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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

GABRIELA RODRIGUES DE OLIVEIRA

A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO TEMA DA MENDICIDADE NO ROMANCE


LA GRÈVE DES BÀTTU (2001), DA ESCRITORA SENEGALESA AMINATA SOW
FALL

GUARULHOS
2023
GABRIELA RODRIGUES DE OLIVEIRA

A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO TEMA DA MENDICIDADE NO ROMANCE


LA GRÈVE DES BÀTTU (2001), DA ESCRITORA SENEGALESA AMINATA SOW
FALL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humana da Universidade
Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em letras.

Área de Concentração: Estudos Literários


Linha de pesquisa: Literatura e autonomia:
questões de estética e ética
Orientadora: Profa. Dra. Ana Cláudia Romano
Ribeiro

GUARULHOS
2023
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da
UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos
autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação
intelectual, desde que citada a fonte.

Oliveira, Gabriela Rodrigues.

A construção literária do tema da mendicidade no romance La grève des bàttu


(2001), da escritora senegalesa Aminata Sow Fall / Gabriela Rodrigues de
Oliveira. – 2023. – 132 f.

Dissertação (Mestrado em Letras). – Guarulhos: Universidade Federal de São


Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Orientadora: Ana Cláudia Romano Ribeiro.

La constrution littéraire du thème de la mendicité dans le roman La grève des


bàttu (2001), de l’écrivaine sénégalaise Aminata Sow Fall.

1. La grève des bàttu. 2. Aminata Sow Fall. 3.Mendicidade. 4.Estudos pós-


coloniais. 5. Tradição e oralidade. I. Ana Cláudia Romano Ribeiro. II. A
construção literária do tema da mendicidade no romance La grève des bàttu
(2001), da escritora senegalesa Aminata Sow Fall.
GABRIELA RODRIGUES DE OLIVEIRA

A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DO TEMA DA MENDICIDADE NO ROMANCE


LA GRÈVE DES BÀTTU (2001), DA ESCRITORA SENEGALESA AMINATA SOW
FALL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humana da Universidade
Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em letras.
Área de Concentração: Estudos Literários
Linha de pesquisa: Literatura e autonomia:
questões de estética e ética
Orientadora: Profa. Dra. Ana Cláudia Romano
Ribeiro

Aprovação em: 29/08/2023

Profa. Dra. Ana Cláudia Romano Ribeiro


Universidade Federal de São Paulo

Profa. Dra. Natali Fabiana da Costa e Silva


Universidade Federal do Amapá

Profa. Dra. Gisele Pimentel Martins


Universidade Federal de São Carlos

Prof. Dr. Dennys Silva-Reis


Universidade Federal do Acre
Membro Suplente
Dedico esta dissertação à minha querida mãe,
Adriane Rodrigues, que batalhou muito para
que suas filhas pudessem estudar.
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Adriane Rodrigues, pelo apoio e incentivo ao longo de todos esses anos
de estudo, sem ela eu não teria conseguido. À minha queria madrinha, Adelina Rosa, pelo apoio
incondicional. À minha irmã, Maria Raniela, por sempre torcer por mim.
Agradeço à minha querida orientadora Ana Cláudia Romano Ribeiro que, além de sua
leitura rigorosa, auxílio nas traduções e sugestões atenciosas, depositou sua confiança no meu
trabalho, desde a graduação, e aceitou mergulhar comigo no estudo da obra de Aminata Sow
Fall.
Agradeço às professoras Natali Fabiana da Costa e Silva e Gisele Pimentel Martins,
membros da minha banca de qualificação e defesa, pela leitura cuidadosa, pelas indicações
bibliográficas e pelos apontamentos feitos de forma generosa que foram imprescindíveis para
a concretização desta pesquisa.
Ao meu companheiro, Lucas Pereira, por todo amor, carinho e incentivo durante todo
esse processo.
Aos amigos da graduação que fizeram a minha trajetória na Universidade Federal de
São Paulo ser repleta de momentos felizes: Amanda Medeiros, Bruna Almeida, Bruna Brum,
Danielle Rocha, Fernanda Rodrigues, Gabriel Furine, Ghustavo Muniz, Giancarlos Battaglia e
Maria Ferreira.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Unifesp, em especial à
professora Lígia Ferreira pelos comentários e apontamentos feitos ao meu projeto na entrevista
de mestrado. Aos funcionários da Universidade Federal de São Paulo, especialmente ao
secretário do Programa de Pós-Graduação em Letras, Douglas Felisbino Barbosa, que sempre
foi muito atencioso comigo.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela
bolsa concedida no período de 01 de agosto de 2021 a 31 de junho de 2023 (Processo: n°.
2021/02552-7), que foi de suma importância para a realização desta dissertação.
“Ma conviction de toujours c’est que l’acte

littéraire, c’est un acte de choix, de liberté.

C’est un acte où doit s’exprimer avec sincérité,

c’est un acte aussi de création.” (FALL, 2004,

p. 4)
RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo estudar o romance La grève des bàttu, da escritora
senegalesa Aminata Sow Fall, cuja primeira edição foi publicada em Dacar por Nouvelles
Éditions Africaines, em 1979. Nossa hipótese é a de que o tema da mendicidade se constrói
esteticamente por meio de personagens - descritas como mendigos – que, juntas, se
transformam em um único corpo coletivo. Esse corpo coletivo é capaz de trazer uma percepção
humanizadora para os indivíduos em situação de rua que, na narrativa, são levados a
confrontarem-se com personagens da esfera de poder, que têm relação com o serviço público
de salubridade. Mostraremos como o universo cultural e linguístico senegalês está presente na
representação literária dos dois grupos. Nesta dissertação, refletiremos sobre a literatura pós-
colonial (MOURA, 2019) e sobre o campo das literaturas africanas, com os estudos de N’Goran
(2009) que tratam dos conceitos “tradição e oralidade”. Em seguida, mostraremos como o
conceito de oralidade está em relação com a obra de Aminata Sow Fall (GUÈYE, 2005;
CABAKULU; CAMARA, 2002) e apresentaremos o contexto histórico e social (BOAHEN,
2010; UZOIGWE, 2010, CROWDER, 2010; GUEYE, 2010; THÉLIO, 2015) para tratar do
período da colonização, da decolonização e do pós-colonialismo na África (SAID, 2011;
CÉSAIRE, 1978; THIONG’O, 2011; FANON, 1965). Discutiremos a religiosidade na
sociedade senegalesa e o modo como esse tema aparece como plano de fundo dos textos
narrativos de escritores senegaleses (CABAKULU; CAMARA, 2002; HERZBERGER-
FOFANA, 1987; LEMOTIEU, 1987), assim como o contexto linguístico no Senegalês
(THIAM, 2020; NIANG CAMARA, 2014; CISSE, 2005). Na sequência, nos debruçamos na
análise da narrativa (CHATMAN, 1990; GANCHO, 2006; LEITE, 2002) e utilizaremos a
definição de Breton (2007) para compreender o corpo coletivo. Por último, analisaremos em
que medida a construção estética se vincula ao contexto cultural e linguístico senegalês
(CHEHAMI, 2013; MOKWENYE, 1992; KANKWENDA, 2000; MARTY, 1917; NDIAYE,
2015; PANAIT, 2017; LEMOTIEU, 1987; ONYEMELUKWE, 2003; HERZBERGER-
FOFANA, 1987).

Palavras-chave: La grève des bàttu; Aminata Sow Fall; Mendicidade, Estudos pós-coloniais;
Tradição e oralidade.
RÉSUMÉ

Cette recherche vise à étudier le roman La grève des bàttu, de l’écrivaine sénégalaise Aminata
Sow Fall, dont la première édition a été publiée à Dakar par les Nouvelles Éditions Africaines,
en 1979. Notre hypothèse est que le thème de la mendicité est construit esthétiquement à travers
des personnages – décrits comme des mendiants – qui, ensemble, deviennent un seul corps
collectif. Ce corps collectif est capable d’apporter une perception humanisante aux individus
vivant dans la rue qui, dans le récit, sont amenés à se confronter à des personnages de la sphère
du pouvoir, liés au service public de santé. Nous montrerons comment l’univers culturel et
linguistique sénégalais est présent dans la représentation littéraire des deux groupes. Dans cette
recherche, nous réfléchirons sur la littérature postcoloniale (MOURA, 2019) et sur le champ
des littératures africaines, avec les travaux de N’Goran (2009) qui traitent des concepts
“tradition et oralité”. Ensuite, nous montrerons comment le concept d’oralité est lié au travail
d'Aminata Sow Fall (GUÈYE, 2005; CABAKULU, CAMARA, 2002) et présenterons le
contexte historique et social (BOAHEN, 2010; UZOIGWE, 2010; CROWDER, 2010; GUEYE,
2010; THÉLIO, 2015) pour aborder la période de colonisation, décolonisation et
postcolonialisme en Afrique (SAID, 2011; CÉSAIRE, 1978; THIONG'O, 2011; FANON,
1965). Nous aborderons la religiosité dans la société sénégalaise et la façon dont ce thème
apparaît en arrière-plan des textes narratifs des écrivains sénégalais (CABAKULU, CAMARA,
2002 ; HERZBERGER-FOFANA, 1987; LEMOTIEU, 1987), ainsi que le contexte linguistique
au Sénégal (OUSSEYNOU, 2020; NIANG CAMARA, 2012; CISSE, 2005). Ensuite, nous
analysons le récit (CHATMAN, 1990; GANCHO, 2006; LEITE, 2002) et utilisons la définition
de Breton (2007) pour comprendre le corps collectif. À la fin, nous analyserons dans quelle
mesure la construction esthétique est liée au contexte culturel et linguistique sénégalais
(CHEHAMI, 2013; MOKWENYE, 1992; KANKWENDA, 2000; MARTY, 1917; NDIAYE,
2015; PANAIT, 2017; LEMOTIEU, 1987; ONYEMELUKWE, 2003; HERZBERGER-
FOFANA, 1987).

Mots-clés : La grève des bàttu; Aminata Sow Fall; Mendicité; Études postcoloniales; Tradition
et oralité.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Mapa: Comparação da divisão política do Continente Africano 37


entre 1880 e 1914 ............................................................................
Figura 2 - Mapa da partilha do continente africano em 1914 38
.............................................................................
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
2. APONTAMENTOS SOBRE O CAMPO DA LITERATURA AFRICANA
FRANCÓFONA ...................................................................................................................... 16
2.1 A literatura francófona no campo de estudo pós-colonial .............................................. 16
2.2 Tradição e oralidade: Caminhos para consolidação do campo das literaturas africanas
francófonas ........................................................................................................................... 20
2.3 Aminata Sow Fall: Escritora francófona ........................................................................ 26
2.3.1 A estética da oralidade na obra de Aminata Sow Fall ............................................. 29
2.3.2 Là grève des bàttu : resumo do romance ................................................................. 33
2.3.3 O tema da mendicidade em La grève des bàttu ....................................................... 34
3. CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL ........................................................................... 36
3.1 Refletindo sobre o colonialismo na África ..................................................................... 36
3.2 Da decolonização ao pós-colonialismo .......................................................................... 43
3.3 A religiosidade na sociedade senegalesa ........................................................................ 47
3.4 A religiosidade como plano de fundo literário ............................................................... 48
3.5 Contexto linguístico do Senegal ..................................................................................... 49
4. A CONSTRUÇÃO ESTÉTICA DO TEMA DA MENDICIDADE ............................... 54
4.1 Oposição: Homens do Estado versus Corpo coletivo..................................................... 54
4.1.1 Homens do Estado ................................................................................................... 54
4.1.2 Grupo dos mendigos: Corpo coletivo ...................................................................... 65
4.2 Embate entre os homens do Estado versus grupo dos mendigos: Grève des bàttu ........ 74
4.3 Refletindo sobre o tema da mendicância: o uso político da pobreza.............................. 96
4.4 Espaços sociais: diferenciadores de corpos .................................................................. 101
4.5 O francês e o uolofe como diferenciadores dos corpos ................................................ 109
4.5.1 Discurso direto, indireto, indireto livre ................................................................. 110
4.5.2 Oralidade em La grève des bàttu ........................................................................... 114
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 123
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 128
11

1. INTRODUÇÃO

As literaturas francófonas fazem parte do grande conjunto de obras produzidas em


língua francesa. Nesse universo francófono é importante ter em vista que cada sociedade onde
há presença da língua francesa tem seu próprio modo de funcionamento social, cultural e
linguístico. Ou seja, o substantivo “francofonia” se refere a muitas comunidades: “Derrière le
mot ‘francophonie’ se trovent des réalités linguistiques disparates. Le degré de maîtrise de la
langue varie du tout au tout selon les pays, les régions, les groupes sociaux, les individus” (“Por
trás da palavra “francofonia” existem realidades linguísticas díspares. O grau de domínio da
língua varia radicalmente de acordo com os países, as regiões, os grupos sociais, os indivíduos”,
COMBE, 2010, p. 7). Assim, quando falamos em literaturas francófonas levamos em
consideração todo o processo mediante o qual a língua francesa foi implantada em algumas
sociedades. Por exemplo, nos países que passaram pelo processo de colonização, nos quais a
língua francesa foi imposta de forma violenta.

A difusão do francês além-mar ocasiona um encontro, e muitas vezes até um choque


de línguas, que cria naturalmente situações plurilingues nas quais o francês está em
contato com o inglês, o espanhol, o crioulo, o árabe, o berbere, o uolofe, o manlike, o
malgaxe etc. As literaturas francófonas das Antilhas, do Magreb e da África
subsaariana trazem a marca evidente de uma interação das línguas e das culturas, em
uma confrontação às vezes violenta (COMBE, 2010, p. 9).1

No Senegal, quando a língua francesa passou a fazer parte dessa sociedade, entrou em
contato com outras línguas locais que ali existiam, como o uofole. Dessa forma, quando
empregamos o termo literaturas francófonas, pressupomos sua pluralidade cultural e linguística.
Percebemos que escrever em língua francesa possa ser diferente para uma pessoa que dela se
sirva como língua de expressão literária, mas que não a tenha como língua materna.
Compreendemos que as motivações que podem ter levado autores e autoras de uma determinada
sociedade a escrever em língua francesa, principalmente aquelas que passaram pela
colonização, são distintas daquelas de autores e autoras que têm o francês como língua materna.
No Senegal, que faz parte desse universo francófono, temos autores célebres como
Ousmane Sembène, Fatou Diome, Mariama Bâ, Nafissatou Dia Diouf, entre muitos outros. No
Brasil, vemos que, aos poucos, a tradução de obras de escritores senegaleses vem sendo cada
vez mais realizada. Temos alguns exemplos disso: de Fatou Diome, O ventre do Atlântico (Le

1
“La diffusion du français outre-mer occasionne une rencontre, et souvent même un ‘choc’ des langues, qui crée
naturellement des situations plurilingues dans lesquelles le français est en contact avec l’anglais, l’espagnol, le
créole, l’arabe, le berbère, le wolof, le malinké, le malgache, etc. Les littératures francophones des Antilles, du
Maghreb et d’Afrique subsaharienne portent la marque évidente d’une interaction des langues et des cultures, dans
une confrontation parfois violente”.
12

ventre de l'Atlantique, 2003) foi traduzido por Régina Celia Domingues da Silva para a língua
portuguesa e publicado pela editora Malê em 2019; do vencedor do prêmio Goncourt, Mohamed
Mbougar Sarr, A mais recôndita memória dos homens (La plus Secrète mémoire des hommes,
2021) traduzido por Diogo Cardoso foi publicado pela editora Fósforo em 2023; do mesmo
autor, Homens de verdade (Des purs hommes, 2018) foi traduzido por Fernando Klabin e
publicado também pela editora Malê em 2022; mais recentemente, de Mariama Bâ, Uma carta
tão longa (Une si longue lettre, 1979) foi traduzido por Marina Bueno de Carvalho e publicado
pela editora Jandaíra (2023). É nesse cenário frutífero do avanço da tradução e divulgação das
literaturas senegalesas no Brasil que temos o privilégio de estudar o romance La grève des bàttu
(2001) de Aminata Sow Fall, cuja primeira publicação data de 1979 (Dacar, Nouvelles Editions
Africaines du Sénégal).
Nossos estudos acerca da obra de Aminata Sow Fall começaram em 2019, com a nossa
pesquisa de iniciação científica realizada durante a graduação em Letras Português-Francês, na
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).2
Sow Fall faz parte da primeira geração de mulheres escritoras no Senegal. Apesar de
sua produção literária não ser, ainda, muito conhecida e estudada no Brasil, sua obra é
reconhecida e estudada no universo francófono. Em uma entrevista, ao ser questionada sobre
quais foram as suas maiores conquistas e marcos em sua carreira, a escritora evidencia que o
processo não foi fácil. Seu primeiro romance foi publicado somente três anos depois de ter sido
escrito:

O primeiro marco foi obviamente quando publiquei meu primeiro romance, Le


revenant, e o levei para a editora em 1973. Ele saiu três anos depois porque o diretor
literário havia pensado que os Ocidentais não entenderiam porque estava muito
enraizado em nossas culturas locais e que era necessário apontar para coisas que eles
entendiam. Eu havia dito que não porque acho que é no fundo de nossas culturas que
podemos encontrar os outros para melhor compartilhar. Finalmente, quando o
romance foi publicado, foi um sucesso. Este é o primeiro marco (FALL, 2004, p. 2).3

2
Nossa iniciação científica, foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP,
Processo n. 2019/11387-0), intitula-se “O tratamento literário do tema dos deslocamentos territoriais em Douceurs
du bercail, romance da escritora senegalesa Aminata Sow Fall”, e foi orientada pela professora Doutora Ana
Cláudia Romano Ribeiro (Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP). Alguns artigos publicados oriundos
dessa pesquisa foram: “Aminata Sow Fall: relação entre língua materna e língua de expressão literária em seu
romance Douceurs du bercail (1998)”; “O romance douceurs du bercail (1998), da escritora senegalesa Aminata
Sow Fall: naatangué como lugar eutópico” e “O tratamento literário do tema dos deslocamentos territoriais em
Douceurs du bercail, romance da escritora senegalesa Aminata Sow Fall”, cujas referências completas encontram-
se listadas ao final desta dissertação.
3
“Le premier jalon c’est évidemment quand j’ai publié mon premier roman, Le revenant, et que je l’ai apporté
chez l’éditeur en 1973. C’est sorti trois ans plus tard parce que le directeur littéraire avait pensé que les Occidentaux
ne comprendraient pas parce que c’était trop ancré dans nos cultures locales et qu’il fallait viser plutôt des choses
qu’ils comprenaient. J’avais dit non parce que je pense que c’est à travers les profondeurs de nos cultures que nous
pouvons rencontrer les autres pour mieux partager. Finalement, quand le roman a été publié, ça a eu un succès.
C’est le premier jalon”.
13

Além de todos os desafios de se publicar um romance nesse período para as mulheres


senegalesas, em um primeiro momento, a temática e os componentes que revelavam elementos
da sociedade de Fall de sua cultura foram motivos para a não publicação de seu livro. Depois
de publicado, mesmo tendo obtido sucesso, a escritora ainda enfrentou os mesmos desafios
quando da publicação de seu segundo romance, La grève des bàttu. Após publicado, ele lhe
rendeu reconhecimento e prêmios internacionais.

O segundo marco veio talvez logo depois, quando La grève des bàttu foi publicado.
Houve as mesmas discussões com o diretor literário. Foi La grève des bàttu que me
lançou no cenário internacional. Bem, quanto aos outros marcos da minha carreira
literária, aconteceram coisas muito agradáveis para mim, que são prêmios literários,
reconhecimentos aqui e ali. Ganhei o Grande Prêmio Literário da África Negra em
1980 (ano em que La grève des bàttu foi publicado). Eu também ganhei o Prêmio
Internacional de Letras Africanas que na época era concedido pelo Instituto Cultural
Africano e então, imaginem, eu nem sabia que o júri estava reunido. Foi uma surpresa
muito feliz (FALL, 2004, p. 2).4

Vemos que o caminho da autora para a publicação de seus romances passou por alguns
desafios. Com o destaque e reconhecimento que ganhou com a publicação de seu segundo livro,
e com prêmios subsequentes, Aminata Sow Fall passou a ser uma escritora conhecida,
respeitada, premiada e sua obra começou a ser estudada nacionalmente e internacionalmente.
O romance La grève des bàttu, o segundo livro publicado por Fall e que lhe rendeu
prêmios importantes, é o nosso objeto de estudo. Nossa hipótese é a de que o tema da
mendicidade, presente na narrativa, se constrói esteticamente por meio de personagens –
descritas como mendigos – que juntas se transformam em um único corpo coletivo. Esse corpo
coletivo é capaz de trazer uma percepção humanizadora para os indivíduos em situação de rua
e, ao mesmo tempo, manifesta uma relação de confronto direto com a esfera de poder social
representada pelas personagens que têm relação com o serviço de salubridade, fomentando,
assim, um embate na narrativa. Por meio da construção do corpo coletivo dos mendigos, se
apresenta o tema da mendicidade no romance, tema esse que se vincula ao universo cultural e
linguístico da autora, uma vez que, como ressaltou a própria autora: “(...) é através das
profundezas de nossa cultura que nós podemos encontrar os outros para melhor compartilhar”

4
“Le deuxième jalon est venu peut-être juste après, lorsque La grève des Battus a été publié. Il y a eu les mêmes
discussions avec le directeur littéraire. C’est La grève des Battus qui m’a propulsé sur la scène internationale. Bon
les autres jalons sur ma carrière littéraire, il y a eu des choses très agréables qui me sont arrivées, qui sont des prix
littéraires, des reconnaissances par-ci par-là. J’ai eu le Grand prix littéraire d’Afrique noire en 1980 (l’année de la
parution de La grève des Battus). J’ai eu aussi le Prix international des lettres africaines qui était décerné en ce
moment-là par l'Institut Culturel Africain et là, figurez-vous que je ne savais même pas que le jury se réunissait.
C’était une très heureuse surprise”.
14

(“je pense que c'est à travers les profondeurs de nos cultures que nous pouvons rencontrer les
autres pour mieux partager”, FALL, 2004, p. 2). Para averiguar se nossa hipótese se confirma,
a presente dissertação será organizada como se segue.
No primeiro capítulo, intitulado “Campo da literatura africana francófono”, como
pontuado acima sobre o universo das literaturas francófonas, buscamos refletir sobre literatura
pós-colonial por meio dos estudos de Moura (2019), e a partir dos estudos de N’Goran (2009)
sobre o campo das literaturas africanas, que tratam dos conceitos de “oralidade e tradição” em
obras africanas. Ainda neste capítulo, situaremos Aminata Sow Fall e sua obra, que fazem parte
desse cenário francófono, e a relação da obra da autora com os conceitos de “oralidade e
tradição” (GUÈYE, 2005; CABAKULU; CAMARA, 2002), assim como apresentaremos um
resumo do romance La grève des bàttu.
No segundo capítulo, denominado “Contexto histórico e social” apresentamos, por meio
de estudos históricos (BOAHEN, 2010; UZOIGWE, 2010, CROWDER, 2010; GUEYE, 2010;
THÉLIO, 2015) e críticos, o período de colonização, decolonização e pós-colonialismo na
África (SAID, 2011; CÉSAIRE, 1978; THIONG’O, 2011; FANON, 1965). A partir disso,
traremos uma discussão sobre a religiosidade na sociedade senegalesa e como esse tema aparece
como plano de fundo dos textos narrativos de escritores senegaleses, inclusive no romance La
grève des bàttu (CABAKULU; CAMARA, 2002; HERZBERGER-FOFANA, 1987;
LEMOTIEU, 1987). Por fim, neste capítulo apresentaremos qual é o contexto linguístico no
Senegal e qual foi a influência da língua dos ex-colonizadores nesse país (THIAM, 2020;
NIANG CAMARA, 2012; CISSE, 2005).
Por último, traremos a análise narrativa do romance La greve de bàttu. Em um primeiro
momento, apresentamos como as personagens da esfera de poder e as personagens do grupo de
mendigos são descritas e caracterizadas, evidenciando as diferenças entre elas (CHATMAN,
1990).5 A partir dessa distinção estudamos como podemos compreender as personagens da
esfera dos mendigos como sendo um único corpo coletivo por meio da definição de corpo
coletivo de Breton (2007). A partir disso, mostramos como a diferenciação dos corpos está
presente no empate narrativo entre os homens de poder e o corpo coletivo dos mendigos. Em
seguida, depois de delinear a oposição entre os grupos, investigamos como o tema da
mendicidade é construído na narrativa e se relaciona com elementos do mundo empírico da
autora (CHEHAMI, 2013; MOKWENYE, 1992; KANKWENDA, 2000; MARTY, 1917;

5
Nesse terceiro capítulo, enfatizamos que iremos trazer muitos trechos do romance, sempre acompanhados da
tradução. Como é um romance que ainda não tem tradução para o português brasileiro, acreditamos que esse
caminho de análise seja proveitoso, pois leva o leitor a ler, efetivamente, um pouco da narrativa.
15

NDIAYE, 2015; PANAIT, 2017; LEMOTIEU, 1987; ONYEMELUKWE, 2003;


HERZBERGER-FOFANA, 1987,). Por fim, com o intuito de reforçar como os corpos dos
mendigos são vistos de modos distintos dos corpos dos homens de poder na narrativa,
analisamos como os espaços construídos contribuem para diferenciação entre esses corpos
(GANCHO, 2006; ABDALLA JUNIOR, 1995), assim como examinamos como o emprego da
língua uolofe e da língua francesa também revela uma distinção entre os grupos por meio dos
discursos realizados pelas personagens (GANCHO, 2006; LEITE, 2002; CABAKULU;
CAMARA, 2002). Por último, evidenciamos como a presença do uolofe e de outros elementos
contribuem para observarmos como se constrói a oralidade na narrativa da autora
(CABAKULU; CAMARA, 2002; GUÈYE, 2005; FEUTREL, 2019).
16

2. APONTAMENTOS SOBRE O CAMPO DA LITERATURA AFRICANA


FRANCÓFONA

2.1 A literatura francófona no campo de estudo pós-colonial

Estudar o romance Là grève des bàttu (1979) de Aminata Sow Fall é entrar no campo
dos estudos francófonos e africanos. Nesse primeiro momento, partiremos do texto teórico de
Moura Littérature francophone et théorie postcolonial (2019), que propõe pensar a
consolidação da literatura francófona e os caminhos que levaram à construção do campo de
uma teoria pós-colonial. Deteremo-nos especificamente em seu capítulo intitulado “Les voies
d’une philologie contemporaine”6, no qual o autor tem por enfoque o estudo da história literária
contemporânea concernente aos séculos XIX, XX e XXI, e a toma como ponto de partida para
pensar o campo da teoria pós-colonial.
Desde do início de sua obra, o autor salienta a diferença entre os conceitos
“postcolonial” e “post-colonial”. A utilização de post-colonial (escrito com hífen) marca, de
modo cronológico, o período posterior à era colonialista. Já o termo postcolonial (sem hífen)
não concebe somente a questão temporal em sua análise, mas sim, traz um posicionamento que
leva em consideração todo o processo da colonização. A pesquisadora Leite (2003) enfatiza que
o termo pós-colonial, por volta dos anos sessenta, começou a ser utilizado pela crítica das mais
variadas áreas com o objetivo de debater quais foram as implicações oriundas do processo
colonizatório, assim “(...) pós-colonial não designa um conceito histórico ou diacrónico, mas
antes um conceito analítico que reenvia às literaturas que nascem num contexto marcado pela
colonização europeia” (LEITE, 2003, p. 11, itálicos da autora). Com isso, esse segundo termo
utilizado e escolhido por Moura engloba um universo maior de significados e sentidos à medida
que se consideram os elementos históricos e sociológicos na gênese da obra literária. A isso o
autor denomina “filologia contemporânea”, que significa ter em mente dois caminhos que se
unem na construção da teoria pós-colonial: 1) o de considerar a estética criativa do escritor; 2)
e o de levar em consideração os aspectos culturais/sociais na composição da obra. Para Moura,
portanto, a teoria pós-colonial encontra-se na junção desses dois aspectos, estudados

6
Os caminhos de uma filologia contemporânea (Todas as traduções são nossas, exceto quando indicado o nome
de outro). O sentido de filologia, nesse texto, pode ser entendido como o estudo da linguagem em fontes históricas
escritas, incluindo literatura, história e linguística. Partimos da definição do dicionário Centre National de
Ressources Textuelles et Lexicales: “Étude, tant en ce qui concerne le contenu que l'expression, de documents,
surtout écrits, utilisant telle ou telle langue. (…) 1. La langue n'est pas l'unique objet de la philologie, qui veut
avant tout fixer, interpréter, commenter les textes; cette première étude l'amène à s'occuper aussi de l'histoire
littéraire, des moeurs, des institutions, etc.; partout elle use de sa méthode propre, qui est la critique. Disponível
em : https://www.cnrtl.fr/definition/philologie. Acesso: 15 fev. 2023.
17

conjuntamente (MOURA, 2019, p. 74). Para ponderar sobre a filologia contemporânea pós-
colonial, Moura tem como ponto de partida o campo da historiografia europeia.
No princípio do campo europeu, em que havia textos sobre as sociedades colonizadas,
temos a denominada “Literatura exótica”.7 Essa literatura, grosso modo, seria a narração “da
estranheza colonizada” (sociedade colonizada) (MOURA, 2019, p. 76) realizada a partir do
ponto de vista dos funcionários da colonização que participaram do processo colonizatório.
Nesse momento, a colonização se tornou um elemento estético na literatura produzida por
homens brancos europeus: a “colonização-criação literária” (MOURA, 2019, p. 76).8 Moura
ressalta o nome de János Riez, um professor alemão, como sendo um dos primeiros a pensar a
literatura colonial tendo o fenômeno do colonialismo como o plano de fundo do domínio
estético, o qual “(..) pode ser compreendido como um tema, manifesto ou implícito, e/ou como
matrizes de motivos literários” (MOURA, 2019, p. 77, tradução nossa).9 Essa literatura
colonial, na qual os colonizadores escreviam acerca das “estranhezas” que observavam, estava
muito apoiada na dicotomia do nós versus eles (o outro): civilização versus barbárie;
cristianismo versus paganismo; tradição versus modernidade (MOURA, 2019, p. 77). Assim,
nesse momento, colonizar e escrever eram pensados de forma conjunta e evidenciavam esses
contrastes.
Pensar no caminho que leva ao momento de ruptura entre a literatura colonial versus a
literatura autóctone não é simples, porque as produções autóctones, em princípio, eram
realizadas tendo, devido ao contexto, influência das literaturas dos colonizadores. Com isso, a
literatura escrita pelos autóctones era “(...) reveladora dessa influência metropolitana”
(MOURA, 2019, p. 81): ela foi por muito tempo considerada como uma literatura de imitação
daquela que era produzida na França, pois nela operava-se um deslocamento de sua própria
cultura. Os escritores autóctones seguiam esses modelos sem criticar a situação colonial.
O rompimento de uma literatura para a outra nem sempre é evidente. Na tentativa de
observar em que momento houve essa ruptura Moura vai enfatizar que o princípio de uma
literatura pós-colonial10 autóctone nasce ainda como uma ramificação da literatura colonial que
era o “gênero dominante” à época (MOURA, 2019, p. 81). Alguns nomes citados pelo autor
são: Paul Hazoumé (Doguicimi, 1938), Ousmene Soucé (Karim, 1935) e René Maran
(Batouala, 1921). Acerca dos três romances desses autores Moura considera que eles “inspiram

7
“L’ouvre exotique” (MOURA, 2019, p. 76).
8
“Colonisation-création littéraire”.
9
“(...) le colonialisme – souvent un phénomène d’arrière-plan dans le domaine esthétique – peut être envisagée
comme un thème, manifeste ou implicite, et/ou comme matrice des motifs littéraire”.
10
Escolhemos traduzir esse termo do mesmo modo que a pesquisadora Leite o utiliza na língua portuguesa.
18

narrativas fundamentadas em uma estética da representação e do verossimilhante (...)”


(MOURA, 2019, p. 82).11 Em relação a Batouala, Moura o qualifica como um “(...) romance
de observações dos costumes” (MOURA, 2019, p. 82).12 Esses escritos, considerados ainda
como literatura colonial, apresentaram elementos étnicos e sociais que permitiram uma visão
mais apurada dos eventos que estavam acontecendo e tendo como ponto de vista, agora, o de
escritores negros.
Apesar desses escritores terem sido importantes, Moura enfatiza que uma produção pós-
colonial começou, efetivamente, a partir da segunda guerra mundial. Nesse grande período de
decolonização13, autores apresentaram escritos que representaram mudanças em um nível
internacional. Moura denomina como “(...) uma estética da resistência” (MOURA, 2019, p.
85)14 as obras de autores como Aimé Césaire, Jacques Roumain et Sembène Ousmane etc. Essa
estética se caracteriza pela mudança, isso significa dizer que esses escritores passaram de uma
escrita que era repleta de uma cultura que foi imposta pelos colonizadores, para outra, que agora
busca caminhos para encontrar o seu próprio campo e, com ele, uma nova sociocrítica. Assim,
“(...) o estudo das relações recíprocas entre uma obra que resiste ao colonialismo e um sistema
que a cerca por todos os lados e tende a negar sua originalidade é uma das grandes orientações
da crítica pós-colonial” (MOURA, 2019, p. 86).15 Desta maneira, em suma, a crítica pós-
colonial, além de se interessar pela consolidação do campo literário do escritor francófono, se
interessa, de modo igual, em compreender como os gêneros literários europeus são apropriados
e transgredidos pelos autores francófonos.

11
“(…) inspirent des récits fondés sur une esthétique de la représentation et du vraisemblable” (MOURA, 2019,
p. 82).
12
“(…) roman d’observations des moeurs”(MOURA, 2019, p. 82).
13
Escolhemos utilizar o substantivo “decolonização” ao invés de “descolonização” partindo dos estudos de
Catherine Walsh em seu livro Pedagogías decoloniales Prácticas insurgentes de resistir, (re) exitir y (re) vivir no
qual conceitualiza esse conceito. De acordo com Walsh, o termo “des” dar o sentido de algo que se acabou e passou
para uma próxima etapa. Quando falamos de colonialismo é importante perceber que nas sociedades que
conquistaram suas independências as marcas desse processo ainda estão presente nessas sociedades. Assim, a
professora Rachel Cecília de Oliveira, em análise a obra de Walsh, evidencia que Walsh propõe a utilização de
conceito “decolonial”, pois, de acordo com a autora “excluir o ‘s’ é uma escolha minha. Não é promover o
anglicismo. Pelo contrário, pretende estabelecer uma distinção com o significado em espanhol de ‘des’ e o que
pode ser entendido como um simples desmontar, desfazer, ou reverter do colonial. Ou seja, passar de um momento
colonial para um momento não colonial, como se fosse possível que seus padrões e traços deixem de existir”. A
professora Rachel Cecília de Oliveira ressalta que não é possível, nesse cenário, descarta o colonialismo como se
ele nunca houvesse existido. Ao contrário disso, a professora Oliveira salienta que o conceito de Walsh reforça a
ideia de que é necessário enfrentar a questão colonial e, a partir dela, pensar em novos modos de “resistir e re-
existir” como a autora apresenta no título de sua obra. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=G2HcBCN7yGI. Acesso em: 11 mai. 2023.
14
“ (…) une esthétique de la résistance” (MOURA, 2019, p. 85).
15
“ (…) l'étude des relations réciproques entre une œuvre résistant au colonialisme et un système qui l'environne
de toutes parts et tend à nier son originalité est l'une des grandes orientations de la critique postcoloniale”
(MOURA, 2019, p. 86).
19

Nesse cenário, Moura não deixa de ressaltar a importância do romance Batouala como
um romance precursor que tem um caráter documental da vida indigène e que trouxe um grande
embate com a metrópole.

O romance está em conformidade com a estética do realismo colonial. A esse respeito,


poderia constituir um bom exemplo romanesco aos olhos da crítica francesa
conservadora. Mas o prefácio do autor confere-lhe uma função crítica (denuncia “tudo
o que a administração designa sob o eufemismo dos erros”), prerrogativa prestigiosa
da tradição literária nacional de Voltaire a Hugo e Zola. O romance sai então dos
enquadramentos impostos pelo sistema colonial e torna-se uma obra a ser consagrada
(prêmio Goncourt) e rejeitada (para os adeptos da narrativa colonial) (MOURA, 2019,
p. 93).16

A obra de René Maran quebra com a regra de “bom estudante”.17 Ao se servir do modelo
europeu, Maran escreve uma obra que trata da questão colonial, mas não como estava sendo
tratada até o momento por escritores europeus, sendo esse um ponto fora da curva que os
colonos não esperavam. Ao fazer isso, sua obra passa a concorrer com outras, de autores
europeus. Nesse cenário, Moura enfatiza como os autores autóctones partiram dessa tradição
literária europeia e transgrediram-na:

O autor pós-colonial joga com as instâncias de legitimação que são os gêneros e


formas europeus para expressar sua originalidade. Nos exemplos mais marcantes,
apenas invoca o mecenato da literatura europeia para a transgredir, até porque não tem
por destinatário a Corte (o Centro Ocidental) mas, em última instância, o povo de onde
provém (MOURA, 2019, p. 96-97).18

Ao colocar como receptor de sua obra não a Europa, mas sim o seu próprio povo, o seu
espaço de representação imediato, os autores autóctones tomam o gênero e a forma literária
para si, não o conceberam mais como algo estranho. Sua originalidade e criatividade são
transmitidos a partir de seus escritos que trazem elementos que correspondem àquilo que
constrói suas experiências compartilhadas e individuais. Muitas vezes essas obras tiveram sua

16
“Le roman se conforme à l'esthétique du réalisme colonial. Il pourrait à cet égard constituer un bon exemple
romanesque aux yeux de la critique française conservatrice. Mais la préface de l’auteur lui donne une fonction de
critique (elle dénonce “tout ce que l’administration désigne sous l’euphémisme d'errements”), apanage prestigieux
de la tradition littéraire nationale depuis Voltaire jusqu’à Hugo et Zola. Le roman sort alors des cadres impartis
par le système colonial et devient une œuvre à consacrer (prix Goncourt) et à rejeter (pour les tenants du récit
colonial)” (MOURA, 2019, p. 93).
17
A priori a criação de um campo autóctone parecia desacreditada, principalmente por ser considerada como
estando à margem do campo literário francês. Os autores autóctones eram considerados “bons estudantes” (2019,
p. 88) que reproduziam com excelência os modelos literários europeus. Moura, quando estuda o campo das
literaturas francófonas, chama isso de “dependência simbólica”.
18
“L’auteur postcolonial joue des instances de légitimation que sont les genres et les formes européens pour
parvenir à exprimer son originalité. Dans les exemples les plus remarquables, il n’invoque le patronage de la
littérature européenne qu’afin de la transgresser, notamment parce qu’il n’a pas la Cour (le Centre occidental) pour
destinataire mais, ultimement le peuple d’où il vient” (MOURA, 2019, p. 96-97).
20

originalidade negada, tendo sido desconsiderados todos os elementos que as envolviam e a


transformavam em obras singulares. Por isso, a crítica pós-colonial traz que

A história e a sociologia da criação literária constituem, pois, uma “filologia pós-


colonial” que analisa as obras e a sua vocação enunciativa específica. O
posicionamento da instituição literária, de origem e forma europeias, negando, aos
que se apoderaram da pena, a autoridade necessária para colocarem-se como
escritores, é de fato problemático. A menos que escolham o exílio e a aculturação
quase completa (...), sua obra deve produzir uma definição de literatura legítima que
permaneça fiel à originalidade de sua cultura. É nada menos que a invenção de um
campo literário não europeu (MOURA, 2019, p. 99).19

Em suma, a partir das reflexões apresentadas, observamos que Moura traça um caminho
para pensar o campo da teoria pós-colonial francófona, deixando em evidência que esse campo
se constrói e é fruto da produção autóctone que se distingue dos parâmetros que são levados
para a análise das obras europeias, pois se trata da construção e invenção de um novo campo.
Nele, a literatura pós-colonial francófona se constrói com autonomia e livre das interconexões
que a prendiam ao campo das literaturas francesa e europeia.

2.2 Tradição e oralidade: Caminhos para consolidação do campo das literaturas africanas
francófonas

Partindo dos estudos de Moura que refletem sobre a criação do campo das literaturas
pós-coloniais francófonas, nos propomos agora a pensar sobre o campo das literaturas africanas.
Para isso, tomamos como pressuposto teórico o estudo de David N’Goran, Le champ littéraire
africain. Essai pour une théorie (2009), que de antemão propõe que

Considerar, portanto, a literatura africana como ‘um campo’, é defini-la como um


espaço social particular regido por características, regras, modos de funcionamento
específicos, essencialmente produtor de um patrimônio, de recursos, e até mesmo de
um capital cujo valor e cujos critérios de legitimidade dependem exclusivamente de
sua autonomia (N'GORAN, 2009, p. 22, aspas do autor).20

19
“Histoire et sociologie de la création littéraire composent donc une ‘philologie postcoloniale’ analysant les
œuvres et leur vocation énonciative spécifique. L’institution littéraire, d’origine et de forme européennes, refusant
à ceux qui ont saisi la plume l’autorité requise pour se poser en écrivains, leur positionnement est de facto
problématique. Sauf à choisir l’exil et une acculturation presque complète (…), leur œuvre doit produire une
définition de la littérature légitime qui demeure fidèle à l’originalité de leur culture. Il s’agit de rien moins que de
l’invention d’un champ littéraire non européen” (MOURA, 2019, p. 99).
20
“Considérer donc la littérature africaine comme “un champ”, c'est la définir comme un espace social particulier
régi par des caractéristiques, des règles, des modes de fonctionnement spécifiques, essentiellement producteur d'un
patrimoine, des ressources, voire d'un capital dont la valeur et les critères de légitimité relèvent de sa seule
autonomie” (N'GORAN, 2009, p. 22).
21

Tratar o campo com autonomia significa observá-lo em si, em sua própria construção e
realização.21 N’Goran acredita que esse campo seja mais “totalizante”22 do que os outros, uma
vez que este tem por intenção “responder à questão fundamental e determinante de qualquer
projeto interpretativo, a saber, restituir o seu sentido ao “como” e ao “porquê” de uma
determinada forma textual num dado momento histórico, numa sociedade bem definida”
(N'GORAN, 2009, p. 23).23 O discurso e a forma como eles são construídos devem ser o ponto
de partida na interpretação do discurso literário, pois os elementos discursivos e sua utilização,
em uma determinada sociedade, podem evidenciar quais foram as motivações do escritor para
realizar essas escolhas.
Diferentemente de Moura, que apresenta a proposta de um caminho pós-colonial
partindo da cronologia da historiografia europeia, N’Goran está mais preocupado em averiguar
em que momento houve o início da construção do campo literário africano, como ressalta a
pesquisadora Martins (2019) em análise do estudo de N’Goran: “(...) o autor postula que não
basta prestar atenção aos acontecimentos históricos expostos de forma cronológica, mas é
preciso, também, considerar as ‘ondas de choque’” (2019, p. 35, aspas da autora). Em outras
palavras, ele propõe observar em que momento ocorre uma mudança substancial para se
considerar o nascimento do campo literário africano.
Como analisamos, da literatura exótica à literatura colonial a representação do “outro”
como aquele que é estranho ao europeu foi responsável por uma série de dicotomias. N’Goran
considera que “essa representação do ‘outro’ percebida um pouco como um alerta para a
desumanização tem um outro lado, consistindo em contrapor o estereótipo da aspereza do clima
e da letalidade da paisagem à fantasia de uma natureza virgem, acolhedora, até mesmo edênica”
(...) (2009, p. 31, aspas do autor).24 Essa desumanização dos indivíduos e de seu espaço foi
responsável por contribuir com o desenvolvimento de uma visão redutora do povo autóctone e
por fortalecer a diferenciação entre “alma branca e alma negra” (N’GORAN, 2009, p. 32).25

21
Relevante ressaltar que N’Goran tem como ponto de partida os estudos sociológicos de Bourdieu para pensar
sobre o campo africano, embora reconheça que os estudos de Bourdieu não tratem exatamente do objeto “africano”
(N'GORAN, 2009, p. 22).
22
Essa palavra é utilizada com frequência por N’Goran evidenciando o quanto as teorias têm a pretensão de serem
totalizantes, mas não conseguem de fato devido a alguns fatores. A crítica de Bordieu, em comparação às demais,
de acordo com N’Goran, é mais totalizante exatamente por fazer as perguntas certas que consistem em
compreender o discurso literário.
23
“(…) répondre à la question fondamentale et déterminante pour tout projet interprétatif, à savoir restituer leurs
sens au ‘comment’ et au ‘pourquoi’ d'une forme textuelle particulière à un moment historique donné dans une
société bien déterminée.”
24
“Cette représentation de ‘l'autre’ perçue un peu comme une mise en garde de déshumanisation porte un autre
versant, consistant à opposer au stéréotype de la rudesse du climat et de la létalité du paysage, le fantasme d'une
nature vierge, accueillante, voire édénique” (N’GORAN, 2009, p. 31).
25
“âme blanche et âme noire” (N’GORAN, 2009, p. 31).
22

Nesse cenário histórico e literário, N’Goran salienta que houve “a apropriação ou inversão
discursiva com o caso René Maran” (N’GORAN, 2009, p. 34).26 O discurso europeu sobre o
povo autóctone abriu as portas para que houvesse um “contra-discurso”.27 Isso significa dizer
que essa oposição existente no âmbito social e literário deu margem para o nascimento de um
discurso que buscava, de algum modo, se “defender” do discurso europeu, sendo isso o que
ocorreu a partir da obra Batouala de René Maran.

Em outras palavras, Maran se coloca como personagem ou herói fundador de um ato


primordial: o de dar o direito de fala aos africanos para que desenvolvam outro tipo
de discurso cuja legitimidade não é mais absolutamente conferida pelo Ocidente, mas
cuja validade estará vinculada a esse espaço literário específico em constituição
(N’GORAN, 2009, p. 36).28

Tanto Moura quanto N’Goran então em consonância ao considerar o romance de Maran


como precursor, a diferença é que N’Goran vai além, concebe a obra de Maran como o ponto
fundamental da construção do campo literário africano evidenciando que foi nesse momento
que houve, efetivamente, o resgate e a “apropriação” da palavra africana. René Maran trouxe o
povo autóctone para ser sujeito em seu discurso (N’GORAN, 2009, p. 38).

Em suma, o objeto reivindica sua autonomia e quer ser o sujeito de seu discurso, não
mais um tema. Esse deslocamento pode ser compreendido como uma verdadeira
tomada de consciência e uma possibilidade de expansão do espaço discursivo a ser
ocupado pelo africano, ainda que tenha como ponto de partida e objeto de referência
a literatura francesa (MARTINS, 2019, p. 39).

