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A figura da bruxa sob a perspectiva

teórica de René Girard, na poesia


de Amanda Lovelace
Roseli Hirasike*
Vera Lúcia Bastazin**

Resumo *
Graduada em Letras, tradutor e intérprete/inglês,
pelo Centro Universitário Ibero-Americano (1989) e
em Direito pela Universidade de Guarulhos (1996).
Este artigo aborda a figura da bruxa Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia
na literatura e sua presença nos poe- Universidade Católica de São Paulo (2014). Tema da
dissertação: O feminino revelado em Clarice Lispector.
mas do título A bruxa não vai para a Atualmente ministra cursos livres de Introdução à
fogueira neste livro, de Amanda Love- Mitologia e Mitos na Literatura e participa do Grupo
lace. Partimos de um breve panora- de Pesquisa inscrito no Diretório dos Grupos CNPq -
Categorias da Narrativa, na PUC-SP, sob a Coordenação
ma dos estudos de Joseph Campbell, da Profa. Vera Bastazin. E-mail: hirasike@gmail.com
focando, em seguida, os conceitos de **
Possui graduação em Língua e Literatura Francesas
poder como objeto de desejo e a teoria e Língua e Literatura Portuguesas; Mestrado e Dou-
do desejo mimético de René Girard. torado em Comunicação e Semiótica/ Literatura, pela
PUC/SP, onde atualmente é Professora-Associada.
Apresentamos dados históricos e a Participou nessa mesma Universidade, da fundação do
origem etimológica do termo bruxa, Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica
importantes para a interpretação em Literária (Mestrado e Doutorado), do qual foi coorde-
nadora por quatro gestões. Ministra aulas nos cursos de
foco, no qual o poder desejado é aque- Graduação em Letras e do Programa de Pós-graduação
le de controle do fogo destruidor, em em Literatura e Crítica Literária. Sua atuação ocorre
nas áreas de Teoria Literária, Literatura Comparada
oposição ao fogo transformador, tam- - destacadamente Literatura Brasileira e Portuguesa.
bém presente na base dos mitos das Realizou estágio Pós-Doutoral, com Bolsa FAPESP, na
deusas-bruxas. Finalmente, procede- Universidade do Minho, em Braga, sob a supervisão do
Prof. Dr. Vitor Manoel de Aguiar e Silva. Suas pesquisas
mos à análise da temática feminista estão centradas no romance contemporâneo. Participou
dos poemas e os parâmetros que nos da Diretoria da ABRALIC (2007-08) e da Diretoria
apontam o bode expiatório, surgido da ANPOLL (2015-16). Publicou, nos últimos anos
"Mito e Poética na Literatura Contemporânea - um
na linha traçada entre a bruxa das estudo sobre José Saramago". Ateliê Editorial, 2006,
fogueiras da Inquisição e o gênero 2.ª edição/2019 (no Prelo). Em 2007, como resultado de
masculino na atualidade, representa- pesquisa desenvolvida com professores de Filosofia, His-
tória e Literatura, lançou "Literatura Infantil e Juvenil:
do metaforicamente nos poemas como uma proposta interdisciplinar". Editora Articulação
“o cara dos fósforos”. Universidade/Escola; em 2011, "Poesia Contemporânea;
Brasil/Portugal". São Paulo: EDUC/ CAPES; e, em 2017,
"Literatura e Ensino: territórios em diálogo". São Paulo,
Palavras-Chave: Bruxa; Mitologia; EDUC/Capes . Possui, também, vários ensaios, artigos e
Feminismo; Mito e desejo mimético; capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior. É
Amanda Lovelace. líder do Grupo de Pesquisa "Categorias da Narrativa",
inscrito no Diretório do Grupos de Pesquisa do Brasil/
CNPq, desde 2008. E-mail: vbastazin@uol.com.br
Data de submissão: ago. 2021 – Data de aceite: out. 2021
http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v17i3.11214

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Introdução seu objetivo. Tal estrutura é adotada em
roteiros os mais diversos na literatura,
Ao longo das profundas transforma- pois como afirma o mitologista, toda
ções sociais ocorridas nos últimos anos, história tem um herói. Seguindo esta
observam-se, entre outras manifestações, linha de estudos, observamos em suas
a efervescência dos direitos da mulher, proposições que muitos heróis são mito-
assim como a importância de seu papel logizados, ou seja, suas histórias ganham
histórico dentro das instituições sociais, o status de modelo para a humanidade,
políticas e religiosas. Acompanhando uma das definições de mito apresenta-
este processo, que tem se intensificado da em seu O Poder do Mito. O poder é
cada vez mais em nossos dias, observa-se erigido na jornada do herói, por meio de
também o interesse crescente e diversifi- autoconhecimento e da superação de obs-
cado dos estudos sobre a mulher, referidos táculos naturais e/ou impostos por seus
como estudo do feminino, inserido nas opositores. Nesses estudos, Campbell
questões de gênero. Este campo de inves- nos mostra, ainda, como a incompreen-
tigação mostra variados, e até opostos, são do poder de um mito pode submeter
pontos de vista. Neste artigo, focados na o homem a um modelo, transformador,
área da Teoria e da Crítica Literária, te- mas que o distancia de sua essência e
mos consciência do quanto ampla pode ser individualidade (CAMPBEL, 1991, p.24).
nossa abordagem, todavia, nossa intenção Na Mitologia, portanto, o homem
é contribuir com a temática da Mitologia percebe que o caminho rumo ao desco-
na Literatura e suas figuras femininas – nhecido exige uma jornada individual,
questão muito rica e instigante para os entremeada de momentos de transição
estudos literários. e de escolhas, referidos como ritos de
Desde tempos primordiais, o homem passagem. Por si só, a jornada conduz o
busca incessantemente pelo poder. Refli- homem, não ao encontro de um resultado
tamos um pouco, neste momento, sobre estanque, mas à consciência da formação
as diversas facetas a que o vocábulo pos- de seu poder. Os derradeiros momentos
sa nos remeter, uma vez que destacamos dos ritos de passagem formam seu ca-
a sua disputa como objeto de desejo. ráter e lhe agregam autoconhecimento,
Para Joseph Campbell (2004) o poder autoconfiança e clareza em seus propó-
que o homem conquista pode ser aquele sitos, tornando-o consciente de seu poder
que busca em si mesmo ou aquele que e de suas responsabilidades.
vem de fora e o submete. Em sua obra Desejando tocar o mistério da vida e
A Jornada do Herói, o autor nos fala do de sua origem, a humanidade produziu
percurso do indivíduo até a conquista de um vasto mundo de mitos, povoado por

