonhos, os amores, as angústias e traumas, mas, sobretudo, há a mulher confinada
na prisão, o mundo inferior do calabouço, sob o poder da ditadura stronista.43
Instintivamente, o semblante, e mais precisamente o olhar da jovem paraguaia,
entristeceu, como se o colorido natural de sua terra desbotasse, pela ausência do
garoto que costumava cuidar e chamá-lo de Papucho, pois ele a chamava de
Mamacha. Não tinha endereço, não se sabia onde estava. A ditadura ditava quem
prendia, quem libertava e quem desaparecia. Nem a música da cotovia, nem as águas
do rio Paraná, nem as linhas de sua escrita faziam-na desistir da busca pelo olhar do
irmão; escrever era o seu ombro e sua voz, mesmo que fosse para pedir perdão e,
para isso, precisava ir para as ruas, gritar, como em passeata de luta, estar junto da
multidão em forma de Juan, Maria e Pedro, o que a fortalecia para rimar.
É no interior da multidão e nas passagens, por sua posição intermediária entre
a rua e a residência, que o flâneur44 de Baudelaire se sente em casa, assim como
Soler. São desses espaços que ele extrai suas alegorias, distintas das alegorias
comuns, por encontrarem no banal do cotidiano urbano, sua fonte de criação, e por
introduzirem na poesia as palavras que ainda não haviam penetrado seu universo.
Isso era feito com extremo cuidado - o cuidado de Baudelaire com as palavras é
proporcional à desenvoltura com que ele transita no interior da cidade.
Já Benjamin (1991, p. 120) observa que:

43 Neste trabalho, faço uso da categoria ditadura para o caso paraguaio, entendendo-a
como um sistema de poder autoritário, personalista (centrado na figura de Stroessner) e
organização fundada na violência a qualquer tipo de oposição ao governo.
44 Em seus ensaios sobre o poeta francês, Charles Baudelaire, Benjamin chama a
atenção para a figura do flanêur que, com um prazer quase voyeurístico, comprazia-se em
observar refletidamente os moradores da cidade em suas atividades diárias. Dessa paixão do
flanêur pela cidade e a multidão, decorre a flanêurie como ato de apreensão e representação
do panorama urbano. A expansão sem precedência da economia industrial e a consequente
explosão demográfica das cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram o surgimento
do ambiente urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e perceber. Isso,
por sua vez, requeria um novo modo de olhar para o mundo e novas propostas estéticas.
Benjamin procura explicitar essas transformações, ao investigar como tais mudanças foram
registradas na literatura daquela época. Baudelaire torna-se a figura central em suas
investigações.
79

A sua construção dos versos é comparável ao plano de uma grande


cidade, na qual se pode movimentar-se sem ser percebido, encoberto
por blocos de casas, portões ou pátios. Neste mapa as palavras têm,
como conspiradores antes de estourar uma rebelião, os seus lugares
indicados com toda precisão. Baudelaire conspira com a própria
linguagem. Passo a passo calcula os seus efeitos. O que há de
específico no espaço e no tempo da modernidade é captado e descrito
por Baudelaire. Sua prosa poética “flexível e nervosa” surge dos
choques com a grande cidade.

Baudelaire se contrapõe aos românticos por não se identificar com a melancolia


resignada própria a muitos deles e por reforçar a capacidade de decisão, ainda que
essa seja pelo suicídio. “Não podemos olvidar o tempo a não ser servindo- nos dele”
(BAUDELAIRE, 1988, p. 92). Para o poeta, a opção pelo suicídio é o modo mais
dramático de recusa ao tempo da modernidade e esse gesto também pode significar
uma indisposição radical a qualquer tipo de concessão capaz de atingir a autonomia
da arte.
Para Carmen Soler, que esteve no calabouço, foi primeiramente a greve de
fome a forma que encontrou de pedir liberdade para si e seus companheiros de
partido, que se encontravam naquele processo. Ao passar mal, por não comer, foi
agredida e afogada para delatar alguns políticos que lideravam os protestos. Com
isso, ameaça com o suicídio, enviando o recado aos amigos da imprensa.
Imediatamente, a notícia é publicada, no entanto, tarde, Carmen cortara os pulsos.

El abordaje sobre la vida de Carmen Soler, destaca la apuesta


desde la poesía comprometida por un cambio radical. Siendo ella
miembro del Partido Comunista Paraguayo, se enfrentó con las
palabras a la dictadura de Stroessner, que perseguía a todas las
personas que osaban criticar al gobierno. Su compromiso y
militancia política la llevó a sufrir la persecución, el
encarcelamiento y exilio. Dejo un ejemplo de compromiso y
empeño de vivir una vida acorde con su pensamiento y sus
valores, su poesía es claramente arte comprometido con la
transformación social. (Pensamiento Crítico en el Paraguay
Memoria del Ciclo de Conversatorios 2015 (Asunción, BASE-IS,
diciembre 2015) Sistematización: Lisa Meyer (MEYER, 2015, p.
07).

O tempo estava ligado aos processos naturais de mudança das coisas e dos
homens e não era necessário medi-lo com exatidão. A ampulheta, o relógio de sol, a
vela ou lâmpada, em que o resto de cera e de óleo que permanecia indicava as horas,
oferecia medidas aproximadas de tempo. Em compensação, quando o tempo está
80

ligado ao humano, ao seu corpo, sua naturalidade e necessidades de sobrevivência,


mesmo que a razão idealista seja utopia, o espírito nutre tal projeto.

¡Espera!

¡ESPERA!
No me arrastres, tiempo.
Déjame en un rincón olvidada.
No me hieras así,
traspasándome
deja que duerma tranquila una noche,
una vez siquiera
sabiendo que no me estás robando
a pedazos los sueños.

No prives al perfume de la flor que lo sustenta.


Si le gastas al violín, tiempo,
las cuerdas se romperán
cuando la música quiera vibrar en ellas

Tarde supe que podía como una flor abrirme


hacia la vida y aún no he florecido
Tiempo
- por favor- espera!

(Carmen Soler).

Consequentemente, as experiências de Carmen Soler, bem como as obras que


produziu em forma de emergência e documentário, surpreendem pela escolha da lírica
e essa característica valoriza sua poesia revolucionária, que nos oferece, em meio à
dor, sua mais nobre sensibilidade junto ao misto de revolta.
O resultado focado nos temas olhar e literatura é justamente esse intermeio
entre o olhar e a mão que reproduz esse olhar visível/invisível por meio da escrita. O
que foi escrito, literalmente, ficção; ao chegar ao leitor, tal olhar/escritor será visto e
levado.
Assim, a trova de Carmen é associada ao pássaro, poesia viva e imperfeita.
Talvez, essa comparação seja pela característica de versos livres e poemas longos e
raramente curtos, sem medidas exatas. Ao mesmo tempo, a autora coloca seus
versos nas ruas, junto da multidão, não aguarda a rejeição, opta pelo popular, assim
como as aves.
A poesia de Soler é para seu povo, esse é seu sonho, tema recorrente em seus
textos; é por ela vivido e considerado como oposto do real. O olhar do sonhador é um
81

olhar de desconhecimento e de perda. Estar afastada de sua família, de seus alunos


e de sua rotina por um Paraguai mais igualitário é o fracasso.

Más palabras mías45


Perdonadme,
amigos literatos,
mis queridos amigos
académicos, perdonadme.
No seguí la “carrera” de poeta.
Crecí nomás con esta
vocación de recoger calandrias,46

pero nunca supe amaestrarlas.


Son incultas,
no hacen reverencias.
Son salvajes,
no pulen sus violines.
Son sencillas,
no se adornan con plumas alquiladas.

Por eso, perdonadlas,


su canto ineducado
es vivo e imperfecto.
¿Qué voy a hacer?
Si recojo palabras de agonia
no me fijo si suenan musicales,
y si encuentro esperanzas,
las reparto,
por más que no posean
las medidas exactas.
Entonces, ¡dejadme así!
Dejadme allí, en las calles,
con ellos, los sencillos.
Que Juan, María y Pedro

45 Tradução livre nossa: Mais palavras minhas - Perdoem-me / amigos literários/ meus
queridos amigos/ acadêmicos, perdoe-me/ Eu não segui a "carreira" de poeta./ Eu cresci
somente com esta/ vocação para recolher calandras,/ mas eu nunca soube como / amansá-
las./ São incultas, / Não fazem reverências. / São selvagens, /não lustram seus violinos/ São
simples/ eles não se enfeitam com plumas alugadas.//Por isso, perdoe-as/ seu canto simples/
Está vivo e imperfeito./ O que vou fazer?// Se recolho palavras de agonia/ Não me fixo se
soam musicais/ E se encontro a esperança // as reparto,/ por mais que não possuam/ as
medidas exatas,/Então,/ Deixa-me assim!/ Deixa-me ali, nas ruas,/ com eles, os simples. /
Que Juan, Maria e Pedro/ repitam minhas canções,/ as levem ao mercado,/ as coloquem nas
fábricas/ as mandem à obra./ Deixa que as repitam/ agora e durante quanto/ lhes sejam
necessárias / Depois amanhã pela manhã/Ali falam o esquecido/ E está bem assim.//Por isso,
perdoa-me/ Perdoa-me/ Que no meio do combate,/ Que no meio das prisões/ que no meio
das feras que torturam/ que no meio da noite e sua espionagem/ que no meio das vítimas e
do medo/ que em meio a pólvora e fogo,/ que em meio a fome e aos lamentos,/ e em meio a
este mundo deslocado,/ as vezes perco o ritmo e não conto (narro)/ com os dedos/ cada
verso!/ Não tenho esse remédio./ Não sei medir o sangue!/ Não sei contar as lágrimas!/ Não
sei rimar o pranto!
46 Calandra (kálandra) Pássaro parecido com a cotovia, de canto harmonioso
(Melanocorypha Calandra). Tem o corpo rechonchudo e o bico robusto.
82

repitan mis canciones,


las lleven al mercado,
las metan en las fábricas,

las manden al obraje.


Dejad que las repitan
ahora y mientras tanto
les sean necesarias.
Después, mañana, pronto,
las habrán olvidado.
Y está bien así.

Por eso, perdonadme.


Perdonadme
que en medio del combate,
que en medio de las cárceles,
que en medio de las bestias que torturan,
que en medio de la noche y su acechanza,
que en medio de las víctimas y el miedo,
que en medio de la mugre y la vergüenza,
que en medio de la pólvora y el fuego,
que en medio del hambre y los lamentos,
en medio de este mundo dislocado,
a veces pierda el ritmo y no cuente
con los dedos cada verso!
No tiene eso remedio.
¡No sé medir la sangre!
¡No sé contar las lágrimas!
¡No sé rimar el llanto!

(SOLER, 2014, p. 33).

Em “Mais palavras minhas”, ela pede perdão. E a utopia vai além da retratação;
ela compartilha sua obra, única riqueza que pode oferecer por meio de suas
experiências:

Dejadme allí, em las


calles, com ellos, los
sencillos.
Que Juan, María y Pedro […]

Benjamin teoriza que o conceito de experiência integral é, por sua vez, satisfeito
pelo conhecimento metafísico. O cerne da discussão sobre a aura da obra de arte e a
literatura remete, assim, e mais uma vez, à tradição. No que concerne à obra de arte,
a tradição refere à presentificação de um tempo e de um espaço litúrgico, cultural no
que diz respeito à literatura, uma forma de escrita específica, qual seja, a narrativa.

Em Carmen, a experiência é latente e o eu lírico é e está deixado na


escolha de cada palavra e constituição dos versos. No poema acima
depreendemos que se o verso não chegar ao público, Carmen vai
83

até ele e deixa-se na rua com Juan, Maria e Pedro, depois não pode
ir só. Nessa produção, a submissão, a impotência e a censura
também são fortemente presentes, mesmo se tratando de um
sonho.

FIGURA 6 - Guernica47 , Pablo Picasso, 1937

Esse sonho nos traz ainda uma das imagens do quadro de Pablo Picasso,
Guernica, entretanto, na visão de quem está sabendo da total destruição social,
ideológica e política de dentro do calabouço.

Em “O Olhar-louco”, de Fábio Landa, capítulo que agrega a obra O Olhar de


Adauto Novaes, encontramos:

Em Guernica. Na parte superior, uma forma de olho que se repete em


muitos outros lugares do quadro. Esse olho paira como uma espécie
de sol; próxima dele, uma pamparina que parece encostar neste sol;
a comparação entre as duas fontes de luz é quase grotesca. A cabeça
do touro está de perfil, os olhos de frente. O esporão na boca do cavalo
lhe pertence ou rasga-o? O olho de um moribundo, outro de um morto;
no quadro, multiplicam´se os olhos, os olhares, a perplexidade, o
espanto, a indignação. Os fragmentos desse quadro não são caóticos;
não contam nenhuma história, mas um episódio que rompe a história;
o caos é só aparente, há uma espécie de ordem e sobretudo de
notícia, talvez a intenção de um recado (LANDA; NOVAES, 1993, p.
425-426).

Para Perrone-Moisés, o olhar que pode ser definido como observador de si


mesmo: “Estático e cego para o mundo exterior, incapaz de estabelecer uma relação

47 Fecha: 1937 (1 de mayo-4 de junio, París). Técnica: Óleo sobre lienzo.


Dimensiones:349,3 x 776,6 cm Categoría: Pintura. Año de ingreso: 1992.
84

do sujeito que olha com o mundo sensível”. O olhar de Carmen pode ser assim
descrito:

[...] pela impossibilidade de se deter naquilo que Merleau-Ponty chama


de “carne do mundo”. Descarnado ele mesmo, corpo que nega sua
corporalidade, vê as coisas irreais como símbolos de uma realidade
oculta, igualmente invisível […]. Aquilo que Benedito Nunes, apontou
como “o primado da consciência reflexiva”. A reflexão excessiva [diz
Benedito Nunes] se opõe ao sentir espontâneo, a plenitude das
vivências puras, explica o desdobramento, tão patente nos poemas
[expõe Perone-Moisés]. Os atos de olhar, ouvir e lembrar. Mais do que
olhar, o poeta vê se olhando. (PERRONE-MOISÉS apud NOVAES,
1993, p. 328-329).

A simplicidade e a forma com que as palavras do eu lírico iniciam a primeira


estrofe é um diálogo com a cultura literária e ao mesmo tempo ecoa na história como
um mantra. O pedido de perdão é justificado pelas ações e personalidade da poetisa;
o elemento ‘pássaro’, aqui, surge com a Calandria, pássaro de difícil domesticação,
porém, com um canto singelo e simples, considerado selvagem e de personalidade
única entre as aves. Seria o mesmo olhar de ligação entre a ave com a terra e o céu,
a utopia da liberdade, sendo que, mesmo na poesia, Carmen se frustra pela
possibilidade de fraquejar. Podemos indagar também o porquê de Carmem se
colocar em meio às ruas e multidão.
Para Fernandez (2016), as poesias de Carmem reproduzem além dos versos
brancos, pois os lançamentos atuais das obras que deixou estão acontecendo,
empreendendo o caminho do reconhecimento na poesia de combate e revolução,
bem como a importância como memória e autotestemunho.

No entanto, é de se esperar que esta primeira tentativa de recuperar


e reunir a maior parte de sua produção poética continue em trabalhos
de longo prazo. Enquanto isso, pode-se dizer que o presente volume
nos coloca na presença de uma poesia cada vez mais inevitável e
que, na melhor das hipóteses, atinge aquela plenitude expressiva
que só ocorre em grandes poetas. (FERNANDEZ, 2016, s./p.).

A cultura paraguaia inseriu as obras em eventos pelo país, pela forte


representação do povo. Por isso, a nossa aproximação de Carmem com Baudelaire,
dadas as características em imprimir em sua escrita a rebeldia, o pedido por justiça
ou a denúncia.
Baudelaire propiciava a impressão de que a alegria, o tumulto e a
despreocupação eram experimentadas em meio às ruas e aos rebeldes de 1848.
Taine e Gustave Le Bon, segundo Rudé (1991, p. 08), são os criadores da moderna
85

psicologia de massas e se inclinam a tratar a multidão em termos, a priori, como:


“irracional, instável e destrutiva, como intelectualmente inferior a seus componentes
como primitiva ou com tendência a reverter a uma condição animal”. Le Bon admite
também que os tipos criminosos, degenerados e pessoas de instintos destrutivos
tendem a se sentir atraídos pela multidão. Esse estereótipo é homólogo ao estereótipo
do artista moderno de vanguarda, que se constrói a partir da articulação
animal/louco/artista e em oposição a humano/normal/racional.
Para Benjamin, entretanto, o que se coloca em primeiro plano é o discurso de
Baudelaire, os fenômenos da realidade que esse discurso manifesta e decifra.
Benjamin não aproximava a psicanálise e a arte, reforçando a tese clássica da arte
como sublimação; por isso mesmo, ele pôde ver a modernidade a partir de Baudelaire.
Reduzir a experiência e a obra de Baudelaire à esfera privada, a pequenos conflitos
familiares e amorosos é nivelá-lo aos folhetinistas de sua época.
A estética é o plano artístico de sua realidade, de sua memória. Pode até não
ser autobiografia em forma de poesia, mas é para ser lido e recitado como poema a
partir de fatos vividos que fizeram parte da história cronológica, geográfica e social de
sua autora, posteriormente, como memória social paraguaia.
Nesse aspecto, Cervera (2017), poeta paraguaio, afirma que toda poesia
deveria servir como essa voz que ecoa e permanece.

Seus poemas, os quais expressam com uma sobriedade intensa uma


militância política, uma preocupação constante e uma luta pela
libertação de seu povo. O exílio, a prisão e, logicamente, o silêncio
com o qual no seu próprio país tentam evitar o seu trabalho,
subscrevem essa atitude. (YACOVSKY, 2017, s./p.).

A obra de Soler possui, além dessas características, temas profundamente


ligados ao respeito e à valorização da mulher, à sua imensa paixão pelo ser humano,
indo além da denúncia e do combate, recebendo, carinhosamente, como vimos, o
apelido Mamacha, dado por seu pai quando menina porque cuidava e defendia o
irmão Miguel Apontes Soler48 (desaparecido político do Paraguai); impulsionou a

48 Uma das muitas vítimas paraguaias do ditador sanguinário Alfredo Stroessner tem o
rosto hoje, Miguel Ángel Soler, desaparecido em 29 de novembro de 1975; foi, na
clandestinidade, secretário do Partido Comunista. O livro "Decisões judiciais sobre casos de
violação dos direitos humanos", do Dr. Rodolfo Manuel Aseretto, detalha o desaparecimento
de Soler, em 1975. Seus restos mortais foram identificados 40 anos depois. O escritor ressalta
que Soler exerceu o cargo de secretário geral do Partido Comunista do submundo.
Seu desaparecimento foi denunciado em 28 de fevereiro de 1976; seus restos foram
encontrados em 23 de dezembro de 2009, em túmulo individual na Associação Especializada.
86

atuação de Carmen, que se dedicava a buscar o paradeiro do irmão após seu


desaparecimento político, fato que também a levou a priões e a suas produções. Na
pesquisa sobre Miguel, encontramos outro codinome para Carmen, poeta de aço, em
reportagem do jornal ABC Color. A relação com o irmão fez com que ela se dedicasse
à defesa dos muitos desaparecidos, envolvendo, dessa forma, a ditadura como veia
clássica de seus temas líricos.

Sua poesia é simples, musical, rebelde, tem força e ternura ao mesmo


tempo. Carmen Soler é uma lutadora e sensível, expressa em seus
poemas de amor com o mesmo fervor com o qual canta para o povo,
com a mesma paixão com que ela defende seus ideais. "Paraguai, o
coração verde te chama / quem sabe que você aumenta. / Verde para
suas esperanças e coração porque você sofre. (SOLER apud
NOGUERA, 2017, s./p.).

Para Maria Eugênia Apontes Soler, filha de Carmen, a obra de Soler,


no contexto atual, é historicamente forte, terna e sincera. A recepção já entrou para
a história paraguaia, visto que alguns textos foram inspirados; seus versos estão

O corpo foi exumado entre 11 e 13 de janeiro de 2010. A polícia stronista conseguiu localizar
sua casa em Villa Morra, na madrugada do dia 29 de novembro. Vários prisioneiros viram
quando Soler entrou no Departamento de Investigações e ouviram a brutal tortura sofrida pelo
líder político. Poucas horas depois de ser preso, ele foi assassinado pelo pastor Coronel,
chefe de investigações.
Apesar dos pedidos e demandas de organizações internacionais, o governo nunca se
encarregou dessa prisão. O anúncio da identificação de seus restos foi feito em 30 de agosto
de 2016. Soler era líder estudantil e ocupava os principais cargos das organizações
estudantis. Pertenceu ao Partido Revolucionário Febrerista, dentro do Bloco de Libertação
Nacional, um setor progressivo de febrerismo. Mais tarde, ele se juntou ao Partido Comunista
do Paraguai, em que, após as divisões internas do partido, passou a ocupar o secretariado
geral.
Sofreu o exílio; amigo de Elvio Romero, teve grande apoio de suas irmãs, Carmen,
poeta de aço; Lali e Yoyi, além do apoio da mãe em anos difíceis.
Nesse caso, o pastor Coronel, Lucilo Benítez e Juan Martínez foram condenados a 16
anos e 6 meses. Na ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), houve quase 500
desaparecimentos de pessoas. Fonte: ABC COLOR, Jornal, 30 de ago. 2016. Disponível:
http://www.abc.com.py/nacionales/soler-30-anos-de-dolor-1513697.html Acesso: 28 out.
2018
O coordenador da Equipe Nacional de Busca e Identificação (Enabi) de desaparecidos
da ditadura stronista adianta que sua equipe voltará a escavar em Assunção, no Agrupamento
Especializado da Polícia Nacional, onde encontraram os restos de Rafaela Giuliana Filipazzi
Rossino e de Miguel Angel Soler Canale – os primeiros desaparecidos paraguaios
identificados –, porque foram construídos muitos prédios, depois de 1980, debaixo dos quais
haveria mais sepulturas. O médico paraguaio encontrou essa referência, graças ao
testemunho confidencial de 34 ex-militares e policiais que apontaram o local onde foram
enterrados os corpos. Fonte: Instituto Humanita Unissinos Reportagem: Papai espera um dia
ser encontrado http://www.ihu.unisinos.br/78- noticias/559787-papai-espera-um-dia-ser-
encontrado Acesso: 28 out. 2018.
87

em sua terra materna e poemas se tornaram canções, ao serem musicalizados.


Sua obra é de grande importância para a cultura tradicional do Paraguai.
Atualmente, seus livros estão em diferentes compilações de poemas; estão na
literatura e na cultura paraguaia. Matena confirma que Carmen está nos livros
escolares, agendas e revistas de organizações de mulheres.49 Diz Matena:

Divulgar a poesia de Carmen Soler (Mamacha), libertando sua canção


injustamente silenciada por mais de trinta anos de ditadura de Stroess,
foi uma dívida que tivemos com o povo paraguaio, com seu povo.
Por que Mamacha escreveu para ele. Em versos curtos e simples ela
colocou sua voz, seu sangue, com força e ternura ao mesmo tempo,
mas sem lamentos. São poemas que podem ser aprendidos: eles
estão sempre chamando por rebelião.
Aqui estão suas definições estéticas, seu compromisso, sua angústia,
suas expressões de amor, seu fervor de luta. E seu testemunho: os
poemas de La Cárcel datam de 1955, 1960 e 1968. Quinze anos
cumprindo o ciclo de prisão, exílio e seu obstinado retorno ao trabalho
clandestino.
Ela adotou com dignidade a prisão, os tormentos e o longo exílio que
arrastou, sempre ansiando por seu amado Paraguai, fazendo de sua
produção poética e jornalística uma arma de luta e expressão.
Carmen Soler não viu o fim da ditadura de Stroessner. Ela morreu em
Buenos Aires em 19 de novembro de 1985. Ela não teve a felicidade
de retornar.
A alegria que encontrou na luta e na criação (poemas, histórias,
artesanato, quadros), sua coragem, nos levam a realizar esse
encontro adiado, aqui em sua terra natal, cumprindo seu desejo
(tradução nossa em construção)

A obra de Carmen inaugura na literatura paraguaia a mulher como escritora e


contra as injustiças sociais, com seus ideais políticos. O olhar da mulher Carmen
dedicou-se a duas facetas sociais, raras na história de mulheres escritoras; a questão
ideológica política por seu povo, já que enfrentou corpo a corpo tal realidade, mas,

49 Há uma rua em Assunção que é nomeada em sua homenagem e há uma comunidade


de Carmen Soler na localidade de Límpio, que deu às ruas nomes de diferentes poemas;
também a escola dessa localidade leva seu nome.
50
Tradução livre nossa. Apresentación, por Matena Aponte Soler do original: Dar a conocer la
poesía de Carmen Soler (Mamacha), liberar su canto injustamente silenciado por más de treinta años
de dictadura stronista, era una deuda que teníamos con el pueblo paraguayo, con su pueblo. Porque
Mamacha escribía para él. En versos breves y sencillos puso su voz, su sangre, con fuerza y ternura a
la vez, pero sin lamentos. Son poe estéticas, su compromiso, sus angustias, sus expresiones de amor,
su fervor combatiente. Y su testimonio: los poemas de La Cárcel están fechados en 1955, 1960 y 1968.
Quince años cumpliendo ese ciclo de cárcel, destierro y su obstinado regreso al trabajo clandestino.
Soportó con dignidad la prisión, los tormentos y el largo exilio que arrastró, añorando siempre su querido
Paraguay, haciendo de su producción poética y periodística un arma de lucha y de expresión. Carmen
Soler no alcanzó a ver el fin de la dictadura de Stroessner. Murió en Buenos Aires, el 19 de noviembre
de 1985. No tuvo la dicha de volver.La alegría que encontró en la lucha y el la creación (poemas,
cuentos, artesanías, cuadros), su coraje, nos impulsa a concretar este postergado encuentro, aquí, en
su patria, cumpliendo con este anhelo suyo.
88

também acrescentamos nesta pesquisa de “alma a alma”; além disso, a de artista,


escritora e pintora.