O campo da literatura europeia, que era referência do escritor africano, era também um
campo de legitimação da produção literária autóctone. Os escritores estavam dispostos a jogar
conforme as regras desse campo literário, considerado como o “pai” dos primeiros escritores
africanos.29 Em sua tese, o autor traz um capítulo sobre o “parricídio”,30 com o objetivo de
mostrar que essa suposta desvinculação da produção literária francesa datada do período do
movimento da negritude aconteceu bem antes disso. René Maran foi o primeiro a destruir o

26
“ (…) l'appropriation discursive ou le renversement avec le cas René Maran” (N’GORAN, 2009, p. 34).
27
“Autrement dit, le champ français et son appendice, la littérature coloniale et/ou indigène, en se posant au départ
sous le prisme du ‘même’ et de ‘l'autre’, par une constitution de l'Africain et son espace en objet littéraire,
oeuvreront à l'avènement d'un mouvement de contestation transformant l'objet en sujet. Dès lors, la littérature
africaine francophone pourra être lue, à un moment donné de son histoire, à travers les schèmes oppositionnels du
‘discours’ et du ‘contre-discours’ ou, selon le mot de Mouralis, comme une ‘contre littérature’” (N’GORAN, 2009,
p. 37).
28
“En d’autres termes, Maran se pose comme un personnage ou un héros fondateur d'un acte primordial : celui de
donner le droit à la parole aux Africains afin qu'ils développent un autre type de discours dont la légitimité n'est
plus absolument conférée par l'Occident, mais, dont la validité sera liée à cet espace littéraire spécifique en
constitution”.
29
Alguns nomes de escritores africanos destacados por N’Goran são: Malick, Robert Delavignette, Ousmane Socé,
Jean Richard Bloch, Bakary Diallo.
30
Título do capítulo : “Le mythicide et le parricide ”
23

mito de que somente os europeus poderiam escrever sobre a África, e isso quebrou com a
relação de “pai” que tinham com o campo literário francês. Assim, Maran foi considerado como
referência para todo um campo africano em desenvolvimento. Senghor, Césaire e Damas com
a criação do conceito de “negritude”, começam a se conectar com os preceitos deste novo
campo de significação. Posteriormente, Senghor, Césaire e Damas passam, então, a serem
considerados os “pais”, “os clássicos” servindo como de ponto referência e ponto de partida
para outros escritores africanos.
Em dado momento, o campo literário africano esteve muito atrelado a elementos
políticos e sociais, afinal, os escritores estavam presentes nessas duas esferas. Césaire e Senghor
participaram ativamente do universo político de seus respectivos países, exercendo, inclusive,
cargos políticos importantes. Acerca dessa junção de esferas, Imorou (2009) diz que “esta
configuração foi benéfica: unindo forças, estes campos puderam emancipar-se dos espaços
ocidentais (...). O caminho comum terminou após a independência, seguindo o desencanto com
os regimes ditatoriais que então estavam em vigor” (2009, p. 53).31 Essa perspectiva é
interessante (enfocamos aqui o caso da África Ocidental Francesa), pois na construção de uma
literatura africana engajada contra o colonialismo – no momento de decolonização do
pensamento e das mentes no continente africano –, percebe-se que movimentos sindicais e
políticos fizeram parte desse início de produção consciente na África. Nesse momento, tem-se
uma literatura que se desvincula ainda mais da literatura ocidental e que traz questões referentes
ao universo de significação africano contra a colonização. Com a independência dos países da
África Ocidental Francesa, vem a conquista da autonomia do campo literário africano e também
de sua emancipação das esferas políticas e econômicas, na medida em que o reconhecimento
como autor e o reconhecimento no cargo público passam a ser colocados em esferas distintas.
Acerca do conceito de negritude, N’Goran ressalta ainda que ele trouxe consigo
conceitos essenciais como “oralidade” e “tradição”. Esses elementos são vistos como aqueles
que fazem parte das produções literárias africanas. Assim, focalizaremos em especial nesses
aspectos. A oralidade, por exemplo, se tornou uma das características deste campo literário.
Como é de conhecimento, a oralidade é um dos componentes que fazem parte da construção do
campo da literatura africana, desde os mitos e provérbios africanos que são milenares até as
obras modernas africanas. A oralidade compõe o arcabouço artístico e cultural da tradição
africana. É claro que esses não são elementos que somente estão presentes nas obras africanas,

31
“Cette configuration a été bénéfique : en liguant leurs forces, ces champs ont pu s’émanciper des espaces
occidentaux (…). Le cheminement commun prend fin après les indépendances, suite au désenchantement faceaux
régimes dictatoriaux qui se mettent alors en place” (2009, p. 53).
24

a oralidade também é um dos componentes presentes na composição de clássicos como a


Odisséia e a Ilíada de Homero. A diferença é que as produções africanas orais foram vistas
como se fossem produções de uma sociedade “menos” desenvolvidas, mas os mesmos
parâmetros não são levados em consideração quando falamos da produção literária grega ou
latina. Oralidade e tradição são conceitos-chave para entendermos o que posteriormente veio a
ser o campo das literaturas africanas francófonas.

Erguidas, portanto, como objetos de luta entre os autores do campo, “oralidade” e


“tradição” constituem “as regras do jogo” ou “as leis de vida” do espaço literário
africano. O objeto dessa literatura não é, portanto, em si, o real, mas um efeito de real
traduzindo a realidade do campo (N’GORAN, 2009, p. 25, aspas do autor).32

Considerados como sendo elementos fundadores, a oralidade e a tradição ocupam um


espaço importante no estudo das literaturas africanas. O ponto de vista que acompanha o estudo
de N’Goran é relevante na medida em que compreendemos que o que realmente importa é o
“efeito de real”, não se o que é narrado é ou não fruto de uma realidade específica. É
fundamental se levar em consideração que alguns escritores africanos podem produzir suas
obras em diálogo com “as regras do jogo” desse campo e outros podem não ter conhecimento
e nem buscar seguir os elementos nelas presentes e, de modo totalmente despretensioso, podem
compor obras que dialogam com essas regras, mesmo sem terem consciência disso (N’GORAN,
2009, p. 193). N’Goran, cita o exemplo do escritor Yambo Ouologuem,33 como sendo é um dos
autores que tem consciência dos elementos em jogo desse campo literário africano e que se
serve deles de modo lúcido34 na composição de suas obras. Entretanto, há escritores que não
necessariamente sabem as regras do jogo ou se servem delas.
Nesse sentido, acreditamos que o ponto chave para toda essa questão é: compreender
que o elemento sócio-histórico, que também faz parte das regras desse jogo, não deve ser
determinante. O que realmente é considerado imprescindível é a construção literária e o que ela
transmite. A criação nela mesma é o mais relevante nesse campo, para além dela se atrelar à
“oralidade” e à “tradição”. O campo não pode limitar o escritor. O escritor pode ou não ter
consciência das regras do jogo, mas elas não determinam e não devem determinar a produção

32
“(…) Érigées donc en objets de lutte entre les acteurs du champ, ‘l'oralité’ et ‘la tradition’ constituent ‘les règles
du jeu’ ou ‘les lois de vie’ de l'espace littéraire africain. L'objet de cette littérature n'est alors pas en soi le réel,
mais un effet de réel traduisant la réalité du champ” (N’GORAN, 2009, p. 25).
33
Escritor nascido no Mali em 1940 e que faleceu em 2017.
34
“Inversement, s’ils ont comme Yambo Ouologuem, connaissance de ces règles supposées déterminer leurs
conduites littéraires, ils ne peuvent pas pour autant apparaître comme ‘cyniques ou imposteurs’” (“Por outro lado,
se eles têm, como Yambo Ouologuem, conhecimento dessas regras que supostamente determinam seu
comportamento literário, eles não podem aparecer como ‘cínicos ou impostores’”) (N’GORAN, 2009, p. 193).
25

literária. O mais importante é a capacidade literária e textual do escritor. Sobre isso, em análise
ao texto de N’Goran, Imorou (2009) salienta que

Desta forma, em sua sociologia das práticas literárias na África, a literatura não parece
ser uma aplicação mecânica das regras do jogo ditadas pelo campo literário. Em última
análise, o que importa aos autores é a produção de textos literários. Muito mais do que
sua capacidade de lidar com os motivos da oralidade e da tradição, são suas
habilidades artísticas que contam. Desta forma, seus textos, felizmente, se revelam
capazes de dizer algo diferente do que o bom uso desses motivos recomendaria (2009,
p. 05).35

Desse modo, mesmo a “oralidade” e a “tradição” sendo, sem sombra de dúvidas,


componentes que fazem parte dessa literatura, não precisam ser encaradas como os únicos
elementos de análise desse campo. O que levamos fortemente em consideração é a construção
e a produção literária nela mesma, o que ela nos apresenta e se, porventura, esses elementos da
tradição e da oralidade são apropriados na análise de uma determinada obra (N’GORAN, 2009,
p. 73). Desse modo, a virada de chave que N’Goran apresenta, e que acreditamos que seja
interessante, é quando ele diz que esses elementos não necessariamente estarão presentes como
elementos de análise em todas as obras. O uso que o escritor pode fazer desses elementos é
percebido por meio de sua estética literária que é aberta a um universo de possibilidade, não
limitando o escritor, muito menos sua produção literária.
Isto posto, tanto em relação à consolidação do campo das literaturas pós-coloniais
quanto da literatura africana francófona, a partir dos textos apresentados, percebemos que a
chave para um bom caminho de análise se dá efetivamente pela enunciação do discurso literário.
É por meio dele que temos todos os elementos necessários para fazer um bom estudo dessas
narrativas. Ademais, compreende-se que os elementos socioculturais e sociopolíticos são
utilizados como plano de fundo, uma vez que se percebe que esse campo das literaturas pós-
coloniais africanas conquista legitimação por meio de seu espaço de produção fazendo com que
esse campo se distinga do campo europeu e que consolide cada vez mais sua autonomia. Assim,
o campo literário africano e das literaturas pós-coloniais francófonas parte de todos esses
componentes que a constituem como tal, principalmente colocando o povo africano e sua
sociedade como sujeitos protagonistas de sua narrativa.

35
“De la sorte, dans sa sociologie des pratiques littéraires en Afrique, la littérature n’apparaît pas comme étant une
application mécanique des règles du jeu dicté par le champ littéraire. En dernière analyse, ce qui importe aux
auteurs c'est la production de textes littéraires. Bien plus que leur capacité à manier les motifs de l'oralité et de la
tradition, ce sont leurs capacités artistiques qui comptent. De la sorte, leurs textes se révèlent, fort heureusement,
capables de dire autre chose que ce que le bon usage de ces motifs leur recommanderait de dire”.
26

2.3 Aminata Sow Fall: Escritora francófona

Aminata Sow Fall faz parte do universo africano francófono apresentado acima. Uma
das grandes mudanças nesse campo das literaturas francófonas africanas ocorre com a presença
de mulheres escritoras. No começo dessa produção literária, observa-se que não havia a
presença de mulheres, isso se explica pelo processo colonizatório36 que privilegiou o ensino de
meninos em detrimento do das meninas. Isso impossibilitou, por longos anos, a presença de
mulheres na cena literária. No Senegal, especificamente, a primeira romancista a publicar foi
Nafissatou Niang Diallo, com seu romance intitulada De Tilène au Plateau (1975), e a segunda
foi Aminata Sow Fall37 com o romance Le revenant (1976). Acerca de Fall, lemos: “Aminata
Sow Fall é não apenas uma das escritoras pioneiras da literatura senegalesa, mas também da
África francófona. Romancista talentosa, ela sempre está presente na cena literária africana”
(CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 11).38
A presença das mulheres escritoras foi de suma importância para o desenvolvimento do
campo literário africano. Os pesquisadores Cabakulo e Camara (2002) são precisos ao
constatarem que “o surgimento da escritora africana é um fato interessante tanto literário quanto
social. De fato, até recentemente, os homens sentiam-se autorizados a escrever sobre as
mulheres. Eles evocaram, em graus variados, a condição da mulher” (CABAKULU;
CAMARA, 2002, p. 20).39 Por terem ficado sem voz durante muito tempo, não houve um ponto

36
Abordaremos sobre esse período no capítulo seguinte.
37
Aminata Sow Fall é uma escritora que faz parte desse universo Francófono delineado acima. Fall nasceu em
Saint-Louis, no Senegal, em 27 de abril de 1941. Permaneceu no Senegal até 1962, quando foi estudar na França,
onde se diplomou em licenciatura em línguas modernas na universidade de Sorbonne. Em seguida, voltou ao seu
país natal e começou a trabalhar como professora de Letras modernas. De 1974 a 1979 ela fez parte da Commission
Nationale de Réforme de l'Enseignement du Français, na qual pode auxiliar na elaboração de materiais para o
ensino de francês na África. Nos anos seguintes, de 1979 a 1988, foi diretora da divisão de Lettres et Propriété
intellectuelle no Ministério da Cultura e diretora do Centre d’Études et de Civilisation. Foi fundadora da Editora
Khoudia, do Departamento Africano para a Defesa das Liberdades do Escritor (BADLE) em Dakar, do Centro
Africano de Animação e Intercâmbio Cultural (CAEC) e do Centro Internacional de Estudos, Pesquisa e
Reativação em Literatura, Artes e Cultura (CIRLAC) em Saint-Louis. Além desse percurso de vida como
professora e em organismos públicos voltados para a educação, Aminata Sow Fall é também escritora e faz parte
da primeira geração de romancistas do Senegal. É autora das seguintes obras: Le Revenant (1976), La Grève des
Bàttu (1979), L'Appel des arènes (1982), L'Ex-père de la nation (1987), Le Jujubier du patriarche (1993) Douceurs
du bercail (1998), Un grain de vie et d’espérance (2002) e L'empire du mensonge (2017). Em 25 de maio de 1997,
tornou- se doutora Honoris Causa do Mount Holyoke College, em South Hadley, Massachusetts, nos Estados
Unidos, bem como de outras instituições acadêmicas. Aminata Sow Fall foi conferencista em várias universidades
e países, tratando de temas como literatura, cultura, sociedade e paz etc (GUÉYE, 2005, p. 7 -12).
38
“Aminata Sow Fall Fait partie des femmes écrivains pionnières de la littérature sénégalaise, voire africaine
francophone. Romancière de talent, elle est toujours présente sur la scène littéraire africaine” (CABAKULU;
CAMARA, 2002, p. 11).
39
“L’émergence de l’écrivain femme africaine constitue un fait intéressant à la fois littéraire et social. En effet,
jusqu’à une époque récente, les hommes s’étaient arrogé le droit d’écrire sur les femmes. Ils évoquaient, à des
degrés divers, la condition de la femme” (CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 20).
27

de vista feminino acerca de sua própria realidade, assim como dificilmente havia a presença de
protagonistas femininas nas obras escritas por homens.
Guèye (2005) constata que o início da produção escrita por mulheres no Senegal, em
1970, tinha a característica de serem narrativas autobiográficas, como no caso de Nafissatou
Niang Diallo e Mariama Bâ (com sua obra Une si longue lettre, publicada em 1979).

Todas essas mulheres trabalham por leis justas e contra um mundo marcado pela
ideologia patriarcal. Sentem-se solidárias com todos aqueles que lutam no mundo
inteiro pela liberdade e pela dignidade da mulher. Com isso, elas despertam uma nova
esperança nas condições das mulheres africanas e sua escrita pretende ser
profundamente feminista (CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 21).40

Diferentemente de suas conterrâneas, a abordagem autobiográfica e feminista não foi a


proposta adotada por Aminata Sow Fall em seu primeiro romance. Segundo Guèye, “(...) le
Revenant (...) se distingue dos romances de suas compatriotas. De fato, ao invés de colocar em
evidência a descrição da condição feminina, a romancista apresenta uma visão mais ampla,
representando a condição humana” (GUÈYE, 2005, p. 18).41 Há alguns debates sobre Fall ser,
ou não ser, uma autora feminista. Em resumo, o embate se realiza já que há a inquietação em
descobrir se Sow Fall não estaria preocupada com a causa feminina, como demonstram outras
escritoras de sua geração. Guèye enfatiza que alguns críticos consideram que Fall traz temas
importantes relacionados às mulheres na medida em que apresenta temáticas como o casamento
e a poligamia em suas obras. A diferença é que a autora “(...) se recusa a ver sua escrita se
trancar em um certo código sexual ou mesmo sexista que a forçaria a ser marginalizada”
(GALLIMORE, 1997, p. 14, apud GUÈYE, 2005, p. 20).42 Refletindo sobre isso, acreditamos
que não tratar abertamente das causas consideradas feministas não significa que elas não
estejam presentes nas produções literárias da autora. Analisando as obras Douceurs du bercail
(1998) e La grève des bàttu (2001), observamos elementos que remetem à condição das
mulheres, principalmente às funções que lhes são atribuídas enquanto mulheres em sua
sociedade, que poderiam, eventualmente, serem lidas como uma espécie de denúncia de um
contexto que não favorece as mulheres. Um artigo de Onyemelukwe intitulado “Drame

40
“Toutes ces femmes œuvrent pour des lois justes et contre un monde marqué par l’idéologie patriarcale. Elles
se sentent solidaires de toutes celles qui luttent par le monde pour la liberté et pour la dignité de la femme. En cela
elles suscitent un espoir nouveau dans les conditions de la femme africaine et leur écriture se veut profondément
féministe” (CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 21).
41
“(…) le Revenant (…) se distingue de ceux de ses deux compatriotes. En effet, au lieu d’accentuer la description
de la condition féminine, la romancière présente une vision plus élargie en peignant la condition humaine”
(GUÈYE, 2005, p. 18).
42
“(...) refuse de voir son écrite s’enferme dans un certain code sexuel ou même sexiste qui la forcerait à se
merginaliser” (GALLIMORE, 1997, p. 14, apud GUÈYE, 2005, p. 20).
28

conjugal et voix féministes dans La grève des bàttu d’Aminata Sow Fall” (1999) corrobora a
nossa hipótese de que há elementos nas obras de Sow Fall que podem ser analisados por essa
perspectiva.
Os críticos das obras de Fall ressaltam que elementos compõem a obra da autora e que
a diferenciam das romancistas citadas acima:

Considerando o enquadramento espacial e temporal da obra de Aminata Sow Fall,


verifica-se que os romances da autora pintam um vasto afresco da sociedade
senegalesa, representando épocas relativas ao mundo tradicional, à colonização, à
independência e ao período pós-independência. (...) Aminata Sow Fall tenta redefinir
o lugar do senegalês numa sociedade em mudança pela sua consciência dos problemas
de uma África em convulsão, consequência direta do aparecimento de novas
realidades sociais. Como seu compatriota Sembène Ousmane, ela reflete sobre a
função da arte escrevendo romances nos quais desenvolve uma moral de ação para o
desenvolvimento social (GUÈYE, 2005, p. 21-22).43

Como veremos no próximo capítulo, a colonização e as heranças oriundas desse


processo deixaram marcas nas sociedades colonizadas. Tendo em vista todo esse cenário, as
obras de Fall trazem elementos do plano de fundo da sociedade senegalesa e, a partir dela, criam
suas narrativas dinamicamente prazerosas e satíricas. Sembène Ousmane, conterrâneo de
Aminata Sow Fall, escreveu o romance Xala (1973), que foi transformado em filme. Fall, por
sua vez, escreveu La grève des bàttu (1979), que dialoga com a narrativa de Ousmane, na
medida em que ambos apresentam uma sociedade senegalesa recém-independente, na qual o
arrivismo político é tão forte, que as personagens se servem de dogmas religiosos para realizar
seus anseios. Ambos apresentam em sua ficção uma visão aguçada de determinados temas que
eram da ordem do dia na sociedade senegalesa.
Para além do romance La grève des bàttu, os demais romances publicados pela autora,
de acordo com os especialistas Cabakulu e Camara, apresentam elementos que os relacionam
com a condição humana da sociedade em que a escritora habita: “ela [Aminata Sow Fall] já
publicou seis romances que mostram essencialmente uma obra de denúncia dos males dos quais
padece a sociedade senegalesa. Muito cativante, essa obra enfatiza os problemas efervescentes
de nossa época” (CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 11).44

43
“En considérant le cadre spatial et temporel de l'œuvre d’Aminata Sow Fall, il apparaît que les romans de l’auteur
dépeignent une vaste fresque de la société sénégalaise, représentant des époques relatives au monde traditionnel,
à la colonisation, à l’indépendance et à la période post-indépendance. (...) Aminata Sow Fall tente de redéfinir la
place du Sénégalais dans une société changeante à cause de sa prise de conscience des problèmes d’une Afrique
en état de bouleversement, conséquence directe de l’apparition de nouvelles réalités sociales. Comme son
compatriote Sembène Ousmane, elle réfléchit à la fonction de l’art en écrivant des romans où elle développe une
morale d’action pour le développement social” (GUÈYE, 2005, p. 21-22).
44
“Elle a déjà publié six romans qui demeurent essentiellement une œuvre de dénonciation des maux dont souffre
la société sénégalaise. Bien attachante, cette œuvre pose en fait les problèmes brûlants de notre époque”
CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 11).
29

Ao pensar sobre essa sociedade em construção e em desenvolvimento, Fall não deixa


de lado uma característica milenar de seu contexto e que reverbera em suas obras: a tradição
oral, de que tratamos anteriormente. Isso significa dizer que, em seu romance, a autora traz para
a narrativa uma voz particular relacionada à tradição, que permeia a sua sociedade e as obras
que essa mesma sociedade constrói: “(...) estas particularidades do romance africano definem
o seu caráter etnotextual que resulta essencialmente da literatura oral tradicional” (GUÈYE,
2005, p. 24).45 Nesse sentido, Fall traz como sujeito de seu romance as personagens típicas de
sua sociedade, assim como elementos desse seu campo de representação para a narrativa.
Aprofundaremos, a seguir, a compreensão desses elementos da oralidade e da tradição na obra
de Fall.

2.3.1 A estética da oralidade na obra de Aminata Sow Fall

Como apresentamos anteriormente, segundo N’Goran, quando tratamos do campo da


literatura africana, é comum que se recorra à oralidade e à tradição como dois elementos que o
constituem. Considerando todas as ressalvas já elencadas acima, não podemos deixar de lado a
importância desses elementos na constituição da obra de Aminata Sow Fal.46 De acordo com
Guèye, respeitar as literaturas africanas significa compreender que dentro do campo literário
africano essas literaturas são constituídas por meio de códigos, que são utilizados para a análise
dessas obras e constituem a crítica e a epistemologia africana. Mesmo em se tratando de uma
literatura escrita na língua do ex-colonizador, Guèye ressalta que os espaços culturais e
geográficos dessas produções não são os mesmos da literatura escrita na França e, por essa
razão, deve-se ter consciência de que são outros os parâmetros de análise. Assim, uma
“releitura” da tradição é importante e, a partir disso, essa releitura possibilita que haja uma
expansão para outras questões (GUÈYE, 2005, p. 25).

É por isso que as leituras de textos produzidos fora da França, e principalmente na


África, inspirados apenas em metodologias ocidentais, são um sério obstáculo para a
recepção e interpretação dessas obras. Devemos considerar a problemática da

45
“ (…) ces particularités du roman africain définissent son caractère ethnotextuel qui résulte essentiellement de
la littérature orale traditionnelle” (GUÈYE, 2005, p. 24).
46
Guèye evidencia que muitos são os debates entre a crítica africanista que está sempre em objeção com a crítica
ocidental e como outras críticas africanas. Isso porque a crítica africanista parte da oralidade para “explicar o
trabalho de escritores africanos” (GUÈYE, 2005, p. 24) e isso pode, de certa forma, reduzir ou diminuir um
trabalho ao considerar esses elementos como sendo essenciais.
30

oralidade e da escrita na literatura africana e prolongá-la ou ampliá-la por meio de


outras questões (GUÈYE, 2005, p. 26).47

A oralidade, que esteve presente no início da produção africana, e que até os dias atuais
pode ser observada, proporciona a originalidade da literatura africana em uma relação à
literatura oral. É indispensável ter em mente que, mesmo escritas em francês, essas obras,
esteticamente, visam a trazer os “valores estéticos africanos”48 sendo “(...) uma antropofagia
cultural ou uma descolonização do texto literário africano” (GUÈYE, 2005, p. 28).49

Uma vez que a obra se constrói construindo seu contexto, e que o contexto africano
se caracteriza pelo fato de a literatura oral ainda estar viva na sociedade por meio da
educação, então, a presença de formas culturais de expressão da oralidade no romance
deve ser um fator de reflexão na interpretação de obras africanas (GUÈYE, 2005, p.
28).50

Assim, o crítico enfatiza a importância dessa presença da oralidade, visto que nas
sociedades francófonas é comum existirem situações de plurilinguismo (língua falada e língua
escrita) e muitas vezes a língua francesa, que é língua de expressão literária desses autores, não
é sua língua materna. Sua língua materna aparece em determinados momentos de sua narrativa.
Essa é uma prática deveras comum para escritores francófonos, uma vez que faz parte e
caracteriza o contexto no qual esses autores estão imersos. A isso o autor denomina “conscience
linguistique”, ou seja, a consciência da existência da língua francesa em relação às línguas
africanas. Isso significa dizer que “(...) as obras africanas que assim se situam na consciência
linguística, neste lugar de multiplicidade, até de ambiguidade, provam que o escritor francófono
não é apenas um tradutor de uma língua para outra, mas um tradutor de um imaginário para
outro” (GUÈYE, 2005, p. 30).51 A crítica africanista vai chamar de “oralité feinte”52 na qual

47
“C’est pourquoi les lectures des textes produits hors de l’Hexagone, et principalement en Afrique, inspirées
uniquement par des méthodologies occidentales, sont un handicap sérieux pour la réception et l’interprétation de
ces œuvres. Il faut prendre en charge la problématique de l’oralité et de l’écriture dans la littérature africaine et la
prolonger ou l’élargir par d’autres questionnements” (GUÈYE, 2005, p. 26).
48
“valeurs esthétiques africaines” (GUÈYE, 2005, p. 28).
49
“ (…) une anthropophagie culturelle ou une décolonisation du texte littéraire africain” (GUÈYE, 2005, p. 28).
50
“Puisque l’œuvre se construit en construisant son contexte, et que le contexte africain est caractérisé par le fait
que la littérature orale est toujours vivante dans la société à travers l’éducation, alors la présence des formes
d’expression culturelles de l’oralité dans le roman doit être un facteur de réflexion dans l’interprétation des œuvres
africaines” (GUÈYE, 2005, p. 28).
51
“ (…) les œuvres africaines qui se situent ainsi de la conscience linguistique, en ce lieu de la multiplicité, voire
de l'ambiguïté, prouvent que l’écrivain francophone est non seulement traducteur d’une langue à une autre, mais
traducteur d’un imaginaire à un autre” (GUÈYE, 2005, p. 30).
52
“Oralidade fingida”. Acerca deste conceito, Guèye ressalta: “(...) Et c’est à ce point que nous voulions en arriver
[...] réfléchir à la notion d’oralité feinte utilisée pour caractériser la littérature africaine d’expression française, en
la rapportant à ce concept d’esthétique littéraire qu’est l’écart” [“(...) E é a este ponto que queríamos chegar [...]
para refletir sobre a noção de oralidade fingida que caracteriza a literatura africana de expressão francesa,
relacionando-a com este conceito de estética literária que é a lacuna.]”( DIAGNE, 1997, p. 2-3, apud GUÈYE,
2005, p. 30-31).
31

um texto, que é escrito na língua europeia, apresenta palavras da língua africana, sendo
considerada essa “oralidade fingida” como um elemento estético e até mesmo um ato poético
(GUÈYE, 2005, p. 30):

De fato, escrever em outra língua significa também referir-se à sua cultura, ao seu
próprio sistema simbólico através de vários procedimentos estilísticos e discursivos.
É nesse sentido que a oralidade fingida é um ato poético, um ato de criação, porque
ela é sempre a produção de um excedente. Como imitar a oralidade no romance
também significa criar uma linguagem literária, a questão da oralidade e da escrita
leva a outro debate, que é o da linguagem da criação (...) (GUÈYE, 2005, p. 30-31).53

Se escrever na língua materna não é algo considerado fácil para nenhum escritor,
escrever em uma língua que é a sua segunda língua é ainda mais difícil. Escrever em outra
língua é transpor sua cultura, seja de forma voluntária ou involuntária. Isso pode ser feito por
meio do estilo empregado, da forma de discurso escolhido, dos enunciados ou de outros
recursos estéticos. Empregando esse recurso de criação da oralidade no romance, o escritor está
enriquecendo sua criação literária, visto que torna-se um elemento estético na obra. Isso
significa que o autor francófono, para além de todos os desafios de escrever em uma língua que
não é a sua língua materna, a partir de sua estilística própria realizada pela presença da oralidade
em sua obra, acaba constituindo uma nova linguagem que lhe é própria. Essa linguagem tem
relação com seu universo de significação e se transforma em um elemento de estudo em sua
obra pela autenticidade de sua realização. É tendo esses debates em vista que Guèye enfatiza
que as obras de Aminata Sow Fall devem ser estudadas.
Compreende-se que não é possível separar os códigos da língua francesa em contato
com a sociedade senegalesa, ou com outros códigos do universo francófono, da criação
realizada pelo escritor. Considera-se, pois, que a língua não é neutra e de que o francês na
sociedade senegalesa adquiriu outras características e essas características apresentam marcas
desse universo africano.54 Os autores francófonos sempre estão no meio dessa “tensão da língua
em relação ao universo simbólico”: “elas [as línguas] consagram formas híbridas, uma nova e
misturada realidade, ditas e construídas pela literatura” (GUÈYE, 2005, p. 32).55

53
“En effet, écrire dans une autre langue, c’est aussi faire référence à sa culture, à son propre système symbolique
à travers divers procédés stylistiques et discursifs. C’est en ce sens que l’oralité feinte est un acte poétique, un acte
de création, car elle est toujours production d’un surplus. Comme imiter l’oralité dans le roman, c’est aussi créer
un langage littéraire, la question sur l’oralité et l'écriture se ramène à un autre débat qui est celui du langage de
création” (GUÈYE, 2005, p. 30-31).
54
Veremos na sequência como se constitui a língua francesa no Senegal e qual é o contexto linguístico nessa
sociedade.
55
“Elles [les langues] consacrent des formes hybrides, une réalité nouvelle et mixte, à la fois dite et construite par
la littérature” (GUÈYE, 2005, p. 32).
32

Outro ponto que o crítico ressalta é que “romancista negro” foi influenciado igualmente
por meio da tradição “das escolas europeias” e somado a isso ele enfatiza que “sua obra exprime
inevitavelmente uma dualidade estética” (GUÈYE, 2005, p. 32).56

Não se trata de imitar o modelo estrangeiro, nem de reproduzir fielmente a herança


oral. É precisamente esta “continuidade da tradição num contexto de modernização”,
esta posição singular na encruzilhada do oral e do escrito, essa tentativa de encaixar
[...] um discurso retirado de uma cultura diferente, em outra cujo sumo é feito de temas
específicos, símbolos, mitos para alcançar uma ‘osmose’, que faz a originalidade do
romance africano de língua francesa (KAZI-TANI, 1995, p. 42, apud GUÈYE, 2005,
p. 33, aspas do autor).57

É na relação, na conexão, no encontro dos caminhos da oralidade em consonância com


a modernidade, que se cria e se constrói o romance africano de Fall. Ao pensar na literatura
oral, Guèye salienta que é por meio dela que o escritor africano tem acesso à sua constituição
intelectual e artística como indivíduo. A oralidade é sua primeira prática em âmbito social e é
responsável por moldar esse escritor. A língua francesa de Aminata Sow Fall está vinculada a
um universo conectado a essa literatura oral que, por sua vez, se conecta a seu universo
referencial. Por isso, para Guèye, servir-se do hipotexto para analisar os romances de Fall é o
caminho mais produtivo: “(...) assim, nos referimos ao hipotexto para máxima legibilidade dos
romances de Aminata Sow Fall, porque o romance senegalês, obra de língua e obra de arte,
depende inflexivelmente de seu texto externo” (DIOP, 1995, p. 11, apud GUÈYE, 2005, p.
34).58 Esse texto externo conecta a tradição oral à modernidade e permite que Fall construa suas
narrativas a partir de sua linguagem da criação, que se correlaciona com a sociedade africana e
ao mesmo tempo com outros espaços.

56
“ (…) son oeuvre exprimé inévitablement une dualité esthétique”. Ainda sobre isso, o autor enfatiza a relação
entre as línguas se constituindo como uma interlíngua: “L'écrivain n’est pas confronté à la langue mais à une
interaction de langues et d’usages, à ce qu’on pourrait appeler une interlangue. [...] L’écrivain négocie à travers
l’interlangue un code langagier qui lui est propre. C’est donc sur les frontières qu’il écrit: non pas tant en français,
en italien, etc., qu’à la jointure instable de divers espaces langagiers” (GUÈYE, 2005. p. 32).
57
“Il n’est question ni d’imiter le modèle étranger, ni de reproduire fidèlement l’héritage oral. C’est précisément
cette ‘suivie de la tradition dans un contexte de modernisation’, cette position singulière au carrefour de l’oral et
de l’écrit, cette tentative d’emboîter [...] un discours pris dans une culture différente, dans une autre dont le suc est
constitué de thèmes, de symboles, de mythes spécifiques pour aboutir à une ‘osmose, qui fait l’originalité du roman
africain de langue française” (KAZI-TANI, 1995, p. 42, apud GUÈYE, 2005, p. 33).
58
“(...) ainsi nous nous référons à l’hypotexte pour une lisibilité maximale des romans d’Aminata Sow Fall, car le
roman sénégalais, œuvre de langue et œuvre d’art, dépend indéfectiblement de son hors-texte (DIOP, 1995, p. 11,
apud GUÈYE, 2005, p. 34).
33

2.3.2 Là grève des bàttu : resumo do romance

Em 1980, Fall ganhou o Grand prix littéraire d’Afrique noire (“Grande prêmio literário
da África negra”) com La Grève des bàttu, nosso objeto de estudo, que foi traduzido em várias
línguas e adaptado para o cinema (cf. GUÈYE, 2005, p. 14). Já em seu título, o romance traz
marcas do universo social de Fall, na palavra em uolofe bàttu. De acordo com Onyemelukwe,
essa palavra significa “cabaça” ou “tigela”, “recipiente”. Ela é o objeto que os mendigos59
utilizam para pedir esmola, comidas e outras coisas (1998, p. 122). Podemos pensar a “tigela”
como uma espécie de personificação dos indivíduos que dela fazem uso. La grève des bàttu
poderia ser traduzido por “A greve das tigelas”, ou seja, a greve de pessoas cuja atividade
principal de captação de recursos depende desse objeto e que poderiam ser figuradas nesse
objeto. Em nossa edição da obra de 2001, publicada pela editora Le serpent à plumes, aparecem
duas opções de títulos: o primeiro aqui já apresentado e o segundo como “Les Déchets humains”
(“Os dejetos humanos”), fazendo, uma vez mais, referência aos mendigos. A obra também foi
traduzida para a língua portuguesa pela editora moçambicana Ethale Publishing60 em 2019.
O romance La grève des bàttu tem 14 capítulos. Em resumo, a narrativa traz, de modo
bem delineado, uma forte oposição entre o grupo dos mendigos e o grupo do serviço de
salubridade. Essa oposição que é responsável por dá a cadência aos acontecimentos narrativos.
O setor de serviço de salubridade é representado pelas personagens Mour Ndiaye e Kéba Dabo.
Mour Ndiaye é um político que ocupa o cargo de diretor de serviço de salubridade, mas que
almeja o cargo de vice-presidente da República. Como diretor ele tem a missão de tirar os
mendigos da principal cidade do país, que não é nomeada, junto com o seu assistente Kéba
Dabo. Eles consideram que os mendigos tornam a cidade central do país pouco atraente para os
turistas, por isso, servindo-se de meios violentos, conseguem distanciá-los da cidade central.
O grupo de mendigos é composto por homens, mulheres, cegos, velhos, crianças etc.
Ao serem expulsos dos pontos relevantes da cidade, eles pensam em formas de lidar com a
situação. Resolvem, em conjunto, boicotar todos que vierem lhes oferecer esmola, comidas etc.
Essa atitude acaba gerando uma desordem nas esferas sociais, já que uma das práticas religiosas
dessa sociedade é fazer doações para os mais necessitados ou fazer sacrifícios. As pessoas que
fazem as doações e/ou sacrifícios geralmente têm o intuito de, a partir desses gestos, conseguir
realizar suas aspirações. Mour Ndiaye é uma das pessoas que compartilha desses ideais

59
Segundo o dicionário Aulete o substantivo “mendigo” se refere a “pessoa que pede esmolas, para sobreviver”.
Escolhemos utilizá-lo para nos aproximarmos da palavra francesa “mendiant” que aparece no texto de Fall.
Disponível em: https://aulete.com.br/mendigo. Acesso: 12 fev.2023.
60
Ethale Publishing é uma editora que promove a narrativa africana. Para mais informações é possível acessar o
site da editora. Disponível em: https://www.ethalebooks.com/quem-somos/. Acesso em: 02 mai.2023.
34

religiosos. Com o objetivo de conseguir o cargo de vice-presidente da República, Ndiaye


resolve consultar o marabout61 chamado Kifi Bokoul. Bokoul lhe diz que para alcançar aquilo
que ele almeja deve sacrificar e doar, para os mendigos que ficam na cidade principal, um touro
cortado em pedaços. Assim, ao mesmo tempo em que Ndiaye quer os mendigos longe da cidade,
ele precisa deles para que o seu desejo possa se cumprir.
A partir disso, se dá a problemática da obra. O argumento central que permeia o
romance diz respeito à importância social desse grupo de indivíduos para a manutenção da
estabilidade nesta sociedade religiosa. A sociedade e os mesmos políticos religiosos que querem
bani-los necessitam deles para alcançar suas próprias ambições. Isso posto, pensaremos como,
na narrativa, o grupo dos mendigos representa uma única personagem. Em outras palavras,
todas as personagens desse grupo se transformam em um corpo coletivo que se opõe ao setor
de serviço de salubridade representado pelos funcionários Mour e Kéba.

2.3.3 O tema da mendicidade em La grève des bàttu

O tema da mendicidade transposto na obra foi escolhido como nosso recorte, dado que
compreendemos que ele dá margem para melhor analisarmos as personagens descritas como
mendigos, em situação de mendicância, que juntos constroem meios de lutar contra as
imposições do serviço de salubridade. Neste momento não representam mais suas
individualidades, eles representam um coletivo que se une em prol de um único objetivo. Por
isso, nossa hipótese de que eles são transformados na narrativa em um único corpo coletivo.62
Ademais, pensar no tema da mendicidade neste romance é refletir sobre os elementos que
remetem, involuntariamente ou voluntariamente, ao universo de referência da autora.

61
De acordo com o dicionário Larousse, o substantivo marabout tem a seguinte definição: “Dans les pays
musulmans, et particulièrement en Afrique, saint local reconnu comme protecteur des moissons et dont le tombeau
est l'objet d'un culte populaire.” (“Nos países mulçumanos, e particularmente na África, santo local reconhecido
como protetor das colheitas e cujo túmulo é objeto de culto popular”). Acerca dessa figura, que ocupa um papel
importante na sociedade de alguns países da África do Oeste, o pesquisador Chehami (2013) diz que: “Le système
confrérique soufi sénégalais, comme dans d’autres d’Afrique de l’Ouest, appartient donc essentiellement à la
tendance mystique de l’islam (…). Il est basé sur le personnage du marabout, très emblématique d’un ensemble
de rôles et de status sociaux, aux prérogatives importantes dans divers domaines de la vie sociale, culturelle,
politique et économique au Sénégal.” (“O sistema da confraria sufi senegalesa, como em outros países da África
do Oeste, faz parte, portanto, essencialmente da tendência mística do Islã (...). Ele se baseia na personagem do
marabout, muito emblemático de um conjunto de papéis e status sociais, com prerrogativas importantes em
diversas áreas da vida social, cultural, política e econômica no Senegal”) (CHEHAMI, 2013, p. 98). Iremos traduzir
o substantivo “marabout” pelo seu equivalente em português “marabu”.
62
Sigo aqui a hipótese que me foi sugerida pela professora Gisele Pimentel Martins durante a banca de qualificação
desta dissertação, e que me pareceu muito certeira.
35

O romance La grève des bàttu, assim como outras obras de Aminata Sow Fall, foi escrito
em um momento específico, e esse momento se conecta com o começo de uma sociedade
senegalesa independente que buscava consolidar sua identidade nacional, no âmbito social,
cultural e político. Dessa forma, na narrativa, nos deparamos com elementos relacionado à fé
islâmica, assim como temos elementos que demonstram uma sociedade que tem o objetivo de
livrar-se do grupo de mendigos por razões políticas e financeiras que são atrativas para a
“expedição” dos turistas na principal cidade do país, como iremos ver em nossa análise do
romance. A pesquisadora Waters, analisando a obra de Fall, ressalta que

Os romances de Aminata Sow Fall contêm numerosas referências a uma variedade de


fontes de práticas tradicionais extraídas da vida quotidiana no Senegal. No meio da
esmagadora presença do materialismo, algumas das suas personagens, como muitos
senegaleses, têm mantido ligações com a vida tradicional. No Senegal, “por toda
parte, a sociedade tradicional sobrevive de forma significativa”. Um conjunto
diversificado de atividades e crenças compõem esta sociedade tradicional; isso inclui
influências do Islão, do animismo e do culto aos antepassados (WATERS, 1994, p.
16).63

Esses elementos do universo social se conectam com a narrativa de Fall, conforme


apresentado pela bibliografia crítica. A narrativa, do ponto de vista estético, é construída, entre
outros elementos, por meio das personagens e temas que estão em relação com os componentes
“de fora do texto”. Consideramos, pois, que o meio social “funciona como pano de fundo dos
textos narrativos africanos” (OYOUROU, 2009. p. 9-10). Trazendo, assim, todos os temas e
conflitos bem relacionados e construídos na narrativa, como veremos em nossa análise, Fall
constrói uma narrativa em que se entrelaçam humor, ironia e emoção com muita originalidade.
Partiremos agora para o estudo do universo cultural e linguístico de Fall.

63
“Aminata Sow Fall's novels contain extensive references to a variety of sources of traditional practices drawn
from everyday life in Senegal. Amidst the overwhelming presence of materialism, some of her characters, like
many Senegalese, have maintained connections to traditional life. In Senegal, ‘everywhere the traditional society
meaningfully survives’. A diverse collection of activities and beliefs compose this traditional society; it includes
influences of Islam, animism, and the cult of ancestors” (WATERS, 1994, p. 16).
36

3. CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL

3.1 Refletindo sobre o colonialismo na África

A chamada “partilha do continente africano” se deu, efetivamente, no século XIX, com


a conferência de Berlim, realizada pelas grandes potências da época: Bélgica, Portugal, França,
Alemanha e o Reino Unido. A partir disso, começou a corrida pela conquista de territórios no
continente (UZOIGWE, 2010, p. 32). Os reinos e sociedades africanas perderam a sua
independência, suas terras e sua soberania em Berlim, no “dia em que as potências capitalistas
da Europa se sentaram à mesa e dividiram um continente em colônias sem se importar com os
povos que ali viviam, suas culturas e suas línguas (…)” (THÉLIO, 2015, p. 20).64
Antes dessa divisão, a presença francesa em terras senegalesas é observada desde o
século XIX: “No Senegal, onde a conquista teve início em 1854, a França dispunha em 1880
de sólidos pontos de apoio (...). O protetorado francês tinha sido imposto aos Estados do Alto
Senegal desde 1860” (GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 132). Nesse período, os reinos antigos
buscaram fazer oposição aos franceses. Houve momentos em que também fizeram alianças,
outros em que declararam guerras, além de fazerem trocas de armamentos e de munição
(GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 132-133). Havia já uma certa aliança com os franceses por parte
de alguns reinos, desde que os franceses não interferissem nas relações estabelecidas. Por volta
de 1871, o processo colonizatório se intensificou e chegou ao seu ápice entre 1880 e 1900,
dando indícios, assim, de que esse cenário amistoso mudaria (GUEYE; BOAHEN, 2010, p.
130).
Por volta de 1880, a França tinha por objetivo, da mesma forma que as outras nações
imperialistas, aumentar seu território e a “ampliação de sua zona de influência sobre toda a
região, do Senegal ao Niger e daí ao Chade, unindo os territórios conquistados graças aos postos
avançados do golfo da Guiné, na Costa do Marfim e no Daomé” (GUEYE; BOAHEN, 2010, p.
130). Nessas regiões, o domínio colonial francês foi realizado por meio do seu poderio militar,
diferentemente de outros imperialistas que invadiam outras partes do continente por meio de
tratados (GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 130).
Todo esse cenário de luta e invasão nos faz questionar: e os povos autóctones, como
reagiram a tudo isso? Boahen e Gueye salientam que restou para essas pessoas somente as
alternativas de submissão, aliança ou confronto direto (2010, p. 130). Apesar de grande parte

64
“à Berlin, le jour où les puissances capitalistes d’Europe se sont assises à une table et ont découpé un continent
en colonies sans se soucier des peuples qui y vivaient, de leurs cultures et de leurs langues (…)” (THÉLIO, 2015,
p. 20).
37

ter optado pelo confronto, devido ao fato de a França recorrer a suas forças militares, isso
dificultou muito a vida dos africanos e, consequentemente, a possibilidade de saírem vitoriosos.
Há mais um elemento que contribuiu para esse embate ter sido violento. Anteriormente,
os habitantes dessas regiões haviam passado pela catequização islâmica e os preceitos dessa
religião não os faria aceitar facilmente a dominação pelo homem branco, uma vez que:

(...) para as sociedades muçulmanas da África ocidental, a imposição de um domínio


branco significava a submissão ao infiel, situação intolerável para todo bom
muçulmano, pelo que os habitantes da região tendiam a se opor aos europeus com
ardor e tenacidade pouco comuns aos não muçulmanos (CROWDER, 1968 apud
GUEYE; BOAHEN, 2010, p. 132).

O Senegal, assim como outros países do continente africano, é uma sociedade com
preceitos religiosos ligados ao islamismo, como lemos na citação acima. A questão religiosa
contribuiu para que o processo colonizatório fosse ainda mais violento. Assim, todo esse
contexto fez com que a invasão e dominação que ocorreu nesses territórios fossem marcadas
por muitas atrocidades. Nesse sentido, a primeira guerra mundial travada pelas potências
europeias, em 1914, ocorreu quando o continente africano já estava praticamente todo dividido
e invadido pelos europeus, como vemos nas imagens abaixo.

Figura 1: Mapa: Comparação da divisão política do Continente Africano entre 1880 e


1914

Fonte: Espace mondial atlas.


38

Figura 2: Mapa: A partilha do continente africano em 1914

Fonte: Les Collections de L'Histoire n°11, avril 2001.

No princípio da guerra, acreditava-se que ela não fosse chegar até as colônias e que se
manteria somente entre os países europeus. Os dirigentes das regiões africanas buscaram se
manter neutros nesse momento para prosseguirem com o desenvolvimento de suas regiões.
(CROWDER, 2010, p. 324). Na África Oriental Alemã, o então governador dr. Schnee estava
disposto a seguir com a neutralidade, em suma acreditava-se que o tratado de Berlim iria ser
cumprido: “Esperava-se até que as disposições do tratado de Berlim (1885) relativas à
neutralidade da bacia convencional do Congo permitissem evitar a guerra na África ocidental e
central” (CROWDER, 2010, p. 324). Entretanto, em razão da intensificação da guerra, os
aliados, sobretudo o Reino Unido, a fim de dificultar a comunicação da Alemanha, acreditaram
que seria o momento de levar também a guerra para essas colônias. Ademais, a possível vitória
nessas regiões, além de diminuir o poderio alemão, iria possibilitar a partilha dessas regiões
para com os aliados:

No caso do Reino Unido, que tinha o domínio dos mares, a estratégia definida pelo
Committee for Imperial Defence (Comissão de Defesa do Império) previa que a guerra
se estendesse às colônias do inimigo. Para conservar essa supremacia naval, o Reino
39

Unido precisava inutilizar o sistema de comunicações e os principais portos da


Alemanha na África (CROWDER, 2010, p. 324).