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exemplos de convivência, conflitos, tra- universo simbólico-imagético do mito,
gédias, vitórias e derrotas no processo mas de colocar luz sobre o objetivo da in-
existencial. Por meio de símbolos, o serção deste em uma narrativa, conforme
estudo da Mitologia permite acesso a seu contexto. Não há literatura neutra,
identidades culturais para compreen- defendeu Jean Paul Sartre em seu O que
são da natureza humana e formação da é a literatura e, assim, sem pretender nos
consciência coletiva. aprofundarmos na obra, apenas a men-
No Prefácio ao Mitologia Grega, de cionamos como observação introdutória a
Junito Brandão, Carlos Byington faz a nossa abordagem do livro A bruxa não vai
seguinte analogia: para a fogueira neste livro, de Amanda
Os pais ensinam aos filhos como é a vida, Lovelace, publicado em 2018.
relatando-lhes as experiências pelas quais Partimos, portanto, da observação
passaram. Os mitos fazem a mesma coisa da maleabilidade das figuras míticas
num sentido muito mais amplo, pois deli-
neiam padrões para a caminhada existencial na literatura e debruçamo-nos, em par-
através da dimensão imaginária. (1994, p. 9) ticular, sobre a bruxa, em suas versões
contemporâneas, nas quais permanece,
O conhecimento aprofundado dos
ainda, como personagem polêmica e bi-
mitos como referência na construção da
polar, isto é, ora poderosa a redimir todo
personagem e na estruturação da narra-
o sofrimento do subjugo das mulheres;
tiva literária parece relevante para nos
ora cruel, vingativa e egoísta. Inúmeros
capacitar à análise cultural das suas
são os exemplos que poderíamos aqui
diferentes formas de manifestação na
elencar, seja nos roteiros cinematográfi-
literatura. Articulações entre Mitologia
cos, ou mesmo de seriados e de musicais,
e Literatura são bem antigas, além de
trazendo criações nas quais Malévola,
bastante ricas. Temos observado alguns
apresentada, em princípio, como má,
desvios interpretativos sob o manto da
concede seu dúbio beijo maternal e trai-
definição de criações literárias baseadas
dor, para acordar a Bela Adormecida.
ou inspiradas em determinados mitos.
Todavia, neste artigo, centramos nosso
Muitos dirão que o próprio mito sofre
olhar para as alusões às bruxas numa co-
alterações diversas, desde estruturais
letânea de poemas que passa a ser nosso
até culturais e políticas. É verdade. Mas
objeto de observação. Apoiados na análise
o trabalho de pesquisa e crítica pode e
conjunta das teorias de fundamento para
deve se debruçar sobre os meandros de
o presente trabalho, pontuamos a inver-
variação de um tema, a partir de sua
são de papéis no mito da bruxa enviada
base ou moral histórica originária. Não
às fogueiras, em relação ao homem, ou
se trata de ditar o permitido ou não no
universo masculino, na atualidade. 

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Vamos às bruxas movimento na literatura que confronta
os paradigmas do mito com a mulher
 Uma infinidade de deusas, dos mais contemporânea.
diversos panteões e mitologias, vem Numa abordagem etimológica, histo-
sendo estudada pela psicologia, pela an- riadores e antropólogos apresentam dife-
tropologia e, recentemente, pela neuro- rentes versões para a origem da palavra
ciência por meio de análise dos modelos bruxa. O vocábulo nas línguas de origem
de mulheres ali representadas e dotadas latina - idioma inicialmente usado como
de poderes para controlar o mundo oficial na Igreja Católica -, aparenta advir
ao seu redor. Assim, o conhecimento de “bruciare”, verbo do italiano que signi-
dos atributos de deusas mitológicas e fica queimar. Diferentemente, no idioma
arquetípicas inaugura um modo de se inglês, de origem germânica, o vocábulo
perfilarem mães, amantes, guerreiras, “witch” significa mulher dotada de pode-
guardiãs destes ou daqueles atributos e res malignos e sobrenaturais. Todavia,
valores individuais e sociais. As antigas conforme estudos específicos de etimolo-
deusas foram conhecidas, celebradas e gistas, como Anatoly Liberman (2009), da
cultuadas como faces variadas de uma Universidade de Minnesota, o vocábulo
deidade mater e, mais tarde, também que pode ser originário de palavra do
estudadas em seus mitos, como arqué- inglês arcaico, anterior ao Cristianismo,
tipos do feminino. Deusas e bruxas se significaria sábio, mágico ou auspicioso,
misturaram. Ora as bruxas se confun- indicando que os sentidos negativos lhe
dem com as próprias deidades, ora com foram acrescentados, posteriormente, me-
as iniciadas adoradoras das deusas e diante agregação ou substituição cultural
praticantes de magia. ao seu campo semântico.
A professora e psicoterapeuta Jen- De fato, a definição da Igreja para a
nifer Barker Woolger lado a lado com o palavra bruxa é bem posterior aos cultos
professor Ph. D. e analista junguiano, das deusas da Mitologia e, certamente,
Roger J. Woolger, afirmam, na obra A não contempla a posição histórica das
Deusa Interior (2007), - baseados em es- matriarcas pagãs.
tudos da psicologia sobre a psique femi- Para a historiadora Maria Nazareth
nina - o surgimento de novas abordagens A. de Barros (2001, p. 327), houve um
de compreensão do feminino em nossa momento de crescimento do valor femi-
sociedade. É notório, em diversos ramos nino resultante do resgate da imagem
da ciência e da literatura o surgimento de uma deidade mater, ambivalente,
de uma nova consciência feminina. Inte- como seu modelo. Movimentos religio-
ressa-nos analisar as implicações desse sos e literários nos séculos XII e XIII

