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RAQUEL ALVES MOTA

O CONCEITO DE FICÇÃO DE JUAN JOSÉ


SAER: A LEITURA DO ESPAÇO FICCIONAL A
PARTIR DE LA GRANDE EM DIÁLOGO COM A
IDEIA DE APREENSÃO MÁXIMA EM
MERLEAU-PONTY

Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2016
RAQUEL ALVES MOTA

O CONCEITO DE FICÇÃO DE JUAN JOSÉ


SAER: A LEITURA DO ESPAÇO FICCIONAL A
PARTIR DE LA GRANDE EM DIÁLOGO COM A
IDEIA DE APREENSÃO MÁXIMA EM
MERLEAU-PONTY

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras de
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor
em Letras: Estudos Literários.
Área de Concentração: Teoria da Literatura e
Literatura Comparada.
Linha de Pesquisa: Literatura e Políticas do
Contemporâneo.
Orientadora: Profª Drª Graciela Inés Ravetti de
Gómez.

Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2016
“Mas é que as impressões perduram”.
LIBBOA, Henriqueta. Obras Completas: I poesia Geral, p. 346.

“Hablar es incurrir en tautologías”.


BORGES. Biblioteca de Babel. In: Ficciones, p. 41.

A minha mãe, Maria Aparecida Alves Mota.


A meu pai, José Getúlio Mota, com saudades.
A Deus, pelo constante cuidado.
AGRADECIMENTOS

À professora Drª Graciela Inés Ravetti de Gómez, pelo constante apoio e orientação nesse
longo período em que tive o privilégio de estudar Literatura argentina e hispano-americana
(em geral) e Teoria Literária – de Quixote aos contemporâneos –; a sua importância foi
extrema nessa caminhada – da graduação ao doutorado – e para as portas que se me abriram:
muito obrigada!

Ao professor Dr. Néstor Ponce, por ter me coorientado em meu período do “Doutorado
Sanduíche”, em Rennes, França. Manifesto meu agradecimento, principalmente, pelos
contatos que, graças a ele, tive com outros pós-graduandos e com professores com expertise
no tema de minha tese e, também, por me permitir conhecer o gabinete de Juan José Saer, em
Rennes 2, lugar que, possivelmente, foi de escrita de alguns dos seus romances.

Ao professor Dr. Georg Otte, por ter me assessorado desde a entrega do projeto final de
doutorado: agradeço imensamente as suas contribuições e sugestões à minha pesquisa, e
também, pela oportunidade de cursar a disciplina “A natureza na Modernidade”, tema que se
acerca ao pesquisado nesta tese.

À professora Drª Maria Zilda Ferreira Cury, que esteve na minha qualificação de doutorado e
se constituiu em canal para que eu conseguisse um coorientador acadêmico em Rennes.

À professora Drª Rita Olivieri-Godet, de Rennes 2, que esteve na Universidade Federal de


Minas Gerais - UFMG em evento coordenado pela Profª Drª Maria Zilda Ferreira Cury. Foi
nessa ocasião que tive oportunidade de conversar com ela sobre o meu trabalho e a
possibilidade de um doutorado sanduíche em Rennes 2, universidade em que Juan José Saer
lecionou. Agradeço o empenho da Profª Drª Rita Olivieri-Godet para me conseguir
coorientador, intermediando contato com o Prof. Dr. Néstor Ponce.

Ao professor Dr. André Abath, por ter me aberto as portas do grupo de estudos da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH da Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG, que coordena, cujo objetivo é discutir a filosofia de Merleau-Ponty.

Ao professor Dr. Renaud Barbaras, por ter me recebido e permitido que participasse, como
ouvinte, do curso “Sur Phénoménologie et Poétique”, em Paris 1.

Ao professor Dr. Julio Premat, por ter me indicado bibliografia para minha pesquisa: foi
sensacional poder falar sobre esta tese com uma das maiores autoridades em Saer.

Aos professores da área de Espanhol da Faculdade de Letras da Universidade Federal de


Minas Gerais - FALE/UFMG; principalmente, à professora Drª Sara Rojo, com a qual cursei
disciplina sobre Rancière e Didi-Huberman, no período de doutoramento.
Ao professor Dr. Eduardo Soares Neves Silva, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
– FAFICH, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, com o qual, também, cursei
uma disciplina sobre Fenomenologia.

Ao professor Dr. Wander Melo Miranda, pelo riquíssimo curso sobre Literatura Comparada,
antiga disciplina obrigatória do doutorado.

Ao professor Dr. Luis Alberto Brandão pelo precioso curso “O Espaço Literário”, cursado no
final da graduação, uma inspiração para este trabalho com o espaço.

Aos professores da banca examinadora de doutorado, já mencionados – Dr. Georg Otte, Drª
Maria Zilda Ferreira Cury e Dr. André Abath –, e a estes outros: Drª Elena Cristina Palmero
González e Dr. Walter Carlos Costa.

Ao Professor de Literatura Paulo Fragoso da Fundação de Ensino de Contagem – FUNEC,


Cruzeiro do Sul, pelo permanente incentivo em minhas leituras em sala de aula.

À coordenação e aos(às) funcionários(as) do Programa de Pós-Graduação em Estudos


Literários – POSLIT, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG; principalmente, a
Letícia, pelas informações sobre questões burocráticas.

À direção e aos(às) funcionários(as) da Biblioteca da Faculdade de Letras - FALE, da


Universidade Federal de Minas Gerais, pela atenção e colaboração em minhas pesquisas.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior - CAPES, pela bolsa


CAPES-REUNI, uma oportunidade docente.

À Coordenação de Aperfeiçamento de Pessoal do Ensino Superior - CAPES, pela bolsa de


“Doutorado Sanduíche” de 09/2014 a 08/2015.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, por minha


bolsa para conclusão do doutoramento.

Ao revisor desta tese, José Euríalo Reis, pelas muitas sugestões.

Ao meu colega do Francês, Bruno Domingos Ramalho, por me ajudar nas traduções do
Francês.

À doutoranda Márcia de Fátima Xavier, pela amizade e companhia em viagens para


congressos e por conversas literárias e do dia-a-dia.

À doutoranda Yara dos Santos Augusto Silva, pela amizade aqui no Brasil e, também, na
França: nosso convívio foi frutífero e compartilhamos conhecimentos e experiências em
visitas a museus da Europa.

Aos companheiros de doutoramento; principalmente, a Cleber Araújo Cabral e a Guilherme


Zubaran de Azevedo.
Aos colegas do grupo de estudos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH
sobre Merleau-Ponty; principalmente, a: Ricardo Nachmanowicz, Regina Dolabela, Patrícia
Lucchesi, Moisés Prado e Lucas Jaued.

Aos doutorandos brasileiros em Rennes; principalmente, a Felipe Franz Wienke e a Leonardo


Sant’Ana Gallo.

Aos meus irmãos, pela força; principalmente, a Isaac Alves Mota (pelas traduções do Inglês),
a Ester Alves Mota, pelo apoio, e a Samuel Alves da Mota, pela presença na defesa.

À Lydia, minha linda sobrinha, por me tirar, muitas vezes, do foco e me chamar para brincar.

À memória do Pr. Délcio Rodrigues Pinto, pelo incentivo ao prosseguimento dos meus
estudos.

A todos esses e outros muitos que fizeram parte deste percurso: muito obrigada!
RESUMO

Nesta tese, percorre-se o espaço saeriano e descreve-se a relação personagem-


mundo nos romances que priorizam o espaço da natureza. A discussão se inicia com a análise
de La grande (2005), romance póstumo de Juan José Saer. Outros romances adentram a
discussão: Cicatrices (1969), El limonero real (1974), Nadie nada nunca (1980), El entenado
(1983), La ocasión (1986), Lo imborrable (1992), La pesquisa (1994) e Las nubes (1997). A
partir da discussão teórica dos textos críticos de Saer – de El río sin orillas (1991) e dos
ensaios “El concepto de ficción” e “La narración-objeto” –, visualiza-se a primazia conferida
ao espaço da experiência, por meio da defesa de um conceito de ficção que privilegia a
vivência homem-mundo. O conceito de ficção de Saer “antropologia especulativa” ativa essa
relação plena com o mundo. Ao contrário da objetividade defendida por grande parte da
crítica saeriana – em razão de uma afiliação ao nouveau-roman –, defende-se que Saer
constrói um espaço da experiência no qual as vertentes homem e mundo perfazem
movimentos de reversibilidade. A originalidade deste trabalho é que, para essa leitura, lança-
se mão do pensamento de Merleau-Ponty, na sua vertente mais radical, a sua última filosofia.
Lê-se, então, esse espaço fenomenológico de Saer à luz da filosofia de Merleau-Ponty:
adentra-se a discussão com a análise do espaço em Fenomenologia da Percepção (1945).
Prossegue-se com a leitura da sua ontologia, das ideias merleaupontyanas que ativam a
compreensão da reversibilidade vidente-visível. O enfoque principal é posto em seu livro
póstumo O visível e o invisível (1964), que se revela espaço de suas ideias ontológicas. O
filósofo cunha ideias próprias, como: corpo, quiasma, visível e invisível, vidente-visível, e
carne que os convertem em “conceitos” que potencializam a análise do espaço da experiência,
da relação potencial com o mundo. O tema que orienta esta pesquisa na obra do filósofo é o
de “apreensão máxima”, ou o exercício de descrever o movimento das personagens no afã de
percorrer a sua relação com outros corpos e com o corpo do mundo. O objetivo é
compreender como Saer maneja, primorosamente, o espaço da experiência, com detalhamento
descritivo que se constrói na esteira de constante busca por sentido.

Palavras-chave: Espaço literário. Conceito de ficção de Saer. Representação. Focalização.


Espaço fenomenológico. Ontologia de Merleau-Ponty. Apreensão máxima.
RESUMEN

En la tesis se recorre el espacio saeriano describiendo la relación personaje-mundo en las


novelas que se centran en el espacio de la naturaleza. La discusión empieza con el análisis de
La grande (2005), novela póstuma de Juan José Saer. Otras novelas se añaden a la discusión:
Cicatrices (1969), El limonero real (1974), Nadie nada nunca (1980), El entenado (1983), La
ocasión (1986), Lo imborrable (1992), La pesquisa (1994) y Las nubes (1997). Por medio de
la discusión teórica de los textos críticos de Saer – de El río sin orillas (1991) y de los
ensayos “El concepto de ficción” y “La narración-objeto” –, se enfoca la primacía puesta en el
espacio de la experiencia, con la defensa de un concepto de ficción que privilegia la vivencia
hombre y mundo. El concepto de ficción de Saer “antropología especulativa” encadena una
relación plena con el mundo. Contrariamente a la objetividad defendida por gran parte de la
crítica saeriana – por la defensa de su relación con el nouveau-roman –, se defiende aquí que
Saer construye un espacio de la experiencia en el cual las vertientes hombre y mundo
ejecutan movimientos de reversibilidad. Lo singular de este trabajo es que se utiliza el
pensamiento de Merleau-Ponty, en su variante más radical o su última filosofía, para hacer
esa lectura. El espacio fenomenológico de Saer se lee a la luz de la filosofía de Merleau-
Ponty: se empieza esta discusión con el análisis del espacio en Fenomenologia da Percepção
(1945). Se prosigue con la lectura de su ontología, de las ideas meleaupontyanas que permiten
la comprensión de la reversibilidad vidente-visible. El enfoque principal se pone en su libro
póstumo O visível e o invisível (1964), que se muestra un espacio privilegiado de sus ideas
ontológicas. El filósofo trabaja sus propias ideas, como: cuerpo, quiasma, visible e invisible,
vidente-visible, y carne convirtiéndolas en “conceptos” que potencializan el análisis del
espacio de la experiencia, de la relación potencial con el mundo. El tema que nortea esta
investigación en la obra del filósofo es el de “aprehensión máxima”, o el ejercicio de describir
el movimiento de los personajes en el afán de recorrer su relación con otros cuerpos y con el
cuerpo del mundo. El objetivo es comprender como Saer maneja, con esmero, el espacio de la
experiencia, dando énfasis a los detalles descriptivos que se construyen como una constante
búsqueda por sentido.

Palabras-llave: Espacio literario. Concepto de ficción de Saer. Representación. Focalización.


Espacio fenomenológico. Ontología de Merleau-Ponty. Aprehensión máxima.
RÉSUMÉ

On parcourt l'espace saerien et décrit la relation personnage-monde dans les


romans qui mettent l'accent sur l'espace de la nature. La discussion commence par l’analyse
de La grande (2005), roman posthume de Juan José Saer. D'autres romans composent la
discussion : Cicatrices (1969), El limonero real (1974), Nadie nada nunca (1980), El
entenado (1983), La ocasión (1986), Lo imborrable (1992), La pesquisa (1994) et Las nubes
(1997). Ayant pour base la discussion théorique des textes critiques de Saer - El río sin orillas
(1991) et des essais “El concepto de ficción” et “La narración-objeto” – on y voit
l’importance attachée à l'espace de l'expérience par la défense d'un concept de fiction qui
attire l’attention sur l'expérience homme-monde. Le concept de fiction Saer « anthropologie
spéculative » active cette relation de coopération complète avec le monde. Contrairement à
l'objectivité défendue par une grande partie de critique saeriana - en raison d'une affiliation au
nouveau-roman – on soutient que Saer construit un espace de l’expérience dans lequel les
volets homme et monde font partie des mouvements de réversibilité. Voici ce qu’il y a de
particulier dans ce travail : pour cette lecture on se fonde sur la pensée de Merleau-Ponty dans
son aspect le plus radical, sa dernière philosophie. On lit donc cet espace phénoménologique
de Saer à la lumière de la philosophie de Merleau-Ponty : la discussion se tient lors de
l'analyse de l'espace dans Phénoménologie de la perception (1945). On continue la lecture de
l'ontologie, des idées merleau-pontiennes qui permettent la compréhension de la réversibilité
voyant-visible. Son oeuvre la plus importante c’est le livre posthume Le Visible et l'Invisible
(1964), qui se montre l'espace de ses idées ontologiques. Le philosophe forge ses propres
idées, telles que : le corps, le chiasme, le visible et l’invisible, le voyant-visible et la chair, des
idées converties en « concepts » qui maximisent l'analyse de l'espace de l'expérience, la
relation potentielle avec le monde. Cette recherche est guidée chez le philosophe par le thème
de la "appréhension maximale" ou l'exercice de décrire le mouvement des personnages ayant
en vue la compréhension de sa relation avec les autres corps et le corps du monde. On a pour
but la compréhension de la manière dont Saer manie à merveille l'espace de l'expérience où
on trouve la description très détaillée qui est construite dans la quête sans cesse du sens.