Apesar de contar com um número limitado de soldados e tropas africanas, o general


Alemão P. E. von Lettow-Vorbeck conseguiu ganhar algumas das batalhas contra os aliados.
De acordo com estudiosos, eram cerca de 160 mil soldados aliados contra cerca de 15 mil de P.
E. von Lettow-Vorbeck. Esses confrontos se deram e foram importantes ao nível global da
guerra e só cessaram com o armistício na Europa (CROWDER, 2010, p. 327). Com isso, muitos
dos dirigentes europeus que estavam em colônias foram para o ocidente e os cargos que
ocupavam ficaram livres ou foram ocupados pelos próprios africanos. Como no Senegal, onde
os “(..) africanos foram especialmente treinados para ocupar as funções vagas” (CROWDER,
2010, p. 328). Houve, assim, uma diminuição de europeus no Senegal, e em outras regiões da
África nesse período devido ao cenário das guerras.
Além disso, os africanos também tiveram um papel fundamental nessas batalhas, pois
eles participaram de forma ativa.

As tropas autóctones combateram não apenas no território do continente, como


também foram reforçar exércitos europeus na frente ocidental e no Oriente Médio.
Mais que isso, ajudaram a reprimir diversas revoltas contra a autoridade colonial, tal
como haviam anteriormente ajudado na conquista da África pelos europeus
(CROWDER, 2010, p. 330).

Muitos negros africanos foram como “voluntários forçados” para a guerra. O


substantivo “voluntário” e o adjetivo “forçados” entram em contradição, os termos foram
deturpados, afinal não estavam fazendo algo por livre e espontânea vontade ou desejo, mas sim
na condição de ser obrigado a ir, mesmo contra a sua vontade.
No que se refere à região do Senegal, as 4 comunas, Dakar, São Luís, Rufisque e Goreia,
aceitavam realizar e fazer parte do serviço militar com a condição de que, se fizessem, seriam
atribuídos aos cidadãos africanos os mesmos títulos que eram atribuídos aos cidadãos franceses.
Assim, por meio de um decreto de 1912, o serviço militar na África negra se tornou obrigatório
para todas as pessoas de sexo masculino, com idade entre 20 e 28 anos (CROWDER, 2010, p.
332). O Senegal, na época, era considerado como uma extensão da França, entretanto, os
autóctones eram colocados à margem da vida política e dos trabalhos considerados de alto-
nível.

O sistema colonial francês opera sobre uma desigualdade racial consagrada no Code
de l’indigénat [Código dos habitantes autóctones] de 1887: os nativos são súditos
franceses e, como tal, não têm direitos políticos e estão sujeitos a um regime jurídico
40

mais repressivo que os sujeita a trabalhos forçados e corvéias para o desenvolvimento


de equipamentos públicos (THÉLIO, 2015 p. 19).65

O sistema do Code de l’indigénat, como explicado no excerto, perdurou até o final da


segunda guerra mundial. Os autóctones eram submetidos a esse regime que fazia com que eles
sofressem penas e cobranças por parte das autoridades francesas e não fossem privilegiados
com os mesmos benefícios que teriam os franceses.
Os autóctones, é claro, não aceitaram toda essa situação de modo pacífico. Aos poucos,
o descontentamento para com o regime colonial despontou em várias partes do continente e
isso começou a fortalecer o afloramento do desejo de se colocar “contra” os europeus. Os
principais desejos estavam atrelados à conquista da independência de seus países e, igualmente,
ao fato de terem realizado trabalhos forçados no período da guerra. Ademais, havia o
desconforto pela imposição religiosa: “ (...) a vontade de sacudir o jugo dos brancos explica,
em maior ou menor medida, grande parte das rebeliões contra a autoridade francesa na África
ocidental” (CROWDER, 2010, p. 335).
Devido ao crescimento do islã, a questão religiosa foi uma grande preocupação para os
colonizadores, que temiam que essa religião se alastrasse cada vez mais. Na Tunísia, por
exemplo, “(...) foram necessários 15 mil soldados franceses para abafar a revolta66, e também
entre os Tuaregues e outros muçulmanos do Níger e do Chade, onde a aversão do islão à
dominação pelos infiéis, a estiagem de 1914 e o recrutamento intensivo tinham provocado
fortíssimo descontentamento” (CROWDER, 2010, p. 337). Uma vez que os africanos islâmicos
passaram a considerar os colonizadores como infiéis, o poder colonial também foi por eles
considerado como um poder inimigo, a ser combatido. Além disso, o fato de os africanos terem
sido forçados a se recrutar, de acordo com os pesquisadores, foi, sem sombra de dúvida, o
elemento que mais contribuiu para as revoltas que ocorreram na África negra (CROWDER,
2010, p. 337). Os envolvidos nessas revoltas foram tratados com o maior rigor possível pelos
administradores coloniais: (...) “os ‘rebeldes’ eram compulsoriamente alistados no exército,
chicoteados ou até enforcados; os chefes, exilados ou presos; as aldeias, arrasadas como
advertência” (...) (CROWDER, 2010, p. 339). Em razão dessa violência exacerbada, muitos
dos africanos preferiam fugir, se esconderem ou até mesmo se automutilar para não serem
recrutados para serviços militares ou como carregadores (CROWDER, 2010, p. 339).

65
“Le système colonial français fonctionne sur une inégalité raciale inscrite dans le Code de l’indigénat de 1887:
les autochtones sont des sujets français et, de ce fait, ils n’ont pas de droits politiques et sont soumis à un régime
juridique plus répressif qui les assujettit au travail forcé et aux corvées pour l’aménagement d’équipements
publics” (THÉLIO, 2015 p. 19).
66
Se refere a insurreição líbia.
41

Todo esse processo colonial, que valeu-se da imposição e da força, deixou marcas
profundas nas sociedades autóctones. Em Cultura e Imperialismo, Edward W. Said apresenta
algumas reflexões sobre o colonialismo:

Num nível muito básico, o imperialismo significa pensar, colonizar, controlar terras
que não são nossas, que estão distantes, que são possuídas e habitadas por outros. Por
inúmeras razões, elas atraem algumas pessoas e muitas vezes trazem uma miséria
indescritível para outras (2011, p. 38).

Esse controle se deu nas esferas sociais, políticas e culturais. Os imperialistas se


apropriaram de todo um universo que não lhes pertencia, mas ainda assim, eles detinham o
poder, se tornando os grandes responsáveis por toda a desordem, pela dor e miséria de muitas
sociedades. Aimé Césaire, em seu Discurso contra o colonialismo, publicado pela primeira vez
1950, em consonância com o pensamento de Said, traz um discurso fervoroso sobre o que foi,
em sua essência, o processo colonizatório. Césaire tem como ponto de partida fazer o leitor
enxergar tudo aquilo que o colonialismo não foi, e, a partir disso, mostrar quais foram as reais
intenções das metrópoles:

(...) o que é, no seu princípio, a colonização? Concordemos no que ela não é; nem
evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da
ignorância, da doença, da tirania, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito;
admitamos, uma vez por todas, sem vontade de fugir às consequências, que o gesto
decisivo, aqui, é o do aventureiro e do pirata, do comerciante e do amador, do
pesquisador de ouro e do mercador, do apetite e da força, tendo por detrás a sombra
projectada, maléfica, de uma forma de civilização que a dado momento da sua história
se vê obrigada, internamente, a alargar à escala mundial a concorrência das suas
economias antagônicas (CÉSAIRE, 1978, p. 14-15).

Quando o poeta, ensaista e político Aimé Césaire diz que o colonialismo não é nem
evangelização, nem filantropia, revela que esse tipo de argumento é ineficaz e que apresenta
uma visão não somente errônea, mas também uma visão que busca acobertar todas as mazelas
que ele analisa. Evangelização, filantropia, entre outras estratégias citadas no trecho acima,
seriam formas de fazer com que o colonizador fosse visto como o grande “salvador” do
continente africano. Césaire enfatiza que o crescimento territorial foi um dos grandes objetivos
civilizatórios, além do desejo de explorar e lucrar com os produtos e as terras.
Thiong’O, em Décoloniser l'esprit, apresenta um elemento que os colonizadores
utilizaram para realizar os seus feitos e sem o qual não teriam tido sucesso:

(...) o campo mais importante sobre o qual [o colonizador] se lançou foi o universo
mental do colonizado: os colonizadores passaram, por meio da cultura, a controlar a
percepção que o colonizado tinha de si mesmo e de sua relação com o mundo. O
controle econômico e político não pode ser completo sem o controle da mente.
42

Controlar a cultura de um povo significa controlar a representação que ele tem de si


mesmo e de sua relação com os outros (2011, p. 38).67

Além dos elementos que mencionamos anteriormente, acreditamos que a abordagem do


pesquisador sobre o “controle do universo mental” dos colonizados é uma reflexão
extremamente importante. Sabemos, como vimos até agora, que os colonizadores tinham a
posse das terras, o controle econômico dessas regiões, mas para além disso mantinham controle
sobre o universo mental dos indivíduos colonizados. E o que isso significa exatamente?
Compreendemos que isso significa dizer que tudo aquilo que os colonos projetavam acerca dos
colonizados era transmitido aos autóctones, e, por consequência, se tornava a percepção que os
próprios autóctones construíram de si mesmos. Para ilustrar esse raciocínio, tomamos como
exemplo as crianças quando estão se desenvolvendo em sociedade. Elas aprendem aquilo que
nós, enquanto adultos que elas têm como primeira referência, mostramos e apresentamos para
elas. As crianças não sabem de antemão o que é considerado positivo ou negativo na sua
sociedade,68 elas absorvem essas percepções ao estar em contato com o seu âmbito social. Essa
primeira troca se dá na esfera familiar e posteriormente em uma esfera maior, como a escola
etc. Cada vez mais, o contato com as distintas esferas possibilita a interação com diversas
formas e possibilidades de construção de pensamento, que contribuem para a formação da
personalidade do indivíduo. O ponto em que queremos chegar, partindo dessa reflexão, é de
que no contexto da colonização, em que o povo autóctone foi subjugado e tratado como cidadão
inferior, sofrendo, com isso, todos os tipos de violência física, mental e social, a única pergunta
possível seria se questionar: como eles poderiam se sentir ou se considerar iguais ou melhores
que os colonizadores, uma vez que não era isso que percebiam nessas relações? Se eles não
tinham, em nenhuma esfera da sociedade, a possibilidade de construção de tal pensamento. O
colonizador tinha, portanto, o controle do “esprit” (mente) dos povos colonizados, isso significa
dizer que eles detinham o controle de todas as esferas dessa sociedade, e dentre elas, uma das
mais importantes era a esfera cultural.
Partindo dessa observação, é possível considerar o estudo que faz Frantz Fanon em seu
Os condenados da Terra (cuja primeira edição data de 1961), no qual aborda como o processo
colonizatório foi responsável por desencadear problemas mentais na população autóctone
colonizada.

67
“ (...) le champ le plus important sur lequel il jeta son emprise fut l’univers mental du colonisé: les colonisateurs
en vinrent, par la culture, à contrôler la perception que le colonisé avait de lui-même et de sa relation au monde.
L’emprise économique et politique ne peut être totale sans le contrôle de l’esprit. Contrôler la culture d’un peuple,
c’est contrôler la représentation qu’il se fait de lui-même et de son rapport aux autres” (2011, p. 38).
68
Algo que é muito relativo a depender da sociedade na qual essa criança nasce, pois há diferentes culturas e
formas de organização social.
43

A verdade é que a colonização, em essência, apresentava-se já como uma grande


provedora dos hospitais psiquiátricos. Em diversos trabalhos científicos chamámos a
atenção dos psiquiatras franceses e internacionais, desde 1954, sobre a dificuldade de
“curar” correctamente o colonizado, isto é, de fazê-lo totalmente homogéneo num
meio social de tipo colonial. Como é uma negação sistemática do outro, uma decisão
furiosa de privar o outro de qualquer atributo de humanidade, o colonialismo leva o
povo dominado a perguntar-se constantemente: “Quem sou eu na realidade?” (1965,
p. 216).

“Quem sou eu na realidade?” pergunta válida para um povo que teve o seu universo
mental construído com uma percepção negativa de sua cor, de sua religião, de sua língua, de
sua cultura e de sua forma de ser e de estar no mundo. Fanon, a partir de casos clínicos,
evidencia como todo esse processo violento construiu traumas mentais em vários povos e
populações colonizadas. A violência vivenciada constantemente não se apagou, como salienta
Said (2011), mesmo com a retirada da bandeira do ex-colonizador de suas terras, é uma ferida
para toda a vida (2011, p. 35).
Isto posto, Oliveira salienta que:

O colonialismo em África explorou recursos naturais das colônias, enriqueceu os


impérios europeus e interferiu gravemente na organização dos espaços, nos quais a
dinâmica de vida foi alterada para adaptar o modo de vida europeu, sem possibilidade
de diálogo de igualdade ou conciliação de espaços (2015, p. 18).

Aimé Césaire ressalta que não se pode haver uma relação recíproca entre colonos e
colonizados e a única relação existente é “o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia,
o imposto, o roubo, a violação, as culturas obrigatórias, o desprezo, a desconfiança, a
arrogância, a suficiência, a grosseria, as elites descerebradas, as massas aviltadas” (CÉSAIRE,
1978, p. 25). O colonialismo objetificou estes cidadãos, tirando deles seus espaços, suas
vivências, suas identidades, suas crenças. Em resumo, toda a história de um povo foi
desconsiderada pelos imperialistas.

3.2 Da decolonização ao pós-colonialismo

Ao final da Primeira Guerra Mundial, o continente africano teve um papel muito


importante na vitória em favor dos Aliados, uma vez que os povos autóctones, como vimos,
foram enviados de forma forçada para lutar na guerra. Posteriormente, os aliados dividiram os
territórios conquistados dos derrotados, trazendo diversas mudanças nos status culturais, sociais
e políticos dessas regiões (MAZRUI, 2010).
Para os povos autóctones, a Segunda Guerra Mundial começou antes em 1935 devido a
alguns conflitos, principalmente a invasão da Etiópia por Mussolini (MAZRUI, 2010, p. 02).
44

Nesse momento, na África, as religiões passaram por uma “africanização”. Tanto o cristianismo
quanto o islamismo tingiram-se de elementos que se relacionavam com o universo africano. No
que concerne ao Senegal, de acordo com Mazrui, o islamismo “(...) experimentou uma
africanização mais profunda, sob influência de movimentos tais como a confraria moura de
Amadou Bamba” (2010, p. 2).69 Essa africanização no âmbito religioso foi somente uma das
mudanças que ocorreram. Além disso, começou também um florescimento de sentimentos
nacionalistas na África colonial.
Com a derrocada da Alemanha e a subsequente queda de seus ideais (os principais deles:
racismo e ideias supremacistas), começaram a se fortalecer, em muitas partes do continente
africano, movimentos em favor do nacionalismo e contra o colonialismo. O sentimento de
esperança e liberdade se alastrou de modo profundo contra o fator colonial. Isso teve influência,
de fato, porque os ganhadores da guerra eram anticolonialistas (BOAHEN; SURET‑CANALE,
2010. p. 192) e por causa dos movimentos socialistas que, em 1945, estavam presentes na
França e em outras partes do mundo.
Nesse cenário, a Segunda Guerra Mundial influenciou o pensamento anticolonialista
devido a alguns fatores. O primeiro se deve, como vimos, à situação forçada que obrigava os
africanos a lutarem nas guerras. Ao partir, eles deixavam, família e filhos, o que causava
sofrimento tanto em quem partia quanto para quem ficava; o segundo fator, de acordo com os
pesquisadores, decorre das experiências dos africanos enviados a regiões como Birmânia e
Índia. Isso levou os autóctones a estarem em contato com movimentos independentistas dessas
regiões, o que proporcionou um ponto de vista revolucionário para eles: “(...) a guerra reforçou
consideravelmente os sentimentos anticoloniais e nacionalistas na África Ocidental”
(BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 192). O terceiro fator decorreu do retorno desses
africanos para suas casas. Ao chegarem em seus países, eles não obtiveram nenhum
reconhecimento, emprego, benefício ou títulos ilustres pelo serviço militar prestado em terras
estrangeiras.
Entre os anos de 1943 e 1944, houve muitas articulações e movimentos anticoloniais, o
que deixou os chefes das colônias preocupados em como dar continuidade ao domínio francês
nas regiões africanas. Em 1943 o general francês Charles de Gaulle fez um discurso em

69
Sobre essa figura, que foi de total relevância para o Senegal com relação a sua influência no islã, a pesquisadora
Longa Romero traz que: “A confraria religiosa mouride foi fundada em 1883 pelo marabu Cheikh Ahmadou
Bamba Mbacké no Senegal, em finais do século XIX. O Cheikh foi um importante marabu (líder religioso)
senegalês, filósofo e teólogo sufi, da etnia uolofe. Nasceu em 1853, na cidade de Mbacké-Baol e morreu em 19 de
julho de 1927, em Diourbel, região do seu país natal. Sua relevância simbólica e política na diáspora
contemporânea de senegaleses mourides vai além do seu esforço ascético de fundar a irmandade Mouridiyya, em
1883” (2017, p. 54).
45

Constantine favorável à realização da Conferência de Brazzaville, onde se deveria debater essas


questões, mas que não propunha uma decolonização, ao contrário:

Ela limitava-se a prometer, para um futuro indeterminado uma “participação”


eventual dos africanos na gestão dos seus próprios assuntos. Propósitos que foram
tomados ao pé da letra pelos africanos e suscitaram, no imediato momento posterior,
a ira dos colonos que julgavam tudo isso intolerável (BOAHEN; SURET‑CANALE,
2010, p. 207).

No ano de 1945, pela primeira vez, alguns povos autóctones promoveram eleições:
“Pela primeira vez, em outubro de 1945, os colonizados (uma pequena minoria dentre eles: para
a AOF, 117.000 de um total de 16 milhões de habitantes) elegeram deputados para a Assembleia
Nacional Constituinte Francesa (...)” (2010, p. 207). Essas eleições foram fundamentais para
mostrar para o então general De Gaulle, que esperava que a presença dos povos colonizados na
política amenizasse os ânimos e que o engajamento entre os autóctones se fortaleceria. Isso
contribuiu para fomentar ainda mais a participação da esquerda anticolonialista. Nomes como
Lamine Gueye e Léopold Sédar Senghor foram eleitos e se vincularam ao partido socialista
(SFIO, Seção Francesa da Internacional Operária) (BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p.
207).70
Embora deputados importantes da esquerda tenham sido eleitos, havia uma direita muito
forte que dificultava algumas pautas (BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 207). Por volta
de 1949, houve a criação e elaboração de vários partidos políticos. Assim, cada vez mais o
florescimento de ideais a favor da independência foi reforçado principalmente por partidos
políticos (BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 212). Em 1958, esse clima foi se
intensificando cada vez mais, inclusive com a constituição promulgada neste ano pelo general
De Gaulle, que concedia um pouco mais de autonomia para aos “departamentos de além-mar”,
que eram chamados de “união francesa” e que passaram a ser chamados de “comunidade
francesa” (BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 212). Com novas votações, percebeu-se que
a África Ocidental Francesa (AOF) não estava satisfeita com a noção de comunidade como se
fosse uma unidade política. Os estados participantes dessa grande comunidade política
tampouco estavam satisfeitos, pois queriam conquistar, de uma vez por todas, sua
independência. Percebendo esse descontentamento, ao contrário do que ocorreu em outras
partes do continente africano, na AOF foi o próprio general De Gaulle quem articulou a
independência:

70
“No Senegal, onde o eleito do primeiro colégio (aqui predominantemente africano) foi o advogado Lamine
Gueye, veterano na política nas “três comunas”, cabendo a vitória no segundo colégio ao jovem licenciado em
gramática Léopold Sédar Senghor, os dois eleitos filiaram‑se ao Partido Socialista (SFIO, Seção Francesa da
Internacional Operária) (...)” (BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 207).
46

(...) foi o governo francês que determinou de fato a concessão e o calendário na


independência na África Ocidental francesa, e não os nacionalistas africanos. (...)
devido às transformações políticas que se produziam, ao mesmo tempo, nos países
vizinhos da África Ocidental de língua inglesa, que De Gaulle e os seus conselheiros
aceitaram o inevitável e ofereceram a independência, praticamente de bandeja, a todas
as colônias francesas da África no curso do fatídico ano de 1960 (...) (BOAHEN;
SURET‑CANALE, 2010, p. 213-214).

Ou seja, com a iminência de tudo que estava acontecendo, ele e os demais governantes
perceberam que não teriam outra alternativa senão essa de conceder a independência ao povo e
às regiões autóctones. Assim, a independência, para a grande maioria da AOF, ocorreu em
1960. Os sindicatos e movimentos operários foram de extrema relevância nesse processo de
conquista contra o poder colonial, que vinha, em cada uma das regiões da AOF, fomentando
esse desejo e buscando mais direitos para os trabalhadores (BOAHEN; SURET‑CANALE,
2010, p. 214-216).
Além disso, outro fator relevante na busca pela independência se dá pelos movimentos
culturais e religiosos. No âmbito cultural, as ideias contra o colonialismo e a favor da
independência se fizeram presentes na literatura por meio da língua do colonizador. Uma das
primeiras revistas foi a Présence Africaine, publicada em 1947 pelo senegalês Alioune Diop,
que na época era um jovem universitário e que foi também senador do Senegal.

Esta revista, em torno da qual se criou a Sociedade Africana de Cultura, não era
politicamente contestadora mas, a sua afirmação em favor de uma personalidade
cultural africana consistia em si mesma uma contestação da ideologia e do modelo
coloniais. (BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 217)

Em Dacar, de 1947 a 1950, começaram a ser publicados no jornal Réveil poemas


engajados de Bernard B. Dadié, Jean Malonga e Fodeba Keita (BOAHEN; SURET‑CANALE,
2010, p. 217). Nomes como Ousmane Sembène, Bernard B. Dadié e Abdoulaye Sadji, todos
senegaleses, foram importantes na composição de obras satíricas sobre o período colonial
(BOAHEN; SURET‑CANALE, 2010, p. 217).
Com a conquista da independência começa o período pós-colonial. Esse momento de
construção da identidade nacional não escapa das heranças que permaneceram nessas
sociedades após a independência. No que concerne à religião, as diversas comunidades
muçulmanas senegalesas, que não eram bem-vistas pelo poder colonial, foram melhor aceitas.
O cristianismo, muito atrelado ao poder colonial até 1950, começou a se desvincular dele por
volta de 1953. No entanto, nas sociedades colonizadas, a religião cristã permaneceu como
herança colonial, assim como a língua do colonizador. Discutiremos, a seguir, essas duas
heranças coloniais presentes no pós-colonialismo.
47

3.3 A religiosidade na sociedade senegalesa

Observamos que, no processo de colonização e decolonização, alguns dos fatores que


desencadearam a relação de constantes conflitos entre o poder colonial e o povo autóctone
ocorrem devido a embates religiosos. O Senegal, assim como outros países do continente
africano, é um país em que cerca de noventa e nove por cento da sua população é muçulmana
(CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 28).71 O maometismo, adentrou à África do Oeste por volta
do século XI e se constitui como um elemento de suma importante até os dias atuais, sendo “o
substrato e o motor que se funde com a história do país” (HERZBERGER-FOFANA, 1987, p.
192).72 Ao estar em contato com essa sociedade senegalesa, a religião passou por uma série de
“africanizações”, visto que ela entrou em contato com outras crenças que já eram praticadas na
sociedade.
(…) Religião de origem oriental, o Islã, fundindo-se com os ritos tradicionais
africanos, deu origem a um culto específico: o “Islã Negro”, que difere um pouco dos
preceitos de Maomé. O Islã negro se adaptou às realidades africanas, incorporando
práticas animistas e interferindo nos dogmas religiosos (HERZBERGER-FOFANA,
1987, p. 192).73

Desta forma, o “islã negro” passou a ser um termo utilizado para distinguir o islã
praticado na África do Oeste daquele encontrado em outros lugares, pois, apesar de ter na
origem o alcorão e os preceitos de Maomé, por apresentar sincretismos com outros hábitos
religiosos, ganhou novas características. Dentre as características que adquiriram no Senegal,
uma das que se sobressaem é a figura do marabu. Marty comenta a relação da prática do islã
relacionada ao marabu:
os negros islamizados do Senegal classificam-se, sem exceção, sob a bandeira
religiosa dos marabus e entendem o Islã apenas na forma de filiação a um caminho
místico (...). Sua grande distinção e sua profissão de fé são pertencer a um marabu. A
todas as perguntas, respondem invariavelmente e de uma só vez: ‘Sou muçulmano e
o meu marabu é tal’. (…) Ser muçulmano é obedecer às ordens de seu marabu e
merecer por seus dons e devoção participar dos méritos do homem santo. O estudo do
mundo islamizado é, portanto, quase exclusivamente aqui um estudo de
personalidades marabúticas (1917, p. 3).74

71
“La religion occupe une place centrale dans la société sénégalaise. Elle régit la psychologie, les comportements
individuels et collectifs. En effet, les systèmes religieux y sont divers avec la domination de l'islam pratiqué par
90 % de la population” (“A religião ocupa um lugar central na sociedade selegalesa. Ela rege a psicologia, os
comportamentos individuais e coletivos. De fato, na sociedade senegalesa os sistemas religiosos são diversos, com
a dominação do islã, praticado por 90% da população”, CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 28).
72
“le substrat et le moteur qui se confond avec l’histoire du pays”.
73
“(…) Religion d’origine orientale, l’Islam se fondant avec les rites traditionnels africains a donné naissance à
un culte spécifique : ‘L’Islam noir’ qui diffère quelque peu des préceptes de Mohamed. L’Islam noir s’est adapté
aux réalités africaines, incorpore les pratiques animistes et les interfère au dogme religieux”.
74
“Les noirs islamisés du Sénégal se classent, d’eux-mêmes et sans exception, sous la bannière religieuse des
marabouts et ne comprennent l’islam que sous la forme de l’affiliation à une voie mystique (…). Leur grand titre
de gloire et leur profession de foi sont d’appartenir à un marabout. A toutes les questions, ils répondent
invariablement et d’un seul jet : ‘Je suis Musulman, et mon marabout est un tel’. (…) Être Musulman, c’est obéir
48

A partir dessa informação, portanto, percebe-se que o marabu, juntamente com os


elementos animistas, dá um tom local à religião islâmica cultuada no Senegal. Esse imaginário
místico se consolida socialmente, e, devido ao fato de a religião ocupar esse espaço tão
relevante culturalmente, percebe-se a sua influência, inclusive, no meio literário:

Que o espaço romanesco negro-africano seja invadido por elementos árabe-


muçulmanos, portanto, dificilmente nos surpreende, porque os escritores traduzem
assim o grau de assimilação dessa entidade espiritual, a caminho de se tornar um
componente da personalidade negro-africana básica, uma herança histórica. A religião
de Maomé constitui, portanto, nos romances em que aparece – seja qual for a medida
em que aparece – uma fonte esclarecedora capaz de levantar o véu que cobre o
universo da história em suas dimensões semântica e estética (LEMOTIEU, 1987, p.
50).75

Nesse sentido, é comum que a religião, por ser um elemento social relevante, reverbere
como um componente estético nos romances africanos. Como pontuam Cabakulu e Camara,
o islã “é a força dominante na vida religiosa e social; o texto corânico é o ponto de partida e
referência para todos os comportamentos sociais, culturais, morais e até políticos (2002, p.
21)”.76 Em decorrência da potência que o islã ganha nessa sociedade, muitas vezes pode-se
observá-lo como plano de fundo no qual a narrativa se desenvolve e se constitui. Entender essa
dinâmica social, que pode influenciar nas construções narrativas, permite entrar profundamente
nesse universo e apreender os seus códigos sociais, que são específicos a uma determinada
sociedade. Assim sendo, observaremos como essa religiosidade pode ser utilizada como
inspiração nas narrativas africanas, em especial nas obras de Aminata Sow Fall.

3.4 A religiosidade como plano de fundo literário

Refletindo sobre o texto literário, compreende-se que ele é um elemento artístico que
transcende o imaginário real, sendo capaz de provocar os mais diversos prazeres em seus
leitores. O texto literário não tem a obrigação de representar as manifestações reais da vida
cotidiana, contudo, podemos perceber nele uma relação específica entre ficção e realidade. Em
uma narrativa é possível encontrar indícios de certa organização social, cultural e política que

aux ordres de son marabout et mériter par ses dons et son dévouement de participer aux mérites du saint homme.
L’étude du monde islamisé est donc à peu près uniquement ici une étude de personnalités maraboutiques”.
75
“(...) Que l’espace romanesque négro-africain soit envahi par des éléments arabo-musulmans ne nous étonne
donc guère, car les écrivains traduisent par-là, le dégré d’assimilation de cette entité spirituelle, en passe de devenir
une composante de la personnalité négro-africaine de base, un héritage historique. La religion de Mahomet
constitue de ce fait dans les romans où elle apparaît à quelque degré que ce soit, une source éclairante susceptible
de lever le voile sur l’univers du récit dans ses dimensions sémantiques et esthétiques”.
76
“ (...) il est [o islã] la force dominante de la vie religieuse et sociale; le texte coranique est le point de départ et
de référence pour tout comportement social, culturel, moral et même politique”.
49

pode ser identificada no mundo empírico. Pensando a partir desses apontamentos, Lemotieu
constata que há alguns indicativos da influência de um elemento social, o islamismo, presentes
em produções literárias senegalesas.

O fato islâmico tem sido uma realidade não negligenciável no romance negro-africano
em francês desde 1961, data em que o Islã se fez, nas palavras de J.-P. Gourdeau ‘uma
entrada forte’ com L’Aventure ambiguë do senegalês Cheikh Hamidou Kane.
Citemos, entre outros, Les Soleils des Indépendances de Ahmadou Kourama, Xala de
Sembene Ousmane, Gros Plan de Ide Oumarou e La Grève Des Bàttu de Aminata
Sow Fall (1987, p. 49).77

Nesse momento pós-colonial em que os escritores estavam buscando a construção da


identidade nacional de seus países, alguns elementos que remetem às suas sociedades podem
ser observados nas obras que escrevem. Acerca da religião, o pesquisador enfatiza que,
anteriormente, não se era considerado esse elemento nas obras de escritores da África do Oeste.
Aos poucos foi se percebendo essa influência, que só posteriormente passou a ganhar espaço
nos estudos considerando o islamismo como tela de fundo de alguns escritos dessa região.
Ainda de acordo com Lemotieu, dentre os romances citados, La grève des bàttu
apresenta uma sociedade com preceitos religiosos bem aflorados e que, de certo modo,
influência na organização social estabelecida na narrativa. Esse plano de fundo na obra de Fall,
nos ajudará a delinear melhor a oposição entre as personagens na obra, assim como evidenciará
uma contradição. Essa contradição consiste em: apresentar uma tradição presente por meio das
práticas islâmicas que vai em direção oposta ao poder político que quer modernizar essa
sociedade para seguir o ritmo das demais sociedades desenvolvidas. Com isso, essa
modernização se opõe a esses preceitos religiosos estabelecidos socialmente. Verifica-se,
assim, um impasse que é instituído. Veremos em nossa análise narrativa como a religiosidade
se apresenta como plano de fundo no romance da autora.

3.5 Contexto linguístico do Senegal

A língua francesa adentrou a sociedade senegalesa no período da colonização, no qual


os colonizadores impuseram o ensino da língua ao povo autóctone. Após a independência, o
Senegal adotou a língua francesa como língua oficial do país: “No seu primeiro título Do Estado
e da Soberania, derivado do artigo primeiro da Constituição, está escrito: A língua oficial da

77
“Le fait islamique constitue une réalité non négligeable dans le roman négro-africain en français depuis 1961,
date à laquelle l’islam y a fait, selon l’expression de J.-P. Gourdeau ‘une entrée en force’ avec L ’Aventure ambiguë
du Sénégalais Cheikh Hamidou Kane. Citons entre autres Les Soleils des Indépendances d’Ahmadou Kourama,
Xala de Sembene Ousmane Gros Plan d’Ide Oumarou et la Grève Des Bàttu d’Aminata Sow Fall”.
50

República do Senegal é o francês. Em virtude dessa lei, o francês continua a ser a única língua
de comunicação nacional” (THIAM, 2020, p. 162).78 O status de língua oficial garante a ela o
prestígio de ser a língua que estará presente na vida administrativa do país, na economia, nas
escolas, nos veículos de mídias, jornais etc. Do mesmo modo, há um artigo na constituição
senegalesa declarando que aquele que desejar se candidatar ao cargo de presidente do Senegal
deve saber falar fluentemente, ler, escrever e compreender a língua francesa. 79 Nesse cenário,
mesmo com o fim da colonização no país, a língua francesa permaneceu nessa sociedade e
adquiriu um lugar de bastante notoriedade. Por ser um país que tem como língua oficial o
francês, o Senegal faz parte do universo francófono que engloba uma série de países que têm
em comum essa partilha linguística.
Sabemos que algumas das sociedades que fazem parte da francofonia e passaram pelo
processo do colonialismo, contam com uma diversidade linguística muito rica em seus
territórios. Tendo isso em vista, alguns questionamentos se fazem importantes, são eles: qual é
a relação que os senegaleses têm com a língua oficial do país? Ela é a língua materna nessa
sociedade? Se não, quais são as outras línguas faladas no Senegal?!.
Posto esses questionamentos, a primeira coisa a ser ter conhecimento é que o Senegal é
um país multicultural, formado, majoritariamente, pelas comunidades “negro-africana, árabe-
islâmica e ocidental francesa” (NIANG CAMARA, 2014, p. 01).80 Em relação ao nosso
primeiro questionamento, Cisse reflete:

O francês não é percebido pelos senegaleses como uma língua estrangeira, mas sim
como uma segunda língua, a do Estado, da elite (uma parcela da população para quem
o domínio do francês é um capital vital) e principalmente da escola, que ainda
continua a ser um dos meios institucionais de sucesso e ascensão social (CISSE, 2005,
p. 105).81

O francês não é a língua materna da população senegalesa, somente cerca de vinte e seis
por cento da população é francófona no Senegal.82 O lugar ocupado pelo francês revela que a

78
“Dans son titre premier De l’État et de la Souveraineté, émanant de l’article premier de la Constitution, il est
écrit : La langue officielle de la République du Sénégal est le français. En vertu de cette loi, le français reste la
seule langue de communication nationale”.
79
“L’article 28 de la Constitution précise bien que : Tout candidat à la Présidence ... doit savoir écrire, lire et
parler couramment la langue officielle. Dans les rencontres internationales, c’est la langue servant de moyen de
communication pour le chef de l’État ou autre mandataire du pays” (THIAM, 2020, p. 163).
80
“la négro-africaine, l’arabo-islamique et l’occidentale française”.
81
“Le français n’est pas pour autant ressenti par les Sénégalais comme une langue étrangère, mais plutôt comme
une langue seconde, celle de l’Etat, de l’élite (une frange de la population pour qui la maîtrise du français est un
capital primordial) et surtout de l’école, qui reste encore un des moyens institutionnels de réussite et de promotion
sociale.”
82
É interessante informar que nos estudos de Cisse sobre a língua no estado do Senegal, realizados em 2005,
utilizado em nosso estudo de iniciação cientifica, o pesquisador indica que o número da população francófona era
de quatorze por cento. Hoje, de acordo com a Organisation international de la Francophonie o número é de vinte
51

língua ainda é restrita a um grupo privilegiado que tem acesso à cultura e à educação (francesa-
colonial), já que menos da metade da população senegalesa se comunica na língua oficial.
Poderíamos nos questionar: qual é a língua falada pelo restante da população?
Nesse caso, essa sociedade, que é multicultural, também é plurilinguística. Existe uma
variedade de línguas locais no Senegal. Algumas dessas línguas ganharam o status de línguas
nacionais83 são elas: “o uolofe, o fula, o sererê, o diola, o malinke et o soninquê84” (NIANG
CAMARA, 2014, p. 07). São chamadas de línguas nacionais por terem sido codificadas. As línguas
nacionais passaram a ser ensinadas, juntamente com o francês, em algumas escolas, principalmente
no maternal fase em que o aluno chega à escola tendo como referência linguística a sua língua
materna (NIANG CAMARA, 2014). Dentre essas línguas locais, o uolofe tem um lugar de maior
prestígio socialmente, uma vez que “(...) as línguas nacionais não têm o mesmo dinamismo na
extensão do território nacional. Algumas são de uso majoritário, seja em uma localidade ou em
uma região. Apenas a língua uolofe cobre pelo menos 80% do território nacional como primeira
ou segunda língua de comunicação” (NIANG CAMARA, 2014, p. 22-23).85
Seja como língua materna ou como segunda língua, ela é falada pela grande maioria da
população senegalesa. O uolofe é considerado como a língua de comunicação do país ganhando
um espaço relevante nessa sociedade, como pontua Niang Camara: “O uolofe continua sendo
uma língua veicular nacional e, nesse aspecto, suplantou o francês e sua expansão parece

e cinco por cento. Observa-se, pois, um aumento dessa população francófona no Senegal. Disponível em:
https://www.francophonie.org/senegal-984. Acesso: 19 jun. 2023.
83
Em relação às línguas oficiais, Cisse comenta sobre o decreto que atribuíu esse título às línguas locais: “Plus
tard, la loi n° 91-22 du 16 février 1991 portant orientation de l’Éducation nationale définit les principes généraux
de l’Éducation nationale comme étant une éducation nationale sénégalaise et africaine. Ce qui suppose le
développement des langues nationales comme moyen de promotion de la culture. En effet, la promotion des
langues nationales a été appuyée et soutenue par le président (et linguiste), Senghor à travers ses déclarations
officielles, mais aussi à travers l’élaboration des alphabets officiels et des terminologies sénégalaises. C’est ainsi
qu’on assista à la codification des six langues les plus importantes du pays: le wolof, le peul, le sérère, le diola, le
malinké et le soninké. Bien que le décret présidentiel n° 71566 du 21 mai 1971 eût retenu leur promotion au rang
de ‘langues nationales’, dans la pratique, l’enseignement des langues nationales n’a pu commencer qu’en 1978 et
il s’est limité aux deux premières années du primaire. En 1980-1981, on ne comptait encore qu’une quinzaine de
classes concernées, pratiquement toutes en wolof au niveau primaire”. (“Mais tarde, a lei n° 91-22 de 16 de
fevereiro de 1991 sobre a orientação da Educação Nacional define os princípios gerais da Educação Nacional como
sendo uma educação nacional senegalesa e africana, o que supõe o desenvolvimento das línguas nacionais como
meio de promoção da cultura. De fato, a promoção das línguas nacionais foi apoiada e defendida pelo presidente
(e linguista) Senghor através das suas declarações oficiais, mas também através da elaboração de alfabetos oficiais
e de terminologias senegalesas. Foi assim que assistimos à codificação das seis línguas mais importantes do país:
o uolofe, o fula, o sererê, o diola, o malinke et o soninquê. Embora o decreto presidencial n° 71566 de 21 de maio
de 1971 tenha promovido estas línguas ao estatuto de ‘línguas nacionais’, na prática, o ensino das línguas nacionais
só começou em 1978 e se limitou aos dois primeiros anos do primário. Em 1980-1981, contava somente com cerca
de quinze turmas, praticamente todas em uolofe no nível primário”).
84
“le wolof, le peul, le sérère, le diola, le malinké et le soninké”.
85
“(…) les langues nationales n’ont pas le même dynamisme sur l’étendue du territoire national. Certaines sont
d’un usage majoritaire, soit dans une localité, soit dans une région. Seule la langue wolof couvre au moins 80 %
du territoire national comme première ou deuxième langue de communication”.
52

irreversível. Assim, aprendemos francês no Senegal porque é a única forma eficaz de encontrar
um lugar no sistema” (2014, p. 3).86 Esse apontamento da pesquisadora deixa ainda mais nítido
o fato de que a língua do ex-colonizador, mesmo não sendo a língua mais falada do país, é a
língua que nesse sistema permite a ascensão social.
No Senegal, é nas regiões metropolitanas que se encontra o maior número de
francófonos: “a posição privilegiada do francês traduziu-se no aumento da proporção de
francófonos entre 1988 e 2002, subindo respectivamente de 16,5% para 25,8% com situação
mais favorável nas regiões de Dakar e Ziguinchor” (NIANG CAMARA, 2014, p. 22).87 No que
se refere a Dakar, capital do país, que tem o maior número de francófonos, Cisse comenta a
relação entre o francês e o uolofe:

Por sua estreita convivência com as línguas senegalesas, o francês influencia as


línguas locais e evolui no contato com elas. Essas misturas e influências mútuas são
evidentes no francês falado no Senegal com suas especificidades chamadas de
“senegalismos”. Em centros urbanos como Dakar, a mistura e alternância de códigos
usados por intelectuais são numerosos, como os de jovens que adquiriram um certo
nível de educação. Eles se comunicam em uma interlíngua (francelegalés), na maioria
das vezes dominada pela mistura de francês e uolofe (CISSE, 2005, p. 105).88

Essa interlíngua criada por meio do francês e do uolofe se configura como um grande
exemplo de que a língua francesa nessa sociedade não é mais aquela língua do ex-colonizado.
Ela adquiriu, em contato com outras línguas, novas características, assim como influenciou e
atribuiu características para as línguas locais. É nesse cenário plurilinguístico e multicultural
que o Senegal se constrói como nação.
A partir desses apontamentos, fica ainda uma pergunta: Como é possível que o uolofe,
língua falada por cerca de oitenta por cento da população, ainda não tenha adquirido, assim
como o francês, o status de segunda língua oficial do país? Isso evidencia que há, até então,
uma visão que relaciona o francês a uma língua de poder, da cultura, do ensino etc., embora já
não seja mais vinculada à língua do ex-colonizador, por ter adquirido características locais.

86
“Le wolof demeure une langue véhiculaire nationale et sur ce plan il a supplanté le français et son expansion
semble irréversible. Ainsi, on apprend le français au Sénégal parce que c’est le seul moyen efficace de se faire une
place dans le système”.
87
“(…) la position privilégiée du français s’est traduite par une augmentation de la proportion de francophones
entre 1988 et 2002 en passant respectivement de 16,5 % à 25,8 % avec une situation plus favorable dans les régions
de Dakar et Ziguinchor”.
88
“Du fait de sa coexistence rapprochée avec les langues sénégalaises, le français influe sur les langues locales et
évolue au contact de celles-ci. Ces mélanges et influences mutuelles sont manifestes dans le français parlé au
Sénégal avec ses spécificités dénommées “sénégalismes”. Dans les centres urbains comme Dakar, le mélange et
les alternances de codes auxquels ont recours les intellectuels sont nombreux, comme ceux des jeunes qui ont
acquis un certain niveau d’instruction. Ils communiquent dans une interlangue (francénégalais) dominée le plus
souvent par le mélange de français et de wolof”.
53

Ainda assim, nota-se que as motivações políticas são responsáveis por atribuir o valor e o papel
que cada língua ocupa na sociedade e, consequentemente, atribuem valor também às pessoas
que a utilizam. Assim, o valor atribuído ao indivíduo dependerá de qual língua ele usa, seja ela
empregada em uma sociedade empírica, ou, por que não, em uma construída esteticamente em
uma narrativa.
54

4. A CONSTRUÇÃO ESTÉTICA DO TEMA DA MENDICIDADE

4.1 Oposição: Homens do Estado versus Corpo coletivo

A partir de toda reflexão proposta acima, partindo da configuração do campo das


literaturas africanas francófonas, do qual o romance de Aminata Sow Fall faz parte, passando
pelo contexto histórico e social, nos debruçaremos agora em La grève des bàttu. Buscamos
apresentar como o tema na mendicidade se constrói na narrativa por meio da hipótese de que
as personagens representantes da classe mais desfavorecida da sociedade formam em um único
corpo coletivo.
Começaremos destacando a oposição entre os grupos, apresentando as personagens que
fazem parte de cada um deles. Posteriormente, mostraremos como se concebe o embate entre
as esferas sociais na narrativa e como esse embate contribui para que melhor visualizemos como
se organizam as personagens do grupo dos mendigos. Na sequência, uma vez apresentados os
conflitos entre os grupos, analisaremos como elementos vinculados à religiosidade aparecem
na narrativa e se relacionam com o tema da mendicidade transposto na obra. Por fim,
verificaremos como, na narrativa, é possível perceber a distinção entre o corpo coletivo dos
mendigos versus as personagens do grupo de poder por meio dos recursos narrativos utilizados,
sendo: 1) pela construção dos espaços narrativos e 2) pela escolha discursiva e uso de marcas
da oralidade na narrativa.

4.1.1 Homens do Estado

No primeiro parágrafo da narrativa já se apresenta o conflito que vai se seguir, em que


se opõem o serviço de salubridade e o grupo dos mendigos.

CE MATIN encore le journal en a parlé; ces mendiants, ces talibés, ces lépreux, ces
diminués physiques, ces loques, constituent des encombrements humains. Il faut
débarrasser la Ville de ces hommes – ombres d'hommes plutôt – déchets humains,
qui vous assaillent et vous agressent partout et n’importe quand. Aux carrefours, c’est
à souhaiter que les feux ne soient jamais rouges! Mais une fois que l’on a franchi
l’obstacle du feu on doit vaincre une nouvelle barrière pour se rendre à l’hôpital, forcer
un barrage pour pouvoir aller travailler dans son bureau, se débattre afin de sortir de
la banque, faire mille et un détours pour les éviter dans les marchés, enfin payer une
rançon pour pénétrer dans la maison de Dieu. Ah! ces hommes, ces ombres
d’hommes, ils sont tenaces et ils sont partout! La Ville demande à être nettoyée
(FALL, 2001, p. 11, negritos nossos).

Esta manhã o jornal falou novamente sobre isso; esses mendigos, esses talibés, esses
leprosos, esses deficientes físicos, esses trapos, são estorvos humanos. Devemos
livrar a cidade desses homens – ou melhor, sombras de homens - dejetos humanos,
55

que te atacam e agridem em todos os lugares e a qualquer hora. No cruzamento, a


gente fica desejando que o semáforo nunca esteja no vermelho! Mas, assim que
ultrapassamos o obstáculo do semáforo, devemos superar outra barreira para chegar
ao hospital, forçar um bloqueio para poder ir trabalhar no escritório, lutar para sair do
banco, fazer mil e um desvios para evitá-los nos mercados, e por fim pagar um preço
para entrar na casa de Deus. Ah! esses homens, essas sombras de homens, são
tenazes e estão por toda parte! A cidade pede para ser limpa.