Os poemas reunidos no livro foram tirados de três outros em que


Carmen Soler trabalhou: Na tempestade, Poemas em dois tempos
e A casa assombrada. Carmen preparou seu livro Na tempestade
enquanto lutava contra sua doença. Ele queria editá-lo em
Montevidéu, mas foi finalmente publicado em Buenos Aires em
1986, logo após sua morte. (YACOVSKY, 1970, s./p.).51

O místico e o real em Carmen se mesclam e a tradição pela cultura e linguagem


paraguaia é qualidade em suas obras. Em seus poemas, há praticidade desde o título,
colocando o leitor diante do contexto do eu lírico. Os temas e seu olhar, associado a
imagens, sons, gritos por meio de figuras de linguagens; o sujeito lírico, presente em
seus poemas, expõe e denuncia, mas, ao mesmo tempo, cria tipos - com personagens
típicos do Paraguai, (Carteiro, Chipera, os típicos Juan, Maria e Pedro, A Obrejita e o
Carteiro – personifica: O pincel e o muro, A Cotovia Ferida e Cega, cria o filho de sua
pátria – se fortalece com o canto da calândria, dá luz, som e canto às mulheres e aos
campesinos); elabora situações comuns no tempo rude que viveu no cárcere.
Reproduzimos O carteiro fantasma.

El cartero fantasma52

En la prisión existe
un cartero fantasma
que va de celda en celda
entregando las cartas
que nunca se enviaron,
recogiendo cartas
que nunca se escribieron.
Va y regresa ligero
con zapatos alados
por caminos sin rastros.
El cartero fantasma
se mueve en el peligro
como en su propia casa.
Los guardias lo presienten,
lo buscan, lo persiguen,

51 Disponível em: <http://carmensoler.wix.com/inicio#!>.


52 Tradução livre nossa. O carteiro fantasma: Na prisão existe/ Um carteiro fantasma/
Que vai de cela em cela/ Entregando as cartas/ Que nunca foram enviados,/ Recolhendo
cartas/ Que nunca se escreveram./ Vai e volta leve/ sapatos alados/ Por caminhos sem rastro./
O carteiro fantasma/ Move- se no perigo/ Como na sua própria casa. Os guardas / O procuram,
o perseguem./ Mas ele escapa sempre./ É só luz que se filtra/ Tal como a esperança./ É um
raio de lua./ É o vento que passa.
89

pero siempre se escapa.


Sólo es luz que se filtra
igual que la esperanza.
Es un rayo de luna.
Es el viento que pasa.

(Carmen Soler).

Uniremos as duas artes que Carmen produziu, em contextos e tempos


diferentes; a pintura, que nominaremos “O olhar e a cela em frente”, com as
personagens mulheres na cela, e o misterioso e encantador poema O carteiro
fantasma, de uma magnitude que só grandes poetas criam. Assim, exploram-se os
sentidos do olhar, os sons, dividindo o mundo de quem olha de ‘dentro’ da cela, o
que nos leva à resiliência humana de perceber que o eu lírico, e mesmo nós, estando
com o olhar ‘fora’ do contexto, nos prendemos aos versos e à pintura, explorando o
imaginário, a linguagem conotativa e as figuras de palavras e linguagem.
A primeira visão que se tem de uma cadeia é pouca luz e quase nenhum
movimento de pessoas, isolamento e solidão. Privar-se de contato social. Em O
carteiro fantasma, a simplicidade de construir a situação oferece criatividade ao
espaço, que incide entre a realidade ficcional e não ao real em sua concretude. Não
apenas o carteiro foge dessa mera realidade que a poetisa usa para criar os passos
do herói, mas também as ações dos que participam do enredo. Carmem utiliza
recortes de ações do cotidiano (distante de quem está aprisionado), porém, são
fatias de instantes recolhidos da realidade que tornam o destino das personagens do
poema menos trágico.
90

FIGURA 7 - Pintura de Carmen Soler ‘As três mulheres na cela’53

O título sugere ficção e heroísmo, induz ao terror como uma história infantil e,
ao mesmo tempo, mito, lenda urbana e ficção. Intitulado por uma profissão, no caso
o carteiro, que continua sendo Carteiro, mesmo quando se torna Fantasma. A beleza
do poema está no prazer na leitura. Barthes descobre o que denomina como prazer
do texto: o texto como objeto de prazer, o texto como gerador de prazer. O prazer do
texto é uma procura que vai além da mera comunicação, é o espaço do gozo. “Nada
mais deprimente” – escreve Barthes – “do que imaginar o texto como um objeto
intelectual (de reflexão, de análise, de comparação, de reflexo”:

[...] O texto muitas vezes é apenas estilístico: há felicidade de


expressão, e elas não falam nem em Sade nem em Fourier. Por vezes,
entretanto, o prazer do texto se realiza de maneira mais profunda (e é
então que se pode realmente dizer que há Texto): quando o texto
“literário” (o Livro) transmigra para dentro de nossa vida, quando outra
escritura (escritura do Outro) chega a escrever fragmentos da nossa
própria cotidianidade”. (BARTHES, 2005, p. 14).

A poetisa introduz os versos já situando o espaço em que se encontram: o


carteiro faz parte do local e, como ele é fantasma, há a possibilidade de que sua morte
tenha sido ali. Dessa forma, continuou sua ‘labuta’, passando de cela em cela, bem
como a utopia da ação e o efeito criado pelo serviço do Carteiro.
A função social da escrita de cartas desperta no leitor múltiplas imagens,
remetendo a tempo, pessoas, lugares que vêm à tona em um painel de saudades.

53 Título nosso para classificar a pintura, especialmente, para este estudo.


91

Porém, a alegria com a presença do tipo social e a função que exerce em nossas
vidas nos dá, se é que existe, ‘esperanças fantasmas’. Em seguida, a decepção, visto
que, entre o primeiro e o sétimo verso há, a nosso ver, o emissor e o destinatário como
estando preso na mochila do Carteiro fantasma; nenhum realiza a função da
comunicação, no entanto, o carteiro está ali.

En la prisión existe
un cartero fantasma
que va de celda en celda
entregando las cartas
que nunca se enviaron,
recogiendo cartas
que nunca se escribieron.
[…]

O segundo fragmento, o Carteiro Fantasma, além de ser fantasma, possui


poderes, tornando-se o eu lírico Super Herói. O carteiro Fantasma da Prisão das
mulheres. A analogia supera a dor da realidade por ele ser fantasma e cumprir com
seu papel, levar e entregar mensagens, valorizando como ouro e prêmios suas
habilidades com o seu dever cívil cumprido.
Aonde vai? Que regressa tão ligeiro? Os sapatos ganham poderes, sua força
física se move diante do perigo. No décimo segundo verso, Carmen induz novamente
que o lugar do carteiro também é o mesmo das que moram na prisão.

Va y regresa ligero con


zapatos alados
por caminos sin rastros.
El cartero fantasma
se mueve en el peligro
como en su propia casa.
Los guardias lo presienten,
lo buscan, lo persiguen,
pero siempre se escapa.
[…]

Nos quatro últimos versos, os elementos da natureza tomam conta das ações
do nosso herói. Apenas a luz, sua força para enfrentar os maldosos que o perseguem
está na esperança. É um raio de luz, é o vento que passa? - Não, é o olhar do Carteiro
Fantasma...

Sólo es luz que se filtra


igual que la esperanza.
Es un rayo de luna.
Es el viento que pasa.
92

Como está reproduzido, porém, o espaço do personagem também é o cárcere,


a prisão; o eu lírico é alguém aprisionado, que está ‘dentro’, que recebe o olhar de
quem está ‘fora’. O carteiro, no entanto, não pode libertar a heroína que tem atitude
de Super heroína, uma vez que, infelizmente, é Fantasma.
Em um artigo54, citamos a estética e o plano artístico de sua realidade, de sua
memória. Pode até não ser autobiografia em forma de poesia, mas é para ser lido e
recitado como poema a partir de fatos vividos que fizeram parte da história
cronológica, geográfica e social. Sendo assim, autobiografia e poesia, realidade e
ficção, Mamacha e Alondra, revolucionária e poetisa, criam uma dupla assimilação por
parte do leitor, conforme ressalta Gasparini (2004, p. 73):

Ora ficcional, ora autobiográfica”. Nesse aspecto, Cervera, 2017, um


dos melhores poetas paraguaios, afirma que toda poesia deveria servir
como essa voz que ecoa e permanece. Seus poemas, expressam com
uma sobriedade intensa uma militância política, uma preocupação
constante e uma luta pela libertação de seu povo. O exílio, a prisão e,
logicamente, o silêncio com o qual no seu próprio país tentam evitar o
seu trabalho, subscrevem essa atitude.

A obra de Soler possui, além dessas características, temas profundamente


ligados ao respeito e à valorização da mulher, à sua imensa paixão pelo ser humano.
O olhar da pintora está afastado da cena que envolve - à primeira vista - apenas três
personagens no quadro. Lança o olhar em direção aos modelos presentes no fato
registrado. Utiliza cores escuras e pastéis. No entanto, os tons utilizados para
representar as grades deixam - para quem vislumbra a tela – o exato lugar em que a
pintora está, sendo as de sua cela mais escuras e a da cela em frente mais suaves.
Trata-se, então, de uma pintura testemunho, no entanto, sem poder ter reação
alguma, pois está no mesmo contexto, mudando apenas a cela, que é em frente ao
que pintou. O quadro não tem título e nem data em que foi produzido.
Como a situação contém algo agressivo e violento, envolvendo a vida de três
mulheres vistas por uma quarta, também presa, subentendemos que Carmem, em
sua memória fotográfica, produziu a tela em outro momento.
A nossa escolha da pintura para ilustrar o poema El Carteiro Fantasma tem um
fundamento, ambos foram produzidos em contextos diferentes, mas unimos, na

54 Wilma Nunes Rangel – Um quê de paraguaia na literatura latino-americana, XIII


Seminário Nacional de Literatura História e Memória. Unioeste, nov. 2017. p. 19.
93

análise, a tela e os versos, assim, nos vemos frente a frente com o tema prisão,
calabouço, ausência de liberdade e duas presas isoladas dentro de si e dentro da
cela; elas observam o corredor da prisão, como quem olha um mundo que vive do
lado de “fora” ou do que vem do mundo de “fora”.
A sensação é de que a expressão do primeiro olhar, desenhado pela mão hábil
da artista, com a cabeça pendente para o chão, sustenta o olhar, dirige-se em direção
ao olhar da pintora; em troca, morre sobre o último gesto suspenso e captado pelo da
artista, mesmo que morto, entre a ansiedade em não ter a fina ponta do pincel ou um
lápis que possa registrar o gume do olhar que se vai.
O trágico está na cela em frente. Jogado sob uma cama, os braços pendidos
para o chão, causando revolta por não poder fazer nada. Indignada, a artista tem
nesse sentimento a multiplicidade de vontades de fazer algo, entretanto,
passivamente, planeja pintar o fato cena.
Na dúvida - de quem observa a pintura -, se a personagem da obra está viva
ou morta, com a expressão do olhar fisicamente entorpecido, inerte pelo estímulo da
luz, mas que em seu fundo, mesmo com uma grade da cela encobrindo parte do olho
direito, reflete no expectador o olhar da esperança ilusória ou passível de ter o olhar
vivo, mesmo nessa realidade em que as personagens estão aprisionadas.
Todavia, a segunda personagem, debruçada sob o peito esquerdo da dona do
olhar, não mostra o rosto; está lamentando a perda da colega de cela, deixando a
nítida impressão de que esteve tentando fazê-la reagir ou ouvir o coração para se
certificar de que a morte as visitou. Já a terceira personagem, aguarda a resposta e o
cair da cabeça da segunda, que verifica o coração, confirmando a morte da
companheira. O olhar assustado da terceira personagem é de quem pela primeira vez
viu a morte tão perto de si; já a da segunda personagem, pode ser associado com o
sentimento de amizade, relação de carinho que gerou tal dor, angústia e tristeza.
Porém, o que causou a morte da presa? Se observarmos a pintura, veremos
automaticamente que também há dentro do ambiente um par de butinas (botas), calça
masculina e a tonfa55 de guarda, carcereiro ou soldado, dentro da cela, mesmo
ambiente. O que está fazendo ali? Para ajudá-las, não seria.
Mas o olhar que pinta a cena não está dentro da cela; está fora. Entretanto, é
um fora que está dentro de outra cela que a prende. Percebemos isso nas cores das

55 Cassetete.
94

grades, como se estivesse apenas observando, no entanto, não reage, pois não pode;
apenas registra, pinta, dá cor e transforma em arte.
Carmem apresenta o paradoxo ao construir a imagem como pintora, artista
plástica que muito nos ajuda a entender a poeta que vive o dilema entre o ‘dentro’ e o
‘fora’ da maneira que ela surge como o quinto olhar no contexto. A impossibilidade,
tanto na arte da pintura como na arte da escrita, congelou, como estátua pensante.
Para Barthes, o artista produz o efeito desejado por meio do olhar e da intenção
do que olhar.

O artista […] é, por estatuto, um operador de gestos; quer e, ao mesmo


tempo, não quer produzir um efeito; os efeitos que produz não são
necessariamente intencionais; são efeitos inversos, derramados, que
lhe escaparam, que voltam a ele e provocam, então, modificações,
levezas, desvios do traço. (BARTHES, 1982, p. 148).

Nosso objetivo em aproximar a tela das ‘Três mulheres na cela’ do poema O


Carteiro Fantasma é que Carmem não constrói apenas a imagem do poeta que vive
o dilema entre o olhar de ‘dentro’ e o olhar ‘fora’, mas também é a pintora que constrói
o ‘dentro’ e o ‘fora’.
Elias (1994), em capítulo do livro “As estátuas pensantes”, produziu uma
parábola para que se possa entender essa distância entre a cela de cá e a cela de lá,
entre o dentro e o fora expresso na pintura e também no poema. Facilitará notar os
motivos que levaram a pintora e a escritora a essas imagens que envolvem vida,
morte, fantasma, ajuda e a concretude da escrita em forma de fábula. O autor sugere
o dilema entre o olhar de “dentro” e o olhar de “fora”.

À margem de um largo rio, ou talvez na encosta íngreme de uma


montanha elevada, encontra-se uma fileira de estátuas. Elas não
conseguem movimentar seus membros. Mas têm olhos e podem
enxergar. Talvez ouvidos, também capazes de ouvir. E sabem
pensar. São dotados de “entendimento”.

O eu lírico cria um personagem e narra externamente as ações do carteiro


como se também fosse fantasma, ou estátua, parada, observando, assim, como na
pintura das três mulheres na cela. O paralelo com a pintura e as estatuas é a da
produção do objeto de arte tanto da tela, quanto do poema; que olhar há nos objetos
– o olhar vigilante, o olhar à espreita do que está acontecendo nas celas, em
especial, na cela ao lado. O olhar do eu lírico no poema é pura ficção e utopia, o
95

carteiro e o sonho em poder escrever cartas, enviá-las par ao mundo exterior e receber
respostas.
No entanto, o olhar vigilante e à espreita de Carmem foi guardado, preso,
esperado, pois não podia produzir tais objetos ali, no cárcere. Seus olhos ficaram
distantes e sem produzir sua arte, até o momento oportuno, quando a lembrança
pediu, exigiu que a memória e o autotestemunho ganhassem forma e vez.
A visão de alguém precisando de socorro médico, os gritos, os pedidos, os
gemidos de dor de quem está partindo, a fraqueza imóvel que quem não pode abrir a
cela e ajudar, ou até mesmo, morrendo. A escuta das duas colegas tentando socorrer
e a presença passional e covarde de um soldado. A pintura usa a técnica das cores
escuras, claras na tela; os personagens entre sombras tornam a imagem mais real. A
matéria-prima para produção dessa tela é o fato desolador que acontece dentro da
cela, diante da pintora. O eu lírico relata, numa retrospectiva, episódios relacionados
à experiência. Mas o sujeito autobiografado é ficcionalizado. No nível discursivo,
circulam alusões de toda ordem e sensações da memória são entrecortadas por
intervenções irônicas, que excluem revelações ou cumplicidades com o leitor.

Podemos presumir que não vejam umas às outras, embora saibam


perfeitamente que existem outras. Cada uma está isolada. Cada
estátua em isolamento percebe que há algo acontecendo do outro lado
do rio ou do vale. Cada uma tem ideia do que está acontecendo e
medita sobre até que ponto essas ideias correspondem ao que está
sucedendo. Algumas acham que essas ideias simplesmente espelham
as ocorrências do lado oposto. Outras pensam que uma grande
contribuição vem de seu próprio entendimento; no final, é impossível
saber o que está acontecendo por lá.

O sujeito autobiografado é ficcionalizado e testemunhal. Essas criações de


Soler permitem no poema a retrospectiva de dois episódios relacionados à sua
experiência.

Cada estátua forma sua própria opinião. Tudo o que ela sabe provem
de sua própria experiência. Ela sempre foi tal como é agora. Não se
modifica. Enxerga. Observa. Há algo acontecendo do outro lado. Ela
pensa nisso. Mas continua em aberto a questão de se o que ela
pensa corresponde ao que lá está sucedendo. Ela não tem meios de
se convencer. É imóvel. E está só. O abismo é profundo demais. O
golfo é intransponível. (ELIAS, 1994, p. 96-97).

As pinturas de Soler nos aproximam dos poemas; oferecem ao leitor páginas


de experiências relatadas por um eu lírico narrador que poderíamos classificar como
confesso e testemunha, nas quais surgem os temas da obra soleriana. Esse eu lírico
96

dialoga com seu povo e age em seu cotidiano como se criasse um olhar externo,
possível de um dado momento mudar ou alterar o enredo, tanto na ficção como na
realidade.
Carmen produziu muito (alguns escritos em papel áspero de pão ou decorados
mentalmente). Lentamente, à medida que o tempo passava, a poeta criava; a mulher
que acreditava na justiça e na representação da lei descobre, atônita, uma realidade
sobre a qual não possuía nenhum poder. A cada dia, como A Halondra Herida56, sem
poder estar livre e cega por não saber o que acontecia a quem amava, percebe que
seus versos são peças testemunhas dentro da máquina do poder ditatorial.
Vale ressaltar que necessitou de mais de três décadas para que Soler e sua
obra recebessem em terra materna uma homenagem. Tal feito se fez pela memória
mantida por seus familiares e amigo, o mesmo que a conheceu e manteve vivo seu
pulsar de rimas e versos. A aproximação com Carmen ocorreu por meio do site
Guatá57, na página em que estava a publicação de Miguel Ángel Fernandez (2016).
Já no evento, em outubro de 2017, houve a homenagem dos escritores Noelia
Cuenca e Nadia Orué, que fizeram a Conferência intitulada “Carmen Soler Poética y
barricada”, com declamações de poemas da homenageada por Joel Filártiga e
Ricardo de la Vega.
Desde que iniciou seu trabalho como professora bilíngue em áreas carentes no
entorno de Assunção, escreveu seus primeiros poemas, nos quais expressava a
realidade das crianças que se sentavam nos bancos da sua sala de aula,
Sua obra, desde o princípio, vem registrada de memórias de mártires e heróis
da sua terra, de certa forma, para registrar oficialmente do seu jeito o que a linguagem
oficial dos governantes publicava.
Como quem precisava dar-lhes mais do que o alfabeto, respeitava a língua
materna, o guarani, mas também lhes apresentava o espanhol. Soler, principalmente,
escrevia para folhetins sua angústia diante da precariedade das famílias de seus
alunos e preocupação com o futuro em cada olhar.
A arte literária tem uma parcela ao transcrever acontecimentos históricos, pois
contribui com o verídico, na contemporaneidade, quase inexistente, como se existir
não fosse mais um olhar para o horizonte, bater asas e voar, em que conseguimos

56 Cotovia Ferida (cega).


57 Guatá em guarani, significa caminho(s).
97

simplesmente tocar de leve o viver – e tem que ser registrado; se houver solidão, o
olhar está permitido. Marilena Chauí (1998, p. 70), quando descreve que o “olhar é,
ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”, afirma que a visão
não é aquilo que se presencia no primeiro golpe de vista, mas busca ver o interior do
próprio visível.
Para a mulher e mãe Carmen, o olhar que amanhecia e não repousava no
calabouço e na solidão do aprisionamento e da violência que sofreu teve amparo na
pintura. Para Silva (2007, p. 96): “Enxergar implica discutir os termos desse olhar,
observar com ele o mundo, mas colocá-lo também em foco. Enxergar mais é estar
atento ao visível e também ao que está fora do campo, tornando-o também visível”.
Ao descortinarmos a biografia de Soler e sua herança em forma de versos
espalhados pelos países em que viveu, os amigos que teve e sua família, nos
aproximamos do que chamaríamos de “pérola de mulher”, nos remetendo à triste
experiência da traumática tortura, ressignificando essa memória com o que há de mais
verídico e delicado: a poesia e pintura.
A tradição, em contrapartida, consiste em algo basicamente histórico; ela é
conjunto de saberes, costumes e hábitos que se plasmam em valores, modos de ser
e fazer de indivíduos inscritos sob um mesmo registro real e imaginário.

[…] a dimensão na qual aloja a ‘aura’ do tempo, a consolidação da


experiência coletiva, a autoridade que garante o acesso do indivíduo
à dimensão de sua ancestralidade que pertencem a uma mesma
comunidade, tradição que pulsa em cada instante do ‘agora’. A
recordação (Eigendenken) é a anamnese da experiência coletiva na
sua forma social, os rituais. (MATTOS, 1989, p. 32).

Em Benjamin, a tradição é a unidade do agora; ela contém o “absolutamente


presente”, como unidade do presente, do futuro e do passado. É por intermédio desse
exercício de rememoração (Eigendenken) que o agora, como elemento explosivo,
pode interromper e mudar o curso da história. Assim, a tradição pode ser entendida
como o liame, o elemento que congrega e mantém vivos todos aqueles saberes que
perdurariam por sua eficácia e valor, no decorrer dos tempos; ou melhor, a tradição é
a sabedoria do tempo que não é condicionada pelo tempo, que não está à mercê dele.
Há insistentemente o convite a vislumbrar seu olhar, sobreolhares, múltiplos
olhares sobre a visão paraguaia original que, em forma de versos indignados e
viscerais nos traz o olhar da obra Lo Verdugo (Carrasco). Ao encararmos seu “eu
98

desdobrado”, ainda o sentimos respirar, mesmo distante entre o tempo da tortura e o


da produção da obra pela pintora.

A autobiografia, a escrita sobre si mesmo, é uma modalidade literária


complexa e em grande parte contraditória, porque permite ao leitor
viver, com intensidade especial, a ilusão de entrar em uma experiência
real; mas a voz que fala - a pessoa que vivia os eventos narrados é
sempre a de um "eu desdobrado, cujo eixo principal é a memória,
porque se desenvolve na distância entre o vivido e o evocado.
(YVANCOS, 2005, p. 233).

Incomum, Soler é encontrada na história literária ou textos literários por vários


motivos. Em primeiro lugar, pelo fato de ter lutado toda a sua vida contra uma das
ditaduras mais longas e mais cruéis da América, a de Stroessner (1954-1989). Por
suas posições ideológicas revolucionárias claras, ela sofreu prisão, tortura e exílio.
Naturalmente, a difusão de suas criações poéticas, fortemente ligadas à sua
experiência de vida e à sua militância, foi bloqueada pelo aparato repressivo do ditador
(FERNANDEZ, 2016).
Nas palavras de Augusto Roa Bastos Soler (2017):

Localizada na linha social e popular inaugurada por Julio Correa,


Carmen Soler representa pela primeira vez na poesia paraguaia a
irrupção das mulheres como poeta de combate. Em seus poemas
curtos, mas intensos, quase todos no ritmo do romance, o sotaque
popular é combinado com uma rigorosa intuição poética.

O ritmo de romance, comentado por Roa Bastos, é característica pessoal de


Carmem; seus poemas são líricos, porém, têm características do romance, como
narrador, espaço, tempo, ações, conflitos, clímax e desfecho. Aproximam-se da
literatura épica, levando o leitor a sentir os personagens, ouvir seus passos, ver a
expressão dos seus olhos, afeiçoando a eles carinho a cada verso. Segundo
Fernandez (2016)58, “talvez a própria Carmen não tivesse a noção de que sua
abordagem fosse ampla e profundamente ligada à sua paixão pelo ser humano, indo
além dos confrontos políticos, pois a autora também traz poemas de amor,
solidariedade e compaixão”.
Apresentamos um fragmento de uma entrevista redigida por Maria Eugenia
Apontes Soler, por meio de materiais como anotações, gravações familiares e

58 Página Oficial de Carmen Soler, Wix.


99

depoimentos da própria Carmen59, intercalados por análises breves. Não há a primeira


pessoa do discurso, característica do entrevistador que interroga, mas apenas as
respostas, formando um texto belo, harmonioso e intensamente profundo. Maria
Eugenia reuniu os textos e deu respostas aos leitores que enviaram perguntas sobre
Carmen. No original abaixo, está, no gênero entrevista, apenas o interlocutor; a
resposta fica, neste estudo, em nossa peculiar imaginação, ao sentir o
sentimentalismo da autora da nossa pesquisa.

“Realidaldeas y sentires”
Escribo en cualquier parte, a cualquier hora, aunque prefiero el silencio
de la noche. Pero puedo escribir en la calle, en un bar, en un calabozo
usando las baldosas como papel y granos de cal de las paredes como
lápiz. O en la cocina, dejando la comida un momento mientras anoto
una idea (comida quemada, tantas veces!). Pero cuando puedo elegir
-lujo que tuve poca veces- prefiero una habitación cerrada, con
muchos estantes, libros, cuadros, cantidad de mesas donde desplegar
mis cosas y tenerlo todo a mano. Así me concentro más fácilmente y
también me siento protegida no sé bien de qué. [...]