Mots-clés: Espace littéraire. Concept de fiction de Saer. Représentation. Focalisation. Espace


phénoménologique. Ontologie de Merleau-Ponty. Appréhension maximale.
ABSTRACT

It traverses the Saerian literary space and describes the character-world relationship
in the novels that favor the space of nature. The discussion begins with the analysis of La
grande (2005), posthumous novel of Juan José Saer and other novels that run into it:
Cicatrices (1969), El limonero real (1974), Nadie nada nunca (1980), El entenado (1983), La
ocasión (1986), Lo imborrable (1992) La pesquisa (1994) and Las nubes (1997).
Commencing from the theoretical discussion of Saer’s critical text El río sin orillas (1991)
and the essays "El concepto de ficción" and "La narración-objeto" – the primacy granted to
the space of experience is presented by advocating a concept of fiction that focuses on the
human-world experience. Saer’s concept of fiction "speculative anthropology" enables this
absolute relationship with the world. Unlike the objectivity postulated by much of Saerian
critics on account of an affiliation to the nouveau-roman, it is claimed that Saer builds a space
of experience in which man and world elements perform reversibility movements. From this
reading, it takes hold of Merleau-Ponty’s most radical thoughts: his last philosophy-
remarkable characteristic of this discussion -, and delves into the analysis of space in
“Phenomenology of Perception” (1945) and into the reading of Saer’s phenomenological
space in light of Merleau-Ponty. The understanding of the seer-visible reversibility is enabled
by the reading of Merleau-Ponty’s ontology. The core of the discussion is his posthumous
book “The visible and the Invisible” (1964) – which reveals itself as a space of ontological
ideas. Ideas developed by the philosopher such as body, chiasm, visible and invisible, seer-
visible, and flesh, converted into "concepts" enhance the analysis of the space of experience,
the potential relationship with the world. The guiding theme of this research in the
philosopher's work is the "maximum grip", or the exercise of describing the characters
movement in order to track their relationship with both other bodies and the body of the
world. It aims to understand how Saer exquisitely handles the space of experience with such
descriptive detail which is built on the route of a ceaseless quest for meaning.

Keywords: Literary space. Saer’s fiction concept. Representation. Focalization.


Phenomenological space. Merleau-Ponty’s Ontology. Maximum grip.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................. 13

1. TEORIA E IMAGINAÇÃO EM SAER................................... 20

1.1 FENOMENOLOGIA DO ATO FICCIONAL EM EL RÍO SIN ORILLAS. 25


1.1.1 O título e a introdução.............................................................................. 26
1.1.2 Primeira estação: “Verano”....................................................................... 32
1.1.3 Segunda estação: “Otoño”......................................................................... 37
1.1.4 Terceira estação: “Invierno”...................................................................... 41
1.1.5 Última estação: “Primavera”..................................................................... 43
1.2 O ENSAIO “EL CONCEPTO FICCIÓN”……………………………………… 47
1.3 TIPOS DE DISCURSO EM “LA NARRACIÓN-OBJETO”………………….. 52
1.4 REUNINDO FENOMENOLOGICAMENTE OS TEXTOS LIDOS................. 59

2. DO ESPAÇO LITERÁRIO À APREENSÃO MÁXIMA EM MERLEAU-PONTY:


UM GIRO ENTRE FILOSOFIA E TEORIA LITERÁRIA SOBRE O ESPAÇO ... 63

2.1 UM GIRO TEÓRICO SOBRE O ESPAÇO LITERÁRIO................................... 66


2.2 APREENSÃO MÁXIMA: O ESPAÇO EM MERLEAU-PONTY .................... 73
2.2.1 A apreensão máxima na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty.. 73
2.2.1.1 O capítulo “o espaço” da Fenomenologia da Percepção .............. 75
2.2.1.2 O capítulo “o sentir” da Fenomenologia da Percepção ................. 85
2.2.1.3 O capítulo “a temporalidade” da Fenomenologia da Percepção ... 88
2.2.2 A apreensão máxima em O visível e o invisível, de Merleau-Ponty ............ 92
2.2.2.1 A linguagem do ver........................................................................ 94
2.2.2.2 Visível e Invisível: uma tentativa de definição.............................. 110
2.2.2.3 Motricidade como base do pensamento final de Merleau-Ponty.... 123

2.3 DESDOBRAMENTO DA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY NO INTERIOR DE


UMA TEORIA DO ESPAÇO LITERÁRIO................................................................ 136

3. O ESPAÇO DE LA GRANDE DE JUAN JOSÉ SAER ........................................... 148

3.1 NULA: O APREÇO PELA SUBJETIVIDADE E A TRANSITORIEDADE DAS


COISAS....................................................................................................................... 158
3.2 GUTIÉRREZ: A SINGULARIDADE DO ACONTECER E AS EXPERIÊNCIAS
DO PASSADO ........................................................................................................... 170
3.3 HORIZONTE E TRANSCENDÊNCIA EM LA GRANDE: CAMINHOS DA
PERCEPÇÃO E OS MOVIMENTOS DO NARRADOR ....................................... 186

4. O REALISMO EM SAER: VANGUARDAS E DISCUSSÕES ESTÉTICAS EM LA


GRANDE E EM LO IMBORRABLE ........................................................................ 196
4.1 A DISCUSSÃO DO REALISMO A PARTIR DO “PRECISIONISMO” DE LA
GRANDE ..................................................................................................... 196
4.2 A DISCUSSÃO DO REALISMO A PARTIR DE LO IMBORRABLE (1993) .. 208
4.3 O REALISMO E O GESTO METAFICCIONAL SAERIANO: A DISCUSSÃO
FICCIONAL COMO PERIPÉCIA DO ROMANCE ................................................ 218

5. PERSPECTIVAS OUTRAS SOBRE O ESPAÇO SAERIANO: A LHANURA, O RIO


E AS NUVENS ................................................................................................................. 235

5.1 A LHANURA: O DESCAMPADO MUNDO SOB MEUS PÉS ................... 237


5.2 O RIO: O PROSSEGUIMENTO EM DIREÇÃO AO HORIZONTE DO MUNDO
.................................................................................................................................. 248
5.3 AS NUVENS: CONTRAPONTO OU PARALELISMO DA LHANURA E DO RIO
................................................................................................................................... 258

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 271

REFERÊNCIAS........................................................................................................... 283

REFERÊNCIAS DE SAER .......................................................................................... 283


REFERÊNCIAS SOBRE SAER .................................................................................. 283
REFERÊNCIAS TEÓRICAS ..................................................................................... 287
ANEXOS....................................................................................................................... 292
13

INTRODUÇÃO

O espaço em Juan José Saer sempre me interessou e – desde meu processo de


pesquisa e escrita da dissertação “A voz poética dos protagonistas: a (re)construção do real
em La ocasión,de Juan José Saer, e em Dom Casmurro, de Machado de Assis” (MOTA,
2011) –, tenho fixação por compreender essa instância ficcional em Saer. Na verdade, desde
meu ingresso no projeto de Iniciação Científica “Escritores Latino-Americanos: saberes
narrativos, críticos e poéticos”, coordenado pela professora Graciela Inés Ravetti de Gómez,
da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, quando da leitura
do livro de Saer que mais aprecio: Las nubes (1997). Minha dissertação teve por tema o
narrador e a voz poética enunciada, principalmente, no texto ficcional. É interessante que,
pensando agora, alguns anos após a escrita da dissertação e ao término da escrita desta tese,
concluo que iniciar a pesquisa pelos temas da voz e da focalização – como fiz, a partir da
dissertação − é potencialmente relevante para a compreensão do pensamento espacial
saeriano. Não cheguei a essa conclusão na época de escrita da dissertação, mas vejo, hoje, a
impossibilidade de se descrever o espaço saeriano desprovido da presença humana, da
focalização. Assim, tendo como maior desejo aproximar-me do espaço saeriano, senti a
necessidade de descrever, primeiramente, a sua estrutura narratológica. Há, então, coerência
neste processo de pesquisa e incursão no pensamento saeriano. Nesta tese, essa relação com a
focalização não é abandonada, porque um dos espaços pesquisados é aquele mediado pela
focalização. Ou melhor, o que defendemos, aqui, é que Saer projeta um espaço humano: o
espaço saeriano, que se revela na relação entre voz e visão ou, potencialmente, na experiência.
O tema central desta tese é, então, o espaço saeriano e, com o concurso de várias
contribuições teóricas, objetivamos descrever ou ler a sua manifestação, principalmente, nos
romances. Defendemos, inicialmente, que é impossível pensar esse lugar desvinculado do
olhar, da focalização, da presença humana. Com essa certeza, procuramos um arcabouço
teórico que pudesse manter em movimento o espaço saeriano ou que não atendesse apenas à
sua estruturação como lugar físico. É visando a uma leitura fenomenológica que trazemos
para esta discussão o pensamento de Merleau-Ponty; especialmente quando proclama a
radicalidade da relação vidente-visível, na sua ontologia final1. Esse pensamento é, então, a

1
Sobre a ontologia de Merleau-Ponty afirma Ferraz: “[...] a formulação de uma ontologia por Merleau-Ponty não é
uma tarefa que se limita a sanar alguns problemas teóricos de seus primeiros textos, mas um empreendimento
que visa renovar as bases dos sistemas simbólicos e das relações interpessoais da civilização contemprorânea”
(FERRAZ, 2009, p. 60).
14

principal ferramenta para a compreensão do espaço saeriano ou das experiências das


personagens saerianas. O essencial é deixar bem claro que, em Saer, não se pode desvincular
o espaço da percepção das personagens; que o que se objetiva é perceber a relação do homem
no mundo. Tivemos como propósito inicial repassar os fundamentos teóricos e filosóficos da
categoria espacial, como pré-requisito para a exploração da relação homem-mundo nos
romances. Percebemos, então, a experiência munida de conhecimento estrutural sobre o tema
do espaço, mas, por outro lado, em Saer, esse não pode ser o objetivo final da pesquisa. Essa
assertiva decorre daquilo que já foi explanado, anteriormente: o espaço saeriano como
experiência sempre ativa.
Nesta tese, então, optamos por discutir o espaço saeriano por intermédio do
pensamento do próprio escritor, para, em seguida, explorá-lo fenomenologicamente. Cumpre,
aqui, precisar essa relação entre fenomenologia2 e ontologia em Merleau-Ponty, antecipando
aquilo que é tema do segundo capítulo desta tese. Seguimos, aqui, uma corrente de leitura da
filosofia de Merleau-Ponty que defende o prosseguimento de seu pensamento ou que, no
interior da própria Fenomenologia da percepção (1945), já se encontra uma doutrina
ontológica em vigor3. Essa ideia de prosseguimento, além de validar a leitura que se faz aqui
– iniciamos com a discussão de tópicos dessa obra de 1945, visando-se à compreensão da
radicalidade de O visível e o invisível –, exige esse próprio deambular no pensamento de
Merleau-Ponty. Esta tese é, então, composta por cinco capítulos, que discutem o espaço em
Saer: iniciamos com o enfoque em seus ensaios críticos e, posteriormente, exploramos a
fenomenologia merleaupontyana, com o objetivo de proceder à leitura dos romances
saerianos; principalmente, de La grande. Optamos por fazer as traduções das citações em
Francês e as poucas do Inglês, deixando na íntrega os trechos de Juan José Saer – literários e
críticos –, bem como as outras citações em Espanhol.
O primeiro capítulo traz uma análise teórica de dois ensaios representativos da
crítica saeriana: “El concepto de ficción” e “La narración-objeto”. Iniciamos essa discussão
com El río sin orillas, livro também considerado ensaístico, visando sublinhar o pensamento
ficcional de Saer ou como se defende a sua estética de representação do mundo. Essa teoria do
espaço como representação é importante, para esta tese, para o desenvolvimento do

