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COMUNICAÇÃO E ARTES
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS – NÍVEL
DE MESTRADO E DOUTORADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE
CASCAVEL – PR
2018
WILMA NUNES RANGEL
CASCAVEL – PR
2018
Ficha de identificação da obra elaborada através do Formulário de Geração
Automática do Sistema de Bibliotecas da Unioeste.
BANCA EXAMINADORA
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This dissertation proposes the analysis of the theme "the look and the literature" in the
lyric and in the Latin American novel. We aim to present the writer Carmen Soler (1924-
1985), unknown in Brazil. Her lyrical female writing is the starting point of poetry in the
Paraguayan literary context, as a poet and revolutionary in the dictatorship years. We
present theoretical reflections and referrals that elucidate the approach of Comparative
Literature, through a descriptive methodology. For this research, we have as corpus
the work Poemas (1970), because it is the the only publication made by Soler while
living, tracing a parallel with the Chilean Maria Luisa Bombal (1910-1980) in the novels
A Última Névoa (1935) and A Amortalhada (1938). - considering what differs them and
what approximates them, because even without having ever seen each other, however,
they are moved by the love for writing. This study also aims to theorize the look and
the literature, intercross the vision of the authors, the look that narrates in the works,
offer this eye in the eyes of young women writers, allow the reader to see them, for
every encounter is fascinating. The work has the context of the patriarchal society from
1930 to 1980, twentieth century. From a bibliographical point of view, the theoretical
scope is anchored, especially, with Merleau-Ponty (2013), in his work O olhar e o
espírito (Eye and mind); with Novaes, in his work O Olhar (1993); with Benjamin, in O
narrador (The storyteller) (1994), in the poetry of Baudelaire, among others;
Paraguayan Literature, by Miguel Àngel Fernandez (2011); and about Bombal,
Kahmann (2010) Marcari (2013), Hosiasson (2013) and Figueiredo (2015). The
memory, in Le Goff (1990), in addition to bibliographic support and images of Carmen
Soler provided by the writer's family.
Keywords: The look and the Literature; Carmen Soler; Maria Luisa Bombal; The image
of the woman in female writing; Latin American literature.
RESUMEM
1 INTRODUÇÃO - O PRIMEIRO OLHAR A GENTE NÃO ESQUECE .................... 15
2 O AMOR ENTRE O OLHAR E A LITERATURA ................................................... 25
3 OLHO NO OLHO – AS TEORIAS DE CARMEN E MARIA ................................... 37
4 O OLHAR-DE-LINCE NO BRASIL ......................................................................... 51
4.1 O OLHAR E SER OLHADO DE CARMEM ................................................................. 71
5 A ABELHA DE FOGO DOCE COMO O MEL E DEVASTADORA COMO O FOGO
................................................................................................................................ 102
5.1 A ÚLTIMA NÉVOA .................................................................................................... 105
5.2 A AMOR-TALHADA .................................................................................................. 116
6 EM UM PISCAR DE OLHOS – CARMEN E MARIA ............................................ 137
6.1 VINTE E POUCOS ANOS ........................................................................................ 138
6.2 A BRECHA DA CÂMARA, OS OLHOS, O RETRATO E O DOSSIÊ ........................ 140
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS - O ÚLTIMO OLHAR NÃO É O DE ADEUS ........... 150
8 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 165
9 APÊNDICE ........................................................................................................... 173
Se te pareço noturna
e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim,
como se tu me
olhasses
E era como se a
água Desejasse...
Hilda Hils
15
1
(paráfrase da metáfora “o primeiro amor a gente não esquece).
2
Importante esclarecer que conseguimos apoio da família da escritora na pessoa de Maria
Eugenia Apontes Soler, conhecida por Matena.
3 O nome do romance, a princípio, chama nossa atenção, pois sugere fim, morte até
mesmo em A Última Ceia. Construído tal título, com o mesmo número de sílabas e sons,
gramática e linguística à parte, o tema morte vem à tona, querendo ou não. Névoa é
temperatura, clima, obscuridade, mesmo se há sol. Tais imagens já trazem ao leitor cenas
que atraem e ao mesmo tempo afastam.
16
apaixona pelo primeiro livro que lê. A capa é, para a maioria dos leitores, o primeiro
olhar, aquele que nos levará a conhecer o que há em sua essência e alma.
Com a obra lírica de Carmem e a leitura narrativa de Maria Luisa, é como se a
cada capítulo encontrássemos inúmeros olhares, o nosso olhar para o autor, o
narrador e todos os olhares dos personagens, o olhar do objeto de arte, da obra, enfim,
temos uma multiplicidade de olhares. O nosso olhar (leitor – diante do enredo
alinhado) do espaço e a aproximação física se completam de tal forma que há
momentos em que as páginas são confundidas com o rosto de quem o escreveu; tal
comparação, assim, aparenta exagero, porém, os leitores das obras de Bombal
compreenderão… Há certas obras em que a relação chega a ser afetuosa, quando,
antes de dormir e fechar o livro, há o impulso em dar o cálido beijo de boa noite, no
meio da página ou ao fechá-lo.
Buscamos, neste sentido, a Literatura como Arte, pressuposta em teorias do
conhecimento humano e elegemos, como corpus, a coletânea Poemas, da escritora
Carmen Soler (1924-1985). A obra foi sua única publicação em vida, nos anos da
ditadura paraguaia4.
Para desenvolver a proposta deste estudo, distribuímos os Capítulos da
seguinte forma: A Introdução, O primeiro olhar a gente não esquece, com notas
introdutórias, em que se trata da apresentação e introdução do tema e do referencial
teórico e metodológico.
No Capítulo I, O caso de amor entre o olhar e a literatura - abordamos as
dimensões do olhar e da literatura, os conceitos sobre o olhar e a literatura desde a
Antiguidade, ligada tanto ao instinto, à razão e ao conhecimento, refletindo
inicialmente com as autoras e as obras.
Realizamos a aproximação ou distanciamento entre Carmen e Maria Luisa,
convergindo ou divergindo a análise do estudo; produzimos o Capítulo II, Olho no olho
– As teorias de Carmen e Maria que mesclam os temas.
4 Ditadura Militar Paraguaia (1954 – 1989). Entre 1936 e 1954, o Paraguai enfrentou
golpes com a atuação das Forças Armadas e dos partidos políticos (Liberal, Colorado e
Febrerista). Em 1948, com o domínio colorado, os partidos opositores foram perseguidos; os
militantes, em sua maioria, foram exilados. O Colorado dominou (1948 a 1954), garantiu a
filiação partidária das Forças Armadas e da Polícia. Cenário político de golpes, violentas
perseguições e fortalecimento do Partido Colorado e das Forças Armadas, o terror político,
até a ascensão do general Alberto Stroessner. Em 11 de julho do mesmo ano, em eleições
sem concorrência, Stroessner articulou para ser candidato único do Partido Colorado e
ganhou as eleições à presidência com o apoio da oligarquia agropecuária e dos Estados
Unidos, que transformou o Paraguai em um laboratório da Doutrina de Segurança Nacional.
17
A obra de Carmen Soler, bem como as telas pintadas pela artista, consta da
abordagem do Capítulo III, O olhar-de-lince da Cotovia no Brasil - a metáfora usada
por Carmen no poema “A Cotovia Ferida” influenciou o título deste capítulo,
permitindo aos brasileiros pousar o olhar na arte soleriana.
O IV Capítulo, A abelha-de-fogo, doce como o mel e devastadora como o fogo
- apelido dado à Maria Luisa Bombal por Pablo Neruda, que nos serviu de inspiração
para os objetos de artes deixados pela escritora - traz sua narrativa poética, além dos
romances aqui abordados.
O encontro entre as duas mulheres que inspiraram esta pesquisa acontece no
V Capítulo, denominado: Em um piscar de olhos – Carmem e Maria - em que
permitiremos esse encontro entre o que as aproxima e as distancia nos objetos
estudados e nas afinidades como mulheres, artistas, intelectuais e escritoras. Vale
ressaltar que elas nunca se viram, seus olhares nunca se encontraram, no entanto,
ambas têm o pulsar do sangue nas veias, os olhos expressivos e vívidos que pausam
o tempo, a vida para a mão pousar no caderno, firmar a escrita e com os olhos produzir
a arte literária.
As Considerações finais, O último olhar não é o de adeus – trará os
vislumbramentos nas obras, os encontros e desencontros que buscamos serão
descritos como contribuições finais da dissertação; todavia, esse último olhar não é
de adeus, mas sim, de pausa para outras análises e de outros olhares.
A junção dos temas olhar e literatura pode considerar a hipótese de que a arte
imita a vida, no entanto, entre o fictício e o real há o olhar. Neste caso, utilizaremos as
reflexões e leituras dos teóricos da obra O Olhar de Adauto Novaes (1993). A forma
como o olhar se dá e a análise sensível que a ciência e a hermenêutica sugerem no
mundo tecnológico atual tem como base a adesão e a opção: a constante vigilância
por meio da interpretação sensível para depreender daí as possíveis significações da
arte literária.
Para as relações entre o olhar e a literatura, de cunho bibliográfico, metodologia
comparativa e com abordagem da Literatura Comparada, as reflexões teóricas
presentes neste estudo acompanham o contexto em que as obras se inserem, que é
o da sociedade patriarcal de 1930 a 1980, século XX. O escopo teórico se ancora,
especialmente, em Adauto Novaes, em sua obra O Olhar (1993), por nos oferecer
inúmeros olhares para este estudo; também, em Walter Benjamin, em O Narrador
(1994), em Merleau-Ponty, em O olhar e o espírito (2013) e O visível e o invisível
18
(1971), bem como no pensador Michel Maffesoli, em O tempo das tribos (1987) sobre
o contexto social. Sobre a Literatura paraguaia com enfoque em Carmen Soler:
Miguel Àngel Fernández, La poesia de Carmen Soler (2011), a experiência,
testemunho e narrador por Beatriz Sarlo em Cenas da vida pós-moderna (2000). A
Biografia Maria Luisa de Ágata Gligo (1984), no Posfácio de Laura Janina Hosiasson
(2013) apresenta uma linguagem contemporânea sobre Bombal, bem como a
tradução dupla dos romances A última névoa e A Amortalhada (2013), além de A voz
do corpo e a instâncias do narrar, em A Amortalhada de Maria Luisa Bombal, da
pesquisadora Juliana Fragas Figueiredo (2015) e El discurso narrativo, em la obra de
Maria Luisa de Magali Fernandez Figueiredo (2003).
Diversos autores, diferentes olhares e teorias que não só representam o olhar
antes da escrita, como vemos em O Olhar, de Adauto Novaes, em que percebemos
outra possibilidade que o sentido da visão ocupa na arte da escrita. Lévi-Strauss narra
o início de um desencontro, origem de um esquecimento:
Para ele, os antigos nos ensinam que mortos são aqueles que
perderam a memória, e não foi por acaso que os gregos escolheram
um dos sentidos para descrever a retomada da lembrança: beber a
água fresca do lago de Mnemosine. (…) ou é em virtude do prestígio
que a visão passou a ter em nossa cultura concentrando em si a
inteligência e as paixões? Por que o olhar ignora e é ignorado na
experiência ambígua de imagens que não cessam de convidá-lo a
ver? (STRAUSS apud NOVAES, 1993, p. 9).
5 Por ter sido influenciada na infância, entre as décadas de 80 e 90, por ouvir música
(Guarânia) junto com meu pai Sebastião Rangel, que se encantou pela cultura do país vizinho,
especialmente pelas letras belíssimas das canções. Ao trabalhar em Itaipu, entre 1976-1983,
fez muitos amigos paraguaios.
6 Disponível em: <>. A revista é produzida e editada pelo filho de pioneiros de Foz com
descendência paraguaia, o jornalista Silvio Campana. Possui página virtual e impressa; no
caso, este conteúdo só se encontra na internet, onde localizamos pela primeira vez o olhar de
Soler. O termo Guata, em guarani, significa Caminho.
20
da CAPES, onde localizamos apenas citações sobre ela como poeta revolucionária.
O Brasil conhece muito pouco sobre a produção literária paraguaia, apesar de
fazermos fronteira com os “hermanos”. Se a Literatura paraguaia é pouco conhecida,
imagine as obras femininas. Tal problemática existe, levando-nos a desconhecer a
arte e a memória do povo paraguaio.
É vital citar a diferença, por meio da proposta aqui pretendida, entre os termos
“olho” e “olhar”. Olho é o órgão receptor externo; olhar é a atividade do ser em busca
de significações. Nem sempre olhar e conhecer são absolutamente iguais, em virtude
dos demais sentidos humanos capazes de mentar a percepção. O “olhar” não se
isola, depende de um conjunto do corpo e sente o que vê como interferência.
O envolvimento visual entre o olhar e as mãos, no contexto de elaboração, é
produtor e motor do que é visto. Desde a fase do bebê, as mãos são aliadas não
apenas da visão, mas de todos os sentidos: o objeto que as mãos soltam, a audição,
a temperatura da saliva, o tato, o levar o alimento até a boca, o paladar, o que
desenha e/ou escreve, a visão. A expressão ver com os olhos e não com as mãos
confere tal dedução. As mãos também socorrem os olhos, secando as lágrimas como
um consolo. Tapando não apenas os olhos, mas também todo o rosto quando
queremos nos esconder não apenas dos outros, às vezes, de nós mesmos, é nosso
primeiro esconderijo. As mãos também são o apoio para olhar o infinito; é usada a
sombra para o vislumbre do olhar. A ausência de liberdade de alguém acusado; lá
estão as mãos detidas, impedindo qualquer gesto para aprisionar o ser humano,
pesando-lhe o frio das algemas nos pulsos.
E o que dizer do criador do gesto do adeus – ao partir de um navio. E do outro
alguém que inventou, quando o barco estivesse bem longe, tirar o lenço do bolso e
acenar tristemente o sentimento do adeus; o inventor do tchau como quem acaricia
o rosto de quem se vai. Lá, estão unidos os sentimentos, os sentidos, as sensações
e o olhar. Impossível o olhar não se unir às mãos, até mesmo quando os olhos se
fecham para sempre ao morrermos - as mãos se cruzam, sendo o único gesto não
concluído pelo dono do olhar. Para imortalizar a existência desse amor, apenas a
Literatura resta aos olhos de quem ficou.
É importante que expliquemos a imensa diferença entre ver (visível e invisível)
e olhar (visível). “Ver é pensar pela mediação da linguagem” (CHAUÍ, 1988, p. 39),
mas se “o pensamento fala com a linguagem do olhar [...] o espírito dirá que os olhos
não sabem ver” (Ibid., p. 40).
21
O conhecimento exprime busca; o sentido que mais atua é o olhar, pois o que
vemos, lemos, nos leva a outros, indo além do ponto inicial. Ao desenvolvermos este
estudo, representamos a tentativa de construir esse olhar “por meio da visão das
escritoras e do escopo teórico, pois “quem olha, olha de algum lugar” (CHAUÍ, 1998,
p. 33).
Ao lermos as poesias de Carmen e a narrativa dos romances de Maria Luisa,
tentamos estudá-las e vê-las, de maneira que, por meio da escrita, fosse possível
reproduzir as imagens, os fatos visíveis, os sentimentos, as intuições, as paixões, a
revolta, a indignação, a tristeza, a dor, o amor, o ódio, a vida e a morte (invisíveis) de
cada uma, levando-nos à inspiração nesta pesquisa. Dessa forma, o leitor dessas
linhas pode vê-las e conhecê-las, bem como suas produções.