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consolidaram o poderio feminino, quer Assim, as bruxas, praticantes das re-
na cultura popular, como nos meios da ligiosidades pagãs e do culto às diversas
elite intelectual, colocando de lado a deusas ambivalentes, adoradas como fa-
discriminação da mulher e valores como ces da deidade mater, fatalmente viriam
a virgindade e castidade. O amor cortês a ser perseguidas. E a elas comparadas
passa a ser valorizado e a mulher é re- todas as mulheres consideradas hereges,
inserida na sociedade como importante mesmo não praticantes da bruxaria.
companheira a ser conquistada. Entre os séculos XIV e XVIII, após
Barros destaca como a exposição da o período denominado Idade Média, a
dualidade existente em todo e qualquer bruxaria foi considerada uma heresia
ser humano, do bem e do mal, pressiona- e um crime sujeito à pena de morte. A
ra as religiões monoteístas. Afinal, eram perseguição às bruxas tem registros,
aquelas erigidas sobre pilares do poderio também, na História da Roma antiga,
masculino para guardar o preceito primei- período esse próximo do fim do Império, já
ro da existência de um Deus único, de bon- que os Imperadores não viam seu poder e
dade absoluta, diferentemente dos deuses autoridade suficientemente protegidos da
antigos ambivalentes. A criação do homem magia, ou do que se acreditava ser magia.
à sua imagem e semelhança, portanto, Ao final da Idade Média, são criados
encontrava reparo no conceito de pecado, os Tribunais da Santa Inquisição e, como
o qual, diante dos preceitos religiosos que observado por muitos historiadores mo-
condenavam o desejo sexual, apontava na dernos, em consequência dos processos
sedução feminina um instrumento do mal. adotados por aquela instância julgadora,
Assim a historiadora destaca a construção a bruxaria não mais é reconhecida como
da fantasia de malignidade em torno do prática remanescente de uma religião
poder feminino, o qual, por seu fascínio pré-cristã. É considerada heresia e tra-
e medo, passaria a ser controlado com tada como crime, nos moldes impostos
medidas severas (BARROS, 2001, p. 325). pelos processos da Inquisição. Desta
A igreja havia tolerado as práticas forma, quando a História busca naqueles
pagãs, politeístas, também caracteriza- processos e registros o significado de bru-
das pelo culto à denominada Deusa Mãe. xaria, fatalmente, encontra a descrição
Entretanto, horrorizava-se diante das então conferida às heresias.
práticas pagãs que consideram sagrados O ato herético, combatido e penaliza-
o corpo, a sexualidade e a fertilidade fe- do pela Igreja Católica, é bom lembrar,
mininos. Isto porque, preceitos religiosos não foi sempre condenável. Consistia na
mais radicais da época, opunham o corpo opção por determinado estudo e prática
à alma (BARROS, 2001, p. 334). de uma filosofia, teoria ou ideia. Passa a

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ser considerado ato condenável e objeto as narrativas de criação do mundo, o
de processo persecutório à medida que a mito de Medeia, bruxa e sacerdotisa de
Igreja decide não mais tolerar o estudo Hécate, uma deusa que concedia co-
e interpretação de temas contrários aos lheitas e pescarias fartas, ampliava os
seus dogmas. O herege era o dissidente rebanhos e protegia as crianças. Como
da doutrina cristã. Daí a Igreja Católica, esse, os mitos foram sendo transforma-
que na época detinha poder estatal e dos e acrescidos de descrições de atos de
jurisprudência universal, ter criado um fúria, de vingança, das mais criativas
Tribunal para defesa de seus interesses. perfídias e outros fatos atemorizantes;
Ou seja, o Tribunal tinha poder de pren- tudo contribuindo para a marginaliza-
der e julgar cristãos do mundo todo, e no ção das crenças em um sistema sagrado
âmbito estatal, prender qualquer um que feminino. Sobre o culto à deusa Diana,
ofendesse os interesses da Igreja. a deidade mais difundida na Europa,
A mulher de tradição matriarcal, líder documentos foram redigidos e impostos
de comunidades, praticante de outra reli- ao longo da História pela Igreja Cató-
giosidade e ideais sociais, praticante dos lica, inserindo-se em suas instruções o
cultos às deusas antigas, era considerada vocábulo diabo, associado aos cultos da
herege e, potencialmente condenável deusa. Uma sucessão de fórmulas viria
a morrer na fogueira - curiosamente o a se tornar tão arraigada, a ponto de, na
elemento que os próprios pagãos con- época da Inquisição, já ser o culto diânico
sideravam purificador, transformador sinônimo de adoração a Satanás, o que
e transmutador, no sentido simbólico fazia com que a acusação prescindisse
advindo da forja de metais e das práticas do devido processo e do conhecimento e
da alquimia, por exemplo. Pretendemos exame das reais práticas pagãs.
com estas incursões embasar obser- É fato que os atributos divinos antes
vações relacionadas a outro elemento adorados e cultuados, como nos mostra
importante na análise dos poemas de a História, passam a ser rejeitados e
Lovelace: o fogo. reprimidos com a instauração e fortale-
cimento da sociedade patriarcal e das re-
As bruxas ontem e hoje ligiões monoteístas. Sob o jugo daquela
nova ordem social e religiosa, em que a
Durante o período clássico, a bruxa, mulher perderia todos seus direitos e até
adoradora das deusas, aparece na litera- sua própria voz, aqueles modelos femi-
tura ocidental bem diferente de como se- ninos da Mitologia, de deusas poderosas
ria vista séculos mais tarde. A teogonia e temperamentais, que tudo podiam e
de Hesíodo, por exemplo, mostra, dentre que comandavam suas próprias vidas de