2
A fenomenologia pode ser entendida como: “[...] a doutrina que fornece o método para que se priorize a relação
entre consciência perceptiva e estruturas concretas em contraposição à ideia de um mundo objetivo tal como
delimitado pelo senso comum e pelas abordagens científicas” (FERRAZ, 2009, p. 184).
3
Um dos mais respeitados especialistas em Merleau-Ponty, Renaud Barbaras – filósofo que, adentra, aqui, como
comentador principal dos textos de Merleau-Ponty – “defende que “parece que é à luz de O visível e o invisível
que os trabalhos anteriores adquirem coerência e consistência, de tal modo que nós não podemos lê-los senão por
meio da retomada a qual finalmente eles propiciam”” (FERRAZ, 2009, p.12).
15

pensamento sobre o espaço da experiência em Saer. El río sin orillas apresenta uma
encenação da própria ficção saeriana – ou de seu pensamento ficcional –, quando Saer se
propõe a escrever uma “ficção não-voluntária”. É como se esse escritor estivesse legislando
sobre o seu conceito de ficção, sua relação com a representação do mundo. Posteriormente,
desvela-se o próprio “El concepto de ficción”, que se define como uma “antropologia
especulativa”. A ficção apresenta-se como essa abertura à exploração do homem, como um
lugar em que variantes de relações com o mundo podem ser experienciadas. “La narración-
objeto”, último ensaio que analisamos nesta tese, confirma a relevância da presença humana
no conceito de ficção de Saer. Esse passo teórico é, então, primordial, porque esclarece a
estrutura da experiência, o potencial do espaço saeriano.
Apresentamos, no segundo capítulo, abordagens filosófica e teórico-literária sobre
o espaço. Para o seu desenvolvimento, foram de suma importância dois movimentos de
pesquisa. O primeiro foi minha vinculação ao grupo de estudos da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas – FAFICH da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG sobre
Merleau-Ponty, coordenado pelo Prof. André Abath, no segundo semestre letivo de 2012;
lemos, juntos, a Fenomenologia da percepção, O olho e o espírito e alguns textos de análise
dessa filosofia. Participei desse grupo por dois anos, desvinculando-me dele para fazer meu
segundo movimento de pesquisa: o “doutorado sanduíche” na França. Essa estada, por um
ano, em Rennes, me possibilitou ricas leituras, principalmente, sobre a fase ontológica de
Merleau-Ponty. Pude ler, na íntegra, a tese de Barbaras, intitulada De l’être du phénomène:
sur l’ontologie de Merleau-Ponty, texto-base que utilizei para analisar O visível e o invisível.
Li outros textos de grande relevância para o desenvolvimento desta tese, como os artigos:
« Le soi incarné: Merleau-Ponty et la question du sujet », de Villela-Petit ; « Merleau-Ponty et
la pensée du dedans », de Françoise Dastur ;« Motricité et phénoménalité chez le dernier
Merleau-Ponty », de Renaud Barbaras ; e « La notion de « transcendance » dans Le visible et
l’invisible : de l’indetermination au désir », de Agata Zielinski, entre outros.
Outro grande ganho que tive com essa temporada na França foram meus contatos
com professores altamente competentes quanto ao tema desta tese. O primeiro contato foi
graças ao meu coorientador acadêmico em Rennes 2, Prof. Néstor Ponce, que me passou o e-
mail do Prof. Julio Premat. Um dos textos-base para a leitura crítica de Saer foi sugerido por
Premat: Juan José Saer: la construcción de una obra. Nesse livro, tive acesso a vários artigos,
muito citados, principalmente, no primeiro capítulo desta tese. Dentre eles, destaco: “Antes de
que cuenten: la estética de Juan José Saer”, de Dardo Scavino; “El ciclo de novelas sobre el
tiempo: Saer y Robbe-Grillet”, de Rafael Arce; “La política, la devastación”, de Beatriz Sarlo
16

e “El desafío de lo clásico”, de Julio Premat. Outro contato foi com o Prof. Renaud Barbaras:
tive o prazer de participar, como ouvinte, do seminário de Master 2 “Sur Phénoménologie et
Poétique”, em Paris 1. Agradeço imensamente minha orientadora, por me incentivar a fazer o
“doutorado sanduíche”, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior -
CAPES, pelo investimento: posso afirmar que esta tese não seria a mesma, se não tivesse feito
essas leituras e contato com a desafiadora contribuição de todos esses professores.
No segundo capítulo, desenvolvemos, então, uma discussão sistemática sobre o
conceito de espaço: iniciamos com a discussão literária do tema e, em seguida, procedemos ao
exame da ideia de “apreensão máxima” em Merleau-Ponty. A parte filosófica inicia-se com
exame do conceito de espaço em Fenomenologia da Percepção, como entrada para o tema da
reversibilidade entre vidente e visível. O objetivo ou o que interessa são, principalmente, as
últimas ideias de Merleau-Ponty, porque se defende, aqui, que elas dinamizam a compreensão
da potencialidade da experiência no mundo. A complexidade de se deambular pelas etapas
filosóficas de Merleau-Ponty – ou de se fixar em mais de uma de suas fases filosóficas – é
justificada por nós acompanharmos a linha de estudos que defende o prosseguimento das
ideias dos primeiros trabalhos e sua última filosofia. Iniciamos com a abordagem do “espaço”
e prosseguimos com a ideia de apreensão máxima, que responde à realização do próprio
conceito de espaço; ou seja: iniciamos com o capítulo “o espaço” da obra Fenomenologia da
Percepção, discutindo-se a sua estrutura, e, em seguida, enfatizamos o mundo da experiência.
A perfeita realização da vivência é consolidada na terceira fase do pensamento de Merleau-
Ponty, na qual esse filósofo defende ideias próprias para dar conta do movimento de
reversibilidade entre o vidente e o visível. Apesar de o início da pesquisa contemplar a obra
de 1945, o objetivo é a preparação para o enfoque das ideias da última fase da filosofia de
Merleau-Ponty. Entre as obras Fenomenologia da Percepção e O visível e o invisível,
abordamos, como ponte, O olho e o espírito; ou seja: dos três ensaios que compõem esse
livro, apenas um pertence à fase intermediária, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”.
O capítulo se encerra com a discussão estética sobre o uso desse pensamento filosófico como
recurso para leitura do espaço literário; ou seja: uma forma de se defender essa filosofia no
universo teórico-literário, como se realiza nesta tese.
Sobre essa terceira parte do capítulo, cumpre apresentar uma pequena explicação:
antes dessa estada na França, tive conhecimento dessa leitura do espaço literário que se faz
por meio dos “conceitos” merleaupontyanos. Estava estudando Merleau-Ponty, quando, ao
participar do Silel – Simpósio Internacional de Letras e Linguística – de 2013, em Uberlândia
- MG, tendo me inscrito no grupo temático “Espaço e Literatura”, tomei conhecimento de
17

teóricos que utilizam o pensamento de Merleau-Ponty como instrumento para leitura e


compreensão da experiência espacial. Conversei com alguns colegas de universidades do Rio
de Janeiro e levantei algumas referências bibliográficas para futura pesquisa, quando chegasse
à França, já que tive muita dificuldade para encontrar, na biblioteca, livros desses autores.
Nomes como Michel Collot, Michel Certeau e Marc Augé me foram expostos, mas fixei-me
apenas no primeiro, quando cheguei a Rennes, por Michel Collot fixar-se acentuadamente em
Merleau-Ponty, trabalhando com sua última filosofia, de forma a elaborar um conceito
próprio para a descrição da experiência da personagem no mundo. Collot defende o conceito
de “pensée-paysage” para relevar esse movimento da personagem no espaço da sua
experiência no mundo.
Após discussão teórico-literária e filosófica, o terceiro capítulo compreende a
experimentação de todo esse pensamento no último romance de Saer, em La grande. Começar
pelo romance póstumo, deixado inconcluso pelo autor, justifica-se por percebemos, nele, o
condensar de suas ideias literárias. A própria personagem principal se autodenomina filósofo
e adota, em todo o romance, postura crítica em relação à experiência no mundo. É o conflito
dela – de Nula – e de Gutiérrez, a personagem de contraponto, que legitima pensar sobre a
relação das personagens com o espaço. A discussão em torno dos reais motivos que levaram
Gutiérrez a retornar ao seu país, depois de mais de três décadas fora, é proposta pela
focalização múltipla em várias personagens. Tomatis é uma delas, e seu objetivo é do mais
que apenas averiguar o retorno de Gutiérrez; é, também, elaborar um pensamento crítico
literário sobre o próprio movimento estético desse último romance: tema esquadrinhado no
quarto capítulo desta tese. As personagens se revezam, então, no projeto de pensar qual o grau
de interação de Gutiérrez com o mundo, ou se ele consegue reaver sua antiga relação com
esse espaço. Devido ao teor filosófico da perspectiva de Nula e à ampla dispersão da
focalização na discussão, principalmente, do grau da experiência de Gutiérrez, temos, então,
os ingredientes para se recorrer às ideias de Merleau-Ponty. Em La grande, questiona-se o
valor da experiência ou como se dá essa relação das personagens com o mundo. É como se
fosse primordial, além das aberturas à interpelação do mundo pelos sentidos, uma discussão
aberta sobre como se dá a própria experiência.
Retomamos a discussão teórica no quarto capítulo desta tese, que cujo foco é
deslindar o conceito de “realismo” em Saer. O tema é amplo e, por isso, o recorte é bem justo:
discutimos o quinto capítulo de La grande ou o movimento “precisionista” e a metacrítica
desenvolvida em Lo imborrable sobre o livro da personagem Walter Bueno, La brisa en el
trigo. Esse capítulo de La grande se articula como um solilóquio: Tomatis se debruça sobre a
18

carta de um informante da personagem Gabriela Barcos sobre o movimento precisionista.


Essa abertura dada a Tomatis é uma forma de Saer expor uma perspectiva crítica sobre o seu
próprio conceito de ficção. Em Lo imborrable, o movimento é o mesmo, porque Tomatis é
personagem-narradora e, também, discute a estrutura de La brisa en el trigo. As posturas
estéticas do mentor do precisionismo – Mário Brando – e de Walter Bueno – autor de La
brisa en el trigo – são postas frente a frente como base para que se referende o conceito de
ficção de Saer.
A importância de discutirmos o “realismo” em um capítulo específico é motivada
pela insistência de Saer – em todos os seus escritos – em mostrar como esse conceito, quando
usado inocentemente – como identificação entre a coisa e sua representação – pode
desestruturar a compreensão da própria ficção. Percebemos, então, a ativação da experiência
como ingrediente da trama, ou que a ficção não é o contrário do vivido. O tema do realismo
pode ser entendido como a extensão da discussão do conceito saeriano de ficção. A sua
relevância reside, também, no fato de o realismo ser amplamente questionado pelos
fundamentos da Fenomenologia: prescreve-se, em primazia, o retorno ao mundo, a defesa da
experiência. O capítulo se reveste de importância, principalmente, porque prossegue a
discussão do conceito de ficção de Saer e, também, legitima-se a experiência no mundo ou o
valor da ficção como articuladora dos caminhos do “olhar”. É nesse ponto que esse quarto
capítulo dialoga com o pensamento merleaupontyano, em defesa da relação potencial entre
vidente e visível, perpetrada na arte. Retomando as análises do precisionismo e de La brisa en
el trigo, esse capítulo expõe as diretrizes do romance saeriano, defendendo a singularidade da
experiência. Tomatis, nos dois romances, em La grande e em Lo imborrable, posiciona-se
contrário às amarras do realismo – quando pensado como identificação – e a favor dessa
relação potencial entre o mundo e sua representação. Percebemos, então, na obra de Saer, a
defesa da experiência, da relação potencial do homem com o mundo; principalmente, em seus
romances.
O quinto capítulo desta tese é um sobrevoo sobre a obra saeriana, com enfoque
em seus lugares mais revisitados: a lhanura, o rio e as nuvens. Priorizamos romances que se
abrem para esse espaço da natureza, no qual se observa ampla relação de proximidade entre as
personagens e o mundo. A lhanura é o espaço por excelência de Saer, lugar no qual a
personagem se debate entre o ver e o ser visto: esse último, quando das recordações ou pelo
movimento de decifração de sua própria relação com o mundo. O rio é, muitas vezes, o
caminho que se percorre em direção ao horizonte, lugar em que os sentidos da personagem se
encontram e se justapõem, no fenômeno de sinestesia. O rio é, então, continuidade da
19

horizontalidade da lhanura e, por isso, gesticula mais firmemente com essa busca por
decifração do sentido da experiência. O céu recobre esses dois lugares, provocando na
personagem, que se movimenta em terra ou pelo rio, um sentimento de clausura. A
invariabilidade da paisagem provoca esse sentimento de melancolia, devido à mesmice das
coisas. Nesse capítulo, apresentamos exemplos de vários romances, como recurso para se
defender que o espaço saeriano é desvelado na experiência: é uma constante indagação do
mundo e dessa própria relação.
Concluímos esta tese com nossas “Considerações finais”, nas quais expomos
levantamento dos pontos relevantes da leitura fenomenológica do pensamento espacial
saeriano, suas considerações e possíveis caminhos abertos para futuro prosseguimento da
pesquisa. O que defendemos, em todos os capítulos desta tese, é que o espaço saeriano é
dinâmico, sendo a relação de cada personagem com o mundo entendida como uma abertura
singular de um espaço de interação plena. A estética saeriana busca dar conta dessa profusão
toda: no momento em que não consegue tocar os limítrofes do visto – com, principalmente, o
recurso da descrição minuciosa das coisas –, o metaficcional se expande. Essa dialética entre
mostrar as coisas – e, dada a sua inesgotabilidade, fixar-se em revelar a própria estrutura do
texto – revela-se como estética da obra saeriana. O primoroso trabalho de Saer com o espaço e
com a riqueza descritiva das coisas sustenta esse olhar mais centrado sobre a experiência no
mundo. A busca por manter essa relação se revela como uma volitiva do próprio Saer uma
maneira de intentar recobrir o todo e extrair dele o seu sentido.
20

CAPÍTULO 1
TEORIA E IMAGINAÇÃO EM SAER

“A questão da ficção é, antes de tudo, uma questão de distribuição dos lugares.”


Rancière, A partilha do sensível, p. 17.