He perdido, yo no sé dónde, parte de mi alegría. Se fue quedando por


ahí. Sufro con los dolores que existen. Me entristece no poder
contribuir para que cesen inmediatamente. Me siento culpable de no
haber hecho más y mejor, y me llega la muerte colectiva. De todo esto
el sentimiento de impotencia es lo peor. Pero en cuanto tengo una

59 Realidades e sentimentos – Escrevo em qualquer lugar e a qualquer hora, mas prefiro


o silêncio da noite. Quando posso escrever na rua, em um bar, no calabouço ou usando telhas
como papel e grão de cal como lápis nas paredes. Ou na cozinha, deixando a comida por um
momento enquanto escrevo uma ideia (comida queimou, muitas vezes!).
- Mas quando posso escolho um lugar que fui poucas vezes – prefiro também uma
sala fechada, prateleiras, livros, pinturas, muitas mesas para espalhar minhas coisas e ter
tudo à mão. Deste jeito eu me concentro facilmente e também me sinto protegida, não tenho
certeza do quê nem de quem?.
" Eu perdi, não sei onde, parte da minha alegria. Ela estava ficando por perto. Eu sofro
com as dores que existem.// Me entristece não poder contribuir para que eles parem
imediatamente. Sinto- me culpada por não ter feito mais e melhor, e a morte coletiva vem até
mim. //De tudo isso, o sentimento de desamparo é o pior. Assim tenho a escrita útil, é o que
posso fazer para a alegria retornar. //Eu sou basicamente otimista. Entendo que o progresso
ocorre com avanços e retrocessos, e que tudo, até mesmo a relatividade, é relativa //
-A maneira de se expressar, assim como tudo que vive, são imperfeitas,
transformáveis. Não me oponho a forma e conteúdo, porque eles formam um todo que
influência e determina um do outro. Me dedico ao que escrevo, em mais de uma ocasião eles
saíram ao mundo como nasceram, porquê as circunstâncias exigiram assim. O compromisso
é duplo, estético e sócia, mas acho que nestes tempos o primeiro sem o segundo é inútil. (...)
- Sei para quem e para o que escrevo. Isso é fundamental. (...) Tenho tantos
defeitos que minhas criaturas (meus poemas, livros, artigos, palestras) os herdaram. Os
defeitos que me trazem mais problemas são dois: meu caráter rude e grosseiro e minha
desordem. Eu sou muito franca e explosiva. Demonstro pouco meus afetos (carinho e amor)
e ainda os sinto profundamente. (...) Escrever é para mim prazer e muito sofrimento.
100

tarea útil, que puedo hacer, vuelve la alegría. Soy básicamente


optimista. Comprendo que el avance se produce con avances y
retrocesos, y que todo, hasta la relatividad, es relativo. [...]

Las formas de expresión, como todo lo vivo, es imperfecto,


transformable. No contrapongo forma y contenido, porque forman un
todo que se influencia y determina mutuamente. Trabajo bastante mis
escritos, en más de una ocasión salieron al mundo así como nacieron,
porque las circunstancias así lo exigían. El compromiso que se siente
es doble, estético y social, pero pienso que en estos tiempos lo primero
sin lo segundo no sirve para nada. [...]

Sé para quien y para qué escribo. Eso es fundamental. (...) Yo tengo


tantos defectos que forzosamente los heredan mis creaturas. Los
defectos que me traen más problemas son dos: mi carácter arisco y
rudo, y mi desorden. Soy demasiado franca y explosiva. Demuestro
poco mis afectos y sin embargo los siento profundamente. (...) Escribir
es para mí un placer y mucho sufrimientode, interpretando-a.

(Carmen Soler, diversos de acervo familiar).

Dialogamos com as imagens porque percebemos que, se estamos tratando de


olhar(es) e apresentação, essa leitura sairá por minutos para outro material, porém,
futuramente, necessitará de análise crítica, social, política e teórica, como Dossiê60
de linha do tempo das autoras.
Assim, a obra soleriana expressa que a realização feminina no âmbito literário
não impede que se olhe também para o universo social e político, tirando-a do
universo doméstico. Para a escritora, a mulher consegue encarar os mais diversos
campos sem perder a “arte”; o que os olhos veem e o coração sente, engendrando o
talento e a inspiração que, associados às imagens e fatos posteriormente registrados,
carregam todo o emocional e espiritual da autora. Pelo seu histórico, realizado até
momento deste estudo, com o QR Code, o leitor terá acesso às imagens e à cultura
que Soler deixou como herança.

60 As fotografias seguem como suporte de gênero textual do Dossiê: Carmen Soler - O


Olhar e a Literatura, com imagens fora da linha do tempo – propositalmente – Como se fossem
investigadas pelo olhar detetive. Também é uma produção fictícia a palavra “confidencial”, em
vermelho, em algumas páginas, com papel escolhido como manchas do tempo, bem como o
adereço do envelope para cada leitor da banca deste estudo. Para assistir, baixe aplicativo
de leitura QRCode.
101

(…) Vivência que faz revelar vozes que nem sempre encontram
ressonância em todos os ouvidos; vozes que me curam da surdez da
palavra baseada na vista, revelando sons até então imperceptíveis. (...)

(Adriana Fiuza)
102

5 A ABELHA DE FOGO DOCE COMO O MEL E DEVASTADORA COMO O FOGO

Mais eu procuro, mais ele se esconde dos meus olhos


(Giordano Bruno)

Neste capítulo, estudamos as obras de Maria Luisa Bombal (1910 – 1980) que,
como vimos, constituem-se em seu primeiro romance, de 1935, A última névoa, e A
amortalhada de 1938, em que retrata um ambiente digno de contos de fadas, narrado
em primeira pessoa; há também o relato de pensamentos romanceiros que cercam
limites intermitentes, nos quais a literatura busca, por meio do sentido do olhar, rastro
intenso que se apossa do que se vê em forma de escrita.
Para identificar os olhos de quem narra e conduz o enredo, ressaltamos as
inscrições do anonimato revestido de encantamento e solidão, presente na imagem
do ‘cego’, além de sua escritura repleta de metáforas, mitos, simbologia e
sensualidade feminina, relacionamento com a natureza e ideais amorosos.
Em contrapartida, percebe-se que a natureza e a morte tornam-se personagens
íntimas das mulheres belas, femininas nas ações do enredo na sociedade patriarcal
da década de 1930, ressaltando o tema morte, o gênero mulher, a sexualidade
feminina e a natureza e os mitos.

Y aun cuando com los ojos vendados me pasearan por el mundo


entero tratando de perderme por sus caminos, com los ojos
vendados me bastaría respirar hondo, tan sólo una vez, para saber
que me encuentro [...].
(Maria Luisa Bombal ).61

O sentido da visão nos direciona a outros, mas a autora utiliza-se do enxergar


para criar sua obra que, por meio do narrador, expressa. Maria Luisa cita esse olhar,
até mesmo vendado, ao retornar para Val Paraíso no Chile.
A destreza ao narrar tamanha experiência, mesmo depois de muito tempo,
confirma a importância de voltar para casa. A escrita pode também ser o berço do
olhar e quem a lê também possivelmente vê os olhos de quem escreveu. Em O Visível
e o Invisível, Merleau-Ponty (2000, p. 22) defende:

61 E até quando, com os olhos vendados passear pelo mundo inteiro tratando de me
perder por seus caminhos, com os olhos vendados me bastaria respirar fundo, só mais uma
vez, para que me encontro.
103

Tudo se passa como se meu poder de ter acesso ao mundo e o de


entrincheirar-me nos fantasmas não existissem um sem o outro. Mas
ainda: como se o acesso ao mundo não fosse senão o outro aspecto
de um recuo, e esse recuo à margem do mundo uma servidão e outra
expressão de meu poder natural de entrar nele.
O mundo é o que percebo, mas sua proximidade absoluta desde que
examinada e expressa, transforma-se também, inexplicavelmente, em
distância irremediável. O homem natural segura as duas pontas da
corrente, pensa ao mesmo tempo que sua percepção penetra nas
coisas e que faz aquém de seu corpo. Se, todavia, na rotina da vida,
as duas convicções coexistem sem esforço, tão logo reduzidas as
teses e enunciados, destroem-se mutuamente, deixando-nos
confundidos.

Não é importante a retribuição do olhar. Trata-se de um investimento feito pelo


narrador em que ele não cobra lucro, apenas participação, pois o lucro está no próprio
prazer que tem de olhar. Dou uma força, diz o narrador. Senti firmeza, retruca o
personagem. Ambos mudos. Não há mais o jogo do "bom conselho" entre experientes,
mas o da admiração do mais velho.

O amor62 é tudo, Não se pode viver sem amor. É admiração, afeto,


respeito.

Como mulher63, às vezes tenho vontade de não viver, mas não de


morrer. Trata-se de resistir não ficando sozinha. É necessário ter
um companheiro.

Os homens64, eles são diferentes, são leais… mais passionais,


sensuais. Tive dois maridos, Sou viúva duas vezes. Isto não é
bom65! É terrível. Não concebo o amor sem admiração. Com meu
primeiro marido tive um amor- paixão, violento. Era um pintor
argentino: Jorge Larco, que ilustrou a primeira edição de La ultima
niebla. E, além disso, fez as cenografias das obras de Lorca,
quando da estréia em Buenos Aires. Meu segundo marido era um
banqueiro francês, que se naturalizou norte-americano.
Publiquei la ultima niebla66 e dediquei meu livro a dois amigos
argentinos; Oliveiro Girondo e Norah Lange, que o leram e me
estimularam. Pensei: “se agradar, agradou; senão, azar.

Deus,67 para mim, existe e tenho por ele grande respeito e medo.
Confesso- me sem me confessar. Tenho meu entendimento íntimo
com Deus. Sei que está aí e sei que me compreende. Estive muito
tempo brigada mortalmente com Deus, mas ele ganhou.

62 P. O que é o amor na vida de uma mulher?


63 P. Por que a mulher sofre tanto?
64 P. Por que os homens fazem as mulheres sofrerem em seus romances?
65 P. Que bom!
66 P. Como publicou La ultima niebla, sabendo que era um livro tão diferente?
67 P. Qual é sua relação com Deus?
104

Reprovo Deus, por ser tão confuso, deve ser um castigo que vem
de muito longe e não sabemos em que consiste
As reações perante a vida,68 às vezes agradeço à vida ter-me dado
talento (sem talento, para que viver?). Sou grata pelo que me
acontece agora, por ter podido comover pessoas como vocês
(pesquisadoras, leitores); que tenha chegado a conhecê-las sem
fazer nada.

O amor me deu momentos de felicidade, porém mais de


infelicidade. Deus nos deu pensamento; poderíamos ter sido
donas do mundo. A vida depende muito de nós mesmos, porém fui
caprichosa algumas vezes, e agora me arrependo. Quando
comecei a escrever, a leitura69 que mais me marcou foi Knut
Hansum e, especialmente Victoria.

Maria Griselda é típico do sul do Chile, La Amortajada é uma


mistura de Argentina (pampas) e de fazendas chilenas. Meus
bisavós eram argentinos.

A escritora Maria Luisa foi tema de pesquisa de Juliana Figueiredo (2015), que
comenta sobre a produção literária. Sabemos que basta uma obra para tornar- se um
clássico, assim como há autores com múltiplas obras, no entanto, sem essa
característica.

Siempre me ha costado mucho escribir.


No soy de aquellos para quienes el escribir es una fuente de felicidad.
Lo difícil para mí no es concebir una obra, sino construir y elaborarla:
el trabajo de precisión. Para mí, el goce está en sentir un libro y fijarlo
con notas. Lo siento terminado dentro de mí. Lo que me hastía es
escribirlo. Si no tengo un trago al lado, ese trabajo me abruma.
(BOMBAL, 2010, p. 191).70

Contava a Ewart, ainda, que tudo era motivo para desviá-la da tarefa de
escrever: punha música, falava por horas ao telefone, escrevia cartas – motivos que
fizeram seu marido cortar o telefone por seis meses para que, assim, ela pudesse
escrever El canciller (1954).
E, se lhe perguntavam por que escrevia, se tão custosa era a tarefa, de pronto
respondia que era a única coisa que sabia fazer. A curta produção lhe rendeu muitas

68 P. Qual a sua reação perante a vida: gratidão, remorso?


69 P. Qual foi a leitura que mais a marcou quando começou a escrever?
70 Sempre me custa muito escrever. Não sou daquelas para quem a escrita é uma fonte
de felicidade. O difícil para mim não é conceber uma obra, senão construí-la e elaborá-la: é
um trabalho de precisão. A diversão para mim está em sentir o livro e fixá-lo com anotações.
O sinto terminado em mim. O que me aborrece é escrevê-lo. Se não tenho algo para beber
ao lado, este trabalho me aborrece” (tradução nossa).
105

críticas. Todavia, não falta quem a defenda, explicando que a publicação não tem a
ver com produção, o que não deixa de ser verdade.
A escritora produzia, mas a finalização da produção dentro de si para que
chegasse ao formato de livro não era, como já dito, simples. Ainda sobre sua recepção
crítica, vale salientar que só após receber reconhecimento e prêmios lá fora é que
María Luisa Bombal passa a ser conhecida em “Retratos: María Luisa Bombal” (El
Mercurio, Santiago,18 fev. 1962).

[...] devidamente reconhecida em seu país. Porém, este


reconhecimento, de acordo com os críticos e editores amigos de
Bombal, não à altura do merecimento da escritora: o maior dos
prêmios literários do Chile lhe foi negado, o Nacional. Também se faz
necessário comentar que a tarefa de escolha minuciosa de cada
palavra para que esta, junto das demais, desse o ritmo necessário à
novela faz da obra de Bombal uma tarefa nada simples para seus
tradutores.
Como mencionado, suas obras foram traduzidas para diversos
idiomas, tcheco, alemão, português, francês, japonês e inglês.
(FIGUEIREDO, 2015, p. 30-31).

5.1 A ÚLTIMA NÉVOA

O romance de nome peculiar, A última névoa, foi publicado em Buenos Aires


na Argentina, no início da terceira década do século XX, em 1935. Em sua primeira
publicação, a jovem Maria Luisa Bombal, chilena, tinha apenas 25 anos e rasga o
tradicionalismo literário, como diz a biógrafa de Maria Luisa Bombal:

A Última Névoa, desnuda quem a lê e brinca com a metáfora da


sedução da protagonista sem nome, e o romance bombaleano é visto
por estudiosos literários como o primeiro a ter a sutileza de narrar a
intensidade do orgasmo feminino.
A beleza e encantamento da obra são inegáveis ao leitor, que se
encanta ao aflorar sensações e alterar a libido a tal ponto de olhar para
os lados e se admirar. Ela une a mulher à natureza, na necessidade
de proclamar a sexualidade feminina e a necessidade de se ter prazer,
se auto descobre sem a presença do ícone da relação da época, o
homem. (Lúcia Guerra).

Um jogo de palavras com uma sensibilidade enorme. Daí, percebemos as


palavras do escritor Jorge Luís Borges, na orelha do livro, a respeito de que “os livros
de Bombal são essencialmente poéticos”. Constatamos que o são.
106

Em entrevista à Lúcia Guerra Cunningham, posteriormente, em Obras


Completas de Bombal, em 1996, a chilena parecia vincular esses dramas à sua obra.

[…] não se pode falar dos segredos do coração e da alma… São os


segredos que não podemos colocar na mesa, porque acabam sendo
públicos, entendes? […] Nessa novela, eu pus a névoa de Santiago
porque, enquanto ocorria essa tragédia terrível, havia muita névoa em
Santiago, mas depois eu a poetizei. Entendes? Metade era verdade e
metade era o que eu queria que fosse… Depois disso, não gostei mais
de névoa, quando eu era menina, adorava a névoa, agora eu a odeio,
não posso suportar71. (Bombal).

A sensibilidade, em relação à névoa e tudo que ela desperta para Maria Luisa,
está fortemente associada a Santiago. Tais recordações são tão fortes que, na
narrativa, são usados todos os sentidos em uma entrega amorosa à natureza.

Entre la oscuridad y la niebla vislumbro una pequeña plaza. Como en


pleno campo, me apoyo extenuada contra un árbol. Mi mejilla busca la
humedad de su corteza. Muy cerca, oigo una fuente desgranar una
sarta de pesadas gotas. La luz blanca de un farol, luz que la bruma
transforma en vaho, baña y empalidece mis manos, alarga a mis pies
una silueta confusa, que es mi sombra. Y he aquí que, de pronto, veo
otra sombra junto a la mía. Levanto la cabeza.72 (BOMBAL, 2003 p.
26).

Neste episódio em que caminha, a protagonista vaga pela névoa, sente a


umidade da casca de uma árvore refrescar seu rosto, aliando sensitivamente a
natureza diante de si, a ponto de misturar sua sombra com as gotas do sereno da
fonte. Tudo em sua volta é poético; tal monólogo influencia o olhar do leitor que a
segue a cada linha.

María Luisa Bombal publicou o núcleo fundamental de sua literatura


ainda bastante jovem: A última névoa e A amortalhada, até hoje
consideradas suas obras mais importantes, datam de 1935 e 1938. Ao
longo dos anos 30 e 40 a autora desenvolveu ainda uma produção
esparsa de cinco contos: “El árbol”, “Las islãs nuevas”, “Mar, cielo y
tierra”, “La história de Maria Griselda”, e “La maja y el ruiseñor”. Em

71 Cunningham, Lucía Guerra, “Introducción” in Bombal, María Luisa, Obras Completas.


Santiago: Andrés Bello, 1996.
72 Entre a escuridão e a névoa vislumbro uma pequena praça. Como em pleno campo,
apoio-me exausta contra uma árvore. Minha face procura a umidade de sua casca. Nas
proximidades, escuto uma fonte debulhar uma fieira de gotas pesadas. A luz branca de um
farol, luz que a bruma transforma em vapor, banha e empalidece minhas mãos, alonga aos
meus pés uma silhueta confusa, que é minha sombra. E, eis que de repente vejo outra sombra
diante da minha. Levanto a cabeça. Tradução Laura Janina Hosiasson, 2003 - Original do
corpo do texto em espanhol: Obra digitalizada por: Sveer Uk, Santiago de Chile, 2000.
107

1947, já radicada nos Estados Unidos, Bombal escreveu House of


Mist, relato desenvolvido a partir da trama central de A última névoa,
mas reelaborado para adequar-se às preferências do público de
massa estadunidense.

A introdução de alguns editoriais chama a atenção para a autora: House of Mist


foi traduzido a outros idiomas e seus direitos foram comprados pela Paramont
Pictures, para adaptá-lo ao cinema, ainda que o projeto não tenha vingado. Apesar do
reconhecimento de sua obra ainda em vida, consagrada por prêmios literários
importantes no Chile, nos anos 1970, María Luisa Bombal teve enorme sofrimento
causado por sentir-se incapaz em dar continuidade à sua literatura. Ficando estéril,
no entanto, os dois romances que nos deixou por herança são de uma maestria pura
e escrita envolvente, nos quais as respostas que mais a perseguiam são duas:
Sobre o porquê da anônima? - Após estudarmos, podemos dizer com certeza:
- Nome para quê? Não precisamos chamar a heroína, o que ela narra é inconfundível
com qualquer narradora batizada por seu criador.
Por que não produziu obras mais densas como os dois primeiros romances? -
Quando se produz clássico, tão jovem, que toca o coração, encanta e marca como se
o olhar do autor e o respirar de seus personagens, como o de Ana Maria, arrepia,
emociona, desperta lágrimas, toca o sentimento mais raro do leitor de romances. Que
a publicação de algo mais não é questionado.
Essa jovem escreveu e publicou com olhos de menina, ainda, o invisível, a partir
do ponto do olhar da morte. Ana Maria narra e sublima o romance em um vaivém do
tempo, painéis de encontros e desencontros como quem desfia um terço e reza a vida.
Seus olhos acompanham o queimar de velas e os passos de quem chega até seu
velório. Olhos criados por Maria Luisa bem próximos do que qualquer leitor possa
imaginar de como é o olhar de quem já está morto. E se permite ler, pois o olhar de
Ana é belo. Para Agamben (2007, p. 64):

Ainda segundo Agamben “especioso” significa “belo” e, mais tarde,


“não verdadeiro”, “aparente”. “Espécie” significa o que torna visível
e, mais tarde, o princípio de uma classificação de equivalência.
Causar espécie significa “assombrar, surpreender” (em sentido
negativo); mas que indivíduos constituam uma espécie que nos
traz segurança” (itálicos no original).

Por mais que algum dia nos deixaram sem nome, ou passamos como anônimos
ou estaremos mortos; ainda assim, seremos espécie.
108

A espécie é, então, a imagem de uma coisa que se mostra ao olhar


mas que, ao mesmo tempo, precisa ser fixada na própria coisa para
se constituir em uma identidade. Por isso, a fórmula de Agamben é tão
promissora: “especial” é o ser cuja essência coincide com seu dar-se
a ver, com sua espécie. Quando alguém diz que somos especiais, tal
afirmação pode constituir-se num elogio de autenticidade, mas
também numa crítica de impessoalidade ou mesmo de
insubstancialidade. “Só personalizamos algo
– referindo-o a uma identidade – se sacrificamos a sua especialidade”
– diz Agamben.
E a coisa toda fica bem mais interessante quando observamos nossa
própria “espécie” refletida num espelho. Isso porque o espelho é o
locus da descoberta de que nossa “espécie”, nosso imago, não nos
pertence. E “entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há
um intervalo que os poetas medievais denominavam amor”.
(AGAMBEN, 2007, p. 54).

Ao nos olharmos no espelho, há o ato impulsionado, ação individual remetida


a nós; o encontro pode ser comparado ao âmago de si, quase metalinguística.
O estar diante de si pelo espelho embaça, enquanto se vê, no entanto, é um
ato solitário, único, que requer o querer se ver, a aproximação, de como se conhecer,
saber de que lado estão os cabelos, a feição dos olhos, a cor da pele em um encontro
instantâneo.
O episódio em que a protagonista encontra o casal amante, em carícias,
enfrenta a troca de olhares com Regina e duela consigo diante do espelho.

La mujer de Felipe opone a mi mirada otra mirada llena de cólera. El,


un muchacho alto y muy moreno, se inclina, con mucha calma
desenmaraña las guedejas negras, y aparta de su pecho la cabeza de
su amante. Pienso en la trenza demasiado apretada que corona sin
gracia mi cabeza. Me voy sin haber despegado los labios. Ante el
espejo de mi cuarto, desato mis cabellos, mis cabellos también
sombríos. Hubo un tiempo en que los llevé sueltos, casi hasta tocar el
hombro. Muy lacios y apegados a las sienes, brillaban como una seda
fulgurante. Mi peinado se me antojaba, entonces, un casco guerrero
que, estoy segura, hubiera gustado al amante de Regina. Mi marido
me ha obligado después a recoger mis extravagantes cabellos; porque
en todo debo esforzarme en imitar a su primera mujer, a su primera
mujer que, según él, era una mujer perfecta. Me miro al espejo
atentamente y compruebo angustiada que mis cabellos han perdido
ese leve tinte rojo que les comunicaba un extraño fulgor, cuando
sacudía la cabeza. Mis cabellos se han oscurecido. Van a oscurecerse
cada día más73. (SVEER UK, 2000, p.05-06).

73 A mulher de Felipe enfrenta meu olhar com outro cheio de cólera. Ele, um moço muito
moreno, inclina-se com muita calma, desembaraça as mechas negras e afasta do peito a
cabeça da amante. Penso na traça apertada demais que coroa sem graça minha cabeça. Vou
embora, sem ter desgrudado os lábios. Diante do espelho do meu quarto, solto meus cabelos,
meus cabelos também sombrios. Houve tempo em que eu os usava soltos, quase até tocarem
109

O olhar bombaleano expõe, nesse episódio da traição, o caso de Regina,


contrariando a ação social da ética nobre que a mulher casada deve seguir. Como
quem ajusta a máscara para não cair, a anônima vê e comprova a traição de Regina.
Comprova-se, no fragmento, o duelo entre a anônima e Regina. A guerra está
declarada, a certeza está no olhar por: “A mulher de Felipe enfrenta meu olhar com
outro cheio de cólera” (BOMBAL, 2013, p. 17).

Nossa certeza mais primitiva é mesmo a de ver o mundo. Assenta-se


na “fé perceptiva”, conforme a expressão certeira e cerrada de Maurice
Merleau-Ponty, para designar nossa crença tácita – e espontânea – na
existência do mundo. Mundo aí, postado fora de nós, em si mesmo, e
absolutamente apto à apreensão de nossos sentidos. (CARDOSO
apud, NOVAES 1983, p. 347).

Porém, a troca de carícias do casal é invejada pela protagonista, que, em


seguida, entra em autoanálise diante do espelho. O ver-se como mulher e toda sua
feminilidade, apertada em cada uma das três mechas fiadas e trançadas, de forma
apertadamente à coroa sem graça do seu penteado, sai e vai para o quarto encontrar-
se com o espelho, desprende as mechas, relembra os penteados que já usou, como
quem lembra a dinastia de um reinado fracassado. A imagem que vê no espelho não
a fascina, mesmo que seja uma coroa em forma de trança.
“Houve um tempo em que eu os usava soltos...”
Os cabelos são referências imagéticas, tendo inúmeros personagens na
história da humanidade que marcaram sua importância. O dicionário dos símbolos
revela “que os cabelos que formam a trança são como a barba, uma prova e um meio
de força vital” (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 2015, p. 895).

Além desse símbolo, a trança significa uma ligação provável entre este
mundo e o além[...] um enlace íntimo de relações correntes de
influência misturadas e interdependência dos seres.
Podem ser oposição: a trança como símbolo fechado, a mais velha
que destrói, e a barba como expansão, o mais velho que cria palavras,
aliado ao fato de que muitas culturas a suspensão do corte de barra e

o ombro. Muito lisos e colados às têmporas, brilhavam como uma seda fulgurante. Meu
penteado parecia-me então o elmo de um guerreiro que, com certeza, teria agradado ao
amante de Regina. Meu marido obrigou-me depois a prender meus cabelos extravagantes:
porque em tudo devo me esforçar para imitar sua primeira mulher, sua primeira mulher que
era para ele uma mulher perfeita. Tradução de Laura Janina Hosiasson, 2013, p. 17-18.
Original do corpo do texto em espanhol: Obra digitalizada por: Sveer Uk, Santiago de Chile,
2000, p. 5-6.
110

dos cabelos ocorre durante o período de uma guerra. (CHEVALIER;


GHEERBRANDT, 2015, p. 895).