Analisamos a jovem que produziu dois romances e é citada como a primeira
escritora a narrar a sensualidade e a relação erótica da mulher com ela mesma, o
encontro amoroso e sexual entre uma mulher e um homem e a explosão sensitiva do
orgasmo, com palavras e imagens, numa rima intensa e quente. Para Chauí, (1998,
p. 38):
Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em
celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor
do que elas?
[…] Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem
fiam;
Em referências sobre o termo olhar na medicina e/ou biologia, o olhar, por Karl
(2004)7, é deste modo colocado:
7
Médico e Editor do Ecce Medicus, blog do Scienceblogs em pesquisas Karl – O é a maior rede
de blogs de Ciências do mundo. Lançado em janeiro de 2006, o ScienceBlogs entrou em 2013 com
mais de 129 blogs em inglês e duas redes irmãs: o , com 25 blogs, e o , com mais de 40 blogs. O
objetivo do ScienceBlogs é criar um espaço no qual seja possível discutir Ciência de forma aberta e
inspiradora. As redes escritas em alemão e português são uma forma de transformar vozes locais em
vozes globais.
27
forma mais clara e direta quando abordarmos as escritoras. Segundo Hawayo Hiromi
Takata8, a relação entre “cortar” e “saber”, que é também verificada no vocábulo
derivado do grego “análise”, pode ter originado o “enxergar”. Incerto, de qualquer
forma, mas plausível e certamente aprovado ao menos por Michel Foucault (1984)9.
Tais ações na obra de arte encontram-se sob a responsabilidade do olhar do eu lírico
e/ou narrador.
E o que é “ver”? A origem é o latim videre como vimos e que, por sua
vez, vem de uma raiz indoeuropeia *weid-, comum, veja só, à palavra
grega ειδος (eidos = aparência, imagem) tão cara à Platão e que
originou as palavras “androide”, “antropoide”, “ginecoide” e tantas
outras com o significado de “assemelhado a” ou “na forma de”.
Interessante também o fato de que, em bom inglês, tal raiz tenha
originado wisdom (sabedoria), wise (sábio), wizard (mago), todas
palavras que de certa forma designam a capacidade que alguém tem
de “ver mais longe”.
8 Hawayo Takata - Hawayo Kawamuru, Takata, mais tarde, nasceu em 24 de dezembro de 1900,
numa família de cortadores de abacaxi, na ilha de Kauai, Havai, em Hanamaulu. As técnicas e métodos
de ensino sofreram alterações e vários ramos do Reiki evoluíram. O que é fato é que todos os métodos
funcionam e todos derivam dos ensinamentos de Hawayo Takata. Após a sua morte, 22 mestres, que
foram preparados, levaram o Reiki aos Estados Unidos da América e daí até o resto do mundo. Desde
então, tem havido muitas adições de conteúdo num sistema muito simples. Relembramos que o sistema
que ensinou a Sra. Takata concentrou-se no aspecto de cura do Reiki, em detrimento do
desenvolvimento espiritual pessoal.
9 “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT,
1984, p. 28).
28
Nesse aspecto, compreendemos o olhar, o que este significa nas mais diversas
abordagens e sua relação com a literatura. Como no excerto acima, olhar o mundo é
um ato voluntário que fazemos. Assim, escrever sobre ele traz a intencionalidade do
escritor, instaurando um novo sentido sobre o contexto em que vive, além de
possibilitar que seus registros escritos deixem marcas na história, as quais permitam
compreender sua época sobre o olhar literário de quem testemunhou e escreveu
obras que representam para o leitor suas experiências de vida e análise do seu próprio
olhar.
36
Ela
Em vistas de olhar o mundo, esta pesquisa se justifica desde sua ideia inicial,
ao encontrarmos uma pequena resenha em uma revista de cultura de Foz do Iguaçu
no Paraná, chamada Guatá11, o que fez com que o olhar de pesquisadora visse a
imagem de Carmen Soler, sobretudo o seu olhar. Buscamos no site da CAPES, em
que encontramos citações que a definiam como poeta revolucionária do Paraguai.
Deduzimos que o Brasil desconhece a sua produção literária, mesmo fazendo
fronteira com os “hermanos”.
Apesar do pouco conhecimento sobre a escritora, vimos ser possível visualizar
informações pelo Facebook, em fanpage mantida por Maria Eugênia Apontes Soler,
filha única de Carmen12. Assim, encontramos:
11
Disponível em: <>. A revista possui página virtual e impressa; no caso, este conteúdo só
está na internet, em que localizamos pela primeira vez o olhar de Soler. O termo Guatá, em guarani,
significa Caminho; é produzida e editada pelo filho de pioneiros de Foz com descendência paraguaia,
o jornalista Silvio Campana.
12
Pela página, é possível direcionar para outro site específico. Grande parte desse material lá
está, inclusive as obras de arte, pintadas pela artista. Além do contato via e-mail e aplicativos de
conversas online, mantivemos contato com a herdeira. O carinho e o comprometimento, a humildade
e reconhecimento da importância de nossa pesquisa enriqueceram com material pessoal e familiar
de Carmen.
13 Tradução livre nossa: Nasceu em Assunção, no Paraguai, em 4 de agosto de 1924.
Em 1943, concluiu o ensino médio e, já casada com Marco Aurélio Aponte, foi trabalhar no
Chaco paraguaio. Lá, ela oficia como professora rural bilíngue (guarani-castelhana), quando
o sistema educacional ainda não a estabeleceu, e enfrenta pela primeira vez problemas
sociais: a exploração dos trabalhadores nos curtumes, a subjugação e a marginalização dos
indígenas, as dificuldades dos camponeses, a opressão particular sofrida pelas mulheres da
38
Ao fazer parte dos movimentos políticos em seu país, a escritora usou sua arte
como arma de libertação, produzindo poemas de autotestemunho, de combate e de
luta – sua mais forte característica é a veia poética revolucionária.
O olhar de Carmen em seus poemas, sua criação, traz a lírica para registrar,
confessar e testemunhar o contexto da ditadura paraguaia, denunciando o abuso do
poder político, destacando-se como marco literário – mesmo que renegado por sua
cultura dominante da época – a jovem escritora renova formalmente a literatura de
sua época.
O amigo Augusto Roa Bastos acompanha sua arte que respira e pulsa com
originalidade de quem testemunha a história de uma forma que marca além de seu
tempo. Carmen deixou admiradores que a conheceram e leitores que se encantam
por seus poemas, como o estudioso Nicandro Pereyra16:
Hace dos años conocí a esta poeta paraguaya aquí en Buenos Aires.
Entonces escuché de sus propios labios algunas de sus piezas. La oí
largamente. No eran sus labios, sin embargo, los que hablaban; su ser
íntegro era, casi atormentado, el que gemía esta música primitiva (...)
Observaba a esta mujer clara y violenta y veía en ella la imagen de
América proscripta, peregrina, lejana y vecina en cada frase, en cada
resplandor. (…) Después siguió nuestra conversación desde lejos; he
recibido sus poemas, algunas veces desde su país, otros desde el
destierro. Algunos están fechados en la cárcel.
Carmen Soler y su Paraguay son una ligazón entrañable; más bien
hay tierra, tiempo y sueño entre ambos. Yo me complazco en señalar
esta joven voz violenta de la poesía guaraní y su amor por el pueblo
olvidado, sediento de justicia. Su última carta es del 25 de mayo de
1956 y dice en ella: ‘He estado esperando esta fecha para escribirle.
Es mi manera de honrar a ese pueblo hermano’. Extractado de
Propósitos. Buenos Aires (s./d.)17.
16
Nicandro Pereyra nasceu em Santiago del Estero, Argentina, em 21 de outubro de 1914,
quando a Primeira Guerra Mundial começou na Europa. Ele residiu em Tucumán de 1919 a 1946. É
estudante regular de direito e estudante livre de letras na Universidade Nacional de Tucumán. Contador
público nacional, ele recebeu seu doutorado em economia em 1969. Ele se juntou ao grupo La Carpa
de escritores e artistas do noroeste, na década de 1940. Ele morreu em Buenos Aires, em 2001.Obras
essenciais: Geografia lírica argentina. Quatro séculos de poesia. José Isaacson (Ediciones Corregidor,
Buenos Aires, 2003) pereyra-nicandro-santiago.html
17
Há dois anos, conheci este poeta paraguaio aqui em Buenos Aires. Então, eu ouvi algumas de
suas peças de seus próprios lábios. Eu a ouvi por um longo tempo. Não eram seus lábios, no entanto,
que falavam; todo o seu ser quase foi atormentado, que gemeu esta música primitiva (...) Vi essa mulher
clara e violenta e viu nela a imagem da América proscrito, peregrino, distante e vizinho em cada frase,
cada brilho. (...) Então ela seguiu a nossa conversa de longe; Eu recebi seus poemas, às vezes de seu
país, outros do exílio. Alguns são datados na cadeia.
Carmen Soler e seu Paraguai são um elo cativante; em vez disso, há terra, tempo e
sono entre eles. Tenho o prazer de trazer essa voz violenta jovem da poesia Guarani e seu amor pelas
pessoas esquecidas, sedenta de justiça. Sua última carta é de 25 de Maio de 1956 e diz: 'Eu estive
esperando por essa data para escrever. É a minha maneira de honrar aquela cidade-irmão. Extraído
de Propósitos. Bons ares. (s.d.)
40
19
No Equador: El Comercio (Quito). Em Cuba: A revista literária Portada.
Na Alemanha Ocidental: revista literária KOMMA, traduzida para o alemão por Walter Braun.
Eu notei que na Itália alguns poemas foram publicados, traduzidos para o italiano, mas os cortes não
vieram para mim. O mesmo em Viena". Acrescenta Carmen Soler em seu manuscrito (Fonte: Portal
Guarani: <http://www.portalguarani.com/559_carmen_soler.html>) Tradução livre nossa.
42
É provável que Carmen tenha registro para marcar suas publicações fora do
Paraguai, haja vista que em sua primeira prisão todo seu material de escrita e de
leitura foi levado pela polícia. Os textos do manuscrito seguem na íntegra, conforme
está na página oficial de Soler, de forma a evitar interpretação equivocada de que
possa ter começado a escrever próximo da década de 1970, por coincidir com sua
primeira obra publicada.
Toda sua arte foi levada e desaparecida no contexto político em que foi
produzida. Walter Benjamin (1994) refere-se a esse conflito, vivido pela cultura e a
guerra que travam com o domínio capitalista e política social, no texto intitulado
“Estética de Guerra”, em que o elogio inicial chega ao tom de ironia.
Walter Benjamin ressalta que o artista como produtor artístico deposita na arte
a transformação social, pois, por meio de sua técnica, o humano contempla a si:
e a forma humana de decidir o que fazer, como se o ver, o ser e o fazer fossem
sequências de decisões.
O corpus de análise escolhido para esta pesquisa, como visto anteriormente,
traz a lírica e a prosa com intensa verossimilhança, pois as escritoras vivem realidades
conflituosas e trágicas, mas produzem situações fictícias ancoradas no real. Na obra
de Carmen Soler, Poemas, em nota de capa, publicada em 1970, Ruben Yacovsky diz
que os poemas reunidos no livro foram tirados de três outros em que Carmen Soler
escreveu, porém, só publicou postumamente três obras: Na tempestade, Poemas em
dois tempos e A casa assombrada.
A análise dos temas que levaram à escrita dos poemas solerianos são - a pátria,
as mulheres, o exílio e o cárcere – todos são fundamentais ao estudo das obras. Há
ainda as obras de artes que Carmen produziu, após 1968, em que trabalharemos a
expressão do olhar nas personagens reproduzidas nas telas pintadas. Em virtude da
perseguição que a artista sofreu, apenas uma pintura recebeu a assinatura e a data,
por cautela.
Nos romances de Maria Luisa, A última névoa e A Amortalhada, temos duas
histórias que são narradas a partir de um ponto em comum. Nos dois enredos, a
personagem central é mulher, narradora de sua própria história, contada a partir de
casamentos, sentimentos sufocados, fatos que se confundem com o ter consciência
da vida melancólica, sentimental, sensual, sexual, libidinosa, profunda e metafórica.
As tramas por nós analisadas são independentes, mas se fundem pelo olhar
das personagens que contam suas rotinas. Apesar do limitado número de páginas, a
autora dispõe de um olhar delicado e profundo, sem deixar de lado as questões que
permeiam a submissão, a dominação, a opressão e o anonimato. As narradoras têm
uma relação intensa com a natureza ligada pelo cabelo, como um elo de energia e
afinidade, dialogando, segredando, relacionando onde aflora a sexualidade, a libido
altera a entrega ao amor próprio, o sentir-se mulher, até que os olhos das heroínas
encontram a paixão e a entrega carnal e instintiva.
23 Penso na trança apertada demais que coroa sem graça minha cabeça. Vou embora
sem ter desgrudado os lábios. Diante do espelho do meu quarto, solto meus cabelos, meus
45
Regina tiene los ojos entornados y respira con dificultad. Como para
acariciarla, toco su mano descarnada. Me arrepiento casi en seguida
de mi ademán porque, a este leve contacto, ella revuelca la cabeza
de un lado a otro de la almohada emitiendo un largo quejido. Se
incorpora de pronto, pero recae pesadamente y se desata entonces
en un llanto desesperado. Llama a su amante, le grita palabras de
una desgarradora ternura. Lo insulta, lo amenaza y lo vuelve a
llamar. Suplica que la dejen morir, suplica que la hagan vivir para
poder verlo, suplica que no lo dejen entrar mientras ella tenga olor a
éter y a sangre. Y vuelve a prorrumpir en llanto.
A mi alrededor murmuran que vive así, en continua exaltación, desde
el momento fatal en que... El corazón me da un vuelco. Veo a Regina
desplomándose sobre un gran lecho todavía tibio. Me la imagino
aferrada a un hombre y temiendo caer en ese vacío que se está
abriendo bajo ella y en el cual soberbiamente decidió precipitarse.
Mientras la izaban al carro ambulancia, boca arriba en su camilla,
debió ver oscilar en el cielo todas las estrellas de esa noche de
otoño. Vislumbro en las manos del amante, enloquecido de terror,
dos trenzas que de un tijeretazo han desprendido, empapadas de
sangre. Y siento, de pronto, que odio a Regina, que envidio su dolor,
su trágica aventura y hasta su posible muerte. Me acometen furiosos
deseos de acercarme y sacudirla duramente, preguntándole de qué
se queja, ¡ella, que lo ha tenido todo! Amor, vértigo y abandono.24
(BOMBAL, 2013, p 64).
cabelos também sombrios. Houve tempo emque eu os usava soltos, quase ate tocarem o
obro. Tradução Hosiasson, 2013, p. 18
24 Regina tem os olhos entreabertos e respira com dificuldade. Como para acariciá-la
pego sua mão descarnada. Arrependo-me quase em seguida de meu gesto porque, ao leve
contato, ela sacode a cabeça de um lado para outro do travesseiro, emitindo um logo gemido.
Ergue-se de repente, mas recai pesadamente e desabafa então num pranto desesperado.
Chama pelo amante, grita-lhe palavras de ternura dilacerante. Insulta-o, ameaça-o e torna a
chamá-lo. Suplica que a deixem morrer, que a façam viver para poder vê-lo, suplica que não
o deixem entrar enquanto ela tenha cheiro de éter e de sangue. Volta a prorromper em pranto.