A obra de Saer4 discute, reiteradamente, em todos os gêneros nela contemplados,


os limites do texto ficcional. Duas são as frentes teóricas que se destacam na obra saeriana: a
relação complexa com o real − buscando apreender os filigranas do acontecimento − e o
trabalho meticuloso com o relato ou com as formas de estruturação da própria narrativa. De
forma a discutir essa postura estética, críticos5 periodizam a obra saeriana em três momentos,
a saber:

[a] grandes rasgos, y si bien cabe matizar el criterio evolutivo que rige
semejante periodización, suelen distinguirse en la obra de Saer tres
momentos: la etapa de aprendizaje, que abarca dos novelas y tres libros de
relatos, desde En la zona de 1960 hasta Unidad de lugar de 1967; la etapa
experimental, que incluye tres novelas y un libro de relatos, desde Cicatrices
de 1969 hasta Nadie nada nunca de 1980, y la etapa llamada “madura”,
compuesta por siete novelas y un libro de relatos, desde El entenado de 1983
hasta La grande de 2005 (LOGIE, 2013, p. 30).

São discutíveisos termos “aprendizaje”, “experimental” e “madura”, tendo em


vista que críticos6 percebem um diálogo estético das últimas obras com as primeiras, ou uma
circularidade, no que tange ao arrefecimento da radicalidade experimental nas últimas obras.
Essa postura é perceptível em Premat que, no texto “El desafío de lo clásico” 7, identifica, em

4
ALONSO (2011, p. 9) escreve sobre Saer (Serodino, Santa Fe, 1937 – Paris, 2005): “[n]acido en la pequeña
Serodino, de inmigrantes sirios (sus padres, a los que precisamente dedica El río sin orillas)”.
5
No livro de ensaios Juan José Saer: la construcción de una obra, organizado por Ilse Logie (2013), percebe-se a
defesa dessa periodização da obra saeriana. Logie, autor do texto da primeira citação acima, defende essa
estrutura de leitura e Arce (2013, p. 89) arrola críticos que defendem essa periodização, como: Gramuglio,
Dalmaroni, Manzi e Premat. No ensaio “Desplazamientos necesarios: los ensayos de Juan José Saer”, Nora
Catelli (2013, p. 254) também defende essa variação estética na obra de Saer.
6
No ensaio “El desafío de lo clásico”, Premat (2013) discute o retorno de Saer à estética dos primeiros romances
por intermédio, principalmente, de La grande (2005). Premat polemiza a recepção crítica do romance na
Argentina e a acusação de um “anacronismo estético”. Essa discussão é importante, nesta tese, e é desenvolvida
no capítulo: “O realismo em Saer: vanguardas e discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable”.
7
PREMAT, 2013, p. 221-235.
21

La grande, um “anacronismo estético”8. Primeiramente, é preciso compreender o termo


“experimental” como uma etapa em que Saer articula novas estruturas para o interior de seu
texto, um período em que se observa um diálogo mais pujante com o nouveau-roman na
utilização de “procedimientos objetivistas”9:

[o]tro de los procedimientos constructivos predominantes en la narrativa de


Saer, y particularmente en esta etapa experimental de su trayectoria, es la
descripción, cuya exasperación surte un efecto paradójico. Cuando las
acciones y los objetos se describen hasta en sus más mínimos detalles y
variantes, entonces su sentido se sustrae al lector y amenaza con desaparecer.
Y en esta aparente ausencia de sentido, la descripción obsesiva significa la
destrucción de la confianza en la notación realista, en la descripción que
carga de significados precisos a los objetos. Es este aspecto el que ha llevado
a la crítica a señalar el parentesco de la obra de Saer con la novela objetivista
(o Nouveau-Roman o escuela de la mirada) francesa, con representantes
como Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor y Marguerite
Duras (LOGIE, 2013, p.20).

A estética encabeçada por Robbe-Grillet10 influenciou, segundo Arce11,


principalmente, o chamado ciclo saeriano de narrações sobre o tempo: Cicatrices, El limonero
real, La mayor e Nadie nada nunca. Arce defende a independência estética de Saer ou que o
objetivismo cinematográfico do nouveau-roman é confrontado por um aprofundamento no
pictórico; ou seja: as descrições ultrapassam a notação realista, já que Saer privilegia a busca
pela essência ou pelo sentido do mundo. É interessante que Scavino 12, também, percebe a
estética saeriana como resultado de meticuloso trabalho com as possibilidades de sentido da
narrativa. As personagens não apenas se projetam na esteira de atravessar os horizontes de
sentido, mas a própria narrativa convida o narratário a delinear caminhos possíveis de sentido.

Saer buscaba para su literatura el mismo ideal que Van Gogh: no se trata de
pintar cosas sino manchas, líneas, formas, y dejar que el espectador imagine,
cuando observa el cuadro, las cosas que éste, supuestamente, representa, o de
insinuar, a partir de unos pocos trazos, una silueta, un contorno, impreciso y
siempre ambiguo, como en el arte japonés de Shubun o Sesshu (SCAVINO,
2013, p. 55).

8
Essa questão é, também, desenvolvida no capítulo intitulado “O realismo em Saer: vanguardas e discussões
estéticas em La grande e em Lo imborrable”, no qual se faz a leitura do quinto capítulo de La grande e da
recepção crítica de La brisa en el trigo no romance Lo imborrable.
9
ARCE, 2013, p. 93.
10
Arce escreve: “[l]a tentativa de la novela de Robbe-Grillet es devolver a las cosas y al mundo su carácter de
meras cosas (su in-significancia) y restituir la distancia originaria entre esas cosas y el individuo. De ahí la
preponderancia de lo óptico aséptico que acerca la técnica a la narración cinematográfica: el narrador dice lo que
ve, sin proyectar al mundo ningún sentido antropomórfico, sea de la clase que fuere” (ARCE, 2013, p. 95).
11
ARCE, 2013, p. 92.
12
SCAVINO, 2013, p. 56.
22

É importante destacar essa discussão, porque, nesta tese, são de suma importância
tanto o vetor da subjetividade quanto o da objetividade. Seu foco centra-se nas engrenagens
do movimento entre sujeito e mundo, quando se busca o sentido da própria vivência. Resulta
daí a importância de trazermos, neste primeiro capítulo, os ensaios saerianos que defendem
essa estética da subjetividade. O objetivo é sublinharmos os procedimentos que Saer defende
como sua estética, tendo por escopo a confrontação, posterior, desses com o texto literário.
Assim, quando optamos pela leitura de textos ensaísticos como abertura desta tese, nosso
objetivo é pontuar como Saer delega importância à subjetividade como vetor da própria
ficção. O objetivo é nos aproximarmos do texto central desta análise, La grande, já com as
estruturas de análise da estética saeriana bem consolidadas. A importância de defendermos a
presença do sujeito no texto reside no fato de esta tese se focar na leitura do espaço
experienciado pela personagem. O objetivismo – de empréstimo do nouveau-roman –
defendido, por muitos, como estética saeriana, principalmente nos romances da chamada fase
“experimental”, é minado quando a personagem busca se integrar ao mundo ou se descobre
no encalço do sentido da experiência. Essa vertente humana, na obra de Saer, é desvelada por
meio do conceito de “antropologia especulativa”, defendido no seu pensamento teórico-
crítico. Essa presença do homem é chave de leitura para a defesa de uma relação
fenomenológica das personagens saerianas com o mundo: o objetivo desta tese é
desentranharmos o espaço saeriano e o envolvimento do homem com o mundo, tendo como
ferramenta o pensamento de Merleau-Ponty13; principalmente, em sua última fase, a
ontológica.
Recapitulando, Saer teoriza a sua ficção reiteradamente, seja em seu livro de
poesia, seja nos contos, seja nos romances e, mais incisivamente, nos livros de ensaios. A
questão está entre um teorizar no intuito de conceituar, como no emblemático “El concepto de
ficción”14, ou, na maioria das vezes, como forma de polemizar o próprio estatuto do texto que
está sendo redigido. No ato da escrita, a possibilidade de representação da realidade é
questionada, assim como a elaboração dos elementos ficcionais. Até mesmo no título do seu

13
TASSINARI, 2013, p. 183, escreve: “MAURICE MERLEAU-PONTY nasceu em Rochefort-sur-Mer em 14 de
março de 1908. Em Paris, estudou na Escola Normal Superior, onde travou contato com a filosofia de Husserl e
com o existencialismo, graduando-se em Filosofia em 1931. [...] Publicou seu primeiro livro, A estrutura do
comportamento, em 1942, mas só obteve o grau de doutor em 1945, com a tese Fenomenologia da percepção.
[...] Durante toda a década de 1950, Merleau-Ponty trabalhou numa “ontologia pré-reflexiva” ou “selvagem”,
destinada a rever e superar a fenomenologia. Em 1960, publicou Signos, volume que reúne ensaios seminais de
reflexão política, estética e filosófica, como “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e “O filósofo e sua
sombra”. Contudo, não concluiu as grandes obras que planejava, falecendo em 04 de maio de 1961, em Paris.
14
SAER, 1997, p. 9.
23

15
livro de poesia, El arte de narrar (2000) , Saer consegue revelar sua preocupação com os
mecanismos e os alcances da narrativa. A discussão teórica e crítica, mesmo quando se foca
em outras instâncias (sem a preocupação das separações entre ficção e verdade: considerado
como um falso problema, na percepção de Saer), o primeiro passo do escritor é redefinir esses
lugares. Como o núcleo desta tese, como já foi antecipado, é a investigação do espaço
ficcional saeriano, tendo como entrada o seu último romance, La grande (2005), então, antes
de aproximarmos dos romances, é essencial discutir o estatuto ficcional de Saer e a forma de
representação desse espaço.
Neste capítulo, acompanhamos o desenvolvimento das ideias teóricas de Saer, nos
seus livros de ensaios, centrando-nos nos ensaios que mais se detêm na teorização da ficção.
Os textos elencados foram: o livro El río sin orillas (1994)16, o ensaio “El concepto de
ficción” (1997) e o ensaio “La narración-objeto” (1999)17. Utilizando uma estratégia
diferente18 daquela que Saer usa para publicar seus ensaios e contos (publica sempre em
sentido inverso à data de escrita ou em sentido não cronológico), percorremos os textos na
ordem em que, aqui, são apresentados. Essa estrutura tem por objetivo revelar e discutir a
coerência crítica do pensamento de Saer.
A eleição dos textos segue interesse pessoal, que se justifica pelo volume de
questões relevantes para esta tese que neles são desenvolvidas. O foco é seguir o pensamento
saeriano em textos que se apresentam potencialmente teóricos, como “El concepto de ficción”
e “La narración-objeto”. Contudo, a discussão inicia-se com uma experimentação saeriana de
sua própria teoria, com a análise do livro El río sin orillas. O interessante é pensar como esses
textos se complementam e, principalmente, como El río sin orillas condensa e expande
questões teóricas desenvolvidas em textos posteriores. A singularidade desse livro está no
movimento entre teoria e ficção ou na própria experimentação daquilo que, teoricamente,
15
Há uma discussão proveitosa a respeito do título desse livro; Delgado aborda essa questão pontuando como Saer
muda o título do poema homônimo do livro, dando ênfase ao dilema do ato de narrar, ao mesmo tempo em que
destaca sua iterativa preocupação com os mecanismos poéticos: “[...] En este punto es interesante destacar, en el
proceso de definición del libro, como lo ha estudiado Martín Prieto, la corrección que realiza Saer, en el título de
un poema que en Cuadernos Hispanoamericanos se llamaba “Arte poética”. Se ve claramente en un
dactilograma, donde el poema está fechado en 1969 (ni en la revista ni en el libro aparece la fecha) y donde se
corrige el título “Arte poética” por el de “El arte de narrar”. (DELGADO, 2013, p. 241).
16
É interessante pontuar que Logie considera esse livro como pertencente ao gênero ensaio: “[...] [h]ay que
reservar un espacio aparte para el ensayo sobre el Río de la Plata El río sin orillas. Tratado imaginario (1991),
que Saer escribió por encargo de su editor a partir del éxito obtenido por Danubio de Claudio Magris.” (LOGIE,
2013, p. 27).
17
Os dois ensaios mencionados integram os livros homônimos: El concepto de Ficción (1997) e La Narración-
Objeto (1999), respectivamente.
18
Catelli discute essa proposta de disposição dos artigos de Saer: “En la “Explicación” de El concepto de ficción
Saer justificó el armado del volumen, que proclama el criterio cronológico para después no seguirlo, como serie
de “desplazamientos necesarios” para “hacer más evidentes las intenciones del conjunto y consolidar su
coherencia” (Saer, 1997, p. 8).” (CATELLI, 2013, p. 257).
24

ainda não tinha sido conceituado. Nesses textos elencados, procuraremos a formalização
teórica do conceito de ficção, bem como a representação conceitual do espaço ficcional. Esse
movimento entre teoria literária e conceito de espaço revela uma das vertentes teóricas19 do
debate sobre a categoria espacial: a investigação do espaço como representação. Então, a
noção de espaço aqui investigada está relacionada ao espaço como representação e, também,
como focalização (na experiência da personagem nos romances): ambos se conjugam na
tentativa de se descrever o esgotamento dos contornos espaciais por meio da experiência do
sujeito. Essa discussão sobre a representatividade do real se relaciona com um dos focos
centrais do debate de Saer: a relação entre ficção e verdade, que adentra toda a sua obra.
Neste capítulo, então, procuraremos descrever os pressupostos teóricos de Saer
em relação à representação do espaço narrativo. Quando ele discute seu conceito de ficção,
entendemos que suas ideias desvelam o seu posicionamento a respeito da urdidura do espaço
narrativo. Essa é uma das vertentes do estudo teórico-literário sobre o espaço que é foco desta
pesquisa: o espaço como representação. O gesto de Saer, em “El concepto de ficción” e “La
narración-objeto”, demonstra − como o escritor mesmo afirma na introdução dos livros
homônimos em que se encontram os ensaios − as concepções formais 20 que busca utilizar em
seus textos literários. A importância de percorrermos o seu conceito de ficção está no desejo
de compreender a forma de representação do espaço utilizada ou defendida pelo autor
argentino. Quando trazemos, para abertura desta discussão, o livro El río sin orillas – anterior
à escrita daqueles dois ensaios –, o projeto é compreendermos como Saer pensa e trama a
relação entre ficção e verdade, nesse livro que tem por foco uma “ficção não-voluntária”. Esse
conceito pode ser entendido como uma escrita que se apoia em fatos ocorridos, mas trabalha
com fontes diversas, como experiência autobiográfica, livros de História e de Geografia,
relatos de viagem e a própria literatura, todos no mesmo gesto de narrar sobre o Río de la
Plata.
Outra justificativa para análise de elementos de El río sin orillas na abertura deste
primeiro capítulo é que esse livro tem como personagem o espaço e discute a
interdependência entre o homem e o mundo. Assim, o objetivo da análise desse livro é
delinearmos o espaço ficcional e como os seus limites são indemarcáveis no universo da
teoria saeriana. Um livro que se propõe ater-se nos fatos, a descobrir o Río de la Plata, faz