A visão das tranças de Regina, sendo desfeitas pelas mãos do amante


(também sem nome), é a representação do feminino livre por mãos masculinas,
reproduzindo a situação de permissão da sexualidade da fêmea, contextualizando
uma relação diferente, rara, pois Regina é casada, mas vive essa relação sombria.
“Ele, um moço muito moreno, inclina-se com muita calma, desembaraça as
mechas negras e afasta do peito a cabeça da amante”. A narradora infeliz compara-
se a ela, dramaticamente com os cabelos presos - tal drama é alvo de inferioridade
em relação à outra, levando-a a ir embora.
Durante muito tempo, foram usados como símbolos políticos ou de poder.
Conforme Chevalier e Gheerbrandt (2015, p. 154): “Os cabelos são considerados
como a morada da alma” [...].
Os cabelos da protagonista são a resposta dada pelo espelho, no entanto, tal
resposta condiz com o estado íntimo da autoestima. O advento que a
contemporaneidade nos dá ao advento do belo, a sociedade imagética, beleza,
sensualidade, juventude e o erotismo são sinônimos impostos por ideais estéticos,
influenciando as personagens de A última névoa, bem como as mulheres
contemporâneas.
No segundo episódio, na obra A última névoa, Maria Luisa, com maestria,
desenvolve o texto ícone em seu romance. A heroína se entrega aos elementos da
natureza, é amada e é amante, cujo episódio nos remete ao Mito de Narciso.74

74 Filho de dois seres relacionados à água, o deus rio Cephisus e a ninfa Liríope, Narciso
era um menino tão lindo que as Ninfas já eram apaixonadas por ele desde pequeno. Narciso
era seu nome. Tirésias, consultado para saber se a criança teria uma longa vida, respondeu:
“Sim, desde que não se conheça”. [...] Eco o viu num dia em que ele caçava cervos tímidos.
Eco, [...] naquele tempo ela ainda era uma ninfa, e não uma simples voz. Mas, embora
tagarela, sua voz só servia para redizer, como hoje, as últimas palavras que ouve. [...] Ela viu
Narciso caçando na floresta e se apaixonou. [...] Mas ele se afasta, “prefiro morrer a te
pertencer”, disse ele. [...] As outras Ninfas que moram nas montanhas ou nas fontes também
sofreram o desprezo de Narciso. Finalmente, uma delas, [criando coragem], levantou as mãos
para o céu e praguejou, em seu desespero: “Que ele também ame, por sua vez, sem ser
amado”! [...] Perto dali havia uma fonte cuja água era pura, prateada, desconhecida dos
pastores, [...]. Foi ali que, cansado da caça e do calor do dia, Narciso foi se sentar, atraído
pela beleza, o frescor e o silêncio do lugar. Mas, enquanto saciava a sede que o devorava,
sentiu nascer outra sede, mais devoradora ainda. Seduzido por sua imagem refletida na
superfície, ele apaixonou- se por sua própria imagem. Ele confere corpo à sombra que ama:
admira-se, fica tão imóvel a olhar que parecia uma estátua de mármore de Páros. Debruçado
sobre a superfície, ele contempla seus olhos que pareciam dois astros brilhantes, seus
cabelos dignos de Apolo e de Baco, sua face matizada pelos brilhos da juventude, o seu
111

O episódio do lago contrastado com o encontro do casal e a constatação da


inviabilidade de seduzir, encantar e viver a feminilidade é a resposta da narradora a
essa submissão obrigada pelo marido; ao mesmo tempo, é a conclusão do mito de
Narciso, o fechar do ciclo.

Regina vuelve a cruzar el salón para sentarse nuevamente junto al


piano. Al pasar sonríe a su amante, que envuelve en deseo cada uno
de sus pasos. Parece que me hubieran vertido fuego dentro de las
venas. Salgo al jardín, huyo. Me interno en la bruma y de pronto un
rayo de sol se enciende al través, prestando una dorada claridad de
gruta al bosque en que me encuentro ; hurga la tierra, desprende de
ella aromas profundos y mojados. Me acomete una extraña
languidez. Cierro los ojos y me abandono contra un árbol. ¡Oh, echar
los brazos alrededor de un cuerpo ardiente y rodar con él, enlazada,
por una pendiente sin fin...! Me siento desfallecer y en vano sacudo
la cabeza para disipar el sopor que se apodera de mí.
Entonces me quito las ropas, todas, hasta que mi carne se tiñe del
mismo resplandor que flota entre los árboles. Y así, desnuda y
dorada, me sumerjo en el estanque.
No me sabía tan blanca y tan hermosa. El agua alarga mis formas,
que toman proporciones irreales. Nunca me atreví antes a mirar mis
senos; ahora los miro. Pequeños y redondos, parecen diminutas
corolas suspendidas sobre el agua.
Me voy enterrando hasta la rodilla en una espesa arena de terciopelo.
Tibias corrientes me acarician y penetran. Como brazos de seda, las
plantas acuáticas me enlazan el torso con sus largas raíces. Me besa
la nuca y sube hasta mi frente el aliento fresco del agua. (BOMBAL,
2013, p. 20-21).75

pescoço branco como mármore, a graça de sua boca, as rosas e lilases de sua tez. Ele admira
enfim a beleza que o leva a admirar. Imprudente! Ele se apaixona por si mesmo: ele é, ao
mesmo tempo, amante e objeto amado; [...] Deitado sobre a grama espessa e florida ele não
pode deixar de contemplar a imagem que o desconcerta. [...] Ele chora, a água se turva, [...]
Narciso vê sua imagem dilacerada. [...] E, como a cera que derrete com uma leve chama ou
o orvalho que se dissipa aos primeiros raios do astro do dia, assim, queimando com uma
chama secreta, o infortunado consuma-se e morre. [... Já se havia preparado a fogueira, as
tochas, a cova; mas o corpo de Narciso havia desaparecido; e no seu lugar as Ninfas só
encontraram uma flor de ouro, coroada de alvas folhas. (OVÍDIO, Metamorfoses, III, 340-510).
75 Regina atravessa de novo o salão para se sentar outra vez junto ao piano. Ao passar,
sorri para o amante, que envolve de desejo cada um de seus passos.
É como se tivessem posto fogo dentro de minhas veias. Vou para o jardim, fujo.
Interno-me na bruma e de repente um raio de sol se ilumina de viés, emprestando uma
dourada claridade de gruta ao bosque em que me encontro; vasculha a tera e dela desprende
aromas profundos e molhados.
Acomete-me uma estranha languidez. Fecho os olhos e abandono-me contra uma
árvore. Oh, lançar os braços em volta de um corpo ardente e rodar com ele, enlaçada, por
uma ladeira sem fim…! Sinto-me desfalecer e em vão sacudo a cabeça para dissipar o torpor
que se apodera de mim.
Então tiro as roupas, todas, até que minha pele se tinge do mesmo resplendor que
paira entre as árvores. E assim, nua e dourada, mergulho no açude.
112

O romance não evidencia indícios do porquê o casal Regina e Felipe retornou


para a fazenda trazendo o anônimo moreno. As citações que envolvem a personagem
feminina Regina são poucas, no entanto, a imagem dela passando pela sala e
despertando desejos em seu amante, aos olhos da narradora, chega ao leitor como
algo visível. Todavia, o marido não é citado nesse episódio.
Já a protagonista fica com o sangue fervendo e sai para o jardim. A inveja da
beleza e da libertinagem sexual de Regina incomoda-a; assim, novamente, se ausenta
do mesmo ambiente em que ela está, como se fosse território marcado.
A cumplicidade que a anônima tem com: jardim, folhas das árvores, árvores e
o horário descrito na trama, levam-na a confabular como se os elementos fossem
personagens coadjuvantes de seu cotidiano. As cores, os cheiros e o encontro com a
árvore fazem-na desejar um abraço com rodopio.

Casi sin tocarme


Casi sin tocarme, me desata los cabellos y empieza a quitarme los
vestidos. Me someto a su deseo callada y con el corazón palpitante.
Una secreta aprensión me estremece cuando mis ropas refrenan la
impaciencia de sus dedos. Ardo en deseos de que me descubra
cuanto antes su mirada. La belleza de mi cuerpo ansia, por fin, su parte
de homenaje.
Una vez desnuda, permanezco sentada al borde de la cama. El se
aparta y me contempla. Bajo su atenta mirada, echo la cabeza hacia
atrás y este ademán me llena de íntimo bienestar. Anudo mis brazos
tras la nuca, trenzo y destrenzo las piernas y cada gesto me trae
consigo un placer intenso y completo, como si, por fin, tuvieran una
razón de ser mis brazos y mi cuello y mis piernas. ¡Aunque este goce
fuera la única finalidad del amor, me sentiría ya bien recompensada!
Se acerca; mi cabeza queda a la altura de su pecho, me lo tiende
sonriente, oprimo a él mis labios y apoyo en seguida la frente, la cara.
Su carne huele a fruta, a vegetal. En un nuevo arranque echo mis
brazos alrededor de su torso y atraigo, otra vez, su pecho contra mi
mejilla.
Lo abrazo fuertemente y con todos mis sentidos escucho. Escucho
nacer, volar y recaer su soplo; escucho el estallido que el corazón
repite incansable en el centro del pecho y hace repercutir en las
entrañas y extiende en ondas por todo el cuerpo, transformando cada

Não sabia que eu era tão branca e bonita. A água alonga minhas formas, que adquirem
proporções irreais. Nunca me atrevi a olhar meus seios; agora os observo. Pequenos e
redondos, parecem diminutas corolas suspensas sobre a água.
Vou me afundando até os joelhos numa espessa areia de veludo. Mornas correntes
acariciam-me e penetram-me. Como braços de seda, as plantas aquáticas enlaçam meu torso
com suas longas raízes. Beija minha nuca até minha fronte o hálito fresco da água. (BOMBAL,
2013, p.
20) Tradução de Laura Janina Hosiasson. Original do corpo do texto em espanhol:
Obra digitalizada por: Sveer Uk, Santiago de Chile, 2000.
113

célula en un eco sonoro. Lo estrecho, lo estrecho siempre con más


afán; siento correr la sangre dentro de sus venas y siento trepidar la
fuerza que se agazapa inactiva dentro de sus músculos; siento
agitarse la burbuja de un suspiro. Entre mis brazos, toda una vida
física, con su fragilidad y su misterio, bulle y se precipita. Me pongo a
temblar.
Entonces él se inclina sobre mí y rodamos enlazados al hueco del
lecho. Su cuerpo me cubre como una grande ola hirviente, me acaricia,
me quema, me penetra, me envuelve, me arrastra desfallecida. A mi
garganta sube algo así como un sollozo, y no sé por qué empiezo a
quejarme, y no sé por qué me es dulce quejarme, y dulce a mi cuerpo
el cansancio infligido por la preciosa carga que pesa entre mis muslos.
(Maria Luisa Bombal, A última névoa, 1935, p.29-31).76

76 Quase sem me tocar, solta meu cabelo e começa a tirar meu vestido. Submeto-me a
seu desejo calada e com o coração palpitante. Uma secreta apreensão me estremece quando
minhas roupas refreiam a impaciência de seus dedos. Ardo em desejos de que seu olhar me
descubra o quanto antes. A beleza de meu corpo anseia, por fim, o seu quinhão de
homenagem.
Uma vez nua, permaneço sentada à beira da cama. Ele se afasta e me contempla.
Sob seu olha atento, jogo a cabeça para trás e esse gesto me enche de um íntimo bem-estar.
Juto os braços atrás da nuca, tranço e destranço as pernas e cada movimento traz consigo
um prazer intenso e completo como se, por fim, seus braços, meu colo, minhas pernas
encontrassem uma razão de ser. Ainda que este prazer fosse a única finalidade do amor, me
sentiria já bem recompensada.
Aproxima-se; minha cabeça fica à altura de seu peito, que ele me oferece sorridente,
aperto contra ele meus lábios e logo encosto a testa, o rosto. Sua carne cheira a fruta, a
vegetal. Num novo impulso, jogo os braços ao redor de seu torso e atraio, mais uma vez, seu
peito contra minha face.
Abraço-o com força e ouço com todos os meus sentidos. Ouço nascer, voar e recair
sua respiração, escuto a explosão que seu coração repete incansável no centro do peito e
que repercute nas entranhas e se espalha em ondas pelo corpo todo, transformando cada
célula num eco sonoro. Aperto-o, aperto sempre com maior afã: sinto correr o sangue em
suas veias e sinto trepidar a força que se esconde inativa em seus músculos, sinto agitar-se
a borbulha de um suspiro. Entre meus braços, toda uma vida física, com sua fragilidade e
mistério, fervilha e se precipita. Começo a tremer.
Então ele se debruça sobre mim e rolamos enlaçados para o centro da cama. Seu
corpo me cobre como uma grande onda fervente, me acarícia, me queima, me penetra, me
envolve, me arrasta desfalecida. À minha garganta sobe algo assim como um soluço, e não
sei por que começo a me queixar, são sei por que é doce me queixar, é doce para o meu
corpo o cansaço infligido pela preciosa carga que pesa sobre minhas coxas. (Maria Luisa
Bombal, A última névoa, 1935, p.29-31) (Tradução: HOSIASSON, 2013 P 29-31) (Espanhol:
p. 12-13)
114

FIGURA 8 - Narciso 1597 – 1599. Michelangelo Merisi Caravaggio – Caravaggio Italia77

Usamos a pintura "Narciso" (1597 - 1599), de Michelangelo Merisi


Caravaggio78, em que o pintor italiano apresenta a abordagem do Mito de Narciso,
também em contraste com a natureza. No entanto, o espelho de água, de Narciso
olhado, reproduz-se duplo, o tom das sombras, o olhar mergulhado em sombras,
porém, as mãos, da imagem e do reflexo se tocam como se tal elo os fizesse um. Não
há como saber exatamente onde começa a imagem e onde termina o reflexo; ainda,
está unida, aos elementos, a natureza do espelho d’água que as acolhe, a firmeza da
margem do lago, em que as mãos se fixam para permitir a contemplação do
personagem.
Narciso em olhar e literatura. Esse é o objetivo de aproximarmos o mito e a tela
de Caravaggio Narciso 159779 , com o fragmento bombaleano, como se fosse a versão

77 A tela apresenta o rapaz e toda a sua atenção voltada para o olhar refletido no espelho
d’água e sua posição virada para o reflexo de sua imagem. A composição e a maestria da
pintura é a mistura entre claro e escuro destaca duas etapas: o rosto de Narciso olhando seu
reflexo está claro, iluminado, visível e as mãos sustentam o corpo que permite a
autocontemplação.
78 https://www.youtube.com/watch?v=peR3MzJnxOQ
79 Escolhemos a pintura por associar mais facilmente a expressão do olhar no conceito
do olhar diante do espelho, considerando que a tela é a releitura em forma de pintura do mito
original.
115

feminina revisitada do mito de Narciso, por meio da ficção e da arte da escrita de Maria
Luisa Bombal, o que vai além da ação narcisista original.

O mito Narciso em versão mulher, com toda a complexidade que há na gruta


sensual, nas fugas que o sangue, o qual corre nas veias, pede ao coração pulsante.
A versão da escritora possui atitudes em contraste com o olhar invejoso, que vê os
olhares desejosos que Regina direciona ao seu amante, diante do despeito da bela
moça em tais ações. O mito grego em O Olhar e a Literatura, poderá aludir ao episódio
do banho no lago.
A pintura que analisamos com os fragmentos é composta por dois retângulos,
nos quais, em um, vemos Narciso, sua plenitude e encanto por si mesmo; no segundo
retângulo, os motivos das excitações: o reflexo de Narciso sob as águas.

O espelho de Narciso é essa experiência. “Se eliminarmos esse


intervalo ou o prolongarmos indefinidamente, a imagem é interiorizada
como “fantasma”, e o amor recai na psicologia”, metáfora para
patologia do Eu.
Nosso olhar seria então um meio pelo qual construímos um mundo e
também reconhecemos os sujeitos que nele habitam. Entretanto, ao
voltar- se sobre si e nos submeter ao escrutínio de seu recorte, um
certo cuidado é preciso. Para que não comecemos a ver fantasmas
onde eles jamais existiram. (AGAMBEN, 2007, p. 52-54).

A construção social por meio do olhar necessita do voltar-se para si, escrutinar-
se, recortar-se para colar-se, interiorizado e exteriorizado, mais pleno, forte e próximo
à natureza. Concluímos o desejo não realizado – quem sabe – que enviou ao espelho
d’água, a plenitude e encantamento por si mesmo: o reflexo de Narciso na água. A luz
que ilumina seu rosto, a sombra que seu corpo reflete na água e remete em si, assim
como o escurecido, nos evidenciam a sensação maior do Realismo na técnica de
Caravaggio e sua tela.
A última névoa de Maria Luisa Bombal (1935), tirando toda a primazia da autora
no romance de estreia, aos olhos da razão e das leis dos homens – mais dos homens
do que das mulheres – é a narrativa da contradição da imagem da mulher do contexto
de 1930; é a história de uma personagem narradora anônima, que perambula na noite
de névoa, conhece um homem e se envolve física e emocionalmente.
Quem sabe, para Maria Luisa, aí está a grande explicação do misterioso
anonimato da protagonista. Quem erra, não quer ser descoberto; quem não assina o
nome, não quer assumir o que escreveu, ou seja, legalmente e judicialmente falando,
fazer algo anônimo, que não repercute para o bem, ou é desonesto com o outro, ou
116

com quem se ama; pior, se casa, é crime, repetimos, no contexto de época de 1930.
Os modos c o m o s q u a i s o marido Daniel a trata e os curtos diálogos deixam
transparecer a relação entre o casal de personagens.
Essa diferença mostra e confirma a qualidade da veia autoral de Maria Luisa,
pois, por mais que as ações de infelicidade, depressão, angústia e o desamor por
parte do marido e sua família tenham levado a autora a se encontrar, se apaixonar e
amar perdidamente, fora do laço matrimonial, a autoria foi corajosamente assumida,
deixando o romance em sua capa assinado pela escritora, o que revolucionou a escrita
de autoria feminina.

5.2 A AMOR-TALHADA

- Não se mova. Que silêncio! Parece cristal. Em tardes assim tenho até medo
de piscar. Quem vai saber onde findam os gestos? Talvez, se eu levantar a
mão, provoque em outros mundos o estilhaçamento de uma estrela!
Sim, eu admirava e te compreendia.
(Maria Luisa Bombal – A Amortalhada)

Em A Amortalhada, os olhos se abrem para a vida, para a morte se fecham,


mas, ainda assim, narram a história do contagiante olhar de Ana Maria, que pela fresta
das pálpebras tem diante de si quem cruzou o seu olhar e, da janela de sua alma, teve
permissão para entrar, ficar, sair e partir. O olhar, como depoimento visto da “janela da
alma”, nesta proposta, dialoga com as obras, com o objetivo de responder o que é
olhar? Quais as dimensões do olhar? A cegueira seria outra forma de ver? Os aportes
teóricos selecionados concatenam-se à metodologia dos Estudos Comparados e
abrangem os campos da literatura, história, antropologia e vários viéses da teoria da
literatura.

O termo amortalhada80, tanto ao lermos, escrevermos ou pronunciamos, traz


rápida a ideia da última roupa que escolheremos. A mortalha nos acompanha, porém,
ao adicionarmos o prefixo “a”, construímos a palavra amor, ampla, intensa de valores,
o amor à primeira vista, o amor de ser olhado, visto, desejado, o aproximar e permitir
amar e, especialmente, ser amado. Poderíamos aproximar a palavra amor-talhada,
fazendo uma associação à Ismália de Alphonsus de Guimarãens, em que, ao nome

80 Mortalha: 'Vestidura em que se envolve o cadáver que vai ser sepultado', como consta
na Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, vol. 17, p. 916.
117

da heroína Ismália, o autor usa a lírica como um estilo musical em tom de balada,
descrevendo a loucura de quem conhece o amor onde a loucura, a solidão e a morte
se interpenetram, em um duelo contraditório entre o amor, a vida e a natureza.

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,


Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,


Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu


As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu


Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Alphonsus de Guimaraens

Tal desvario por amor pode até ser aceitado, no entanto, a divisão entre a força
selvagem do mar e toda a imensidão de um céu, que oferece à Ismália a lua, foi capaz
de lhe dar como – mortalha – asas, permitindo à heroína também se dissociar de si,
ficando bipartida, em mar e céu, corpo e alma, vida e morte. O querer utópico da jovem
da torre, apesar de aprisionada emocionalmente, a faz cantar até que - “Viu uma lua
no céu/ Viu uma lua no mar...”
O ato de ver, a paixão em ver e admirar, permite que ela ame tanto o real como
o reflexo, o brilho tornando-a narcisista ambígua. Tal fascínio faz com que não apenas
veja e admire, mas sim, queira. E quis de tal forma, com tamanha intensidade, que se
entregou corajosamente para as duas amadas lua(s). Certamente, Alphonsus de
Guimarães mergulhou seu olhar nas entrelinhas do poema, deixando o suicídio mais
discreto, em forma de versos. Se compararmos Ismália com Ana Maria, a mortalha
118

está em forma de asas e a lua é a exatidão da existência do ser humano – a lua/vida;


o reflexo da lua/morte.
A Amortalhada no Brasil teve apenas duas traduções; a primeira, em 1986, por
Aurora Fornoni Bernardini e Alícia Ferrari Del Pardo, revisão de Adma Muhana81 e,
em 2013, por Laura Janina Hossiassoni, chegando ao público brasileiro a chance de
vislumbrar-se com o romance fantástico e com a personalidade rara da intelectual
Maria Luisa.
A opção pelo romance justifica-se e apoia-se no e pelo olhar do público leitor
brasileiro, principalmente o olhar do leitor que possui o que chamaríamos de ‘faro’,
ao ler ou ouvir os termos que compõem o título da obra “A Amortalhada”; ‘faro’, aliás,
que se explica com o sucesso da obra, segundo Kahmann:

Ainda que tenha trilhado por novelas, contos, crônicas poéticas,


críticas literárias e uma série de produções não consagradas, como
roteiros melodramáticos para o incipiente cinema criollo, Bombal
obteve êxito foi em função de suas novelas. Primeiramente, publicou
duas em espanhol: A última névoa (La última niebla, Buenos Aires:
Editorial Colombo, 1934) e A amortalhada (La amortajada, Buenos
Aires: Sur, 1938).
Depois, indo morar nos Estados Unidos, reescreveu A última névoa
em inglês, sob o título The House of Mist. Essa obra é mencionada
como reescritura, e não como tradução, por assim referir a própria
María Luísa, em discurso na Academia Chilena de Lengua, em 22 de
setembro de 1977: “Escrevi em inglês uma nova versão da minha
Última névoa – é outra novela, eu diria, ainda que baseada no mesmo
tema inicial do meu livro em espanhol”. (BOMBAL, 1996, p. 316). A
partir dessa versão inglesa, seus escritos tomaram impulso a outros
países:
“Foi a partir daquelas publicações minhas… em inglês, que minhas
duas obras foram traduzidas e publicadas em francês, alemão,
japonês, sueco, tcheco-eslovaco. No Brasil, House of Mist, traduzida
ao português por Carlos Lacerda, obteve o prêmio de livro do ano”.
(BOMBAL, 1996, p. 316).

O olhar e a literatura se justificam pelo momento de reflexão propiciado pelo


olhar amortalhado de Ana Maria, aproximando-o aos pensamentos de grandes
estudiosos. Este subcapítulo objetiva propor uma análise de fragmentos do romance
chileno, com comentários do processo que elabora a trama por meio da visão de Ana
Maria, no tempo presente e relatos do passado, interrompido ora pelo ‘agora – visível’,
outras vezes, pela enigmática voz do narrador ‘futuro – invisível e depois’, que chama

81 Edição que utilizamos para as traduções dos trechos aqui usados em espanhol para o
português.
119

imperativamente a segui-lo. Mesmo não estando no enredo, há uma linha tênue na


relação entre A amortalhada e o narrador personagem, representado pela voz.
Bombal usa o sentido da audição para personificar o que seria ‘o Ceifador da
Amortalhada’. E, por essa razão, podem ser vistos como dois produtos independentes,
mas que devem ser analisados de forma inter-relacionada, pois o comentário deriva-
se do processo em si de tradução. Por isso, se é possível falar de dois produtos,
também é possível mencionar a existência de dois objetivos neste trabalho: o de
tradução e o de comentário da tradução.
O caráter fenomenológico, assim como a relação do olhar com a vida e
especificamente em Ana Maria com a morte, empenha-se na relação entre o que se
vê em vida, o que se leva em análise e de herança existencial. Isso, se é que
possamos descrever dessa forma, em um contexto real de leitores que somos na
produção intelectual sobre temas densos, de senso comum, inseridos e relacionados
à Maria Luisa.
O olhar, assim como a literatura – produto de criação – nutre o imaginário e vai
além de conceitos individuais nessa produção nossa e para o leitor destas análises,
envolvendo o olhar histórico sociocultural do leitor. Assim, por meio do rabo de olho
da protagonista, é possível enxergar expectativas e ângulos na experiência desse ver
após morte (no tempo estático da narração/no espaço físico do corpo no velório/o
espaço móvel, bem como o olhar móvel no tempo presente de Ana), levando quem
acompanha o processo do episódio do cortejo fúnebre da personagem a se perguntar
embasbacado: O que a narradora vai fazer agora?
O horizonte sugerido nas reflexões, a princípio, chega a ser injusto em relação
à leitura da obra, pois a produção de Maria Luisa revela, para Ana Maria, a mesma
insegurança que o leitor sente no processo da leitura de A Amortalhada. Esse
aproximar-se do que nunca se viu ou viveu – a morte ou como morto(a) – nos
apresenta claramente o desconhecido a partir de um horizonte de expectativas que
revela claramente quem é esse indivíduo (seu tempo e espaço) e o que esperar de
seu trabalho de tradução. E o fato de ser uma descrição “comentada” aumenta a
individualidade como artista da arte da escrita, como função de trazer o prazer do texto
diante dos nossos olhos.
Jorge Luis Borges pediu, como quem pede desejos de aniversário, para
prefaciar o romance, em 1938, e pela Revista Sur, nº 47, registrou:
120

Em nossas desalentadas repúblicas (e na Espanha) continua


vigorando a melancólica opinião daquele defensor de Góngora, que
no início do século XVIII disse que a poesia “consiste no estilo precioso
elevado” - isto é, no manejo maquinal de um repertório de inversões e
de sinônimos. Infiéis a essa virtude involuntária é obra de seu sangue
alemão ou de suas amorosas incursões pelas literaturas da França e
da Inglaterra: o certo é que neste livro não faltam sentenças
memoráveis (“flores de osso e esqueletos humanos,
maravilhosamente brancos e intactos, cujos joelhos se encolhiam
como outrora no ventre materno”) nem tampouco páginas memoráveis
(por exemplo, o incêndio furtivo do retrato; o descobrimento atroz do
prazer numa carne detestada) que são, porém, largamente superadas
pelo conjunto do livro. Livro de triste magia, deliberadamente suranée,
livro de organização eficaz oculta, livro que nossa América não
esquecerá.