Ao meu redor murmuram que vive assim, em contínua exaltação, desde o momento
fatal em que…
Meu coração dá um pulo. Vejo Regina desmanchando-se sobre um grande leito ainda
morno. Imagino-a agarrada a um homem, temendo cair nesse vazio que se caber embaixo
dela e no qual decidiu soberbamente se precipitar. Enquanto a colocavam na ambulância,
deitada para cima na maca, deve ter visto oscilar no céu todas as estrelas nesta noite de
outono. Vislumbro nas mãos do amante, enlouquecido de terro, duas tranças que lhe cortaram
de uma tesourada, empapada de sangue. Sinto de repente que odeio Regina, que invejo sua
dor, sua trágica aventura e até mesmo sua possível morte. Sou acometida por desejos
furiosos de me aproximar e de sacudi-la duramente, para lhe perguntar de que se queixa ela
que teve de tudo! Amor, vertigem e abandono. (HOSIASSON, 2013, p. 64)
46
25 O que não daria eu, contudo, minha pobre Alicia, pqra que lhe fosse concedida na
terra uma pequena parte da felicidade que lhe está reservada emseu céu! Sofro por sua
palidez, por sua truisteza. \parece até que seus cabelos descoraram devido aos desgostos.
Você lembra que cabelos dourados tinha em criança? E lembra a inveja que tínhamos eu e
nossas primas? Porque você era loira nós a admirávamos, achávamos que era a mais bonita.
Lembra? Tradução BERNARDINI e DEL PARDO, 1986, p,18.
26
“Polissemia”, do grego polysemos (poli = muitos, sema = significados), significa “algo que tem
muitos significados”. Sendo assim, polissemia é a propriedade que uma palavra tem de apresentar
vários sentidos.
27
Tradução de Andrea Cristiane Kahmann, UFRGS Porto Alegre, RS, Brasil
(andreak.ufpb@gmail.com) do trecho: “Si principiamos con narraciones no realistas, el nombre principal
es el de María Luísa Bombal [...] donde lo humano y lo sobrehumano aparecen en una zona mágica,
poética por la fuerza de la visión, no por trucos de estilo”.
47
Ainda que tenha trilhado o caminho dos romances, contos, crônica poética,
críticas literárias e uma série de produções não consagradas, como roteiros
melodramáticos para o incipiente cinema criollo, Bombal obteve êxito em função de
seus romances. Primeiramente, publicou duas em espanhol: A última névoa (La última
niebla, Buenos Aires: Editorial Colombo, 1934) e A amortalhada (La amortajada,
Buenos Aires: Sur, 1938). Depois, indo morar nos Estados Unidos, reescreveu A
última névoa em inglês, sob o título The House of Mist. Essa obra é mencionada como
reescritura e não como tradução, por assim referir a própria María Luísa em discurso
na Academia Chilena de Lengua, em 22 de setembro de 1977: “Escrevi em inglês uma
nova versão da minha Última névoa – é outra novela, eu diria, ainda que baseada no
mesmo tema inicial do meu livro em espanhol” (BOMBAL, 1996, p. 316).
A partir dessa versão inglesa, seus escritos tomaram impulso em outros países:
28 MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2004 p. 188
MERLEAU-PONTY. Phénoménologie..., p.188.
49
mídias e o ápice da cultura da imagem. Os sujeitos estão ávidos por informações, das
mais diferentes ordens; embora as imagens pareçam uma, no entanto, se
transformam em múltiplas. O ato de olhar segue tendências espaciais, temporais e
culturais com as tecnologias e a utilização do celular. Como exemplo: usamos na capa
do material, que está no envelope pardo “o olhar tecnológico”, o código de barras 2D
(Qr code)29, direcionando o olhar para outro suporte de leitura em URL.
Esses materiais de estudos sobre Maria Luisa estão também em filme Gifs
BOMBA(L), um novo olhar com velocidade intensa e texto mais curto bibliográfico. O
minidossiê traz imagens localizadas no Memorial Chileno, mas os dossiês não fazem
parte do corpo do texto, pois, se inseríssemos como anexo, ficaria solto pela falta de
contextualização dialógica e teórica neste suporte30. No entanto, o filme de Carmen
Soler, a música do poema, bem como o filme Gifs, estão no símbolo QRCODE na
capa da Dissertação.
Os filmes “Dossiês” de Carmen Soler e Maria Luisa Bombal mostram as
imagens e fatos ou ocasiões sociais da vida das autoras, elaborados com a intenção
de aproximar o leitor das escritoras, já que ver também é conhecer.
[...] O texto conecta entre si também coisas distantes num longo intervalo
de tempo como se sucedessem imediatamente uma à outra, de modo a
parecer que nenhuma distância de tempo tenha separado coisas que
nenhum intervalo do discurso separa. [...]
4 O OLHAR-DE-LINCE NO BRASIL
Nosso estudo sobre o olhar na lírica soleriana destaca cada um dos poemas e
seus múltiplos olhares; não apenas autoria e obra, mas envolve o olhar do leitor destes
poemas sob os quais ela escreveu. E perscrutar não somente o jeito de olhar que é
peculiaridade de cada um deles, mas também o modo como, em cada um, é tratado
o próprio tema do olhar.
Espejismo31
Te pensé
y exististe
Y como quise fuiste perfecto,
amplio, pleno.
Y lo supiste y aceptaste
brillar- como la luna - con luz ajena.
Eso es todo
31 Tradução livre nossa – Entre Los Poetas Míos, Carmen Soler, p 14 Miragem –
Biblioteca Virtual Omegalfa – da Obra Poemas, Vol 70, 2014p 14, MiragemTe pensei/ e
exististe// E como quis foi/ perfeito/ amplo/ pleno.// E você sabia/ e aceitou/ brilhar/ - como a
lua -/ Com luz extra.// E foste meu reflexo,/ E meu desejo foste,/ E meu espelho.// Até que ao
fim./ um dia/ Me esqueci de pensar em você/ E desapareceste// Isso é tudo.
52
Soler e sua poesia expõem o que viu e teve como experiência, transmitindo
esse olhar “calabouço” em sua arte, sendo capaz de denunciar com o simples, o
comum e o que ninguém vê ou quer ver.
54
La alondra herida32
32 Tradução livre nossa. A cotovia ferida – Eu não posso cantar para ti, filho de minha
terra./ Minha voz, entrelaçada a tua coroa de espinhos/ só posso sangrar por tuas feridas. //
Eu não posso cantar a tua miséria/ a tua debilidade de cansaço,/ O vazio de sua fome
acostumada./ Eu não posso cantar para as tuas correntes,/ Ao jugo que dobra as tuas costas,/
A cama pelada sob o telhado que chove/ sua importância de palha. // Eu não posso cantar
para ti e não canto./ Que cante para ti a cotovia cega/ Em sua artística jaula emparedada/ Sua
estupidez de flores perfumadas,/ amores, beijos, águas cristalinas. Que te fale o riacho que
murmura,/ Da fonte que cai cantando,/ do jasmim que perfuma nossas ruas/ nas noites de
luar./ Que cante para ti a cotovia cega, eu vejo/ teu destino de hospital sem vendas:/ Eu sou
a cotovia ferida.// Eu não posso cantar para ti e não canto./ Eu grito em tua voz de rebeldia,/
Eu golpeio em teu punho libertário./ Sou tijolo em seu peito murado,/ brilho em seu olhar
penetrante,/ palavra, em tua mensagem solidária./ Sou fibra da tua carne no trabalho,/ Eu sou
a chama na tocha que levanta/ O arco do triunfo do seu braço.// Eu sou ânsia para suas
ansiedades adiadas:/ hoje eu não posso cantar para ti, te cantarei amanhã/ quando tua voz
poder cantar comigo/ a felicidade da pátria libertada!
56
A poetisa Carmen Soler, por mais que utilize alegorias, a natureza, o mito, a
cultura, bem como alegorias da própria natureza e arquétipos dignos para o leitor criar
outra leitura, como Baudelaire, há encantamento, leveza, enigmas, mistério, um
verdadeiro misto de revolta em forma de canto, como no poema “A cotovia ferida”.
Nesta análise, esse poema, na voz lírica, apresenta a metáfora símbolo da
mensagem que quer transmitir, pois reflete sobre o tempo do cárcere que viveu por
três vezes; as obras que produziu nesse período oculto, seja nos poemas, seja na
maioria de suas telas, são comprovações do trauma que viveu historicamente, como
data, nome dos locais ou pessoas. Porém, registra-as ao produzir sua arte por meio
da expressão “Yo no puedo cantar-te”: assim, inicia o poema da Cotovia ferida,
também literalmente o codinome dado a Carmen; o estar ferido sangra, é traumático,
no entanto, o eu lírico lamenta o não poder cantar para o filho da sua terra.
A expressão “filho da minha terra” não se refere ao filho biológico, e sim, a
qualquer filho, a todos os filhos da sua terra. O amor maternal apresenta o
desencadear do poema e declara ao concluir que só pode sangrar pelas feridas desse
filho.
O discurso do eu lírico no segundo recorte, repete que não pode cantar, não
apenas pelas feridas, mas sim, por inúmeros motivos que a entristecem. E discorre
sobre as injustiças sociais como: miséria, doenças, fome, as correntes, o peso nas
costas, a cama nua e o teto descoberto. Justifica o seu não cantar.
Yo no puedo cantarle a tu
miseria, a tu debilidad de
anquilostomas,
al vacío de tu hambre
acostumbrada. Yo no puedo
cantar le a tus cadenas, al
yugo que doblega tus
espaldas,
57
Yo no puedo cantarte y no te
canto. Que cante pra ti la
alondra ciega, em su artística
jaula emparedada, su
estupidez de flores
perfumadas, amores, besos,
aguas cristalinas. Que te
hable el arroyo que murmura,
de la fuente que baja
cantarina,
del jazmín que perfuma
nuestras calles e las noches de
luna.
Que te cante la alondra ciega,
yo veo tu destino de hospital
sin vendas:
yo soy la alondra herida.
58
Deixa e confirma que o eu lírico não é a cotovia ferida que vê, e sim, que pede
para que cante, apesar de cega. A natureza faz parte da estrofe, riacho, flores, noite,
luar e a cotovia cega, vista pelo eu lírico e seu destino. Porém, na conclusão da estrofe
a metáfora retoma para concluir. “Eu sou a cotovia ferida”. O eu lírico repete ao
interlocutor filho de sua terra que não pode cantar e reforça a certeza em: “… e não
canto”, pois o ato de cantar subentende alegria, assim, muda a ação para “Eu grito
em tua voz de rebeldia”. Transfere o seu ato direto de gritar e indiretamente conclui o
segundo verso, a ação para a segunda pessoa, em discurso indireto para o filho de
sua pátria.
A arte soleriana denuncia ao afirmar que não pode cantar para o filho de sua
terra, por saber quem é o filho da sua terra, como está, como e onde vive. Contundente
com a realidade, o poema revela a cada verso o olhar abandonado, a face pálida, o
físico esquelético e a alma do herdeiro de sua terra. O quarteto final descreve o sujeito
lírico, refere-se ao futuro e repete que hoje não pode cantar para o filho da sua terra,
mas cantará amanhã, quando o interlocutor pode cantar junto à felicidade da pátria
livre.
Deve-se com efeito perguntar a que está por seu turno ligada esta
transformação da atividade intelectual revelada pela "memória
artificial" escrita. Pensou-se na necessidade de memorização dos
valores numéricos (entalhes regulares, cordas com nós, etc.) como
também numa ligação com o desenvolvimento mento do comércio. É
necessário ir mais longe e relacionar esta expansão das listas com a
instalação do poder monárquico. A memorização pelo inventário, pela
lista hierarquizada não é unicamente uma atividade nova de
organização do saber, mas um aspecto da organização de um poder
novo. (LE GOFF, 1990, p. 376).
Não quero dizer que sua prática tenha sido estranha a um escopo
de valores mais elevados do que aqueles que infectam os
panfletos usuais, seja no campo da literatura ou na vida cultural. A
fim de compreender a dimensão especial que adquirem em face
de uma perspectiva mais ampla, a redução de suas criações ao
campo da poesia social ou política talvez tenha que ser evitada.
Mas também não deve ser despojada dessa estrutura
revolucionária que a torna uma figura chave na poesia paraguaia.
(FERNANDEZ, 2016, s./p.).
33 A tela não possui título nem data; nominamos assim para facilitar a classificação da
Arte soleriana.
61
“Olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Chauí
(1998), quando retoma a teoria cartesiana, afirma que a visão não é aquilo que se
presencia no primeiro golpe de vista, mas busca ver o interior do próprio visível.
Para a mulher e mãe Carmen Soler, o olhar que amanhecia e não repousava
no calabouço e na solidão do aprisionamento e da violência que sofreu teve como
amparo sua arte na poesia e na pintura. Para o pesquisador Acir Dias da Silva (2007,
p. 96): “Enxergar implica discutir os termos desse olhar, observar com ele o mundo,
mas colocá-lo também em foco. Enxergar mais é estar atento ao visível e também ao
que está fora do campo, tornando-o também visível.”
Mesmo assim, deixou publicações na Argentina, Chile, Uruguai, Alemanha e
Suécia, em periódicos, revistas e jornais. Sua voz ecoou em palestras literárias,
rádios, programas televisivos e aulas que ministrou na Suécia sobre a Literatura na
América do Sul. Familiares resgatam aos poucos o valor de sua arte.
Há a necessidade intelectual de reconhecê-la como ícone de referência
literária, por sua luta social e revolucionária em busca da dignidade humana de sua
gente.
36 Tradução livre nossa: Ao pincel sobre o muro (Para Olga Blinder) Há um pincel que
canta sobre o muro/ Com novo ritmo, velhas realidades./ Traz ao presente antigas claridades,/
realiza em sombras um presente escuro. // Mas és pincel com nome de futuro/ E quando
esbarra com a vida se transforma/ em grandes olhos e imenso punhos.// É um pincel de
antiguidade e novo cunho/ Es o pincel de sempre, e verdadeiro,/ que em cada tempo encontra
sua madeira/ cada vez atrevido e oportuno// É um pincel valente, um pincel puro/ que a falsa
caridade não o rebaixa/ pinta verdades, pela verdade trabalha/ serenando o pulso, o coração
seguro// É um pincel sincero eu o procuro/ Dizer-lhe que sua fibra anseia e sente/ tem sempre
essa mão e essa testa/ que o levem cantando sobre o muro.
66
Alguien gritó37
Alguien gritó:
¡Viva la libertad!
y respondió la sangre.
Alguien gritó:
¡Muera el tirano!,
y respondió la sangre.
37 Tradução livre nossa. Alguém gritou. Alguém gritou: /Viva a liberdade! /E respondeu
o sangue.
//Alguém gritou: /Morte ao tirano! /E respondeu o sangue// De manhã, /gritará o
sangue: /Viva a liberdade! /Morte ao tirano!, //E o povo /responderá!.
67
Mañana,
gritará la
sangre: Viva la
libertad!
¡Muera el tirano!,
¡y el
pueblo
respon
derá!
A resposta dada ao eu lírico, ao final dos versos, foi sangue e silêncio. Outro eu
lírico repete novamente: Viva a liberdade! Acrescenta: Morte ao tirano! Sangue
novamente. Pela manhã, não haverá apenas silêncio, o sangue que grita “Viva a
liberdade e morte ao tirano” e o povo responderá!
A poetisa conclui com uma exclamação, alertando que apenas com gritos
conseguiremos a liberdade. É preciso perceber que o sangue precisa ser defendido,
não isolados, e sim, unidos.