19
No texto “Espaços literários e suas expansões”, o pesquisador brasileiro Luis Alberto Brandão enumera alguns
vieses de abordagem da categoria espaço literário: o espaço como focalização, a espacialidade da linguagem, o
espaço como representação e a estruturação espacial ou “a retirada da primazia de noções associadas à
temporalidade” (BRANDÃO, 2007, p. 209).
20
Catelli (2013, p. 251-258) defende, em “Desplazamientos necesarios: los ensayos de Juan José Saer”, que os
ensaios de Saer são um campo que o autor utiliza para defender a sua própria poética.
25

confluir fontes diversas na narração, explorando, também, ingredientes da imaginação. A


narrativa pode ser defendida como um work in progress, já que nela se revelam as estruturas
do texto narrativo21. A teoria ficcional está presente na medida em que se encena como o
universo narrativo é permeado por elementos advindos de vários meios, como fatos
comprovados e elementos da imaginação. Fazendo jus ao título do capítulo “Teoria e
imaginação em Saer”, o objetivo, aqui, é perseguirmos os elementos teóricos do texto,
demonstrando como imaginação e realidade se imbricam no conceito ficcional de Saer e no
próprio bojo da manifestação do literário.

1.1 FENOMENOLOGIA22 DO ATO FICCIONAL EM EL RÍO SIN ORILLAS

Detrás de Nôtre Dame


sin ser de Serodino
el sauce de Saer sabe
sumirse sobre el Sena.
(“Sauce en escena”, ALONSO, 2011, p. 21)

Defendemos, aqui, que El río sin orillas antecipa e condensa as ideias ficcionais
mais importantes de Saer, encenando-as no universo de uma ficção “não-voluntária”. Assim,
um texto que se proclama não ficcional por escolha – daí o seu potencial teórico – torna-se
ficção, pela variedade de materiais utilizados como fundo de pesquisa e, também, pelo modo
como o narrador os manuseia. A inserção do “narrador/autor” na narrativa, como voz
autobiográfica, também acirra a imprecisão do estatuto do texto. É como se houvesse um
distanciamento do pacto da imparcialidade no trabalho com as fontes, tendo os comentários
pessoais uma faceta de anedota. El río sin orillas apresenta, então, um gênero indefinido, em
que os pensamentos ficcionais de Saer se apresentam encenados no ato de representação. O
objetivo é pinçarmos os dois polos do conceito de ficção − imaginação e realidade –
disseminados nas partes que compõem o livro. Desvendarmos os materiais e como são
manuseados torna-se a maneira de descobrirmos o potencial ficcional e teórico dessa obra.
Na estrutura de El río sin orillas, percebemos divisão entre as pessoas do
discurso. Há uma não intitulada introdução, seguida de quatro partes que recebemos nomes

21
Percebe-se que El río sin orillas enuncia claramente a sua estrutura: “descompromissadamente”, ao leitor são
revelados os componentes da narrativa. Com a proposta de não se afastar dos fatos e, também, de não ignorar
fontes diversas, o texto encena o próprio fazer literário.
22
Conceituamos o modo de ser da ficção saeriana como fenomenologia, na valorização do retorno ao mundo: Saer
privilegia a vivência homem-mundo, como discutiremos, neste capítulo, por intermédio de El río sin orillas.
Como, aqui, uma das entradas teóricas é o estudo da Fenomenologia de Merleau-Ponty, relacionamos as
estratégias de Saer com o pensamento desse filósofo.
26

das quatro estações do ano: verano, otoño, invierno e primavera. Na introdução, a voz é de
Saer, que busca explanar o porquê de escrever o livro, sobre o que vai falar e como pretende
articular seu discurso. Esse metadiscurso ficcional não se restringe a essa parte; perpassa todo
o livro. Nos quatro capítulos, a pessoa que fala pode ser definida como o narrador 23, como o
próprio Saer antecipa na introdução. Nesses, percebemos que o teor biográfico inicial não é
dissipado pelo discurso narrativo. A proposta de manter distância entre as pessoas não é fácil;
Saer até pode ser considerado, como personagem, já que o próprio autor corrompe uma
divisão abrupta entre diferentes formas de discurso. Dessa forma, quando se inicia o capítulo
“Verano”, não percebemos diferença na voz que ouvíamos nas páginas anteriores. A proposta
de Saer explanada na introdução e executada no intróito de El río sin orillas é disseminada em
todos os capítulos. Na tentativa de amenizar a ambiguidade entre as pessoas24 e o relato, Saer
antecipa que El río sin orillas pertence a uma linhagem significativa da literatura argentina25.

1.1.1 O título e a introdução

El río sin orillas nasce de um projeto que pretende a “ausencia de una ficción
voluntaria”26, dentro dos limites do relato. É na introdução que Saer se posiciona a respeito do
estatuto daquilo que será narrado nos capítulos do livro, afirmando que se propõe a tarefa de
apenas registrar aquilo que ouviu ou pesquisou em fontes, em sua maioria, não reveladas no
texto. Saer inicia o livro problematizando o conteúdo fictício da narrativa: propõe-se a se fixar
naquilo que é aceito como verdade, ao mesmo tempo em que se nomeia narrador daquilo que
é relatado. A ausência da ficção premeditada é contraposta pelo estatuto do narrador,
“considerado instância típica do texto narrativo literário” 27
. Essa diluição do estatuto do

23
Em La grande − romance que, aqui, encabeça a discussão do espaço saeriano −, há um pequeno trecho em que a
personagem Tomatis discute o valor do relato testemunhal e esclarece a relação autoral com o texto produzido,
discutindo o valor de verdade ao qual pode aspirar o texto literário: “[…] [d]e todas maneras, es siempre el texto
lo que cuenta, nunca el autor, al menos si se trata de literatura, y más aún de literatura de ficción, sobre todo la
que pretende no serlo y se presenta a sí misma como un informe verídico.” (SAER, La grande, p. 294).
24
Os interlocutores do texto ficcional são assim definidos por Santos: o narrador “[...] não se confunde nem com a
voz autoral, que lhe antecede, nem com o personagem, que lhe sucede, uma vez que cada um desses sujeitos tem
atributos e funções particulares, ocupa lugar preciso na hierarquia de emissores e na estrutura da obra e realiza
ato de comunicação dirigido a receptor próprio” (SANTOS, 1989, p.1).
25
Posteriormente, Saer afirma que essa linhagem se caracteriza por um texto híbrido, sem preocupação com sua
classificação, em termos de gênero. Josefina Ludmer defende o conceito de literaturas pós-autônomas para um
tipo de escritura que não se preocupa com sua própria definição: “[e]ssas escrituras não admitem leituras
literárias; isto quer dizer que não se sabe ou não importa se são ou não são literatura. E tampouco se sabe ou não
importa se são realidade ou ficção. Instalam-se localmente em uma realidade cotidiana para “fabricar um
presente” e esse é precisamente seu sentido” (LUDMER, 2007, p.1).
26
SAER, 1994, p. 19.
27
SANTOS, 1989, p. 11.
27

texto, acrescida da indefinição da pessoa que se ouve na narrativa, dinamiza o problema do


próprio conceito de ficção.
Potencializando essa discussão, o livro tem por subtítulo a expressão “Tratado
Imaginario”, alertando o leitor quanto ao conteúdo dúbio que o aguarda em suas páginas. A
segunda palavra do subtítulo coloca em jogo o teor ficcional do narrado e “copilado” pelo
narrador em seu “tratado” sobre o rio. Intensificando esse jogo, Saer inicia o livro
identificando seus precursores: um tronco da literatura argentina que se apresenta como “un
híbrido sin género definido, del que existe, me parece, una tradición constante en la literatura
argentina”28. É nesse apelo pela diluição dos limites entre ficção e realidade que o livro, desde
o seu título, enseja discussão acerca do espaço da ficção. O modo como o narrador se esforça
por representar o rio elucida pontos relevantes para o entendimento do vigor empregado no
manuseio da descrição das coisas, em sua obra ficcional, ou na feitura do seu espaço
narrativo.
Saer provoca, ainda na introdução desse livro, o conceito de “non-fiction”29,
defendendo que esse termo se solidifica devido à ausência de uma discussão mais
aprofundada dos termos “verdade” e “realidade”. Assim, o problema central do gênero “non-
fiction” está na proposta do reflexo da verdade no texto narrado. Saer, problematizando esses
conceitos, defende que não escreve um texto em que o elemento fictício seja proposital, mas,
em seguida, ele aproxima El río sin orillas de tudo aquilo que ele escrevera em outros livros.
El río sin orillas é, então, apresentado como pertencente ao universo narrativo dos seus outros
escritos ou aparentado com ensaios, livro de poesia, com contos e romances. A relatividade
projetada nos contornos dos gêneros é visualizada no próprio título da obra – ou
exemplificada nele −, quando Saer se propõe tratar de um rio que não tem limites. A
personagem do livro é, segundo críticos, o rio: o Río de la Plata. Percebemos um
envolvimento entre essa personagem e a estratégia utilizada para o desenvolvimento da
discussão – em um processo de espelhamento − entre o rio e o metadiscurso ficcional presente
no livro. Esse reflexo de um elemento no outro privilegia a discussão dos termos ficcionais ou
dos indemarcáveis universos representados no livro: o rio e a ficção. É como mencionamos
anteriormente: o falso distanciamento do plano ficcional enfatiza o ruidoso processo de
afirmação do gênero híbrido de pertencimento do texto.

28
SAER, 1994, p. 18.
29
Nos três textos aqui discutidos, o tema “non-fiction” é sempre abordado, por Saer, no afã de deflagrar os limites
desse conceito. Saer defende a impossibilidade do purismo factual ou que um texto que exclui deliberadamente o
falso, nem por isso, “[...] es de por sí garantía de veracidad” (SAER, 1997, p. 10).
28

Nessa introdução, o rio é, gradativamente, transposto para o discurso ficcional; o


autonomeado narrador se propõe a falar sobre o Río de la Plata e apresenta a seguinte
proposta de escrita30:

[…] habiendo recibido el encargo de construir un objeto significativo, abro


el cajón, lo vuelco sobre la mesa, y me pongo a buscar y examinar los
residuos más sugestivos, para organizarlos después con un orden propio, que
no es el del reportaje, ni el del estudio, ni el de la autobiografía, sino el que
me parece más cercano a mis afectos y a mis inclinaciones artísticas (SAER,
1994, p. 18).

Saer expõe às claras a filiação do texto e seu pertencimento ao próprio fazer literário. O
trabalho de escrita foi encomendado e executado segundo os seus padrões de escrita, cuja
primeira preocupação foi se aproximar do objeto, para “refrescar mis experiencias y
completar mi información”31. Vivendo, desde 1968, na França32, Saer fazia, rotineiramente,
viagens a Buenos Aires; nessa em questão, visava restabelecer seu envolvimento com o objeto
de escrita ou com a chamada personagem do livro.
Quando relata o seu projeto de escrita, alguns de seus amigos buscam ajudá-lo,
com informações geográficas e históricas sobre o rio. É a partir desse ponto que Saer adianta
uma das ideias centrais do livro: “[...] y me iba dando cuenta de que, como sucede con todo
objeto de este mundo y aun con el mundo como objeto, hay tantos ríos de la Plata como
discursos se profieren sobre él”33. Esse conflito entre o discurso e a experiência é um dos
elementos significativos da proposta de El río sin orillas: um emaranhado resultado da
relação entre “fatos” e plano discursivo. O narrador percebe que a infinidade de narrativas
projeta – cada uma delas − um determinado rio, ou que, com as diferentes formas de
representá-lo, criam-se objetos distintos. A partir dessa constatação, percebe a urgência de
estabelecer contato com o rio, de colher nele a sua própria perspectiva: uma espécie de
atualização dos afetos. Na primeira aproximação com o rio, depois do retorno, o narrador se
sente incomodado e procura, em várias posições, achegar-se ao rio: de táxi, contorna um

30
Alonso exalta El río sin orillas, apresentando-o nestes termos: “[...] aquel libro inicialmente por encargo que él
supo convertir en un texto clave, tocante para cualquiera que se proponga con honradez ser argentino”
(ALONSO, 2011, p. 11).
31
SAER, 1994, p. 22.
32
Sobre Saer, Logie afirma: “[...] [e]n 1962 ingresó como profesor en el Instituto de Cinematografía de la
Universidad del Litoral y en 1968, la obtención de una beca para estudiar el Nouveau Roman hizo que se
trasladara a Francia, país donde acabó siendo profesor titular de literatura (en la Université de Rennes) y donde
residió hasta su muerte el 11 de junio de 2005” (LOGIE, 2013, p. 13).
33
SAER, 1994, p. 24.
29

pouco os seus limites, procurando pontos de melhor observação, mas o rio se mantém
distante, imóvel e mudo:

[…] una atmósfera apacible, soleada y provincial que seguramente no


duraría, pero que me permitió contemplar por primera vez el río con cierto
abandono, la gran planicie inmóvil y vacía, incolora, ni siquiera brillante
todavía, que, por rápido que fuéramos avanzando con el taxi, no cambiaba de
aspecto, como si no hubiese el menor accidente en su superficie, única y
uniforme, de modo tal que habiendo percibido una de sus partes, la totalidad
hubiese podido darse por percibida… (SAER, 1994, p. 29).