Entretanto, para Bernardini e Del Pardo, na apresentação de A amortalhada,


expõe a raridade na escrita da obra:

A arte consegue iluminar dimensões essenciais que a realidade assim


chamada objetiva deixa passar desapercebidas e que vêm enriquecer,
em última instância, a Weltanschauung82 da humanidade em seu todo,
independente do fato de ser ela composta por homens e mulheres.
Em Amortalhada, que valeu à autora o Prêmio Municipal de Novela
(Santiago, 1942) e que tanto intrigou Borges quando resenhou sua
primeira edição na revista Sur (1938), descobrimos, por exemplo, com
imensa surpresa, que a autora soube transmitir com sua arte uma das
mais tocantes experiências metafísicas – a da morte -, como não
líamos desde Ivan Ilitch de Tolstoi (BERNARDINI; DEL PARDO, 1986,
p. 12).

As personagens de Maria Luisa, tão desencantadas e fragmentadas,


conseguem, numa espécie de mosaico, se (re)estruturar neste mundo, conseguem
falar/narrar. E, apesar de parecer verdadeiramente uma tarefa de Sísifo, ou seja, uma
tarefa sem fim, esta análise busca compreender como a narradora principal e os
demais narradores constituem um discurso múltiplo e uno, ao mesmo tempo.
Discurso que possibilita a constituição do eu a partir do outro, de modo que a
protagonista Ana Maria tem um pouco de cada um daqueles que passaram por sua
vida e que ganham a voz em determinados momentos da narrativa: o amor da infância,
a irmã, o marido, os filhos, etc. Embora seja um clichê, é como se cada pessoa que
passasse por ela deixasse um pouco dela em Ana Maria, assim como também

82 Weltanschauung. (Al.: visão de mundo, cosmovisão) 1. Concepção global, de caráter


intuitivo e pré-teórico, que um indivíduo ou uma comunidade formam de sua época, de seu
mundo, e da vida em geral. 2. Forma de considerar o mundo em seu sentido mais geral,
pressuposta por uma teoria ou por uma escola de pensamento, artística ou política
(JAPIASSU; MARCONDES, 1996).
121

provavelmente Ana Maria tenha deixado um pouco de seu eu nos outros


protagonistas. O discurso de nossa personagem amortalhada só é possível porque há
o dos outros não amortalhados que fazem como que sua fala prevaleça. O olhar de
Ana Maria narra, sente ódio, sofre e desabafa. Não é mais um olhar vivo, não é mais
um ser vivo, não pisca junto com os olhos que a visitam; mesmo assim, é o seu olhar.

A la madrugada tesa la lluvia. Un trazo de luz recorta el marco de Ias


ventarias. En los altos cande-labros ia !lama de los velones se
abisma trémula en un coágulo de cera. Alguien duerme, la cabeza
des. mayada sobre el hombro, y cuelgan inmóvi!es los di. ligentes
rosarios. No obstante, allá lejos, muy lejos, asciende un ca-dencioso
rumor. SÓI° dla lo percibe y adivina el restallar de cascos de caballos,
el restallar de ocho cascos de caballo que vienen sonando. Que
suenan, ya esponjosos y leves, ya recios y próximos, de repente
desiguales, apagados, como si los dispersara el viento. Que se
aparejan, siguen avanzando, no dejan de avanzar, y sin embargo
que, se diria, no van a negar jamás. Un estrépito de ruedas cubre por
fin el galope de los caballos. Recién entonces despiertan todos, todos
se agiran a la vez. Ella los oye, al atro extremo de la casa, destorcer
el complicado cerrojo y las dos ba-rras de la puerta de entrada83.
(BOMBAL, 1996, p. 9).

Esse jogo que rememora a brincadeira “vivo-morto” parece caracterizar a


metalinguagem da narração que encanta como a brincadeira. Nesse entrecruzar do
olho vivo/morto84, Winnicott (2011) teoriza a importância da brincadeira no processo
emocional da existência da vida do ser humano. Sobre o objetivo da vida, assegura
que “ela está mais próxima do SER do que do sexo. Ser e se sentir real dizem respeito
essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que poderemos partir para coisas

83 De madrugada a chuva cessa. Uma nesga de luz recorta a moldura das janelas. Nos
altos candelabros a chama dos círios se abisma trêmula num coágulo de cera. Alguém dorme,
a cabeça caída sobre o ombro, e pendem imóveis os dedicados rosários,
Apesar disso, e longe, muito longe, ascende um rumor cadenciado.
Somente ela o percebe e adivinha os estalos de cascos de cavalo, o estalar de oito
cascos de cavalos que vêm ecoando.
Que ecoam, ora leves e esponjosos, ora rijos e próximos, de repente desiguais,
apagados, como se os dispersasse o vento. Que se emparelham, avançam, não param de
avançar como se, acreditar-se ia, nunca fossem chegar a seu destino.
Um estrépito de rodas encobre por fim o galope dos cavalos. Sóe então todos
despertam, todos se agitam de uma vez. Ela os ouve soltar o complicado ferrolho e as duas
barras da porta de entrada no outro extemo da casa. (Tradução BERNARDINI/DEL PARDO,
São Paulo, Sp. 1986, p. 4
84 Remete à costumeira brincadeira infantil, em que precisamos atentar os olhos e os
ouvidos para quem comanda o jogo de criança, ditado por uma voz: - Vivo! Morto! … -
MORTO! VIVO!
122

mais objetivas” (Ibid., p. 18). O sentimento da continuidade do ser é fundamental e


está presente desde antes do nascimento e, portanto, da consciência de si.
Sem a vida, os que a visitam observam o caixão, as velas, as flores e sua
mortalha, uma vez que o ato de narrar, na obra analisada, está intimamente associado
ao tecido, cor, forma, detalhes da mortalha de Ana Maria, relacionada ao ‘ser’, à
mulher, que tece, com a agulha da memória, rememora sua trama e, em vida, a própria
mortalha com fios de cores do novelo da vida. Para Benjamin, a própria memória –
que nos possibilita o sentimento de identidade – está submetida à lógica das
semelhanças e não da identidade.
A memória, voluntária ou involuntária, é o que resulta da trama entre o
esquecimento e a rememoração do vivido e do sonhado: “Cada manhã, ao
acordarmos, em geral, fracos e apenas semiconscientes, seguramos em nossas mãos
apenas algumas franjas da tapeçaria da existência vivida, tal como o esquecimento a
teceu para nós” (BENJAMIN, 1993a, p. 37). O tecido da rememoração não é um
reflexo dos fatos, da vida como ela de fato aconteceu, mas do jogo das semelhanças
que se dá para além do que a nossa consciência apreende:

A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que


nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso
da semelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em
que os acontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes,
impenetravelmente semelhantes entre si. (BENJAMIN, 1993b, p. 39).

O tecido da rememoração não é um reflexo dos fatos, da vida como ela de fato
aconteceu, mas do jogo das semelhanças que se efetiva para além do que a nossa
consciência apreende: a semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e
com que nos confrontamos em estado de vigília é apenas um reflexo impreciso da
semelhança mais profunda, que reina no mundo dos sonhos, em que os
acontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente
semelhantes entre si (BENJAMIN, 1993b).
Na novela chilena, observa-se uma mistura de vozes narrativas: a do narrador
em 3ª pessoa, a da amortalhada (Ana Maria) e de outros personagens (vivos); Ana
Maria e seu olhar silencioso e morto, que revê sua vida em forma de escolhas, fatos
naturais, decepções, as escolhas dos outros, analisando a sociedade.
123

Em depoimento, a visão do enredo surgiu em sonho. Explorando a biografia de


Maria Luisa, produzida por Giglo (1986), há ainda outra hipótese para a obra. Em
“Testemunho autobiográfico”:

Bombal comenta que a ideia de escrever A amortalhada veio de um


pesadelo que teve quando vivia na casa de Neruda; no sonho, via os
pés de alguém deitado, somente os pés, e sabia serem os de um
morto. Em A amortalhada, de acordo testemunho da autora, Ana María
se desprende de seu corpo enquanto.85 (GIGLO, 1986, p. 27).

[...] hay una mujer que está contemplando a la amortajada y siente compasión
por lo que a la pobrecita le ocurrió en vida y que sólo llega a comprender en la muerte”
(BOMBAL, 2010, p. 27).
Portanto, o narrador é produto da relação “mulher que contempla” e Ana Maria,
de modo que a narrativa se alterna continuamente entre 1ª e 3ª pessoa e é tão leve a
distinção dessas vozes que algumas vezes é difícil determinar a identidade daquela
que nos fala. Para José Promis, os narradores bombaleanos são:

[...] testigos que al aproximar su tiempo y su espacio al tiempo y


espacio de los personajes logran que la presencia de su voz transcurra
casi inadvertida en la percepción del destinatario [...] sólo en las
últimas líneas del discurso de La amortajada, el narrador básico hace
notar su presencia con un voto solemne que proyecta la historia hacia
el ámbito de lo sagrado. (PROMIS apud CASTRO, 2002, p. 34).86

Para Juliana Fragas Figueiredo, estudiosa de Maria Luisa Bombal e do


romance A Amortalhada:

É importante frisar que, além do reconhecimento da crítica chilena, foi,


também, com a obra escolhida para análise, que María Luisa Bombal
se revelou uma escritora de primeira grandeza não só no Chile, mas
também nos EUA. A autora teve obras traduzidas para o inglês,
alemão, português, francês, entre outras, tendo escrito também
diretamente em inglês, só mais tarde voltando à sua língua materna.
A aceitação enfática da escritora, mesmo depois de ela ter vivido por
muitos anos fora do Chile (10 anos na França; 8 na Argentina; e 30
nos EUA), o que fez com que muitos não a considerassem como

85
[...] há uma mulher que está contemplando a amortalhada e sente compaixão pelo que ocorreu
em vida à pobrezinha e que só chega a compreender na morte” (tradução FIGUEIREDO).
86 “Testemunhas que ao aproximar seu tempo e espaço ao tempo e espaço das
personagens fazem com que a presença de sua voz transcorra quase inadvertida na
percepção do destinatário [...] somente nas últimas linhas do discurso de A amortalhada, o
narrador básico se faz notar sua presença de forma solene que projeta a história ao âmbito
do sagrado” (tradução nossa).
124

escritora chilena, se dá por sua narrativa possibilitar a reflexão sobre


nossa efemeridade no mundo
— cumprindo aquilo que Umberto Eco em "A literatura contra o
efêmero" (2001), por exemplo, coloca como fundamental para um
clássico: fazer com que aceitemos a morte, o destino de todos.
(FIGUEIREDO, 2015, p. 11).

O romance é considerado pela crítica chilena87 como a superação da escritora.


Vê-se ainda todo o plano narrativo elaborado pela jovem escritora, utilizando figuras
de linguagem pertinentes para esclarecer o fenômeno da fusão entre prosa e poesia.
Assim como o olhar na modernidade, podemos observar no romance bombaleano a
liberdade estrutural intercalada no tempo da narrativa, sendo necessário misturar os
gêneros, embora tal percepção fique evidenciada a um leitor mais atento aos ritmos,
sons e sentidos dentro da prosa, porém, com palavras que chegam a unir-se à poesia.
Num certo momento, os elementos da poesia, como o ritmo e as aproximações
de rima, pelo som e sentido, são incorporados à linguagem da prosa, fundindo-se
numa linguagem poética. Tal utilização desse fenômeno literário foi abordado por
Haroldo de Campos, por exemplo, no ensaio “Rupturas dos gêneros na Literatura
Latino-Americana”, entre outras questões, como a crise da normatividade, o processo
de destruição dos gêneros em si e o apagamento do limite entre prosa e poesia.
A fusão entre prosa e poesia também foi problematizada por Otávio Paz (2006
apud PINHO, 2011), que considerava o ritmo como elemento permanente e natural da
linguagem, anterior à fala. Ponderava que as expressões verbais são ritmo, incluindo
as da prosa ensaística e didática (discursiva). Para ele, a linguagem tendia a ser ritmo
de forma natural e as palavras se tornavam poesia espontaneamente. Assim, as
linguagens da prosa e do poema interpenetram-se, fundindo-se numa linguagem
poética (ARAUJO, 2014, p. 4).
O enredo seguido pelo leitor, que entra em situações de dimensões temporais,
geográficas, em dias ou noites intensas, deixa claramente nua a condição
socioeconômica. Com termos singelos, puros e simples, Maria Luisa deseja, com tais
palavras, que a levam à sua maestria, aguçar o efeito estético e estilístico do romance,
como quem olha um quadro pintado por si e ainda com a tinta fresca. Para Araujo
(2014, p. 4):

87 Amado Alonso, Enrique Lafourcade, Ibáfiez Langlois, Guzmán Cruchaga, Fernando


Durán, Arturo Prat Echaurren, Manuel Perla, Victoria Pueyrredón, entre outros.
125

Também se prestou atenção ao retrato autoral da sua percepção


feminina da existência, suas experiências visuais, olfativas e
principalmente auditivas estimuladas por um cenário de imagens,
lembranças, velas, chuvas, trovões, ventos, rios, vales, escarpas,
lodaçal, pântano, túmulo etc. Em outras palavras, o tradutor sempre
teve diante dos olhos uma autora irrequieta em seu labor com a
linguagem, e um leitor sedento de catarse.

Para as tradutoras e admiradoras da chilena, em meados da década de 1980,


Bernardini e Del Pardo descrevem no romance que A Amortalhada é já em seu
Prefácio intitulada de “A Amortalhada e o mundo possível”:

O livro foi redesenhado por Borges. Segundo ele, Maria Luisa teria
escrito uma história “impossível”. O relato de uma morta que vê e sente
o fluxo de pensamentos da família, dos homens-chave de sua vida, e
questiona sua formação religiosa.
A morte é um espaço privilegiado para introduzir um mundo possível”,
segundo as ideias desenvolvidas por Umberto Eco. O “mundo
possível” sugere que a construção “tome emprestado ao mundo real
indivíduos e propriedades”; istó é, as personagens que visitam a morta
reafirma a sua existência real. Eis o modo de ser do romance.
Fernando, o amante que não conseguiu ser amado, tornando-se só
um confidente, reflete sobre o amor que aceita a humilhação. Também
Ana Maria sentira-se humilhada pelo amor dele. Cria-se uma ponte
sutil entre a realidade e a irrealidade. Assim, o leitor pode aceitar o
espaço da morte, já que Ana Maria projeta o passado no presente e
neste presente estão os seres vivos que reconstroem o “mundo
possível” da personagem.

Em sua obra, que segue narrando a natureza da mulher, tais procedimentos


são colocados, até certo ponto, pois a narrativa torna-se subjetiva:

No mundo real, está a presença do marido, Antônio, que tornara-se o


eixo de sua vida enquanto feminilidade. A narradora patenteia o fato
de ter se casado por despeito (devido ao abandono do amante da
juventude, Ricardo). A estrutura do mundo real é questionada pela
relação matrimonial insatisfatória. Já no “no mundo possível”, as
variações existenciais, o “poderia ter sido” libertam a personagem.

Em síntese, Ana Maria denuncia as restrições alienantes que a


sociedade burguesa impõe às pessoas de sua classe. No mundo real,
a escolha, a revolta, a dúvida ou, apenas, a busca, isolam a
personagem enquanto ser pensante; resta-lhe criar o “mundo
possível”. Mas as regras estão padronizadas e são imperativas.
Transgredir é sofrer. (BERNARDINI; DEL PARDO, 1986, prefácio,
orelha).

O que atrai a presença de pássaros é o tapete, que a princípio parecia citado


inocentemente e depois ganha ações que acompanham a narrativa. No imaginário do
leitor, Maria Luisa sugere a reflexão filosófica e social intrínsecas à realidade feminina,
126

que está subordinada ao poderio falocêntrico, deixando de lado o sentimentalismo tão


essencial para a mulher, suas paixões, sua necessidade por prazer sexual e carnal
até subsistir a fêmea que nasce com toda mulher. Isso leva as heroínas a não fazerem
nada para mudar, porém, permite que sintam, apaixonem-se, amem, desejem, gozem,
tentem suicídio, vivam, adoeçam e até mesmo morram. Ainda que esteja morta, pode
nos enviar para o outro lado, entre a linha fina e tênua da vida e a morte, a qual
sabemos quando estamos, mas não sabemos olhar como Ana Maria via. Assim, Maria
Luisa nos coloca cada personagem feminina de La Amortajada como se fosse uma
parte do olhar da escritora.
Com o filme Bombal, em 2012, a oportunidade de conquistar os admiradores
da arte cinematográfica aproximou a ficção da personagem narradora aos brasileiros,
bem como da A última névoa, que certamente aumentou. No entanto, apesar de
termos muitas pesquisas sobre a escritora, a leitura dos romances é excessivamente
fraca.

A conclusão a que se chegou é que são pouquíssimas as traduções


de La amortajada. Há uma tradução publicada pela Editora Difel, de
1986, que contou com a participação das tradutoras Aurora Fornoni
Bernardini e Alicia Ferrari del Pardo, e da revisora Adma Muhana; e
outra publicada pela editora Cosac Naify, de 2013, com a participação
da tradutora Laura Janina Hosiasson e das revisoras Cristina
Yamazaki e Raquel Toledo. A partir dessa realidade de poucas
traduções da obra, é possível então inferir que María Luisa Bombal é
muito pouco conhecida pelo público leitor brasileiro em geral e até pelo
público mais engajado com o mundo literário. (ARAUJO, 2014, p. 4).

Dessa forma, tentaremos olhar o romance atraídos pela perspectiva do olhar


narrado por alguém, externamente, e, ao mesmo tempo, muito próximo de Ana, seja
no mundo dos vivos, seja no mundo em que ela esteja prestes a entrar.
O leitor de A Amortalhada, no início, se sente desconfortável; é natural, ao
decorrer da leitura, já nas primeiras páginas, sentir-se apresentado ao evidenciar a
fineza e perfeição no traço elaborado, mesmo sendo o que narra fúnebre. O narrador
externo é o pulsar final entre a vida e a morte, propiciando excelência à imagem
feminina de uma forma nunca vista - narrador que observa, constata e aproxima como
quem pega o leitor pela mão a aproximar-se da amortalhada.

Y luego que hubo anochecido, se le entreabrie-ron los ojos. Oh, un


poco, muy poco. Era como si quisiera mirar escondida detrás de sus
largas pes- tañas. A la llama de los altos cirios, cuantos la velaban se
inclinaron, entonces, para observar la limpieza y la transparencia de
127

aquella franja de pupila que la muerte no había logrado empañar.


Respetuosamen-te maravillados se inclinaban, sin saber que Ella los
veía. Porque Ella veía, sentía. (BOMBAL, 1983, p. 05).88

Há duplicidade entre o narrador que participa do enredo (que se intui, mas não
sabemos quem é) e a narradora onisciente, que se torna o diferencial de La Última
Niebla, em que a narração é da protagonista anônima. Essa diferença mostra e
confirma a qualidade da veia autoral de Maria Luisa. Para Walter Benjamin (1999, p.
34):

Alguém que ouça uma história tem a companhia do contador da


história: da mesma forma, quem lê um conto em voz alta sente-se
acompanhado por quem o ouve. O leitor de um romance, entretanto,
é um ser solitário. Está isolado da companhia humana mais que
qualquer outro tipo de leitor. Daí o ciúme com que, em sua solidão,
apodera-se de sua presa. Quer torná-la totalmente sua, devorá,
mesmo. Deveras, ele destrói e ingere o material que lhe é apresentado
da mesma forma que o fogo devora a lenha na lareira. O suspense
que permeia um bom romance tem a mesma natureza da corrente de
ar que exalta a chama e torna mais viva sua dança.

O(a) Narrador(a), aos olhos de um leitor analítico, percebe que tal narrador
conhece Ana Maria. Aproximando seu olhar perto de reminiscência ou até mesmo no
virar das páginas, a aproximação dessa narração da bela amortalhada,
desencadeando passo a passo a experiência sensitiva entre olhar e memória,
memória e olhar e o ‘agora’, desperta a memória pelo tema denso, enigmático da
morte. Mesmo que esse agora seja a morte. “Me acerco y miro, por primera vez, la
cara de um morto”.

Maria Luisa comprende: su padre ha muerto. Tiene los ojos cerrados


y esos ojos ya no devolverán la ternura que despertaba la presencia
de la hija. Siente frio. Esa mirada apagada era el interruptor mágico de
su alegria. En ella encontraba la duzura precisa y esse circular
acompasado de la snagre em el cuerpo que se llama tranquilidade.
Maria Luisa siente mais frio aún. Le parece que no podrá moverse ni
caminar: sólo enrollarse em um minúsculo ovillo de piernas y brazos
y desaparecer em un rincón. (GLIGO, 1985, p. 28).

88 Tradução de Fornoni, 1986, p. 1 E tão logo anoiteceu, seus olhos se entreabriram.


Porém muito pouco. Era como se ela quisesse olhar escondida atrás de seus longos cílios.
Então, todos os que a estavam velando, à chama dos altos círios, inclinaram-se para observar
como era límpida e transpararente aquela fímbria de pupila que a morte não conseguira
embaçar. Respeitosos e admirados se inclinavam, sem saber que Ela os via. Porque Ela via,
sentia.
128

Para uma garota de oito anos, ver o pai morto foi como se o interruptor mágico
da alegria fosse tocado e desligado. E sente frio… E depois: sente mais frio ainda…
O frio da perda, o desligar da alegria, o mobilizar, o querer criar penas e asas (sonho
de Ìcaro), desaparecer… Entretanto, o que lê são reminiscências do que se foi. Essa
aproximação da morte como relato do que viveu causa no ato de ler a função social
que a escrita desempenha na construção do leitor: o envolver-se intensamente com o
que se está lendo - no caso, a morte é tema jamais experimentado ou narrado como
experiência, fato, causa e efeito.

Estas duas experiências, pode no mínimo intrigar a mentalidade


contemporânea, posto que a modernidade habituou-se a torná-las
como incompatíveis, concentrando o olhar ao imediato sem
interioridade e atrofiando a memória ao ponto estéril de uma função
supérflua.
Assim é que a reunião destes dois temas – olhar e memória.
Naquele que está comovido pelo sonho de um território sem classes,
os trabalhos d memória talvez estimulem a atenção de um olhar
zeloso, entusiasmando a luta política não apenas em direção ao futuro
mas também em direção aos mananciais simbólicos e esperanças
históricas do passado. (FILHO apud NOVAES, 1993, p. 95).

A descrição da memória da menina Maria Luisa também é a do leitor que


rememora fatos de entes que já partiram, histórias de conversas finais, descrições do
último olhar, reminiscências pessoais e individuais de quem ficou. Os pedidos de
promessas não feitos. Os que foram feitos e a angústia do momento crucial ao aceitar
a herança de prometer e ter que cumprir. A certeza de que quem morre é a falta do
tempo existencial e a de quem continua vivo é estar nesse tempo existencial, tendo a
diferença em consumar essa promessa, porém, há o livre arbítrio! Há o livre arbítrio –
de novo. Para Le Goff.

Retomando a análise de Santo Agostinho, o historiador católico Henri-


Irénée Marrou [1968] desenvolveu a idéia da ambigüidade do tempo
da história: "O tempo da história está carregado de uma ambigüidade,
de uma ambivalência radical: ele é certamente, mas não só, como o
imaginava uma doutrina superficial, um "fator de progresso"; a história
tem também uma face sinistra e sombria: este acontecimento que se
cumpre misteriosamente, traça um caminho através do sofrimento, da
morte, e da degradação" [1968]. (LE GOFF, 1990, p.34).

Já a narração de Ana Maria, é pressentir a maneira de olhar descrita na


perspectiva de um espírito, alma penada, desencarnada ou mais propriamente
dizendo ao pé da letra pela Morte, trajada na heroína Ana Maria, propiciando analisar
o entorno das ações e o que o olhar descreve, por sons, sensações e sentimentos.
129

Y es así como se ve inmóvil, tendida boca arriba en et amplio lecho


revestido ahora de Ias sábanas bordadas, perfumadas de espliego, -
que se guardan siempre bajo líave —y se ve envuelta en aguei batón
de raso blanco que solía volveria tan grácil.
Levemente cruzadas sobre el pecho y oprimiendo un crucifijo,
vislumbra sus manos; sus manos que han adquirido la delicadeza
frívola de dos palomas sosegadas.
Ya no le incomoda bajo la nuca esa espesa mata de pelo que durante
su enfermedad se iba voIviendo, minuto por minuto, más húmeda y
más pesada.
Consiguieron, ai fin, desenmarariarla, alisaria, dividiria sobre la frente.
Han descuidado, es cierto, recogerla. Pero ella no ignora que Ia masa
sombria de una cabellera desplegada presta a toda mujer extendida y
durmiendo un ceão de misterio, un perturbador encanto. 'I' de golpe se
siente sin una sola arruga, pálida y bella como nunca. (BOMBAL, 1938,
p. 6).89

Se observarmos literalmente a obra de Maria Luisa, além da atração pelo título,


ao iniciar as primeiras linhas, se percebe que, no romance, há o pacto com o leitor no
sentido da união entre prosa e poesia, havendo, assim, um romance narrativo e
poético por meio do fluxo de consciência, intercalado por fatos passados, ações no
momento do velório e o futuro do além, a voz do narrador externo que chama
autoritariamente a narradora. Ágata Gligo, no capítulo cujo título instigante é “El
tiempo, essa infame invencion”, explana da seguinte maneira as obras de Bombal:

Veinte anõs de ausencia y de silencio cearon un mito. El impacto de


los dos libros de Maria Luisa Bombal se produjo em la segunda mitad
de la década del treinta. Irrumpió com su prosa poética, emotiva y
precisa, em um medio literario donde imperaban fundamentalmente el
criollismo y el realismo. Luego desapareció. Apenas una que outra
notícia escueta y fragmentaria desde los Estados Unidos. A la
distancia y a los años se sumó el misterio del silencio. Agotados su
libros hace más de un deceniio, quedó envuelta em una nebulosa,
pero no cubierta por el ovido.