A comparação do título Alguém gritou com a pintura de Edvard Munch d’O Grito
(1893) é inevitável. O estudo comparativo das artes poéticas e plásticas envolve, antes
de tudo, o conhecimento amplo do estudo da linguagem, no que diz respeito a suas
diversas abordagens de expressão. Gotthold Ephraim Lessing (apud GOMBRICH,
1995), em seu Laocoonte o de los limites de la pintura y de la poesia, estabelece que
a pintura e a poesia apresentam expressões deveras diversificadas, importantes em
qualquer análise comparativa que se pretenda fazer.
O que na poesia é palavra, na pintura, é cor. Cabe, assim, ao estudioso, ao
adentrar uma obra de pintura, buscar mensurar o quanto a cor expressa o estado de
espírito da artista, na mesma proporção que a palavra densifica ou suaviza a
expressão do poeta. Duas linguagens diversas, portanto, mas em que, não obstante,
suas diferenças podem ser compreendidas em um mesmo esquema ou proposta
temática.
Aproximando-os, há semelhanças no título e no tema, morte, entre poética de
Carmem em “Alguém gritou” e a obra do norueguês expressionista. Para Munch, por
motivos estéticos do expressionismo e de modo particular, tem origem na história
particular do próprio pintor.
68
Este é o mapa da vida da mulher Carmen, que clama por exigir direitos, lamenta
pelos que sofrem e sofre por eles e com eles, reconstituindo o que de melhor tem sua
arte de escrever, pois até o mais puro da árvore guarani lhe arrancaram, o papel, as
folhas e o lápis. Mesmo assim, a MEMÓRIA é o elemento mágico que a faz decorar,
ainda que lhe tivessem arrancado os olhos, tema deste trabalho, mesmo assim, para
essa jovem mulher, sobraria a memória para revisitar e o traço. Ainda que não fosse
visto, seria transformado em arte, coisa que o artista, durante o dia, muitas vezes,
esforça por continuar a fazê-la no instante que virá. Também, quando sente a
lembrança lhe doer, ao ver a cotovia voar livre, mesmo ferida e cega; seu sonho não
se esvai; são as mesmas etapas que fazem as penas dos pássaros crescerem a olhos
vistos.
A menina professora levantar-se-á e, passo a passo, caçando o que lhe foi
roubado, por mãos de sua filha e neta, sua marca e o sangue do povo do país vizinho
Paraguai, será publicada, traduzida, se transformando em conhecida e famosa pela
América Latina; não será mais olhar… mas será, eternamente, Literatura.
No que diz respeito ao olhar, há quem duvide que falar de poesia é falar de
olhar. Quem sabe esse registro, do olhar e a alma da poetisa, encontrou na arte
plástica a forma de reproduzir, por meio de outra arte, a experiência do cárcere? A
pintura fez parte da vida de Carmen Soler, que nos deixou quadros e esculturas que
nos fazem pensar na impossibilidade de não constar nas obras as cores sombrias, as
marcas de dor, a expressão de trauma.
“Pólvora e espiga” é uma metáfora social na qual Carmem Soler usa ao
elemento pólvora, armamento que destrói e tira a vida e a espiga de trigo, pão, que
alimenta e sustenta. A poetisa leva para o tema os tipos sociais. A cegueira é usada
pela escritora, que caracteriza a cotovia e agora o Humberto, como vemos adiante. O
símbolo do cego, cegar, cegueira, pode estar tanto no visível ‘fora’ como no “invisível”,
na subjetividade.
73
Pólvora e espiga39
Polvora y espiga
Humberto era su nombre;
su apellido era Garcete.
¡Lo segaron!
Lo segaron
porque como el grano estallaba
apasionado y maduro,
porque daba el pan prohibido,
porque era como el trigo
sano y puro.
Lo segaron
con una guadaña ciega,
bajo una nocha sin ojos,
en una prisión sombría/
bocas oscuras
escupieron odio y fuego;
treinta y dos lenguas hambrientas
lamieron su carne tierna
y abrieron en su piel blanca
treinta y dos agujeros negros.
¡Treinta y dos bocas vacías
se llenaron en sus venas!
¡Así apagaron su aliento
y encendieron su recuerdo!
39 Tradução livre nossa: ¡Pólvora y espiga! Pólvora e espiga/ Humberto era o seu nome;/
O seu apelido era Garcete./ O ceifaram!/ O ceifaram./ Porque como o grão estala/ Apaixonado
e maduro,/ Porque dava o pão proibido,/ Porque era como o trigo./ São e puro./ O ceifaram/
Com uma foice cega,/ Sob uma noite sem olhos,/ Em uma prisão sombria.// Armadilha com
dentes de gelo/ Lhe explicaram sua condição/ Trinta e duas bocas escuras/ Cuspiram ódio e
fogo;/ Trinta e duas línguas famintas/ Lamberam sua carne doce/ E abriram sua carne branca./
Trinta e dois buracos negros./ Trinta e duas bocas vazias// Encheram suas veias!/ Então
apagaram seu fôlego/ E acenderam sua memória!// Assim dormiram seu corpo/ E
despertaram a sua força!// Porque os mártires/ Não têm morte./Se vão mas ficam/ O
prenderam, mas continuam/ Somos nós agora!/ seu sangue está vivo!/ Seu sangue fica/ Ele
levantou-se./Humberto Garcete!/ fulgor e lema!/ Pólvora e espiga - Assunção, 1 de maio de
1954, Carmen Soler.
74
Carmem Soler
Ao primeiro olhar, a pintura acima, que ilustra como imagem o poema “Pólvora
e Espiga”, nos lembra uma máscara. Ao analisarmos nitidamente, a obra possui as
75
Seu legado40 ganhou vida com publicações póstumas por amigos e familiares,
possuindo as seguintes obras, conforme nos enviou sua filha. Reproduzimos aqui o
texto original e traduzido por ela:
Em retalho: Fatos sobre sua vida e sua luta de seu marido Carlos
Luis Casabianca. Coletar poemas dos dois livros anteriores,
inéditos e uma carta. (Em seu trabalho, parece que Casabianca
era o autor)
40 Em contato com Maria Eugênia Aponte Soler, conhecida como Matena (apelido, pois
quando era criança não conseguia pronunciar seu nome todo; ao ser perguntada qual seu
nome, respondia Matena), filha de Carmen Soler, por meio de e-mails, obtemos algumas
informações que foram de muita importância sobre sua obra. Houve diálogo com muita
compreensão e interesse em participar da construção desta pesquisa. Tivemos acesso a outro
panorama no site Wix oficial, editado e administrado por Matena, onde encontramos o
contexto de produção da autora.
41 O corpo do texto contém os dados das Referências, pois não obtivemos acesso ao
material, nem aos livros e nem pela internet; nesse momento, não fazem parte do nosso
acervo de pesquisa inicial.
42 Informações obtidas por e-mail com Matena.
78
43 Neste trabalho, faço uso da categoria ditadura para o caso paraguaio, entendendo-a
como um sistema de poder autoritário, personalista (centrado na figura de Stroessner) e
organização fundada na violência a qualquer tipo de oposição ao governo.
44 Em seus ensaios sobre o poeta francês, Charles Baudelaire, Benjamin chama a
atenção para a figura do flanêur que, com um prazer quase voyeurístico, comprazia-se em
observar refletidamente os moradores da cidade em suas atividades diárias. Dessa paixão do
flanêur pela cidade e a multidão, decorre a flanêurie como ato de apreensão e representação
do panorama urbano. A expansão sem precedência da economia industrial e a consequente
explosão demográfica das cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram o surgimento
do ambiente urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e perceber. Isso,
por sua vez, requeria um novo modo de olhar para o mundo e novas propostas estéticas.
Benjamin procura explicitar essas transformações, ao investigar como tais mudanças foram
registradas na literatura daquela época. Baudelaire torna-se a figura central em suas
investigações.
79
O tempo estava ligado aos processos naturais de mudança das coisas e dos
homens e não era necessário medi-lo com exatidão. A ampulheta, o relógio de sol, a
vela ou lâmpada, em que o resto de cera e de óleo que permanecia indicava as horas,
oferecia medidas aproximadas de tempo. Em compensação, quando o tempo está
80
¡Espera!
¡ESPERA!
No me arrastres, tiempo.
Déjame en un rincón olvidada.
No me hieras así,
traspasándome
deja que duerma tranquila una noche,
una vez siquiera
sabiendo que no me estás robando
a pedazos los sueños.
(Carmen Soler).
45 Tradução livre nossa: Mais palavras minhas - Perdoem-me / amigos literários/ meus
queridos amigos/ acadêmicos, perdoe-me/ Eu não segui a "carreira" de poeta./ Eu cresci
somente com esta/ vocação para recolher calandras,/ mas eu nunca soube como / amansá-
las./ São incultas, / Não fazem reverências. / São selvagens, /não lustram seus violinos/ São
simples/ eles não se enfeitam com plumas alugadas.//Por isso, perdoe-as/ seu canto simples/
Está vivo e imperfeito./ O que vou fazer?// Se recolho palavras de agonia/ Não me fixo se
soam musicais/ E se encontro a esperança // as reparto,/ por mais que não possuam/ as
medidas exatas,/Então,/ Deixa-me assim!/ Deixa-me ali, nas ruas,/ com eles, os simples. /
Que Juan, Maria e Pedro/ repitam minhas canções,/ as levem ao mercado,/ as coloquem nas
fábricas/ as mandem à obra./ Deixa que as repitam/ agora e durante quanto/ lhes sejam
necessárias / Depois amanhã pela manhã/Ali falam o esquecido/ E está bem assim.//Por isso,
perdoa-me/ Perdoa-me/ Que no meio do combate,/ Que no meio das prisões/ que no meio
das feras que torturam/ que no meio da noite e sua espionagem/ que no meio das vítimas e
do medo/ que em meio a pólvora e fogo,/ que em meio a fome e aos lamentos,/ e em meio a
este mundo deslocado,/ as vezes perco o ritmo e não conto (narro)/ com os dedos/ cada
verso!/ Não tenho esse remédio./ Não sei medir o sangue!/ Não sei contar as lágrimas!/ Não
sei rimar o pranto!
46 Calandra (kálandra) Pássaro parecido com a cotovia, de canto harmonioso
(Melanocorypha Calandra). Tem o corpo rechonchudo e o bico robusto.
82
Em “Mais palavras minhas”, ela pede perdão. E a utopia vai além da retratação;
ela compartilha sua obra, única riqueza que pode oferecer por meio de suas
experiências:
Benjamin teoriza que o conceito de experiência integral é, por sua vez, satisfeito
pelo conhecimento metafísico. O cerne da discussão sobre a aura da obra de arte e a
literatura remete, assim, e mais uma vez, à tradição. No que concerne à obra de arte,
a tradição refere à presentificação de um tempo e de um espaço litúrgico, cultural no
que diz respeito à literatura, uma forma de escrita específica, qual seja, a narrativa.
até ele e deixa-se na rua com Juan, Maria e Pedro, depois não pode
ir só. Nessa produção, a submissão, a impotência e a censura
também são fortemente presentes, mesmo se tratando de um
sonho.
Esse sonho nos traz ainda uma das imagens do quadro de Pablo Picasso,
Guernica, entretanto, na visão de quem está sabendo da total destruição social,
ideológica e política de dentro do calabouço.
do sujeito que olha com o mundo sensível”. O olhar de Carmen pode ser assim
descrito:
48 Uma das muitas vítimas paraguaias do ditador sanguinário Alfredo Stroessner tem o
rosto hoje, Miguel Ángel Soler, desaparecido em 29 de novembro de 1975; foi, na
clandestinidade, secretário do Partido Comunista. O livro "Decisões judiciais sobre casos de
violação dos direitos humanos", do Dr. Rodolfo Manuel Aseretto, detalha o desaparecimento
de Soler, em 1975. Seus restos mortais foram identificados 40 anos depois. O escritor ressalta
que Soler exerceu o cargo de secretário geral do Partido Comunista do submundo.
Seu desaparecimento foi denunciado em 28 de fevereiro de 1976; seus restos foram
encontrados em 23 de dezembro de 2009, em túmulo individual na Associação Especializada.
86
O corpo foi exumado entre 11 e 13 de janeiro de 2010. A polícia stronista conseguiu localizar
sua casa em Villa Morra, na madrugada do dia 29 de novembro. Vários prisioneiros viram
quando Soler entrou no Departamento de Investigações e ouviram a brutal tortura sofrida pelo
líder político. Poucas horas depois de ser preso, ele foi assassinado pelo pastor Coronel,
chefe de investigações.
Apesar dos pedidos e demandas de organizações internacionais, o governo nunca se
encarregou dessa prisão. O anúncio da identificação de seus restos foi feito em 30 de agosto
de 2016. Soler era líder estudantil e ocupava os principais cargos das organizações
estudantis. Pertenceu ao Partido Revolucionário Febrerista, dentro do Bloco de Libertação
Nacional, um setor progressivo de febrerismo. Mais tarde, ele se juntou ao Partido Comunista
do Paraguai, em que, após as divisões internas do partido, passou a ocupar o secretariado
geral.
Sofreu o exílio; amigo de Elvio Romero, teve grande apoio de suas irmãs, Carmen,
poeta de aço; Lali e Yoyi, além do apoio da mãe em anos difíceis.
Nesse caso, o pastor Coronel, Lucilo Benítez e Juan Martínez foram condenados a 16
anos e 6 meses. Na ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-1989), houve quase 500
desaparecimentos de pessoas. Fonte: ABC COLOR, Jornal, 30 de ago. 2016. Disponível:
http://www.abc.com.py/nacionales/soler-30-anos-de-dolor-1513697.html Acesso: 28 out.
2018
O coordenador da Equipe Nacional de Busca e Identificação (Enabi) de desaparecidos
da ditadura stronista adianta que sua equipe voltará a escavar em Assunção, no Agrupamento
Especializado da Polícia Nacional, onde encontraram os restos de Rafaela Giuliana Filipazzi
Rossino e de Miguel Angel Soler Canale – os primeiros desaparecidos paraguaios
identificados –, porque foram construídos muitos prédios, depois de 1980, debaixo dos quais
haveria mais sepulturas. O médico paraguaio encontrou essa referência, graças ao
testemunho confidencial de 34 ex-militares e policiais que apontaram o local onde foram
enterrados os corpos. Fonte: Instituto Humanita Unissinos Reportagem: Papai espera um dia
ser encontrado http://www.ihu.unisinos.br/78- noticias/559787-papai-espera-um-dia-ser-
encontrado Acesso: 28 out. 2018.
87
El cartero fantasma52
En la prisión existe
un cartero fantasma
que va de celda en celda
entregando las cartas
que nunca se enviaron,
recogiendo cartas
que nunca se escribieron.
Va y regresa ligero
con zapatos alados
por caminos sin rastros.
El cartero fantasma
se mueve en el peligro
como en su propia casa.
Los guardias lo presienten,
lo buscan, lo persiguen,
(Carmen Soler).
O título sugere ficção e heroísmo, induz ao terror como uma história infantil e,
ao mesmo tempo, mito, lenda urbana e ficção. Intitulado por uma profissão, no caso
o carteiro, que continua sendo Carteiro, mesmo quando se torna Fantasma. A beleza
do poema está no prazer na leitura. Barthes descobre o que denomina como prazer
do texto: o texto como objeto de prazer, o texto como gerador de prazer. O prazer do
texto é uma procura que vai além da mera comunicação, é o espaço do gozo. “Nada
mais deprimente” – escreve Barthes – “do que imaginar o texto como um objeto
intelectual (de reflexão, de análise, de comparação, de reflexo”:
Porém, a alegria com a presença do tipo social e a função que exerce em nossas
vidas nos dá, se é que existe, ‘esperanças fantasmas’. Em seguida, a decepção, visto
que, entre o primeiro e o sétimo verso há, a nosso ver, o emissor e o destinatário como
estando preso na mochila do Carteiro fantasma; nenhum realiza a função da
comunicação, no entanto, o carteiro está ali.