A dificuldade encontrada para fazer o rio “falar” frustra os planos do narrador de


surpreender a coisa em si mesma. Cada parte observada coincidia com as outras que eram
subsequentemente visitadas. O trecho citado acima tem um segundo desdobramento nesta
discussão34: o narrador reclama que o todo corresponde a cada uma das suas partes
observadas. É como se ele percebesse a impossibilidade de atingir o rio, ao mesmo tempo em
que projeta uma maneira para fazê-lo: por meio de uma de suas partes. Esse estratagema é a
estratégia posteriormente adotada pelo narrador para a organização do seu ato de narrar o rio,
ou, como Saer afirma “[l]a experiencia directa no había funcionado: tenía que resignarme a la
erudición”35. O projeto de escrita do livro gira, assim, em torno do encontro com a
personagem – o rio −, das dificuldades para apreendê-la e da posterior abertura para o seu
conhecimento indireto, por intermédio da chamada erudição. Nesse segundo passo, Saer
consulta vasta bibliografia sobre o tema e conversa com alguns ilustres habitantes da região.
Quando observava o rio, Saer percebe que a parte a que ele tinha acesso não
coincidia com estudos feitos sobre o rio. A imagem que observava não refletia os contornos
dos desenhos geográficos. A conclusão a que chegara era de que “[...] [s]u forma verdadera,
como tantas otras cosas en este mundo, difiere de su apariencia empírica”36. Essa é uma das
ideias presentes na “fenomenologia saeriana”, quando, nos romances, discute a percepção das
coisas pelas personagens. Em El río sin orillas, esse pensamento também se mostra
interessante, porque, por meio dele, ratifica-se a ideia de que a coisa pode permanecer alheia
ao contato direto do sujeito. Dois são os empecilhos encontrados no projeto de se encontrar
com o rio: a impossibilidade de apreensão do todo e os enganos do olhar. No primeiro caso, já

34
Esse é um dos motes de discussão da saga saeriana: a relação entre as partes e o todo ou a validade de uma
solução para o conjunto das proposições. Em Las Nubes essa reciprocidade das ideias é assim defendida pela
personagem “[...] [l]o que es válido para un lugar es válido para el espacio entero, y ya sabemos que si el todo
contiene a la parte, la parte a su vez contiene al todo” (SAER, 2000, p. 7).
35
SAER, 1994, p. 33.
36
Ibidem, p. 30.
30

foi adiantado que a solução é o trabalho com as partes do todo. Quanto ao segundo empecilho,
ele próprio − o engodo quanto à forma verdadeira do objeto − se torna a peça de maior valor
na discussão dos campos da ficção e da realidade. A dissolução das certezas provoca o vai e
vem entre o relato e os fatos, e é por meio da suspensão da objetividade que Saer provoca os
seus leitores, com esse distinto discurso sobre o rio.
Concluído o exame dos escritos, Saer retorna ao rio, e essa segunda visita é
intermediada pela erudição, posto que Saer constatara que “[...] [a]trincherarse en lo empírico
no aumenta el conocimiento, sino la ignorancia”37. Quando se reaproxima do rio, Saer tem a
sensação de estar no interior do rio, com o diferencial de que “[...] [l]a superficie incolora de
la primera vez se había transformado en una sustancia pesada y llena de accidentes” 38. Aquilo
que, à primeira vista, parecera uma única coisa, transforma-se em um emaranhado de
possibilidades. A mudez do primeiro encontro ganha voz nessa multiforme apresentação do
rio. Essa transformação se dá pelos entrecruzamentos dos dados pesquisados com aquilo que
provinha de outras fontes, como a própria literatura. A interação com o rio é estendida, já que
o próprio rio ganha maiores dimensões, dada a profusão de perspectivas que são
vislumbradas. Saer é categórico, afirmando que o elemento imaginativo, também, está
presente ali. Essa perspectiva é aceitável, tendo em vista a heterogeneidade das fontes
visitadas e a abertura dada à construção dos sentidos, no momento da experiência. É a partir
dessa nova visão que Saer finaliza a introdução e prepara o leitor para a recepção dos
capítulos do livro. Essa discussão inicial serve para antecipar os procedimentos
metodológicos ou colocá-los como, também, objeto do discurso; ou melhor: essa introdução
não está alheia aos outros capítulos, mas deslinda uma discussão teórica que perpassa todo o
livro.
Elencamos vários motivos que justificam El río sin orillas como eixo desta
discussão, como: o espaço é considerado como a personagem principal – o próprio rio −, a
relação de espelhamento entre os limites do rio e os limites da ficção e, principalmente, a
discussão fenomenológica acerca da aproximação e do contato do narrador com o rio. Na
busca por pinçarmos uma “fenomenologia saeriana” é importante retomar alguns pontos que
já foram tocados nesta primeira parte da introdução. Quando o narrador afirma a
“impossibilidade de surpreender a coisa em si mesma”, a necessidade de se distanciar para
poder enxergar o rio, constatamos destaque sobre o fundamental requisito da fenomenologia:
a distância; como bem aponta Merleau-Ponty, “[p]articularmente, o objeto só é objeto se pode

37
Ibidem, p. 33.
38
SAER, 1994, p. 40.
31

distanciar-se e, no limite, desaparecer de meu campo visual. Sua presença é de tal tipo que ela
não ocorre sem uma ausência possível”39. É nessa instabilidade do olhar que, em
Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty discute e tematiza a relação entre sujeito e
objeto. Em El río sin orillas, o narrador procura preencher essa distância com a erudição ou
favorece a própria escrita, forma de, iterativamente, por em discussão o estatuto do texto
narrativo. É dessa maneira que a relação multíplice da personagem com o mundo é abordada
por meio do discurso. O narrador afirma, ainda, que pode não haver correspondência entre “os
objetos e os discursos que se proferem sobre ele”40. É como se fossem grifadas as nuances da
percepção, por intermédio de cada discurso, estes como um contraponto de resposta ao olhar
do sujeito: “[...] [c]ar les structures ne sont pas déjà toutes faites et elles n’existent pas sans
nous, mais elles sont ces «membrures du visible» qui sont toujours en devenir et qui par
conséquent requièrent sans cesse notre participation”41.
Seguidamente, o narrador põe em debate os enganos do olhar, afirmando que “a
forma verdadeira difere da aparência empírica”42. Esse gesto é significativo, porque firma a
relação de interdependência entre sujeito e objeto, na medida em que sublinha que esse
diálogo é permanente e constante. Esse ponto é de suma importância no pensamento de
Merleau-Ponty, na medida em que vislumbra conceitos de sua ontologia final. Outro ponto
que merece ser discutido é a afirmação de que “atrincheirarse no empírico no aumenta el
conocimiento sino la ignorancia”43. O narrador põe o realismo em discussão requisitando uma
posição mais branda em relação a outros vetores que possam participar do movimento da
percepção. Essa demanda relembra o próprio conceito de ficção, que tem como entrada a
relação entre o empírico e o imaginário. Saer tem, também, por objetivo por o texto ficcional
como exemplo da própria vivência, aproximando, em certa medida, esses dois ambientes. No
pensamento de Merleau-Ponty, prioriza-se, também, essa urgência na dinâmica que se
estabelece entre sujeito e objeto; esse filósofo requer, segundo Villela-Petit, uma relação de
proximidade e inteireza entre a vertente empirista e a filosofia reflexiva, como forma de unir o
homem na vivência: “[...] [d]e toute façon, c’était à partir d’une démarche de phénoménologie

39
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 132.
40
SAER, 1994, p. 24.
41
DASTUR, 2008, p. 127: “Pois as estruturas não estão totalmente prontas e elas não existem sem nós, mas elas
são estes « membros do visível » que estão sempre em devir e, por isso, requerem sem cessar a nossa
participação”(Tradução nossa).
42
SAER, 1994, p. 30.
43
Ibidem, p. 33.
32

réflexive n’ignorant pas l’événement du cogito44 qu’il entendait surmonter l’aporie dualiste et
réintroduire la corporéité vivant au coeu du sujet que se vit et se pense”45.
Essa posição fenomenológica de Saer em El río sin orillas se evidencia na relação
sujeito e objeto ou no desejo do seu narrador de decifrar o Río de la Plata. A busca por
circunscrever, pelo discurso, o objeto gera um apelo à erudição, com a justificativa de que o
empírico necessita de tradução. Outros temas da fenomenologia são abordados, como a
percepção da forma verdadeira dos objetos ou a relação entre figura e fundo. Nessa última,
desvela-se a multiforme projeção das coisas para o sujeito que percebe, quando o escritor
defende que os objetos são diversos, em correspondência com os discursos que sobre eles são
proferidos. Com esses argumentos fenomenológicos, justificamos, aqui, a entrada de El río
sin orillas como texto que encena o posicionamento de Saer em relação à fenomenologia ou à
experiência ativa. Quando Saer põe em questão a representação – ou o próprio texto narrativo
−, sua preocupação central é relativizar a distância entre os polos ficção e verdade,
defendendo a independência da Literatura desses extremos. Essa postura representa a
liberdade da literatura em discursar sobre a experiência do sujeito no mundo,
despreocupando-se com o seu valor de verdade.

1.1.2 Primeira estação: “Verano”

Visando percorrer El río sin orillas, seguimos com a discussão no capítulo


“Verano”, objetivando lançar luz sobre os questionamentos de Saer sobre o espaço e a
experiência. É interessante frisar o desenvolvimento de suas ideias e como a relação do autor
com o rio é enxergada e mediada para o interior do texto. Para se criticar o realismo 46, muitos
caminhos são tomados, como o desapego a um saber constituído ou, mais especificamente, a
relativização do discurso da ciência. O plano metodológico de Saer está calcado na defesa da
experiência, na observância das particularidades do vivido, no sentido de resgatar do silêncio
uma relação plural do sujeito com o mundo. As filigranas da experiência são abordadas com

44
Merleau-Ponty assim conceitua o cogito na Fenomenologia da Percepção: “[o] verdadeiro cogito não é o face a
face do pensamento com o pensamento deste pensamento: eles só se encontram através do mundo. A consciência
do mundo não está fundada na consciência de si, mas elas são rigorosamente contemporâneas: para mim existe
um mundo porque eu não me ignoro; sou não dissimulado a mim mesmo porque tenho um mundo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 400).
45
VILLELA-PETIT, 2008, p. 90: “[...] de toda maneira, é a partir de uma abordagem da fenomenologia reflexiva
não ignorando o acontecimento do cogito que ele percebia superar a aporia dualista e reintroduzir a corporeidade
vivente ao coração do sujeito que se vive e se pensa” (Tradução nossa).
46
“O realismo em Saer” é discutido no quarto capítulo desta tese, cujo objetivo é pensar, principalmente, sobre o
conceito de realismo defendido por Saer na execução de seu projeto descritivo e espacial.
33

foco sobre aquilo que ainda não foi tematizado. Scavino defende que, em Saer, o gesto de
nominação do mundo se revela no apuro da linguagem poética, desejando, intensamente,
apreender um sentido ainda não revelado: “[i]lustrar no significa aquí reflejar o representar
una supuesta realidad preexistente sino ofrecer o dar, ‘iluminar y nombrar’, según la
expresión de Juan José Saer, ‘sacar a la luz del día’ lo que antes del advenimiento de la
palabra poética ni siquiera tenía el estatuto de cosa”47. Nesse objetivo, Saer se apoia em um
ramo da Literatura − nomeada pelo narrador como uma “ficção não-voluntária” – para ter
mais liberdade de gerir as variadas perspectivas dos acontecimentos. “Verano” traz, em
primeiro plano, a descoberta do Río de la Plata: o rio é personagem do livro e vai sendo
revelado e sondado em uma discussão espacial que legitima a vivência.
“Verano” se inicia com um apelo à relativização da ciência, desnudando as suas
bases teóricas ou discursivas: “[...] [l]a arqueología – toda ciencia es arqueología – es, hasta
hoy día, inapelable”48. Na primeira frase do capítulo, o narrador se posiciona em relação ao
conteúdo da ciência: demonstra conhecer o hermetismo que norteia esse discurso. É como se
o narrador quisesse mostrar que está a par do conhecimento científico49, mas que não se fixará
apenas em suas descobertas. Essa postura fica clara quando, após erudição explanatória sobre
a região do Río de la Plata, o narrador se detém em comentários sobre a infestação de
mosquitos, que ali era costumeira. Primeiro, usa a expressão “hay quien afirma” – referindo-
se a um fato sem autor – e, depois, relata a menção dessa praga em relato de viagem de
Charles Darwin – em sua estada a algumas milhas da desembocadura do Plata −, no dia 06 de
dezembro de 1832. Essa solvência de diversas fontes discursivas é o caminho que Saer, na
introdução, defende como estética de El río sin orillas. Essa estrutura manifesta o seu próprio
conceito de ficção: jogo entre realidade e imaginação. É importante pontuarmos que esse livro
tem como personagem o rio, mas seu discurso ultrapassa esses limites: na introdução, Saer já
adiantara que o rio podia ser uma sinédoque de toda a Argentina, do Uruguai e de todas as
outras regiões banhadas por ele. No decorrer dos capítulos, o rio se projeta no solo argentino,
conduzindo o narrador a discursar, principalmente, por um de seus limites: a lhanura.
Essa busca do narrador por reativar a experiência propicia uma relação de
proximidade com as coisas. Duas são as questões principais que norteiam a discussão teórica
47
SCAVINO, 2013, p. 12.
48
SAER, 1994, p. 43.
49
É interessante frisar que, quando Merleau-Ponty depõe contra o realismo, uma das frentes de seu discurso é a
tarefa de mostrar como o discurso da Ciência é sustentado por uma fé perceptiva ou uma adesão incondicional a
determinada razão sentencial, como é perceptível nos manuscritos de O visível e o invisível: “[v]emos as coisas
mesmas, o mundo é aquilo que vemos – fórmulas desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e ao
filósofo desde que abre os olhos, remetem para uma camada profunda de ‘opiniões’ mudas, implícitas em nossa
vida” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 15).
34