89 E é assim que se vê, imóvel, estendida de costas no amplo leito revestido agora de
lençóis bordados, perfumados de alfazema – lençóis que sempre são trancados à chave - e
se vê envolta naquela bata de cetim branco que a deixava tão frágil.
Vislumbra suas mãos levemente cruzadas sobre o peito, apertando um crucifixo; mãos
que adquiriram a delicadeza frívola de duas pombas tranquilas.
Já não a incomoda sob a nuca a densa mata de cabelos que durante sua doença ia
se tornando cada vez mais úmida e mais pesada.
Afinal conseguiram desembaraçá-lo, alisá-los e reparti-los sobre a testa. É verdade
que não tiveram o cuidado de prendê-los.
Porém ela não ignora que o volume sombrio de uma cabeleira solta confere a toda
mulher deitada e adormecida um toque de mistério, um perturbador encanto.
E imediatamente se sente sem rugas, pálida e bela como nunca (A Amortalhada, 1986,
p. 2; Tradução BERDINANDI; DEL PRADO, 1986, p. 1-2).
130

Muchos hasta la creían muerta, presunción que no hace sonreír a la


escritora. La enfurece”. Así, em una página completa de El Mercurio
del 18 de febrero de 1962, el crítico Hans Ehrmann revela la presencia
de Maria Luisa Bombal em Chile. (GLIGO, 1985, p. 137).90

Deixando o leitor em um ‘ir ao passado’, ‘ficar no caixão’ e/ou ser ‘chamado


pelo além’, pois o narrador está fixo no olhar de Ana Maria, que não se fechou, tais
apontamentos e reminiscências que ela faz são características da arte pessoal e
intransferível e, por que não dizer, raramente encontrado nos romances chilenos da
época.
Na trama, percebe-se o narrador dono da voz e a narrativa da Amortalhada,
bem como o entrecruzar da voz da Amortalhada e dos demais personagens. No
entanto, algumas frases e ações são como pedaços de tecidos envoltos na mortalha,
que juntos vestem Ana Maria como O dia queima horas, minutos, segundos, ou o
insistente chamado: “Vamos”

El día quema horas, minutos, segundos.


—"Vamos".
—"No".
Fatigada, anhela sin embargo, desprenderse de aquella partícula de
conciencia que la mantiene atada a la vida, y dejarse llevar hacia atrás,
hasta el profundo y muelle abismo que siente allá abajo.
Pero una inquietud la mueve a no desasirse del úl-timo nudo.
Mientras el día quema horas, minutos, segundos.
Este hombre moreno y enjuto al que la fiebre hace temblar los labios
como si le estuviera hablando. ¡Qué se vaya! No quiere oírlo.
"—¡Ana María,
levántate! Levántate para vedarme una vez más la entrada de tu
cuarto. Levántate para esquivarme o para herirme, para quitarme día
a día la vida y la alegría. Pero ¡levántate, levántate!
¡Tú, muerta!
Tú incorporada, en un breve segundo, a esa raza implacable que nos
mira agitarnos, desdeñosa e inmóvil.
Tú, minuto por minuto cayendo un poco más en el pasado. Y las
substancias vivas de que estabas hecha, separándose, escurriéndose
por cauces distintos, como ríos que no lograrán jamás volver sobre
su cur-so.
¡Jamás!
Ana María, ¡si supieras cuánto, cuánto te he que-rido!-".
¡Este hombre! ¡Por qué aún amortajada le impone su amor! raro que
un amor humille, no consiga sino humillar.

90 Tradução nossa: Vinte anos de ausência e de silêncio criaram um mito. O impacto


dos dois livros de Maria Luisa Bombal produzidos na segunda metade da década de trinta.
Irrompeu a prosa poética, emotiva e precisa, em um meio literário onde imperavam
fundamentalmente o criollismo e o realismo. Mas, lodo desapareceu. Assim, em uma página
completa de El Mercurio, de 18 de fevereiro de 1962, o crítico Hans Ehmann revela a presença
de Maria Luisa Bombal no Chile.
131

El amor de Fernando la humilló siempre. La hacía sentirse más pobre.


(BOMBAL, 1938, p. 39-40).91

A aproximação carnal e a atração física entre Ana e Ricardo são narradas pela
personagem feminina, mesmo tendo Maria Luisa a opção de substituir o narrador.
Repetimos, novamente, que a característica corajosa da autora na narrativa de suas
personagens femininas, anônima ou não, na década de 1930, é o marco
revolucionário para a mulher na literatura.

Me resignaba ya a. los peores males tratos o a las más crucies burlas,


según tu capricho del momento, ceando reparé que dormias. Dormias,
y yo, coraje inaudito, me estendi' en la paja a:u lado, mientras guiados
por el peón Aníbal los bueyes proseguían lentos un itinerario para mi
desconocido.
Muy pronto quecló atrás el jadeo desgarrado de la trilladora, muy
pronto el chillido estridente de las cigarras cubriú el rechinar de las
pesadas ruedas de nuestro vehículo.
Apegada a tu cadera, contenía la respiración tratando de aligerarte mi
presencia. Dormias, y yo te mizaba presa de una intensa ernoción,
dudando casi de lo que veían mis ojos: Infuestro cruel tirano ya-cia
indefenso a mi lado!
Anilado, desarmado por el sueiio, ¿me parecbte de golpe infinitamente
frágil? La verdad es que no acudió a mi una sola idea de veriganza.
Tú te revoiviste suspirando, y, entre la gaja, uno de tus gies desnudos
vino a enredasse con los mios.

91 O dia queima horas, minutos, segundos.


“Vamos.” “Não.
Cansada, deseja, todavia, desprender-se daquela partícula de consciência que a
mantém presa à vida e deixar-se levar para trás, até o profundo abismo, denso e movediço,
que ela sente lá embaixo.
Mas uma inquietação leva-a a não desatar o último nó. Enquanto isso, o dia queima
horas, minutos, segundos.
Este homem moreno e magro, com os lábios tremendo de febre, como se estivesse
falando, que vá embora! Não quer ouvi-lo.
“Ana Maria, Levante-se!
Levante-se para impedir uma vez mais que eu entre em seu quarto. Levante-se para
esquivar-se de mim ou para ferir-me, para tirar-me, dia após dia, a vida e a alegria. Porém,
levante- se, levante-se!
Você, morta!
Você incorporada, brevemente, a esta raça implacável que nos vê agitar-nos,
desdenhosa e imóvel.
Você, minuto após minuto, caindo cada vez mais no passado. E as substâncias vivas
de que você era feita vão se separando, escorrendo em filetes diversos, como rios que não
conseguirão jamais retornar ao seu curso. Jamais!
Ana Maria, se você soubesse quanto, quanto eu te quis!”
Este homem! Por que ainda lhe impões seu amor, estando ela amortalhada?! É raro
que um amor humilde, que não consiga mais do que humilhar. O amor de Fernando a
humilhou, sempre. Fazia-a sentir-se mais pobre. Desprezava-o porque não era feliz, porque
não tinha sorte.
Como foi mesmo que ele se impôs em sua vida, até tornar-se um mal necessário? Ele
bem o sabe: tornando-se confidente.
132

Y yo no supe corno el abandono de aguei gesto.92

Tendo as ações e os eventos que envolvem o tema e os costumes da


religiosidade católica chilena, com seus mitos e crendices, nascidos da aculturação
entre colônias espanholas e indígenas, em ambos os romances, trata, basicamente,
da religiosidade natural e da irracionalidade subjacente a todo poder abusivo, que
transforma inocentes em culpados – a irracionalidade que acaba sempre por erigir o
poder dominante.
As duas protagonistas passam por conflitos, envolvendo o tema e a relação
com Deus. O que disso foi apresentado nas obras bombaleanas puderam, de algum
modo, ser posteriormente pensadas e situadas diante de uma vasta fortuna crítica que
já havia, inclusive, proposto aproximações de naturezas diversas sobre Maria Luisa.
Assim, necessitaremos de um aprofundamento em estudos, tanto nas obras
quanto para a escritora chilena, apesar de que há uma extensa crítica sobre Maria
Luisa que busca de algum modo alcançar alguma compreensão ou entendimento
sobre os ingredientes de palavras que encanta. Isso inclui os esterótipos da mocinha
inocente que pode ser culpada de algo, que perambula pela neve ou pela floresta, que
viva ou morta em seu silêncio olha a tudo e a todos e diz o que parece que o leitor
quer ouvir e ver. São investigadores de pesquisa que buscam, de algum modo, chegar
ao seu olhar escritor, que enigmaticamente fascina sob uma legião de críticos e
leitores.

92 Já estava resignada aos piores maus tratos e às brincadeiras mais cruéis, conforme
seu capricho do momento, quando reparei que você dormia. Você dormia e eu, com inaudita
coragem, deitei-me a seu lado, na palha, enquanto os bois, guiados por Aníbal, o peão,
prosseguiam vagarosos por um caminho para mim desconhecido.
Logo ficou para trás o arquejo rasgado da debulhadora, logo o zunido estridente das
cigarras cobriu o rangido das pesadas rodas da carroça.
Deitada a seu lado, continha a respiração para que minha presença fosse leve. Você
dormia e eu o olhava presa de uma intensa emoção, quase duvidando do que viam meus
olhos: nosso cruel tirano jazia indefeso ao meu lado!
Aninhado e desarmado pelo sono, você me pareceu de repente infinitamente frágil.
Terá sido assim? Na verdade, não me animou o menor desejo de vingança.
Você se virou suspirando e, por entre a palha, um de seus pés nus veio a se enredas
aos
meus.
E eu não soube como o abandono daquele gesto pôde despertar tanta ternura em
mim, nem
porque foi tão doce o tenro contato de sua pele.
133

No entanto, há a simplicidade sagaz ao utilizar adereços que nos remetem à


linguagem do mundo ou do livro Imago, associado ao tema morte, a maior certeza de
todo humano e ao mesmo tempo incerteza, pois jamais saberemos o que é. Todavia,
a arte fictícia de Bombal nos aproxima do que queremos saber de forma trágica,
dramática, triste e ao mesmo tempo clássica, como quem está em um caixão e,
concomitantemente, dentro de uma fábula.

La invade una inmensa alegria, que puedan admiraria así, los que ya
no la recordaban sino devorada por fútiles inquietudes, marchita por
algunas penas y el aire cortante de la hacienda.
Mora que la saben muerta, allí están rodeándola todos.
Está su hija, aquela muchacha dorada y elástica, orgullosa de sus
veiaste anos, que sonreía burlona cuando su madre pretendia,
mientras le ensefiaba viejos retratos, que también ella había sido
elegante y graciosa. Están sus hijos, que parecían no querer
reconocerle ya ningún derecho a vivir, sus hijos, a quienes
impacientaban sus caprichos, a quienes avergonzaba sorprenderla
corrigindo por el jardfn asoleado; sus hijos ariscos al menor cumplido,
aunque secretamente halagados mandos sus jóvenes camaradas
fingían tomaria par una hermana mayor.
Están algunos amigos, viejos amigos que parecían haber olvidado que
un dia fué esbelta y feliz.
Saboreando su pueril vanidad, largamente permanece rígida, sumisa
a todas las miradas, como desnuda a fuerza de irresistência.
(BOMBAL, 1938, p. 07).93

Os elementos da natureza fazem parte do que os olhos da garota Maria Luisa


descrevem - possuem o encantamento em cada ação de Ana Maria, descritos em
miúdos detalhes; nada escapa que venha da natureza: água, o outono, chuva,
ventania na janela, os campos... mesmo que sejam sentidos de um cadáver... os olhos
de Ana registram.
El murmullo de la lluvia sobre los bosques y sobre la casa la mueve
muy pronto a entregarse cuerpo y alma a esa sensación de bienestar

93 Invade-a uma imensa alegria de que possam admirá-la assim aqueles que só se
recordavam dela como de alguém devorada por inquietações levianas, encarquilhando em
pequenos cuidados, no ar cortante da fazenda.
Agora que a sabem morta, estão todos ali, juntos à sua volta.
Ali está sua filha, aquela jovem dourada e elástica, orgulhosa de seus vinte anos, que
sorria zombeteira quando sua mão, ao mostra-lhe velhos retratos, pretendia também ter sido
elegante e graciosa. Estão seus filhos, que pareciam não querer reconhecer-lhe já nenhum
direito à vida; seus filhos, a quem incomodavam caprichos dela e envergonhavam-se de
surpreendê-la no jardim ao sol; filhos ariscos ao menor carinho, mesmo que secretamente
lisonjeados quando seus jovens amigos fingiam tomá-la por uma irmã mais velha.
Estão também alguns amigos, velhos amigos que pareciam haver esquecido que um
dia ela foi esbelta e feliz.
Saboreando essa sua vaidade infantil, permanece por muito tempo rígida, submissa a
todos os olhares como que desnudada de tanto não resistir.
134

y melancolia en que siempre la abisme) el suspirar dei agua en las


interminables noches de otofio.
La Iluvia, cae, fina, obstinada, tranquila. Y ella la escucha caer. Caer
sobre los techos, caer hasta dobrar los quitasoles de los pinos, y los
anchos brazos de los cedros azules, caer. Caer hasta anegar los
tréboles, y borrar los senderos, caer.
Escampa,94 y ella escucha nítido el bemol de lata enmohecida que
ritmicamente el viento arranca al mofino. Y cada golpe de aspa viene
a tocar una fibra especial dentro de su pecho amortajado.
Con recogimiento siente vibrar en su interior una nota sonora y grave
que ignoraba hasta ese dia guardar en sí. Luego, llueve nuevamente.
Y la Iluvia cae, obstinada, tranquila. Y ella la escucha caer.
Caer y resbalar como lágrimas por los viários de Ias ventanas, caer y
agrandar hasta el horizonte las lagunas, caer. Caer sobre su corazón.
y empapado, deshacerlo de languidez y de tristeza.
Escampa, y la rueda del mofino vuelve a girar pesada y regular. Pero
ya no encuentra en ella la cuerda que repita su monótono acorde; el
sonido se despena ahora, sorclamente, desde muy alto, corno algo
tremendo que la envuelve y la abruma. Cada golpe de aspa se le
antoja el tic-tac de un refoj gigante marcando el tiempo balo Ias nubes
y sobre los campos. (BOMBAL, 1938, p. 07-8).

As figuras de linguagem personificação ou prosopopeia e metonímia são


exploradas por Maria Luisa como chavões repetidos que significam fatos novos ou
aproximação a algo muito sério e tenso, usando as expressões, associações à ‘vela’
ou ao moinho. “O dia queima”; do moinho d’água é o que nossos olhos vislumbraram
como marca existencial, tanto da menina deixada pela mãe para ser criada pela
descendente da tribo araucana e a mulher forte diante dos filhos, bem como a já
conhecida da voz que a chama desde a infância, ao saber que fizemos algo errado e
escondido, que ninguém possa saber. No entanto, já é muito para uma mentalidade

94 O murmúrio da chuva caindo sobre os bosques e sobre a casa leva-a de repente a


entregar-se de corpo e alma a esta sensação de bem-estar e de melancolia em que sempre
a abismou o suspiro da água nas noites de outono intermináveis.
A chuva cai fina, teimosa, tranquila. Ela a escuta cair. Cai sobre os telhados, cai até
curvar os guarda-sóis dos pinheiros e os amplos braços dos cedros azuis, cai. Cai até afogar
os trevos e apagar os atalhos, cai.
Escampa, e ela ouve nítido o bemol de lata enferrujada que ritmadamente o vento
arranca do moinho. E cada golpe da pá vem tocar uma fibra única em seu peito amortalhado.
Com o recolhimento, sente vibrar em seu íntimo uma nota sonora e grave que até esse
dia desconhecia ter guardado dentro de si.
Chove de novo. E a chuva cai, teimosa, tranquila. Ela a ouve cair.
Cair e resvalar como lágrimas pelos vidros das janelas, cair e avolumar as lagunas até
o horizonte, cair. Cair sobre seu coração e encharcá-lo, desfazê-lo em langor e tristeza.
Escampa, e a roda do moinho volta a girar pesada e regular. Porém já não encontra
nela a corda que repita seu monótono acorde; o som despenca agora do alto, surdamente,
como algo terrível que a envolve em sobras. Cada golpe da pá parece-lhe o tique-taque de
um relógio gigante que marca o tempo sob as nuvens e sobre os campos...
135

saber o que aconteceu - como, onde, com quem. A memória, nessa situação, age
como um martelo mental.

Olhar em direção ao passado, “olhar desgarrado com que, às vezes,


os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e
ausente”. Olhar fugidio mas que é paradoxalmente estilo dum ofício
inserido no presente: o velho recolhe imagens de outrora, mas
reclamadas nas nervuras de uma vida em ato “ relembrar exige um
espírito desperto, a capacidade de não confundir a vida atual com a
que passou, de reconhecer as lembranças e opô-las às imagens de
agora”: “não há evocação sem uma inteligência do presente”: “ aturada
e apurada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação|: “uma
lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito”, E,
de resto que haja ocasião para o trabalho mnêmico, pois “um homem
não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações
atuais”. (NOVAES, 1993, p. 97).

O olhar desgarrado da narradora, perdida nas trevas da morte, o orgânico elo


que ainda liga as personagens, todas elas, intimamente com a terra, um simples fio
que cai da cabeça é a verdade natural para Maria Luisa (água, fogo, névoa, o sagrado,
a vida e a morte, as paixões e as relações amorosas).
No capítulo a seguir, falaremos sobre cada temática e como se encontram nas
duas escritoras de nações diferentes, mas de origem latino-americana (Paraguai e
Chile). Há o moinho, a voz que chama Ana Maria, a aventura que a arrasta como viva
– morta – a névoa e a irresistível anônima, que pode ser você, eu, em forma de
parábola sobre o jeito de olhar a vida e tudo que a torna única e última.
136

Crepúsculo das luzes

O real perdeu-se completamente


nos contornos da imagem de minhas sombras.
A Personagem

No princípio,
Via-me pelos OLHOS De Deus,
Que eu não via.

Passei a ver-me
Depois,
Pelos OLHOS
Daqueles Que de mim
Se distinguiam.

Agora,
Vejo-me nos OLHOS
De um Espelho
-Uma Imagem
Que comigo se identifica,
Mas que Não-Sou-Eu!

(Cida Rodrigues, 2001, p.93).


137

6 EM UM PISCAR DE OLHOS – CARMEN E MARIA

E a coisa toda fica bem mais interessante quando observamos nossa


própria “espécie” refletida num espelho. Isso porque o espelho é o locus da
descoberta de que nossa “espécie”, nosso imago, não nos pertence. E “
entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que
os poetas medievais denominavam amor.
(G. Agamben)

Não localizamos nenhuma pesquisa que aproximasse Maria Luisa Bombal de


Carmen Soler, mas indicamos a leitura de pesquisas pioneiras feitas no Brasil, sobre
as aproximações e contrastes entre as escritas de Clarice Lispector e Maria Luísa
Bombal, pela pesquisadora Laura Janina Hosiasson. Especialmente, no caso das
produções literárias de Silvina Ocampo e María Luisa Bombal, é significativa a
expressão da revista Sur como o espaço de algumas de suas publicações. Neste
sentido, recomendamos a leitura do artigo de María Teresa Gramuglio, “Posiciones
del Sur en el espacio literário. Una política de la cultura” (2004). Todos os exemplares
da revista Sur estão disponíveis para consulta no acervo do Museu Villa Ocampo, em
San Isidro – Argentina, por nós visitado.
Os poemas de Carmen Soler de 1955, 1960 e 1968 contêm testemunhos desde
o cárcere. Além da literatura, sua sensibilidade artística se expressou também na
pintura e em habilidades manuais com madeira e outros materiais. Parte da obra
literária de Carmen permanece ainda dispersa em periódicos e revistas. Mesmo que
sua poesia tenha chegado aos olhos dos leitores paraguaios, após a queda da
Ditadura, de forma póstuma e fundamentalmente reunida em vários livros95, Carmen
representa a mulher na literatura paraguaia; a erupção como poeta de combate é sua
maior expressão.
O mais intenso é o som da água movimentada pelo velho moinho. Como um
chamado espiritual, a vida e a morte duelam e levam-na nessa nostalgia agonizante;
junto dela, está o leitor, que vela pelo desenrolar da protagonista narradora. Os
elementos da natureza testemunham nos dois romances, porém, a própria
personagem é a natureza. Recomendamos, aqui, a leitura do capítulo de Susan
Bassnett, intitulado “Coming Out of the Labyrinth: Woman Writers in Contemporary

95 Poemas. (Ed. Aquí poesía, Montevideo, 1970); En la Tempestad. (Ed. Cartago,


Buenos Aires, 1986); La alondra herida (Ed Arandurá, Asunción, 1995) y Poesías reunidas
(Ed. Servilibro, Asunción 2011).
138

Latin America” (1987) e o artigo de Marjorie Agosín, intitulado “Mujer, espacio y


imaginación en Latinoamérica: dos cuentos de María Luisa Bombal y Silvina Ocampo”
(1991).
Na dualidade dessa dupla, composta pelas narrativas de Maria Luisa e Carmen,
foi surgindo, aos poucos, uma série de questões relevantes, sinalizadas pelas autoras,
que reforçavam a percepção sobre possíveis aproximações e similitudes entre essas
escritas literárias, orientadas pela recorrência de temáticas ligadas ao universo do
cotidiano feminino, das atitudes intimistas sob a perspectiva do olhar feminino, pela
presença da voz narrativa das mulheres personagens e pelo levantamento de outra
suspeita, que apontava para uma condição por vezes complexa e contraditória,
vivenciada pelas mulheres personagens ou protagonistas de tais narrativas em
relação direta com situações femininas nas Américas da primeira metade do século
XX.
De acordo com algumas dessas estudiosas, o recurso ao silêncio que
assombra essas ficções e o trabalho com os limites da linguagem, mais do que
apontar para certa impotência para se lidar com o relato da experiência, poderia
indicar também o olhar silenciado para evitar a reafirmação de uma escrita de
mulheres ou da busca por vestígios discursivos capazes de demarcar a presença
efetiva ou uma suposta “essência” da literatura produzida por mulheres escritoras,
capaz de inquietar – e nos inquietar – o ar rarefeito da existência humana.
Assim, na escrita desta pesquisa, não partimos de situações de escrita comuns,
conhecidas, familiares ou ordinárias para penetrar no universo das visões
impensáveis.
A partir das personagens do eu lírico da poesia de Carmen, respeitando suas
origens, regionalismo, folclore, natureza e principalmente os direitos humanos, bem
como das narradoras e/ou protagonistas de Maria Luisa, adentramos universos de
poderes mágicos, casamentos frustrados, conhecimentos secretos e inquietantes
perversões, pequenas garotas maldosas ou vitimadas que poderiam ser vistas como
férteis encenações de um tipo de subjetividade e transgressividade feminina.

6.1 VINTE E POUCOS ANOS

A literatura está cheia de escritoras precoces e a utopia literária não foi


percalço para as escritoras estudadas nesta pesquisa; elas não adiaram o projeto de
139

escrever. Esperar pela tal “maturidade” poderia ser apenas uma forma de
desacreditar na inspiração artística do que produziam. Uma breve olhada na história
da literatura confirma: estantes inteiras de obras foram criadas por autores em seus
“vinte e poucos anos”. Ou até menos. O exemplo emblemático é o do francês
Rimbaud. Seus textos mentais definiram novos rumos na poesia moderna, saíram de
sua pena entre os 15 e os 21 anos. A partir dessa idade, ele achou que já não tinha
mais nada a dizer, largou os livros e foi vender armas na África.
A escritora Carmen Soler, bem como Maria Luisa Bombal, entra nesta lista.
No caso desta pesquisa, as obras aqui estudadas, Poemas (SOLER, 1970), por
proibição da ditadura não foi publicada na íntegra, mas os primeiros poemas
ganharam publicações de revistas, na Argentina de 1947, quando a jovem paraguaia
tinha apenas 23 anos. Já Maria Luisa, publicou A última névoa em 1935, aos 25 anos.
Carmen Soler produziu uma vasta obra, não apenas lírica, mas também nas
Artes Plásticas. Aprendeu a gravar na memória o que viu, ouviu e viveu, sendo
impossível escrever ou pintar na prisão. Rememorava cada fato e reproduzia. As
emoções que aparecem em suas pinturas despertam não apenas a visão, mas
deixam ali seu olhar para o tempo passando; o som da palavra não dita das mulheres
oprimidas, a covardia do verdugo e a tristeza de não estar livre. Como declara:

Escrevo em qualquer lugar, a qualquer hora, embora prefiro o silêncio


da noite. Mas posso escrever na rua, num bar, numa masmorra,
usando os azulejos como papel e grãos de cal das paredes como lápis.
Ou na cozinha, deixando a comida por um momento enquanto anoto
uma ideia (comida queimada, muitas vezes!) mas quando eu posso
escolher - luxo que tive poucas vezes - prefiro um quarto fechado, com
muitas prateleiras, livros, quadros, quantidade de mesas onde
desdobrar as minhas coisas e ter tudo à mão. Assim concentro-me
mais facilmente e também me sinto protegida não sei bem do que
(SOLER).96

A Arte provavelmente foi o ombro e o abraço; a escrita podia estar em um


pedaço de cal quando fosse impossível. A mente foi seu caderno e sua tela. Ela os
tirou dali como quem tira de um grande baú o mais rico tesouro.