O grupo de mendigos é qualificado com esses adjetivos, marcados em negrito, ao longo


da obra. Seja a partir do ponto de vista esboçado por Kéba, demonstrado acima, ou a partir do
ponto de vista de Mour, ambas são personagens que representam o Estado. O substantivo
encombrements (“estorvo”) apresenta como primeira acepção “o que obstruí, atrapalha ou
impossibilita a realização de algo”,89 dando a entender que a presença do grupo dificulta o bom
funcionamento da sociedade. O substantivo déchets (“dejetos”), uma vez mais, corrobora essa
percepção. Tendo como um dos sentidos “excrementos”, esse termo condensa a forma pela qual
o grupo é visto socialmente por Kéba: como algo repulsivo e que deve ser descartado para longe
da cidade principal. Ao considerar esses indivíduos “estorvos humanos”, “sombras de homens”
e “dejetos humanos” tira-se do grupo dos mendigos toda a sua humanidade. Por meio dessa
escolha vocabular, vemos como os mendigos são classificados por aqueles que representam o
órgão de salubridade do país. A partir dessas escolhas lexicais o grupo sofre uma
desumanização.
No excerto abaixo o narrador apresenta como Kéba, assistente de Mour Ndiaye, se sente
em relação aos mendigos.

Kéba ne dit pas à Mour Ndiaye ce qu’il ressentait chaque fois qu’un mendiant lui
tendait la main; il ne lui fit pas part de la boule qui l’étranglait presque lorsque des
mains malpropres pénétraient jusque dans sa voiture, dès qu’il commettait la
maladresse de baisser sa vitre, ni du remords qu’il éprouvait de se conformer au
principe qu’il s’était fait de refuser l’aumône aux mendiants, non par méchanceté ou
par égoïsme, mais parce qu’il était choqué de voir des êtres humains – si pauvres
fussent-ils – porter atteinte à leur dignité en quémandant d’une manière si honteuse et
effrontée (FALL, 2001, p. 13).

Kéba não disse a Mour Ndiaye o que sentia cada vez que um mendigo lhe estendia a
mão; não lhe falou da bola na garganta que quase o estrangulava quando mãos sujas
penetravam até mesmo dentro do carro, assim que ele cometia o erro de baixar janelão
de vidro, nem do remorso que sentia por se conformar com o princípio que ele tinha
estabelecido para si de recusar esmola aos mendigos, não por maldade ou por
egoísmo, mas porque ele ficava chocado ao ver seres humanos - por mais pobres que
fossem - minando sua dignidade mendigando de maneira tão vergonhosa e descarada.

Para Kéba, não há nada menos honroso do que o ato de mendigar. Como percebemos,
apesar de sentir remorso por não ajudar os mendigos, sua opinião sobre o que eles fazem é mais

89
De acordo com o dicionário digital Aulete. Disponível em: https://www.aulete.com.br/estorvo. Acesso em 01
jul. 2023.
56

forte do que a compaixão que sente por eles. Essa percepção de Kéba é interessante, na medida
em que temos não só um embate que perpassa o serviço de salubridade e o grupo. Há ainda
outro, que está relacionado à função que a religião ocupa nessa sociedade e que é latente a todo
momento. Observamos isso em uma conversa que Kéba tem com sua secretária, Sagar Diouf,
na qual nos deparamos com pontos de vista conflitantes sobre as medidas que serão tomadas
pelo setor de salubridade em sua busca incansável para livrar a cidade dos mendigos.

Et ce jour encore, lorsque Kéba Dabo a raccompagné ses chefs de brigade et que,
rayonnant de joie, il s’est arrêté devant le bureau de sa secrétaire en lui disant:
- Cette fois, nous réussirons! Nous les aurons!
Sagar lui répond: - Tu sais, Kéba, tu perds ton temps avec les mendiants. Ils sont là
depuis nos arrière-arrière-grands-parents. Tu les as trouvés au monde, tu les y
laisseras. Tu ne peux rien contre eux. Quelle idée d’ailleurs de vouloir les chasser?
Que t’ont-ils fait?
- Tu ne peux pas comprendre cela, Sagar... Ne ressens-tu rien lorsqu’ils t’abordent...
non, ils ne t’abordent pas, ils t’envahissent, ils t’attaquent, ils te sautent dessus. Voilà,
ils te sautent dessus. N’éprouves-tu rien lorsqu’ils te sautent dessus?
Sagar sourit, lisse sa noire chevelure frisée avec ses deux mains, arrange son
décolleté.
- Que veux-tu que j’éprouve? Si j’ai de quoi leur donner, je le leur donne, sinon je
continue mon chemin. C’est tout. Et puis, la religion recommande bien que l’on assiste
les pauvres comment vivraient-ils autrement?
- La religion prescrit l’aide aux pauvres, mais elle ne leur dit pas de priver leur
prochain de tout repos. Tu entends, tu comprends cela? C’est toi et les gens comme
toi qui encouragez ce fléau. La religion a-t-elle jamais béni l’homme qui se dépouille
de toute vergogne?
Sagar éclate de rire en faisant claquer ses deux mains à plusieurs reprises. C’est plus
fort qu’elle. Elle ne peut pas concevoir que quelqu’un soit si passionné pour une
banale histoire de mendiants. Elle trouve Kéba de plus en plus extravagant.
- Mais dis-moi, Kéba, je ne te demande qu’une chose: comment vivraient-ils s’ils
ne mendiaient pas? Ah! dis-moi encore ceci: à qui les gens donneraient-ils la
charité, car il faut bien qu’on la donne, cette charité, qui est un précepte de la
religion?
Kéba ne répond pas; il n’aime pas chercher des réponses à ces questions; il préfère les
éluder, car la véritable affaire pour lui est de dégager les voies de circulation pour
exécuter l’ordre de ses chefs et de se guérir de cette nausée que provoque en lui la vue
des mendiants (FALL, 2001, p. 34-35, negritos nossos).

E naquele dia novamente, quando Kéba Dabo acompanhou seus líderes de brigada de
volta para casa e, radiante de alegria, ele parou em frente à sala de sua secretária,
dizendo-lhe:
- Desta vez vamos conseguir! Nós os pegaremos!
Sagar responde: - Sabe, Kéba, você está perdendo tempo com os mendigos. Eles estão
lá desde nossos tataravós. Você os encontrou no mundo, você os deixará aqui. Você
não pode fazer nada contra eles. Aliás, que ideia querer persegui-los! O que eles
fizeram contra você?
- Não tem como você entender isso, Sagar... Você não sente nada quando eles se
aproximam de você... não, eles não se aproximam de você, eles te invadem, te atacam,
pulam em você! É isso, eles pulam em cima de você! Você não sente nada quando
eles pulam em cima de você?
Sagar sorri, alisa o cabelo preto encaracolado com as duas mãos, ajeita o decote.
- O que você quer que eu sinta? Se eu tenho o suficiente para dar, eu lhes dou, caso
contrário, continuo no meu caminho. É isso. A religião recomenda que ajudemos os
pobres; como eles viveriam de outra forma?
57

- A religião prescreve ajuda aos pobres, mas não diz a eles que privem seu próximo
de todo descanso. Entende isso? É você e pessoas como você que estão promovendo
este flagelo. A religião já abençoou o homem que se despoja de toda vergonha?
Sagar dá uma gargalhada, estalando as duas mãos repetidamente. É mais forte do que
ela. Ela não podia imaginar que alguém seja tão apaixonado por uma história banal de
mendigo. Ela acha Kéba cada vez mais extravagante.
- Mas diga-me, Kéba, só te pergunto uma coisa: como eles viveriam se não
pedissem? Ah! diga-me de novo: para quem as pessoas fariam caridade, porque
deve-se fazer essa caridade, que é um preceito da religião?
Kéba não responde; ele não gosta de buscar respostas para essas perguntas; ele prefere
evitá-las, porque o verdadeiro negócio para ele é limpar as estradas para cumprir a
ordem de seus líderes e curar-se dessa náusea que a visão dos mendigos causa nele.

Nesse diálogo são apresentados dois pontos de vistas distintos. Sagar acredita que os
mendigos tenham uma função na sociedade. Ela os vê como sendo figuras importantes para a
manutenção de uma prática religiosa. Essa percepção de Sagar é tão forte que ela não consegue
imaginar a sociedade sem eles. A presença dessas pessoas não a perturba ou causa incômodo,
diferentemente dos sentimentos que esse grupo desperta em seu chefe. Essa perspectiva de
Sagar revela que há uma instrumentalização da mendicância praticada nessa sociedade e que
está muito atrelada a um discurso religioso: “A religião recomenda que ajudemos os pobres;
como eles viveriam de outra forma?”. Dessa forma, Sagar não apresenta uma percepção apurada
sobre essa organização social problemática, nem sobre a situação em que se encontram essas
pessoas em situação de rua. Ela não propõe nenhuma mudança, ao contrário, ela acredita que
não há como mudar tal situação: “Eles estão lá desde nossos tataravós. Você os encontrou no
mundo, você os deixará aqui”. Kéba, ao contrário de Sagar, parece não considerar a
instrumentalização religiosa da mendicância, deixando isso de lado, seu interesse é, de fato,
retirar esses indivíduos da sociedade. Ele os enxerga em sua situação: os vê como representantes
da miséria. Essa “função social” que o grupo desempenha, não interessa a Kéba. Ele está mais
interessado em cumprir com as ordens de seu chefe, Mour. Além disso, na última linha dessa
sequência narrativa, nota-se a utilização da palavra “náusea” (“nausée”) que, em uma das suas
acepções, indica algo repugnante que causa nojo ou repulsa.90 Os sentimentos de Kéba, em
relação aos mendigos, são descritos por meio de palavras que, como essa, giram em torno de
um campo semântico pejorativo que reforça, ao longo da narrativa, o modo como o setor de
salubridade enxerga o grupo. Apesar das perspectivas distintas de Kéba e de Sagar, algo é
patente: nenhum deles apresenta uma visão humanizadora para o grupo de mendigos. Se por
um lado, lhes é atribuída uma função social, por outro, são vistos como a própria representação

90
De acordo com a definição do dicionário do Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales o substantivo
nausée, em seu sentido figurado tem a seguinte acepção: “Qui manifeste ou qui inspire un grand écoeurement, une
profonde répulsion; qui rappelle la nausée”. Disponível: https://www.cnrtl.fr/lexicographie/naus%C3%A9eux.
Acesso em 11 jun. 2023. No dicionário em português, Houaiss, o substantivo “náusea”, em seu sentido figurado,
pode significar: “repugnância, aversão” (HOUAISS, 2009, p. 524).
58

da miséria, não havendo, assim, uma consciência sobre a condição em que esses seres humanos
se encontram.
Kéba, em sua infância, já vivenciou em sua própria pele a experiência da miséria e isso
a marcou profundamente. Ele desabafa em uma conversa que tem com Sagar.

- Quand j’étais petit, j’ai vu un exemple frappant de désintéressement chez une femme
que ni la faim ni l’extrême dénuement n’ont pu conduire à la mendicité... J’ai vu une
famille... tu me suis bien, Sagar? j’ai vu de mes propres yeux, personne ne m’a
raconté, ce que je vais te dire. Une famille de cinq enfants, le mari englouti par les
eaux un jour qu’il était allé à la pêche à bord d’une pirogue rudimentaire; la femme,
frappée d'infirmité au bras droit, ne subsistait que grâce à ce que voulait bien lui
donner un de ses frères, qui était instituteur, et du mince produit de quelques arachides
grillées qu’elle vendait à défaut de pouvoir faire autre chose, gênée qu’elle était par
son infirmité. (...) - La pauvreté, continue Kéba, est toujours pathétique, mais le
calvaire que vécut par la suite cette famille, personne ne pourra jamais s’en faire une
idée. Cinq bouches à nourrir, des enfants qui ne comprennent pas et qui souvent
boudent le riz cuit à l’eau, sans sucre, parce que le marchand du coin a refusé de faire
crédit. Et la mère, toujours digne, se refusant farouchement à demander, à mendier
(...) (FALL, 2001, p. 84-87).

- Quando eu era pequeno, vi um exemplo marcante de abnegação em uma mulher que


nem a fome nem a miséria extrema puderam levar à mendicância... Eu vi uma
família... está me acompanhando, Sagar? Eu vi com meus próprios olhos, ninguém
me disse o que eu vou te contar. Família de cinco filhos, o marido engolido pelas
águas em um dia que tinha ido pescar em uma canoa rudimentar; a mulher, acometida
de uma enfermidade no braço direito, só subsistia graças ao que um de seus irmãos,
que era professor, se dispunha a lhe dar e ao magro produto de alguns amendoins
grelhados que ela vendia por não poder fazer outra coisa, já que sua enfermidade a
prejudicada. (...) - A pobreza, continua Kéba, é sempre patética, mas o calvário que
esta família viveu por causa disso, ninguém jamais poderá imaginar. Cinco bocas para
alimentar, crianças que não entendem e que muitas vezes fazem cara feia para o arroz
cozido na água, sem açúcar, porque o comerciante local se recusou a vender fiado. E
a mãe, sempre digna, recusando-se ferozmente a pedir, a mendigar (...) (FALL, 2001,
p. 84-87).

Essa fala de Kéba apresenta muitas camadas que contribui para entendermos melhor a
percepção da personagem. A primeira é que, apesar de ter consciência da miséria, ele acredita
que ela seja um problema individual. Isso significa dizer que, na concepção de Kéba, os
cidadãos que passam por momentos ou situações como essa, vivenciada por ele próprio, devem
encontrar uma maneira de saírem dessa conjuntura sozinhos. Em outras palavras, isso
simbolizaria não pedir ajuda a ninguém e muito menos sair às ruas para mendigar. A outra
camada desse discurso da personagem revela que ele não tem conhecimento da dimensão das
desigualdades sociais. Não compreende que o Estado tem a obrigação de ajudar essas pessoas,
pois não se trata de algo que assola um único indivíduo é um problema que acomete toda uma
sociedade. Ao contrário disso, a personagem isenta toda a responsabilidade que deveria ser do
Estado, e, inclusive, do setor de salubridade ao qual a própria personagem pertence.
59

Sagar, a secretária, considera Kéba como “(...) um ser muito particular que não pensa
nem reage como os outros” (FALL, 2001, p. 88)”.91 Essa sua impressão acerca de seu chefe se
intensificou quando ela lhe pediu um galão de gasolina para sua amiga que não tinha condições
de comprá-lo. Kéba solicitou que ela levasse sua amiga ao seu escritório. Quando as moças
chegaram, Kéba fez um grande discurso sobre o quão essa atitude é desonrosa. Além disso, o
seu ticket de gasolina lhe era fornecido pelo Estado, por isso, se ele o desse à ela, em sua
perspectiva, estaria roubando do Estado.

Kéba: (...) tout d’abord, ne pensez-vous pas que c’est dégradant de demander?
Ensuite, il faut savoir prendre ses responsabilités! (...). Enfin, mademoiselle, les bons
d’essence que vous me demandez, vous savez bien qu’ils ne m’appartiennent pas,
mais qu’ils sont le bien de l’État. En me les demandant, vous m’incitez donc à voler
l’État; pensez-vous que ce soit loyal! (FALL, 2001, p. 88-90).

Kéba: (...) em primeiro lugar, você não acha degradante pedir? Além disso, você tem
que saber assumir a responsabilidade! (...). Enfim, senhorita, os cupons de gasolina
que você me pede, você sabe muito bem que eles não me pertencem, mas que são um
bem do Estado. Ao me pedir gasolina, você está me incitando a roubar o Estado; você
acha que isso é lealdade?!” (FALL, 2001, p. 88-90).

Novamente Kéba reforça o que observamos até o momento, o ato de pedir ajuda como
algo que traz indignidade para aquele que o faz. Essa percepção que consideramos ser
individualista da personagem, ao negar a gasolina para a moça, traz um discurso que vai em
direção contrária a tudo aquilo que o Estado deveria ser: aquele que ampara os seus cidadãos.
Ao contrário disso, Kéba vê o Estado como se fosse uma espécie de empresário que tem que
livrar seus bens e patrimônios de tudo que considera escória social. Kéba Dabo tem Mour
Ndiaye em alta estima e seu posto de assistente reforça essa consideração:

Mour Ndiaye savait qu’il pouvait compter sur Kéba. Depuis six ans qu’il l’avait sous
ses ordres, il avait eu le temps d’apprécier ses qualités: consciencieux, honnête, un
véritable bourreau de travail qui, en six ans, ne s’est jamais absenté pour des motifs
injustifiés; (...). Toutes ces raisons faisaient que Mour estimait beaucoup Kéba; celui-
ci était en réalité le cerveau du service (FALL, 2001, p. 14).

Mour Ndiaye sabia que podia contar com Kéba. Nos seis anos que ele o tinha sob suas
ordens, teve tempo para apreciar suas qualidades: consciencioso, honesto, um
trabalhador incansável92 que, em seis anos, nunca se ausentou por motivos
injustificados; (...). Todas essas razões fizeram com que Mour estimasse muito Kéba;
ele era, na realidade, o cérebro do serviço.

91
“Kéba est un être bien particulier qui ne pense, nine réagit, comme les autres”.
92
A palavra “bourreau” apresenta diversas acepções, a depender de seu contexto. Em consulta ao dicionário online
do Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales consideramos a seguinte acepção apropriada ao contexto
descrito no romance de Fall: “Bourreau de lui-même: Personne qui exige le maximum d'elle-même et ne se ménage
pas” (“Pessoa que exige o máximo de si e não se poupa”). Disponível em:
https://www.cnrtl.fr/definition/bourreau. Acesso: 10 mar. 2023.
60

Kéba é caracterizado como um funcionário exemplar, adjetivos positivos fazem parte


de sua caracterização: “consciencioso, honesto, um trabalhador incansável”. Kéba é aquele que
cumpre o serviço à risca e que está sempre às ordens para realizar suas tarefas. Ele é considerado
por todos os companheiros de trabalho como sendo, na verdade, a grande mente eficiente que
soluciona as questões no que tange ao serviço de salubridade do país. No primeiro capítulo do
romance acompanhamos um diálogo entre as personagens Mour e Kéba que reforçam o desejo
de retirarem os mendigos da cidade.

Il est (Kéba Dabo) l’adjoint de Mour Ndiaye, le directeur du Service de la salubrité


publique. Mour Ndiaye a été catégorique lorsque, une semaine auparavant, il avait
appelé son adjoint dans son bureau; il tenait dans sa main droite la circulaire
ministérielle réitérant l’ordre d'assainir les voies publiques; de sa main gauche, il fit
signe à Kéba de s’asseoir en face de lui.
- Kéba, la situation est de plus en plus préoccupante. Ces mendiants, ils nous ... enfin
ils nous mènent la vie un peu dure, voyons. Ne t’avais-je pas dit de faire quelque
chose?
(Mour) (...) - Tu te rends compte, continua celui-ci, leur présence nuit au prestige de
notre pays; c’est une plaie que l'on doit cacher, en tout cas, dans la Ville. Cette année
le nombre de touristes a nettement baissé par rapport à l’année dernière, et il est
presque certain que ces gens-là y sont pour quelque chose. On ne peut tout de même
pas les laisser nous envahir, menacer l'hygiène publique et l’économie nationale!
(FALL, p. 12-14, negritos nossos).

Ele (Kéba Dabo) é o assistente de Mour Ndiaye, diretor do Serviço de Salubridade


Pública. Mour Ndiaye foi categórico quando, uma semana antes, chamou seu
assistente em seu escritório; tinha na mão direita a circular ministerial reiterando a
ordem de limpeza das vias públicas; com a mão esquerda ele fez sinal para Kéba se
sentar em frente a ele.
- Kéba, a situação está cada vez mais preocupante. Esses mendigos, eles... bem, eles
estão tornando a vida um pouco difícil para nós, poxa. Eu não tinha te falado para
fazer alguma coisa?
(Mour) (...) - Você percebe, continuou este último, que a presença deles prejudica o
prestígio do nosso país; é uma ferida que devemos esconder, pelo menos na Cidade.
Este ano o número de turistas caiu significativamente em relação ao ano passado, e é
quase certo que essa gente [os mendigos] tenha algo a ver com isso. Não podemos
deixar que nos invadam e ameacem a saúde pública e a economia nacional! (FALL,
p. 12-14).

A presença dos mendigos, de acordo com Mour, atrapalha a sociedade em algumas


esferas. Em razão disto, e pela cobrança de seus chefes, ele vê a necessidade de tirá-los das ruas
do país. Mour não cogita medidas públicas que possam auxiliá-los a saírem dessa situação, seu
desejo é simplesmente o de “escondê-los” (cacher) do olhar dos turistas. Mais uma vez temos
um vocábulo que traduzimos pela palavra “ferida”93 (plaie) empregada por Mour. Ela pode ser
entendida em seu primeiro significado: uma lesão que aos poucos vai se alastrando pela
sociedade, e, por extensão de sentido pode se entender como “état de chose, fait, personne, qui

93
De acordo com o dicionário significa “Doença contagiosa que ataca muitas plantas ao mesmo tempo”.
Disponível em: https://www.aulete.com.br/praga. Acesso em: 01 jul. 2023.
61

est une cause, plus ou moins permanente, de déchéance morale, de malheurs ou de problèmes
graves”. 94 Assim, há a percepção de que os mendigos representam uma doença contagiosa da
qual o resto da população não pode permanecer em contato. Isso reforça a forma
desumanizadora como Mour percebe as pessoas em condição de mendicância. O egocentrismo
de Mour, ao dizer que os mendigos atrapalham a sua vida reforça, ainda mais, a percepção de
que ele só se importa com o seu próprio bem-estar.
Vale ressaltar que o cargo que ocupa Mour como diretor lhe foi atribuído graças às suas
relações políticas:

Mour avait été nommé à ce poste surtout pour des raisons politiques, une manière pour
les dirigeants de rendre hommage à son passé de militant inconditionnel dans le Parti.
Il en était conscient, mais il mettait quand même son point d’honneur à mériter
l’hommage rendu (...). Ce qui l’intéressait, lui, c’étaient les titres, être quelqu’un
d’honoré, et pour cela il utilisait les aptitudes de Kéba, en homme méthodique qui sait
où il veut aller. Et puis qui sait si cette affaire de mendiants, menée à bonne fin, n'était
pas une belle occasion de promotion? (FALL, 2001, p. 14-15).

Mour havia sido nomeado para este cargo principalmente por razões políticas, uma
forma de os líderes homenagearem o seu passado como militante incondicional no
Partido. Ele estava ciente disso, mas, ainda assim, fazia merecer a homenagem
prestada como questão de honra (...). O que lhe interessava eram os títulos, ser alguém
honrado, e para isso ele utilizava os dotes de Kéba, um homem metódico que sabe
aonde quer chegar. E quem sabe esse negócio de mendigos, se desse certo, não seria
uma ótima oportunidade para ele ser promovido?.

Ndiaye, mesmo sabendo não ser o mais qualificado para o serviço, ainda assim aceitou
o encargo, pois, para ele, essa honraria poderia lhe trazer muitas outras. Para continuar com sua
boa reputação no âmbito das relações políticas, Ndiaye precisa, portanto, a todo custo, retirar
os mendigos da cidade. Em um diálogo, após algumas contestações de seu assistente Kéba,
Mour lhe diz: “Kéba, não tem o que explicar, é preciso encontrar um jeito de fazer essas pessoas
desaparecerem. A reputação do nosso serviço está em jogo. Você quer que nos chamem de
ineficazes, de incapazes?”95 (FALL, 2001, p. 13). Novamente, Mour está prezando os seus
próprios interesses. Quando Mour pede a Kéba que pense em uma estratégia para tirar os
mendigos da cidade central do país, Kéba lhe assegura que fará isso. Kéba, a partir de seus
esforços, atendendo a pedidos do seu patrão Mour, consegue realizar o feito de retirar os
mendigos da cidade principal. Mour não está preocupado com o destino desses indivíduos, a
única coisa que lhe interessa é manter sua reputação. Conseguir tirar os mendigos das ruas da

94
Definição do substantivo “plaie” pelo dicionário Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales
(“Estado de coisas, fato, pessoa, que é causa, mais ou menos permanente, de decadência moral, desgraças ou
problemas graves”).Disponivel em: https://www.cnrtl.fr/lexicographie/plaie. Acesso. 11 jul. 2023.
95
“Kéba, il n'y a pas à comprendre, il faut y mettre les moyens pour que ces gens-là disparaissent. Il y va de la
réputation de notre service. Faut il que l'on nous traite d'inefficaces, d'incapables?”.
62

cidade principal do país, lhe dá esperanças de que irá conseguir o tão almejado cargo de vice-
presidente.
Or, ce poste de vice-président, il y tient, il y a déjà mis tout son espoir; il en a même
revêtu le manteau, puisque ses moindres actes, tous ses projets et chacune de ses
décisions sont pensés et exécutés en fonction de sa future (…) (FALL, 2001, p. 116-
117).

No entanto, esse cargo de vice-presidente, ele quer, ele já depositou todas as suas
esperanças nele; ele até se revestiu disso, pois seus menores atos, todos os seus
projetos e cada uma de suas decisões são pensados e executados de acordo com seu
futuro (...).

A questão sanitária do país não se configura como uma preocupação para Mour. O cargo
é apenas um trampolim para alcançar outros anseios. Toda essa postura de Mour reforça uma
oposição com o grupo de mendigos, na medida em que ele, enquanto pessoa responsável pelo
bem-estar social, só pensa em benefícios que possam ser proveitosos para si mesmo. Isso se
configura como uma grande ironia ao pensarmos que esse possa ser o perfil de alguém que
ocupe a função de diretor de salubridade do país. A alta confiança de que irá conseguir seu
objetivo cresce gradualmente e se intensifica em Mour. Em decorrência da retirada dos
mendigos da cidade, Mour ganha outra honraria:

Mour Ndiaye a été promu Chevalier de l’Ordre des Méritants, distinction qui n’honore
que les fils du pays en qui l’on a reconnu des qualités exceptionnelles. (...) Il n’est
plus Mour Ndiaye mais ‘l’homme extraordinaire qui sait redresser les situations
compromises’ (...). Dans son discours de fin d’année, le président de la République a
fait part à la Nation de son optimisme quant à l’avenir du Pays; (...). Il (o presidente)
a cité en exemple Mour Ndiaye, qui, par son savoir-faire, son intelligence et son
courage, a réussi à désencombrer la Ville, favorisant ainsi l’essor du tourisme, qui a
permis de relever considérablement le niveau de vie des citoyens, puisque le revenu
par tête d’habitant a subi une augmentation très substantielle (FALL, 2001, p. 91-97).

Mour Ndiaye foi promovido a Cavaleiro da Ordem do Mérito, uma distinção que
honra apenas os filhos do país em que são reconhecidas qualidades excepcionais. Ele
não é mais o Mour Ndiaye, mas ‘O homem extraordinário que sabe como solucionar
situações graves’ (...). Em seu discurso de fim de ano, o Presidente da República
comunicou à Nação seu otimismo quanto ao futuro do País; (...). O presidente citou
como exemplo Mour Ndiaye, que por meio de seu conhecimento, sua inteligência e
sua coragem, conseguiu desentulhar a cidade, promovendo assim o desenvolvimento
do turismo, que permitiu aumentar consideravelmente o nível de vida dos cidadãos,
uma vez que a renda per capita sofreu um aumento substancial.

Acompanhamos no excerto o título honrável que Mour recebeu tornando-se um símbolo


de exemplo que os demais cidadãos devem adotar como modelo para fazer com que o país
restabeleça sua economia. Este prêmio reforça que a personagem irá fazer todo o possível para
realizar os seus próprios desejos. Ao ouvir o discurso do presidente, Mour fica confiante que
irá ser escolhido como vice-presidente da República.
63

Mour nem sempre foi um homem que frequentou as esferas de poder, ao contrário, na
narrativa acompanhamos um pouco do passado da personagem.

Mour pensait souvent à ces difficiles années où, employé de l’Administration, il avait
été mis à la porte pour avoir eu une altercation avec son chef. Il ne pouvait pas
supporter les brimades et parfois même les injures grossières de cet Européen qui,
parce qu’il avait conscience d’être en pays conquis, considérait les gens comme moins
que des chiens. “Ah non, plutôt mourir que de me laisser marcher sur les pieds par ce
mec; je suis sûr qu’il ne ‘signifie rien’ chez lui; alors il se défoule chez nous, sur les
Nègres, pour se persuader qu’il a quelque consistance. Ah non! Moi, je n’accepterai
pas cela. Je suis un homme, moi! (FALL, 2001, p. 18, negrito nosso).

Mour sempre pensava naqueles anos difíceis em que, como funcionário


administrativo, havia sido despedido por ter discutido com seu chefe. Ele não podia
suportar as intimidações e, às vezes, até os insultos grosseiros deste europeu que,
porque ele tinha consciência de estar em um país conquistado, considerava as pessoas
como sendo menos que cães. “Ah, não, prefiro morrer do que deixar esse cara pisar
em mim; tenho certeza de que ele não “significa nada” no país dele; então ele solta
seus recalques no nosso país, em cima dos negros, para se convencer de que tem
alguma consistência. Ah, não! Eu não vou aceitar isso. Eu sou um homem.

Mour teve um passado difícil quanto à discriminação em seu serviço. As marcas do


colonialismo nas relações administrativas mostram o grau de superioridade que os
colonizadores tinham sobre os indivíduos do país colonizado. Mour, não aguentando mais,
acabou por agredir o seu chefe europeu – que “tinha consciência de estar em um país
conquistado” – que zombava dele (“ricanements”, FALL, 2001, p. 18) e o ridicularizava. Essa
atitude lhe custou quinze dias em uma prisão e anos desempregado. É nesse momento da vida
da personagem que Mour conhece o marabu Sirigne Birama no vilarejo Keur Gallo, onde
morava.96 Birama, depois de horas caminhando, estava cansado e com sede. Ele recebeu ajuda
de Mour. Birama, então, revela a Mour:

- Les gens courent, courent. Ils n’ont plus le temps de s’arrêter un moment pour
indiquer le chemin au villageois. Céy yalla. Après Dieu, tu m’as porté un secours
précieux. La soif allait me tuer ... Dieu qui sait ce que tu désires, qu’il exauce tous tes
voeux. Si un jour tu peux venir à Keur Gallo, tu viendras. Le premier homme à qui tu
demanderas Serigne Birama Sidibé te conduira jusque dans ma maison. Depuis ce
jour, une vingtaine d’années se sont écoulées. Jamais Mour n’a eu à douter de Serigne
Birama Sidibé (FALL, 2001, p. 21).

- As pessoas estão correndo, correndo. Elas não têm mais tempo de parar por um
momento para mostrar o caminho ao aldeão. Céy yalla. Depois de Deus, você me deu
uma ajuda preciosa. A sede ia me matar... Deus quem sabe o que você deseja, que lhe
conceda todos os seus desejos. Se um dia você puder vir a Keur Gallo, você virá. O

96
O sentimento que Mour tem por Birama é descrito da seguinte forma: “Mour Ndiaye connaît de nombreux
marabouts, mais Serigne Birama est à ses yeux l'irremplaçable, l'homme qui, par son désintéressement, sa sagesse
et ses connaissances, mérite le respect intarissable qu'il lui voue, et l'immense sentiment de gratitude qu'il éprouve
à son égard” (“Mour Ndiaye conhece muitos marabouts, mas Serigne Birama é, a seus olhos, o insubstituível, o
homem que, por seu desinteresse, sua sabedoria e seus conhecimentos, merece o respeito inesgotável em que ele
lhe tem e o imenso sentimento de gratidão que sente por ele”).
64

primeiro homem a quem você perguntar por Serigne Birama Sidibé vai te levar até a
minha casa. Desde aquele dia, vinte anos se passaram. Mour nunca teve que duvidar
de Serigne Birama Sidibé.

As palavras de Birama, para Mour, eram proféticas. Por essa razão, e pelo carinho que
tinha por Birama, Mour mantinha a tradição de se consultar com ele no vilarejo. Anos se
passaram e as palavras de Birama se cumpriram. Mour, que antes não tinha nenhuma
perspectiva, tornou-se uma figura respeitada em seu país. Agora, Mour, que tinha sido tratado
como “cão” (“chien”), por seus chefes europeus, se tornou a própria representação desse
modelo eurocentrado; isso se confirma na forma com que ele trata o grupo dos mendigos. Mour
passa a reproduzir os comportamentos abusivos que um dia ele sofreu na pele. Temos assim, os
traços de um indivíduo marcado pelo neocolonialismo que passa a projetar e perceber no
comportamento europeu um modelo a ser copiado. Mour que havia sido vítima se torna,
posteriormente, agressor. Isso ocorre pois, se não há uma libertação de pensamento em relação
ao sistema, aquele que foi vítima não pensa na emancipação dos seus, ao contrário, sonha em
estar na posição do ofensor.
As personagens Mour e Kéba, representantes do serviço de salubridade, que sofreram e
pertenceram às classes mais desfavorecidas da sociedade, hoje representam outra classe (Mour
faz parte da elite e, Kéba, ao que se denomina como classe média) e se interessam por solucionar
os problemas da elite do país. Deste modo, elas acabaram se desvinculando do lugar de onde
saíram, buscando sempre se desprender da vida que levavam e que levam aqueles que vivem à
margem da sociedade (como os mendigos e outros grupos). O passado pobre e de poucos
recursos das personagens ficou em um lugar do qual elas querem se afastar, distanciando-os
dos jovens que um dia haviam sido. Essa atitude de Mour e Kéba, corrobora para que eles não
reflitam sobre os problemas que assolam a sociedade, afinal é mais fácil atribuir a culpa aos
indivíduos em situação de pobreza do que pensar em uma solução para resolver o problema.
Ironicamente, Kéba é um funcionário do país que não compreende o verdadeiro papel
do Estado. Não sabe que é dever do Estado auxiliar os seus cidadãos ajudando e dando todo
tipo de assistência necessária. Ao contrário disso, temos uma personagem que isenta o Estado
de todos os seus deveres básicos para com a população. Dessa forma, nota-se que o
comportamento da mãe de Kéba se tornou uma referência de conduta para ele: “recusando-se
ferozmente a pedir, implorar” (“se refusant farouchement à demander, à mendier”, FALL,
2001, p. 84-87). Esse comportamento passou a ser um traço característico da personalidade de
Kéba que o impede de visualizar a situação mais profundamente como sendo um problema
65

social e não como algo individual. Sua perspectiva, ao incorporar essa característica de sua mãe,
o torna mais fechado em relação às mazelas sociais do mundo.
Por outro lado, temos Mour, um homem em um cargo importante que ele não merecia e
que age em proveito próprio. Como chefe do serviço de salubridade, nunca pensa em solucionar
os males oriundos das desigualdades sociais, ao contrário, parece não ter dimensão delas. Mour
como chefe herda a característica do europeu, tratando o grupo de mendigos como um dia ele
mesmo havia sido tratado, assim, aquele que um dia foi oprimido, passa a ser o opressor.97 Isso
significa que Mour não adquiriu consciência crítica sobre a própria situação que vivenciou, ele
reproduz os comportamentos abusivos que um dia sofreu por achar, mesmo que
involuntariamente, que deve haver um opressor nesse sistema. Quando não há consciência
social, como no caso das personagens analisadas, não há possibilidade de mudança em seus
comportamentos. Ademais, o léxico empregado tanto por Mour quanto por Kéba para se referir
aos mendigos (“encombrements humains” (“estorvos humanos”); “déchets” (“dejetos”); “La
Ville demande à être nettoyée” (“A cidade pede para ser limpa”); “lépreux” (“leprosos”);
“loques” (“trapos”); “ombres” (“sombras”); “assaillent” (“atacam”); “agressent” (“agridem”);
“obstacle” (“obstáculo”); “barrière” (“barreira”); “barrage” (“bloqueio”); “tenaces”
(“tenazes”)) revela o modo como o Estado enxerga o grupo. Além da escolha lexical representar
uma clara distinção de nós contra eles propagando, assim, uma visão negativa sobre esses
indivíduos.
Essas personagens configuram o núcleo representa os homens do Estado. A
caracterização desses homens revela a forma individualista com que eles tratam a situação
social dos mendigos na narrativa.98

4.1.2 Grupo dos mendigos: Corpo coletivo

A personagem de Nguirane representa a esfera dos socialmente marginalizados na


narrativa. Ele é músico e sempre canta para seus companheiros, apesar das adversidades.
“Nguirane Sarr, qui maintenant joue de la guitare pour meubler ses trop longs moments de

97
Trazemos essa reflexão a partir dos estudos de Paulo Freire, principalmente ao que se relaciona ao seu livro A
pedagogia do oprimido (1968).
98
“(...) assim, podem ser consideradas como personagens planas: “(...) como há apenas um único traço (ou um que
claramente domina os outros), o comportamento da personagem plana é totalmente previsível (“como solo hay un
único rasgo (o a uno que domina claramente los otros), la conducta del personaje plano es totalmente previsible”,
CHATMAN, 1990, p. 141).
66

Loisirs” (Nguirane Sarr, que agora toca violão para preencher seu longo tempo de lazer, FALL,
2001, p. 106).

Nguirane Sarr est présent, cet aveugle toujours cravaté, à col amidonné et crasseux, à
lunettes noires avec cadre doré, à costume éternellement bleu marine et à canne
blanche (...). Son point stratégique est le rond-point de la Présidence, pour recevoir la
pièce lourde de vœux qui symbolise le dernier acte de charité avant l’audience avec
le président de la République. La charité ouvre les portes, une ultime pièce, donc, pour
ouvrir la porte du cœur du président (FALL. 2001, p. 24-25).

Nguirane Sarr está presente, este cego sempre de gravata, de colarinho engomado e
imundo, óculos pretos com armação dourada, terno eternamente azul marinho e
bengala branca (...). Seu ponto estratégico é a praça circular da Presidência, para
receber a moeda pesada de votos que simboliza o último ato de caridade antes da
audiência com o Presidente da República. A caridade abre as portas, uma última
moeda, portanto, para abrir a porta do coração do presidente.

A narrativa nos informa suas características: sua deficiência visual e as marcas de seu
estilo indumentário próprio e singular da personagem. Nguirane costuma ficar (“seu ponto
estratégico”), perto da área da administração presidencial, que ele considera ser um bom lugar
para receber esmolas. Para implementar o que foi determinado pelo departamento de
salubridade, os policiais passaram a servir-se de meios violentos. Nguirane relata o que
aconteceu com ele:

(...) Ils m’ont battu, aujourd'hui. Ils ont déchiré mes habits, ils ont confisqué ma canne
et ils ont cassé mes lunettes. C’est trop, c’est trop. Est-ce qu’on traite ainsi un être
humain? Nguirane est exténué. Une balafre sanglante surplombe son œil droit et se
prolonge jusqu’à son oreille. (...) C’est trop, c’est trop, reprend Nguirane Sarr.
Puisqu’ils veulent la guerre, faisons-leur la guerre (FALL. 2001, p. 43-45).

Hoje me bateram. Rasgaram minhas roupas, confiscaram minha bengala e quebraram


meus óculos. Exageraram, exageraram. É assim que se trata um ser humano? Nguirane
está exausto. Um corte sangrento em cima de seu olho direito vai até sua orelha. É
demais, é demais, continua Nguirane Sarr. Já que eles querem guerra, vamos guerrear
contra eles.

Conforme lemos no excerto, observa-se que Nguirane fica indignado pela forma como
foi tratado: além de ser agredido, tomaram-lhe sua bengala e ele teve seus óculos quebrados,
sem falar de seu ferimento perto do olho. Nguirane considera esse tipo de ação absurda: nenhum
ser humano deveria ser tratado dessa forma. Essa sequência narrativa evidencia a cólera da
personagem, além disso, mostra ao leitor a violência exercida pelos órgãos públicos. Tamanha
é sua revolta que Nguirane diz:

(Nguirane) - Nous ne sommes pas des chiens! Vous le savez bien, que nous ne
sommes pas des chiens. Il faut qu’eux aussi ils en soient persuadés. Alors organisons-
nous./ [Gorgui Diop] - Comment nous organiser? Des mendiants s’organiser! Tu
rêves, Nguirane! Tu es jeune! (FALL, 2001, p. 46, negritos nossos).
67

- Nós não somos cães! Você sabe muito bem que não somos cães. É preciso que eles
também sejam convencidos disso. Então vamos nos organizar.; [Gorgui Diop] - Como
nos organizar? Mendigos se organizando! Você está sonhando, Nguirane! Você é
jovem!

Atentemo-nos para a fala de Nguirane: “Nós não somos cães! Você sabe muito bem que
não somos cães”. Essa fala de Sarr, de certo modo, se relaciona com a mesma comparação
utilizada por Mour quando ele trabalhava como funcionário da administração e revela como seu
chefe europeu os via: “(...) considerava as pessoas como sendo menos que cães” (FALL, 2001,
p. 18). Nguirane utiliza o substantivo “cães” que, pelo contexto, se refere a todo o grupo dos
mendigos e a como o setor de salubridade os enxerga. Isso contribui para pensarmos na
caracterização de Nguirane vinculada ao grupo de pessoas em situação de mendicância. Já o
substantivo “chiens”, empregado por Mour, indica a forma como os ex-colonos europeus
enxergavam os cidadãos senegaleses. Em ambos os casos, temos discursos que mostram o ponto
de vista daqueles que sofreram a opressão. Ambos apresentaram uma visão consciente de como
são maltratados nessa sociedade. Essa comparação com o mesmo animal, que está nesses dois
momentos narrativos, corrobora a nossa hipótese de que Mour se tornou uma cópia do modelo
europeu que tanto havia criticado. A sensação de humilhação, de ser visto como menos que um
animal, anteriormente sentida por Mour, é vivenciada pelo grupo de mendigos. Agora, aquele
que vê esses cidadãos como não sendo relevantes em sociedade é Mour, que um dia se colocou
contra as autoridades. Nesse sentido, Nguirane seria a transmutação da figura de Mour mais
jovem, aquele que não se cala diante de situações que considera injustas e que tem consciência
de seu valor, mesmo que os governantes do país queiram tirar deles sua dignidade.
Nguirane Sarr, assim, é caracterizado como um jovem revolucionário. Ele tenta mudar
a cabeça dos mais velhos – em relação ao que está acontecendo com o grupo nas ruas – por
mais difícil que isso fosse. Graças a sua determinação, começa a tomada de consciência
desembocando, posteriormente, em um ato de greve que compõe o próprio título da obra.
Nguirane, que as adversidades levaram à mendicância, mostra em seu ímpeto o desejo e a
vontade de fazer mudanças.
Outra personagem que faz parte deste grupo se chama Salla Niang:

Salla Niang, ancienne bonne à tout faire qui a commencé à mendier le jour où elle a
mis au monde des jumeaux. Un de ses patrons l’a aidée à obtenir une Parcelle
Assainie99 qu’elle a pu construire grâce au produit de sa mendicité. Les jumeaux sont

99
Parcelle Assainie pode ser traduzida como “terreno higienizado”, mas, nesse contexto, estar se referindo a uma
comuna do Arrondissement des Parcelle Assainie da cidade de Dakar. Sobre a comune Parcelle Assainie lemos:
“(…) dans la commune des Parcelles Assainies qui est l'une des 19 communes d'arrondissement de la Ville de
Dakar (Sénégal). Elle se situe au Nord-Est de la capitale à moins d'une dizaine de kilomètres du Centre-ville et fait
partie de la banlieue périurbaine de Dakar (…). Sa superficie est de 4,07 km² et elle compte un peu plus de 300
68

devenus grands; maintenant elle se contente de s'asseoir un peu à l’écart, devant ‘son’
hôpital, et d’envoyer ses enfants traquer les visiteurs et les malades, tout en les
surveillant pour intervenir au cas où des concurrents, ayant la supériorité de l’âge (...)
(FALL, 2001, p. 26).

Salla Niang, uma ex-faz-tudo que começou a mendigar no dia em que deu à luz a
gêmeos. Um de seus chefes a ajudou a obter uma parcelle assainie onde ela pode
construir graças ao produto de sua mendicância. Os gêmeos cresceram; agora ela se
contenta em sentar-se um pouco afastada, em frente ao ‘seu’ hospital, e mandar seus
filhos caçar visitantes e doentes, enquanto os observa para intervir no caso de aparecer
concorrentes, tendo a vantagem de idade (...).

Na narrativa temos o possessivo “son”, que, em um primeiro momento, poderia dar a


entender que Salla é a dona do hospital. Contudo, a aspas em “seu hospital” (‘son’ hôpital)
revela não a posse do estabelecimento, mas indica a posse que a personagem tem desse ponto
estratégico. Em outras palavras, esse seria o seu local de trabalho, assim como Nguirane tem o
dele na área da administração presidencial. Salla é a única dentro do grupo de mendigos que
tem uma casa, que ela abre para alojar os demais mendigos. Conhecida como a “casa dos
mendigos”, ela é o lar de muitos que, assim como ela, vivem da mendicância. Desse modo, as
personagens fazem um uso coletivo desse espaço. Em uma conversa com os outros mendigos
sobre a forma com que os policiais agem para capturá-los, Salla diz que nunca sofreu nenhum
tipo de violência. Um de seus companheiros de mendicância, então, lhe diz:

(...) - C'est qu’ils ne te prennent pas pour une mendiante. Que veux-tu, avec tes beaux
boubous100 toujours propres et bien repassés, tes enfants que tu habilles comme s’ils
allaient à une fête, comment peut-on penser que tu mendies? (FALL, 2001, p. 28-29).

(...) - Eles não te consideram uma mendiga. O que você quer, com as suas lindas
túnicas (boubous) sempre limpas e bem passadas, seus filhos que você veste como se
estivessem indo para uma festa, como podem pensar que você mendiga?.