En la prisión existe
un cartero fantasma
que va de celda en celda
entregando las cartas
que nunca se enviaron,
recogiendo cartas
que nunca se escribieron.
[…]
Nos quatro últimos versos, os elementos da natureza tomam conta das ações
do nosso herói. Apenas a luz, sua força para enfrentar os maldosos que o perseguem
está na esperança. É um raio de luz, é o vento que passa? - Não, é o olhar do Carteiro
Fantasma...
análise, a tela e os versos, assim, nos vemos frente a frente com o tema prisão,
calabouço, ausência de liberdade e duas presas isoladas dentro de si e dentro da
cela; elas observam o corredor da prisão, como quem olha um mundo que vive do
lado de “fora” ou do que vem do mundo de “fora”.
A sensação é de que a expressão do primeiro olhar, desenhado pela mão hábil
da artista, com a cabeça pendente para o chão, sustenta o olhar, dirige-se em direção
ao olhar da pintora; em troca, morre sobre o último gesto suspenso e captado pelo da
artista, mesmo que morto, entre a ansiedade em não ter a fina ponta do pincel ou um
lápis que possa registrar o gume do olhar que se vai.
O trágico está na cela em frente. Jogado sob uma cama, os braços pendidos
para o chão, causando revolta por não poder fazer nada. Indignada, a artista tem
nesse sentimento a multiplicidade de vontades de fazer algo, entretanto,
passivamente, planeja pintar o fato cena.
Na dúvida - de quem observa a pintura -, se a personagem da obra está viva
ou morta, com a expressão do olhar fisicamente entorpecido, inerte pelo estímulo da
luz, mas que em seu fundo, mesmo com uma grade da cela encobrindo parte do olho
direito, reflete no expectador o olhar da esperança ilusória ou passível de ter o olhar
vivo, mesmo nessa realidade em que as personagens estão aprisionadas.
Todavia, a segunda personagem, debruçada sob o peito esquerdo da dona do
olhar, não mostra o rosto; está lamentando a perda da colega de cela, deixando a
nítida impressão de que esteve tentando fazê-la reagir ou ouvir o coração para se
certificar de que a morte as visitou. Já a terceira personagem, aguarda a resposta e o
cair da cabeça da segunda, que verifica o coração, confirmando a morte da
companheira. O olhar assustado da terceira personagem é de quem pela primeira vez
viu a morte tão perto de si; já a da segunda personagem, pode ser associado com o
sentimento de amizade, relação de carinho que gerou tal dor, angústia e tristeza.
Porém, o que causou a morte da presa? Se observarmos a pintura, veremos
automaticamente que também há dentro do ambiente um par de butinas (botas), calça
masculina e a tonfa55 de guarda, carcereiro ou soldado, dentro da cela, mesmo
ambiente. O que está fazendo ali? Para ajudá-las, não seria.
Mas o olhar que pinta a cena não está dentro da cela; está fora. Entretanto, é
um fora que está dentro de outra cela que a prende. Percebemos isso nas cores das
55 Cassetete.
94
grades, como se estivesse apenas observando, no entanto, não reage, pois não pode;
apenas registra, pinta, dá cor e transforma em arte.
Carmem apresenta o paradoxo ao construir a imagem como pintora, artista
plástica que muito nos ajuda a entender a poeta que vive o dilema entre o ‘dentro’ e o
‘fora’ da maneira que ela surge como o quinto olhar no contexto. A impossibilidade,
tanto na arte da pintura como na arte da escrita, congelou, como estátua pensante.
Para Barthes, o artista produz o efeito desejado por meio do olhar e da intenção
do que olhar.
carteiro e o sonho em poder escrever cartas, enviá-las par ao mundo exterior e receber
respostas.
No entanto, o olhar vigilante e à espreita de Carmem foi guardado, preso,
esperado, pois não podia produzir tais objetos ali, no cárcere. Seus olhos ficaram
distantes e sem produzir sua arte, até o momento oportuno, quando a lembrança
pediu, exigiu que a memória e o autotestemunho ganhassem forma e vez.
A visão de alguém precisando de socorro médico, os gritos, os pedidos, os
gemidos de dor de quem está partindo, a fraqueza imóvel que quem não pode abrir a
cela e ajudar, ou até mesmo, morrendo. A escuta das duas colegas tentando socorrer
e a presença passional e covarde de um soldado. A pintura usa a técnica das cores
escuras, claras na tela; os personagens entre sombras tornam a imagem mais real. A
matéria-prima para produção dessa tela é o fato desolador que acontece dentro da
cela, diante da pintora. O eu lírico relata, numa retrospectiva, episódios relacionados
à experiência. Mas o sujeito autobiografado é ficcionalizado. No nível discursivo,
circulam alusões de toda ordem e sensações da memória são entrecortadas por
intervenções irônicas, que excluem revelações ou cumplicidades com o leitor.
Cada estátua forma sua própria opinião. Tudo o que ela sabe provem
de sua própria experiência. Ela sempre foi tal como é agora. Não se
modifica. Enxerga. Observa. Há algo acontecendo do outro lado. Ela
pensa nisso. Mas continua em aberto a questão de se o que ela
pensa corresponde ao que lá está sucedendo. Ela não tem meios de
se convencer. É imóvel. E está só. O abismo é profundo demais. O
golfo é intransponível. (ELIAS, 1994, p. 96-97).
dialoga com seu povo e age em seu cotidiano como se criasse um olhar externo,
possível de um dado momento mudar ou alterar o enredo, tanto na ficção como na
realidade.
Carmen produziu muito (alguns escritos em papel áspero de pão ou decorados
mentalmente). Lentamente, à medida que o tempo passava, a poeta criava; a mulher
que acreditava na justiça e na representação da lei descobre, atônita, uma realidade
sobre a qual não possuía nenhum poder. A cada dia, como A Halondra Herida56, sem
poder estar livre e cega por não saber o que acontecia a quem amava, percebe que
seus versos são peças testemunhas dentro da máquina do poder ditatorial.
Vale ressaltar que necessitou de mais de três décadas para que Soler e sua
obra recebessem em terra materna uma homenagem. Tal feito se fez pela memória
mantida por seus familiares e amigo, o mesmo que a conheceu e manteve vivo seu
pulsar de rimas e versos. A aproximação com Carmen ocorreu por meio do site
Guatá57, na página em que estava a publicação de Miguel Ángel Fernandez (2016).
Já no evento, em outubro de 2017, houve a homenagem dos escritores Noelia
Cuenca e Nadia Orué, que fizeram a Conferência intitulada “Carmen Soler Poética y
barricada”, com declamações de poemas da homenageada por Joel Filártiga e
Ricardo de la Vega.
Desde que iniciou seu trabalho como professora bilíngue em áreas carentes no
entorno de Assunção, escreveu seus primeiros poemas, nos quais expressava a
realidade das crianças que se sentavam nos bancos da sua sala de aula,
Sua obra, desde o princípio, vem registrada de memórias de mártires e heróis
da sua terra, de certa forma, para registrar oficialmente do seu jeito o que a linguagem
oficial dos governantes publicava.
Como quem precisava dar-lhes mais do que o alfabeto, respeitava a língua
materna, o guarani, mas também lhes apresentava o espanhol. Soler, principalmente,
escrevia para folhetins sua angústia diante da precariedade das famílias de seus
alunos e preocupação com o futuro em cada olhar.
A arte literária tem uma parcela ao transcrever acontecimentos históricos, pois
contribui com o verídico, na contemporaneidade, quase inexistente, como se existir
não fosse mais um olhar para o horizonte, bater asas e voar, em que conseguimos
simplesmente tocar de leve o viver – e tem que ser registrado; se houver solidão, o
olhar está permitido. Marilena Chauí (1998, p. 70), quando descreve que o “olhar é,
ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”, afirma que a visão
não é aquilo que se presencia no primeiro golpe de vista, mas busca ver o interior do
próprio visível.
Para a mulher e mãe Carmen, o olhar que amanhecia e não repousava no
calabouço e na solidão do aprisionamento e da violência que sofreu teve amparo na
pintura. Para Silva (2007, p. 96): “Enxergar implica discutir os termos desse olhar,
observar com ele o mundo, mas colocá-lo também em foco. Enxergar mais é estar
atento ao visível e também ao que está fora do campo, tornando-o também visível”.
Ao descortinarmos a biografia de Soler e sua herança em forma de versos
espalhados pelos países em que viveu, os amigos que teve e sua família, nos
aproximamos do que chamaríamos de “pérola de mulher”, nos remetendo à triste
experiência da traumática tortura, ressignificando essa memória com o que há de mais
verídico e delicado: a poesia e pintura.
A tradição, em contrapartida, consiste em algo basicamente histórico; ela é
conjunto de saberes, costumes e hábitos que se plasmam em valores, modos de ser
e fazer de indivíduos inscritos sob um mesmo registro real e imaginário.
“Realidaldeas y sentires”
Escribo en cualquier parte, a cualquier hora, aunque prefiero el silencio
de la noche. Pero puedo escribir en la calle, en un bar, en un calabozo
usando las baldosas como papel y granos de cal de las paredes como
lápiz. O en la cocina, dejando la comida un momento mientras anoto
una idea (comida quemada, tantas veces!). Pero cuando puedo elegir
-lujo que tuve poca veces- prefiero una habitación cerrada, con
muchos estantes, libros, cuadros, cantidad de mesas donde desplegar
mis cosas y tenerlo todo a mano. Así me concentro más fácilmente y
también me siento protegida no sé bien de qué. [...]
(…) Vivência que faz revelar vozes que nem sempre encontram
ressonância em todos os ouvidos; vozes que me curam da surdez da
palavra baseada na vista, revelando sons até então imperceptíveis. (...)
(Adriana Fiuza)
102
Neste capítulo, estudamos as obras de Maria Luisa Bombal (1910 – 1980) que,
como vimos, constituem-se em seu primeiro romance, de 1935, A última névoa, e A
amortalhada de 1938, em que retrata um ambiente digno de contos de fadas, narrado
em primeira pessoa; há também o relato de pensamentos romanceiros que cercam
limites intermitentes, nos quais a literatura busca, por meio do sentido do olhar, rastro
intenso que se apossa do que se vê em forma de escrita.
Para identificar os olhos de quem narra e conduz o enredo, ressaltamos as
inscrições do anonimato revestido de encantamento e solidão, presente na imagem
do ‘cego’, além de sua escritura repleta de metáforas, mitos, simbologia e
sensualidade feminina, relacionamento com a natureza e ideais amorosos.
Em contrapartida, percebe-se que a natureza e a morte tornam-se personagens
íntimas das mulheres belas, femininas nas ações do enredo na sociedade patriarcal
da década de 1930, ressaltando o tema morte, o gênero mulher, a sexualidade
feminina e a natureza e os mitos.
61 E até quando, com os olhos vendados passear pelo mundo inteiro tratando de me
perder por seus caminhos, com os olhos vendados me bastaria respirar fundo, só mais uma
vez, para que me encontro.
103
Deus,67 para mim, existe e tenho por ele grande respeito e medo.
Confesso- me sem me confessar. Tenho meu entendimento íntimo
com Deus. Sei que está aí e sei que me compreende. Estive muito
tempo brigada mortalmente com Deus, mas ele ganhou.
Reprovo Deus, por ser tão confuso, deve ser um castigo que vem
de muito longe e não sabemos em que consiste
As reações perante a vida,68 às vezes agradeço à vida ter-me dado
talento (sem talento, para que viver?). Sou grata pelo que me
acontece agora, por ter podido comover pessoas como vocês
(pesquisadoras, leitores); que tenha chegado a conhecê-las sem
fazer nada.
A escritora Maria Luisa foi tema de pesquisa de Juliana Figueiredo (2015), que
comenta sobre a produção literária. Sabemos que basta uma obra para tornar- se um
clássico, assim como há autores com múltiplas obras, no entanto, sem essa
característica.
Contava a Ewart, ainda, que tudo era motivo para desviá-la da tarefa de
escrever: punha música, falava por horas ao telefone, escrevia cartas – motivos que
fizeram seu marido cortar o telefone por seis meses para que, assim, ela pudesse
escrever El canciller (1954).
E, se lhe perguntavam por que escrevia, se tão custosa era a tarefa, de pronto
respondia que era a única coisa que sabia fazer. A curta produção lhe rendeu muitas
críticas. Todavia, não falta quem a defenda, explicando que a publicação não tem a
ver com produção, o que não deixa de ser verdade.
A escritora produzia, mas a finalização da produção dentro de si para que
chegasse ao formato de livro não era, como já dito, simples. Ainda sobre sua recepção
crítica, vale salientar que só após receber reconhecimento e prêmios lá fora é que
María Luisa Bombal passa a ser conhecida em “Retratos: María Luisa Bombal” (El
Mercurio, Santiago,18 fev. 1962).
A sensibilidade, em relação à névoa e tudo que ela desperta para Maria Luisa,
está fortemente associada a Santiago. Tais recordações são tão fortes que, na
narrativa, são usados todos os sentidos em uma entrega amorosa à natureza.
Por mais que algum dia nos deixaram sem nome, ou passamos como anônimos
ou estaremos mortos; ainda assim, seremos espécie.
108
73 A mulher de Felipe enfrenta meu olhar com outro cheio de cólera. Ele, um moço muito
moreno, inclina-se com muita calma, desembaraça as mechas negras e afasta do peito a
cabeça da amante. Penso na traça apertada demais que coroa sem graça minha cabeça. Vou
embora, sem ter desgrudado os lábios. Diante do espelho do meu quarto, solto meus cabelos,
meus cabelos também sombrios. Houve tempo em que eu os usava soltos, quase até tocarem
109
Além desse símbolo, a trança significa uma ligação provável entre este
mundo e o além[...] um enlace íntimo de relações correntes de
influência misturadas e interdependência dos seres.
Podem ser oposição: a trança como símbolo fechado, a mais velha
que destrói, e a barba como expansão, o mais velho que cria palavras,
aliado ao fato de que muitas culturas a suspensão do corte de barra e
o ombro. Muito lisos e colados às têmporas, brilhavam como uma seda fulgurante. Meu
penteado parecia-me então o elmo de um guerreiro que, com certeza, teria agradado ao
amante de Regina. Meu marido obrigou-me depois a prender meus cabelos extravagantes:
porque em tudo devo me esforçar para imitar sua primeira mulher, sua primeira mulher que
era para ele uma mulher perfeita. Tradução de Laura Janina Hosiasson, 2013, p. 17-18.
Original do corpo do texto em espanhol: Obra digitalizada por: Sveer Uk, Santiago de Chile,
2000, p. 5-6.
110
74 Filho de dois seres relacionados à água, o deus rio Cephisus e a ninfa Liríope, Narciso
era um menino tão lindo que as Ninfas já eram apaixonadas por ele desde pequeno. Narciso
era seu nome. Tirésias, consultado para saber se a criança teria uma longa vida, respondeu:
“Sim, desde que não se conheça”. [...] Eco o viu num dia em que ele caçava cervos tímidos.