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forma livre, inovadora e transformadora, Ofício. Tratou-se, portanto, de um pro-
passaram a ser considerados inaceitá- cesso-crime em nossa história recente,
veis e, logo, proibidos. no qual se verifica, também pela análise
Ao invés de respeitadas, as matriar- de uma das orientadoras da pesquisa,
cas, curandeiras ou xamãs, parteiras, professora Dr.ª Nathalia Fernandes, e do
benzedeiras, agricultoras e praticantes filologista e professor Aldair Rodrigues,
de toda sorte de costumes e religiosidades historiador da Universidade Estadual de
antigas, denominadas feiticeiras, mulhe- Campinas - UNICAMP, que as acusações
res até então politeístas, passaram a ser eram todas da família do falecido. Trata-
temidas e, ao mesmo tempo, marginali- va-se, na realidade, de uma disputa pelos
zadas, mesmo dentro de suas próprias bens por ele deixados. Esta referência
comunidades. Uma vez articulada a nos interessa na presente pesquisa para
perseguição política e instaurado o poder demonstrar como, de fato, era convenien-
patriarcal, não era conveniente mante- te e quase eficaz a acusação de bruxaria
rem-se feiticeiras nas comunidades. por questões das mais diversas, fossem
A História registrou os terríveis episó- elas sociológicas, políticas ou religiosas,
dios de perseguição, principalmente das submetidas a uma instituição julgadora
mulheres, praticantes de religiosidades mantida e regulamentada pela Igreja.
pagãs. Os casos eram julgados em tribu- Com estas breves incursões, mas que,
nais eclesiásticos e antes das sentenças em nosso entendimento, são observações
de enforcamento ou de queima das con- históricas e mitológicas interessantes
denadas em fogueiras, as acusadas eram para o tema, voltamos à abordagem li-
sujeitas a várias sessões de tortura. Foi terária – área de conhecimento e prazer
a lamentável parte da História chamada inspirada na inesgotável e diversificada
popularmente de Caça às Bruxas. fonte da Mitologia.
No Brasil, recentemente, uma pesqui- Vejamos, a partir deste momento, a
sadora da Universidade de São Paulo, maneira como a figura mítica da bruxa é
a filóloga Narayan Porto, deparou-se inserida na Literatura e, especialmente,
com um processo do Século XVIII, mais no recorte que fazemos dos poemas de
exatamente de 1754, aberto na cidade Amanda Lovelace, 1* autora que con-
de Jundiaí-SP, contra uma mulher e sua quistou seu público com a abordagem de
filha, ambas acusadas de terem levado vários temas diretamente relacionados
o marido e pai à morte com o uso de ri- aos conflitos e lutas - entenda-se, aqui,
tuais de bruxaria. Os documentos foram aos poderes - da mulher moderna.
encontrados na Cúria Metropolitana e Nas relações que estabelece entre
o processo era de jurisdição do Santo Literatura e Mitologia, Lovelace (2018)

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sugere que não se vira, hoje, a página A mulher contemporânea é compara-
negra da Inquisição, mas apenas se in- da a animais, possivelmente selvagens,
vertem os papéis de quem detém o poder que evoluem para conseguir sobreviver
de queimar e subjugar o outro. Nesta no ambiente em que habitam e que, da-
perspectiva, cabe a pergunta: não fora o das as circunstâncias, podem ter apren-
subjugo referido do passado um repulsi- dido a revidar. A ira da deusa Ártemis,
vo ato por desejos escusos e egoístas, do deusa da mitologia grega, cujo epíteto
assediador e usurpador? Num primeiro mais usado é de deusa da caça, é citada
momento, talvez se pudesse dizer que a e o ciclo de aprendizado, próprio do mito,
mobilização para a destruição do inimigo é lembrado – de mãe para filha. Reto-
pelo fogo era um procedimento justo. mamos, resumidamente, a essência do
Vejamos, nos poemas, como essas surgimento do mito de Ártemis, o qual se
questões se colocam. Agrupados em agrega à linha de interpretação presente.
quatro partes distintas, os poemas es- Filha de Letos e Zeus, gêmea de Apolo,
tão distribuídos em: (I) julgamento; (II) foi dada à luz em meio a muito sofrimen-
a queima; (III) a tempestade de fogo; e to no trabalho de parto. Conta o mito que
(IV) as cinzas. Ártemis fora a primeira a nascer e que
Os textos poéticos inscrevem o senti- ajudara a mãe a continuar os esforços
mento de indignação diante do assédio para o nascimento de seu irmão Apolo,
moral, físico e social do homem contra como sabemos, deus símbolo da beleza
as mulheres. Eles fazem referência, masculina. Pois bem, diante de tanto
também, a fatos contemporâneos como sofrimento, Ártemis pede a Zeus que
o feminicídio, o assédio e o estupro, a libere da maternidade. Será também
registrando um tipo de comportamento conhecida, em outras passagens da mito-
responsável por reações de repúdio e logia, como opositora de Afrodite, deusa
indignação que tem se estendido por sé- do amor, da sensualidade e fertilidade.
culos. Utilizando-se da figura da bruxa Dedica-se à caça, e carrega o conjunto
para referir-se às condenações das mu- de arco e flecha mais certeiro dos mitos,
lheres à fogueira, esses textos percorrem símbolo de seu caráter guerreiro e ousa-
acontecimentos do passado e sugerem do. O paradigma de deusa virginal, en-
analogias com fatos atuais. A linguagem tretanto, não impede que seja cultuada
utilizada nos poemas remete o leitor à como protetora dos partos e, também,
História de perseguição, condenação, defensora da mulher parturiente.
tortura e penas impostas às mulheres Observemos trechos dos poemas. An-
acusadas de bruxaria. tes da parte designada O Julgamento,
coloca-se a premissa os corpos femini-