96 Tradução livre nossa. Portal Guarani.


140

6.2 A BRECHA DA CÂMARA, OS OLHOS, O RETRATO E O DOSSIÊ

O olhar ocupa cada vez mais o apelo visual, seja em telas que capturamos,
salvamos, editamos, postamos (somos o oposto da história, o que era para eternizar,
o aplicativo eterniza o efêmero em trinta segundos), estamos a olhar, por ele a
sensibilidade por meio das imagens com a função de executor na cultura
contemporânea; mas antes de toda tecnologia de celulares, tablets e até máquina
fotográfica, ainda assim, é preciso haver o olhar e sua ferramenta, as mãos. Vivemos
sob o impacto da proliferação de olhares, produzidos e sustentados pelas redes
midiáticas, de imprensa, cinema, publicidade e televisão, além dos olhares, da rotina
real.
Não há como elaborar este ensaio sem tratar da literatura, sem levar em conta
a essência do olhar. É essa relação conflitante, querendo que os olhos vejam para o
coração sentir, o foco de compreensão para a produção de sentido no que se olha;
dessa forma, abordaremos o olhar para os papéis de Maria e Carmen, em que a morte
é o momento de início, a partir do qual vem à tona a vida dessas pessoas. Suicídio,
sentimento, abandono, romance e fatos que se confundem com o ter consciência da
morte e da vida.
Tanto no romance quanto nos poemas, há o melancólico, sentimental, profundo
e metafórico, com a vitalidade desfalecida das mulheres sob o olhar por meio de
extensas escavações "psíquico arqueológicas" nas ruínas do mundo subterrâneo
feminino, real ou fictício. Neste espaço, que denominamos Dossiês, os autorretratos
chegarão ao leitor como quem recebe os álbuns de retratos de Carmen e Maria Luisa.
Cada documento terá fragmentos textuais literários, de letras de músicas, filmes com
o tema olhar e pontos que nos chamam a atenção, para destacar que, em tais
análises, seria impossível o não envolvimento do fotógrafo, com seu olhar diferenciado
sobre as coisas e um modo especial de pretender salvá-las da morte, ilustrando com
os retratos e inscrevendo-as no interior de um tempo surpreendido, quando viverão
enquanto durarem as superfícies dos materiais em que são fixadas.
141

FIGURA 9 - Carmen Soler jovem

A beleza do olhar da jovem é de sinceridade e feminilidade, além de


expressar - por mais que aparente ser uma fotografia com fim de documento da
professora, olhando a câmera com o olhar tão fixo e ao mesmo tempo sedutor – uma
forma silenciosa; mas o olhar diz insistentemente a palavra liberdade e que não ficou
“desfocada na arte fotográfica”. Há quem duvide que falar de poesia é falar de olhar.
Quem sabe o encontro desse registro, do olhar e a alma da poetisa marcaram o
fotógrafo anônimo97 historicamente.

FIGURA 10 - Carmen na areia da praia

Esse retrato, que possui ao fundo o mar aberto, banha-nos de memórias, uma
vez que não é apenas a areia que a eterniza, nem o som que parece que ouvimos, as

97 Não localizamos em nossa pesquisa a autoria do retrato.


142

ondas que se aproximam da praia como um lençol natural a cobrir o corpo da pose
adormecida de Carmen, mas também toda a imensidão da sensualidade, o braço que
cochila embaixo da cintura, as coxas que adormecem a barra molhada do vestido.
Também, não é o corpo apenas de Carmen que adormece, e sim, a simplicidade de
quem correu, brincou, se molhou, sorriu, tomou sol, conversou, além da dona do
vestido de gola em decote V. Provavelmente, ela foi a que ajeitou a calça, dobrou
passando carinhosamente as mãos, os dedos, a reforçar o friso e o pousar em cima
da maleta, o ajeitar do chinelo para o esticar do corpo e o afundar dos pés na areia.
O quanto diz esse retrato? Ali está a mulher por três vezes aprisionada. A irmã
de Miguel, a amada de Casablanca, a mãe de Matena, porém, antes de tudo, está a
menina na praia, a paraguaia adormecida no mormaço da areia a descansar.
Os brinquedos, quem os usou - o que há na pasta – qual a intensidade do vento,
o conteúdo da pasta, o cheiro do paletó que recebeu o corpo esguio e toda sua beleza
entregue ao olhar do fotógrafo.
As lembranças de estar nesse espaço são uma manifestação de cada um, o
querer, o sentir desejo de afundar os pés inchados de cansaço na fina, carinhosa e
profunda areia da praia; são extratos históricos ao contemplar o retrato. Por meio do
olhar do fotógrafo, capturamos a reminiscência. São capazes de desvelar, criticar e
transformar fatos político-sociais que implicam o modo de ser e de viver dos sujeitos
sociais.

Na obra de arte, as manifestações do passado aparecem como


testemunhos e incorporam diálogos implícitos, citações,
evocações, estilizações, alusões, bem como cruzamentos de
experiências estéticas materializadas numa polifonia de discursos
que retêm o tempo e a história. (SILVA, 2013, p. 25-26).

O texto Tessituras do Tempo e a Arte da Memória (2013), de Acir Dias da Silva,


contribui para a compreensão de que, o olhar, por meio da obra literária, utiliza a
retórica por meio de alegorias sociais. No caso do retrato, o contexto do que é
retratado. Como sugere o retrato, a água, o céu, as ondas, a areia, os pés escondidos
no buraco de areia, o arrumar, o deitar; tudo isso nos faz sonhar, puxando pela
memória os sentidos despertados pela imagem da mulher com o vestido molhado,
arregaçado nas coxas. A posição de ponta cabeça, valorizando a imagem do corpo e
eternizando a união entre ela e o mar. Esse despertar instantâneo da memória em
trazer os ficheiros de férias e as viagens para encontrar o oceano.
143

O próximo retrato é o que ninguém gostaria de ter em álbum nenhum. No


entanto, em sua atuação política, ela permitiu que fosse fotografada, de modo que a
foto tornou-se documento e possui, à caneta, anotações com algum objetivo, que não
sabemos qual, nem quem os fez. Não conseguimos encontrar a origem das marcas,
apenas que o autorretrato foi tirado após receber alta no hospital. Sendo por diversas
vezes ameaçada de morte pela La Técnica, a escritora iniciou greve de fome, para
evitar envenenamento. Além da fragilidade física e da resistência de não se alimentar,
ela chegou até à tentativa de suicídio, ferindo os pulsos.

FIGURA 11 - Carmen Soler – marcas da tortura

É preciso conceber o escritor (ou o leitor: é a mesma coisa) como um


homem perdido em uma galeria de espelhos: ali onde a sua imagem está
faltando, ali está a saída, ali está o mundo (BARTHES, 1982, p. 51).

A força do trauma e da experiência que passou com o quadro depressivo e as


ameaças de assassinato alertou jornalistas, intelectuais e escritores da América
Latina. Na tentativa de entrar clandestinamente no Paraguai, em 1968, para visitar
ente adoentado, a poeta torna-se notícia:
144

A poeta Carmen Soler, em 15 de fevereiro de 1968, foi presa,


brutalmente torturada. Internada com várias lesões que ameaçam sua
vida. Para acabar com a tortura fez greve de fome por sua liberdade e
ameaça suicídio (El País).

Com as denúncias da escrita jornalística, vários esforços, tanto dentro como


fora do Paraguai, foram feitos para salvá-la. Legisladores, artistas e intelectuais do
Uruguai, Chile e Argentina enviaram telegramas reivindicando sua liberdade. Entre
eles: Juvêncio Valle e Pablo Neruda, fato que obteve sucesso, após tecer por trinta
longos dias uma trama de resistência, em que as linhas da escrita jornalística trazem
o socorro.
A violência causada pelo ser humano pode ser considerada como algo
socializado e que exerce funções nas diferentes estruturas sociais. Nesse sentido, a
violência estaria presente tanto como ritual simbólico quanto racionalizada nas lógicas
sociais.
Sua preocupação é a de tomar a realidade da violência para, observando suas
manifestações sociais “apreciar a qualidade de equilíbrio maior ou menor que
caracteriza cada sociedade” (MAFFESOLI, 1987), como um modo de compreender a
violência em suas manifestações particulares em uma nação ou entre nações.
Para o poeta paraguaio Herib Campos Cervera, admirador e estudioso da
poetisa e escritor colaborador do site Portal Guarani, além de pesquisador em capturar
o olhar e acervo soleriano, disse que: "Toda a poesia deve servir e Carmen Soler tem
sucesso: seus poemas expressam a sobriedade da intensa militância política, uma
preocupação e uma luta constante pela libertação de seu povo. Exílio, prisão, e, claro,
o silêncio em seu próprio país tentando contornar o seu trabalho, garantir sua atitude.”
Mesmo no exílio, com a sobrevivência longe de seu povo, deixou no papel a
marca do que viu e presenciou em seu país. Atualmente, Soler é a exceção feminina
de um país com pouco reconhecimento literário dentro da poesia como arte;
certamente, aparece em antologias e faz parte do acervo bibliográfico em antologias
ou estudos sobre literatura paraguaia”, completa Cervera.
Algumas fotografias de Carmen estão intimamente ligadas à sua sensibilidade,
à maneira de prender os cabelos em um coque, ao vestido, sapatos, bolsas e até
mesmo à postura aparente nos retratos. No entanto, algumas se referem ao local em
que se encontra, como se sempre estivesse ali, a sentir o vento, a observar a rua, o
céu, as pessoas e a ouvir os pássaros.
145

FIGURA 12 - Carmen Soler em Buenos Aires

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles

A maneira como Carmen está posicionada no instante do clique na escadaria,


em Buenos Aires, na Argentina, apesar do olhar demonstrar desconsolo, parece ser a
146

de quem busca informação no jornal e não encontra, sejam notícias, emprego,


classificados ou um amor…
A luz nos traz Carmen envolta em um casaco marrom, como que para combinar
com o tom dos prédios. Pernas à mostra, coque no cabelo. O que pensa, o que edifica
mentalmente sentada ali. Ao descer os degraus, para onde vai? De onde veio? O que
viu, o que pensa? A personagem da foto observa, olha o vazio na praça.

O calor humano está desaparecendo das coisas deste mundo. Os


objetos de uso quotidiano vão ficando cada vez mais impessoais e isso
se dá de forma sutil, porém persistente. Dia após dia, ao tentarmos
vencer nossa resistência secreta a esses objetos, somos levados a
fazer um grande esforço, Temos que compensa na frieza das coisas
com nosso próprio calor, se não quisermos que nos congelem até a
morte, que nos matem com sua alienação: precisamos manuseá-las
com infinito cuidado e paciência se não quisermos um talho que nos
fará sangra até a morte. (BENJAMIN, 1999, p. 331).

O distanciamento entre a altura dos prédios onde habitam famílias e a solidão


de Carmen tem a companhia de sua sombra sentada no degrau abaixo… mas, ao seu
lado, sente o frio dos Aires. Para Walter Benjamin, os objetos, as ruas são frias.

FIGURA 13 - Carmem Soler e Casabianca

Vou colecionar mais um soneto


Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

Chico Buarque
147

À luz de uma tarde de inverno, Carmen, com braço dado a Casabianca, observa
ao ar livre alguém ou algo; pela posição, parados, sugere-se que o casal ouve alguém,
lembrando a posição cerimonial de um casamento, batizado ou algo público. Olham
na mesma direção, porém, ele está sério, a segurar no outro braço jornais; ela, sorri
meigamente. O tom das roupas contrasta com a luz da tarde. O olhar do fotógrafo
observa o perfil e capta o exato momento do sorriso de Carmen, fazendo assim parte
da cerimônia e eternizando o casal.
Para o admirador e estudioso sobre O olhar, Acir dias da Silva, em tempos em
que o olhar insere o contexto virtual ao seu respirar, pois:

A tecnologia não é neutra; assim como os grandes avanços de nosso


tempo, ela pode ser uma ferramenta tradutora das expressões e
produções genuinamente mais artísticas e culturalmente
enriquecedoras em um tipo diferente de sociedade. (SILVA, 2007, p.
98).

O olhar de Maria Luisa também atrai luzes, foco e chama a reprodução do seu
rosto. De uma beleza e expressividade que deixou assim registrada, a imagem que
escolhemos como marca do olhar tem muito sobre este estudo.
Maria Luisa, nessa luz, parou seu caminhar agitado, os fios da luz pousaram
nela e ela na luz, o foco a segurou, lábios entreabertos, camisa preta.

FIGURA 14 - Maria Luisa Bombal

Teu olho preto, clara imagem, estranho nariz, pra ser mais lógico nariz
cor de maçã (...) E aqui o ônibus da memória cheio de palavras, cores
e sabores segue partindo. Nele misturo planos de ver o movimento
que vem dos lados para o centro e do centro para os lados. (SILVA,
1999, p. 13).
148

O olhar de Maria Luisa também atrai luzes, foco e chama a reprodução do seu
rosto. De uma beleza e expressividade que deixou assim registrada, a imagem que
escolhemos como marca do olhar tem muito sobre este estudo.
Maria Luisa, nessa luz, parou seu caminhar agitado, os fios da luz pousaram
nela e ela na luz, o foco a segurou, lábios entreabertos, camisa preta.
149

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos


Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces plenas de carinhos!

(Florbela Espanca)
150

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS - O ÚLTIMO OLHAR NÃO É O DE ADEUS

Passeia teus olhos pelo meu traçado e verás


uma escrita onde a tinta é ar
aquele que me escreveu se parece comigo em duas coisas:
em termos corpo, mas perdemos o coração
(Ibn Hatima)

Este olhar caçador de leitura, típico de quem é apaixonado pela arte da


Literatura, origina a tentativa de exteriorizar as singularidades entre as obras, que
adquirem leituras variadas.
Em nossa luz (termo raro, normalmente, ouvimos para nascimento: dar à
luz), primeiro é o choro, depois o abrir dos olhos como prova de que nascemos e com
olhos vivos parimos gestações e gerações que acompanhamos com o olhar e, ao
encontrar o ato humano e único, o ler, o olhar aquece o sangue, liberta-se do inóspito,
afasta-se da umidade do ventre que estava sem luz. Assim, também o olhar se
alimentava do cordão umbilical sombrio; agora, as pestanas se movem de vontade,
o trêmulo sentir e o verbo ser se fazem também pelo olhar, pelas mãos nascidas e
condenadas a viver e a cruzar-se até a morte ao último fechar de olhos, mas há,
nesse intermeio, a cumplicidade do olhar e a escrita.

Se eu não olhasse, se eu não tivesse do mundo a apreensão pelo


olhar, só o apreendesse pelo tato, pelos ouvidos, pelo olfato, pelo
gosto, se eu só o apreendesse assim, que noção eu teria, por
exemplo, da manhã? O que seria a manhã, o amanhecer, o dia, e o
entardecer, à noite? Que visão teria eu dessa realidade, se eu não
apreendesse o mundo pelo olhar? A textura, a corporeidade das
coisas, dos objetos, é diferente se eu apenas os tocar com os dedos.
Mas quando eu olho, a riqueza que a minha percepção recebe do
olhar é uma coisa incomparável com relação à que os outros sentidos
me permitem apreender. Então me parece que a construção do
mundo humano deve muito ao fato de que o homem vê a realidade,
de que ele apreende a realidade inclusive e principalmente pelo
olhar. Ele é quase a base do reconhecimento, não é verdade? Mas
se o olhar tem essa importância, é verdade também que eu apreendo
pelo olhar elementos que pertencem a outros sentidos, e os outros
sentidos apreendem coisas que pertencem ao campo do olhar.
(GULLAR, 1988, p. 217-218).

O olhar e a sua pluralidade, neste estudo, na visão dos vários autores,


estudiosos, filósofos, antropólogos, fotógrafos, escritores, etc., referenciados nesta
pesquisa, são parte do que aqui chamamos de flerte, namoro e romance entre a
palavra masculina O Olhar e a feminina Literatura. Isso nos permitiu estabelecer esse
151

paralelo com os teóricos que nos acompanharam nessa viagem, em lua de mel tão
prazerosa, nutrindo visões para a imaginação, fôlego, respiração e vida durante sua
produção.
A lírica, aqui, compartilha dessa embarcação em uma viagem que só os
corajosos têm, por ser difícil, tensa, verdadeira, intensa, original e muito solitária. Sem
roteiros, sem rumos, sem voo, sem direção, tempo de estadia, sem eira nem beira,
podendo ser sem volta, e pior, com La Técnica98 em seu rastro. Mas, embarcamos no
mesmo vagão silenciosa e solitariamente, porém, com a amiga fiel e companheira ‘A
Escrita’ e toda a extensão de um caderno de poesias.
Para esta pesquisa, entre a lírica e a narrativa, encontramos afinidades e
também distâncias, porém, nossas protagonistas têm amor por sua arte, pela língua
de seu país e defendem a expressão da imagem da mulher, como artista, criadora de
literatura e participante social com o envolvimento da arte da escrita, o que as coloca
olho no olho ao declararem seu amor pela escrita.
A metodologia foi organizada pela parte teórica e prática. A teórica seria o
desenhar, moldurar e dar corpo a essa viagem escrita. A prática seria a produção do
material externo. Devido à necessidade e contando com a preocupação com a
quantidade de laudas, que requer academicamente as normas da ABNT, criamos o
“Dossiê Carmen Soler, Confidencial” e o vídeo “Penas Encimadas”. Na fase de
qualificação, elaboramos o Dossiê Bomba(L) e, finalmente, o vídeo Gif’s Bomba(L),
além da logomarca do projeto. A maior dificuldade foi a criação do vídeo com Gif”s e
a logomarca do olhar, ficando inviável, em virtude dos retratos de Soler unirem-se com
o de Maria Luisa, o que seria representante do significado da Dissertação o olhar
jovem da chilena.

O trabalho foi estruturado inicialmente pelo: “O primeiro olhar a gente não


esquece”, como introdução ou apresentação teórica e metodológica da pesquisa, em
que abordamos as pesquisas sobre O Olhar, a ótica, o visível e o invisível, bem como

98 Polícia investigativa no governo de Stroessner sistematizou um mecanismo repressivo


através de órgãos estatais como o Departamento de Investigaciones e a Dirección Nacional
de Asuntos Técnicos (La Técnica). Esse modelo ultrapassou os muros das delegacias e dos
quartéis militares e adentrou- se nos lares, nos locais de trabalho, nas universidades etc. Isso
foi possível por conta da atuação dos pyragues (delatores da ditadura) na sociedade
paraguaia. Tal estrutura – que controlava e vigiava diversos espaços sociais – desbaratou
movimentos armados, desfez tentativas de derrubar o regime, perseguiu milhares de
indivíduos, censurou veículos de comunicação e desarticulou ações opositoras político-
partidárias e sindicais.
152

o contexto da ciência, da história, da filosofia e psicologia, além de sua importância


político-social em processos de valorização e importância do olhar para reproduzir
fatos, processos de fixação de acontecimentos, traumas, autotestemunho e objetos
de arte, independentemente de sua historicidade. Aprofundamo-nos a elucidar o
entendimento do olhar e seu relacionamento intenso com a literatura.
O espaço de encontro entre “O Caso de amor entre O Olhar e a Literatura” foi
além das linhas do primeiro Capítulo, apresentando como predisposição a cupidos o
casal convidado para esta viagem, enredando o encontro com as teorias que
envolvem os temas aqui tratados.
No segundo Capítulo, evidenciamos nossa “Menina dos Olhos”, Carmen Soler,
com o material que nos trouxe a pessoa extraordinária e intelectual de uma mulher
decidida, envolvente, sagaz e corajosa, que enfrentou por meio da poesia as armas
do descaso, da violência e da brutalidade da ditadura paraguaia. Focamos nos
poemas e nas telas pintadas por Carmen Soler, unindo a cada poema o olhar
expressivo na reprodução plástica das pinturas, analisando, teorizando e comentando
sua lírica política, filosófica e social.
“A Abelha de fogo”, Maria Luisa Bombal, doce como o mel e devastadora como
o fogo - o capítulo aborda a presença da força da escrita de Maria Luisa como “a”
jovem escritora, audaciosa e contemporânea, antes mesmo de o período evidenciar
sua importância.
Os olhares das duas mulheres, que são vislumbradas nestas linhas,
encontram-se pela primeira vez em meio a teorias, análises e reflexões que nos fazem
vê-las pelo olhar ao final de cada linha digitada; ao findar à direita, voltamos a
encontrá-las na linha debaixo, passo a passo, a nos acompanhar com seus olhares
aguçados, serelepes, espertos e inquisidores, assim, propiciando-nos o quarto
Capítulo, com “Olho no olho”.
“O último olhar não é de adeus” tratou sobre as considerações finais de todo o
processo que tivemos, na tradução, bem como toda a elaboração dos Dossiês de
imagens, filme, gif’s e logomarca.
O estudo envolveu o tema imagens para frisar o assunto condensado nesta
dissertação, que é O Olhar, conseguindo discernir o objetivo que gostaríamos de
aproximar, além da escrita dissertativa. Assim, nossa elaboração teve todo o cuidado
de aproveitar ao máximo as ferramentas disponíveis; por isso, logo na capa, o leitor
encontra o QRCode de Carmen e de Maria Luisa. A mesma ferramenta também
153

tivemos que usar no final das Gif’s, para registrar os créditos e/ou direitos autorais das
imagens. Para não quebrar o gênero suporte Gifs, tivemos que optar por inserir o
índice de imagens como o QRCode, respeitando a lei do direito autoral, bem como as
características das Gif”s.
Esse encontro com os objetos analisados vislumbrou durante meses as
possibilidades que avistávamos lá adiante e também as que teríamos que deixar no
caminho, porém, sem esquecermos de deixar que vimos, olhamos, revimos,
compreendemos e registramos. Por isso, a evolução e a necessidade de utilizarmos
e exaurirmos outros suportes, levando até ao destino esse olhar nosso para o advir,
ficando como parte externa (mesmo assim, registrado nos Anexos): “Dossiê Carmen
Soler – Confidencial99”; “vídeo Confidencial Carmen Soler, com musicalização de José
Flores Assuncion (Guarãnia Penas Encimadas); Dossiê Bomba(L); vídeo Gif’s
Bomba(L), como forma de tornar verídico, por meio da leitura, o encontro como na
citação: “O real só é uma das mais transitórias e menos reconhecíveis faces da
realidade infinita, pois o real iguala-se à matéria e apodrece com ela” (ARTAUD, 1985,
p. 11).
As teorias e conceitos presentes em O Olhar de Adauto Novaes foram nosso
passaporte, sendo que, juntamente a outros pressupostos teóricos, avançamos rumo
a particularidades de cada rima, cada ação, conflito da anônima, cada lapso pela vida
ou pela morte de Ana Maria, eu lírico e protagonistas, narradora sem nome, narradora
com nome, porém, morta, às vezes, nos deixava pistas do trajeto, apresentando-nos
a mão e instigando a visão de pôr onde deveríamos seguir. Era tamanho o quebra-
cabeça que necessitávamos de teóricos de variadas áreas do conhecimento até
percebermos que o olhar que está nessas linhas também é o olhar de tantos que
ousaram estudá-lo.

E assim o quebra-cabeça torna-se mapa, estrada, calendário, fase, rima,


desfecho e vida e por que também não morte? Há!!! Como morremos dentro desse
vagão, em alguma estação... Há as janelas da alma do destino e existem até para a
escrita; acredita nisso quem abre essas janelas, areja a alma, ilumina o corpo, bebe

99 Tanto a palavra confidencial como o material utilizado, folha de papel couche fosco,
com resquícios que lembra envelhecido, as cores, o formato, a disposição das imagens e a
elaboração do texto, foram todos feitos para focar a ideia de investigação militar da ditadura;
a capa como papel grafty marrom também, mais o encadernamento como pinos de albúm de
fotografia.
154

do luar, ouve as calândrias e sai a perambular pela cidade como Flâneur de


Baudelaire. O arquétipo do herói moderno nos limites da cidade grande, nessa
ebulição entre olhares e passos da turba que passa na faixa de pedestre, compreende
e capta a essência desse mundo que não tem olhos para quem é visionário. Ao
cansar, debruça-se no espelho das águas de Narciso, ouve o barulho da água que os
cavalos bebem enquanto a anônima sonha que o cavalheiro da carruagem é o seu
amado.

Quero informar ao leitor – ainda que este seja um livro de mistério, é


um mistério sem morte.
Aqui não encontrará cadáver, nem detetive; nem mesmo encontrará
julgamento por homicídio, pela simples razão de que não haverá
homicida. Não haverá assassino nem assassinato, ainda assim
haverá… crime.
É terror.
Aqueles que se sentem atraídos pelo terror; os que se interessam
pela vida misteriosa que as pessoas vivem em sonhos, enquanto
dorme; os que acreditam que os mortos não morrem completamente;
e os que têm medo do nevoeiro e dos seus próprios corações…
talvez gostem de voltar aos primeiros dias deste século e entrar na
estranha casa da névoa, de uma jovem muito parecida com todas as
outras mulheres, para ela mesma constuída na ponta extrema da
América Latina (BOMBAL, 1942, p. 07).

O texto é o Prólogo de Entre a vida e o sonho, traduzido por Carlos Lacerda em


1942, escrito em inglês por Maria Luisa Bombal. Tal fragmento desenha o sentimento
para este estudo de explicitar tamanha sensação ao ler A Amortalhada, analisá-la e
perceber o seu olhar, mesmo sem vida.
Sobre o que e como considerar esse(s) olhar(es) na elaboração desse primeiro
olhar e consistente amor entre O Olhar e a Literatura, recorreremos à natureza tão
citada no corpus desta pesquisa. Para Nidia Heringer:

Luz e olhar processam formas de pensar na Antiguidade Clássica, são


analisados pela filosofia, são perspectivas na Renascença,
potencializam-se quando em conjunção com microscópios e outros
instrumentos e métodos científicos, determinam a identidade do
mundo e até do eu (Narciso preso à própria imagem está bastante
“revisitado”, por exemplo).
A atualidade enfrenta a desterritorialização crescente, tanto do léxico
como da significação e, múltipla em vozes, tem estreitado os laços
entre ver e conhecer. “Olho” e “olhar”. Olho é o órgão receptor externo;
olhar é uma atividade do ser em busca de significações. Ainda, importa
salientar que nem sempre olhar e conhecer são absolutamente
coincidentes em virtude dos demais sentidos humanos capazes de
fundamentar percepções. O “olhar” não existe isolado, depende da
155

corporeidade como conjunto e sofre interferência externa


(HERINGER, 2007, p. 12).