Eco, [...] naquele tempo ela ainda era uma ninfa, e não uma simples voz. Mas, embora
tagarela, sua voz só servia para redizer, como hoje, as últimas palavras que ouve. [...] Ela viu
Narciso caçando na floresta e se apaixonou. [...] Mas ele se afasta, “prefiro morrer a te
pertencer”, disse ele. [...] As outras Ninfas que moram nas montanhas ou nas fontes também
sofreram o desprezo de Narciso. Finalmente, uma delas, [criando coragem], levantou as mãos
para o céu e praguejou, em seu desespero: “Que ele também ame, por sua vez, sem ser
amado”! [...] Perto dali havia uma fonte cuja água era pura, prateada, desconhecida dos
pastores, [...]. Foi ali que, cansado da caça e do calor do dia, Narciso foi se sentar, atraído
pela beleza, o frescor e o silêncio do lugar. Mas, enquanto saciava a sede que o devorava,
sentiu nascer outra sede, mais devoradora ainda. Seduzido por sua imagem refletida na
superfície, ele apaixonou- se por sua própria imagem. Ele confere corpo à sombra que ama:
admira-se, fica tão imóvel a olhar que parecia uma estátua de mármore de Páros. Debruçado
sobre a superfície, ele contempla seus olhos que pareciam dois astros brilhantes, seus
cabelos dignos de Apolo e de Baco, sua face matizada pelos brilhos da juventude, o seu
111
pescoço branco como mármore, a graça de sua boca, as rosas e lilases de sua tez. Ele admira
enfim a beleza que o leva a admirar. Imprudente! Ele se apaixona por si mesmo: ele é, ao
mesmo tempo, amante e objeto amado; [...] Deitado sobre a grama espessa e florida ele não
pode deixar de contemplar a imagem que o desconcerta. [...] Ele chora, a água se turva, [...]
Narciso vê sua imagem dilacerada. [...] E, como a cera que derrete com uma leve chama ou
o orvalho que se dissipa aos primeiros raios do astro do dia, assim, queimando com uma
chama secreta, o infortunado consuma-se e morre. [... Já se havia preparado a fogueira, as
tochas, a cova; mas o corpo de Narciso havia desaparecido; e no seu lugar as Ninfas só
encontraram uma flor de ouro, coroada de alvas folhas. (OVÍDIO, Metamorfoses, III, 340-510).
75 Regina atravessa de novo o salão para se sentar outra vez junto ao piano. Ao passar,
sorri para o amante, que envolve de desejo cada um de seus passos.
É como se tivessem posto fogo dentro de minhas veias. Vou para o jardim, fujo.
Interno-me na bruma e de repente um raio de sol se ilumina de viés, emprestando uma
dourada claridade de gruta ao bosque em que me encontro; vasculha a tera e dela desprende
aromas profundos e molhados.
Acomete-me uma estranha languidez. Fecho os olhos e abandono-me contra uma
árvore. Oh, lançar os braços em volta de um corpo ardente e rodar com ele, enlaçada, por
uma ladeira sem fim…! Sinto-me desfalecer e em vão sacudo a cabeça para dissipar o torpor
que se apodera de mim.
Então tiro as roupas, todas, até que minha pele se tinge do mesmo resplendor que
paira entre as árvores. E assim, nua e dourada, mergulho no açude.
112
Não sabia que eu era tão branca e bonita. A água alonga minhas formas, que adquirem
proporções irreais. Nunca me atrevi a olhar meus seios; agora os observo. Pequenos e
redondos, parecem diminutas corolas suspensas sobre a água.
Vou me afundando até os joelhos numa espessa areia de veludo. Mornas correntes
acariciam-me e penetram-me. Como braços de seda, as plantas aquáticas enlaçam meu torso
com suas longas raízes. Beija minha nuca até minha fronte o hálito fresco da água. (BOMBAL,
2013, p.
20) Tradução de Laura Janina Hosiasson. Original do corpo do texto em espanhol:
Obra digitalizada por: Sveer Uk, Santiago de Chile, 2000.
113
76 Quase sem me tocar, solta meu cabelo e começa a tirar meu vestido. Submeto-me a
seu desejo calada e com o coração palpitante. Uma secreta apreensão me estremece quando
minhas roupas refreiam a impaciência de seus dedos. Ardo em desejos de que seu olhar me
descubra o quanto antes. A beleza de meu corpo anseia, por fim, o seu quinhão de
homenagem.
Uma vez nua, permaneço sentada à beira da cama. Ele se afasta e me contempla.
Sob seu olha atento, jogo a cabeça para trás e esse gesto me enche de um íntimo bem-estar.
Juto os braços atrás da nuca, tranço e destranço as pernas e cada movimento traz consigo
um prazer intenso e completo como se, por fim, seus braços, meu colo, minhas pernas
encontrassem uma razão de ser. Ainda que este prazer fosse a única finalidade do amor, me
sentiria já bem recompensada.
Aproxima-se; minha cabeça fica à altura de seu peito, que ele me oferece sorridente,
aperto contra ele meus lábios e logo encosto a testa, o rosto. Sua carne cheira a fruta, a
vegetal. Num novo impulso, jogo os braços ao redor de seu torso e atraio, mais uma vez, seu
peito contra minha face.
Abraço-o com força e ouço com todos os meus sentidos. Ouço nascer, voar e recair
sua respiração, escuto a explosão que seu coração repete incansável no centro do peito e
que repercute nas entranhas e se espalha em ondas pelo corpo todo, transformando cada
célula num eco sonoro. Aperto-o, aperto sempre com maior afã: sinto correr o sangue em
suas veias e sinto trepidar a força que se esconde inativa em seus músculos, sinto agitar-se
a borbulha de um suspiro. Entre meus braços, toda uma vida física, com sua fragilidade e
mistério, fervilha e se precipita. Começo a tremer.
Então ele se debruça sobre mim e rolamos enlaçados para o centro da cama. Seu
corpo me cobre como uma grande onda fervente, me acarícia, me queima, me penetra, me
envolve, me arrasta desfalecida. À minha garganta sobe algo assim como um soluço, e não
sei por que começo a me queixar, são sei por que é doce me queixar, é doce para o meu
corpo o cansaço infligido pela preciosa carga que pesa sobre minhas coxas. (Maria Luisa
Bombal, A última névoa, 1935, p.29-31) (Tradução: HOSIASSON, 2013 P 29-31) (Espanhol:
p. 12-13)
114
77 A tela apresenta o rapaz e toda a sua atenção voltada para o olhar refletido no espelho
d’água e sua posição virada para o reflexo de sua imagem. A composição e a maestria da
pintura é a mistura entre claro e escuro destaca duas etapas: o rosto de Narciso olhando seu
reflexo está claro, iluminado, visível e as mãos sustentam o corpo que permite a
autocontemplação.
78 https://www.youtube.com/watch?v=peR3MzJnxOQ
79 Escolhemos a pintura por associar mais facilmente a expressão do olhar no conceito
do olhar diante do espelho, considerando que a tela é a releitura em forma de pintura do mito
original.
115
feminina revisitada do mito de Narciso, por meio da ficção e da arte da escrita de Maria
Luisa Bombal, o que vai além da ação narcisista original.
A construção social por meio do olhar necessita do voltar-se para si, escrutinar-
se, recortar-se para colar-se, interiorizado e exteriorizado, mais pleno, forte e próximo
à natureza. Concluímos o desejo não realizado – quem sabe – que enviou ao espelho
d’água, a plenitude e encantamento por si mesmo: o reflexo de Narciso na água. A luz
que ilumina seu rosto, a sombra que seu corpo reflete na água e remete em si, assim
como o escurecido, nos evidenciam a sensação maior do Realismo na técnica de
Caravaggio e sua tela.
A última névoa de Maria Luisa Bombal (1935), tirando toda a primazia da autora
no romance de estreia, aos olhos da razão e das leis dos homens – mais dos homens
do que das mulheres – é a narrativa da contradição da imagem da mulher do contexto
de 1930; é a história de uma personagem narradora anônima, que perambula na noite
de névoa, conhece um homem e se envolve física e emocionalmente.
Quem sabe, para Maria Luisa, aí está a grande explicação do misterioso
anonimato da protagonista. Quem erra, não quer ser descoberto; quem não assina o
nome, não quer assumir o que escreveu, ou seja, legalmente e judicialmente falando,
fazer algo anônimo, que não repercute para o bem, ou é desonesto com o outro, ou
116
com quem se ama; pior, se casa, é crime, repetimos, no contexto de época de 1930.
Os modos c o m o s q u a i s o marido Daniel a trata e os curtos diálogos deixam
transparecer a relação entre o casal de personagens.
Essa diferença mostra e confirma a qualidade da veia autoral de Maria Luisa,
pois, por mais que as ações de infelicidade, depressão, angústia e o desamor por
parte do marido e sua família tenham levado a autora a se encontrar, se apaixonar e
amar perdidamente, fora do laço matrimonial, a autoria foi corajosamente assumida,
deixando o romance em sua capa assinado pela escritora, o que revolucionou a escrita
de autoria feminina.
5.2 A AMOR-TALHADA
- Não se mova. Que silêncio! Parece cristal. Em tardes assim tenho até medo
de piscar. Quem vai saber onde findam os gestos? Talvez, se eu levantar a
mão, provoque em outros mundos o estilhaçamento de uma estrela!
Sim, eu admirava e te compreendia.
(Maria Luisa Bombal – A Amortalhada)
80 Mortalha: 'Vestidura em que se envolve o cadáver que vai ser sepultado', como consta
na Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, vol. 17, p. 916.
117
da heroína Ismália, o autor usa a lírica como um estilo musical em tom de balada,
descrevendo a loucura de quem conhece o amor onde a loucura, a solidão e a morte
se interpenetram, em um duelo contraditório entre o amor, a vida e a natureza.
Ismália
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
Alphonsus de Guimaraens
Tal desvario por amor pode até ser aceitado, no entanto, a divisão entre a força
selvagem do mar e toda a imensidão de um céu, que oferece à Ismália a lua, foi capaz
de lhe dar como – mortalha – asas, permitindo à heroína também se dissociar de si,
ficando bipartida, em mar e céu, corpo e alma, vida e morte. O querer utópico da jovem
da torre, apesar de aprisionada emocionalmente, a faz cantar até que - “Viu uma lua
no céu/ Viu uma lua no mar...”
O ato de ver, a paixão em ver e admirar, permite que ela ame tanto o real como
o reflexo, o brilho tornando-a narcisista ambígua. Tal fascínio faz com que não apenas
veja e admire, mas sim, queira. E quis de tal forma, com tamanha intensidade, que se
entregou corajosamente para as duas amadas lua(s). Certamente, Alphonsus de
Guimarães mergulhou seu olhar nas entrelinhas do poema, deixando o suicídio mais
discreto, em forma de versos. Se compararmos Ismália com Ana Maria, a mortalha
118
81 Edição que utilizamos para as traduções dos trechos aqui usados em espanhol para o
português.
119
83 De madrugada a chuva cessa. Uma nesga de luz recorta a moldura das janelas. Nos
altos candelabros a chama dos círios se abisma trêmula num coágulo de cera. Alguém dorme,
a cabeça caída sobre o ombro, e pendem imóveis os dedicados rosários,
Apesar disso, e longe, muito longe, ascende um rumor cadenciado.
Somente ela o percebe e adivinha os estalos de cascos de cavalo, o estalar de oito
cascos de cavalos que vêm ecoando.
Que ecoam, ora leves e esponjosos, ora rijos e próximos, de repente desiguais,
apagados, como se os dispersasse o vento. Que se emparelham, avançam, não param de
avançar como se, acreditar-se ia, nunca fossem chegar a seu destino.
Um estrépito de rodas encobre por fim o galope dos cavalos. Sóe então todos
despertam, todos se agitam de uma vez. Ela os ouve soltar o complicado ferrolho e as duas
barras da porta de entrada no outro extemo da casa. (Tradução BERNARDINI/DEL PARDO,
São Paulo, Sp. 1986, p. 4
84 Remete à costumeira brincadeira infantil, em que precisamos atentar os olhos e os
ouvidos para quem comanda o jogo de criança, ditado por uma voz: - Vivo! Morto! … -
MORTO! VIVO!
122
O tecido da rememoração não é um reflexo dos fatos, da vida como ela de fato
aconteceu, mas do jogo das semelhanças que se efetiva para além do que a nossa
consciência apreende: a semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e
com que nos confrontamos em estado de vigília é apenas um reflexo impreciso da
semelhança mais profunda, que reina no mundo dos sonhos, em que os
acontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente
semelhantes entre si (BENJAMIN, 1993b).
Na novela chilena, observa-se uma mistura de vozes narrativas: a do narrador
em 3ª pessoa, a da amortalhada (Ana Maria) e de outros personagens (vivos); Ana
Maria e seu olhar silencioso e morto, que revê sua vida em forma de escolhas, fatos
naturais, decepções, as escolhas dos outros, analisando a sociedade.
123
[...] hay una mujer que está contemplando a la amortajada y siente compasión
por lo que a la pobrecita le ocurrió en vida y que sólo llega a comprender en la muerte”
(BOMBAL, 2010, p. 27).
Portanto, o narrador é produto da relação “mulher que contempla” e Ana Maria,
de modo que a narrativa se alterna continuamente entre 1ª e 3ª pessoa e é tão leve a
distinção dessas vozes que algumas vezes é difícil determinar a identidade daquela
que nos fala. Para José Promis, os narradores bombaleanos são:
85
[...] há uma mulher que está contemplando a amortalhada e sente compaixão pelo que ocorreu
em vida à pobrezinha e que só chega a compreender na morte” (tradução FIGUEIREDO).
86 “Testemunhas que ao aproximar seu tempo e espaço ao tempo e espaço das
personagens fazem com que a presença de sua voz transcorra quase inadvertida na
percepção do destinatário [...] somente nas últimas linhas do discurso de A amortalhada, o
narrador básico se faz notar sua presença de forma solene que projeta a história ao âmbito
do sagrado” (tradução nossa).
124
O livro foi redesenhado por Borges. Segundo ele, Maria Luisa teria
escrito uma história “impossível”. O relato de uma morta que vê e sente
o fluxo de pensamentos da família, dos homens-chave de sua vida, e
questiona sua formação religiosa.
A morte é um espaço privilegiado para introduzir um mundo possível”,
segundo as ideias desenvolvidas por Umberto Eco. O “mundo
possível” sugere que a construção “tome emprestado ao mundo real
indivíduos e propriedades”; istó é, as personagens que visitam a morta
reafirma a sua existência real. Eis o modo de ser do romance.
Fernando, o amante que não conseguiu ser amado, tornando-se só
um confidente, reflete sobre o amor que aceita a humilhação. Também
Ana Maria sentira-se humilhada pelo amor dele. Cria-se uma ponte
sutil entre a realidade e a irrealidade. Assim, o leitor pode aceitar o
espaço da morte, já que Ana Maria projeta o passado no presente e
neste presente estão os seres vivos que reconstroem o “mundo
possível” da personagem.
Há duplicidade entre o narrador que participa do enredo (que se intui, mas não
sabemos quem é) e a narradora onisciente, que se torna o diferencial de La Última
Niebla, em que a narração é da protagonista anônima. Essa diferença mostra e
confirma a qualidade da veia autoral de Maria Luisa. Para Walter Benjamin (1999, p.
34):
O(a) Narrador(a), aos olhos de um leitor analítico, percebe que tal narrador
conhece Ana Maria. Aproximando seu olhar perto de reminiscência ou até mesmo no
virar das páginas, a aproximação dessa narração da bela amortalhada,
desencadeando passo a passo a experiência sensitiva entre olhar e memória,
memória e olhar e o ‘agora’, desperta a memória pelo tema denso, enigmático da
morte. Mesmo que esse agora seja a morte. “Me acerco y miro, por primera vez, la
cara de um morto”.