Nota-se uma situação semelhante em relação a Salla. Em um determinado momento,


Mour vai até a casa dos mendigos e não se dá conta que Salla pertence ao grupo. Ele percebe
que ela tinha “Uma voz de trombeta, clara e límpida como uma veia de prata derretida. Mour
observou em um momento de silêncio, depois se perguntou que tipo de conexão poderia existir

000 habitants répartis sur 20 unités de voisinage ou quartiers, chacun composé d'au moins 550 concessions. La
commune des Parcelles Assainies constitue aujourd'hui un espace très hétérogène du point de vue de sa
composition ethnique et socioprofessionnelle et on y trouve toutes les couches de la population sénégalaise”
(DIOP, et al., 2021, p. 260).
100
Segundo o dicionário do Centre national de ressources textuelles et lexicales o substantivo boubous significa:
“Ample tunique flottante à manches courtes portée par les femmes ou les hommes de certaines régions
d’Afrique”.(“Túnica solta, fluida e de manga curta usada por mulheres ou homens em algumas partes da África”).
Disponível em: https://www.cnrtl.fr/definition/boubous. Acesso: 15 fev. 2023.
69

entre essa senhora e esses mendigos” (FALL, 2001, p. 140).101 Esse elemento de caracterização
da personagem poderia contribuir para mostrar a heterogeneidade desse grupo, que, mesmo
sendo coletivo, tem integrantes com características e traços distintos. Ao se vestir de tal modo,
Salla reforça que as pessoas que vivem em situação de mendicância não deixam de ser seres
humanos, com seus próprios gostos, vontades e desejos. A forma que ela encontra para afirmar
isso é mostrar que as pessoas escolhem as roupas com as quais elas se sentem confortáveis. Ela
não se vê como não pertencente ao grupo, mesmo usando essas roupas, ela se reconhece como
integrante dele. Isso traz para a personagem, e, consequentemente, para o grupo, um tom mais
humanizador, de que eles necessitam. Nessa mesma perspectiva, na descrição de Nguirane, que
vimos acima, a narração foca em sua indumentária, o que revela um pouco mais da
personalidade dessa personagem e suaviza a forma como ele se percebe em sociedade.
Salla é casada com Narou, que pouco aparece na narrativa. Em um diálogo entre o grupo,
personagens que não são identificados, falam acerca da relação do casal: “- Narou é fraco. -
Salla Niang é que veste as calças. - Ele nem é um homem digno” (FALL, 2001, p. 29).102 Uma
fala um tanto machista das personagens, que ao mesmo tempo reforça a visão que o grupo tem
de Salla: a considera como sendo uma mulher forte. Essa sua característica se desdobra na forma
como ela conduz seu casamento. Além disso, essa característica da personagem se faz, uma vez
mais, presente quando ela concorda com a fala de Nguirane: “- Il est temps de se réveiller, les
gars. Nguirane a raison. (...) Ils ont confiance en Salla. Ils la savent Femme d’expérience. Elle
a eu tout le loisir de se frotter contre le monde. Toute petite et orpheline, elle s’était vue dans
l’obligation de voler très tôt de ses propres ailes (“É hora de acordar, pessoal. Nguirane tem
razão. (...) Eles têm confiança em Salla. Eles sabem que ela é uma mulher experiente. Ela teve
muito tempo para conviver com o mundo. Muito pequena e órfã, ela se viu obrigada a voar com
suas próprias asas desde muito cedo” FALL, 2001, p. 49). Sua história de vida lhe dá
credibilidade e, por essa razão, o grupo confia nela. Conhecer as mazelas da pobreza, por vivê-
la na pele, e saber o poder da riqueza por ter trabalhado como empregada doméstica em casas
de famílias afortunadas, fizeram de Salla uma mulher experiente e forte. Mas nem sempre foi
assim. A narrativa nos leva a conhecer o passado dessa personagem quando trabalhava em uma
casa de ricos. Ela narra:
- Ah! le jour où Madame découvrit son jeu (de seu marido)! (...) après sa sieste, juste
avant d’aller au travail, il descendait à la cuisine pendant que Madame était encore
étendue. Il en profitait pour me taquiner, me pincer les fesses et me tirer les tétons. Un

101
“Une voix de trompette, claire et limpide comme une veine d’argent en fusion. Mour a observé un moment de
silence, s’est ensuite demandé quel genre de liens pouvait bien exister entre cette dame et ces mendiants” (FALL,
2001, p. 140).
102
“- Narou est faible. - C'est Salla Niang qui porte le pantalon. - Il n'est même pas un homme digne”.
70

jour - je ne sais pas si elle soupçonnait quelque chose - Madame, s'introduisit


brusquement dans la cuisine pendant que Monsieur me faisait des taquineries et que
j’essayais de me dérober. On n’avait même pas entendu ses pas. Lorsque Monsieur la
vit, debout, immobile et muette près de la porte de la cuisine, il eut l’air de quelqu'un
qui a reçu une douche glacée en pleine saison froide; il regarda honteusement
Madame.... (FALL, 2001, p. 51).

- Ah! o dia em que a patroa descobriu seu jogo (do marido dela)! (...) depois da soneca,
pouco antes de ir trabalhar, ele descia para a cozinha enquanto a senhora ainda estava
deitada. Ele aproveitava a oportunidade para me provocar, beliscar minhas nádegas e
puxar meus mamilos. Um dia – não sei se ela suspeitava de alguma coisa – a patroa
entrou sorrateiramente na cozinha enquanto o patrão me provocava e eu tentava me
esconder. Nós nem tínhamos ouvido seus passos. Quando o patrão a viu, parada,
imóvel e silenciosa perto da porta da cozinha, ele parecia alguém que havia recebido
um banho gelado no meio da estação fria; ele olhou para a patroa com vergonha.

Acompanhamos a violência sexual e moral que Salla viveu em seu trabalho. O trecho
“ele olhou para a patroa com vergonha” nos faz observar que seu patrão se sensibilizou pelo
que a esposa viu e não por sua atitude. Ele não se compadeceu de Salla, que ele assediava. Com
esta passagem mergulhamos no passado da personagem que acaba por mostrar muito dos
desafios pelos quais passou em sua vida. Ao ler a narrativa imaginaríamos que a personagem
agiria de modo diferente face ao assédio que estava sofrendo, uma vez que a personalidade de
mulher forte se faz presente em toda narrativa e em todos os seus núcleos de relação: seja como
esposa ou como líder dos mendigos. Mas, ao invés disso, na descrição desse evento não vemos
essa postura. Podemos supor que por medo ou receio de ficar sem emprego ela não o denunciou
à esposa dele ou foi embora da casa dos patrões. Assim, inferimos que a força e o respeito que
Salla alcançou, posteriormente, foi fruto de todas essas vivências que consolidaram sua
personalidade. Personalidade esta que choca a muitos indivíduos na narrativa por ser ela uma
mulher líder do grupo dos mendigos e representando essa figura de força e de coragem, que em
sua sociedade somente é atribuída à figura masculina.
Assim, constatamos que Salla, essa mulher que pertence à classe dos mendigos e que é
descrita com os traços de uma mulher forte e determinada, mostra-se acolhedora e solidária
com seu gesto de oferecer sua casa para que aqueles, que assim como ela, vivem na mesma
situação. Manifesta apoio a Nguirane quando este propõe uma “guerra” contra as autoridades.
Nesse ponto, é relevante mencionar que os demais não deram importância às palavras de
Nguirane, somente depois do apoio de Salla é que os mendigos passaram a se interessar pelo
que ele tinha dito. Ela, além de chefe do grupo, pode ser vista como uma figura materna. Todos
depositam nela confiança e a obedecem sem remediar, demonstrando o apreço e o nível de
respeito que poderia ser comparada com aquele que temos para com as nossas mães.
71

Em uma reunião na casa dos mendigos sobre as tontinas103, eles conversam a respeito
de Madiabel, integrante do grupo.

Salla Niang dès le début de la réunion:


- Gaa ni am na lu xew - quelque chose est arrivé. Êtes-vous au courant?
- Qu’est-il arrivé?
- Lu xew waay?
- Mbaa jamm la?
- Madiabel, répond Salla, a eu un accident.
- Asbunalla! Céy waay!
- Comment est-ce arrivé? - Où a-t-il eu l'accident?
- Mbaa deewul?
- Céy waay!
- Je ne sais pas s’il est mort ou non, répond Salla. Il paraît que le patron de “son” hôtel
s’est plaint, des salauds, ces gens-là. Il s’est plaint à la police et celle-ci a procédé à
une rafle.
En essayant de fuir, il s’est aveuglément engagé sur la chaussée au moment où une
voiture arrivait à vive allure.
- Ah! ces rafleurs, ils nous cassent les pieds. Ndéysaan, ndéysaan104, Madiabel. Il ne
devait pas courir, il ne le peut pas! Xana daal atte yalla la! C’est un coup du sort. Ce
ne peut être qu’un coup du sort.
- Comment ne pas courir quand, une seule fois dans sa vie, on a senti le feu de leurs
lanières sur la peau! Ah! moi, dès que je les aperçois, je détale. Ils sont fous, ils
frappent comme des fous, on dirait que dans leur rage ils oublient qu’on est des
hommes (FALL, 2001, p. 27-29).

Salla Niang desde o início da reunião:


- Gaa ni am na lu xew - algo aconteceu. Vocês estão sabem?
- O que aconteceu?
- Lu xew waay?
- Mbaa jamm la?
- Madiabel, responde Salla, sofreu um acidente.
- Asbunalla! Céy waay!
- Como isso aconteceu?
- Onde foi o acidente?
- Mbaa deewul?
- Céy waay!
- Não sei se ele está morto ou não, responde Salla. Parece que o dono do hotel “dele”
denunciou, gente ruim. Fez uma denúncia na polícia e ela fez uma batida.
Tentando fugir, ele pegou uma rua sem prestar atenção e não viu um carro vindo em
alta velocidade.
- Ah! esses gananciosos quebram nossos pés. Ndéysaan, ndéysaan, Madiabel. Ele não
tinha que correr, ele não pode! Xana daal alcance yalla la! É uma fatalidade. Só pode
ser uma fatalidade.
- Como não correr quando a gente já sentiu, mesmo uma única vez, o fogo dos chicotes
deles na pele! Ah, eu, assim que os vejo, saio correndo. Eles são loucos, eles batem
como loucos, parece que na raiva eles esquecem que somos seres humanos.

103
“A tontina (sistema mutualista) representa a forma mais conhecida e mais documentada em África. Constitui
uma entreajuda financeira organizada por pequenos grupos de pessoas que formam uma união de poupança e de
crédito. O seu modo de funcionamento é definido segundo o nível de rendimentos dos participantes, das suas
necessidades prioritárias e o contexto no qual estes evoluem. (...) As tontinas constituem uma forma de entreajuda
financeira muito utilizada em África, particularmente entre os trabalhadores das zonas urbanas” (PORTUGAL,
2002).
104
Essa palavra vem acompanhada da seguinte nota de rodapé: “Interjection. Exprime ici la pitié” (Interjeição.
Exprime aqui a piedade”).
72

No diálogo, Salla diz: “Il paraît que le patron de “son” hôtel s'est plaint, des salauds,
ces gens-là”, o possessivo “son”, da terceira pessoa do singular da língua francesa, faz
referência a Madiabel. As aspas estão presentes para marcar que a posse se refere à posse do
ponto, já que o hotel em questão é o lugar no qual habitualmente ele pedia suas esmolas, sendo,
dessa forma, “seu” lugar, “seu hotel”. Esse possessivo, assim como aqueles identificados acima
relacionados a Nguirane e a Salla, evidencia uma relação de “identificação” que existe entre os
indivíduos e esse espaço que eles frequentam para angariar meios de sobrevivência. O dinheiro
que eles recebem nesses lugares revela que nesses espaços sociais há uma prática que está
vinculada ao universo africano. Oriunda dessa prática o grupo em situação de mendicância vê
a possibilidade de “lucrar” e é isso que contribui para que cada um deles tenha o seu ponto
específico, pois sabem exatamente quais são os lugares em que tal prática gera mais lucro. Não
é à toa que eles ficam em frente de igrejas, hospitais, da sede presidencial etc., lugares em que
as pessoas buscam rendição e ajuda espiritual e física, assim como buscam por mais êxitos e
sucesso pessoal. Outro ponto a ser observado no excerto acima, é a fala de um dos
companheiros, que recrimina Madiabel por ter fugido correndo, quando ele deveria agir da
forma mais natural possível. Por isso ele atribui a culpa a Madiabel. A culpa não é dos policiais
que batem e perseguem, mas de Madiabel que, conhecendo o sistema deveria saber como agir,
ou não agir, nesse caso. Assim, observamos que a narrativa nos faz refletir que nesse sistema
construído no romance a vítima, que passa por tantos abusos, é ainda vista como culpada e
julgada quando tenta se defender. No diálogo, vemos também que outro companheiro parece
vislumbrar melhor a situação e entende que nesse sistema autoritário, que agride sem piedade,
era impossível Madiabel ter agido de forma diferente. Além disso, esse excerto coloca frente
aos olhos dos leitores a relação existente entre o Estado e o grupo. O grupo sente pesar pelo que
ocorreu com o companheiro Mandiabel. Nesse momento da narrativa o leitor começa a
compreender a relação presente entre os integrantes do grupo: de força, parceria e
companheirismo, do mesmo modo que se eleva a percepção acerca das medidas do órgão de
salubridade.
A partir da caracterização dessas personagens mencionadas, que fazem parte do grupo
de mendigos, percebemos que elas podem ser interpretadas como sendo um único corpo
coletivo na narrativa. Um corpo de traços e característica que revelam a heterogeneidade e toda
a complexidade e profundidade que o grupo apresenta.105 Ao utilizamos o termo “corpo”

105
Por meio das reflexões do teórico Chatman, poderíamos considerar as personagens como personagens abertas,
pela diversidade de traços e características: “(...) suas personalidades são abertas, sujeitas a novas especulações e
enriquecimentos, visões e revisões. (...) O tipo de entendimento buscado é ‘profundo” ao invés de ilogicamente
73

partimos de uma reflexão sociológica que evidencia que o corpo é “(...) moldado pelo contexto
social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da
relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão dos
sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação (...)” (BRETON, 2007, p. 7). O corpo se faz
corpo nas vivências, no sentir, na interconexão com o mundo. Para sociologia do corpo, há duas
formas de percebê-lo no mundo, uma que remete às tradições antigas e outra à modernidade.

Nas sociedades tradicionais, de dominante comunitária, na qual o estatuto da pessoa


subordina-se ao coletivo, misturando-a ao grupo e negando a dimensão individual que
é própria das nossas sociedades, o corpo raramente é objeto de cisão. O homem e o
corpo são indissociáveis e, nas representações coletivas, os componentes da carne
são misturados ao cosmo, a natureza, aos outros. A imagem do corpo é aqui a imagem
em si, alimentada pelas matérias simbólicas que mantêm sua existência em outros
lugares e que cruzam o homem através de uma fina trama de correspondências. (...)
Em sociedades que permanecem relativamente tradicionais e comunitárias, o “corpo”
é o elemento de ligação da energia coletiva e, através dele, cada homem é incluído
no seio do grupo. Ao contrário, em sociedades individualistas, o corpo é o elemento
que interrompe, o elemento que marca os limites da pessoa, isto é, lá onde começa e
acaba a presença do indivíduo. O corpo como elemento isolável da pessoa a quem
dá fisionomia só é possível em estruturas societárias de tipo individualista, nas
quais os atores estão separados uns dos outros, relativamente autônomos com relação
aos valores e iniciativas próprias. O corpo funciona como se fosse uma fronteira viva
para delimitar, em relação aos outros, a soberania da pessoa. (...) O isolamento do
corpo nas sociedades ocidentais (...) comprova a existência de uma trama social na
qual o homem é separado do cosmo, separado dos outros, separado de si mesmo. Em
outras palavras, o corpo da modernidade, aquele no qual são aplicados os métodos
da sociologia, é o resultado do recuo das tradições populares e o advento do
individualismo ocidental e traduz o aprisionamento do homem sobre si mesmo
(BRETON, 2007, p. 30-31, negritos nossos).

Essa reflexão proposta, permite vislumbrarmos mais profundamente as percepções pelas


quais o entendimento sobre o “corpo” mudou com o decorrer do tempo. Essas mudanças são
notáveis a partir da dicotomia apresentada entre o “corpo coletivo” e o “corpo da modernidade”.
Percebe-se que a modernidade contribuiu para que o corpo fosse, cada vez mais, se afastando
da noção de algo que é comunitário. Se por um lado, pensar o corpo na modernidade pode
proporcionar uma sensação de maior autonomia, por outro, é inegável que esse corpo se entope
com anseios individualistas que não proporcionam uma troca frutífera com a comunidade em
seu entorno. Exponencialmente é isso que observamos na sociedade construída no romance.
Entrevemos as personagens Mour e Kéba como representantes de corpos modernos que se
prendem aos seus próprios desejos. Eles se utilizam de seus corpos para se sobrepor a outros,
para que os seus corpos sejam aquilo que os diferencia dos mendigos, por exemplo. Eles
afastam seus corpos do universo social, à proporção que não pensam em medidas coletivas em

amplo ou desnecessariamente específico; é enriquecido pela experiência da vida e da arte e não por ilusões malucas
(CHATMAN, 1990, p. 128).”
74

prol do bem comum. As personagens se prendem e se perdem em objetivos unilaterais e


individualistas.
Por outro lado, vemos claramente na narrativa que todas as personagens que fazem parte
do grupo dos mendigos se constituem como uma só. Elas buscam conquistar benefícios para
toda essa comunidade de pessoas que elas representam, seja compartilhando um mesmo teto,
seja lutando por uma mesma causa. O corpo dessas personagens não é utilizado em proveito
próprio. Esse corpo representa os anseios sociais de uma luta coletiva. Ao invés de cada um
utilizar seu corpo para se diferenciarem uns dos outros, como fazem no setor de serviço de
salubridade, o grupo dos mendigos os usa para ressaltar as semelhanças que os unem e que os
tornam pertencentes a uma única comunidade. Breton ressalta que as sociedades tradicionais
representavam um núcleo de sentimentos comunitários. Acreditamos que seja isso o que
acontece na obra de Fall, “(...) onde a existência de cada um flui na presteza ao grupo, ao cosmo,
à natureza, o corpo não existe como elemento de individuação, como categoria mental que
permite pensar culturalmente a diferença de um ator para outro, porque ninguém se distingue
do grupo, cada um representando somente a unidade diferencial do grupo” (BRETON, 2007, p.
30-31). Nesse sentido comunitário, todos buscam um único objetivo, e por mais que cada
integrante possa ser diferente entre si, naquele âmbito representa um corpo que pensa no social.
Por isso acreditamos que as personagens Salla e Nguirane, juntamente com todas as outras
personagens desse grupo, representam um corpo coletivo, que se contrapõe a todo
eurocentrismo latente nessa sociedade em vias de transformação. Tendo isso em vista,
acreditamos que o grupo dos mendigos se constrói como um corpo coletivo e é por meio dessa
identificação coletiva que adquirem a força que precisam para lutarem contra o serviço de
salubridade, como veremos a seguir.

4.2 Embate entre os homens do Estado versus grupo dos mendigos: Grève des bàttu

A partir da diferença entre os corpos daqueles que representam o Estado e os corpos


daqueles que representam a parcela da população menos favorecida, se constrói o grande
embate narrativo. Ao longo do romance teremos a personagem Mour em busca de seus anseios
próprios em seu desejo desesperado de ser o vice-presidente da república e, em contrapartida,
o corpo coletivo que busca por melhores condições de tratamento social.
Dado esse cenário, temos as medidas que foram realizadas pelo setor de serviço de
salubridade. Essas medidas tomadas por Kéba surtiram efeitos danosos para os mendigos.
75

Lemos isso nas palavras da personagem Nguirane Sarr, integrante do grupo: “(…) ils
commencent à nous rendre l'existence impossible. Parce qu’on est des mendiants, ils croient
qu'on n'est pas des hommes faits comme eux” (“Eles começam a tornar nossa existência
impossível. Porque somos mendigos eles acreditam que não somos homens como eles?”,
FALL, 2001, p. 43). É com essa indignação que Sarr propõe ao grupo de mendigos que façam
uma “guerra” em resposta a essas ações: “faisons-leur la guerre” (“vamos guerrear contra eles”,
FALL, 2001, p. 45). Nguirane Sarr propõe ao grupo que se declare guerra àqueles que tentam
tirá-los dos pontos principais da cidade. Por outro lado, temos Gorgui Diop, também integrante
do grupo, que busca amenizar os ânimos de todos. Gorgui Diop comenta que, como mendigos,
eles devem buscar ter paciência ressaltando que: “(..) ceux qui nous donnent, ce ne sont pas
ceux qui nous frappent” (“(...) aqueles que nos dão [esmolas], não são aqueles que nos batem”,
FALL, 2001, p. 45).106 Esse discurso de Gorgui Diop, revela um indivíduo conformado com a
própria sorte e que acredita que não conseguirá mudar o seu destino. Seu discurso se relaciona
com o da secretária Sagar, na medida em que ambos acreditam que não há possibilidade de
mudança. Isso evidencia como essas personagens percebem essa situação como enrijecida
socialmente, ou seja, não há perspectivas de mudanças. Nguirane, em contrapartida, continua
construindo seu argumento, e faz isso refletindo sobre Madiabel que morreu em decorrência do
acidente, enquanto corria dos policiais.

Qui a tué ce pauvre Madiabel? Ce sont bien ces “fous-là”. Sans leur poursuite féroce,
ce qui est arrivé ne serait pas arrivé. Madiabel avait succombé à ses blessures. Il était
resté cinq jours à l’hôpital sans être soigné parce qu’il ne possédait aucune pièce sur
lui et qu’il lui fallait prouver son indigence en fournissant un papier délivré par la
mairie; son état ne lui permettant pas d’aller chercher ce certificat d’indigence qui le
dispenserait de payer les soins, il était resté couché dans un coin, derrière une salle
commune dont les pensionnaires compatissaient à ses peines par d’éternels ndéysaan
lorsque la douleur le tenaillait et qu’il geignait et se tordait (...) (FALL, 2001, p. 45-
46).

Quem matou esse pobre Madiabel? Esses “loucos” mesmo. Sem a perseguição feroz
deles, o que aconteceu não teria acontecido. Madiabel tinha sucumbido aos
ferimentos. Ele ficou cinco dias no hospital sem ser tratado porque não tinha nenhum
documento com ele e era necessário provar sua indigência fornecendo um documento
emitido pela prefeitura; sua condição não lhe permitia ir buscar este certificado de
indigência que o isentaria de pagar pelo tratamento, ele ficou deitado em um canto,
atrás de uma sala comum cujos moradores se compadeciam com suas dores pelos
eternos ndéysaan quando ele era tomado pela dor e ele gemia e se contorcia. (...)

O discurso da personagem Sarr traz força e potência para o grupo. O inconformismo


com a morte do companheiro desestabilizou todos eles. A morte de Madiabel, representa a

106
“(..) ceux qui nous donnent, ce ne sont pas ceux qui nous frappent.”
76

própria morte de uma parte desse corpo coletivo, uma vez que todos os indivíduos em situação
de mendicância representam um só. Nesse caso, todos os outros são ele, todos são Madiabel.
Todos sentem a dor que ele sentiu, todos morreram sem ajuda médica, mesmo em meio a seus
gritos de dor e sofrimento. No hospital, seus gritos e lamentos não eram ouvidos, pois sem
documentação não se é considerado indivíduo, uma pessoa tornando-se, portanto, invisível aos
olhos institucionais. O Estado, uma vez mais, desumaniza esses cidadãos, ao priorizar trâmites
de ordem burocrática ao invés de optar pela vida de um indivíduo. Nesse excerto também
acompanhamos a percepção que Nguirane tem do serviço de salubridade: “esses loucos”,
aqueles que estão fora de si e que por isso agem dessa forma. Nguirane ainda é complacente ao
utilizar tal substantivo para denominar atitudes desprezíveis como aquelas sofridas pelas mãos
desses “loucos”.
Após este forte discurso, Sarr enfatiza que todos devem se organizar para juntos
encontrar um meio de lidar com esse sistema. Novamente há divergência de opiniões e um
indivíduo propõe: “Laissons-les tout simplement avec le bon Dieu” (“Deixemos eles com o bom
Deus e está bom”, FALL, 2001, p. 47). Mas Sarr, jovem com grande desejo de mudança,
continua em sua argumentação:

-Écoutez, on peut bien s’organiser. Même ces fous, ces sans-cœur, ces brutes qui
nous raflent et nous battent, ils donnent la charité. Ils ont besoin de donner la
charité parce qu’ils ont besoin de nos prières; les vœux de longue vie, de prospérité,
de pèlerinage, ils aiment les entendre chaque matin pour chasser leurs cauchemars de
la veille et pour entretenir l’espoir d’un lendemain meilleur. Vous croyez que les gens
donnent par gentillesse? Non, c’est par instinct de conservation (FALL, 2001, p. 47,
negritos nossos).

- Escutem, somos capazes de nos organizar. Mesmo esses loucos, esses sem coração,
esses brutos que nos cercam e batem na gente, fazem caridade. Eles precisam fazer
caridade porque precisam de nossas orações; Desejos de vida longa, prosperidade,
peregrinação, eles gostam de ouvi-los todas as manhãs para banir seus pesadelos do
dia anterior e manter a esperança de um amanhã melhor. Você acha que as pessoas
fazem caridade por gentileza? Não, é por instinto de autopreservação.

O emprego de “ces sans-cœur” (“sem coração”) se refere a tudo o que se passa no setor
de serviço de salubridade. Esse sentido figurado, trazido pela personagem, contribui para
fortalecer o sentimento da falta de empatia do órgão de poder. Com essa adjetivação, o corpo
coletivo consegue mostrar toda a desumanidade desse grupo social. Nguirane Sarr consegue
influenciar Salla Niang que o considera como se fosse um irmão: (...) “elle considère comme
son propre frère” (FALL, 2001, p. 47). Se a figura de Salla pode ser percebida como a de uma
figura materna pelo grupo, sua relação com Nguirane apresenta uma cumplicidade de irmão, de
incentivo e de anseio por transformar essa situação juntos.
77

(...) - Il est temps de se réveiller, les gars. Nguirane a raison. Ce n’est pas par amour
pour nous que l’on nous donne. C’est vrai, cela. Organisons-nous! Pour commencer,
n’acceptons plus qu’on nous jette ces petites pièces blanches et légères qui ne peuvent
même plus servir à l’achat d’un bonbon, d’un tout petit bonbon. Eh! petits talibés,
vous entendez! crachez sur leurs pièces d’un ou de deux francs; crachez sur les trois
morceaux de sucre, crachez sur leur poignée de riz. Vous avez entendu? Montrons-
leur que nous aussi, nous sommes des hommes! Et surtout plus de vœux avant d’avoir
reçu une aumône bien grasse! Les gars, êtes-vous d’accord? (FALL, 2001, p. 48).

(...) Está hora de se levantar, pessoal! Nguirane tem razão. Não é por amor a nós que
eles nos dão esmolas. Isso é verdade. Vamos nos organizar! Para começar, não vamos
mais aceitar essas moedinhas brancas e leves que não servem mais nem para comprar
uma bala, uma balinha bem pequena. Ei! pequenos talibés, escutem! Cuspam nas
moedas de um ou dois francos; cuspam nos três cubos de açúcar, cuspam no punhado
de arroz. Vocês ouviram? Vamos mostrar para eles que nós também somos gente!
(...). E, sobretudo, nenhuma oração antes de ter recebido uma esmola bem generosa!
Pessoal, vocês estão de acordo? (...).

Nessas sequências de acontecimentos nas quais a tensão narrativa se eleva, temos a


grande revolta do corpo coletivo. Salla diz em uolofe “Jóg jot na! Jóg jot na kat!” (“Il est temps
de se lever”. “Está hora de se levantar”, FALL, 2001, p. 48). Com esse discurso de Salla, após
alguns questionamentos, todos aceitam, em conjunto, sua proposta que, posteriormente, os
levará à realização da greve. Em meio à força e ímpeto do grupo, há um acontecimento que os
deixa desolados. Gorgui Diop, aquele que sempre buscava apaziguar os ânimos do grupo,
falece.
Angoisse, grogne et rogne chez les mendiants. Ils viennent d’enterrer le vieux
Gorgui Diop. On savait seulement qu'il avait été ‘ramassé’. Quelques jours après, on
a entendu à la radio un communiqué du directeur de l’hôpital informant les parents
que Gorgui Diop, cinquante-deux ans environ, natif de Sandiara, était décédé et leur
demandant d’aller retirer son corps. Personne ne savait dans quelles conditions il avait
été conduit à l'hôpital ni de quoi il était mort (FALL, 2001, p. 69, negritos nossos).

Angústia, descontentamento, raiva na casa dos mendigos. Eles acabaram de


enterrar o velho Gorgui Diop. Sabía-se apenas que ele tinha sido “apanhado”. Alguns
dias depois, ouvia-se no rádio uma declaração do diretor do hospital informando aos
pais que Gorgui Diop, cinquenta e dois anos, natural de Sandiara107, tinha morrido e
pedindo-lhes para ir e retirar o corpo dele. Ninguém sabia em que condições ele tinha
sido levado ao hospital ou do que ele morreu.

A morte de mais um companheiro deixou todo o grupo muito abalado. O campo


semântico das palavras “angústia, descontentamento e raiva” reforça o sentimento de luto e
pesar que um evento como esse desperta nos indivíduos. A tristeza pela perda de alguém que
se ama representa um dos sentimentos presentes em todos os seres humanos, reforçando, assim,
a humanidade latente nesse corpo coletivo. Esse corpo, por extensão de sentido, perdeu mais
uma parte de si. Nesse clima melancólico, Nguirane Sarr pondera:

107
Sandiara é uma região senegalesa.
78

Ils ont enterré le vieux Diop et les voici revenus, tristes et trempés de sueur.
L’atmosphère brûlante exhale des odeurs de peines et de misère.
- Si nous n’y prenons garde, nous finirons tous comme Gorgui Diop, hurle
Nguirane Sarr. Nous finirons tous comme des chiens! (...)
- (…) Écoutez, mes amis, puisqu’ils veulent qu’on leur fiche la paix, fichons-
leur la paix. Restons ici! Ne bougeons plus d’ici! (FALL, 2001, p. 70).

Enterraram o velho Diop e aqui estão eles, tristes e encharcados de suor. A


atmosfera ardente exala odores de dor e miséria.
- Se não tivermos cuidado, vamos todos acabar como Gorgui Diop, grita
Nguirane Sarr. Todos nós vamos acabar como cães! (...)
- Escutem, meus amigos, já que eles querem que a gente deixe eles em paz,
vamos deixá-los em paz. Vamos ficar aqui! Não vamos mais sair daqui!

É nesse momento da narrativa que o grupo, efetivamente, vai se organizar para pensar
sobre as medidas que irão tomar. O suspense acerca do que irão fazer fica mais evidente à
medida que a narrativa segue seu ritmo. Muitos integrantes do grupo começam contestando a
proposta de Sarr, afinal, como assim eles deveriam permanecer em casa, e suas esmolas?! Como
conseguirão sobreviver nessa estrutura social sem elas?!

- Nous n’irons plus demander la charité?


- Que ferons-nous? Faut-il que nous soyons totalement démunis? Il est vrai que les
choses ne sont pas faciles pour nous, mais nous arrivons quand même à faire une petite
récolte, par-ci, par-là.
- Nguirane, ce que tu dis n’est pas faisable. Ne te laisse pas emporter par la colère. La
vie est par semée d'embûches. Soyons courageux: un jour ils nous laisseront
tranquilles. Mais, si nous n’allons plus au-devant de la charité, où irons-nous? En
boudant, nous ne ferons tort à personne d’autre qu’à nous-mêmes (FALL, 2001, p. 71-
72).

- Não vamos mais pedir esmola?


- O que faremos? É necessário que nós sejamos completamente destituídos? É verdade
que as coisas não estão fáceis para nós, mas ainda conseguimos fazer uma pequena
coleta, aqui e ali.
- Nguirane, o que você diz não é viável. Não se deixe levar pela raiva. A vida é cheia
de armadilhas. Sejamos corajosos: um dia nos deixarão em paz. Mas, se não
buscarmos mais a caridade, para onde iremos? Ficar contrariado só serve para
prejudicar a nós mesmos.

A proposta de Nguirane surpreende as personagens, mas ao continuarmos a leitura do


excerto conseguimos compreender o argumento de Sarr.

- Vous vous trompez, tonne Nguirane.


Les dos qui s’étaient courbés sous les feux du soleil se sont redressés. La haine, le
mépris et la colère grondent dans la voix de Nguirane.
- Vous vous trompez! Je vous l’ai déjà dit; ce n’est ni pour nos guenilles, ni pour nos
infirmités, ni pour le plaisir d’accomplir un geste désintéressé que l’on daigne nous
jeter ce que l’on nous donne. Ils ont d’abord soufflé leurs voeux les plus chers et les
plus inimaginables sur tout ce qu’ils nous soffrent: “Je donne cette charité pour que
Dieu m’accorde longue vie, prospérité et bonheur… J’offre ceci pour que le Créateur
anéantisse toutes les difficultés que je pourrais rencontrer sur mon chemin... En
échange de cette aumône, que le Maître des cieux et de la terre me fasse gravir
deséchelons, m'élève au sommet de la hiérarchie dans le service où je travaille....
Grâce à cette charité, que le Tout-Puissant chasse mes maux ainsi que ceux de ma
famille, qu’Il me protège de Satan, des sorciers anthropophages et de tous les
79

mauvaissorts que l’on pourrait me jeter...” Voilà ce qu'ils disent lorsque dans le creux
de votre main tendue ils laissent tomber une pièce ou un paquet. Et, ils quand nous
invitent gentiment devant des calebasses fumantes et parfumées de laax108 pensez-
vous que c’est parce qu’ils ont songé que nous avons faim? Non, mes amis, ils s'en
foutent. Notre faim ne les dérange pas. Ils ont besoin de donner pour survivre et, si
nous n’existions pas, à qui donneraient-ils? Comment assureraient-ils leur tranquillité
d’esprit? Ce n’est pas pour nous qu'ils donnent, c’est pour eux! Ils ont besoin de nous
pour vivre en paix! ( FALL, 2001, p. 71-72).

- Vocês estão enganados, troveja Nguirane.


As costas que se curvaram sob o fogo do sol se endireitaram. Ódio, desprezo e raiva
ressoam na voz de Nguirane.
- Vocês estão enganados! Eu já lhes disse; não é por nossos trapos, nem por nossas
enfermidades, nem pelo prazer de realizar um gesto desinteressado que nos dignamos
a jogar fora o que nos é dado. Primeiro eles lançaram seus desejos mais queridos e
inimagináveis sobre tudo o que nos oferecem: “Dou esta caridade para que Deus me
conceda vida longa, prosperidade e felicidade… Eu ofereço isso ao Criador para
eliminar quaisquer dificuldades que eu possa encontrar em meu caminho. Em troca
desta esmola, que o Mestre dos céus e da terra me faça subir de posto, me eleve ao
topo da hierarquia no serviço onde trabalho. ... Graças a esta caridade, que o Todo-
Poderoso afaste meus males assim como os de minha família, que Ele me proteja de
Satanás, de feiticeiros antropófagos e de todas as más sortes que poderiam ser lançadas
sobre mim...” É o que dizem quando na palma de sua mão estendida jogam uma moeda
ou um pacote. E, quando gentilmente nos convidam em frente a cabaças fumegantes
e perfumadas de pasta de milho vocês acham que é porque eles pensaram que
estávamos com fome? Não, meus amigos, eles não estão nem aí. Nossa fome não
incomoda. Eles precisam dar para sobreviver e, se não existíssemos, para quem eles
dariam? Como eles garantiriam a tranquilidade de espírito? Não é para nós que eles
dão, é para eles mesmo! Eles precisam da gente para viver em paz!

Sarr é bem enfático quando constata o interesse próprio dos que dão esmolas, que não
fazem algo em prol daqueles que necessitam, mas fazem-no para si mesmos, isto é, a ajuda é
oferecida por interesse não por empatia ou filantropia; é um meio de troca. Com isso, Nguirane
tem certeza de que as doações não irão parar, mesmo que eles não saiam às ruas. Em
consonância com Sarr, Salla endossa :

- Maintenant, mes amis, l’heure du choix a sonné: mener une vie de chien, être
poursuivi, traqué et matraqué, ou vivre en homme. (...) Restons tous ici! Vous
entendez, restons ici! D’ici peu de temps vous verrez que nous leur sommes utiles
comme l’air qu’ils respirent. Quel est le patron qui ne donne pas la charité pour rester
éternellement patron? Quel est le malade, réel ou imaginaire, qui ne croit pas que ses
troubles disparaîtront en même temps que l’aumône sortira de ses mains? Quel est
l’ambitieux qui ne pense pas ouvrir toutes les portes par l’action magique de la
charité? Chacun donne pour une raison ou pour une autre. Même les parents des futurs
condamnés se servent de la charité pour fausser le raisonnement du juge! (FALL,
2001, p. 73-74).

- Agora, meus amigos, chegou a hora de escolher: levar uma vida de cachorro, ser
perseguido, rastreado e espancado, ou viver como gente. (...) Vamos todos ficar aqui!
Estão ouvindo? Vamos ficar aqui! Em pouco tempo vocês irão ver que somos úteis
para eles como o ar que eles respiram. Qual é o chefe que não faz caridade para

108
Nota de rodapé do livro: “Pâte de mil qui se mange avec du lait caillé. (“Pasta de milho que é comida com leite
coalhado”, FALL, 1990, p. 72).
80

permanecer chefe para sempre? Qual é o doente, real ou imaginário, que não acredita
que seus problemas desaparecerão ao mesmo tempo que a esmola sairá de suas mãos?
Qual é o ambicioso que não pensa em abrir todas as portas pela ação mágica da
caridade? Todo mundo dá esmola por uma razão ou por outra. Até os pais dos futuros
condenados usam a caridade para distorcer o raciocínio do juiz.

Esses acontecimentos são sumamente relevantes para a construção da excitação, na


mente do grupo, fomentando, assim, o desejo pela “greve”. Além disso, Salla mostra como a
sociedade tece suas relações, que poderíamos, até um determinado ponto, percebê-las como
sendo a esmola dada como uma forma de cada indivíduos conquistar seus desejos mais egoístas.
A efervescência desse discurso aumenta progressivamente a tensão narrativa, e ao mesmo
tempo, vai intensificando a luta coletiva representada pelo grupo.
Com isso, se no âmbito do grupo dos mendigos temos uma tomada de consciência e de
luta de forma entusiasmada, no âmbito de salubridade também temos Mour colhendo o
resultado da façanha de retirar os mendigos da cidade principal, que na verdade foi obra de seu
secretário Kéba Dabo. Mour ganhou do presidente o título de Cavaleiro da Ordem do Mérito.109
Com essa menção do nome de Mour aumenta-se a expectativa de que ele poderia ser o novo
vice-presidente. Isso começa a provocar, em outros políticos, certa inveja e ambição. Em
consequência disso, Mour procura um marabu para se precaver: Kifi Bokoul, um dos marabus
mais consagrados e respeitados da região rural.110 Ele passou sete dias e sete noites na casa de
Mour e de sua esposa Lolli111: “Kifi Bokoul s'est enfermé pendant sept jours et sept nuits chez
Lolli” (FALL, 2001, p. 103). Podemos inferir que há aqui uma alusão à narrativa bíblica que
considera que Deus criou o mundo em sete dias; esse número, em alguns contextos, é
compreendido como um número que corresponde a ideia de perfeição e de conclusão do
trabalho divino. No que se refere a Kifi, sete dias foram necessários para que ele conseguisse
chegar às respostas para as perguntas de Mour, sendo esse o seu tempo ideal, assim como o foi
para o criador de acordo com o cristianismo. A pergunta de Mour consiste em saber se ele será
escolhido como o vice-presidente da república. Kifi Bokoul responde:

(Kifi) - Ce que tu veux, tu l’auras, et très bientôt. Tu seras vice-président. Pour cela,
tu devras sacrifier un taureau dont la robe sera d’une couleur unique, de préférence
fauve. La terre devra s'abreuver du sang de ce taureau ; tu l'abattras ici, dans la cour
de cette maison ; tu en feras ensuite soixante-dix-sept parts, que tu distribueras à des

109
Nos deteremos nesse excerto narrativo mais para frente, na análise das personagens.
110
“ (…) il s'est rendu dans un village de pasteurs perdu au fond de la brousse et réputé pour la science infaillible
de ses marabouts. Il en est revenu accompagné de l'homme qui, à des kilomètres et des kilomètres à la ronde, est
considéré comme celui à qui rien ne peut résiste (FALL, 2001, p. 99)”. (“ele (Mour) foi em um povoado de pastores
nas profundezas do mato e conhecida pela ciência infalível dos seus marabus. Voltou acompanhado do homem
que, por quilômetros e quilômetros, é considerado aquele a quem ninuém se opõem”.
111
Lolli é a primeira esposa de Mour. Mour é casado com ela e com Sine, uma moça jovem. Eles vivem um sistema
poligâmico.
81

porteurs de bàttu... (...) Mais ce sacrifice que tu feras, il ne faudra pas le circonscrire
dans un seul quartier de la Ville. Tu es appelé à être apprécié aux quatre coins de la
Ville, aux quatre coins du Pays; tu seras un homme de renommée; cette renommée, tu
devras la symboliser dans ta manière de distribuer la viande du sacrifice; offre cette
viande à travers toute la Ville, aux mendiants de tous les quartiers de la Ville. (...) - Si
tu fais l’aumône comme indiqué (...), tu seras vice-président huit jours après. Pas plus,
huit jours. (FALL, 2001, p. 103 -105)

(Kifi) - O que você quer, você terá, e muito em breve. Você será vice-presidente. Para
isso, você deverá sacrificar um touro cuja pelagem será de uma cor única, de
preferência fulva. A terra terá que beber o sangue desse touro; você vai matá-lo aqui,
no pátio desta casa; você fará então setenta e sete partes, que você distribuirá aos
portadores de bàttu [cumbuca]. (...) Mas esse sacrifício que você vai fazer não deverá
ser circunscrito a um único bairro da cidade. Você é chamado a ser apreciado nos
quatro cantos da cidade, nos quatro cantos do País; você será um homem de fama;
essa fama, você terá que simbolizá-la na sua maneira de distribuir a carne do
sacrifício; ofereça essa carne em toda a Cidade, para mendigos de todos os bairros da
Cidade. (...) - Se você der a esmola como indicado (...), você será vice-presidente oito
dias depois. Não mais que oito dias.

As palavras de Kifi Bokoul não saíram da cabeça de Mour: “você será vice-presidente
oito dias depois. Não mais que oito dias”. Elas foram a motivação maior para que ele realizasse
aquilo que o marabu havia lhe indicado que, contudo, seria algo muito difícil de cumprir. Depois
das medidas tomadas por seu assistente Kéba, lembrou-se Mour, já não havia mais mendigos
na cidade, como, então, iria conseguir realizar o sacrifício e ofertá-lo para os mendigos de todas
as partes dela?! Aqui o conflito interno da personagem começa a ser construído. Mour decide
então ir ao encontro de Serigne Birama, outro marabu, para saber se ele poderia lhe ajudar. O
marabu lhe pergunta quais foram os motivos que levaram Mour à retirar os mendigos da cidade:

(...) Maintenant, dis-moi, puisque vous avez fait fuir les mendiants pourquoi ne
donnes-tu pas autrement la charité ? Dans les maisons, il y a sûrement des gens qui en
ont besoin ...
- De toute façon les mendiants, ceux qui ne sont pas réfugiés dans d'autres localités,
sont encore à la Ville; ils y ont leur maison. Mais... le marabout qui m'a recommandé
le sacrifice m'a dit qu'il faut le partager entre des porteurs de bàttu dans la rue, à travers
toute la Ville. C'est pourquoi je suis venu te demander si je peux porter le sacrifice
dans la maison des mendiants... Tu sais, ces choses, y a que vous qui les connaissez!
- C'est bon, c'est bon. Respecte les indications de ton marabout. Mour a cru percevoir
quelque aigreur dans le ton de Serigne Birama. Il en est tout malheùreux:
- Ah, Serigne Birama, que dis-tu là? Mon marabout, c'est toi. Tu sais bien que tu es le
seul à qui je voue un respect quasi religieux; toute ma confiance est en toi; seulement,
certains viennent jusqu’à nous ...
- C’est vrai. C’est bien. Il n’y a aucun mal à cela. Fais ce qu’il t’a dit.
Après avoir prononcé ces mots, Serigne Birama a enchaîné sur son chapelet. Mour
n’a plus osé l’interrompre. Il a pris congé et Serigne Birama a répondu à son salut par
des signes de tête. (FALL, 2001, p. 118)

(...) Agora me diga, já que você afugentou os mendigos, por que não faz caridade de
outra forma? Nas casas, com certeza há pessoas que precisam...
- De todo modo os mendigos, aqueles que não se refugiaram em outras localidades,
ainda estão na Cidade; eles têm sua casa lá. Mas... o marabu que me recomendou o
sacrifício disse-me que devia ser repartido entre os portadores de bàttu na rua, por
82

toda a Cidade. Por isso vim lhe perguntar se posso levar o sacrifício para a casa dos
mendigos... Sabe, essas coisas, só você as conhece!
- Bom... Respeite as indicações do seu marabu. Mour pensou ter detectado alguma
amargura no tom de Serigne Birama. Ele ficou triste com isso:
- Ah, Serigne Birama, o que você está dizendo? Meu marabu é você. Você sabe muito
bem que é o único por quem eu tenho um respeito quase religioso; eu deposito toda a
minha confiança em você; só que alguns vêm até nós...
- É verdade. Muito bem. Não há nada de errado com isso. Faça o que ele te disse.
Depois de pronunciar estas palavras, Serigne Birama começou seu rosário. Mour já
não se atreveu a interrompê-lo. Ele se despediu e Serigne Birama respondeu à sua
saudação com acenos de cabeça.

É relevante observar que Mour sempre procura os marabus em situações em que seu
destino e seus desejos estão em jogo, momentos esses em que deve tomar grandes decisões.
Vemos que, por fim, Sirigne disse a Mour que ele deveria seguir o que recomendou o marabu
Kifi. A primeira frase de Birama sobre as razões pelas quais Mour não faz doações é muito
pertinente, e ratifica que o ato de doar é meramente para que isso lhe resulte em algo para o seu
próprio proveito. Ademais, observa-se, assim, que as ações que foram realizadas pelo órgão de
salubridade para beneficiar o próprio Mour, acabaram, de forma irônica, lhe trazendo
consequências que ele não podia sequer imaginar. Mour, então, se dá conta de que seu destino
está nas mãos dos mendigos. Nesse ponto, temos aqui o que se configura como a complicação
da história, ou o nó da intriga, já que “é a parte do enredo na qual se desenvolve o conflito”
(GANCHO, 2006, p. 14). Mour não sabe como prosseguir. Decide, então, fazer uma ronda pela
cidade para tentar encontrar os mendigos, mas não vê sinal deles.

Absolument personne! La Ville tout entière parcourue, les points stratégiques vides,
désespérément vides! Colère, rage... Contre qui? Mour ne le sait même pas. Il a senti
des picotements dans l‘'estomac... La faim? Peut-être bien... Mais la faim, elle, peut
attendre... Attendre que l’ambition, qui d’heure en heure grandit, soit assouvie.
(FALL, 2001, p. 124)

Absolutamente ninguém! A cidade inteira percorrida, pontos estratégicos vazios,


irremediavelmente vazios! Ódio, raiva... Contra quem? Mour nem sabe. Ele sentiu
formigamentos no estômago... Fome? Talvez... Mas a fome pode esperar... Esperar
que a ambição, que cresce a cada hora, seja satisfeita.

Aqueles que têm fome não podem esperar para saciá-la, é uma necessidade vital. O que
nos chama a atenção é que a fome de Mour não é a mesma dos mendigos, que é saciada por
meio dos alimentos. Sua fome, sua necessidade, é de poder e essa fome é insaciável. Quando
Mour constata que seu destino está nas mãos dos mendigos, em uma conversa com Kéba lhe
pergunta onde estaria o grupo. Kéba, por sua vez, não sabe responder. Ao informar ao seu
assistente que precisa que ele traga novamente os mendigos, por algumas horas, para que tomem
os seus lugares estratégicos na cidade, chega até oferecer dinheiro para Kéba. Lemos a reação
de Kéba:
83

- Non! Pour qui me prenez-vous! C'est insensé, ce ,que vous me dites là! Ces
mendiants que j’ai traqués, chassés, démolis physiquement et moralement, et qui enfin
nous ont laissés en paix, vous voulez que j’aille les chercher! De quoi aurais-je l’air?
Maintenant qu’on respire enfin à l’aise, vous voulez que je souille à nouveau
l’atmosphère! Vous me demandez de rouvrir une plaie qui s’est cicatrisée. Non! Ça
alors, non! Je ne le ferai pas! (FALL, 2001, p. 127).