do livro: a volitiva em desestabilizar os discursos estabelecidos − aproximando-os de uma


discussão teórico-literária − e o projeto propriamente fenomenológico, em que o foco se
centra na experiência. Na verdade, essas duas discussões se complementam, na medida em
que o trabalho com a relativização dos discursos se realiza no momento em que se enfatiza a
experiência no mundo. Assim, o narrador atualiza a máxima do discurso fenomenológico: o
retorno ao mundo. A potencialidade de El río sin orillas para abertura desta tese ancora-se
nesse gesto fenomenológico: um ensaio que reclama a vivência como núcleo de força de
todos os discursos. Esse apelo à experiência é revelado pela proeminência concedida à
subjetividade, seja no interior do texto literário, seja como voz ativa dos textos ditos
objetivos, como o discurso da ciência. Essa voz é conduzida por um olhar que inventaria o
mundo e que, nos textos ficcionais, descobre o espaço que vivencia as personagens. Saer
também atualiza a discussão teórico-espacial, quando prioriza o referente ou o espaço literário
como revelação do próprio mundo. Segundo Collot (2011), essa discussão acompanha os
estudos sobre o espaço literário ou sobre a paisagem: o teórico cunha o termo “pensée-
paysage”, visando enfatizar essa posição do sujeito no mundo.

[d]ans ce débat contemporain sur le paysage, les littéraires sont longtemps


restés un peu en retrait, du fait de la persistance d’un modèle théorique et de
principes méthodologiques hérités du structuralisme. Le respect de la
« clôture du texte » et le privilège accordé à une lecture immanente excluait
du champ des études littéraires la considération du contexte et du référent.
Cette restriction de champ réduisait à tel point la complexité des faits
littéraires qu’elle a été fortement contestée et largement débordée à partir des
années 1980, qui ont vu le retour de problèmes comme aux du sujet et de la
référence, auxquels il était temps d’apporter de nouvelles solutions, qui
s’éloignent des schémas traditionnels de l’expression et de la mimésis,
critiqués à juste titre dans la période précédente (COLLOT, 2005, p. 10)50.

A descoberta do Río de la Plata, pela expedição de Juan Díaz de Solís, em 1516, é


um dos dados iniciais do capítulo “Verano”. O narrador se detém nesse primeiro registro de
encontro do homem com o rio e se foca, posteriormente, no fator humano. A narrativa adentra
o continente e se projeta nas pessoas, no encontro entre as civilizações, no genocídio dos
“índios” dessas regiões. Relatando esses feitos, o narrador expande o espaço de narração e
50
Tradução nossa: “Nesse debate contemporâneo sobre a paisagem, por muito tempo os literatos permaneceram
um pouco retraídos, devido à persistência de um modelo teórico e de princípios metodológicos herdados do
estruturalismo. O respeito pelo « fechamento do texto » e o privilégio concedido a uma leitura imanente
excluíam do campo dos estudos literários a consideração do contexto e do referente. Essa restrição de campo
reduzia a tal ponto a complexidade dos fatos literários que ela foi fortemente contestada e largamente
ultrapassada a partir dos anos de 1980, que viram o retorno dos problemas como os do sujeito e do referente,
para os quais já era tempo de trazer novas soluções, que se distanciem dos esquemas tradicionais da expressão e
da mimese, criticados, com justiça, no período precedente”.
35

relembra episódios ocorridos com a Civilização Asteca e com o Império Inca. Os excessos
dos conquistadores e a contraforça dos índios são narrados por meio da menção de fatos
históricos, que são acercados ao espaço vivido pelo narrador. Essa aproximação entre dados
históricos e discurso autobiográfico é justificada, pelo narrador, nestes termos:

[...] [m]ás de un lector se estará preguntando a qué viene, en pleno relato


histórico, esta digresión autobiográfica. De más está decir que, habituado a
denostar, por principio, toda autobiografía, o a clasificarla, sin muchos
miramientos, en el rubro literatura de imaginación, yo mismo, en su lugar,
hubiese hecho la misma pregunta, pero el hecho de haber nacido, unos pocos
siglos más tarde, casi enfrente del fuerte de Sancti Spiritus erigido por
Gaboto51, me permite en tanto que observador privilegiado, apoyar con datos
empíricos lo que salta a la vista de los relatos históricos…(SAER, 1994, p.
58).

O narrador busca legitimar seu lugar de enunciação e, dessa forma, adentra,


autobiograficamente, o relato. Entre um apelo ao contato com os fatos e esse voltar-se para as
próprias experiências do narrador, percebemos que a narrativa se expande para além desses
dois lugares. Nesse ir e vir, o narrador transfere a importância das fontes para o próprio texto
ou para o processo de construção, de narração.
Quando se detém sobre o pampa o narrador rivaliza a imagem poética desse
espaço como a experiência direta: “[...] [e]s sabido que la imagen arquetípica de la pampa, la
que todo el mundo posee y confunde con una experiencia directa, es de origen romántico, y
que el hombre que la elaboró, Domingo Faustino Sarmiento52, no la conocía”53. Sarmiento,
segundo a história, escreveu muito sobre o pampa, mas, somente muitos anos depois de ter
escrito, conheceu esse lugar. Percebemos que Saer projeta a literatura sobre a realidade ou
defende que a primeira pode contribuir, também, para a projeção de uma realidade. Esse
processo de pesquisa e dissolução dos resultados obtidos (ou das verdades comumente
aceitas) mantém-se no capítulo, como forma de abertura do discurso para as opiniões do
narrador. A perspectiva daquele que narra é posta em relevo, a autoridade concedida ao seu
discurso aproxima instâncias diferentes, como História e Literatura: “[...] [p]ero lo que en el

51
No capítulo seguinte, o narrador fornece dados mais pontuais sobre o forte: “[...] [e]se error ya había ocupado
los pensamientos de Darwin el 30 de septiembre de 1883, y me siento particularmente autorizado a comentarlos
ya que el sabio inglés, en su pretendida labor de espionaje, efectuó sus observaciones no lejos del que sería un
poco más de un siglo más tarde mi lugar natal (unas diez leguas al norte de Rosario, o sea enfrente de donde, no
sé si el lector recordará, Sebastián Gaboto fundó, en 1527, el primer fuerte español en todo el territorio de la
Argentina)” (SAER, 1994, p. 119).
52
Saer, no seu projeto de sempre discutir o conceito de ficção, traz os pilares da Literatura argentina como forma
de mostrar a indefinição dos lugares da ficção e da verdade. No caso de Sarmiento, o objetivo é mostrar como,
por meio de uma experiência indireta, se construiu, literariamente, a imagem dos pampas.
53
SAER, 1994, p. 61.
36

desenvolvimiento de la historia asumirá la forma circunstanciada de una novela naturalista,


con sordideces jurídicas, torvas historias de familia […] en los años arduos de la primera
fundación”54. Imagens literárias também são criadas nesse esquema de inversão de ideias:

[p]uede decirse que en la pampa, es el ganado, vacuno y caballar, lo que creó


la civilización, y no lo contrario. Sin vacas y caballos el río de la Plata, en
tanto que cultura específica, no hubiese existido independientemente de los
aspectos económicos del problema […] En el bestiario rioplatense, la vaca y
el caballo, así como el unicornio y el cordero en el cristiano, ocupan el
primer lugar (SAER, 1994, p. 74).

Visando confirmar esse pensamento, o narrador, seguidamente, desenvolve uma narração


autobiográfica, descrevendo a importância do gado e a sua imagem no espaço da lhanura: essa
relação do homem e do gado com o espaço traz à voga a literatura gauchesca 55. É nessa
profusão narrativa que percebemos a agudeza das descrições do espaço pela percepção dos
sentidos. Esse gesto se assemelha ao processo descritivo das paisagens dos romances e
atualiza a tese saeriana da comunhão dos lugares entre os discursos da história e da literatura,
por exemplo. Resulta daí a relação conflituosa do gênero de pertencimento de El río sin
orillas.
No encerramento do capítulo, o narrador retoma o projeto inicial de escrita e
explica em que consiste o seu relato: “[...] [e]l lector que ha venido siguiendo mi relato ya
sabe, a grandes rasgos (en todo caso así lo espero) cómo se fue formando esa región que
llamamos el Río de Plata”56. O rio é o centro discursivo: a narrativa segue o curso do rio,
detendo-se nos limites do litoral argentino. O narrador se preocupa, principalmente, nesse
primeiro capítulo, em recriar o espaço dos acontecimentos que serão posteriormente relatados.
Mesmo autonomeada como “uma ficção não voluntária” – tecida como um relato fiel, não
desvinculado da realidade −, a estrutura da narrativa se assemelha ao processo de criação
literária. O interessante de El río sin orillas está no fato de a personagem ser o próprio espaço,
como um pretexto, também, para o desenvolvimento de um discurso metaficcional. No
prelúdio para o próximo capítulo, o narrador finaliza “Verano” com os seguintes dois versos:

54
Ibidem, p. 68.
55
Ponce afirma que « [...] [d]ans la littérature du Río de la Plata, par exemple, vers la fin du XIX ème. siècle, deux
types de personnages se « disputent » la possession de la pampa : d’une part, le gaucho ; d’autre part, le
propriétaire des ‘estancias’ » (PONCE, 1985, p. 27). [Tradução nossa: “[...] Na literatura do Rio da Prata, por
exemplo, em torno do final do séc. XIX, dois tipos de personagens « disputam » o domínio dos pampas: de uma
parte, o gaúcho; de outra parte, o proprietário de ‘terras’”].
56
SAER, 1994, p. 97.
37

“... que a mi historia/ le faltaba lo mejor”57. Não há menção do autor da citação58; esse fato de
não mencionar a fonte revela algo da construção – como a despreocupação da gênese dos
textos ou com aquilo que seria ficção ou verdade – e sobre a expectativa de leitor que o texto
constrói.

1.1.3 Segunda estação: “Otoño”

Otoño se inicia dando continuidade à discussão do espaço: o narrador comenta


que os escritores do século XIX se preocupavam mais com gestos retóricos do que com “a
pertinência de suas observações”. Esse apelo à observação emerge, em toda a obra saeriana,
como estrutura de consolidação do espaço narrado. O narrador registra que foi na década de
setenta, do século XIX, que Martín Fierro “introduziu um pouco de realidade” na forma de
narrar. Citando Charles Darwin, o narrador busca legitimar um estilo naturalista de narrar,
aproveitando-se do fato de que o livro Viaje de un naturalista59 dedica oito capítulos ao seu
tema: o rio e a Argentina. É na busca por relatos sobre o rio que o narrador elenca vários
escritores e pesquisadores que desbravaram, narrativamente, essa região. Ele chega a afirmar
que nesses relatos se consegue percorrer as nuances da paisagem: “[...] las mejores páginas
que existen sobre la Argentina fueron escritas por extranjeros”60. O narrador complementa,
posteriormente, essa ideia, dizendo que “[...] [e]n muchos casos, tenemos la impresión,
maravillada y nítida, de que las cosas están siendo percibidas y nombradas por primera vez
desde los comienzos del mundo”61. Essa condição dos escritores é justificada pelo narrador
pelo fato de eles terem uma visão virgem ou não automatizada das coisas. O narrador defende
a imersão no espaço ou que é imprescindível uma relação de proximidade com as coisas.
Essas questões de El río sin orillas são de extrema importância, porque
problematizam a relação do sujeito com o mundo e expõem a engrenagem e tecedura do
espaço literário. A fenomenologia da percepção é explorada quando se tem a apologia de um
olhar não vicioso, para que se consiga perceber melhor as coisas. É como se o narrador
estivesse elencando algumas prerrogativas para o manuseio da arte descritiva; uma dessas é a
defesa da inserção empírica no meio que se pretende narrar. Esse apelo às sensações é
reforçado pelo próximo tema tratado: toponímia. A pesquisa se centra na sobreposição dos

57
Ibidem, p. 98.
58
Os versos são extraídos de outro texto fundador da literatura argentina: Martín Fierro, de José Hernández
(1834-1886), poeta argentino.
59
SAER, 1994, p. 103.
60
Ibidem, p. 104.
61
Ibidem, p. 107.
38

planos sensorial e simbólico, no gesto nomeante próprio das toponímias. É como se o


narrador inventariasse o grau de presença dos elementos sensitivos no interior do material
simbólico, interessando-se, especificamente, por esse “lapidário” movimento de
transformação das sensações em linguagem. Prosseguindo esse movimento de construção do
relato pela linguagem, o narrador se propõe a consolidar melhor a análise, desviando-se dos
topônimos e focando-se em pequenas definições. Drieu La Rochelle define a lhanura como
“vértigo horizontal”62; essa expressão é considerada falsa, mas possibilita que o narrador
rememore experiências ali vividas. Nessa análise da construção de imagens, o narrador afirma
que: “[...] [h]ay algo que no falta nunca en la llanura, y es el horizonte” 63. Uma das fixações
do espaço narrativo saeriano é a persistência em recobrir esse lugar, que sempre se esvai a
qualquer aproximação:

[...] [l]o singular de la llanura no es su horizonte infinito, sino su capacidad


de perturbar, de muchas maneras, nuestras percepciones. La primera manera
de hacerlo, viene del espacio vacío y desmedido que facilita la proliferación
de lo idéntico. […] Pero ese paisaje tiene otro modo de perturbar nuestras
percepciones, en el caso opuesto al del vacío, es decir cuando hay algo en él,
o cuando algún objeto, viviente o inorgánico, rápido o lento, compacto o
tenue, lo atraviesa (SAER, 1994, p. 120).