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nos são uma posse sempre vulnerável à que nos inspira para esta análise da es-
violência dos homens, seus predadores. trutura do mito da bruxa aplacada pela
Portanto, as mulheres devem declarar condenação à fogueira.
guerra. Richard J. Golsan, em seu Mito e
Teoria Mimética – Uma introdução ao
Profecia I pensamento girardiano, esclarece a di-
nâmica da busca pelo objeto de desejo
[...]
entre opositores no mito. Assim, o desejo
Não podem tirar das mulheres erradas
a ira de ártemis, deusa da caça (ndo pelo objeto que o outro possui, não sendo
aqueles que vêm para cima de mulheres original, requer a destruição de quem o
como eu com olhos cheios de raiva). detenha, “gerando atos de violência unâ-
posso nime e sacrificatória cometidos contra
não sobreviver aos fósforos, mas meu vítimas inocentes ou, noutras palavras,
fogo de vadia vai sobreviver a todos
bodes expiatórios” (2014, p. 22).
eles. (Lovelace, 2018, p. 23)
A dinâmica do desejo imitativo é
triangular, um sujeito imita o desejo
Profecia II de outro tomado como modelo, lendário
ou histórico, extraindo deste o modus
[...] operandi para a persecução do objeto
no correr desejado. Tal dinâmica é observada em
dos séculos
diversas áreas de estudo, como na socio-
os animais evoluem para
sobreviver ao meio ambiente logia, antropologia, psicologia, teologia
então e na crítica literária. Desta última, reti-
o que vai acontecer ramos o percurso de nosso interesse, em
quando as mulheres contextos literários, conforme menciona
finalmente Golsan a respeito de Mentira romântica
aprenderem
e verdade romanesca, de René Girard, no
também
qual o autor nos mostra os mecanismos
a
revidar? mimético e expiatório em clássicos da
(isso.) literatura.
(isso.) Para a crítica literária, acreditamos
(isso.) (Lovelace, 2018, p. 25) interessar a influência da abordagem
eleita na formação social e cultural,
O que transparece de forma marcante ao reconhecermos os textos literários,
no poema é o desejo imitativo, tratado na também, como formadores de opinião e
teoria mimética de René Girard (2009),

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influenciadores de comportamento, dire- eles
cionados à inspiração do autor e do leitor. nos dizem
Observamos nos poemas, que o objeto mais uma & mais uma
& mais uma
de desejo é “os fósforos”, símbolo, ali, do
vez que as mulheres
poder de subjugar, exterminar, anular precisam
e dominar a mulher, reprimindo sua ficar
liberdade e autoestima. O homem, gê- pequenas /
nero masculino, é transformado em bode finas /
expiatório a ser imolado para redenção muito magras /
diminutas
de toda a formação cultural e de todos
assim
os equívocos históricos de que falamos. A
somos
inversão, conquanto poética, dos papéis facilmente
violentos, nos parece clara em trechos de colocadas no bolso
conspiração e incitação para que haja um para ser usadas
revide à repressão. & jogadas fora
mais
Quando a rivalidade culmina na violência, tarde.
a simetria fica ainda mais clara. À medida
que se atacam, os antagonistas se tornam
curvas
meras imagens especulares um do outro. A & gorduras
violência apaga as distinções que perduram & pneus
entre eles. As diferenças de prestígio social, São um
idade e sexo se vão ou se tornam insigni- Colossal
ficantes. Essencialmente indistinguíveis
“foda-se”
entre si, os antagonistas não passam, agora,
de duplos violentos. (GOLSAN, 2014, p. 63) ao patriarcado...

Vejamos o percurso que justifica o nossa rebelião inesperada.


desejo mimético. “Os caras dos fósfo- - meu corpo rejeita seus desejos. (Love-
ros” é uma expressão recorrente para lace, 2018, p. 61)
indicar os homens. Na parte designada
“a queima”, indica-se o assédio moral e Outras manifestações também podem
cultural por meio da exigência da beleza ser observadas em relação ao comporta-
perfeita, assim como a boa forma e deli- mento e à imagem impostos ao ser femi-
cadeza, como atributos obrigatórios para nino, nos mais diversos contextos e situa-
as mulheres. Ressalta-se, ainda, nessa ções: a mulher, vista como mercadoria,
perspectiva, o quanto as mulheres são refém de abusos romantizados, premida
humilhadas em função deste conjunto a submeter-se aos modelos impostos
de comportamentos e qualidades que para seduzir os homens. Dentro desses
devem oferecer.