Para uma garota de oito anos, ver o pai morto foi como se o interruptor mágico
da alegria fosse tocado e desligado. E sente frio… E depois: sente mais frio ainda…
O frio da perda, o desligar da alegria, o mobilizar, o querer criar penas e asas (sonho
de Ìcaro), desaparecer… Entretanto, o que lê são reminiscências do que se foi. Essa
aproximação da morte como relato do que viveu causa no ato de ler a função social
que a escrita desempenha na construção do leitor: o envolver-se intensamente com o
que se está lendo - no caso, a morte é tema jamais experimentado ou narrado como
experiência, fato, causa e efeito.
89 E é assim que se vê, imóvel, estendida de costas no amplo leito revestido agora de
lençóis bordados, perfumados de alfazema – lençóis que sempre são trancados à chave - e
se vê envolta naquela bata de cetim branco que a deixava tão frágil.
Vislumbra suas mãos levemente cruzadas sobre o peito, apertando um crucifixo; mãos
que adquiriram a delicadeza frívola de duas pombas tranquilas.
Já não a incomoda sob a nuca a densa mata de cabelos que durante sua doença ia
se tornando cada vez mais úmida e mais pesada.
Afinal conseguiram desembaraçá-lo, alisá-los e reparti-los sobre a testa. É verdade
que não tiveram o cuidado de prendê-los.
Porém ela não ignora que o volume sombrio de uma cabeleira solta confere a toda
mulher deitada e adormecida um toque de mistério, um perturbador encanto.
E imediatamente se sente sem rugas, pálida e bela como nunca (A Amortalhada, 1986,
p. 2; Tradução BERDINANDI; DEL PRADO, 1986, p. 1-2).
130
A aproximação carnal e a atração física entre Ana e Ricardo são narradas pela
personagem feminina, mesmo tendo Maria Luisa a opção de substituir o narrador.
Repetimos, novamente, que a característica corajosa da autora na narrativa de suas
personagens femininas, anônima ou não, na década de 1930, é o marco
revolucionário para a mulher na literatura.
92 Já estava resignada aos piores maus tratos e às brincadeiras mais cruéis, conforme
seu capricho do momento, quando reparei que você dormia. Você dormia e eu, com inaudita
coragem, deitei-me a seu lado, na palha, enquanto os bois, guiados por Aníbal, o peão,
prosseguiam vagarosos por um caminho para mim desconhecido.
Logo ficou para trás o arquejo rasgado da debulhadora, logo o zunido estridente das
cigarras cobriu o rangido das pesadas rodas da carroça.
Deitada a seu lado, continha a respiração para que minha presença fosse leve. Você
dormia e eu o olhava presa de uma intensa emoção, quase duvidando do que viam meus
olhos: nosso cruel tirano jazia indefeso ao meu lado!
Aninhado e desarmado pelo sono, você me pareceu de repente infinitamente frágil.
Terá sido assim? Na verdade, não me animou o menor desejo de vingança.
Você se virou suspirando e, por entre a palha, um de seus pés nus veio a se enredas
aos
meus.
E eu não soube como o abandono daquele gesto pôde despertar tanta ternura em
mim, nem
porque foi tão doce o tenro contato de sua pele.
133
La invade una inmensa alegria, que puedan admiraria así, los que ya
no la recordaban sino devorada por fútiles inquietudes, marchita por
algunas penas y el aire cortante de la hacienda.
Mora que la saben muerta, allí están rodeándola todos.
Está su hija, aquela muchacha dorada y elástica, orgullosa de sus
veiaste anos, que sonreía burlona cuando su madre pretendia,
mientras le ensefiaba viejos retratos, que también ella había sido
elegante y graciosa. Están sus hijos, que parecían no querer
reconocerle ya ningún derecho a vivir, sus hijos, a quienes
impacientaban sus caprichos, a quienes avergonzaba sorprenderla
corrigindo por el jardfn asoleado; sus hijos ariscos al menor cumplido,
aunque secretamente halagados mandos sus jóvenes camaradas
fingían tomaria par una hermana mayor.
Están algunos amigos, viejos amigos que parecían haber olvidado que
un dia fué esbelta y feliz.
Saboreando su pueril vanidad, largamente permanece rígida, sumisa
a todas las miradas, como desnuda a fuerza de irresistência.
(BOMBAL, 1938, p. 07).93
93 Invade-a uma imensa alegria de que possam admirá-la assim aqueles que só se
recordavam dela como de alguém devorada por inquietações levianas, encarquilhando em
pequenos cuidados, no ar cortante da fazenda.
Agora que a sabem morta, estão todos ali, juntos à sua volta.
Ali está sua filha, aquela jovem dourada e elástica, orgulhosa de seus vinte anos, que
sorria zombeteira quando sua mão, ao mostra-lhe velhos retratos, pretendia também ter sido
elegante e graciosa. Estão seus filhos, que pareciam não querer reconhecer-lhe já nenhum
direito à vida; seus filhos, a quem incomodavam caprichos dela e envergonhavam-se de
surpreendê-la no jardim ao sol; filhos ariscos ao menor carinho, mesmo que secretamente
lisonjeados quando seus jovens amigos fingiam tomá-la por uma irmã mais velha.
Estão também alguns amigos, velhos amigos que pareciam haver esquecido que um
dia ela foi esbelta e feliz.
Saboreando essa sua vaidade infantil, permanece por muito tempo rígida, submissa a
todos os olhares como que desnudada de tanto não resistir.
134
saber o que aconteceu - como, onde, com quem. A memória, nessa situação, age
como um martelo mental.
No princípio,
Via-me pelos OLHOS De Deus,
Que eu não via.
Passei a ver-me
Depois,
Pelos OLHOS
Daqueles Que de mim
Se distinguiam.
Agora,
Vejo-me nos OLHOS
De um Espelho
-Uma Imagem
Que comigo se identifica,
Mas que Não-Sou-Eu!
escrever. Esperar pela tal “maturidade” poderia ser apenas uma forma de
desacreditar na inspiração artística do que produziam. Uma breve olhada na história
da literatura confirma: estantes inteiras de obras foram criadas por autores em seus
“vinte e poucos anos”. Ou até menos. O exemplo emblemático é o do francês
Rimbaud. Seus textos mentais definiram novos rumos na poesia moderna, saíram de
sua pena entre os 15 e os 21 anos. A partir dessa idade, ele achou que já não tinha
mais nada a dizer, largou os livros e foi vender armas na África.
A escritora Carmen Soler, bem como Maria Luisa Bombal, entra nesta lista.
No caso desta pesquisa, as obras aqui estudadas, Poemas (SOLER, 1970), por
proibição da ditadura não foi publicada na íntegra, mas os primeiros poemas
ganharam publicações de revistas, na Argentina de 1947, quando a jovem paraguaia
tinha apenas 23 anos. Já Maria Luisa, publicou A última névoa em 1935, aos 25 anos.
Carmen Soler produziu uma vasta obra, não apenas lírica, mas também nas
Artes Plásticas. Aprendeu a gravar na memória o que viu, ouviu e viveu, sendo
impossível escrever ou pintar na prisão. Rememorava cada fato e reproduzia. As
emoções que aparecem em suas pinturas despertam não apenas a visão, mas
deixam ali seu olhar para o tempo passando; o som da palavra não dita das mulheres
oprimidas, a covardia do verdugo e a tristeza de não estar livre. Como declara:
O olhar ocupa cada vez mais o apelo visual, seja em telas que capturamos,
salvamos, editamos, postamos (somos o oposto da história, o que era para eternizar,
o aplicativo eterniza o efêmero em trinta segundos), estamos a olhar, por ele a
sensibilidade por meio das imagens com a função de executor na cultura
contemporânea; mas antes de toda tecnologia de celulares, tablets e até máquina
fotográfica, ainda assim, é preciso haver o olhar e sua ferramenta, as mãos. Vivemos
sob o impacto da proliferação de olhares, produzidos e sustentados pelas redes
midiáticas, de imprensa, cinema, publicidade e televisão, além dos olhares, da rotina
real.
Não há como elaborar este ensaio sem tratar da literatura, sem levar em conta
a essência do olhar. É essa relação conflitante, querendo que os olhos vejam para o
coração sentir, o foco de compreensão para a produção de sentido no que se olha;
dessa forma, abordaremos o olhar para os papéis de Maria e Carmen, em que a morte
é o momento de início, a partir do qual vem à tona a vida dessas pessoas. Suicídio,
sentimento, abandono, romance e fatos que se confundem com o ter consciência da
morte e da vida.
Tanto no romance quanto nos poemas, há o melancólico, sentimental, profundo
e metafórico, com a vitalidade desfalecida das mulheres sob o olhar por meio de
extensas escavações "psíquico arqueológicas" nas ruínas do mundo subterrâneo
feminino, real ou fictício. Neste espaço, que denominamos Dossiês, os autorretratos
chegarão ao leitor como quem recebe os álbuns de retratos de Carmen e Maria Luisa.
Cada documento terá fragmentos textuais literários, de letras de músicas, filmes com
o tema olhar e pontos que nos chamam a atenção, para destacar que, em tais
análises, seria impossível o não envolvimento do fotógrafo, com seu olhar diferenciado
sobre as coisas e um modo especial de pretender salvá-las da morte, ilustrando com
os retratos e inscrevendo-as no interior de um tempo surpreendido, quando viverão
enquanto durarem as superfícies dos materiais em que são fixadas.
141
Esse retrato, que possui ao fundo o mar aberto, banha-nos de memórias, uma
vez que não é apenas a areia que a eterniza, nem o som que parece que ouvimos, as
ondas que se aproximam da praia como um lençol natural a cobrir o corpo da pose
adormecida de Carmen, mas também toda a imensidão da sensualidade, o braço que
cochila embaixo da cintura, as coxas que adormecem a barra molhada do vestido.
Também, não é o corpo apenas de Carmen que adormece, e sim, a simplicidade de
quem correu, brincou, se molhou, sorriu, tomou sol, conversou, além da dona do
vestido de gola em decote V. Provavelmente, ela foi a que ajeitou a calça, dobrou
passando carinhosamente as mãos, os dedos, a reforçar o friso e o pousar em cima
da maleta, o ajeitar do chinelo para o esticar do corpo e o afundar dos pés na areia.
O quanto diz esse retrato? Ali está a mulher por três vezes aprisionada. A irmã
de Miguel, a amada de Casablanca, a mãe de Matena, porém, antes de tudo, está a
menina na praia, a paraguaia adormecida no mormaço da areia a descansar.
Os brinquedos, quem os usou - o que há na pasta – qual a intensidade do vento,
o conteúdo da pasta, o cheiro do paletó que recebeu o corpo esguio e toda sua beleza
entregue ao olhar do fotógrafo.
As lembranças de estar nesse espaço são uma manifestação de cada um, o
querer, o sentir desejo de afundar os pés inchados de cansaço na fina, carinhosa e
profunda areia da praia; são extratos históricos ao contemplar o retrato. Por meio do
olhar do fotógrafo, capturamos a reminiscência. São capazes de desvelar, criticar e
transformar fatos político-sociais que implicam o modo de ser e de viver dos sujeitos
sociais.
Retrato
Cecília Meireles
Chico Buarque
147
À luz de uma tarde de inverno, Carmen, com braço dado a Casabianca, observa
ao ar livre alguém ou algo; pela posição, parados, sugere-se que o casal ouve alguém,
lembrando a posição cerimonial de um casamento, batizado ou algo público. Olham
na mesma direção, porém, ele está sério, a segurar no outro braço jornais; ela, sorri
meigamente. O tom das roupas contrasta com a luz da tarde. O olhar do fotógrafo
observa o perfil e capta o exato momento do sorriso de Carmen, fazendo assim parte
da cerimônia e eternizando o casal.
Para o admirador e estudioso sobre O olhar, Acir dias da Silva, em tempos em
que o olhar insere o contexto virtual ao seu respirar, pois:
O olhar de Maria Luisa também atrai luzes, foco e chama a reprodução do seu
rosto. De uma beleza e expressividade que deixou assim registrada, a imagem que
escolhemos como marca do olhar tem muito sobre este estudo.
Maria Luisa, nessa luz, parou seu caminhar agitado, os fios da luz pousaram
nela e ela na luz, o foco a segurou, lábios entreabertos, camisa preta.
Teu olho preto, clara imagem, estranho nariz, pra ser mais lógico nariz
cor de maçã (...) E aqui o ônibus da memória cheio de palavras, cores
e sabores segue partindo. Nele misturo planos de ver o movimento
que vem dos lados para o centro e do centro para os lados. (SILVA,
1999, p. 13).
148
O olhar de Maria Luisa também atrai luzes, foco e chama a reprodução do seu
rosto. De uma beleza e expressividade que deixou assim registrada, a imagem que
escolhemos como marca do olhar tem muito sobre este estudo.
Maria Luisa, nessa luz, parou seu caminhar agitado, os fios da luz pousaram
nela e ela na luz, o foco a segurou, lábios entreabertos, camisa preta.
149
(Florbela Espanca)
150
paralelo com os teóricos que nos acompanharam nessa viagem, em lua de mel tão
prazerosa, nutrindo visões para a imaginação, fôlego, respiração e vida durante sua
produção.
A lírica, aqui, compartilha dessa embarcação em uma viagem que só os
corajosos têm, por ser difícil, tensa, verdadeira, intensa, original e muito solitária. Sem
roteiros, sem rumos, sem voo, sem direção, tempo de estadia, sem eira nem beira,
podendo ser sem volta, e pior, com La Técnica98 em seu rastro. Mas, embarcamos no
mesmo vagão silenciosa e solitariamente, porém, com a amiga fiel e companheira ‘A
Escrita’ e toda a extensão de um caderno de poesias.
Para esta pesquisa, entre a lírica e a narrativa, encontramos afinidades e
também distâncias, porém, nossas protagonistas têm amor por sua arte, pela língua
de seu país e defendem a expressão da imagem da mulher, como artista, criadora de
literatura e participante social com o envolvimento da arte da escrita, o que as coloca
olho no olho ao declararem seu amor pela escrita.
A metodologia foi organizada pela parte teórica e prática. A teórica seria o
desenhar, moldurar e dar corpo a essa viagem escrita. A prática seria a produção do
material externo. Devido à necessidade e contando com a preocupação com a
quantidade de laudas, que requer academicamente as normas da ABNT, criamos o
“Dossiê Carmen Soler, Confidencial” e o vídeo “Penas Encimadas”. Na fase de
qualificação, elaboramos o Dossiê Bomba(L) e, finalmente, o vídeo Gif’s Bomba(L),
além da logomarca do projeto. A maior dificuldade foi a criação do vídeo com Gif”s e
a logomarca do olhar, ficando inviável, em virtude dos retratos de Soler unirem-se com
o de Maria Luisa, o que seria representante do significado da Dissertação o olhar
jovem da chilena.
tivemos que usar no final das Gif’s, para registrar os créditos e/ou direitos autorais das
imagens. Para não quebrar o gênero suporte Gifs, tivemos que optar por inserir o
índice de imagens como o QRCode, respeitando a lei do direito autoral, bem como as
características das Gif”s.
Esse encontro com os objetos analisados vislumbrou durante meses as
possibilidades que avistávamos lá adiante e também as que teríamos que deixar no
caminho, porém, sem esquecermos de deixar que vimos, olhamos, revimos,
compreendemos e registramos. Por isso, a evolução e a necessidade de utilizarmos
e exaurirmos outros suportes, levando até ao destino esse olhar nosso para o advir,
ficando como parte externa (mesmo assim, registrado nos Anexos): “Dossiê Carmen
Soler – Confidencial99”; “vídeo Confidencial Carmen Soler, com musicalização de José
Flores Assuncion (Guarãnia Penas Encimadas); Dossiê Bomba(L); vídeo Gif’s
Bomba(L), como forma de tornar verídico, por meio da leitura, o encontro como na
citação: “O real só é uma das mais transitórias e menos reconhecíveis faces da
realidade infinita, pois o real iguala-se à matéria e apodrece com ela” (ARTAUD, 1985,
p. 11).