- Não! Quem você acha que eu sou! É uma loucura o que você está me dizendo! Esses
mendigos que eu persegui, expulsei, demoli física e moralmente, e que finalmente nos
deixaram em paz, o senhor quer que eu vá procurá-los! Como é que eu ficaria? Agora
que finalmente podemos respirar, você quer que eu contamine a atmosfera
novamente! Você me pede para reabrir uma ferida que foi cicatrizada. Não! Imagina!
Eu não vou fazer isso!.

Kéba, sente-se ofendido pela proposta de seu chefe. Mour não mede esforços para
alcançar aquilo que deseja, nem que para isso seja necessário subornar seu assistente. Mas para
Kéba, os motivos que incitavam Mour a querer os mendigos fora da cidade não foram os
mesmos que motivaram Kéba. Kéba descartou o elemento de instrumentalização da religião
nessa relação, ele veementemente vê os mendigos como um elemento tóxico. Essa percepção
corrobora o fato de Kéba não enxergar o grupo como seres humanos, ao compará-los com
elementos químicos que são responsáveis pela poluição atmosférica.
Mour nesse momento se encontra em uma grande enrascada. Na cidade “ (…) une seule
préoccupation, un seul sujet de conversation: “le remaniement ministériel et la nomination
d'un vice-président sont imminents, et la course sera serrée!” (“(...) apenas uma preocupação,
apenas um assunto de conversa: ‘a remodelação do gabinete e a nomeação de um vice-
presidente são iminentes, e a corrida será apertada!’”, FALL, 2001, p. 133). O tema do dia nessa
sociedade era: quem seria eleito para o cargo de vice-presidente? Todos da cidade estavam
empolgados para saber quem seria o escolhido. Mour, enquanto isso, estava em momento
difícil, dado que não sabia o que iria fazer com a sua oferenda. Ele descobre onde os mendigos
moram e se dirige, com seu motorista, para a casa do grupo. Mour não conhece aquela parte da
cidade, dominada pela população mais pobre, o que representa uma ironia, visto que, como
diretor de serviço de salubridade da cidade, deveria conhecê-la melhor do que qualquer outro.
Depois de passar por caminhos de terras e paisagens vazias, Mour, juntamente com seu
motorista, chega ao destino:

Le chauffeur, en parquant la voiture devant une maison à la clôture badigeonnée en


vert, s’est retourné vers son patron :
- Monsieur, on est arrivé. C'est ici, la Maison des mendiants.
- Ah! Tu connaissais donc ...
- Oui, oui, monsieur! Tout le monde connaît ici Monsieur! (FALL, 2001, p. 139,
negritos nosssos).
84

O motorista, estacionando o carro em frente a uma casa com cerca pintada de verde,
virou-se para o patrão:
- Senhor, chegamos. Esta é a Casa dos Mendigos.
- Oh! Então você sabia...
- Sim senhor! Todo mundo aqui conhece senhor!

Nesse trecho, assim como vimos acima com a fala de Birama (“De todo modo os
mendigos, aqueles que não se refugiaram em outras localidades, ainda estão na Cidade; eles
têm sua casa lá”, FALL, 2001, p. 118), a casa não é conhecida por ser a casa de Salla. Essa casa
passou a pertencer a todos os mendigos, é sua moradia e lugar de refúgio. Entrando na casa,
Mour pede para falar com o chefe do grupo:

- Mba jamm ngéén am? Avez-vous la paix?


- Tabarak Allah! Nous rendons grâce à Dieu!
- Qui est le maître de maison, ici?
C'est à ce moment seulement que Salla Niang a levé les yeux sur le visiteur:
- Qu’est-ce qu’il y avait?
- Je voudrais parler au maître de maison.
- Me voici!
Une voix de trompette, claire et limpide comme une veine d’argent en fusion. Mour a
observé un moment de silence, s’est ensuite demandé quel genre de liens pouvait bien
exister entre cette dame et ces mendiants.
- Ce qui m’amène concerne les mendiants...
- An...
Mour se serait senti plus à l’aise si on l’avait invité à s’asseoir, mais Salla Niang n’en
a rien fait.
Elle a demandé à Nguirane de s’approcher et aux autres d’écouter “l’hôte qui veut
nous parler”.
(...) - La raison de ma visite en ces lieux, la voici: j’ai un sacrifice très, très important
à faire. C'est à vous que je vais l’offrir, mais je ne peux pas vous l’apporter ici. Il faut
que demain matin, demain matin seulement – cela ne durera que quelques heures – il
faut que demain vous alliez vous aligner à vos points stratégiques. Alignez-vous à
tous les coins de la Ville! Comme vous le faisiez avant, devant les marchés, les
hôpitaux, les feux rouges, les bureaux, les dispensaires, les banques, les boutiques, à
travers toute la Ville, aux quatre coins de la Ville. Vous recevrez des dons de moi, des
dons qui ne vous feront pas regretter de vous être déplacés. Et puis, il y a si longtemps
que vous êtes tapis ici, comme si vous n’étiez pas des êtres humains. Pour une fois,
reprenez la rue pour vous dégourdir au moins les jambes! Sans les rires qui ont fusé
de partout, Mour aurait poursuivi son discours; il a été pris, sans s’en rendre compte,
par le démon de l’éloquence qui faisait qu’il remuait et électrisait les foules dans les
arènes politiques.
- Aller dans les rues, cela peut-il être?
- Maintenant que nous sommes en paix, nous exposer encore aux tracasseries!
- Ça dey, ce serait retourner volontairement dans un enfer d'où Dieu nous a sortis!
- Que Dieu nous en préserve ! Qu’Il nous en préserve ! Yalta Téré!
- Vous ne risquez rien, absolument rien ! Je vous garantis qu’il ne vous arrivera rien.
Il s’agira seulement d'aller prendre ce que je vous ferai donner, et vous ne le
regretterez pas!
Mour a voulu délibérément exciter la cupidité de certains d’entre eux, mais il ne
semble pas qu’il ait encore réussi.
- D’ailleurs, dit Nguirane Sarr, toi qui nous parles et qui nous garantis la sécurité, qui
es-tu?
- Je suis le directeur général du service de la Salubrité publique, c’est moi qui
commande à tous ceux qui pourraient vous créer des ennuis.
- An ... C’est toi Mour Ndiaye dont on parle à la radio tous les jours?
Le coeur gonflé de fierté, Mour a répondu à Nguirane:
85

- Oui, c’est moi. Ne craignez rien.


La nouvelle est aussitôt diffusée à haute voix à travers l’assistance: “C'est Mour
Ndiaye”, “C'est Mour Ndiaye qui est venu et qui nous parle”;
“ Ngóór si nëw, Mour Ndiaye la ... ”
Salla n’a pas encore ouvert la bouche. Elle se contente d’observer la scène. Nguirane
Sarr s'est levé, a posé sa guitare sur la chaise sur laquelle il était assis, a rajusté sa
veste et sa cravate et a dit sur un ton moqueur, irrespectueux même aux yeux de Mour:
- Ah patron, vous qui nous avez chassés, aujourd’hui vous venez nous chercher!
Quelle peut en être la raison Waay?
Sourire complice de Salla Niang. Mour est surpris par l’audace de ce mendiant; il
n’aurait jamais pu penser que tant d’effronterie dans le ton et dans la mise pût habiter
un simple aveugle qui ne compte que sur les autres pour vivre: “Voilà qu’ils se mettent
à nous narguer maintenant”. Mour a presque failli céder à la tentation de le remettre
à sa place, mais il s’est vite rappelé qu’il était dans l’obligation de contenir son
irritation et d’essayer d’établir un dialogue pacifique entre lui et ses interlocuteurs.
Poussé par la hantise de l’échec et harcelé par l'idée fixe du sacrifice (“huit jours après,
la Vice-Présidence”) (...) (FALL, 2001, p. 140-144).

- Mba jamm ngéén am? Você tem paz?


- Tabarak Allah! Damos graças a Deus!
- Quem é o dono da casa aqui?
Foi apenas nesse momento que Salla Niang olhou para o visitante:
- O que você deseja?
- Gostaria de falar com o dono da casa.
- Aqui estou!
Uma voz de trombeta, clara e límpida como uma veia de prata derretida. Mour
observou em um momento de silêncio, depois se perguntou que tipo de conexão
poderia existir entre essa senhora e esses mendigos.
- O que me traz diz respeito aos mendigos...
- An...
Mour teria se sentido mais confortável se tivesse sido convidado a se sentar, mas Salla
Niang não disse nada.
Ela pediu que Nguirane se aproximasse e que os demais ouvissem “o convidado que
quer falar conosco”.
(...) - O motivo da minha visita a esses lugares é este: tenho um sacrifício muito, muito
importante a fazer. Eu vou oferecê-lo para vocês, mas eu não posso trazê-lo para vocês
aqui. É preciso que amanhã de manhã, apenas amanhã de manhã – durará somente
algumas horas – amanhã vocês devem se alinhar em seus pontos estratégicos. Façam
fila em todos os cantos da cidade! Como vocês faziam antes, na frente dos mercados,
dos hospitais, dos faróis, dos escritórios, das clínicas, dos bancos, das lojas, por toda
a cidade, nos quatro cantos da cidade. Vocês receberão presentes meus, presentes que
não farão vocês se arrependerem de terem ido. Além disso, vocês estiveram presos
aqui por tanto tempo, como se não fossem seres humanos. Pela primeira vez, vão para
as ruas para pelo menos esticar as pernas! Sem o riso que explodiu por toda parte,
Mour teria continuado seu discurso; ele foi tomado, sem perceber, pelo demônio da
eloquência que o fizeram agitar e eletrizar as multidões nas arenas políticas.
- Vão para as ruas, pode ser?
- Agora que estamos em paz, nos expor ao assédio novamente!
- Ça dey, seria voltar por conta própria para o inferno de onde Deus nos tirou!
- Deus me livre! Que Ele nos preserve! Yalta Téré!
- Vocês não vão correr nenhum risco, nenhum! Eu garanto que nada de ruim vai
acontecer com vocês. É só vocês irem pegar o que irei lhes dar, e vocês não vão se
arrepender!
Mour queria deliberadamente excitar a ganância de alguns deles, mas não parece que
tenha conseguido.
- Além disso, disse Nguirane Sarr, você que fala conosco e nos garante segurança,
quem é você?
- Eu sou o Diretor Geral do Serviço de Salubridade Pública, sou eu quem comanda a
todos aqueles que poderiam criar problemas para vocês.
- An ... É você Mour Ndiaye que falam no rádio todos os dias?
86

Com o coração inchado de orgulho, Mour respondeu Nguirane:


- Sim, sou eu. Fique despreocupado.
A notícia é imediatamente transmitida em voz alta pela plateia: “É Mour Ndiaye”, “É
Mour Ndiaye que veio e fala conosco”;
“Ngóór si nëw, Mour Ndiaye la...”
Salla ainda não abriu a boca. Ela apenas observa a cena. Nguirane Sarr levantou-se,
colocou o violão na cadeira em que estava sentado, ajeitou o paletó e a gravata e disse
em tom debochado, desrespeitoso na opinião de Mour:
- Ah chefe, você que nos expulsou, hoje o senhor vem nos procurar! Qual pode ser a
razão Waay?
Um sorriso cúmplice de Salla Niang. Mour se surpreende com a audácia desse
mendigo; jamais imaginaria que tanta ousadia no tom e na aparência pudesse habitar
um simples cego que conta apenas com os outros para viver: “Pronto! Agora eles estão
começando a zombar da gente.” Mour quase cedeu à tentação de colocá-lo em seu
lugar, mas logo foi lembrado de que precisava conter sua irritação e tentar estabelecer
um diálogo pacífico entre ele e seus interlocutores. Movido pelo pavor do fracasso e
assediado pela ideia fixa de sacrifício (“oito dias depois, a Vice-Presidência”) (...).

Nessa parte temos variados elementos releventes para observar. O primeiro que
gostaríamos de ressaltar é a surpresa de Mour por encontrar não um “Maître de la Maison”
(“mestre da casa”), mas sim uma mulher como chefe da casa o que contribui pensar que a
mulher, nessa sociedade, não se encontra em lugares de poder social e Mour reproduz esse
pensamento, vinculado a um viés machista, por meio de seu discurso. Além disso, Mour
esperava uma atitude mais passiva dos mendigos, afinal ele, chefe do serviço de salubridade,
veio pessoalmente pedir para que eles retornassem. Percebemos a ironia presente no trecho: a
reputação de Mour, que o faz ser respeitado em toda a sociedade e que lhe alimenta a arrogância,
junto aos mendigos não representa nada. Assim, o corpo individual de Mour, tingido de uma
reputação que faz com que ele tenha “o coração inchado de orgulho”, não lhe serve de nada
nesse momento. Pelo contrário, é exatamente por ser quem ele é que o grupo não o respeita. No
excerto temos, de modo mais consolidado, como o grupo representa a sua força que vai em
direção contrária ao desejo egocêntrico de Mour. Isso desencadeia mais raiva no diretor de
serviço de salubridade, o que é perceptível pela construção do diálogo que no nível da história
acontece mais rápido do que no nível do discurso, isso porque o narrador nos traz informações
sobre o que Mour estava pensando e sentindo, deixando, nesse momento, o diálogo
interrompido. Esse recurso de duração temporal112 permite que enxerguemos claramente o
incômodo e o constrangimento sentidos por Mour, por isso tem-se a sensação de o tempo
psicológico da mente da personagem, em determinados momentos, se sobrepor ao tempo da
ação narrativa.
Mour, novamente, faz um discurso mais eloquente a fim de convencê-los.

112
O recurso utilizado foi o do alargamento “A expressão verbal pode durar mais (pelo menos em uma medida
subjetiva) do que os próprios eventos. O caso dos eventos mentais é especialmente interessante.” (CHATMAN,
1990, p. 76-77).
87

(...) Mour a alors préféré jouer cartes sur table:


- Puis-je compter sur vous demain matin? Je suis prêt à satisfaire toutes vos exigences!
Là, il a entendu de part et d’autre un murmure qui lui a donné un peu d’espoir. Il a de
nouveau regardé Nguirane Sarr, qui s’était déjà rassis, la guitare posée sur les genoux.
Mour se décide à l’interpeller avec familiarité:
- Boroom guitare, que dis-tu?
- Là où vous nous demandez de retourner, c'est vous qui nous en avez chassés!
Mour est ennuyé. Très ennuyé. Au bord du désespoir. Mais il faut tenir bon, il faut
gagner la bataille. Pas d’échec... “Huit jours après... Et ils sont là, devant moi, d’eux
dépend aujourd'hui mon destin ... Mais cet aveugle, quel entêtement, alors! ... Dieu
fait bien les choses, Lui seul sait pourquoi Il a ordonné le monde comme Il l’a fait ...
Car cet aveugle, s’il avait les yeux ouverts, aurait été un phénomène !...”
- Boroom guitare, tu n'as pas compris tout ce que je viens de vous dire! Ce sont mes
agents qui ont exagéré !
- Ils ne se sont pas contentés de nous chasser, ils nous ont traqués, fouettés, battus
comme des chiens.
- Ce sont des inconscients et des inhumains ! Je n’ai jamais été au courant de ces actes
sauvages! Descendez demain dans la rue, vous verrez s'ils vous toucheront !
- Vous nous en avez chassés!
A présent Salla Niang a trouvé la scène divertissante.
(…) Elle a pris la décision de se débarrasser de Mour. Celui-ci, visiblement, est à bout
de forces; elle n’a pas pitié ; le comique tourne à la dérision, ça l’agace:
- Monsieur Ndiaye, tu peux partir. Demain, si cela plaît au Créateur, tous les
mendiants iront s’aligner à leurs anciennes places.
Mour a senti comme un énorme poids se dégager de sa poitrine. Il a respiré enfin!
- Ils iront s'aligner?
- Pour sûr, a répondu Salla, ils iront... (FALL, 2001, p. 146-147).

(...) Mour então preferiu colocar as cartas na mesa:


- Posso contar com você amanhã de manhã? Estou pronto a satisfazer todas as
exigências que vocês tiverem!
Nesse momento, ele ouviu de ambos os lados um murmúrio que lhe deu um pouco de
esperança. Olhou novamente para Nguirane Sarr, que já havia se sentado de novo,
com o violão apoiado nos joelhos. Mour decide interpelá-lo com familiaridade:
- Boroom violão, o que você acha?
- Onde você nos pede para voltar, foi você quem nos expulsou!
Mour está aborrecido. Muito aborrecido. À beira do desespero. Mas é preciso
aguentar, é preciso vencer a batalha. Sem falhas... “Oito dias depois... E eles estão ali,
na minha frente, hoje meu destino depende deles... Mas esse cego, que teimosia! ...
Deus faz as coisas certas, só Ele sabe por que ordenou o mundo como fez... Porque
esse cego, se seus olhos estivessem abertos, teria sido um fenômeno!...”
- Boroom violão, você não entendeu tudo o que acabei de dizer! Foram meus agentes
que exageraram!
- Eles não se contentaram em nos expulsar, eles nos perseguiram, nos chicotearam,
bateram em nós como se fôssemos cães.
- Eles são inconscientes e desumanos! Eu nunca soube desses atos selvagens! Vão
para as ruas amanhã, veja se eles tocarão em vocês!
- Você nos expulsou!
Agora Salla Niang achou a cena divertida. (...)
Ela tomou a decisão de se livrar de Mour. Este, visivelmente, está esgotado; ela não
tem piedade; a comédia se transforma em escárnio, isso o irrita:
- Senhor Ndiaye, você pode ir embora. Amanhã, se agradar ao Criador, todos os
mendigos irão alinhar-se em seus antigos lugares.
Mour sentiu como se um peso enorme tivesse saído de seu peito. Ele finalmente
respirou!
- Eles vão alinhar-se?
- Com certeza, respondeu Salla, eles irão...
88

Essa sequência narrativa configura-se como a porta de entrada para o grande clímax do
romance. Mour, aquele que fez com que os mendigos sofressem as brutalidades de seu sistema
é o mesmo que, agora, está implorando a eles que voltem. Ele usa de tom de familiaridade de
amizade para conquistar e convencer o grupo, além de tentar dissimular que não teve
responsabilidade pelas decisões tomadas em seu órgão de trabalho. Assim, aqui temos, de forma
notável, novamente as falas proferidas por Mour em uma relação de oposição aos seus
pensamentos. Esse recurso estético que se manifesta nesse trecho, e no trecho acima analisado,
corroboram a construção da imagem de Mour como um indivíduo que visa a todo custo alcançar
seus próprios desejos. Mesmo diante desse corpo coletivo à sua frente, do qual ele, como o
diretor do serviço de salubridade, deveria cuidar dos interesses, Mour se preocupa com suas
próprias ambições e causas individuais. Assim, o efeito de ironia que esse trecho cria se deve à
contradição existente entre o discurso de Mour, que vai para uma direção, e seus pensamentos,
que vão para outra. Ele deveria representar o coletivo, mas, ao contrário, busca seus próprios
interesses.
Ao receber uma resposta positiva de Salla, Mour sai da casa dos mendigos confiante.
Com sua saída da casa, Salla anuncia ao grupo:

Quand il a à nouveau franchi le seuil de la maison, Salla s’est empressée de dire à ses
confrères:
- Ne bougez pas d’ici; que personne ne bouge jamais d’ici! Demain, à cause de nous,
il mordra la poussière!
Nguirane Sarr est saisi d’un rire fou, fou, fou, entraînant tous ses confrères dans une
hilarité générale. Lorsque tout ce monde s’est réjoui de ce qu’ils ont appelé la “folie”
de Mour (“c’est parce qu'il est fou qu'il a osé venir jusqu'à nous”) (...) (FALL, 2001,
p. 148).

Quando ele cruzou novamente a soleira da casa, Salla apressou para dizer a seus
colegas:
- Não saiam daqui; que ninguém saia daqui! Amanhã, por nossa causa, ele cairá no
infortúnio!
Nguirane Sarr é tomado por uma risada louca, louca, louca, levando todos os seus
colegas a uma hilariedade geral. Quando todos se alegraram com o que chamaram de
“loucura” de Mour (“é porque ele é louco que ele se atreveu a vir até nós”) (...).

Esse encontro de Mour com o grupo coletivo eleva a tensão narrativa e consolida o
embate existente entre eles. Com essa fala de Salla temos um passo importante para o
fortalecimento das ações do grupo contra o setor de serviço de salubridade. Apesar de o leitor
saber que o corpo coletivo não irá ao encontro de Mour, na narrativa a personagem não sabe
dessa informação. Assim Mour, no dia seguinte, realizou todo o procedimento de cortar a carne,
seguindo as recomendações de Kifi. Raabi, filha de Mour, o observa pela janela realizando o
sacrifício com as próprias mãos, admirada pelo próprio pai por estar fazendo tal coisa, que não
89

é de seu costume. Após cortar a carne em setenta e duas partes para o sacrifício, Mour sai para
fazer a oferenda.

Mour a chargé dans une camionnette les soixante-dix-sept tas de viande, les sept cents
noix de kola, et les trois fois sept mètres de tissu blanc non soyeux. Le coeur gai, il
s’est installé à côté du chauffeur, s’étant affecté le rôle de distribuer les paquets au fur
et à mesure qu’il rencontrerait les mendiants: “Je n’aurai qu’à plonger ma main dans
les bóóli113 et comme ça Koulé n’aura même pas à s’arrêter longuement... juste le
temps de ralentir un peu...”
Dans le quartier, personne; personne devant la boulangerie, personne devant la
pharmacie, pas de mendiants devant l’épicerie. Mour en est quelque peu contrarié; il
aurait bien sûr souhaité que les mendiants, ce matin, “aient songé à venir jusqu’ici”,
mais il sait que le lieu n’a jamais été vraiment fréquenté.
- Koulé, prends la direction du Grand Marché!
Avant, le Grand Marché constituait le quartier général des mendiants quand on les
chassait de leurs points stratégiques du centre de la Ville. Au Grand Marché, personne;
pas de talibés, pas de mendiants, pas de bàttu. Le coeur de Mour s’est mis à battre
avec plus de rapidité. Il s’est refusé à désespérer, il a pensé à l’assurance avec laquelle
“la dame qui est avec les mendiants” lui avait dit que ceux-ci iraient s'aligner dans les
rues. “Non, elle ne peut pas m’avoir menti, non.”
- Koulé, avançons un peu vers les grandes artères, là où il y a de nombreux feux
rouges, ensuite tu iras devant les mosquées, car, comme on est vendredi, peut-être
qu’il y en a qui sont allés devant les mosquées.
(...) Aux feux rouges, devant les mosquées, pas de mendiants, pas de talibés, pas de
bàttu. Mour sent alors comme un poids dans la poitrine, il a du mal à respirer, il lui
semble que ses oreilles bourdonnent.
- Faisons à nouveau tout le tour de la Ville. Ils habitent loin, peut-être qu’ils n’ont pas
pu trouver si tôt des moyens de transport...
- C’est possible, répond Koulé, là où ils habitent, c’est tout un problème de trouver un
car de bonne heure. Quand on en aperçoit un à cinq cents ou six cents mètres, toute la
foule qui attendait devant l’arrêt part en courant à l’assaut du car et celui-ci est vite
rempli; ce ne sont donc que les hommes valides qui sont les premiers servis ... Les
mendiants et les femmes sont trop faibles pour affronter cette bousculade, qui souvent
d’ailleurs dégénère en bagarre.
Les paroles de Koulé ont mis du baume dans le coeur de Mour :
- Oui, cela doit être ça! Le manque de cars!... Ah oui, ça aussi, c'est un problème... La
grande masse des travailleurs habite en effet ces quartiers périphériques...
(…)
À l'hôpital central, pas de mendiants, pas de talibés. Toute la Ville ratissée, pas de
bàttu. (…). Le doute n’est plus permis maintenant que, sur la demande de Mour, Koulé
s’est garé pendant deux bonnes heures au Grand Marché, devant l’arrêt des cars
délibérément qui desservent le quartier des mendiants. Aucun mendiant n’est
descendu des cars.
Mour est profondément accablé en même temps qu’une grande colère l’envahit: “Ils
sont fourbes, hypocrites, menteurs ! Voilà pourquoi ils en sont réduits à mendier ...
Chacun n’a que ce qu’il mérite!... ”
Que faire des soixante-dix-sept sachets de viande, des sept cents noix de kolas, des
trois fois sept mètres de tissu blanc non soyeux?... “Ils m’ont abusé, ils m’ont
délibérément abusé!... Cette femme m’a menti sans vergogne!... Ils me le paieront
bien un jour... (…)” (FALL, 2001, p. 150-153).

Mour carregou em uma van os setenta e sete pedaços de carne, as setecentas nozes de
cola, e três vezes sete metros de pano branco não sedoso. Com o coração feliz, ele se
sentou ao lado do motorista, atribuindo-se a função de distribuir os pacotes, à medida
que ele encontrasse os mendigos: “Só terei que enfiar a mão no bóóli e assim Koulé

113
Nota que acompanha a palavra: “Grande assiette creuse” (“Grande prato profundo”, FALL, 2001, p. 150).
90

nem terá que parar por muito tempo... apenas o suficiente para desacelerar um pouco
...”
Na vizinhança, ninguém; ninguém na frente da padaria, ninguém na frente da
farmácia, nada de mendigos na frente da mercearia. Mour está um pouco aborrecido;
é claro que ele teria desejado que os mendigos, esta manhã, “tivessem pensado em vir
aqui”, mas ele sabe que o lugar nunca foi realmente frequentado.
- Koulé, vá para o Grande Mercado!
Antes, o Mercado Grande representava o bairro geral dos mendigos quando foram
expulsos dos seus pontos estratégicos no centro da cidade. No Mercado Grande,
ninguém; nenhum talibé, nenhum mendigo, nenhum bàttu. O coração de Mour
começou a bater mais rápido. Ele recusou-se a desesperar-se, pensou na segurança
com que “a senhora que está com os mendigos” lhe havia garantido que eles iriam
fazer fila nas ruas. “Não, ela não poderia ter mentido para mim, não.”
- Koulé, vamos avançar um pouco para as grandes artérias, onde há muitos semáforos,
então você irá em frente às mesquitas, porque, como é sexta-feira, talvez alguns
tenham ido para a frente das mesquitas.
(...) Nos semáforos vermelhos, em frente às mesquitas, nenhum mendigo, nenhum
talibé, nenhum bàttu. Mour sente então um peso no peito, ele luta para respirar,
parece-lhe que seus ouvidos estão zumbindo.
- Vamos, novamente, dar uma volta pela cidade. Eles vivem longe, talvez eles não
tenham conseguido encontrar tão cedo meios de transporte...
- É possível, responde Koulé. Onde eles moram, é um grande problema encontrar um
ônibus cedinho. Quando vemos um a quinhentos ou a seiscentos metros, toda a
multidão que espera na frente do ponto corre para subir no ônibus e ele lota num
instante; então só quem está em forma consegue entrar primeiro... os mendigos e as
mulheres são fracos demais para enfrentar esta confusão que muitas vezes degringola
em briga.
As palavras de Koulé puseram bálsamo no Coração de Mour:
- Sim, deve ser isso! A falta de carros!... Ah sim, isso também é um problema... A
grande massa de trabalhadores de fato vive nesses bairros periféricos...
(...) No hospital central, nenhum mendigo, nenhum talibé. A cidade inteira
vasculhada, nenhum bàttu. (...) A dúvida não é mais permitida agora que, a pedido de
Mour, Koulé estacionou durante duas boas horas no Mercado Grande, em frente ao
ponto de ônibus que atende o bairro dos mendigos. Nenhum mendigo desceu dos
ônibus. Mour está profundamente arrasado ao mesmo tempo em que é invadido por
uma grande raiva: “Eles são trapaceiros, hipócritas, mentirosos! É por isso que só lhes
resta mendigar... Cada um tem apenas aquilo que merece! ...”
O que fazer com os setenta e sete pacotes de carne, setecentas nozes de cola, três vezes
sete metros de tecido branco não sedoso?... “Eles me enganaram, eles me enganaram
de propósito!... Esta mulher mentiu para mim descaradamente!... Um dia eles vão me
pagar... (...)”.

Para Mour, os mendigos não realizaram aquilo que Salla disse que seria possível
acontecer se fosse de agrado do criador (“se agradar ao Criador”, FALL, 2001, p. 147). Não
aparecem em nenhuma parte da cidade. No trecho em questão, além dessa constatação, temos
outros elementos relevantes que evidenciam a falta de recursos básicos na região em que esses
indivíduos moram e que parece não incomodar Mour. Em certo momento, ao contrário, ele
chega a ter alguma esperança quando pensa que os mendigos poderiam estar apenas atrasados
em razão da lotação dos ônibus, por isso eles ainda não chegaram. Koulé, motorista de Mour,
apresenta uma visão muito aguçada sobre os problemas enfrentados por essa população, sendo
a locomoção um deles. Mour, que está acostumado com todos obedecendo às suas ordens, se
depara, agora, com um corpo coletivo que não irá servi-lo. Mour então ordena ao seu motorista:
91

“- Koulé, allons voir dans leur maison!” (Koulé, vamos ver na casa deles!”, FALL, 2001, p.
153).

Il est presque midi lorsque Mour fait son entrée dans la maison des mendiants. Avec
rancœur, il a regardé assez longuement Nguirane Sarr pinçant sa guitare dans un coin,
juste à l’entrée. Il a cherché des yeux Salla Niang, et l’a aperçue au fond de la cour,
devant son fourneau. Enfin il a salué et on lui a répondu par un murmure indistinct. Il
a avancé, suivi de Koulé, jusqu'à Salla Niang. Il a essayé de maîtriser sa colère, mais
n’a pas réussi à freiner le battement accéléré qui soulève sa poitrine, et Salla Niang
s’en est vite aperçue.
- Bonjour, ma sœur ; as-tu la paix?
- Je rends grâces à Dieu. Tabarakala.
Mour est frappé – désagréablement frappé – par l’indiffére qu’affiche Salla Niang.
Celle-ci continue à activer son fourneau, sans lever les yeux, “comme si ce n’est pas
elle qui, hier, m’a fait une promesse ferme et cependant non respectée!... Même pas
une: explication, ou ... attend-elle que je lui en demande une?... Il y a des aberrations
dures à avaler... Ces gens que je n’aurais jamais côtoyés s’il n’y avait eu ce sacrifice...
et qui sont peut-être les seuls, à travers toute la Ville, à oser me recevoir avec si peu
de considération... Mais aujourd'hui, c'est moi qui ai besoin d’eux....” (…) Mour est
debout comme un piquet devant Salla Niang (…). (…) on dirait qu’elle ne voit pas
Mour, ni le chauffeur en livrée derrière le patron, à quelque deux mètres. (...)
- Ma sœur, j’étais venu voir ce qui a retenu les gars... Ils avaient promis d’aller occuper
leurs anciennes places, à la Ville. Au bout de quelques secondes, Salla a daigné lever
les yeux sur Mour: “Ce qui les a retenus? Je ne le sais pas. Demande le leur; ils sont
des adultes et je ne suis pas leur mère”.
Mour est surpris par le ton agressif de Salla. Il fait encore un effort pour n’en rien
laisser paraître. Sur un ton conciliant, le sourire aux lèvres, il a dit à Salla: “Ce que tu
dis est vrai. Mais si j’ai jugé bon de m’adresser à toi, c’est seulement parce que c’est
avec toi que j’ai parlé hier... Ce matin, en ne les voyant pas, j’ai réalisé que je ne leur
avais pas donné de quoi prendre le car; c’était un oubli de ma part; tout cela, c’est ma
faute”. Puis, se retournant énergiquement sans laisser à Salla Niang le temps de
répliquer, Mour a cherché des yeux l’endroit idéal d’où il pourrait s’adresser à
l’assistance et être entendu de tous.
- Les gars, je vous salue!
Sans attendre de réponse, et pour les prendre de vitesse, Mour a plongé la main dans
la poche de son boubou114, en a sorti des liasses de billets de banque, et les a jetées en
direction des mendiants; aussitôt une grande partie de la foule s’est levée pour saisir
au vol les billets tournoyant au gré du vent. On se bouscule et on crie:
- L’argent vole! L’argent vole!...
- C’est pour prendre le car; ainsi, vous pourrez aller à travers la Ville et vous aligner
dans les rues, n’est-ce pas?
Comme électrisée, la foule saute, rit, et quelques-uns louent même la générosité de
Mour.
- Oui, oui, nous viendrons !
Les billets de banque pleuvent. Mour est heureux de voir que Salla Niang est dans la
mêlée; c’est bon signe, pense-t-il. Pour l’adoucir davantage, pour l’amener dans de
meilleures dispositions à son égard, Mour a lancé dans sa direction toute une liasse
afin qu’elle se serve abondamment et sans difficulté. Dans le large sourire de Salla
Niang, qui a même perdu son mouchoir de tête dans la bousculade, Mour a vu une
victoire indéniable à son actif. Il jubile. C’est seulement en cet instant, pense-t-il, qu’il
a réussi à briser le mur qui se dressait entre lui et les mendiants. Ahuri, Koulé assiste
à la scène en spectateur muet. Tant d’argent gaspillé! Le patron qui se prête à ce jeu
de cirque au milieu des mendiants!

114
De acordo como o dicionário Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales se trata de uma “Ample
tunique flottante à manches courtes portée par les femmes ou les hommes de certaines régions d'Afrique” (“Túnica
solta, fluida, de manga curta, usada por mulheres ou homens em certas regiões da África”). Disponível em:
https://www.cnrtl.fr/definition/boubou. Acesso. 25 abri. 2023.
92

Koulé ne quitte pas Salla Niang des yeux; il la déteste pour son comportement de tout
à l’heure envers son patron. “Et pourtant elle s’est ruée sur l'argent”. Koulé a pitié,
profondément pitié de son patron.
Lorsque le calme est revenu, Mour s’est encore adressé à l’assistance:
- Aussitôt après la prière de Tùbaar115, je parcourrai la Ville pour vous donner
l’aumône. Vous y serez, n'est-ce pas?
- Nous y serons. Oui, oui, nous y serons, lancent plusieurs voix (FALL, 2001, p.155-
159).

É quase meio-dia quando Mour entra na casa dos mendigos. Ressentido, ele observou
por um bom tempo Nguirane Sarr, que tocava seu violão em um canto, logo na
entrada. Ele procurou Salla Niang e a viu nos fundos do quintal, na frente do fogão.
Finalmente ele a cumprimentou e ela respondeu com um sussurro indistinto. Ele
continou, seguido por Koulé, na direção de Salla Niang. Ele tentou controlar sua raiva,
mas não conseguiu diminuir a batida acelerada que palpitava em seu peito, e Salla
Niang logo percebeu.
- Olá, minha irmã; você tem paz?
- Dou graças a Deus. Tabarakala.
Mour fica impressionado - desagradavelmente atingido - pela indiferença
demonstrada por Salla Niang. Ela continua a acender o fogão, sem levantar os olhos,
“como se não tive sido ela que, ontem, me fez uma promessa firme e, contudo, não
cumprida!... Nem mesmo uma explicação, ou ... ela está esperando que eu peça
uma?... Há aberrações difíceis de engolir ... Essas pessoas que eu nunca teria
conhecido se não fosse por esse sacrifício... e que talvez sejam os únicos, em toda a
Cidade, a ousar me receber com tão pouca consideração... Mas hoje sou eu que preciso
deles...” (...). Mour está parado como uma estátua na frente de Salla Niang (…). (…)
diríamos que ela parece não ver Mour, nem o motorista atrás do patrão, a uns dois
metros de distância (...).
- Minha irmã, eu vim ver o que impediu o pessoal... Eles tinham prometido que iriam
ocupar seus antigos lugares na Cidade. Depois de alguns segundos, Salla se dignou a
olhar para Mour: “O que os impediu? Não sei. Pergunte a eles; eles são adultos e eu
não sou a mãe deles”.
Mour se surpreende com o tom agressivo de Salla. Ele faz um esforço para não
demostrar isso. Em tom conciliador, com um sorriso no rosto, disse a Salla: “O que
você diz é verdade. Mas se eu achei bom falar com você, é só porque foi com você
com quem falei ontem... Esta manhã, como eu não os vi, percebi que não lhes dei
dinheiro para pegar o ônibus; foi um descuido da minha parte; é tudo culpa minha”.
Então, virando-se energicamente sem dar tempo para Salla Niang responder, Mour
procurou o lugar ideal onde pudesse se dirigir ao público e ser ouvido por todos.
- Pessoal, eu os saúdo!
Sem esperar resposta, e para alcançá-los rapidamente, Mour enfiou a mão no bolso do
boubou, tirou maços de notas e jogou-os na direção dos mendigos; imediatamente
uma grande parte da multidão se levantou para pegar as notas que rodopiavam ao
vento. Se empurrando e gritando:
- O dinheiro está voando! O dinheiro está voando!
- Isso é para pegar o ônibus, assim, vocês poderão ir para a cidade e se alinharem em
filas pela rua, certo?
Como se estivesse eletrizada, a multidão pula, ri, e alguns até elogiam a generosidade
de Mour.
- Sim, sim, nós iremos!
(...) Chovem cédulas. Mour ficou contente em ver que Salla Niang está na briga; isso
é um bom sinal, refletiu. Para amolecê-la ainda mais, para fazê-la ter uma visão
melhor a seu respeito, Mour jogou um maço inteiro de notas em sua direção para que
ela pudesse se servir abundantemente e sem dificuldade. No sorriso largo de Salla
Niang, que até perdeu o lenço da cabeça no tumulto, Mour viu uma vitória inegável
em seu favor. Ele jubila. Foi somente nesse momento, pensa ele, que conseguiu
derrubar o muro que o separava dos mendigos. Perplexo, Koulé assiste à cena como

115
Nota explicativa do romance: “La prière de la mi-journée.” (“A oração do meio-dia”).
93

um espectador silencioso. Tanto dinheiro desperdiçado! O patrão que se presta a este


jogo de circo entre os mendigos!
Koulé não tira os olhos de Salla Niang; ele a odeia por seu comportamento anterior
em relação ao seu chefe. “E ainda assim ela correu para pegar o dinheiro”. Koulé tem
pena, profunda pena de seu chefe.
Quando a calma voltou, Mour dirigiu-se ao público novamente:
- Imediatamente após a oração Tùbaar, do meio-dia, vou percorrer a cidade para lhes
dar a esmola. Vocês vão para lá, não é?
- Estaremos lá. Sim, sim, estaremos lá, dizeram várias vozes.

Todas essas sequências dialógicas contribuem para o grande ponto de tensionamento da


narrativa, ou seja, o clímax, que “(..) é o momento culminante da história, isto quer dizer que é
o momento de maior tensão, no qual o conflito chega a seu ponto máximo” (GANCHO, 2006,
p. 14). O encontro dos mendigos com Mour faz com que ele aja de modo desesperado. No
começo do trecho, Mour sente na própria pele a mesma indiferença que o corpo coletivo dos
mendigos sente diariamente. Percebe-se que Mour não consegue de modo fácil a atenção do
grupo, que o ignorava. A forma debochada de Salla responder a Mour – “O que os impediu?
Não sei. Pergunte a eles; eles são adultos e eu não sou a mãe deles” –, provoca um efeito de
ironia, porque sabemos que o grupo tem muito respeito por essa personagem e segue suas
recomendações. Foram exatamente as palavras de Salla que contribuíram para que os mendigos
não fossem para as ruas. Observamos que quando Mour grita e começa a jogar dinheiro, há uma
espécie de restabelecimento dos papéis que cada um ocupa na sociedade, daquele que dá e
daquele que recebe, mesmo não tendo sido simples para Mour conseguir a atenção deles. No
excerto, nos chama também a atenção um episódio que nos ajuda a pensar o modo como se
configuram as relações sociais. Trata-se da reação do motorista Koulé. Ele fica perplexo com a
atitude do chefe e sente pena dele. Acreditamos que há, ao menos, duas leituras possíveis dessa
parte. Apresentaremos a primeira. Como vimos nos excertos precedentes, Koulé apresenta uma
sensibilidade para entender as questões sociais de forma perspicaz, sendo capaz de se colocar
no lugar do outro – como quando ele se mostrou consciente em relação dos problemas com os
quais o grupo dos mendigos tinha que lidar para chegar à cidade central, e explicou isso ao seu
chefe Mour. Assim como fez com os mendigos, podemos entender que Koulé se coloca, neste
momento, no lugar de seu chefe e sente uma espécie de vergonha alheia pela atitude que Mour
está tomando. Koulé tem clareza de que essa não é uma atitude correta, pelo contrário, é
vergonhosa. Mesmo diante dessa situação Koulé deixa sua humanidade falar mais alto e se
sensibiliza por Mour. Essa atitude de Koulé, na verdade, diz mais sobre ele próprio do que sobre
seu chefe, evidenciando a sensatez e empatia de Koulé face a essa situação. No que diz respeito
à segunda leitura, poder-se-ia também compreender que Koulé se compadece de seu chefe, de
condições sociais elevadas, e não dos mendigos que habitam em uma região esquecida por
94

autoridades como Mour, porque, afinal, Mour, por ser um homem abastado, nessa sociedade
hierárquica, tem um lugar privilegiado que lhe assegura ser visto e respeitado como um ser
humano de prestígio. O corpo coletivo, por sua vez, nessa configuração social, é desumanizado
pelo olhar da parte da sociedade que não os enxerga. Como ousaria um corpo coletivo de “nível
inferior” tratar desta maneira um homem de grande prestígio como o seu patrão? A visão
estabelecida aqui, poderia servir para mostrar o quanto valem os corpos em nível social. Todos
esses elementos dão complexidade à narrativa.
Depois disso, Mour volta para a caminhonete animado: “(...) L'excitation nerveuse a fait
place à l'allégresse que procure le triomphe dans un combat difficile”. (“A excitação nervosa
deu lugar à alegria do triunfo em uma luta difícil”, FALL, 2001, p. 160). Ele pensa que
finalmente conseguiu convencê-los. A construção da narrativa continua com uma tensão
elevada. Apresenta um clima de suspense e incerteza. Será que finalmente Mour conseguirá
realizar sua oferenda? O corpo coletivo iria seguir com sua greve contra o serviço de
Salubridade ou iria ceder a Mour?
Depois de sua oração, Mour, empolgado, entra na caminhonete e se dirige novamente
com Koulé para onde havia combinado com os mendigos.

Ils ont ensuite fait le tour des trois hôpitaux que compte la Ville; puis ils ont visité
chacune des innombrables mosquées; ils ont fait toutes les places et tous les points
stratégiques des mendiants, mais ceux-ci ne sont pas allés au rendez-vous. Ils ont
poursuivi leur grève sur l’ordre de Salla Niang. (FALL, 2001, p. 164)

Eles então passaram pelos três hospitais da cidade; depois foram a cada uma das
inúmeras mesquitas; passaram em revista a todos os lugares e todos os pontos
estratégicos dos mendigos, mas eles não estavam lá. Continuaram sua greve por
ordem de Salla Niang.

Suspense revelado: todos os mendigos continuavam em greve. Assim, os recursos


utilizados de suspense e surpresa revelaram que: “(...) uma cadeia de eventos pode começar
como uma surpresa, alcançar um padrão de suspense e terminar com uma “virada imprevista”,
isto é, a frustração do resultado esperado, outra surpresa (CHATMAN, 1990, p. 62-63).116
Mour, ao sair da casa dos mendigos, tinha convicção de que tinha ganhado e que todos
atenderiam ao seu pedido, mas, ao contrário, para sua completa surpresa, aconteceu aquilo que
ele nem sequer imaginava ser possível. Em outro plano narrativo, o narrador nos leva ao
momento após a saída de Mour da casa dos mendigos.

Après la dernière visite de Mour, certains d’entre eux, attendris par les
supplications d’un homme qui ne semblait pas du tout méchant, et soucieux de

116
“(...) una cadena de sucesos puede empezar como una sopresa, llegar hasta una pauta de suspense y, luego,
terminar con un ‘giro imprevisto’, es decir, la frustracion del resultado esperado, otra sorpresa’.
95

respecter le pacte qu’ils avaient signé ensemble – lui leur donnait son argent et
eux leur parole –, avaient décidé d’aller s’aligner dans les rues. Avec la
dernière énergie, Salla Niang les a harangués:
- Quoi? Il n’en est pas question; il n’en est nullement question! Parce qu’il
nous a jeté son argent, on doit céder à sa volonté! Non! S’il a jeté l’argent, c’est
parce qu’il en a plein les poches; c’est parce qu'il peut se permettre de le jeter
à pleines mains. Ce que nous en avons récolté, c'est notre chance; sunu wërsëk
la! Si vous descendez dans les rues, vous apparaîtrez comme de viles créatures
sans foi, sans vergogne, sans détermination ... Souvenez-vous de tout ce qui
vous a poussés à vous terrer ici! Non, que personne ne bouge d’ici! (FALL,
2001, p. 164-165).

Depois da última visita de Mour, alguns deles, enternecidos pelas súplicas de


um homem que não parecia nada maldoso, e ansiosos por respeitar o pacto que
haviam assinado juntos - ele lhes deu seu dinheiro e eles sua palavra -,
decidiram ir posicionar-se nas ruas. Com a última energia, Salla Niang bradou:
- O que? Nem pensar; nem pensar mesmo! Porque ele jogou seu dinheiro para
nós, temos que ceder à sua vontade! Não! Se ele jogou fora o dinheiro, é porque
seus bolsos estão cheios dele; é porque ele pode se dar ao luxo de jogá-lo fora.
O que ganhamos com isso é a nossa sorte; sunu wërsek la! Se vocês forem às
ruas, vocês parecerão criaturas vis e sem fé, sem vergonha, sem determinação...
Lembrem-se de tudo que fez vocês se enfiarem aqui! Não, que ninguém se
mova daqui!.