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padrões, e somente assim, é considerada mador de uma forja, mas, predominan-
hábil na arte da sedução. Todavia, na temente ao dos homens dos fósforos, ou
arte de seduzir acontece de atrair até seja, castradores e déspotas. Seria, sim,
mesmo seus estupradores, que são ino- o fogo da destruição e da tortura.
centados sob o argumento, exatamente, Importante nos parece destacar, ain-
de serem aplacados pela sedução. Essa da, que o estudo revela a escolha feita
parte dos poemas inscreve, também, o pela autora que, ao se inspirar em uma
sentimento de indignação, encorajando figura mítica como a bruxa, utiliza-a
as mulheres a revidarem e fazerem uma num processo verdadeiramente criativo.
fogueira bem grande para queimar todos É nesta direção que reiteramos a figura
aqueles que tentaram castigá-las. O cas- mítica da bruxa a serviço da etimologia
tigo: a fogueira para eles. do vocábulo tal como seria conveniente
aos processos da Santa Inquisição, isto
é isso mesmo, é, a bruxa do verbo bruciare, ligada ao
sou fogo de extermínio. Assim fazendo, a
a mulher
obra retoma mais o sentido pejorativo
com o coração incendiário
sobre o qual todos os seus pais lhe da figura, mulher má, vingativa, capaz
advertiram de usar seus poderes para destruir e do
& mesmo modo que seus carrascos, conde-
quando uma árvore nar, humilhar e queimar.
pega fogo, Nos poemas selecionados, não encon-
não demora muito
tramos associação com a mulher-bruxa
para que
a ser valorizada e reinserida no mundo
toda a floresta
moderno como a verdadeira heroína
esteja em chamas histórica, credora de espaço e segurança
para cumprir seu papel social. Longe
- ainda assim nunca me importo com disso, observamos neste estudo que o
quem se machuca. (Lovelace, 2018, p. 35) uso poético de elementos como o fogo, a
fogueira e os “caras dos fósforos” indicam
O fogo é mencionado em variantes uma trajetória de indignação e destrui-
de significação e, com frequência, apre- ção. Com a ampliação do olhar histórico
senta conotação sexual e passional - um e mitológico, propomos a reflexão acerca
estopim simbólico muito conhecido na da ambivalência da figura mítica da bru-
literatura para falar das paixões e tenta- xa, e nos debruçamos sobre seu estatuto
ções. Por outro lado, é possível observar ao longo dos tempos na criação literária.
que não existe menção ao fogo transfor-

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A alusão ao mito da bruxa nos poemas Estados e de instituições, em detrimento
de Lovelace não nos parece inspirada na da valorização do feminino?
estrutura da jornada do herói de Cam- O papel da figura mítica ou histórica
pbell, ou nos mitos das deusas heroínas. da bruxa, tal como aparece nos poemas
E, consequentemente, o fogo nos poemas não nos chamaria a atenção, fosse sua
igualmente não remete às simbologias presença em um conto de fadas ou conto
mitológicas para este elemento como, popular no qual a bruxa ocupasse o papel
por exemplo, a forja, a transformação, de opositora – considerando-se aqui a
a luz e o calor que protegem contra o composição da literatura fantástica. Este
inverno. Neste estudo queremos trazer artigo, diferentemente, trata da inspira-
a lume outra categoria de mulher-bruxa ção na Mitologia e, mais especialmente
que também possa inspirar com mais na figura mítica da bruxa, para criações
frequência a criação literária, o papel da literárias que lidam com elementos e
bruxa mitológica, cujas práticas de valo- contextos reais.
rização do feminino foram interrompidas Por se tratar de poemas de literatura
por perseguições, na maioria das vezes feminista, queremos ressaltar que não
injustas. Ao observarmos o percurso nos referimos à mulher-bruxa como coad-
proposto nos poemas, compreendemos juvante na jornada do herói masculino.
o fenômeno a partir do estudo do desejo A hipótese refere-se a uma estrutura
mimético e do mecanismo expiatório da básica na literatura infantil, por exem-
teoria girardiana em oposição ao que plo, na qual a bruxa costuma exercer o
ousamos pensar, remetendo-nos à obra papel do opositor.
de Campbell, como a jornada da heroína, O desejo mimético da mulher-bruxa,
potencialmente detentora do poder de de subjugar e destruir para apropriar-
seu mito. -se justamente do poder que tanto lhe
A partir do exposto até aqui, impõe-se causou repulsa, engendra uma teoria da
uma questão de cunho não apenas social, conspiração em forma de poemas, para
mas também mítico-cultural: poderia a uma vitória de Pirro - Pirro de Epiro ou
mera transformação do gênero mascu- Pirro de Élida. Lembremos, já que nos
lino em bode expiatório redimir uma aventuramos no terreno da mitologia,
sociedade machista, em países laicos que a vitória pírrica é aquela que nos
que fazem censura velada, por omissão, remete ao mito registrado a partir de um
a outras manifestações religiosas e ar- fato histórico da Grécia antiga, quando o
tísticas? Que perpetra todos os tipos general e depois rei Neoptólemo, filho de
de fogueiras, acesas não só por homens, um semideus, Aquiles, conhecido como
como também por mulheres em nome e Pirro, teria constatado que, ao ganhar