As teorias e conceitos presentes em O Olhar de Adauto Novaes foram nosso
passaporte, sendo que, juntamente a outros pressupostos teóricos, avançamos rumo
a particularidades de cada rima, cada ação, conflito da anônima, cada lapso pela vida
ou pela morte de Ana Maria, eu lírico e protagonistas, narradora sem nome, narradora
com nome, porém, morta, às vezes, nos deixava pistas do trajeto, apresentando-nos
a mão e instigando a visão de pôr onde deveríamos seguir. Era tamanho o quebra-
cabeça que necessitávamos de teóricos de variadas áreas do conhecimento até
percebermos que o olhar que está nessas linhas também é o olhar de tantos que
ousaram estudá-lo.
99 Tanto a palavra confidencial como o material utilizado, folha de papel couche fosco,
com resquícios que lembra envelhecido, as cores, o formato, a disposição das imagens e a
elaboração do texto, foram todos feitos para focar a ideia de investigação militar da ditadura;
a capa como papel grafty marrom também, mais o encadernamento como pinos de albúm de
fotografia.
154
sim, admirá-las como quem contempla e respira com o coração batendo forte em um
primeiro encontro.
O casal amoroso que trilha essa viagem da janela do trem está com a bolsa
cheia de planos para partir em forma de capítulos, subcapítulos, imagens e múltiplas
imagens. Tais olhares sensibilizam, sem saber a razão; a intuição entra em cena e a
coragem toma posse a desvendar cada texto primeiro, juntando com o segundo,
terceiro e assim por diante. Logo, temos um texto, capítulo, obra, biblioteca de olhares
e assim a pessoa já faz parte do nosso olhar.
As formas por nós encontradas para transpassar esses olhares para este
Mestrado aparentemente pareciam fáceis, mas é mais complexo do que compreender
toda a estrutura ótica do olho e os motivos pelos quais ele tanto se aproxima da
literatura, por quê? Para quê?
Os fragmentos inseridos nesta dissertação entre os capítulos são separados
por uma citação e o olhar logomarca d’água não faz necessariamente referência ao
que está no capítulo, mas sim, aos temas trabalhados em todo processo desenvolvido
até estas últimas análises das considerações finais.
O olhar e a literatura se uniram de tal forma que apenas dissertar parecia pouco,
havendo a necessidade, a primeiro momento, de apresentarmos dignamente Carmen
Soler - seu olhar precisava de rosto, expressões, corpo, formas, curvas e
principalmente voz... e ganhou… em forma de música, o poema “Penas encimadas”,
cantada; a poetisa foi apresentada em vídeo, graciosamente, se escondendo por trás
do olhar código de um QR Code, em que o leitor, para chegar até a bela e jovem
paraguaia, tem que cruzar a ponte da tecnologia e abrir com outro olhar a arte da
fotografia e do vídeoclipe intitulado “Dossiê Carmen Soler – Confidencial”.
Tal documento foi elaborado exclusivamente para apresentarmos as fotografias
da autora, diferentemente do vídeo, impresso em papel, que imita documentos de
investigação da ditadura. No entanto, o olhar é de libertação e de uma meiguice
próxima à feminilidade rara que não encontramos na corajosa e forte mulher que nos
deixou os poemas.
Posteriormente, produzimos o Dossiê Bomba(L) para mantermos o padrão a
ambas. Tal produção é de certa forma escrita visual do olhar e o trajeto que leva ao
casal O Olhar e a Literatura, que viajam ao nosso lado por essa cidade de papel, onde
habitam olhos raros. A coletânea e o estilo de formatação de cada uma são
personalizados com sua arte, história, amigos e famliares. O primeiro a nascer e
157
ganhar vida pelos primeiros leitores foi o “Dossiê Carmen Soler – Confidencial” e o
“Videoclipe de Carmen Soler”; depois, o “Dossiê de Maria Luisa” e, por último, “Gif”s
de Bomba(L) Biográfica”, revelando a escritora em diversos retratos, charges,
caricaturas e remakes recentes, incluindo, ainda, pinturas, tendo como legenda, em
cada Gif, texto misto com a arte da escritora e sua tão bombástica vida.
Neste estudo, entre os capítulos, há fragmentos de citações sobre o tema olhar,
literatura e imagens, não fazendo necessariamente referência ao assunto tratado nos
textos, e sim, associado ao projeto dissertativo. Elas são anotações visuais sobre essa
viagem que fizemos, com sua arquitetura férrea, temperatura amena, noites com
névoa e habitantes que fazem a brasa sofrer, o amor cegar, a morta olhar, os cabelos
dizer, a cotovia libertar e todos adormecerem ao fechar deste trabalho.
Todavia, essas considerações são importantes para esclarecermos que nem
tudo que olhamos, vimos e sentimos foi sanado nestas poucas páginas. Há,
certamente, outros olhares, portanto, não é nosso olhar final. Há a casa, os suicídios,
as imagens das mulheres nas obras; há ainda o olhar que ninguém ofereceu para
Maria Luisa, a sua cegueira por amor, o seu amor cego, o cego que a amou…
O dissertar é de valor e relevância, a exemplo da proposta O olhar e a
Literatura, bem como tantos outros a perseguir também o olhar do leitor, diante das
ações, memória, símbolo, mitos, religião e traumas do tema foco, como em Maria
Luisa, a morte. Ainda, entre o leitor e a arte literária de Bombal, entre a vida e o que
virá depois, entre outros.
O olhar de que fala esta pesquisa decorre da duplicidade entre o que vemos e
de como vemos, do ambíguo dentro de cada um e que poderia ser considerado como
uma clássica distinção – pois também podemos escolher como nos veem ou o que
queremos mostrar – o visível e o invisível. Temas subjetivos e objetivos presentes em
várias religiões e filosofias, entre os olhos e a expressão facial, entre o corpo e o
espírito, temas com base na filosofia e religião – dilema de outrora.
O leitor que intenta escrever é como folhas em branco, o ‘útero da escrita’ antes
do nascer; o olhar lê, as mãos tremem formigamentos e assentam nas letras o gozo
prazeroso da ideia. Depois, vem a dor do parto em fases de introdução,
desenvolvimento, considerações, referências. Cada filho é a palavra que se traça pelo
acompanhamento do olhar e das mãos, deixando os olhos nus, entregues e
extasiados. Pronto, após se encontrar com a leitura, está lá novamente se devorando,
gritando na criação que não satisfaz e lhe engravida.
158
O destino das palavras, dos capítulos dos livros? Impossível descrever seu
primeiro olhar, as digitais das mãos que as gestaram? Fizeram-nas nascer para o
mundo de outros olhos. Estão fechadas em estantes que pousam os livros, aguardam
com cada volta de suas letras estraçalhadas, em meio a pontos e vírgulas solitárias,
exauridas, desanimadas, fraturadas, caídas no chão da folha em branco; deitam seus
traços, cortes, pingos, suas voltas pálidas não se satisfazem em apenas esperar e
viver.
Não chega a morte para arder a celulose que as seguram. Antes, porém, que
venha a luz do olhar/leitor para enxergá-las. Se isso não acontecer, se este antídoto
não for usado, o tempo humano entorpecerá a calma do inspira/expira, inspira/expira
da tinta vazada no ventre folha da escrita gestada para nascer como literatura.
O olhar está condenado a não transpassar por meio das mãos, da escrita, da
formulação da arte do escrever, riscando a pele da folha para as palavras… essas
serão inexistentes e fracassadas? O silêncio gesta a ideia, inspirada pelo olhar e seus
amigos, ouvido, arrepio safado chamado tato, o guloso paladar e o curioso olfato.
Estamos condenados a escrever riscando a pele das palavras em cruéis e
incontroláveis fracassos? Se não as lerem. Mesmo assim, a palavra, se escrita, é a
certeza de que ela vive.
Entretanto, a literatura não diz nada se não tiver quem a leia. A arte da escrita
cumpre seu papel como produção de objeto de arte. Porém, seu papel social humano
só será pleno e realizado se tiver quem leia. Ainda que se editem e publiquem,
edifiquem infindáveis bibliotecas aos milhares de folhas úteros, palavras em papéis
cujos olhos ressequidos se dedicaram à sua produção, na qual seus autores já em
vozes in memoriam se tornaram cinzas; ainda que o olhar escreva na praia, na pedra
ou em enciclopédias, blogs e sites, nos quais as mãos adquirem lesões e amanheçam
diante de teclados e se afundem até os confins da literatura. Não se fala em letras
escritas; a palavra olha!
O silêncio não pode ser escrito, o olhar não pode ser escrito, o fim de um som
que não existe mais como de um pássaro extinto no silêncio; seu som ainda preso na
lembrança de quem o ouviu cantar ao amanhecer não pode ser escrito, a brisa leve,
arrastando a luz que toca a areia beijada pelas ondas do mar não está no traçado do
lápis que produz as letras.
O olhar é tempo, é vida, está mecanicamente ativo ao acordarmos; no entanto,
mesmo amando a literatura, os filhos gerados pela casa, na anêmica pele do papel,
159
não se publica escrita alguma sobre o encanto da noite nos pelos dos gatos; não se
anota na grafia o oscilar atiçado no lume dos olhos. Entretanto, extraordinariamente,
a caligrafia, presa pelas margens da folha decida, como quem desce uma ladeira
correndo, após ver o pôr do sol, preencher a página em branco a pedir palavras. O
olhar vai, dá uma volta, alonga-se, se enrola, acaricia, acelera, retrocede, ainda uma
vez vai, busca, encontra, procura, com todos os ângulos, escava, com as mãos, tenta,
intenta, insiste, persiste, se engana pela promessa de achar, se achar e prossegue.
Não se contenta, com o tudo a perder, arrisca o que vê em palavras jogadas para se
perder ou se ler. Porém, o ato de ler não se escreve, pois é inexaurível ato que se
esvai no íntimo de quem lê.
Fazer o papel de poeta mediadora em um contexto que mistura política,
comunidade da escola em que trabalha e situação econômica e social da população
paraguaia de 1930, escrever e publicar na linguagem poética – Carmen Soler –
carrega a pesada atividade em sua produção escrita, misturada a tudo isso, a
opacidade e o enfoque em sua poesia lírica de combate e revolucionária, que está
amplamente enfocada na problemática do sujeito em suas experiências. O amplo
painel de imagens, em que visualizamos a mulher na poesia, bem como a poesia na
mulher, confunde-nos onde está uma e onde está a outra.
A dificuldade observada é a de que a literatura, como arte fictícia, enfrenta o
impasse entre romper com a tradição e a impossibilidade de separá-las, por mais que
a crítica da época exija que a poeta que há em Carmen seja Clássica – como se a
poesia que a artista e poetisa vive é popular, é povo, cheirando a suor, exigindo pão,
comida e educação. Nenhuma deixa a outra e o objeto de arte é produzido e cumpre
seu papel, o de ser lido, ouvido, cantado, publicado e agora, com este trabalho,
traduzido para a língua portuguesa.
Tais exigências e perseguições vimos que apontam para uma crise na lírica e
para uma literatura de combate, o que esgotou e nos mostra a preocupação constante
da escritora, jamais vencida, revelando em sua palavra a cultura, a realidade, os fatos,
mesmo nos casos em que esteve presa. Sem material próprio, a memória foi seu papel
e seu lápis, elaborando o entrelaçamento de vozes, olhares, fatos e direções da
história tensa, compondo uma cadeia complexa na produção de seus versos,
mantendo em cada eu lírico a latência do que irá produzir ao ter o básico para deitar
a obra com toda a sua autenticidade.
160
Carmen não produziu, em sua lírica, objetos da arte de escrita individual, mas,
a partir de fatos gerados por relações e experiências em um processo coletivo, como
autotestemunho, histórico, cultural e de grande significado social. Seus versos trazem
o olhar das ruas, das fábricas, das organizações campesinas, das fronteiras e da
escola em que trabalhou. Esse olhar, ao ser visto, incomodou e muito, especialmente
quando foi encarcerado. A dura realidade histórica está toda em sua poética, de forma
mais latente e pulsante, traumática. Essa sensação de mundo no calabouço é fato em
suas obras e metáforas, bem como seu belo olhar, no entanto, armado e original com
que vê o outro, os que estão lá fora além do sol quadrado e a si mesmo. Porém, estava
161
presa, mas não é presa; escritora e eticamente comprometida com sua escrita, em
meio à multidão de olhares que murmuram em seus escritos poéticos, entona a voz
da mulher poeta que existe em si.
Com seu corpo violentado, suas fugas pelas fronteiras, seu irmão
desaparecido, sua filha com parentes, sua busca pelo irmão, sua inclusão como mãe
da praça de março, seus poemas roubados e suas telas pintadas rasgadas, tais
particularidades de seu trajeto pessoal servem para o olhar como referências literárias
autobiográficas, à política e à realidade atual imediata.
Se há olhar totalitário, deve ser o de Maria Luisa Bombal, convertido em escrita.
Em seu Posfácio Anseio e sonho na prosa de Maria Luisa Bombal, Laura Janina
Hosiasson, cita:
As mulheres que decidem por esse intento são além do chão que pisaram
e do ar que respiraram. A trajetória e as viagens de exílios, autoexílio em suas
subjetividades - revolucionária ou alienada para alguns – são a viagem da mulher
histórica.
Este mestrado entrega-nos o retorno para casa e tudo que essa
pesquisa/viagem pode nos proporcionar em reelaborações com forma sistemática,
organizada, criada com mecanismos que envolvem as mídias, aplicativos atuais,
música, fotografia recebendo traço sistemático, organizado, complexo, criativo e
emocionante. Esta produção nos revelou quão extensos, belos e complexos são
101 Cunningham, Lucía Guerra, “Introducción” in Bombal, María Luisa, Obras Completas.
Santiago: Andrés Bello, 1996.
163
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.
(Cora Coralina)
165
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Assim, desde aquele ato primordial [o "faça-se a luz"], todo ser tem sido um
ser em exílio, com necessidade de ser conduzido de volta e redimido. A
quebradura dos vasos prossegue em todos os estádios subsequentes de
emanação e Criação; tudo está de alguma forma quebrado, tudo tem algum
defeito, tudo está inacabado.
(Walter Benjamin)
173
9 APÊNDICE
DOSSIÊS
175
24. Maria Luisa Bombal jovem. Memória chilena – Biblioteca Nacional de Chile.
177
MARI A LUI SA
BOMBA (L)
194
Capa Maria Luísa, Agata Gligo, 2{ Edição, 1986, Biblioteca pessoal de Wilma N Rangel.
197
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Ercilla. Santiago: Propiedad intelectual: acompaña
artículo de Isabel Velasco: "Algo sobre Maria Luisa Bombal"
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Filme La Casa de Recuerdo, escrita por Maria Luisa Bombal, com a atriz protagonista Libertad
Lamarque, atriz e cantora que recebeu o título de Reina (rainha) Del Tango, é considerada a principal
atriz do cinema argentino dos anos de 1930 a 1940. Fonte: Memorial chileno.
212
LA CASA del recuerdo. Direção: Luis Saslavsky. Roteiro: Carlos Adén e Luis Saslavsky, segundo
argumento de María Luisa Bombal e ideia original de Carlos Adén. Argentina: Argentina Sono Film,
1940. (98 min)