Essa suposta surpresa, mencionada acima, ocorre se observamos a partir do ponto de


vista de Mour, o qual esperava que os mendigos fossem às ruas. Mas, se olharmos para o ponto
de vista do corpo coletivo, não há surpresa. Afinal, ele, o corpo coletivo, é o protagonista da
história. A greve realizada por ele simboliza, desde o começo da narrativa, a ferramenta de luta
e força que contribuiu para que todas as personagens que fazem parte do grupo se
configurassem em uma só. Assim, nos trechos que citamos, percebemos que os anseios
individuais de Mour acabam ressaltando a união de um grupo que se consolida pensando em
alcançar melhorias para si, mostrando, com isso, uma resistência adquirida de forma conjunta.
É o coletivo que vence no final, não as ambições de um único indivíduo. Nesse último excerto
apresentado, Salla, mais uma vez, encorajou a luta, mostrando que agora mais do que nunca
deveriam permanecer em greve e ratificar sua força. Força essa que Mour considerou que
pudesse vencer jogando dinheiro aos mendigos. O fato de Mour os subestimar fez com que sua
derrota fosse ainda mais eloquente para o grupo. O corpo coletivo consegue, assim, ditar as
regras do jogo, não deixou que o poder financeiro de Mour, que só se preocupava com o seu
próprio bem-estar, determinasse o que eles deveriam fazer ou como deveriam agir.
Com isso, esse embate mostrou que quando se está unido em coletividade a potência é
maior. A humanidade do grupo que foi capaz de se colocar em oposição ao mais alto poder
social e vencer a batalha foi reforçada. Desta forma, aqueles que eram considerados como
“desejos humanos”, pelo setor de salubridade, se fortaleceram e não se deixaram
instrumentalizar por Mour.
96

4.3 Refletindo sobre o tema da mendicância: o uso político da pobreza

A partir da leitura de alguns excertos da narrativa foi possível observar como se constrói
a oposição entre a esfera de poder, representada principalmente pela personagem Mour, versus
o grupo dos mais necessitados que se compõe esteticamente como um único corpo coletivo na
narrativa. Vinculada a oposição entre os grupos se concebe o tema da mendicidade. Conectado
a esse tema, observa-se que os preceitos religiosos, que estão tanto presentes na esfera de poder
quanto na esfera mais desfavorecida, aparecem como plano de fundo narrativo, seja de forma
direta ou por indireta.
Esses preceitos estão muito atrelados às práticas religiosas do país, que, como visto, é
majoritariamente islâmico. Segundo Chehami, a religião islâmica se ancora em cinco pilares.
Salientamos o terceiro:

[...] o Islã ordena a prática da zakât, ‘esmola legal’, que significa em árabe purificação
moral, virtude, piedade, ou seja, a obrigação de todo muçulmano que pode dar parte
de sua renda anual aos pobres. Essa obrigação religiosa também tem caráter social,
visando limitar a riqueza dos grupos sociais mais favorecidos e visando a unidade da
umma (a comunidade dos crentes). (CHEHAMI, 2013, p. 329)117

Consideramos, logo, que essa questão religiosa transposta na obra literária dialoga com
sua prática na sociedade senegalesa. Mas, ao contrário de uma doação feita por amor ou
filantropia, que se prega na religião com o objetivo de limitar a riqueza pessoal dos mais
favorecidos, como coloca Chehami, na narrativa nota-se que essas doações são feitas para que
aqueles que a fazem possam ter seus desejos realizados. Durante a greve dos mendigos vimos
as personagens mais afortunadas se dirigirem para a parte mais pobre da cidade somente para
fazer suas doações. Sobre isso, Nguirane comenta: “Il se passe sûrement quelque chose en
politique! Cette effervescence, ces voitures de luxe qui défilent ici à longueur de journée, ces
béliers bien encornés... Ça ne peut être qu’à cause de la politique” (“certamente algo está
acontecendo na política! Essa efervescência, esses carros de luxo que desfilam aqui o dia todo,
esses carneiros bem chifrados... Só pode ser por causa da política”, FALL, 2001, p. 106). A
personagem não acredita que essas doações sejam realizadas de forma espontânea, por isso,
logo as atribui a ambições pessoais de quem quer alcançar algo, ou seja, ao fato de que os
políticos, os arrivistas em geral e outras pessoas se servem da obrigação religiosa da esmola em

117
“[...] L’islam commande de pratiquer la zakât, ‘l’aumône légale’, qui signifie en arabe purification morale,
vertu, piété, c’est-à-dire l’obligation pour chaque musulman pouvant se le permettre de donner aux pauvres une
partie de ses revenus annuels. Cette obligation religieuse a aussi un caractère social, en visant à limiter la richesse
des groupes sociaux les plus favorisés et en visant à l’unité de la umma (la communauté des croyants)”.
97

prol de objetivos individualistas. Há, dessa forma, uma deturpação do verdadeiro significado
da zakât.
A personagem de Mour dá um grande exemplo de como se servir de um dogma religioso
em proveito próprio quando ele vai se consultar com o marabu Kiffi para saber o que deve fazer
para se tornar vice-presidente. O sacrifício de dar carne aos mendigos, cortada pelas próprias
mãos de Mour, não é feito por ele sentir empatia pelo corpo coletivo desse grupo, mas porque
acredita que essa é a forma com que irá conseguir realizar a sua ambição, e, por essa razão,
cumpre à risca aquilo que o marabu lhe ordenou. As doações e caridade nessa sociedade servem
como uma espécie de moeda de troca que os afortunados utilizam ao seu favor. Sarr imita como
as pessoas fazem isso: “Em troca desta esmola, que o Mestre dos céus e da terra me faça subir
de posto, me eleve ao topo da hierarquia no serviço onde trabalho. ... Graças a esta caridade,
que o Todo-Poderoso afaste meus males assim como os de minha família!” (FALL, 2001, p.
71-72). Com isso, Aminata Sow Fall revela, em sua narrativa, como essa prática está tão
impregnada na sociedade que a mendicidade não é percebida como um problema social. Ao
contrário, a presença desses indivíduos nas ruas é esperada, afinal é preciso fazer doações
quando se quer obter alguma coisa: “[Sagar] à qui les gens donneraient-ils la charité, car il faut
bien qu’on la donne, cette charité, qui est un précepte de la religion?” ((...) para quem as
pessoas fariam caridade? Porque deve-se fazer essa caridade, que é um preceito da religião”
(FALL, 2001, p. 34-35). Vemos, assim como a presença dos mendigos evidencia uma categoria
que faz parte dessa organização social. No trecho em que Nguirane, traz em seu discurso o
desejo de fazer uma greve contra os afortunados, nesse momento da narrativa, ele começa a
entender essa função (social) do grupo. Entende que eles se constituem como uma categoria
importante para a manutenção desse sistema que não busca por melhorias do grupo. Ao
contrário, a posição em que se encontra o corpo coletivo é muito bem aceita por essa sociedade.
Em análise à obra de Fall, sobre o tema da mendicidade, Mokwenye enfatiza:

Infelizmente, a mendicidade não só prospera no Senegal porque a fé muçulmana


prescreve que os ricos devem dar esmolas aos pobres. Nesta sociedade, a superstição
também é responsável por encorajar a existência de mendigos e outras pessoas em
situação de vunerabilidade. Aminata Sow Fall satiriza os homens supersticiosos e
ambiciosos, como simbolizado por Mour Ndiaye (...) (MOKWENYE, 1992, p.
218).118

118
“Unfortunately, begging does not only thrive in Senegal became the muslim faith prescribes that the rich must
give alms to the poor. Superstition also has a part to play in this society in encouraging the existence of street
beggars and other destitutes. Aminata Sow Fall Satirises superstitious and ambitious men, as symbolised by Mour
Ndiaye”.
98

Assim, a pobreza é instrumentalizada pela classe privilegiada do país, utilizada pelos


dirigentes como instrumento de ascensão no âmbito político e pessoal. Mour, como sendo um
desses supersticiosos, não escapa dos misticismos figurados na crença nos marabus Birama e
Kiffi. O marabu faz parte da sociedade senegalesa e nela desempenha um papel de notoriedade:
“(...) ele trata da formação no Islã e em particular na leitura e conhecimento do Alcorão. (...)
ajuda os jovens que lhe são confiados ou que vêm a ele, a compreender a vida e a saber como
comportar-se em sociedade (KANKWENDA, 2000, p. 66).119 Mour, que já não é mais jovem,
toma as suas decisões conforme as palavras dos marabus. Essa superstição, ressaltada pela
pesquisadora acima, evidencia a relação de fé e confiança que o fiel tem com a figura do
marabu. Mour tenta ao máximo seguir as orientações do marabu Kiffi, fazer as doações, mas,
por outro lado, ele acaba agindo no sentido oposto, contrariando o que o marabu Sirigne Birama
lhe diz: “Deus disse: você não deve mandar os pobres embora” (FALL, 2000, p. 38-39). Esse
pode ser considerado como o único momento em que Mour adota uma postura contrária àquela
orientada pelo marabu Birama. Essa desobediência pode ser compreendida, como merecedora
de um castigo, já que “(…) ser muçulmano é obedecer às ordens de seu marabu e merecer por
seus dons e devoção participar dos méritos do homem santo” (MARTY, 1917, p. 3).
Nos excertos do romance, nota-se também a presença do substantivo talibé.
Observaremos dois exemplos: no primeiro parágrafo da narrativa lemos “[...] esses mendigos,
esses talibés”; outro exemplo está no trecho que se passa na casa dos mendigos, quando Salla
fala com o grupo: “Ei! pequenos talibés, escutem! Cuspam nas moedas de um ou dois
francos”. Acerca desse substantivo, Ndiaye explica que:

Os talibés são estudantes de um curso para aprender o árabe e o Alcorão, sob a tutela
de um mestre chamado (em uolofe, a língua mais falada no Senegal) seriñ daara. [...]
Os talibés dedicam grande parte do seu tempo a outras atividades além da
aprendizagem. Uma das mais importantes continua sendo a mendicância (NDIAYE,
2015, p. 2).

Essas crianças estudam o alcorão com um mestre qualificado, em um estabelecimento


chamado de daara (“escola corânica”). Panait distingue três modelos desse estabelecimento;
citamos aqui o segundo deles: “la daara traditionnelle sous régime d’internat et où les enfants
doivent mendier pour en assurer le fonctionnement et satisfaire les besoins du maître
coranique” (“a escola corânica tradicional em regime de internato e onde as crianças têm de
mendigar para garantir o seu funcionamento e satisfazer as necessidades do mestre corânico”,
PANAIT, 2017 p. 13). Ao mergulharmos nesse contexto, percebemos que os talibés colaboram

119
“(…) Il s'occupe de la formation à l'islam et notamment à la lecture et la connaissance du Coran. (…) il aide les
jeunes qui lui sont confiés ou qui viennent à lui, à comprendre la vie et savoir se comporter dans la société ”.
99

para que o tema da mendicância, transposto no romance, ganhe uma singularidade, porque essas
figuras não estão presentes em todas as sociedades em que há mendicância. Essa mendicância,
em particular, é fruto de um contexto específico que se conecta a uma tradição religiosa com
implicações na organização social. No excerto já citado, lemos: “[...] esses mendigos, esses
talibés, esses leprosos, esses deficientes físicos”. Temos aqui a enumeração dos que fazem parte
desse grupo. Não são só os mendigos, no sentido lato do termo, ou os indivíduos com doenças
ou deficiências que são levados à mendicância por falta de assistência do estado (como a
personagem de Nguirane: “cego sempre de gravata”, FALL. 2001, p. 24), mas também
compõem o grupo as crianças, ou melhor, as denominadas como talibés, por causa do ensino
corânico que também as leva às ruas. Assim, uma vez mais, só conseguimos entender essa
categoria muito particular a partir da imersão no contexto de Fall.
No romance, a utilização da religião como um meio de perpetuar a instrumentalização
dos indivíduos em situação de mendicância entra em contraste com uma nova sociedade que
Mour, e os seus superiores, querem construir visando modernizá-la para os turistas. Essa nova
sociedade em vias de se modernizar apresenta uma percepção de sociedade herdada dos
colonizadores. Lemotieu evidencia que quando Fall escreve sua obra reverbera aquilo que
perpassa a sua sociedade.

Aminata Sow Fall parece ter, em seu segundo romance La Grève des Battu, percebido
o cerne do problema, justamente por colocar a religião muçulmana, no que ela tem de
clássico, na confluência de solicitações tão divergentes quanto contraditório nesta
‘Nova’ África. Determinar o lugar desta religião no quotidiano dos atores, sobretudo
as repercussões da aplicação de um preceito do Alcorão (a obrigação de dar esmolas),
na dinâmica sócio-política desta “Grande Cidade” (...) (LEMOTIEU, 1987, p. 51).120

Esse novo governo senegalês tenta se vincular à sociedade moderna, por isso vemos
Mour, o grande representante da elite, que parece ser a figura que mais está em um impasse,
entre a busca dessa nova sociedade moderna e ainda muito conectado a suas maiores
superstições que fazem parte de sua cultura. Entretanto, ele utiliza-se daquilo que é cultural e
religioso para o seu bem próprio. Assim, não podemos negar que Mour representa esses novos
dirigentes que simbolizam a opressão da classe desfavorecida. O sistema político ao qual Mour
pertence é um espaço neocolonial, no qual há ainda uma perpetuação das ideias colonialistas
de percepção de mundo. Os policiais, que batem e agridem o corpo coletivo, são uma

120
“Aminata Sow Fall semble avoir, dans son deuxième roman La Grève des Battu avoir perçu le nœud du
problème, en plaçant justement la religion musulmane, dans ce qu’elle a de classique, à la confluence des
sollicitations aussi divergentes que contradictoires dans cette Afrique ‘Nouvelle’. Déterminer la place de cette
religion dans la vie quotidienne des actants surtout les répercussions de l’application d’un précepte du Coran
(l’obligation de faire l’aumône), sur la dynamique sociopolitique de cette ‘Grande Ville’ (…)”.
100

transfiguração dos próprios colonos que utilizavam todo o tipo de violências contra os mais
fracos, mais pobres e mais necessitados, como enfatiza a Onyemelukwe: “serve-se da polícia,
este instrumento de opressão de ‘pura violência’ (...) tal como na época colonial, para levar a
cabo este projeto de grande envergadura” (2003, p. 91)121:

Implicitamente, Sow Fall ataca as autoridades pós-coloniais representadas por Mour


Ndiaye por sua atitude de desprezo e alienação em relação aos mendigos e aos menos
privilegiados. Ela denuncia sua incapacidade de administrar adequadamente os
interesses do povo; sua impotência administrativa, econômica e tecnológica
(ONYEMELUKWE, 2003, p. 93).122

Mour, portanto, se transmuta nessa grande figura que não está nenhum pouco
preparada para lidar com as questões mais fundamentais da sociedade, punindo aqueles
que ele deveria ajudar. Ele, representante neocolonial, deturpa sua própria fé e religião para
fazer parte do sistema colonial que um dia lhe maltratou.
A partir disso, constatamos que a narrativa de Aminata Sow Fall nos leva a conhecer
elementos que fazem parte de seu universo cultural. O tema da mendicidade se constrói tendo
a religião como plano de fundo, evidenciando como essas práticas religiosas contribuem, de
certa forma, para a manutenção da mendicidade no país. Ainda mais quando tomamos
conhecimento de que os tabilés têm como função sair às ruas para mendigar, situação
fomentada pela religião. Assim sendo, além da mendicidade ser um problema oriundo da
desigualdade social em muitas sociedades, no romance vemos que ela é incentivada e motivada
em razão dessa prática religiosa. Nesse sentido, Herzberger-Fofana aponta que “(...) Aminata
Sow Fall não questiona o Islã como religião, mas denuncia as práticas abusivas que a religião
sofre no Senegal. (...) A religião é um pretexto que serve para reforçar as críticas sociais da
autora e para mostrar os desvios de que o Islã é objeto (...)” (HERZBERGER-FOFANA, 1987,
196).123 Mour e os fiéis que vão para casa dos mendigos quando eles estão em greve, utilizam-
se dos preceitos religiosos de modo equivocado. Não pretendem que os mendigos saiam de sua
situação de vulnerabilidade. Como percebe Nguirane: “Notre faim ne les dérange pas. Ils ont
besoin de donner pour survivre et, si nous n’existions pas, à qui donneraient-ils? Comment
assureraient-ils leur tranquillité d’esprit?” (“Nossa fome não incomoda. Eles precisam dar

121
“on se sert de la gendarmerie, cet instrument d’oppression de ‘pure violence’ (...) comme à l’époque coloniale,
pour effectuer ce projet de grande envergure”.
122
“Implicitement, Sow Fall s’attaque aux autorités post-coloniales que représente Mour Ndiaye de leur attitude
de mépris, d’aliénation envers les mendiants et les moins privilégiés. Elle dénonce leur incapacité de bien gérer
les affaires du peuple; leur impuissance administrative, économique et tecnologique”.
123
“Aminata Sow Fall ne met pas en cause l’Islam en tant que religion, mais dénonce les pratiques abusives qu’elle
subit au Sénégal. (…) La religion est un prétexte qui sert à renforcer les critiques sociales de l’auteur et à monter
les déviations dont l’Islam est l’objet”.
101

para sobreviver e, se não existíssemos, para quem eles dariam? Como eles garantiriam a
tranquilidade de espírito? Não é para nós que eles dão, é para eles mesmos! Eles precisam da
gente para viver em paz!”, FALL, 2001, p. 71-72). Com isso, vislumbramos uma sociedade que
não vê o corpo coletivo dos mendigos como merecedores de direitos básicos.
Isto posto, o grupo dos mendigos representa uma esfera social que sofre todas as
mazelas de uma sociedade desigual repleta de injustiças e que padece ainda com a elite do país
que lucra com a pobreza alheia. Mesmo sendo considerado como a parte mais fraca nessa
estrutura, quando as personagens Nguirane e Salla tomam consciência da força que têm como
grupo, o corpo coletivo consegue, ao menos um pouco, desestabilizar a elite do país.
Assim, a partir desse universo literário, Aminata Sow Fall apresenta ao leitor
personagens típicas de sua sociedade. Fall dá voz aos marginalizados, tornando-os
protagonistas da narrativa. Ao construí-los como sendo uma única personagem, um corpo
coletivo, ela faz com que eles recuperem o seu brio e, por meio de sua luta, passem a reivindicar
o direito à dignidade humana nessa sociedade.

4.4 Espaços sociais: diferenciadores de corpos

Em La grève des bàttu, acreditamos que os espaços contribuem para reforçar a oposição
entre os homens do poder e o corpo coletivo dos mendigos na narrativa. Concentraremos-nos,
primeiro, nos espaços dedicados às esposas de Mour, que casou-se em primeiras núpcias com
Lolli e depois casou-se com Sine, uma mulher mais nova que ele. Lembramos que trata-se de
uma configuração familiar poligâmica.
Começaremos com a casa onde ele mora com Lolli: “Maintenant tout est à sa portée.
Maison somptueuse, deux voitures à sa disposition, personnel domestique payé par l'État”
(“Agora tudo está ao seu alcance. Casa sumptuosa, dois carros à sua disposição, pessoal
doméstico pago pelo Estado”, FALL, 2001, p. 40). Essa é uma das descrições que
acompanhamos no romance acerca do espaço em que vivem Lolli e Mour que têm uma
condição de vida de muita comodidade. Todos os elementos citados no excerto confirmam essa
percepção. Lemos também a descrição da casa de Sine, a segunda esposa de Mour: “La maison
que Mour a affectée à Sine est une somptueuse villa située sur la Corniche; on y respire à
longueur de journée un air chargé d'effluves marins” (“A casa que Mour designou para Sine é
uma suntuosa vila localizada na Corniche, ali se respira ao longo do dia um ar carregado de
flúvios marinhos”, FALL, 2001, p. 160-161). Sine habita em uma região litorânea em uma casa
102

que Mour lhe deu. Tanto a descrição da casa de Lolli, como a de Sine, indica a situação
econômica privilegiada de ambas, revelando, assim, o “grupo social” ao qual elas pertencem e
as “condições em que vivem” (GANCHO, 2006, p. 28). Ademais, nota-se que esses espaços
nos quais Mour e suas esposas habitam estão relacionados a um modelo de vida do ex-
colonizador, espaços esses que são atribuídos para aqueles que, na hierarquia social, estão em
uma posição elevada.
Em relação ao espaço que corresponde o serviço de salubridade, temos a descrição do
escritório de Kéba.
Kéba Dabo s’adresse à quelque vingt hommes réunis dans son bureau, au huitième
étage d'un building tout confort, carrelé de marbre et où on aurait du mal à voir une
seule mouche voler. Les hommes tiennent chacun un bloc-notes et un stylo et suivent
attentivement l’itinéraire de la règle qui court sur une carte apposée à l’un des murs,
à côté de tableaux de grands maîtres et de tapisseries d’Orient (FALL, 2001, p. 31)

Kéba Dabo se dirige a cerca de vinte homens reunidos em seu escritório, no oitavo
andar de um prédio confortável, com ladrilhos de mármore e onde seria difícil ver
uma única mosca voar. Homens seguram um bloco de notas e uma caneta e seguem
atentamente o percurso da régua que corre num mapa afixado a uma das paredes, ao
lado de pinturas dos grandes mestres e tapeçarias orientais.

Esse lugar físico luxuoso, que representa uma das esferas de poder do país, demonstra
a riqueza concentrada nesse lugar que é desproporcional à dos outros espaços nos quais vivem
o restante da população. Como assistente do diretor deste organismo, Kéba consolida seu
caráter e perspectivas morais, formando, a partir desse espaço físico, também seu ambiente
psicológico. Isso ocorre, pois, como pontua Gancho, o “(...) espaço tem como funções principais
situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas
atitudes, pensamentos ou emoções (...)” (GANCHO, 2006, p. 27). Kéba se vê representando
esse grupo social e por fazer parte dele seu caráter moral repete os preceitos totalizantes desse
espaço. As pessoas que estão nesse lugar parecem não se interessar pelas injustiças sociais
presentes nessa sociedade e essa atitude passa ser percebida também nas ações de Kéba. Esse
prédio parece representar uma bolha social na qual estão presos os funcionários que trabalham
nele e que não conseguem enxergar para além de suas paredes.
Analisando mais atentamente o excerto acima, em consonância com ele, relacionamos
um lugar da casa de Mour: “ (...) dans la pièce aménagée pour les prières, meublée uniquement
de tapis d'Orient et d'où s'exhale éternellement une enivrante odeur d'encens” (“(...) na sala
reservada para orações, mobiliada apenas com tapetes orientais e da qual exala eternamente um
cheiro inebriante de incenso”, FALL, 2001, p. 133). Percebemos a repetição da “tapeçaria
oriental” como um componente de decoração desses dois cenários. Chamamos a atenção para
103

esse elemento que participa da construção desses espaços e que está vinculado a uma relação
de poder de compra, como lemos nos estudos de Trautmann-Waller:

Constata-se, no último terço do século XIX, um interesse sem precedentes pelo tapete
oriental por parte de historiadores de arte, colecionadores e consumidores (...). O
tapete oriental, outrora um objeto de luxo utilizado para fins de representação no
contexto real e aristocrático, tornou-se gradualmente um elemento (padrão) do interior
burguês e uma peça de museu elevada ao status de objeto de estudo da história da arte,
tanto é verdade que o comércio de tapetes inclui não só o fornecimento de tapetes,
mas também o fornecimento de informações sobre eles, o que resulta tanto de uma
transformação do gosto, quanto de necessidades econômicas e de uma situação
geopolítica, o que poderiamos chamar de “era burguesa” (TRAUTMANN-WALLER,
2017, p. 1).124

A descrição do tapete e da tapeçaria do oriente não foi inserida na narrativa por um mero
acaso, representa um elemento que contribui para situar essas personagens em meio a uma
tradição, evidenciando o poder econômico e social que as personagens possuem nessa
organização hierárquica. Ademais, percebe-se que esse grupo social atribui grande valor ao que
é da cultura do colonizador, e a tudo aquilo que vem de fora e que representa o que é estimado
por essa cultura. Além de seguirem esse modelo, do mesmo modo, compreendemos que os
espaços dessa cidade são pensados visando o bem-estar dos estrangeiros colonizadores. Para
elucidar esse argumento, lemos o diálogo entre Mour e Birama.

(Mour) - Serigne, il ne s’agit pas de cela. Comment vais-je t’expliquer cela?... Voilà:
maintenant les gens qui habitent loin, waa bitim rééw125, les toubabs126 surtout,
commencent à s’intéresser à la beauté de notre pays, ce sont des touristes. Tu sais,
avant, ils venaient pour nous piller; maintenant, ils viennent se reposer chez nous en
y cherchant le bonheur. C’est pourquoi nous avons construit des hôtels, des villages,
des casinos pour les accueillir. Ces touristes dépensent de grosses sommes d’argent
pour venir chez nous, il y a même des sociétés spécialisées qui s’en occupent là-bas,
en Europe. Quand ces touristes visitent la Ville, ils sont assaillis par les mendiants, et
ils risquent de ne plus revenir ou de faire une mauvaise propagande pour décourager
ceux qui voudraient venir (FALL, 2001, p. 38-39).

(Mour) (...) - Serigne, não é isso. Como vou te explicar isso? ... É o seguinte: agora as
pessoas que moram longe, waa bitim rééw, principalmente os europeus, estão
começando a se interessar pela beleza do nosso país, são turistas. Você sabe, antes,
eles vinham nos saquear; agora eles vêm descansar em nosso país em busca da
felicidade. É por isso que construímos hotéis, vilas e cassinos para acomodá-los. Esses

124
“On constate durant le dernier tiers du XIXe siècle un intérêt inédit pour le tapis d’orient de la part des historiens
d’art, collectionneurs et consommateurs (…). Autrefois objet de luxe utilisé à des fins de représentation dans le
contexte royal et aristocratique, le tapis d’orient devient petit à petit et parallèlement un élément (standard) de
l’intérieur bourgeois et une pièce de musée élevée au rang d’objet d’étude de l’histoire de l’art, tant il est vrai que
le commerce du tapis n’inclut pas seulement l’approvisionnement en tapis mais aussi l’approvisionnement en
informations à leur sujet. Résultant à la fois d’une transformation du goût, de nécessités économiques et d’une
situation géopolitique, ce que l’on pourrait appeler l’ère bourgeoise.”
125
Essa expressão vem acompanhada de uma nota de rodapé: “Ceux de l’Europe et des États-Unis” (“Aqueles da
Europa e dos Estados Unidos”).
126
“En Afrique noire, nom donné aux Européens, aux Blancs ; Africain ayant adopté le mode de vie européen”.
https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/toubab/78618. Acesso: 25 abr. 2023.
104

turistas gastam muito dinheiro para vir até nós, existem até empresas especializadas
que cuidam deles lá, na Europa. Quando esses turistas visitam a cidade, são atacados
por mendigos, e correm o risco de não voltar ou fazer má propaganda para
desencorajar quem gostaria de vir.
(Mour) (...) - Serigne, os tempos mudaram; agora somos responsáveis pelo destino do
nosso país. Devemos combater tudo que prejudique seu desenvolvimento turístico e
econômico.

Observamos que a classe social à qual Mour pertence está preocupada com a reputação
do país face ao estrangeiro (se o país vai, ou não, agradar aos turistas), fazendo com que os
espaços africanos sejam utilizados a serviço dos europeus. Há aqui, novamente, uma
neocolonização do espaço africano. Em outras palavras, o espaço africano que deveria ser
pensado para servir ao seu povo com melhoria de estrutura e saneamento para toda a polulação,
é utilizado como um espaço para servir ao ex-colonizador. A construção de prédios, casinos,
hoteis etc., está atrelada a uma proposta arquitetônica de origem europeia, que na narrativa
parece ser o modelo de desenvolvimento a ser seguido. Pela figura de Mour vemos que muitos
dos espaços ao qual ele pertence são repletos de elementos ocidentais – e orientais que são
valorizados pelo ocidente.
Observaremos agora como são descritos os espaços que o grupo dos mendigos
frequenta. Na narrativa, lemos sobre a casa que Salla conseguiu comprar com a ajuda de um
ex-patrão: “Un de ses patrons l'a aidée à obtenir une parcelle assainie qu'elle a pu construire
grâce au produit de sa mendicité ” (“Um de seus chefes a ajudou a conseguir um terreno
[parcelle assainie] que ela conseguiu construir com os lucros de sua mendicância”, FALL,
2001, p. 26). Apesar de não termos muitos detalhes da casa apresentamos a descrição de alguns
espaços que fazem parte dela:

Tous rigolent lorsque Salla Niang, du seuil de sa chambre, assise sur une chaise, les
deux mains dans un van posé sur les genoux, s'adresse à la foule impressionnante des
boroom bàttu·qui remplissent la cour de la maison, tout en comptant l’argent dans le
van. (...) L’unique acheteur est Salla Niang, qui les paie trente pour cent moins cher
et qui peut ainsi approvisionner la boutique attenante à la maison, gérée par son mari
(FALL, 2001, p. 24-26).

Todos riem quando Salla Niang, da porta de seu quarto, sentada em uma cadeira com
as duas mãos em uma cesta colocada sobre seus joelhos, se dirige à impressionante
multidão de mendigos [boroom bàttu] que enche o pátio da casa, enquanto conta o
dinheiro na cesta. (...) O único comprador é Salla Niang, que paga trinta por cento
menos por eles e pode assim abastecer a loja contígua à casa, dirigida por seu marido.

Aqui temos a menção ao quarto de Salla, mesmo sem descrição dos objetos que fazem
parte dele, e também à loja na qual vende os alimentos para o grupo de mendigos. Do seu quarto
ela vê o pátio de sua casa e talvez esse seja o espaço físico (o pátio) que é mais citado na
narrativa, certamente porque representa um espaço de encontro do grupo: “Tous les mendiants
105

de la Ville sont réunis dans la cour de Salla Niang pour participer au tirage de la tontine
quotidienne”, (“Todos os mendigos da cidade estão reunidos no pátio da Salla Niang para
participar do sorteio da tontina diária”, FALL, 2001, p. 23). Esse espaço é onde o grupo
fortalece sua conexão, sendo o lugar de integração e de construção das relações do corpo
coletivo dos mendigos. É nesse espaço que eles se constituem como grupo: compram seus
alimentos, tocam seus instrumentos, socializam e constroem a força conjunta para lutar contra
as autoridades. Nesse espaço, os mendigos se sentem seguros quando são expulsos da cidade;
é onde se torna possível expressar suas emoções e serem tratados como iguais.
O ponto de vista de Mour sobre esse espaço é distinto daquele do grupo. Percebemos
isso no momento em que ele se direciona, pela primeira vez, para a casa dos mendigos:

“C'est encore loin?” a demandé Mour, bouillant d'impatience.


- Après le goudron, a répondu le chauffeur, il y a un long chemin sablonneux qu’il
faudra parcourir sur une longueur d'environ sept à huit kilomètres, avant d’atteindre
le nouveau quartier des Parcelles Assainies. Dès qu’ils ont perdu de vue la route
goudronnée, Mour a eu la sensation que la voiture s’égarait dans un désert (…):
paysage tristement nu, sans vie, fouetté par un vent d’une rare violence dont le
hurlement se mêlait à la plainte stridente des nuages échappés des dunes de sable, et
au mugissement féroce de la mer écumante de colère.

“Ainda falta muito?” perguntou Mour, fervendo de impaciência.


- “Depois do asfalto”, respondeu o motorista, “tem um longo caminho de areia que
temos que percorrer por cerca de sete a oito quilômetros, antes de chegar ao novo
bairro das Parcelles Assainies”. Assim que perderam de vista a estrada asfaltada,
Mour teve a sensação de que o carro estava se perdendo em um deserto (...): paisagem
tristemente nua, sem vida, açoitada por um vento de rara violência cujo uivo se
misturava com a queixa estridente das nuvens que escaparam das dunas de areia e do
mugido feroz do mar espumante de cólera” (FALL, 2001, p. 137-138).

A narrativa nos dá mais detalhes do espaço físico onde mora o grupo. Os mendigos
residem distantes da região mais nobre do país e para chegar até onde o grupo habita o caminho
não é aprazível aos olhos do diretor de serviços de salubridade. A falta de uma estrada asfaltada
indica que não é fácil o acesso a essa região, do mesmo modo que evidencia o descaso e a falta
de iniciativas dos governantes para resolverem o problema de acesso a essa parte da cidade.
Essa distância concreta entre a casa dos mendigos e a região central da cidade, onde vivem as
pessoas afortunadas, serve para reforçar, ainda mais, a separação simbólica entre o corpo
coletivo dos mendigos e a classe abastada. Deste modo, conseguimos observar que esse
distanciamento espacial se configura também em um distanciamento social, sendo o espaço
habitado pelo grupo de mendigos, que sofre por falta de medidas públicas, invisibilizado nessa
sociedade. Mour, em um determinado momento da narrativa, se mostra perspicaz ao observar
os desafios vivenciados nesta região. Acompanhemos:
106

C'est sans rancune que Mour pense maintenant aux mendiants: “Au fond, ils ne
méritent peut-être pas notre mépris... De toute façon on ne les méprise que si l’on n’a
pas besoin d’eux... Il faudra leur faire retrouver leur qualité de citoyens à part entière...
Créer des structures qui leur permettront de s'intégrer... Mener à leur endroit une vaste
campagne d'éducation... Ils ont besoin d'être éduqués, comme d'ailleurs une grande
partie de la population... Non, ils ne sont pas les seuls à être à l'écart... (FALL, 2001,
p. 160).

Mour agora pensa nos mendigos sem ressentimentos: “No fundo, talvez eles não
mereçam nosso desprezo... De todo modo, a gente só os despreza se não precisa deles.
É preciso fazê-los recuperar sua qualidade de cidadãos de pleno direito... Criar
estruturas que lhes permitam integrar-se... Levar para sua região uma vasta campanha
de educação. Eles precisam ser educados..., como aliás grande parte da população...
Não, eles não são os únicos a ficar à margem...”.

Estando nesse espaço, pela primeira vez na narrativa, Mour se mostra empático em
relação às dificuldades experienciadas pelos mendigos, além de ter consciência de que a
sociedade, assim como ele próprio, serve-se do corpo coletivo dos mendigos em benefício
próprio. É como se, por um momento, aquele Mour jovem e engajado voltasse e confrontasse
essas mazelas sociais com indignação. Embora Mour tenha ido a essa região com anseios
individualistas, ao estar nesse lugar percebe o quanto é importante construir um espaço de
inclusão social para todos.
Ao longo da narrativa esse espaço no qual se encontra o corpo coletivo vai sofrendo
algumas mudanças, porque as pessoas abastadas se viram obrigadas a frequentarem esse ponto
da cidade esquecido por elas, por causa da greve dos mendigos (os “boroom bàttu”). Assim,
todo o grupo dos mendigos se admira com a quantidade de carros luxuosos que paravam em
frente às suas casas e com a abundância de comida que eles conseguiram.127 Nesse cenário,
podemos entender que os grupos sociais não permaneceram, do começo ao fim, em um único
lugar. Em decorrência da instrumentalização do corpo coletivo houve esse deslocamento do
grupo social de “prestígio” que foi em busca dos mendigos. Da mesma, os pontos estratégicos
na região central da cidade, que antes tinham a presença dos mendigos, se tornaram vazios.
Com isso, compreendemos que o grupo dos mendigos consegue, a partir de sua greve,
fazer com que a região onde moram, esquecida pelos ricos, seja “visitada” por eles. O corpo
coletivo dos mendigos “força” esses cidadãos abastados a experienciar esse espaço social. Ao

127
“ (…) Un jour, Nguirane Sarr, qui maintenant joue de la guitare pour meubler ses trop longs moments de loisirs,
a subitement interrompu son récital et a dit à ses confrères:
- Il se passe sûrement quelque chose en politique! Cette effervescence, ces voitures de luxe qui défilent ici à
longueur de journée, ces béliers bien encornés ... Ça ne peut être qu’à cause de la politique.
- Non, la radio l’aurait dit... La radio n’a pas parlé d’élection” ... ((...) “Um dia, Nguirane Sarr, que agora toca
violão para preencher seus longos momentos de lazer, interrompeu subitamente seu recital e disse aos colegas:
- Certamente algo está acontecendo na política! Essa efervescência, esses carros de luxo que desfilam aqui o dia
todo, esses carneiros bem chifrados... Só pode ser por causa da política.
- Não, o rádio teria dito isso... O rádio não falou sobre eleição...”).
107

fazer isso, o grupo consegue trazer os afortunados, que não queriam os mendigos na região
central, para o seu lar e lugar de identificação, mudando, consequentemente, a dinâmica até
então estabelecida dos papeis socias: ao invés do corpo coletivo dos mendigos ir às ruas centrais
da cidade pedir esmolas, agora são os afortunados que vão até o bairro dos mendigos. Essa é
mais uma das conquistas do grupo de mendigos que consegue, mesmo nessa relação de dar e
receber, quebrar a rigidez dos papeis sociais. Em outras palavras, o grupo consegue levar o
bairro dos mendigos ao centro do espaço narrativo do romance de Fall.
Em consonância com os apontamentos acima, consideramos que o bairro é onde “a
projeção dos conflitos vividos pelos personagens” (GANCHO, 2006, p. 28) se eleva; mais
especificamente, o pátio da casa de Salla, torna-se o local no qual ocorre o clímax da narrativa.
Podemos, assim, compreender esse espaço físico como um desencadeador de um ambiente
psicológico na composição das personagens, na medida em que esse espaço social influencia
na forma como as personagens agem, os ideais e valores que defendem.128 Assim, é nesse
espaço social que eles se constituíram como um único corpo coletivo e que adquiriram a
consciência social para lutar contra as autoridades.
Passaremos, agora, ao último espaço de que gostaríamos de tratar: o espaço físico da
Cidade, não nomeada mas escrita com letras maíusculas, la Ville (“a Cidade”), desde a primeira
página do romance. Afinal, esse espaço juntamente com os espaços onde moram os mendigos
são os mais citados dentro da narrativa. Lemos, nos excertos acima, que a Cidade tem
comércios: hotéis e cassinos, tudo isso para receber os turistas endinheirados: “É por isso que
construímos hotéis, vilas e cassinos para acomodá-los (turistas)” (FALL, 2001, p. 39).129 Além
disso, a cidade conta com hospitais, mesquitas, mercados, como acompanhamos: “Ils ont
ensuite fait le tour des trois hôpitaux que compte la Ville; puis ils ont visité chacune des
innombrables mosquées; ils ont fait toutes les places et tous les points stratégiques des
mendiants, mais ceux-ci ne sont pas allés au rendez-vous” (“Eles então passaram pelos três
hospitais da cidade; depois foram a cada uma das inúmeras mesquitas; passaram em revista a
todos os lugares e todos os pontos estratégicos dos mendigos, mas eles não estavam lá”, FALL,
2001, p. 164). Essa cidade descrita no romance representa tudo aquilo que se espera de uma
grande capital.
Das sessenta e oito vezes que o substantivo “Ville” aparece na obra, em sessenta e seis
delas ele aparece com letra maiúscula, como se fosse um substantivo próprio. Consideramos,

128
“espaço social, enquanto sistema de valores, projeta-se na psicologia das personagens formando em seus
cérebros, simbolicamente, um espaço”(ABDALLA JUNIOR, 1995, p. 49).
129
“(…) C'est pourquoi nous avons construit des hôtels, des villages, des casinos pour les accueillir”.
108

assim, que a Cidade seja personificada na narrativa. Observaremos como isso ocorre. Prestemos
atenção nos seguintes excertos, além dos apresentados acima: “(...) ces gens là qui empestent
l'odeur de la Ville” (“essas pessoas que empesteiam o cheiro da Cidade”, FALL, 2001, p. 33).
Para Kéba, o grupo de mendigos traz mau cheiro para a cidade; por extensão de sentido, a
mendicância é para ele algo negativo e até mesmo repulsivo. No começo da narrativa apresenta-
se um outro exemplo de um pensamento de Kéba: “La Ville demande à être nettoyée de ces
éléments” (“A cidade pede para ser limpa desses elementos”, FALL, 2001, p. 11-12). Nesse
trecho, é como se a Cidade tivesse o ponto de vista de Kéba. Ou seja, o desejo de Kéba, que é
o mesmo dos organismos de poder, seria, por extensão de sentido, também o desejo da própria
Cidade. Nesses excertos que mostram o ponto de vista de Kéba, observamos que ele cria um
“conflito” (GANCHO, 2006, p. 28-29) entre as personagens do grupo dos mendigos e os
espaços da Cidade. Kéba, ao trazer o seu ponto de vista sobre os mendigos para ser também o
ponto de vista da Cidade, reforça a oposição do “nós” contra “eles”, criando, assim, práticas
violentas realizadas pela Cidade – que são, na verdade, as práticas do órgão de salubridade –
contra os mendigos. Além disso, outra possível interpretação, a partir da fala de Kéba, é
compreender a Cidade como sendo vítima dos mendigos. Uma vez que, por meio do ponto de
vista de Kéba, o corpo coletivo dos mendigos seria o agressor: aquele que deteriora esse espaço
social, sendo a atitude tomada por pelo setor de salubridade, na perspectiva de Kéba, uma forma
de salvar a Cidade desses agressores.
Acompanhemos mais um trecho, agora uma conversa entre Birama e Mour: (Birama)
“Céy yalla! La Ville est en train de vous déshumaniser, d'endurcir vos coeurs au point que vous
n’ayez plus pitié des faibles” (“- Céy yalla! A Cidade está desumanizando vocês, endurecendo
seus corações a ponto de vocês não terem mais pena dos fracos”, FALL, 2001, p. 38).
Recapitulando, nesse trecho, Birama apresenta uma visão diferente da apresentada por Mour
em relação aos mendigos, indo contra a retirada desse grupo da cidade. Vale ressaltar que
Birama está pensando na instrumentalização desses indivíduos por meio da religião. Esse
segundo ponto de vista de Birama, que mora em uma região rural, tem a perspectiva de que a
Cidade desumaniza o ser humano. A forma com que Mour age é um sintoma dessa
desumanização. Assim, Birama atribui à Cidade o poder de influenciar negativamente os
valores daqueles que nela residem.
Assim, diferentemente de Kéba, Birama acredita que é a Cidade que se configura como
um perigo para quem vive nela, por isso identifica nela uma característica negativa. Essas
características são as mesmas que encontramos na classe social que se opõe aos mendigos e que
os desumaniza. Desse modo, em ambos os casos, se atribui à Cidade características e desejos
109

humanos. Logo, a persona da Cidade se torna subjetiva, pois, é a partir do olhar daquele que a
enxerga, que a Cidade ganha suas características.
Lemos, por fim, a seguinte descrição do narrador: “Lorsque le réveil de la Ville
s'annonce par des fenêtres qui s'ouvrent brusquement à l'air du matin et par le ronflement
continu des voitures, ils regagnent discrètement la cour de Salla” (“Quando o despertar da
Cidade é anunciado pelas janelas que se abrem repentinamente para o ar da manhã e pelo
zumbido contínuo dos carros, eles [os mendigos] retornam silenciosamente ao pátio de Salla”,
FALL, 2001, p. 70). Podemos observar que quem desperta é a Cidade e que ela é personificada:
as janelas representam uma metáfora dos olhos que se abrem para um novo dia. Notamos que
esse terceiro ponto de vista do narrador não apresenta um julgamento de valor tão explícito
acerca dos mendigos, mas há uma afirmação da existência deles em sincronia com a Cidade: os
raios solares que despertam a Cidade, despertam também o grupo dos mendigos que acorda
para um novo dia. Desse modo, temos, apresentados nos excertos, ao menos três pontos de vista
distintos sobre a Cidade.
Isso posto, observamos como os espaços construídos na narrativa denotam o lugar ao
qual pertencem os corpos. Nota-se que a classe abastada da sociedade se vincula aos espaços
que têm características de um estilo de vida ocidental. Nesses espaços, os mendigos não são
bem aceitos. Pelo contrário, neles o corpo coletivo dos mendigos sofre preconceitos e é vítima
de violências. Vislumbramos, do mesmo modo, como a greve dos mendigos desencadeou a
mudança na utilização dos espaços sociais, trazendo, assim, o espaço considerado como de
menor valor social para o centro dos eventos narrativos. Percebemos, da mesma forma, que o
confronto entre a Cidade e o corpo coletivo dos mendigos ocorre quando analisamos o ponto
de vista daqueles que falam em nome da Cidade e que transferem a ela os seus próprios desejos.
Ao contrário disso, o olhar do narrador, ao utilizar a mesma metáfora para a Cidade e para o
espaço social no qual o grupo dos mendigos habita, afirma a presença desse grupo em
sociedade. Ao afirmar a presença do corpo coletivo dos mendigos, esse ponto de vista traz
humanidade, tanto para o espaço quanto para o grupo de mendigos que o ocupa.
A partir de todos esses elementos mencionados, constatamos que, apesar desses espaços
terem sidos construídos para distinguir as personagens que fazem parte de cada um deles, o
corpo coletivo dos mendigos consegue manobrar essa segregação social construindo, em seu
próprio espaço social, um novo funcionamento que visa ao bem-estar do grupo.

4.5 O francês e o uolofe como diferenciadores dos corpos


110

4.5.1 Discurso direto, indireto, indireto livre

Ao longo dos excertos apresentados foi possível perceber alguns dos estilos de discurso
na narrativa. Acreditamos que a escolha dos discursos utilizados também contribui para trazer
uma espécie de hierarquização e distinção entre os corpos na narrativa.
A mudança do discurso pode acontecer de três formas: direta, indireta ou indireta livre.
O discurso direto pode ser entendido como a fala da personagem sem auxílio do narrador. Isso
acontece regularmente ao longo da narrativa de La grève des bàttu. Apresentaremos um
exemplo:

Salla Niang dès le début de la réunion:


- Gaa ni am na lu xew - quelque chose est arrivé. Êtes-vous au courant ?
- Qu’est-il arrivé?
- Lu xew waay?
- Mbaa jamm la?
- Madiabel, répond Salla, a eu un accident.
- Asbunalla! Céy waay!
- Comment est-ce arrivé?
– Où a-t-il eu l'accident?
- Mbaa deewul?
- Céy waay! (FALL, 2001, p. 27)

Salla Niang desde o início da reunião:


- Gaa ni am na lu xew - algo aconteceu. Vocês estão sabem?
- O que aconteceu?
- Lu xew waay?
- Mbaa jamm la?
- Madiabel, responde Salla, sofreu um acidente.
- Asbunalla! Céy waay!
- Como isso aconteceu?
- Onde foi o acidente?
- Mbaa deewul?
- Céy waay!

Gancho (2006) postula que os dois pontos e o travessão são marcas características do
discurso direto. Ademais, o discurso direto traz exatamente a forma como as personagens falam.
No excerto acima, temos um discurso direto que reproduz o diálogo entre as personagens da
esfera dos mendigos. Nota-se que entre o corpo coletivo dos mendigos utiliza-se o uolofe em
sua expressão oral, algo que não acontece no discurso do narrador, e nem nas falas das
personagens da classe de poder. Por exemplo:

Sagar n’arrivera jamais à s’expliquer les motivations de Kéba.


- (..) Ils sont pauvres; n'aurais-tu pas pitié des pauvres?
- (…) Tu te trompes, Sagar, tu ne vois jamais rien! Tu ne discernes jamais rien! (…)
La pauvreté n’a jamais incité les gens à mendier, car elle n’exclut ni le respect de soi
ni la dignité! Je te l’ai répété dix mille fois! (FALL, 2001, p. 83).

Sagar nunca será capaz de entender as motivações de Kéba.


111

- (...) Eles são pobres; você não teria pena dos pobres?
- (...) Você se enganada, Sagar, você nunca vê nada! Você nunca discerne nada (...) A
pobreza nunca incitou as pessoas a mendigar, porque ela não exclui nem o respeito de
si nem a dignidade! Eu já repeti isso para você mil vezes!

Nessa conversa de trabalho entre Sagar e Kéba, e em muitas outras ao longo da narrativa,
no que concerne ao âmbito do serviço de salubridade, não há a utilização do uolofe. Embora o
uolofe seja mais comum no grupo dos mendigos, ele aparece vez ou outra, mesmo que de modo
reduzido, em diálogos que correspondem às personagens que estão na classe privilegiada.
Observaremos uma conversa entre Lolli com sua filha Raabi (esposa e filha de Mour):

Un jour, pourtant, voyant l'extrême lassitude de son père, elle a demandé à Lolli :
- Pourquoi mon père est-il si agité ? Est-ce à cause de la rumeur publique qui l'a déjà
désigné comme vice-président de la République?
- Sa baay dé natoo ko dal; il est victime d'un coup du sort. Mais c'est bon. Ces coups
du sort sont des épreuves auxquelles le Créateur soumet ses esclaves pour tester leur
degré de fidélité et de croyance ... Après, ce sera le bonheur. (FALL, 2001, p. 134)

Um dia, porém, vendo o cansaço extremo de seu pai, ela perguntou a Lolli:
- Por que meu pai está tão inquieto? É por causa dos boatos que ocorrem e já o
designaram como Vice-Presidente da República?
- Sa baay de natoo ko dal; ele é vítima de um golpe do destino. Mas isso é bom, esses
golpes do destino são testes aos quais o Criador submete seus escravos para testar seu
grau de fidelidade e crença... Depois, será a felicidade.