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certa batalha à custa de muitas perdas, No caso, vislumbramos que o enga-
sua conquista se desvalorizara. Seu mito jamento literário subjacente, de cunho
deu origem a expressões como vitória notoriamente feminista, se beneficia-
de pirro ou vitória pírrica. Atentos à ria desta reflexão com a exploração de
sabedoria mítica, podemos comparar o outros atributos de todo o caldeirão de
Pirro de Epiro ao Pirro de Élis ou Élida. possibilidades da figura da bruxa, quiçá
Existiu outro Pirro, um filósofo de Élis, prescindindo de eleger, de modo genérico,
também da Grécia antiga, conhecido um bode expiatório.
por seu ceticismo, que defendia a tran-
quilidade da indiferença, sem buscar o O fogo
certo e o errado, afirmando não existir
verdade absoluta. Apenas para ilustrar A criação de uma bruxa dos fósforos
a referência, alguns resumos sobre seu definitivamente não nos remete a fogos
pensamento nos ensinam que mais vale míticos carregados de simbologia de
um estado de dúvida permanente e de poder de cura e de transformação. Não
alerta contra dogmas à belicosidade crô- foi este o fogo eleito no recorte mítico
nica. Conta-se que sua capacidade de se dos poemas da “bruxa que não vai para
manter calmo nas situações mais adver- a fogueira”. Mesmo assim, revisitamos,
sas, era extraordinária. Daí pensarmos nesta comparação, o fogo a que nos re-
em opor a vitória de Pirro de Epiro à ferimos nos mitos das deusas antigas.
vitória de Pirro de Élis, que viveu até A primeira delas aqui lembrada, a
90 anos de idade. deusa Brigit, da mitologia celta, também
uma deusa irlandesa muito popular, por
Ao tentar avaliar a influência do desejo mi-
mético sobre o desenvolvimento da cultura e fazer parte da história do surgimento da
das instituições sociais nas duas principais Irlanda, traz nas imagens que a repre-
obras que publicou nos anos 1970, A Vio- sentam, o fogo nas mãos, o qual se con-
lência e o Sagrado (1972) e Coisas Ocultas
desde a Fundação do Mundo (1978), Girard sagra, na História e na Mitologia, como
se viu obrigado a lidar desde o início com a Chama de Brigit. Tão forte e arraigado
um problema enorme: o potencial destru-
o seu culto que, acredita-se, tenha sido
tivo do desejo mimético. Se a imitação dos
outros conduz inevitavelmente à rivalidade absorvido nas celebrações cristãs como
e ao conflito, e se todos os homens agem Santa Brígida, padroeira da Irlanda,
mimeticamente, a humanidade como um
todo parece fadada a um círculo infindo de
ultrapassando barreiras filosóficas e re-
competição e violência. É difícil conceber sob ligiosas. Para os povos celtas, o fogo era
essas condições, tanto a sobrevivência hu- símbolo de todas as fontes de inspiração
mana quanto a gênese e o desenvolvimento
da cultura. (GOLSAN, 2014, p. 59) e conexão divinas. Os símbolos que re-
metem à Santa Brígida, inclusive, coin-

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cidem com aqueles da deusa da Irlanda o mundo, além de criadora do Japão,
pagã, sendo a chama eterna um destes. terra do sol nascente. Culturalmente,
Até mesmo o dia da Santa, 01 Fevereiro, atribui-se a ela a semente do alimento
é o mesmo da celebração pagã da deusa, mais importante na Ásia, o arroz, bem
data em que se celebra também o sabat como o sucesso de suas colheitas. Em
de Imbolc, festival pagão que anuncia a determinada passagem de seu mito, por
primavera. Até hoje se pode visitar em ter sido contrariada, fecha-se em uma
Kildare, na Irlanda, um convento onde caverna e deixa o mundo no frio e no
freiras mantêm acesa uma chama em escuro, até que a humanidade aprenda
honra a Santa Brígida. Eis a presença a lição e vá até ela, rendendo-se à sua
do fogo que não se apaga e não se exaure sabedoria.
na produção de cinzas apenas, é cuidado Finalmente, e sem pretensão de
para manutenção da memória histórica, esgotar exemplos mitológicos do fogo
e como não considerarmos, do poder do e seus significados na mitologia, lem-
mito. bramos Héstia ou Vesta, da mitologia
Hécate, deusa da mitologia grega, é greco-romana, deusa sagrada do fogo
conhecida por alcunhas diversas, sendo das lareiras, do lar, da família, da vida
a maioria ligada ao submundo, à escu- doméstica. O fogo ligado a ela é o que
ridão e ao túnel que se deve pegar após aquece os lares e templos, simbolizando
a morte. Sua ligação com a escuridão é o afeto que cria a aura de aconchego das
representada na sua imagem com duas casas, o calor feminino do acolhimento.
tochas nas mãos, dentre outros símbolos, Estamos cientes do sentido pejorativo
para iluminar os caminhos tenebrosos, que é atribuído ao fogo/afeto da dona
guiando seus cultuadores pelos cami- de casa ou mulher do lar na atualidade,
nhos da morte. Adorada na Grécia an- compreendido como papel menor que res-
tiga como protetora dos lares é também tringe sua força de trabalho intelectual e
evocada como protetora dos campos e de atuação política. Porém, tratamos de
plantios por ser a grande deusa dos dois mitos, histórias antigas, trabalhando so-
mundos – da vida e da morte. bre fatos históricos e culturais e, assim,
Pretendendo dar um panorama cultu- buscamos na essência do relato também
ral um pouco mais estendido, acrescen- a compreensão do atributo feminino da
tamos também nestas incursões, a deusa agregação e fortalecimento da família,
Amateratsu, divindade mitológica mais em qualquer modelo e formação. Héstia
conhecida do Japão e adorada no xin- está entre as 12 divindades do Olimpo,
toísmo, cujo mito a coloca como a deusa considerada a chama da proteção.
do sol e detentora do fogo que ilumina

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o julgamento tomaram isso
como um
[...] desafio
eles não sabem o que vem por aí, que fofos. &
nós não devemos ter medo deles. se uniram
não não não. para dar à luz
eles é que devem ter medo de nós. seu encantamento
de ressurreição.
- a primeira lição do fogo.
nós damos poder - necromantes. (Lovelace, 2018, p. 165)
a tudo que
queremos, Com os versos da parte final do li-
vro – IV as cinzas – encerramos nossa
mas também podemos reflexão, desejando dar à luz um encan-
tirá-lo
tamento de ressureição de novas leituras
novamente,
dos mitos e análises de discursos que
assim.
desse. provoquem autores e leitores a continua-
Jeito rem explorando a riqueza das narrativas
[...] mitológicas.
(Lovelace, 2018, p. 28-29)
Considerações finais
A respeito das cinzas colhidas dos poe-
mas de Lovelace, elas nos pareceram de Os poemas objeto deste artigo, em-
desolamento, embora se pretenda, com bora inicialmente apresentem um título
elas, um convite à resistência pela arte que provoca no leitor à expectativa de
ou, mais especificamente, pela poesia. coragem e de salvação de uma heroína,
Impacta-nos que o desafio da resistên- engendram o desejo mimético fazendo
cia pela arte seja colocado nas mãos de surgir um bode expiatório. Propuse-
necromantes. mos, neste estudo, problematizar esta
expectativa, assim o fazendo mediante
eles a demonstração de outra possibilidade
disseram de abordagem do mito da bruxa na lite-
a poesia ratura, debruçando-nos na História, nos
está morta,
relatos da Mitologia e na estruturação da
então
jornada do herói, de Campbell. Traçamos
as mulheres
cansadas a base histórica do percurso da mulher-
mas sempre determinadas -bruxa, ousando trazê-la ao presente