Diante da luz, da perspectiva e identidade em relação ao mundo do eu e toda


sua subjetividade diante do olhar e da arte escrita, Carmen e Maria Luisa são a base
para este estudo, bem como o entrecruzar de olhares para múltiplos focos que
formamos no tempo e processo de elaboração. Esses elementos fazem parte dessa
viagem. Sob a luz do olhar, partimos, a princípio, com o mapa de dois fantásticos
mundos: o de Carmen e o de Maria Luisa.
A indagação pela referência paraguaia e chilena efetivou-se já pela visão do
objeto livro em sua capa, o monóculo com retrato desse olhar aberto, seja em uma
noite com nevoeiro, seja na mesma noite no calabouço. O que brilha, desperta, intui,
seduz, arrepia, envolve e leva ao pleno gozo da leitura é o olhar para si próprio, seja
da escritora Carmen ou Maria Luisa, exíguas em aportarem a arte à deriva como arte
nobre, rara e plena, seja na lírica ou na prosa, no gélido terror da ditadura militar
paraguaia ou a úmida necessidade de sentir prazer, paixão e ser sexualmente
realizada. Não bastam apenas os caprichos que levaram à produção da obra, mas
também o referencial teórico que envolve o olhar e a arte literária, a intelectualidade
das jovens mulheres que produzem o que nos fez chorar, emocionar e decidir por esta
dissertação densa e instigante. O prazer de olharmos a arte da escrita como quem
flana entre cada página pelas esquinas literárias de uma cidade lírica, em uma região
narrativa ou como personagem Flaune de Baudelaire, à procura de outros olhares
entre o nevoeiro.
Ressaltamos, no entanto, que nunca vimos esses olhares e sempre amamos o
nevoeiro; a casa de Ana Maria, o açude da fazenda, as árvores da cotovia ferida e as
cidades em que Carmen se refugiava já existiam nos nossos sonhos. Os olhares que
cruzamos nesta cidade de papel, diversas vezes, nos deixaram intrigados; outras
vezes, nos passaram segurança; outras vezes, não. No entanto, alguns nos olharam
com fé ao desvendar a expressão do olhar em que compomos essa viagem, como
quem entra em um trem inteiramente sem destino, apenas com a vontade imensa de
leitora de captar cada rabo de olho, todo olhar parado. Enquanto passamos nesse
trem da imaginação, montamos pedaços colados de um mapa dossiê em forma de
análise, anotamos pontos essenciais e pitorescos, mesclando encontrar o olhar de
Carmen e Maria Luisa, sem a necessidade de descrever em forma de documento, e
156

sim, admirá-las como quem contempla e respira com o coração batendo forte em um
primeiro encontro.
O casal amoroso que trilha essa viagem da janela do trem está com a bolsa
cheia de planos para partir em forma de capítulos, subcapítulos, imagens e múltiplas
imagens. Tais olhares sensibilizam, sem saber a razão; a intuição entra em cena e a
coragem toma posse a desvendar cada texto primeiro, juntando com o segundo,
terceiro e assim por diante. Logo, temos um texto, capítulo, obra, biblioteca de olhares
e assim a pessoa já faz parte do nosso olhar.
As formas por nós encontradas para transpassar esses olhares para este
Mestrado aparentemente pareciam fáceis, mas é mais complexo do que compreender
toda a estrutura ótica do olho e os motivos pelos quais ele tanto se aproxima da
literatura, por quê? Para quê?
Os fragmentos inseridos nesta dissertação entre os capítulos são separados
por uma citação e o olhar logomarca d’água não faz necessariamente referência ao
que está no capítulo, mas sim, aos temas trabalhados em todo processo desenvolvido
até estas últimas análises das considerações finais.
O olhar e a literatura se uniram de tal forma que apenas dissertar parecia pouco,
havendo a necessidade, a primeiro momento, de apresentarmos dignamente Carmen
Soler - seu olhar precisava de rosto, expressões, corpo, formas, curvas e
principalmente voz... e ganhou… em forma de música, o poema “Penas encimadas”,
cantada; a poetisa foi apresentada em vídeo, graciosamente, se escondendo por trás
do olhar código de um QR Code, em que o leitor, para chegar até a bela e jovem
paraguaia, tem que cruzar a ponte da tecnologia e abrir com outro olhar a arte da
fotografia e do vídeoclipe intitulado “Dossiê Carmen Soler – Confidencial”.
Tal documento foi elaborado exclusivamente para apresentarmos as fotografias
da autora, diferentemente do vídeo, impresso em papel, que imita documentos de
investigação da ditadura. No entanto, o olhar é de libertação e de uma meiguice
próxima à feminilidade rara que não encontramos na corajosa e forte mulher que nos
deixou os poemas.
Posteriormente, produzimos o Dossiê Bomba(L) para mantermos o padrão a
ambas. Tal produção é de certa forma escrita visual do olhar e o trajeto que leva ao
casal O Olhar e a Literatura, que viajam ao nosso lado por essa cidade de papel, onde
habitam olhos raros. A coletânea e o estilo de formatação de cada uma são
personalizados com sua arte, história, amigos e famliares. O primeiro a nascer e
157

ganhar vida pelos primeiros leitores foi o “Dossiê Carmen Soler – Confidencial” e o
“Videoclipe de Carmen Soler”; depois, o “Dossiê de Maria Luisa” e, por último, “Gif”s
de Bomba(L) Biográfica”, revelando a escritora em diversos retratos, charges,
caricaturas e remakes recentes, incluindo, ainda, pinturas, tendo como legenda, em
cada Gif, texto misto com a arte da escritora e sua tão bombástica vida.
Neste estudo, entre os capítulos, há fragmentos de citações sobre o tema olhar,
literatura e imagens, não fazendo necessariamente referência ao assunto tratado nos
textos, e sim, associado ao projeto dissertativo. Elas são anotações visuais sobre essa
viagem que fizemos, com sua arquitetura férrea, temperatura amena, noites com
névoa e habitantes que fazem a brasa sofrer, o amor cegar, a morta olhar, os cabelos
dizer, a cotovia libertar e todos adormecerem ao fechar deste trabalho.
Todavia, essas considerações são importantes para esclarecermos que nem
tudo que olhamos, vimos e sentimos foi sanado nestas poucas páginas. Há,
certamente, outros olhares, portanto, não é nosso olhar final. Há a casa, os suicídios,
as imagens das mulheres nas obras; há ainda o olhar que ninguém ofereceu para
Maria Luisa, a sua cegueira por amor, o seu amor cego, o cego que a amou…
O dissertar é de valor e relevância, a exemplo da proposta O olhar e a
Literatura, bem como tantos outros a perseguir também o olhar do leitor, diante das
ações, memória, símbolo, mitos, religião e traumas do tema foco, como em Maria
Luisa, a morte. Ainda, entre o leitor e a arte literária de Bombal, entre a vida e o que
virá depois, entre outros.
O olhar de que fala esta pesquisa decorre da duplicidade entre o que vemos e
de como vemos, do ambíguo dentro de cada um e que poderia ser considerado como
uma clássica distinção – pois também podemos escolher como nos veem ou o que
queremos mostrar – o visível e o invisível. Temas subjetivos e objetivos presentes em
várias religiões e filosofias, entre os olhos e a expressão facial, entre o corpo e o
espírito, temas com base na filosofia e religião – dilema de outrora.
O leitor que intenta escrever é como folhas em branco, o ‘útero da escrita’ antes
do nascer; o olhar lê, as mãos tremem formigamentos e assentam nas letras o gozo
prazeroso da ideia. Depois, vem a dor do parto em fases de introdução,
desenvolvimento, considerações, referências. Cada filho é a palavra que se traça pelo
acompanhamento do olhar e das mãos, deixando os olhos nus, entregues e
extasiados. Pronto, após se encontrar com a leitura, está lá novamente se devorando,
gritando na criação que não satisfaz e lhe engravida.
158

O destino das palavras, dos capítulos dos livros? Impossível descrever seu
primeiro olhar, as digitais das mãos que as gestaram? Fizeram-nas nascer para o
mundo de outros olhos. Estão fechadas em estantes que pousam os livros, aguardam
com cada volta de suas letras estraçalhadas, em meio a pontos e vírgulas solitárias,
exauridas, desanimadas, fraturadas, caídas no chão da folha em branco; deitam seus
traços, cortes, pingos, suas voltas pálidas não se satisfazem em apenas esperar e
viver.
Não chega a morte para arder a celulose que as seguram. Antes, porém, que
venha a luz do olhar/leitor para enxergá-las. Se isso não acontecer, se este antídoto
não for usado, o tempo humano entorpecerá a calma do inspira/expira, inspira/expira
da tinta vazada no ventre folha da escrita gestada para nascer como literatura.
O olhar está condenado a não transpassar por meio das mãos, da escrita, da
formulação da arte do escrever, riscando a pele da folha para as palavras… essas
serão inexistentes e fracassadas? O silêncio gesta a ideia, inspirada pelo olhar e seus
amigos, ouvido, arrepio safado chamado tato, o guloso paladar e o curioso olfato.
Estamos condenados a escrever riscando a pele das palavras em cruéis e
incontroláveis fracassos? Se não as lerem. Mesmo assim, a palavra, se escrita, é a
certeza de que ela vive.
Entretanto, a literatura não diz nada se não tiver quem a leia. A arte da escrita
cumpre seu papel como produção de objeto de arte. Porém, seu papel social humano
só será pleno e realizado se tiver quem leia. Ainda que se editem e publiquem,
edifiquem infindáveis bibliotecas aos milhares de folhas úteros, palavras em papéis
cujos olhos ressequidos se dedicaram à sua produção, na qual seus autores já em
vozes in memoriam se tornaram cinzas; ainda que o olhar escreva na praia, na pedra
ou em enciclopédias, blogs e sites, nos quais as mãos adquirem lesões e amanheçam
diante de teclados e se afundem até os confins da literatura. Não se fala em letras
escritas; a palavra olha!
O silêncio não pode ser escrito, o olhar não pode ser escrito, o fim de um som
que não existe mais como de um pássaro extinto no silêncio; seu som ainda preso na
lembrança de quem o ouviu cantar ao amanhecer não pode ser escrito, a brisa leve,
arrastando a luz que toca a areia beijada pelas ondas do mar não está no traçado do
lápis que produz as letras.
O olhar é tempo, é vida, está mecanicamente ativo ao acordarmos; no entanto,
mesmo amando a literatura, os filhos gerados pela casa, na anêmica pele do papel,
159

não se publica escrita alguma sobre o encanto da noite nos pelos dos gatos; não se
anota na grafia o oscilar atiçado no lume dos olhos. Entretanto, extraordinariamente,
a caligrafia, presa pelas margens da folha decida, como quem desce uma ladeira
correndo, após ver o pôr do sol, preencher a página em branco a pedir palavras. O
olhar vai, dá uma volta, alonga-se, se enrola, acaricia, acelera, retrocede, ainda uma
vez vai, busca, encontra, procura, com todos os ângulos, escava, com as mãos, tenta,
intenta, insiste, persiste, se engana pela promessa de achar, se achar e prossegue.
Não se contenta, com o tudo a perder, arrisca o que vê em palavras jogadas para se
perder ou se ler. Porém, o ato de ler não se escreve, pois é inexaurível ato que se
esvai no íntimo de quem lê.
Fazer o papel de poeta mediadora em um contexto que mistura política,
comunidade da escola em que trabalha e situação econômica e social da população
paraguaia de 1930, escrever e publicar na linguagem poética – Carmen Soler –
carrega a pesada atividade em sua produção escrita, misturada a tudo isso, a
opacidade e o enfoque em sua poesia lírica de combate e revolucionária, que está
amplamente enfocada na problemática do sujeito em suas experiências. O amplo
painel de imagens, em que visualizamos a mulher na poesia, bem como a poesia na
mulher, confunde-nos onde está uma e onde está a outra.
A dificuldade observada é a de que a literatura, como arte fictícia, enfrenta o
impasse entre romper com a tradição e a impossibilidade de separá-las, por mais que
a crítica da época exija que a poeta que há em Carmen seja Clássica – como se a
poesia que a artista e poetisa vive é popular, é povo, cheirando a suor, exigindo pão,
comida e educação. Nenhuma deixa a outra e o objeto de arte é produzido e cumpre
seu papel, o de ser lido, ouvido, cantado, publicado e agora, com este trabalho,
traduzido para a língua portuguesa.
Tais exigências e perseguições vimos que apontam para uma crise na lírica e
para uma literatura de combate, o que esgotou e nos mostra a preocupação constante
da escritora, jamais vencida, revelando em sua palavra a cultura, a realidade, os fatos,
mesmo nos casos em que esteve presa. Sem material próprio, a memória foi seu papel
e seu lápis, elaborando o entrelaçamento de vozes, olhares, fatos e direções da
história tensa, compondo uma cadeia complexa na produção de seus versos,
mantendo em cada eu lírico a latência do que irá produzir ao ter o básico para deitar
a obra com toda a sua autenticidade.
160

As formulações que ressoam no texto literário absorvem e transformam o eu


lírico em figuras típicas como novos sentidos de demonstrar a consciência decidida
diante do cenário de guerra e opressão. Essas figuras certamente a fizeram manter
os textos em forma de lembrança, os temas, procedimentos, metáforas e alegorias
facilitaram sua produção lírica.
Ao recuperá-los, escreve, levando-a a escrever em qualquer lugar, desde que
tenha um toco de cal, um resto de tinta, escrevendo na parede ou enquanto cozinha
o almoço. Essa humildade em declarar a falta que o papel e o lápis fazem a um
escritor, a forma que dispõe os temas em sua poesia, bem como a posição socialista
em sua lírica, incomodou os disciplinadores da literatura paraguaia. A estes, Foucault
denomina “fundadores de discursividade”. O que tais escritores têm em comum,
segundo Foucault, é o fato de não serem apenas autores de suas obras, mas de
produzirem uma teoria, de serem autores de uma tradição ou de uma disciplina, no
interior do qual outros livros, textos e autores se encontram.
A diferença entre a jovem escritora e esses “fundadores de discursividade” de
outros autores é terem produzido a “possibilidade e a regra de formação de outros
textos” (FOUCAULT, 1992, p. 58). Freud, Marx e Nietzsche são exemplos de
“instauradores de discursividade”. Pela criação de doutrinas e por iniciarem uma
tradição, “abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto,
pertence ao que eles fundaram” (Ibid., p. 60).

Uma concepção vinculada às apropriações de textos advindas de


discursos e culturas diversas podem ser articuladas à concepção de
Barthes, para quem um texto é um espaço de dimensões múltiplas,
onde se entrecruzam “escrituras variadas, das quais nenhuma é
original”. O texto é um “tecido de citações, saídas, dos mil focos da
cultura”. (BARTHES, 1988, p. 69).

Carmen não produziu, em sua lírica, objetos da arte de escrita individual, mas,
a partir de fatos gerados por relações e experiências em um processo coletivo, como
autotestemunho, histórico, cultural e de grande significado social. Seus versos trazem
o olhar das ruas, das fábricas, das organizações campesinas, das fronteiras e da
escola em que trabalhou. Esse olhar, ao ser visto, incomodou e muito, especialmente
quando foi encarcerado. A dura realidade histórica está toda em sua poética, de forma
mais latente e pulsante, traumática. Essa sensação de mundo no calabouço é fato em
suas obras e metáforas, bem como seu belo olhar, no entanto, armado e original com
que vê o outro, os que estão lá fora além do sol quadrado e a si mesmo. Porém, estava
161

presa, mas não é presa; escritora e eticamente comprometida com sua escrita, em
meio à multidão de olhares que murmuram em seus escritos poéticos, entona a voz
da mulher poeta que existe em si.
Com seu corpo violentado, suas fugas pelas fronteiras, seu irmão
desaparecido, sua filha com parentes, sua busca pelo irmão, sua inclusão como mãe
da praça de março, seus poemas roubados e suas telas pintadas rasgadas, tais
particularidades de seu trajeto pessoal servem para o olhar como referências literárias
autobiográficas, à política e à realidade atual imediata.
Se há olhar totalitário, deve ser o de Maria Luisa Bombal, convertido em escrita.
Em seu Posfácio Anseio e sonho na prosa de Maria Luisa Bombal, Laura Janina
Hosiasson, cita:

[...] o grande cineasta norte-americano, declarou certa vez em


entrevista100que tinha sido amigo de María Luisa Bombal durante os
anos em que ela viveu em Los Angeles, trabalhando como tradutora
para os Estúdios Paramoun. Huston demonstra interesse genuíno pela
literatura latino-americana e uma aguda percepção da obra da
escritora chilena, estabelecendo nexos interessantes entre a
atmosfera onírica e fantástica de suas narrativas e universos
aparentemente distantes. (HOSIASSON, 2013).

O que a crítica se esquece de lembrar é que a coragem dessa escritora rompeu


submissão, opressão, silêncio, publicações anônimas ou, com codinomes masculinos,
apenas para ser lida, fez o papel da mulher que se dedicava à arte da literatura.
Todavia, o eu bombaleano foi primitivo, enfrentou a vergonhosa guerra que
socialmente para a mulher parece sempre perdida, mas, mesmo assim, subtraída de
sua real utopia, vontades, sonhos ou intenções. Maria Luisa conseguiu, em 1934, com
apenas 24 anos, quebrar a quarta parede da leitura ao seduzir sensualmente seus
leitores apenas com a escrita; porém, o ser mulher e seu olhar desgovernado, seu
único instrumento livre de aprisionamento, pode levá-la noite adentro, mesmo em
meio ao nevoeiro, para encontrar, junto à natureza, os prazeres na ótica totalitária da
vida pessoal amorosa, surgindo a decepção e o sofrimento ao ser traída e trocada.
Como em um mito grego, surge a diagnose do seu imenso poder ao utilizar a
caneta e o lápis; o Vilão ao diagnosticar tal poder a inexistir apenas com a imortalidade
da alma, inflamou de inveja o ego, tirando de Maria Luisa o ‘eu e sua primazia’,
deixando-a estéril como escritora. Tamanho o seu sofrimento que os destroços de

100 Entrevista de Waldemar Verdugo, publicada em 1981 pela revista VOGUE-México.


162

suas heroínas recém-criadas ruíam em um amassar, rasgar e jogar no lixo, perdendo


a batalha entre o papel e as lágrimas que brotavam dos olhos, ao admitir que não
produzia mais. Tal guerra foi sua maior humilhação, levando a crise entre a inspiração
e o que lhe imploravam as editoras: um novo romance. No entanto, a luz entre o olhar,
a inspiração, o papel e o objeto de arte tão desejado pela autora Maria Luisa foi
apagada pela mulher Bombal.
Maria Luisa Bombal está nesta pesquisa. Lucia Guerra Cunningham percebe
algumas ressonâncias do universo de Pedro Páramo, em que os mortos e os vivos se
confundem, poderiam ser vistas como ecos do romance de Bombal101. Mas, nas
observações de Huston, há também a aguda percepção de um determinado tipo de
sensibilidade feminina, que ele encarna na história de Marilyn Monroe, transpondo de
forma inusitada as fronteiras entre a ficção literária e os mitos do celuloide.

A protagonista de A última névoa e Ana María de A amortalhada,


assim como Marilyn, são etéreas, solitárias figuras condenadas a
uma dolorida falta de comunicação, e suas existências se
desenvolvem numa atmosfera de entressonho, irrealidade e
alienação que contrasta com o entorno material e muito concreto
que as circunda. Suas interioridades expostas num discurso
poético e sedutor (no caso de Marilyn, as imagens da platinum
blonde escultural e de olhos tristes) contradizem tudo o que o olhar
de fora poderia concluir. Porque a ociosidade e a opulência
material da vida burguesa não lhes parecem bastar. Nesse sentido,
por trás dos conflitos aparentemente circunscritos à subjetividade
romântica e alienada, estamos diante de problemas que têm direta
relação com a situação feminina nas Américas até a primeira
metade do século XX (CUNNIGHAM apud HOSIASSON, 2013).

As mulheres que decidem por esse intento são além do chão que pisaram
e do ar que respiraram. A trajetória e as viagens de exílios, autoexílio em suas
subjetividades - revolucionária ou alienada para alguns – são a viagem da mulher
histórica.
Este mestrado entrega-nos o retorno para casa e tudo que essa
pesquisa/viagem pode nos proporcionar em reelaborações com forma sistemática,
organizada, criada com mecanismos que envolvem as mídias, aplicativos atuais,
música, fotografia recebendo traço sistemático, organizado, complexo, criativo e
emocionante. Esta produção nos revelou quão extensos, belos e complexos são

101 Cunningham, Lucía Guerra, “Introducción” in Bombal, María Luisa, Obras Completas.
Santiago: Andrés Bello, 1996.
163

os temas. E mostramos orgulhosamente os álbuns de fotografias em dossiês e


vídeos.
O silêncio não pode ser escrito, o olhar não pode ser escrito, o fim de um
som que não existe mais como de um pássaro extinto no silêncio, seu som ainda
preso na lembrança de quem o ouviu cantar ao amanhecer não pode ser escrito;
a brisa leve arrastando a luz que toca a areia beijada pelas ondas do mar não está
no traçado do lápis que produz as letras. No entanto, está na memória de quem lê
e mistura o olhar e a literatura em amor fiel.
164

Eu vivo nas tuas igrejas


e sobrados
e telhados
e paredes.
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avenças
onde se debruça
um antigo jasmineiro,
cheiroso
na ruinha pobre e suja.

Eu sou estas casas


encostadas
cochichando umas com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores,
sem nome e sem valia,
sem flores e sem frutos,
de que gostam
a gente cansada e os pássaros vadios.

Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.

(Cora Coralina)
165

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171

MEMORIAL CHILENO BIBLIOTECA NACIONAL DO CHILE – BND Bibliotena


Nacional Digital -
172

Assim, desde aquele ato primordial [o "faça-se a luz"], todo ser tem sido um
ser em exílio, com necessidade de ser conduzido de volta e redimido. A
quebradura dos vasos prossegue em todos os estádios subsequentes de
emanação e Criação; tudo está de alguma forma quebrado, tudo tem algum
defeito, tudo está inacabado.

(Walter Benjamin)
173

9 APÊNDICE

Escreve-se sempre com o desejo, e não se acaba nunca de desejar (Barthes)

Primeira logomarca Inspirado pelo @guiadocurioso Instagram

Resultado da primeira logomarca, abortada por ser apenas: um olho


174

DOSSIÊS
175

Marcador de página – Lembrança para Banca de Defesa

MESTRADO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS


BANCA – , 29/11/2018 BANCA – , 29/11/2018
ORIENTAÇÃO – PROF DR ACIR DIAS DA SILVA PROFª DRª ADRIANA A DE FIGUEIREDO FIUZA

MESTRADO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS


BANCA – , 29/11/2018 PROFª DRª MARIA APARECIDA RODRIGUES
BANCA – , 29/11/2018
176

ÍNDICE: CRÉDITOS E DIREITOS AUTORAIS

Gif’s BOMBA(L) Biografia

1. Maria Luisa Bombal. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

2. Maria Luisa Bombal. chilena – biblioteca Nacional de Chile.

3. Maria Luisa Bombal. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

4. Maria Luisa Bombal. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile

.Caricatura de Maria Luisa Bombal. Maria Luisa Bombal.

6. Maria Luisa Bombal. Memória chilena, Biblioteca Nacional de Chile

7. Montagem Facebook Maria Luisa Bombal.

8. Pintura baseada em A Amortalhada, autoria de:

9 e 15. Reportagem: Loreto Soler. de Chile, 13 enero 2013.

10, 14, 21, 27, 31 e 33. Google imagens

11. Arte da obra Memória chilena, Biblioteca Nacional de Chile

12. Imagem capa da tese:

13. Capa - Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

16. Charge de Bombal: Matar e morrer por amor. Fonte:

17. Eulogio Sanches. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

18. Eulógio e Bombal - Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

19. Luis Carlos jovem. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

20. Pablo Neruda jovem. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

22. Maria Luisa Bombal. Figura 23: PinturaSenhora Mallarmé.

23 Charge montagem Grupo Sur, Artigo . Memória chilena – Biblioteca Nacional de


Chile.

24. Maria Luisa Bombal jovem. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.
177

25. Pintura retrato autoria de Isabel Velasco

28. Montagem Bombal em Fonte:Facebook Maria Luisa bombal.

29. Maria Luisa Bombal, Memória chilena, Biblioteca Nacional de Chile.

30. Estilo : Facebook Maria Luisa Bombal.

31. Maria Luisa Bombal, Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.

32 Facebook Maria Luisa Bombal.

33 Montagem Bombal, Propiedad intelectual Patrimonio cultural común.

34. Charge de .Facebook de Maria Luisa Bombal.

Capa e Contra capa para Cd com gravação Dissertação


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193

MARI A LUI SA

BOMBA (L)
194

0 $5,$/8 ,6$%2 0 %$/


  $XWRUDFKLOHQDQDVFLGDHP pXP DGDV
SRXFDVDXWRUDVODWLQRDP HULFDQDDFRQVHJXLU
SUHVWLJLRIRUDGRFtUFXORGDVXDOtQJXDQDWLYD
  * UDQGHDP LJDGH-RUJH/XV%RUJHVH3DEOR
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Capa Maria Luísa, Agata Gligo, 2{ Edição, 1986, Biblioteca pessoal de Wilma N Rangel.
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Ercilla. Santiago: Propiedad intelectual: acompaña
artículo de Isabel Velasco: "Algo sobre Maria Luisa Bombal"
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Filme La Casa de Recuerdo, escrita por Maria Luisa Bombal, com a atriz protagonista Libertad
Lamarque, atriz e cantora que recebeu o título de Reina (rainha) Del Tango, é considerada a principal
atriz do cinema argentino dos anos de 1930 a 1940. Fonte: Memorial chileno.


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LA CASA del recuerdo. Direção: Luis Saslavsky. Roteiro: Carlos Adén e Luis Saslavsky, segundo
argumento de María Luisa Bombal e ideia original de Carlos Adén. Argentina: Argentina Sono Film,
1940. (98 min)

Maria Luisa Bombal – Doce como mel e devastadora como o fogo

imagens Gif’s Biografia


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QR Code Índice de Direitos Autorais e Créditos de imagens utilizadas em Gif’s Bombal

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