Temos aqui a interjeição de Lolli “Sa baay dé natoo ko dal”, com a sequência de sua
fala em francês. Ao proferir as palavras em uolofe, Lolli, uma mulher da esfera de prestígio,
casada com o diretor de serviço de salubridade, pode ser assemelhada ao grupo dos mendigos.
Isso porque ao considerarmos que a linguagem empregada pelo grupo de mendigos os
diferencia dos corpos dos homens de poder, Lolli pode ser vista, assim como os mendigos,
como pertencente a um grupo que sofre uma marginalização. De certa forma, do mesmo modo
que o corpo coletivo dos mendigos, Lolli também é invisibilizada pelo seu marido, Mour.
Acompanharemos, no trecho abaixo, como o narrador onisciente intruso tem acesso aos
pensamentos das personagens que são transcritos de forma indireta livre. O discurso indireto
livre que é uma espécie de junção dos dois discursos, direto e indireto:

É um registro de fala ou de pensamento de personagem, que consiste num meio-termo


entre o discurso direto e o indireto, porque apresenta expressões típicas do
personagem, mas também a mediação do narrador. Características do discurso
indireto livre 1. Geralmente é usado para transcrever pensamentos. 2. Mantém as
expressões peculiares do personagem (por exemplo, “droga!”) e a correspondente
pontuação: interrogação, exclamação. 3. Não apresenta o “que” e o ‘‘se”, típicos do
discurso indireto. 4. Não apresenta geralmente verbo de elocução (...)” (GANCHO,
2006, p. 43).
112

Compreendermos que o narrador do discurso indireto livre seja um narrador intruso,


porque ele, ao selecionar o que irá mostrar, quais pensamentos das personagens irá apresentar,
acaba contribuindo com a formação de um juízo de valor acerca das personagens.
Lemos: “Huit jours après ... Est-il convenable qu'une banale pénurie de mendiants me
fasse rater le destin national que je suis appelé à jouer? Un taureau, vingt et un mètres de tissu,
sept cents noix de kola, voilà de quoi faire un festin inoubliable” (“Oito dias depois... É
apropriado que uma banal penúria de mendigos me faça estragar o destino nacional do qual sou
chamado a participar? Um touro, vinte e um metros de tecido, setecentas nozes de cola, é o
suficiente para fazer um banquete inesquecível”, FALL, 2001, p. 138). Esse pensamento de
Mour vem acompanhado de aspas para indicar que se trata de um pensamento da personagem
que está sendo transmitido exatamente da forma como ela pensou, indicando também que está
sendo transcrito pelo narrador. No pensamento de Mour, a concepção redutora que ele tem do
grupo de mendigos, assim como o seu caráter autocentrado (preocupado com o seu próprio
interesse), é aparente. Temos, assim, a forma de falar da personagem Mour representada
também em seus pensamentos. Textualmente, dispomos da marca do discurso direto com o
pronome “me”, que se refere a Mour, que fala na primeira pessoa. Observaremos outro
pensamento de Mour:

“Huit jours après ... Et ils sont là, devant moi, d'eux dépend aujourd'hui mon destin ...
Mais cet aveugle, quel entêtement, alors ! ... Dieu fait bien les choses, Lui seul sait
pourquoi Il a ordonné le monde comme Il l'a fait ... Car cet aveugle, s'il avait les yeux
ouverts, aurait été un phénomène ! …” (FALL, 2001, p. 146)

“Oito dias depois... E eles estão ali, na minha frente, deles depende hoje meu destino...
Mas esse cego, que teimosia! ... Deus faz bem as coisas, só Ele sabe por que ordenou
o mundo desse jeito... Porque esse cego, se tivesse os olhos abertos, teria sido um
fenômeno! …”

O narrador apresenta uma “visão por trás”130 ao acompanhar e destacar esse pensamento
da personagem. Percebemos que há a opinião de Mour sobre Nguirane que releva a falta de
respeito que Mour tem pelo mendigo. O narrador apresenta exatamente esse pensamento de
Mour, e as aspas denotam isso. Além de ter acesso aos pensamentos de Mour, o narrador
também tem acesso ao de Nguirane Niang: “Niang est arrivée à la conclusion que ‘y a des
souffrances qu'on ne doit pas infliger à un être humain’” (“Niang chegou à conclusão de que
‘há sofrimentos que não devem ser infligidos a um ser humano’”) (FALL, 2001, p. 48). Entre

130
“Na VISÃO POR TRÁS, O narrador domina todo um saber sobre a vida da personagem e sobre o seu destino.
É onisciente, poderíamos dizer. Sabe de onde parte e para onde se dirige, na narração, o que pensam, fazem e
dizem as personagens; uma espécie de Deus, ou demiurgo que lhes tolhe a liberdade” (LEITE, 2002, p. 19, marcas
da autora).
113

aspas está o pensamento de Niang que o narrador apresenta à medida que está narrando os
acontecimentos.
Por meio destes excertos observamos que os pensamentos das personagens são
apresentados em discurso indireto livre, já que eles vêm acompanhados de aspas e com a forma
característica de falar de cada uma das personagens que se manifesta, igualmente, em seus
pensamentos. Esses pensamentos em discurso indireto livre concatenam elementos do discurso
direto, de modo que na transmissão da mensagem não há mudança de linguagem, ou seja, a
forma como a personagem se expressa é apresentada também em seu pensamento, assim como
contém elementos do discurso indireto na medida em que os pensamentos das personagens são
transmitidos tendo como mediador o narrador. Por nos dar acesso ao pensamento das
personagens, esses discursos indiretos livres nos levam a conhecer mais sobre cada uma
delas.131 Por exemplo, quando Mour diz: “Deus faz bem as coisas, só Ele sabe por que ordenou
o mundo desse jeito... Porque esse cego, se tivesse os olhos abertos, teria sido um fenômeno!”.
O comum é que se tenha uma visão negativa sobre a personagem Mour, afinal ele acaba de
zombar, de forma capacitista, de um indivíduo. Ao contrário disso, o discurso indireto livre de
Nguirane nesse trecho: ‘há sofrimentos que não devem ser infligidos a um ser humano’, faz
com que o leitor crie empatia por essa personagem que, por extensão de sentido, faz parte do
corpo coletivo dos mendigos, fazendo com que nos sensibilizemos e nos compadeçamos pela
causa de todos aqueles que vivem às margens da sociedade, que têm de lutar para garantir o
mínimo de dignidade humana. Deste modo, o discurso indireto livre que se refere a uma
personagem pode humanizá-la ou desumanizá-la, pois esse discurso revela algo que é íntimo,
latente na personagem. No caso de Mour o acesso aos seus pensamentos, por meio desse
recurso, contribui para que a sua caracterização seja percebida pelo leitor cada vez mais como
desumana e sem compaixão. Se Mour pode ser visibilizado na sociedade por seu alto cargo, os
seus pensamentos o tornam um ser desumano aos olhos dos leitores. Dito de outro modo, as
ações de Mour e seus pensamentos revelam seu caráter. No caso de Nguirane, o discurso o
humaniza, o mostra consciente das mazelas sociais e ao ler seus pensamentos temos mais
empatia pelo corpo coletivo dos mendigos.
Em consonância com essa nossa perspectiva de que o narrador seleciona esses discursos
e por isso ele pode ser considerado como um narrador intruso, analisando a narrativa de Fall,
Cabakulu e Camara trazem que:

131
É relevante mencionar que, apesar de grande parte dos pensamentos das personagens serem apresentados com
aspas, é possível encontrar na narrativa pensamentos que são transmitidos sem as aspas, por isso é essencial se
atentar a esses discursos.
114

O narrador muda de ponto de vista e, a fim de assumir o papel de um antropólogo


objetivo, ele simpatiza com o grupo de mendigos ao invés de ter esta visão
deformadora dos citadinos que só vêm esses portadores de cumbuca como sendo nada
menos que “dejetos humanos”. Aminata Sow Fall, como Victor Hugo em Nossa
Senhora de Paris, se faz defensor dos abandonados à própria sorte (2002, p. 76).132

Desse modo, além do tipo de discurso utilizado auxiliar na percepção que se constrói
acerca das personagens, os discursos selecionados pelo narrador, o seu ponto de vista,
contribuem para reforçar a visão que ele quer defender e fortalecer. Por isso acreditamos que
ele seja um narrador intruso, pois não há neutralidade nas escolhas realizadas.
Ademais, a presença do uolofe pode ser lida como um elemento que busca, em um
primeiro momento, desprestigiar os indivíduos em situação de rua e todos aqueles que utilizam
essa língua local, em oposição ao francês que corresponde à língua da elite desse país e que é
um meio de dar prestígio social para aqueles que se valem dela. Veremos, abaixo, se essa
perspectiva se mantém ou se o uolofe na narrativa é empregado para outros fins.

4.5.2 Oralidade em La grève des bàttu

Na narrativa, como observamos, o uolofe se faz presente e podemos considerá-lo como


um elemento de distinção entre os corpos dentro da obra, uma vez que ele aparece sobremaneira
no núcleo do grupo dos mendigos. A escolha do uolofe, para além disso, se constitui como um
elemento estilístico da obra de Aminata Sow Fall que se relaciona à sua tradição oral. A partir
dos estudos acerca da obra de Fall (CABAKULU; CAMARA, 2002 ; GUÈYE, 2005)
constatamos que ao utilizar o uolofe em sua narrativa ela o emprega em sua “linguagem da
criação” (GUÈYE, 2005, p. 31), sendo um traço característico em sua produção literária que a
distingue de outras produções senegalesas, por exemplo. Mostraremos como essa linguagem se
apresenta na narrativa.
A sociedade senegalesa, como acompanhamos no capítulo sobre o contexto linguístico
no Senegal, é plurilinguística. No romance, observa-se, assim, não somente palavras em uofole,
como vemos também algumas interjeições em árabe. Tais palavras, em uolof ou em arabe, são
empregadas pela comunidade de mendigos. Por exemplo, em árabe temos algumas expressões,
como Inch’Allah (FALL, 2001, p. 52), que aparece regularmente na narrativa e que não vêm

132
“(…) le narrateur change de point de vue et, afin de faire oeuvre d’ethnologue objectif, il sympathise avec le
groupe des mendiants au lieu d’avoir cette vision déformante des citadins qui ne voient en ces porteurs de bàttu
rien moins que des ‘déchets humains’. Aminata Sow Fall, comme Victor Hugo dans Notre Dame de Paris, se fait
le défenseur des laissés-pour-compte”.
115

acompanhadas de nota de rodapé com a tradução, como é comum no romance. Feutrel a traduz
como “Dieu le veut” (“Se Deus quiser”, FEUTREL, 2019, p. 13). Essa expressão se conecta ao
universo religioso da sociedade senegalesa e aparece frequentemente na narrativa – já vimos
como o tema da religião é constitutivo no romance.
Além dessa interjeição, temos algumas formas típicas de cumprimento, em uolofe, que
aparecem no romance, sem tradução: Sokhna Lolli, Badiane, Badiane (FALL, 2001, p. 16);
Mba jamm ngéén am (FALL, 2001, p. 141); Tabarak Allah (FALL, 2001, p. 140), e que podem
ser compreendidas pelo contexto. Percebemos que apesar de Mour não se servir do uolofe em
suas relações pessoais e profissionais, ao falar com o grupo dos mendigos e com o seu marabu
Birama, ele o utiliza em alguns momentos. Vemos no diálogo de Mour com Salla: “(Mour) -
Mba jamm ngéén am? Avez-vous la paix?; (Salla) - Tabarak Allah! Nous rendons grâce à
Dieu!” (FALL, 2001, p. 140). Em uma conversa com Birama: (Mour) “- Serigne, il ne s’agit
pas de cela. Comment vais-je t’expliquer cela?... Voilà: maintenant les gens qui habitent loin,
waa bitim rééw133, les toubabs134 surtout, commencent à s’intéresser à la beauté de notre pays,
ce sont des touristes” ((Mour) (...)“ - Serigne, não é isso. Como vou te explicar isso? ... É o
seguinte: agora as pessoas que moram longe, waa bitim rééw, principalmente os europeus, estão
começando a se interessar pela beleza do nosso país, são turistas”, FALL, 2001, p. 38-39).
Compreendemos, desse modo, que Mour só utiliza palavras da língua oral nessa esfera,
considerada como de menor prestígio, para tentar se aproximar das pessoas que dela fazem
parte. Birama, por exemplo, não sabe ler e nem escrever na língua oficial do país: “Ne sachant
ni lire ni écrire dans la langue officielle, il était incapable de s'orienter dans le dédale des rues”
(“não sabendo nem ler em escrever na língua oficial, ele [Birama] era incapaz de se orientar no
labirinto das ruas”, FALL, 2001, p. 19). Isso mostra que os usos do francês ou do uolofe (e de
locuções em árabe, como vimos), em La grève des bàttu, são formas de hierarquizar os corpos
das personagens na sociedade que ele descreve.
Aminata Sow Fall apresenta um pouco do contexto social e cultural ao qual corresponde
a utilização dessas palavras, em uolofe ou em árabe, como evidência Maclachlan:

Podemos notar que essas expressões contribuem para dar autenticidade cultural aos
encontros descritos. Em África, e particularmente no Senegal, dá-se grande
importância aos cumprimentos que muitas vezes duram pouco tempo porque é

133
Para recapitular, essa expressão vem acompanhada de uma nota de rodapé: “Ceux de l’Europe et des États-
Unis” (“Aqueles da Europa e dos Estados Unidos”).
134
“En Afrique noire, nom donné aux Européens, aux Blancs ; Africain ayant adopté le mode de vie européen”.
https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/toubab/78618. Acesso: 25 abr. 2023.
116

necessário, por educação, incluir perguntas sobre a saúde, família e trabalho do orador
antes de passar para outros assuntos (MACLACHLAN, 2017, p. 15).135

Mour, que quer seguir as tendências da sociedade moderna, mas que ainda está atrelado
às questões de ordem social, sabe que essa forma de cumprimento é típica dessa esfera e por
isso não abre mãos de vale-se desse elemento cultural para causar uma boa impressão. Ademais,
como estudado, a língua francesa, língua do ex-colonizador, é a marca de uma população mais
abastada. Fall nos mostra esse elemento, que é presente na vida social, em seu romance. A falta
de acesso à língua oficial do país caracteriza o corpo coletivo dos mendigos e outras
comunidades, como as de Birama e Keur Gallo, que sofrem com o afastamento social da cidade
principal e que introduzem na língua oficial as marcas de sua língua materna. Mesmo o uolofe
sendo a língua de comunicação da grande maioria da sociedade, ela não tem o mesmo prestígio
social, como vimos.
A escolha de Mour pela sua segunda esposa, Sine, tem relação com o domínio que ela
tem da língua oficial do país: “Il avait été séduit par sa spontanéité, par sa jeunesse et surtout
par l'aisance avec laquelle elle s'exprimait dans la langue officielle, où lui-même, Mour, avait
encore quelques difficultés” (“Ele tinha sido seduzido pela sua espontaneidade, pela sua
juventude e sobretudo pela facilidade com a qual ela se exprimia na língua oficial, onde ele
mesmo, Mour, tinha ainda algumas dificuldade”, FALL, 2001, p. 63). Podemos entender essa
admiração de Mour como sendo equivalente a seu próprio desejo de se comunicar bem em
francês. Lolli, a primeira esposa de Mour, como vimos acima, emprega o uolofe, sua língua
materna, e esse elemento contribui para que Mour não a considere tão digna ou tão admirável
quanto Sine.
Mour, para se tornar o vice-presidente da república, nessa sociedade, precisa dominar a
língua do ex-colonizador. Muitos dos ministros que fazem parte da esfera de poder o
consideram como um indivíduo não qualificado para o cargo:

Chaque fois que l’occasion s’en présente, au cours des réceptions, des meetings
politiques, des réunions de comités de sections, il se plaît à rappeler que Mour est un
à homme qui a certes le sens de la politique, au sens folklorique du terme; que pour
cela il a l’art de mobiliser les masses; mais qu’il n’a aucune formation qui lui permette
de prétendre diriger un gouvernement. ‘Lui qui ne sait même pas s’exprimer
correctement dans la langue officielle du Pays, comment pourrait-il assumer cette
fonction?’. Aux nombreuses questions du ministre aigri, certains répondaient
ironiquement: Et les ‘conseillers techniques, à quoi servent-ils?’ (FALL, 2001, p. 98).

135
“ Nous pouvons noter que ces expressions participent à donner une authenticité culturelle aux rencontres
décrites. En Afrique, et notamment au Sénégal, on porte en effet une grande importance aux salutations qui durent
souvent un petit moment car il faut, par politesse, inclure des questions sur la santé, la famille et le travail du
locuteur avant de passer à d’autres sujets”.
117

Cada vez que surge a oportunidade, em recepções, reuniões políticas, reuniões de


comitês de seções, ele gosta de lembrar que Mour é um homem que certamente tem
tino para a política, no sentido folclórico do termo; que para isso tem a arte de
mobilizar as massas; mas que ele não tem formação que lhe permita dirigir um
governo. ‘Ele, que sequer sabe se expressar corretamente na língua oficial do país,
como poderia assumir essa função?’. Às muitas perguntas do amargurado ministro,
alguns respondiam com ironia: E os ‘conselheiros técnicos, para que servem?’.

Nesse trecho, os representantes do âmbito político diminuem a figura de Mour como


candidato ao cargo de vice-presidente, afinal sem uma formação e sem saber “se expressar
corretamente” na língua oficial, como ele seria um bom político?! Mour ainda é visto, por uma
parte dessa elite, como sendo inferior. Isso é interessante pois evidencia que, nesta estrutura
social, Mour, aquele que maltrata o corpo coletivo de mendigos, na esfera de poder também é
vítima desse sistema. Como Mour não nasceu em berço de ouro, mesmo tendo conseguido
ascender socialmente, nunca foi considerado como um igual por essas pessoas que sempre
foram abastadas e que tiveram acesso aos melhores sistemas de educação. Assim, podemos
compreender que mesmo Mour, e igualmente Lolli, não querendo se vincular a sua
ancestralidade, a língua denuncia a origem de onde ele provém. A linguagem está na construção
de nossa origem enquanto sujeitos. Nesse sentido, Mour não consegue apagar sua língua
materna, como apagou todo o seu passado.
Dando prosseguimento, contemplamos, no próprio título da obra, um vocábulo
vinculado à oralidade que indica um elemento que se refere ao universo cultural de Fall: “bàttu”,
na língua materna da autora, e “La grève”, escrito em língua europeia. O vocábulo bàttu, em
uolofe, provoca curiosidade no leitor que lê o romance. Em uma nota de rodapé lemos uma
explicação sobre o termo “borrom bàttu”: “Les mendiants. Ils tendent, pour demander
l'aumône, le bàttu, qui est une petite calebasse” (“Os mendigos. Eles estendem, para pedir
esmola, o bàttu, que é uma pequena cambuca”, FALL, 2001, p. 24). O subtítulo, Les déchets
humains, em francês, não dá conta de traduzir todo o significado que engloba a palavra bàttu,
que se refere a um código específico da sociedade senegalesa. A nota associa mendigo a bàttu
mas, se traduzirmos La grève des bàttu por “A greve dos mendigos”, perdemos a metonímia
que estende o sentido de um objeto para um ser humano. Podemos compreender que a palavra
bàtttu, para a sociedade francófona simboliza o desconhecido, em oposição a língua conhecida
(o francês) que acompanha o vócabulo. Ao usar a palavra em uolofe, Fall traz uma
particularidade de seu meio que pode causar estranhamento para não-senegaleses. Como
dissemos no início desse trabalho, interpretamos bàttu como metonímia, ou seja, é um termo
que está sendo empregado para se referir ao grupo daqueles que vivem em situação de rua e
que usam a cumbuca para mendiga.
118

O texto de Aminata Sow Fall é, além disso, muito transparente. O título, pelo seu
carácter insólito, ressoa como um grito a favor dos mendigos (metonimicamente,
portanto, enigmaticamente designados pelas suas cumbucas (bàttu na língua uolofe)
mas também como um chamado à revolta. Esta dupla vontade traduz-se também pela
estrutura antitética do romance (a caça aos mendigos/o pátio dos mendigos)
obviamente irónica contra o mundo burguês mas sobretudo arauto de um triunfo dos
oprimidos (CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 109).136

A utilização do uolofe dá potência ao grupo e fomenta o embate narrativo em favor do


corpo coletivo dos mendigos. Do mesmo modo que ocorre com o vocábulo acima, mostraremos
exemplos de mais vocábulos que aparecem no romance e estão conectados ao universo oral da
autora.
Em uma conversa do corpo coletivo dos mendigos, lemos: “Apprenez à dire la vérité!
Dans quel quartier de la Ville le premier geste matinal n'est-il pas de donner la charité? Même
dans les quartiers de toubabs” (“Aprendam a dizer a verdade! Em qual bairro da Cidade o
primeiro gesto matinal não é de fazer caridade? Mesmo nos bairros dos europeus”, FALL, 2001,
p. 24). O substantivo em negrito, toubabs, não teria um significado tão eloquente caso fosse
utilizado seu correspondente na língua francesa, pois ele não traria a referência senegalesa, ou
seja, o modo como os senegaleses designam os europeus. Além disso, concordamos com Feutrel
quando ela diz que “le wolof semble être utilisé pour ne pas perdre le vrai sens ou la nuance
recherchée d’un mot” (“o uolofe parece ser utilizado para não perder o verdadeiro sentido ou
nuance pretendida de uma palavra”, FALL, 2001, p. 11). Ao utilizar essa palavra, que é
carregada de um significado social, de como se denomina os ex-colonizadores, e outros
europeus, acreditamos que ela fomenta a oposição entre as classes e reforça a luta do corpo
coletivo dos mendigos.
Na narrativa, apresenta-se também palavras em uolofe que se relacionam a elementos
típicos da cultura senegalesa como vestimentas e comidas. Temos um trecho da descrição de
Birama e de suas roupas:

Pendant que Serigne Birama marchait tête baissée à côté de Mour, celui-ci observait
son homme: grand, mince, de teint clair, coiffé d'un chapeau de paille et vêtu d'un
caftan blanc à larges manches sous lequel on devinait un turki teint à l’indigo; il
paraissait avoir beaucoup plus que ses trente hivernages, tant tout son être dégageait
un air de pureté, de sainteté même, que on ne décèle d’habitude que chez des hommes
ayant déroulé une longue bobine de vie consommée dans le bien et dans les prières
(FALL, 2001, p. 20).

136
“Le texte d’Aminata Sow Fall est, en plus, on ne peut plus transparent. Le titre, par son caractère insolite,
résonne comme un cri de coeur en faveur des mendiants (métonymiquementet, donc, énigmatiquement désignés
par leurs écuelles (bàttu dans la langue wolot) mais aussi comme un appel à la révolte. Cette double volonté est
aussi traduite par la structure antithétique du roman (la chasse aux mendiants/la cour aux mendiants) qui est de
toute évidence ironique à l’encontre du monde bourgeois mais surtout annonciatrice d’un triomphe des opprimés”.
119

Enquanto Serigne Birama caminhava com a cabeça baixa ao lado de Mour, Mour o
observava: alto, magro, de pele clara, com chapéu de palha e vestido com um cafetã
branco de mangas largas sob o qual se distinguia um túnica tingida de índigo; parecia
ter muito mais do que seus trinta invernos, de tanto que todo o seu ser exalava um ar
de pureza, de santidade mesmo, que normalmente se detecta apenas em homens que
desenrolaram um longo carretel de vida consumida no bem e nas orações (FALL,
2001, p. 20).

A palavra turki que aparece em itálico no texto e vem acompanhada da seguinte nota de
rodapé: “Sorte de tunique, qui se porte sous le boubou ou le caftan” (“Tipo de túnica, que é
usada sob o boubou ou o cafetã”). Observamos que seria possível a compreensão do trecho
narrativo mesmo sem a nota de rodapé, contudo, com o auxílio desse paratexto a compreensão
se torna mais efetiva. Consegue-se construir melhor o universo senegalês que Fall nos apresenta
por meio de um tipo de vestimenta bastante utilizada em algumas regiões da África Ocidental.
Além disso, as vestimentas ajudam o leitor a construir a imagem da própria personagem.
Mais um elemento de cultural aparece no excerto abaixo:

Tout ce qu’elle a dit, Salla Niang l’a vu dans sa vie de bonne à tout faire. Elle a vécu
dans des maisons où l’on se gavait jusqu’à n’en plus pouvoir; les restes qui
remplissaient la poubelle pouvaient nourrir dix pauvres, mais on n’appelait jamais les
pauvres; ils sont crasseux, encombrants et ne savent pas se tenir. Seulement, dans ces
mêmes maisons, lorsque le marabout avait recommandé de nourrir pendant trois jours
sept, dix ou douze pauvres de mets succulents, on allait à leur recherche, on les
appelait, on les accueillait, on les cajolait même, et on leur offrait des plats dont ils
n’auraient jamais rêvé; riz au poisson bien gras et bien rouge; riz blanc à la viande
tendre et abondante; baasi salté avec raisins secs, macédoine de légumes, dattes et
pruneaux d’Agen; et, à la fin de chaque repas, de belles et fraîches noix de kola pour
faciliter la digestion (FALL, 2001, p. 74).

Tudo o que Salla Niang disse, ela viu em sua vida de faz-tudo. Ela morou em casas
onde as pessoas se empanturravam até não aguentarem mais; as sobras que enchiam
o cesto do lixo davam para alimentar dez pobres, mas os pobres nunca eram
chamados; são imundos, inconvenientes e não sabem se comportar. Mas, nessas
mesmas casas, quando o marabu tinha recomendado alimentar sete, dez ou doze
pobres com suculentas iguarias durante três dias, iam procurá-los, chamavam-nos,
davam-lhes as boas-vindas, até os bajulavam, e ofereciam-lhes pratos com que nunca
teriam sonhado; arroz com peixe muito gordo e muito vermelho; arroz branco com
carne tenra e abundante; baasi salté com passas secas, macedônia de legumes, tâmaras
e ameixas secas de Agen; e, no final de cada refeição, belas e frescas nozes de cola
para ajudar na digestão.

Em meio à fala indignada de Salla, de como a classe privilegiada é hipócrita e se vale


dos outros em benéfico próprio, temos o itálico nas palavras em uolofe baasi salté, com a
definição da nota de rodapé: “Couscous royal des grandes cérémonies” (“Cuscuz real para
grandes cerimônias”). A partir da definição da palavra é possível tomar conhecimento acerca
dessa iguaria senegalesa. Esse tipo de cuscuz, feito para ocasiões especiais, vem acompanhado
com carne (no geral cordeiro) e legumes.
120

Observemos mais uma palavra em uolofe: “Salla, garde-moi le dernier baraada-ic”. Na


nota de rodapé apresenta o seguinte significado théière137 (FALL, 2001, p. 51) que pode ser
traduzido por “bule de chá” (“Salla, guarde para mim o último bule de chá”). Ao analisar essa
palavra na narrativa de Fall, Feutrel diz que:

Na verdade, o chá tem uma grande importância na cultura senegalesa. Ataya 138, um
chá de menta doce, é essencial para a conversa e é comparável a um aperitivo na
França. Faz parte do conceito de hospitalidade pelo qual os senegaleses são
conhecidos, o famoso téranga. Beber chá oferece uma oportunidade amigável de se
verem, discutirem e conversarem. Com a ajuda do chá criamos novos contatos e
conhecemos novas pessoas (2019, p. 16).139

Nesses dois trechos acima apresenta-se elementos da cultura que se refere a alimentos
que são presentes nessa sociedade. O chá, nesse caso, é uma forma de recepcionar, de criar
relações de um modo cortês. A personagem Nguirane, que é o músico, nesse sentido de
convivialidade, canta para alegrar sua vida e a de seus companheiros.

Nguirane reprend sa guitare, ajuste bien ses lunettes et demande à toute l'assistance
de chanter avec lui:
Salla, fais cuire le couscous
Du bon baasi salté
Manioc, ñebbé140 et courge
Baasi salté kajor141
Baasi salté jolof
Gras de diwu nor142
Rouge de tomate
Baasi salté buur143 (FALL, 2001, p. 111).

Nguirane pega seu violão, ajusta bem seus óculos e pedi a todos a ajuda para cantarem
com ele:
Salla, cozinha o cuscuz
Um bom baasi salté
Mandioca, ñebbé [arroz] e abóbora
Baasi salté kajor
Baasi salté jolof
Gordura de diwu nor [manteiga]
Molho de tomate
Baasi salté buur [Cuscuz digno de um rei].

137
“Récipient à couvercle, muni d’une anse et d’un bec verseur, que l’on utilise pour faire infuser le thé et pour le
servir”. Disponivel em : https://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/th%C3%A9i%C3%A8re/77690. Acesso
em: 21.jun.2023.
138
Mais informações sobre a Ataya, a cerimônia do chá, e sobre o seu modo de preparo, disponível em:
https://cuisinedimundo.home.blog/2019/04/11/ataya-the-senegalais/. Acesso:10 jul. 2023.
139
“En effet le thé a une grande importance dans la culture sénégalaise. L’ataya, un thé à la menthe sucré, est
indispensable pour la palabre et comparable à l’apéritif en France. Il fait partie du concept d’hospitalité pour lequel
sont connus les Sénégalais, la fameuse téranga. Boire du thé donne une occasion conviviale pour se voir, discuter,
et palabrer. Avec l’aide du thé on crée des nouveaux contacts et on fait des rencontres”.
140
Nota de roda pé no romance “Haricots” (“arroz”).
141
Nota de roda pé no romance: “Kajor et Jolof: régions du Sénégal” (“Kajor et Jolof: regiões do Senegal”).
142
Nota de roda pé no romance: “Beurre local” (“utilisé pour lustrer le couscous”). “Manteiga local (“utilizada
para misturar o cuscuz”).
143
Nota de roda pé no romance: “Couscous digne d’un roi” (“Cuscuz digno de um rei”).
121

A canção de Nguirane, ao utilizar palavras em uolofe, nos leva a conhecer mais


elementos do universo cultural de Fall. A música de Nguirane vincula com ela aquilo que está
nas entranhas dessa sociedade oral que transforma os elementos que fazem parte do dia a dia
em matéria prima.
Ao trazer componentes vinculados a comida, roupas e a forma de se comunicar, com
palavras em uolofe e em árabe, Fall buscar reproduzir a oralidade de seu meio social (“oralidade
fingida”, GUÈYE, 2005, p. 30) em estilo poético revelando, de igual modo, sua consciência
linguística144. A consciência da sua língua materna em relação à língua francesa, transpondo
para o francês os “valores estéticos africanos”145 como “(...) uma antropofagia cultural ou uma
descolonização do texto literário africano” (GUÈYE, 2005, p. 28).146

A estética romanesca de Aminata Sow Fall, que transpõe para a sua forma narrativa e
para o seu conteúdo semântico traços morfológicos e elementos funcionais da
literatura oral tradicional, procura também dar resposta às necessidades que a sua
estratégia de produção procura preencher. Essas necessidades surgem da interferência
cultural, produto do confronto de duas ou mais consciências linguísticas e culturais
em textos literários francófonos. Podemos então dizer que ao incorporar elementos do
universo simbólico uolofe em sua técnica de escrita, Aminata Sow Fall revela
claramente a âncora referencial de sua obra ao criar uma poética transcultural.
(CABAKULU; CAMARA, 2002, p. 55).147

Fall, por meio de sua poética transcultural, traz toda a tradição de sua sociedade e, por
meio dela, leva elementos próprios de seu meio para o romance, enriquecendo sua narrativa.
Nela, o uolofe tem uma dupla valência: ele serve para diferenciar o corpo coletivo dos mendigos
do grupo de poder e, contribui para humanizar o grupo dos mendigos, que se relacionam à
particularidade senegalesa. Dito de outra forma, ao se valer do uolofe, o corpo coletivo dos
mendigos se conecta a elementos da cultura tradicional, mostrando que está em uma verdadeira
relação de consonância com ela. A oralidade que está presente na esfera do corpo coletivo dos
mendigos se apresenta desde seus cantos, com a menção a elementos típicos culturais, até o
ritmo das conversas no pátio de Salla que sempre trazem referência à sociedade em que vivem.

144
Combe ressalta que quando há a presença da língua materna nos romances de autores francófonos é comum
que as (...) “palavras que designam referentes africanos: roupas, instrumentos musicais, objetos de culto, costumes,
etc. são destacadas por aspas, como que para indicar ao leitor europeu a quem o livro se destina, distinguindo assim
as falas francesa e uolofe” (COMBE, 2010, p. 141).
145
“valeurs esthétiques africaines” (GUÈYE, 2005, p. 28).
146
“ (…) une anthropophagie culturelle ou une décolonisation du texte littéraire africain” (GUÈYE, 2005, p. 28).
147
“L’esthétique romanesque d’Aminata Sow Fall, qui transpose dans sa forme narrative et dans son contenu
sémantique des traits morphologiques et des éléments fonctionnels de la littérature traditionnelle orale, tente aussi
de répondre à des besoins que sa stratégie de production cherche à combler. Ces besoins sont issus de l’interférence
culturelle, produit de la confrontation de deux ou plusieurs consciences linguistiques et culturelles dans les textes
littéraires francophones. On peut alors dire qu’en incorporant dans sa technique d’écriture des éléments de
l’univers symbolique wolof, Aminata Sow Fall révèle clairement l’ancre référentiel de son œuvre tout en créant
une poétique transculturelle”.
122

Ao citar elementos do seu espaço cultural em suas falas, podemos dizer que o grupo dos
mendigos encontra uma forma de exercer a cidadania senegalesa. Apresentamos essa
compreensão na medida em o corpo coletivo dos mendigos representa as pessoas que utilizam
a língua oficial juntamente com elementos do uolofe148 em sua comunicação social, que usam
saudações para iniciar uma conversa, que se valem das palavras em árabe em seu vocabulário
e que usam das palavras e do poder que ela têm para criar e construir suas narrativas.
Isso posto, Aminata Sow Fall, com a sua “linguagem da criação”149, traz, para um gênero
europeu, elementos do seu universo simbólico, conferindo singularidade e originalidade à sua
narrativa. Do mesmo modo, Fall transforma o corpo coletivo dos mendigos em veículos de
transmissão dos elementos culturais que estão presentes na sua sociedade. Por extensão de
sentido, poderíamos considerar o grupo dos mendigos como representante do povo africano
senegalês. Nessa perspectiva, Fall coloca o protagonismo em seu próprios cidadãos, jogando
luz nos desafios presentes nesse universo senegalês, para que sejam percebidos e pensados,
tanto pelos próprios senegaleses, quanto por seus leitores.

148
Cisse chama esse fenômeno de “interlíngua”: “Eles se comunicam em uma interlíngua (francelegalés), na
maioria das vezes dominada pela mistura de francês e uolofe” (“Ils communiquent dans une interlangue
(francénégalais) dominée le plus souvent par le mélange de français et de wolof”, CISSE, 2005, p. 105).
149
“langage de création” (GUÈYE, 2005, p. 30-31).
123

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Je pense que c’est à travers les profondeurs de nos


cultures que nous pouvons rencontrer les autres
pour mieux partager. (FALL, 2004, p. 2)

Este trabalho teve como objetivo estudar o romance La grève de bàttu de Aminata Sow
Fall, publicado em 1979. Inicialmente, intentávamos analisá-lo a partir do tema da mendicidade,
central na narrativa. Perseguindo uma hipótese que nos foi sugerida pela professora Gisele
Martins, na banca de qualificação, pudemos aprofundar nossa análise do romance percebendo
nele dois polos antagonistas: os mendigos se constroem como um único corpo coletivo que se
contrapõem aos corpos dos homens da esfera de poder. Por meio dessa configuração e oposição
entre esses grupos das personagens, o tema da mendicidade se constrói e se relaciona com o
universo cultural e linguístico senegalês.
Nosso percurso para validar ou não essa hipótese foi realizada em três capítulos. No
primeiro, refletimos sobre o campo das literaturas africanas francófonas. Utilizamos como
fundamentação bibliográfica Moura (2019), que apresenta um estudo acerca do campo pós-
colonial francófono e, posteriormente, os estudos de N’Goran (2009), que reflete acerca do
campo das literaturas africanas. Por meio desses estudos vimos, além de outros apontamentos,
que a autonomia do campo africano francófono se constituiu a partir do momento em que os
escritores africanos colocaram seu povo como sujeito protagonista de suas narrativas. Desse
modo, deve-se considerar que esse campo se construiu, se legitimou e conquistou sua
autonomia em um espaço social, cultural e político distinto daquele do campo das literaturas
europeias.
Ademais, por meio dos estudos de N’Goran percebemos que os conceitos de “tradição”
e “oralidade”, que são utilizados para analisar as obras africanas, se fazem presente na obra de
Aminata Sow Fall. Alguns estudiosos valem-se deles para estudar a obra da autora, e, por meio
da oralidade, os pesquisadores acreditam que Fall traz originalidade à sua obra (GUÈYE, 2005;
CABAKULU; CAMARA, 2002). A oralidade presente na obra da autora é chamada de
“oralidade fingida” (GUÈYE, 2005, p. 30), considerada como uma prática poética em sua
“linguagem da criação” (GUÈYE, 2005, p. 31).
No segundo capítulo apresentamos um pouco do contexto histórico e social. Primeiro,
refletimos acerca de como se realizou o processo de colonização na África, por meio de estudos
historiográficos (BOAHEN, 2010; UZOIGWE, 2010, CROWDER, 2010; GUEYE, 2010;
THÉLIO, 2015), e trouxemos alguns estudos críticos para tratar desse período (SAID, 2011;
124

CÉSAIRE, 1978; THIONG’O, 2011; FANON, 1965) e, a partir deles, refletir sobre como esse
processo deixou marcas nas sociedades colonizadas. Na segunda seção deste capítulo,
mostramos como ocorreu o processo de decolonização e pós-colonialismo, evidenciando as
heranças que foram deixadas nessas sociedades após o colonialismo, como a religião e a língua
(MAZRUI, 2010; BOAHEN; SURET-CANALE, 2010). Na terceira seção, tratamos da
religiosidade na sociedade senegalesa (CABAKULU; CAMARA, 2002; HERZBERGER-
FOFANA, 1987; LEMOTIEU, 1987). Como visto, apesar de o cristianismo ter sido
implementado no período de colonização no Senegal, essa sociedade, que já havia passado pela
catequização islâmica, permaneceu sendo em sua maioria mulçumana, mesmo após a
colonização. Na seção seguinte, tratamos da religiosidade como plano de fundo da narrativa, na
qual observamos como este é um tema comum nas produções de escritores senegaleses, pelo
lugar que a religião islâmica ocupa nessa sociedade. A última seção desse capítulo, diz respeito
à segunda herança colonial: a língua francesa (THIAM, 2020; NIANG CAMARA, 2014;
CISSE, 2005). A bibliográfica crítica nos mostrou a complexidade do panorama linguístico do
Senegal, onde a língua francesa ocupa uma posição de grande prestígio social – ela é a única
língua oficial do país, ainda que haja línguas nacionais que foram codificadas, essas línguas não
adquiriram o mesmo status que a língua francesa.
Esses capítulos precedentes foram importantes para a elaboração do terceiro capítulo,
no qual estudamos a construção estética do tema da mendicidade em La grève des bàttu.
Começamos evidenciando a oposição entre os homens de poder versus o corpo coletivo dos
mendigos. Apresentamos as personagens que fazem parte de cada um desses grupos e como são
caracterizadas na narrativa (CHATMAN, 1990). Mostramos que, ao contrário dos homens de
poder, representados pelas personagens Mour e Kéba figuras individualistas que visam os seus
próprios anseios, as personagens do grupo dos mendigos, como Salla e Nguirane, podem ser
lidas como uma única personagem. A partir dessa diferenciação, apresentamos como o embate
entre os grupos foi construído e como é reforçada a oposição entre essas esferas sociais. Uma
vez que o grupo luta e busca por objetivos comuns que servem para todos aqueles que vivem
da mendicância, pudemos fortalecer a hipótese dos mendigos como sendo um único corpo
coletivo. Textualmente isso se confirmou pelo fato de a moradia que o grupo dos mendigos
compartilha ser denominada “a casa dos mendigos”, pela união que eles demonstram quando
lutam por melhores condições, pela dor de um companheiro que simboliza a dor de todos, pelas
buscas por melhorias para todos do grupo e, claro, pela greve dos bàttu. Kéba e Mour,
diferentemente, mesmo representando a esfera de serviço de salubridade, que deveria buscar
melhores condições para a população, só se preocupam com seus próprios objetivos
125

individualistas. Assim, partindo da definição de Breton que considera que um corpo coletivo se
constitui quando “(...) a existência de cada um flui na presteza ao grupo” (BRETON, 2007, p.
30), acreditamos poder dizer que nossa hipótese de que o grupo dos mendigos se constrói como
um corpo coletivo se apresenta como válida para compreender a narrativa de Fall.
Em um segundo momento, na seção “Mendicância: O uso político da pobreza”, a partir
da oposição entre as esferas apresentadas, conseguimos vislumbrar melhor o tema da
mendicidade. Nota-se que a prática de fazer doação é um preceito da religião islâmica, utilizada
por Mour, um homem político, e por outras personagens, como uma moeda de troca para se
conquistar seus objetivos. Valendo-nos de estudos críticos da obra de Fall para refletir sobre o
tema da mendicidade, notamos que alguns elementos que estão presentes no texto literário se
conectam com o universo social da autora. Os estudos de Moura e N’Goran nos assinalaram
que o texto literário constrói sua legitimidade vinculado a uma determinada sociedade.
Pensando a partir disso, percebemos que o tema da mendicidade se relaciona com o universo
religioso senegalês, do qual algumas das práticas e personagens estão representadas no
romance, como, por exemplo, a consulta aos marabus e os talibés. Essas práticas e personagens
fazem parte do meio da autora e contribuem para que o tema da mendicidade ganhe uma
singularidade na obra, pois é fruto de um sistema que difere de outros lugares onde essa prática
também está presente. Assim, a religiosidade como plano de fundo pode ser um caminho de
leitura da narrativa de Fall. O corpo coletivo dos mendigos quando ganha consciência e entende
que é instrumentalizado nessa sociedade, utiliza isso a seu favor. Desse modo, o tema da
mendicidade ganha uma profundidade a mais quando compreendemos os elementos que se
referem ao que está fora do texto.
Na sequência, a seção “Espaços narrativos: diferenciadores de corpos”, visamos enfocar
melhor essa oposição entre o corpo dos mendigos e os corpos dos homens dos serviços de
salubridade. Fizemos uma leitura de como os espaços da narrativa podem ser interpretados
como meio que visa estabelecer a qual lugar cada corpo pertence, sendo esses espaços
construídos para estabelecer uma hierarquia entre os corpos (GANCHO, 2006; LEITE, 2002;
CABAKULU; CAMARA, 2002). Como visto, o corpo coletivo consegue inverter a função de
seu espaço social e ressignificá-la na narrativa. No último capítulo, “O francês e o uolofe como
diferenciadores dos corpos”, e em suas duas seções, “Discurso direto, indireto, indireto livre” e
“Oralidade em La grève des bàttu”, no mesmo sentido da análise que fizemos dos espaços,
acreditamos que na narrativa o papel atribuído às línguas pode ser lido como um recurso que
traz uma distinção entre os homens de poder e o corpo coletivo dos mendigos. Analisamos,
primeiro, como isso ocorre por meio do discurso empregado pelas personagens (GANCHO,
126

2006; LEITE, 2002; CABAKULU; CAMARA, 2002). Posteriormente, estudamos como, por
meio da utilização da língua uolofe e, em alguns momentos, do árabe, o recurso da oralidade se
apresenta no romance de Fall. Assim, como ler o tema da mendicidade vinculado a elementos
da sociedade senegalesa enriquece a leitura da narrativa, percebemos, igualmente, que ler a obra
tendo como chave de leitura a tradição e oralidade favorece a obra de Fall. As línguas
transpostas no romance podem ser lidas, em um primeiro momento, como um recurso para
diferenciar os homens do poder do corpo coletivo dos mendigos. Em um segundo momento,
vimos que elas também podem ser lidas como um recurso estilístico que coloca em evidência a
cultura plural de onde provém a autora. Fall traz para sua narrativa, também nesse aspecto,
elementos de seu mundo empírico que dão originalidade à sua produção literária e fortalecem
o campo das literaturas africanas francófonas. Sobre esses componentes locais, a autora
salienta:
Eu tive a liberdade de discutir meu manuscrito, porque não queria publicá-lo a
qualquer custo. Se houvesse falhas, questões estilísticas, eu concordaria em corrigir;
mas se fosse pelo carácter local, pelo fato de falar daquilo que nos interessa, então eu
não concordaria porque o universal está em todos. É indo ao encontro dos outros que
podemos ter uma troca frutífera. Se eu escrevo dizendo a mim mesma que viso os
ocidentais, posso produzir um trabalho bastardo (FALL, 2004, p. 4). 150

Compreendemos que a narrativa de Fall dá a possibilidade para o leitor, seja ele de onde
for, se deliciar com uma boa história, refletir sobre algumas questões e conhecer elementos do
meio cultural da autora. Desse modo, consideramos que sim, os elementos culturais e
linguísticos do universo de referência da autora podem ser observados no romance, dando lhes
singularidade e levando o leitor a conhecer, por meio de sua narrativa, elementos que se
relacionam com a sociedade senegalesa. Utilizando o uolofe, a referência às comidas e bebidas
locais e personagens típicas senegalesas, Fall coloca como protagonista de sua história a sua
sociedade, o seu povo, para ser lido, apreciado e, por que não, para denunciar algumas mazelas
de seu meio. Acreditamos que a literatura proporciona isso: dar voz para aqueles que passaram
muito tempo reféns de um modelo de dominação e que foram silenciados por muito tempo.
Isso posto, a partir de todas essas considerações, pensamos que o romance de Fall é rico
por oferecer variadas possibilidades de leitura. Nesta dissertação apresentamos uma dessas
possibilidades. Além de buscar verificar se nossa hipótese e objetivos se consolidariam com a
análise da narrativa, também tivemos por escopo apresentar La grève des bàttu ao público leitor

150
“J'ai eu la liberté de discuter de mon manuscrit, parce que je ne voulais pas publier coûte que coûte. S’il y avait
des fautes, des maladresses de style, j’acceptais de corriger; mais si c’est à cause du caractère local, le fait que je
parle de ce qui nous intéresse, là je ne suis pas d’accord parce que l’universel est en chacun. C’est en allant à la
rencontre des autres qu'on peut avoir un échange fhectueux. Si j’écris en me disant que je vise les occidentaux, je
peux produire une œuvre bâtarde”.
127

brasileiro. Esperamos que nossa pesquisa possa despertar o interesse do público por este
romance – e por outras obras de Aminata Sow Fall – e que as literaturas senegalesas sejam cada
vez mais discutidas, analisas e traduzidas em nosso país.
128

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