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pela contemplação de uma jornada da The figure of the witch
heroína. Em oposição, o exemplo esco- from the perspective of René
lhido nos poemas forma o duplo violento, Girard theory, on Amanda
mencionado por Golsan, nos seus estudos Lovelace’s poems
introdutórios à teoria mimética de René
Girard. Abstract
Na linguagem poética, e é especial-
This article approaches the represen-
mente nela que nos apoiamos nesta
tation of the witch in literature, and
análise, tanto o fogo como as cinzas dos in the poems published under the
poemas imprimem em nossas mentes os title “The witch doesn’t burn in this
significados do contexto em que apare- one”, by Amanda Lovelace. We stem
from a short overview of the studies
cem - violento e desolador. Neles, o fogo
by Joseph Campbell, before focusing
é a ferramenta do duplo violento e da on the concepts of power, as an object
conspiração para a destruição do bode of desire, and according to the theory
expiatório eleito. Assim analisada, que- of mimetic desire by René Girard.
This article brings historical data
remos demonstrar que a base mitológica
and the etymological origin of the
da bruxa queimada nas fogueiras da In- word ‘witch’, fundamental to the in-
quisição não é a única base dessa figura. terpretation carried out in this study,
Refletimos, pois, no impacto da au- in which the power desired is that of
controlling the destructive fire, in op-
tora ao trazer a necromancia para en-
position to the fire of transformation,
cerrar seu poema, e na maneira como a also from the myths of goddesses-
significação da morte impacta o leitor. witches. Finally, we proceed to the
Prática de invocação dos mortos para analysis of the feminine subject in
the poems, together with the param-
adivinhações do futuro, o vocábulo vem
eters which guided us to recognize a
das palavras gregas nekrós (cadáver) e ”scapegoat”, who emerged in between
mantéia (profecia). O ritual ficou conhe- the journey of the witch during the
cido, de fato, entre os gregos, sob a crença Inquisition fires and the current male
gender, represented in the poems by
de nele se obterem respostas do morto.
the metaphor “match-boys”.
Desejamos e buscamos contribuir
para que a poesia não esteja morta, Keywords: Witch; Mythology; Femi-
que se faça presente, sempre viva, rea- nism; Myth and mimetic desire;
Amanda Lovelace.
firmando que o pensamento poético é
o sangue que corre nas veias da arte.
Em todas as suas possibilidades, possa
Notas
o mito cumprir seu papel de renovação Amanda Lovelace é uma poeta norte-americana
1

que foi nomeada Poeta do Ano, pela Goodreads.


cíclica da nossa existência e criatividade. Ela é a autora da coleção “As mulheres têm

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uma espécie de magia”, tendo se destacado PORTO, Narayan. Feitiçaria paulista:
como vencedora do Prêmio Goodreads com “A transcrição de processo-crime da Justiça
princesa salva a si mesma neste livro”. Ganhou Eclesiástica na América portuguesa do século
uma legião de fãs graças às redes sociais, com XVIII. 2018. 370 f. Dissertação (Mestrado em
mais de 80 mil seguidores no Instagram.
Filologia e Língua Portuguesa) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Referências Universidade de São Paulo, São Paulo.
SARTRE, Jean Paul. O que é a literatura.
BARROS, Maria Nazareth Alvim de. As Tradução de Carlos Felipe Moisés. Edição
Deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de digital. Petrópolis: Vozes, 2015.
perseguição. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos WOOLGER, Roger; Jennifer Barker. A Deusa
Ventos, 2001. Interior. Tradução de Carlos Afonso Mal-
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia ferrari. 1ª ed. (9ª reimpressão). São Paulo:
Grega. 9ª ed. Vol. I. São Paulo: Vozes, 1994. Cultrix, 2007.

CAMPBEL, J. O Poder do Mito. Versão


digital Le Livros da 2ª ed. São Paulo: Palas
Atena, 1991.
______ A Jornada do herói. 1ª ed. São Paulo:
Ágora, 2004.
CORDEIRO, Tiago. Como é um ritual de
necromancia. Super.abril.com.br, 2020.
Disponível em <https://super.abril.com.br/
mundo-estranho/como-eram-os-rituais-de-
-necromancia/>. Acesso em 30/05/2020.
GIRARD, René. Mentira Romântica e Verda-
de Romanesca. Tradução de Lilia Ledon da
Silva. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2009.
GOLSAN, Richard J. Mito e Teoria Mimética
– Uma introdução ao pensamento girardiano.
Tradução de Jugo Langone. 1ª ed. São Paulo:
É Realizações, 2014.
GRIMASI, Raven. Enciclopédia de Wicca
e Bruxaria. Tradução de Marcelo Giusepp
Lichinski, São Paulo: Gaia, 2004.
LIBERMAN, Anatoly. The Oxford Etymolo-
gist goes Trick-or-Treating. University Press’s
Academic Insights for the Thinking World.
2007. Disponível em <https://blog.oup.
com/2007/10/witch/>. Acesso em 18/03/2020.
LOVELACE, Amanda. A bruxa não vai para
a fogueira neste livro. Tradução de Izabel
Aleixo. 1ª ed. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.

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