É interessante pensar como o narrador apresenta as sensações como possibilidades


de leitura do mundo: o sentir como força de comunhão entre o sentiente e o mundo. Nesse
movimento, acentua-se o espaço de interação ou a relação de proximidade com as coisas, a
chamada chair do mundo, conceito cunhado por Merleau-Ponty64, destrinchado no segundo
capítulo desta tese, com o objetivo, aqui, de sublinhar nos romances, esse momento espacial
em que a relação da personagem com o mundo suplanta a mera descrição das coisas. Há uma
relação de consubstancialidade com o mundo, em que não se consegue delimitar os espaços
do referente e do referenciado. Esse espaço é o lugar de ruptura do dualismo sujeito e objeto.
Barbaras, no estudo sobre a ontologia em Merleau-Ponty, descreve essa ruptura da oposição,
focando-se na realização do sensível, nestes termos:

[p]arce que le sensible est rabattu sur le sens, celui-ci est en même temps
retenu dans le sensible : c’est parce qu’il est toujours déjà sens que le
sensible ne l’est jamais pleinement, c’est-à-dire demeure lui-même ; c’est en
étant toujours encore sensible que le sens préserve son identité. Ainsi

62
SAER, 1994, p. 119.
63
Ibidem, p. 118.
64
MERLEAU-PONTY (2012, p. 133) defende o ser carnal como um ser de profundidade e de interrelações.
39

s’évanouit l’opposition du sens et du sensible, de l’invisible et du visible, qui


repose toujours sur la décision de les penser comme des étants
(BARBARAS, 1991, p. 192)65.

Os sentidos se revelam como tais no próprio movimento de sensibilidade ou na relação com


as coisas. Esse pensamento é essencial para entendermos aquilo que Saer defende como
experiência, como momento espacial. A busca pelo sentido também se faz recorrente em Saer
e é essa postura que privilegia o envolvimento do sujeito com o mundo.
A lhanura é o espaço privilegiado das narrativas saerianas, devido à sensação de
atordoamento que, nele, abate-se sobre as personagens. As duas perturbações acima
mencionadas – sentimento de extremo vazio ou de uma fugaz presença – acentuam a
imensidão na qual o homem se encontra. Em El río sin orillas66, o narrador descreve que “a
cúpula celeste” se instaura por sobre o homem da lhanura, fazendo-o sentir-se como que no
centro do universo. Esse sentimento faz emergir a sensação de grandeza que o circunda: a
fluidez do céu, em paralelismo com a lhanura, possibilita sensações contraditórias de
liberdade e clausura. A lhanura é considerada como uma continuidade da extensão do rio,
disso, a narrativa circundar por esses dois lugares. As transformações da região são descritas,
também, por meio do movimento dos três ventos que provocam o “ritmo de creciente y de
bajantes súbitas” do rio: “el pampero”, “el viento norte” e “la sudestada”. Esses ventos
provocam mudanças também na lhanura, motivando transformações na vida da população
litorânea. Devido a essas variantes, o clima da região proporcionou divergências na percepção
do espaço. O narrador enobrece a diversidade de perspectivas registrada nas narrativas lidas
sobre a região; principalmente nas narrativas de viagem: “[...] [u]no de los placeres mayores
de la lectura es encontrar la descripción de un mismo objeto tratado por autores diferentes,
sobre todo por autores que pretenden referirse a su experiencia directa y que ignoran que otros
testigos se han ocupado de lo mismo”67. É por meio desse desacordo entre os cronistas que o
narrador legitima a diversidade, a profusão de perspectivas.

65
Tradução nossa: “Porque o sensível está posto sobre o sentido, o sentido é, ao mesmo tempo, retido no sensível:
é devido ao fato do sensível já ser sentido que o sensível nunca o é completamente; ou seja: ele continua sendo
ele mesmo; e é justamente sendo sempre já sensível que o sentido preserva a sua identidade. Assim se evanesce a
oposição entre o sentido e o sensível, do invisível e do visível, que repousa sempre sobre a decisão de pensá-los
como sendo”.
66
Em Las nubes, tem-se um episódio memorável da dissolução do homem no espaço: “[...] [e]se horno inmenso
que atravesábamos durante el mes más frío del año, ese gran círculo amarillo por el que avanzábamos a duras
penas, encerrado bajo su cúpula azul que únicamente la mancha árida del sol transitaba durante el día, y que de
noche se ennegrecía y se llenaba de puntos luminosos, fue durante varios días el decorado único, tan idéntico a sí
mismo en cada una de sus partes intercambiables, que por momentos teníamos la ilusión de empastarnos en la
más completa inmovilidad” (SAER, 2000, p. 97).
67
SAER, 1994, p. 135.
40

No final do segundo capítulo de El río sin orillas, o narrador se foca na


contribuição dos cronistas e intelectuais estrangeiros para o crescimento da região do Río de
la Plata. O narrador já havia afirmado predileção pelo olhar virgem, aquele que descobre
nuanças escondidas da automatização do olhar do homem da lhanura. Percebemos nessa
preferência a defesa da experiência em locus do contato sem intermediários com o mundo.
Quando finaliza esse capítulo, o narrador opta por uma escrita típica dos cronistas ou por uma
leitura mais descompromissada do rio e, assim, afirma que: “[...] los peores libros sobre el río
de la Plata, salvo raras excepciones, son aquellos que han sido escritos por escritores
profesionales”68. Nesse terceiro movimento, percebemos a mesma iniciativa de preferência
por um discurso imediato ou que privilegia a deambulação pelo espaço. As narrativas
profissionais, segundo o narrador, perderam ou “pulverizaram o acontecer”. Devido a esse
fato, há preferência por relatos de viagem, quando se quer ter acesso a essas minúcias do
acontecer. O narrador, contudo, não quer desvirtuar a estrutura mediática do texto literário,
mas destacar o potencial pictórico descritivo desses textos “desinteressados”69. Nesse gesto, o
narrador também reconhece as contribuições dos estrangeiros para a cultura argentina. O
vertiginoso processo imigratório rendeu ao país proveitosas discussões entre nacionalistas e
os pró-cultura europeia. Esse movimento foi um grande marco para o desenvolvimento
literário argentino, como a criação da revista Sur: “[...] la revista de Victoria Ocampo, de su
hermana Silvina, y de Borges y Bioy Casares”70. Houve, então, uma aproximação com a
cultura mundial, o que facilitou o alavancar da cultura argentina.

68
Ibidem, p. 136.
69
Saer escreve o prefácio da edição francesa, de 1992, de La Pampa: Moeurs sud-américaines, de Alfred Ébelot,
que é uma reedição de La Pampa (Buenos Aires – Paris, 1890). Esse livro pode ser considerado um “texto
desinteressado”, um relato autobiográfico de Alfred Ébelot sobre os anos passados na Argentina do final do
século XIX. Ébelot é considerado como familiar, no universo literário argentino, segundo Saer. O apreço do
argentino pela narrativa de viagem mostra a ênfase dada à experiência do sujeito e ao acirramento das fronteiras
entre os gêneros literários. O próprio Ébelot afirma, no seu posfácio: « [...] [s]i j’ai recueilli ces pages volantes,
c’est que la rapide transformation de la République argentine leur donne un mélancolique intérêt et une sorte de
valeur historique. L’Indien n’existe déjà plus. Dans dix ans, la civilisation impitoyable aura poli à l’émeri les
anfractuosités et les lignes frustes de la figure accentuée du gaucho. Les simples notes d’un témoin oculaire y
gagneront quelque saveur » (ÉBELOT, 1992, p. 20). [Tradução nossa: “[...] Se eu reuni essas páginas soltas foi
porque a rápida transformação da República Argentina lhes concede um melancólico interesse e uma sorte de
valor histórico. O índio já não existe mais. Em dez anos, a civilização impiedosamente terá polido com um
esmeril as anfractuosidades e as linhas brutas da figura típica do gaucho. As simples notas de uma testemunha
ocular ganharão, aí, algum sabor”].
70
SAER, 1994, p. 151.
41

1.1.4 Terceira estação: “Invierno”

Dando continuidade a essa discussão literária, inicia-se “Invierno”, o terceiro


capítulo de El río sin orillas. Uma das palavras-chave desse penúltimo capítulo é registrada,
ainda, no primeiro parágrafo: barbárie. O narrador se locomove no entremeio da literatura e
da violência ou nas formas de representação da barbárie71. Saer expõe, de forma mais aberta,
a relação da Literatura com a formação da identidade humana. Prossegue, então, a discussão
sobre o envolvimento entre sujeito e objeto e sobre a própria possibilidade de se externar a
experiência. Os ruídos entre a experiência vivida e a linguagem são postas em debate. A
vivência é marcada por um excesso de sentidos que requer formas mais livres de linguagem,
como a Literatura, por exemplo. É dessa forma que Saer prossegue, defendendo esse locus
específico para a Literatura, sublinhando o seu potencial de discussão do mundo. A Literatura
se apresenta como ferramenta de experimentação de ideias que objetivam o sobrepujar-se às
amarras de um presente corroído pela barbárie ou como representação dessa violência,
visando revelar seus mecanismos.
Saer, em El río sin orillas, como explanamos anteriormente, se propõe a discutir
como tema central a singularidade da vivência e o teor de “tradução” dessa experiência: como
“texto objetivo” ou como literatura. É nesse segundo movimento que se descobre a
potencialidade do relato de, despretensiosamente, discutir o mundo pondo em evidência as
nuanças do vivido. Essa discussão literária ultrapassa o próprio conceito de Literatura – que,
recorrentemente, é assunto em Saer −, já que focaliza a liberdade que o texto detém na sua
dialética com o mundo. É no descompromisso com um ponto de vista específico que a
literatura facilita que o mundo seja potencialmente explorado. Saer trabalha, abertamente, o
papel da Literatura como mediadora da experiência do mundo, como é bem possível observar
nos capítulos finais do livro. Assim, toda a discussão teórico-literária empreendida pelo
escritor argentino contempla o pensamento espacial ou a capacidade de apreensão do mundo,
resultando daí a onipresente insistência em descrever os mecanismos da ficção, visando
explicar a própria relação homem-mundo.
“Invierno” se inicia com explanação acerca do crescimento da urbanização na
região do Río de la Plata, que implicou o estabelecimento de “[...] una clase media numerosa

71
Ravetti (2011, p. 49) afirma que “[...] [a] obra de Saer ensaia uma forma dramática e oblíqua, na qual se insinua
a violência e as perdas irreparáveis durante os períodos históricos que se iniciam na década de 1960, com a
Europa do pós-guerra e as ditaduras da segunda metade do século XX na América Latina. A história funciona
como um feixe fortemente emocional e não como instituição de discurso e práxis tranquilizadora”.
42

y un proletariado con una fuerte conciencia política y un alto nivel de organización” 72,
consequência da onda imigratória massiva, advinda de várias partes do mundo. Essa
consciência política constituirá um dos importantes ingredientes que impulsionará alguns dos
atrozes conflitos da região. O narrador traz, como imagem simbólica da ditadura de Rosas
(1829-1852), o primeiro conto da literatura argentina: El matadero, de Esteban Echeverría73.
Segundo o narrador, a população rioplatense tem certa intimidade com o massacre, devido
aos repetitórios conflitos que assolaram o país, desde a sua independência, declarada em
1816. Essa consciência da barbárie integra a imaginação local e é perpetuada, na Literatura, já
na “primeira expressão literária original”: na literatura gauchesca.
O caráter de violência presente na literatura estabelece em relação direta com os
inúmeros conflitos que ocorreram na região74: “[...] [c]on frecuencia se ha observado el
carácter festivo de la violencia en el río de la Plata, y en su literatura”75. O narrador enumera
que, em quarenta e seis anos, houve seis golpes de estado no país. O Peronismo é apontado
como um dos responsáveis por uma das maiores catástrofes dos anos setenta.

[...] [e]n los abominables años setenta, sembraron no únicamente la ruina, el


crimen, el oprobio, sino también una especie de suspensión de lo real; no
quiero decir que las atrocidades que cometieron no lo fuesen, sino que,
durante unos años, la mayoría de los argentinos no podíamos forjarnos una
representación exacta de nosotros mismos. Como los viejos mitos
tranquilizadores se habían evaporado, nos volvimos fantasmales: la tabla
rasa que habían puesto en práctica los militares se contagió a la vida
imaginaria (SAER, 1994, p.192).

Esse clima de inverno sobreveio de forma brutal sobre o país, com a manifestação
de verdadeiros serial killers. A propósito desse movimento, o narrador pontua: a vida imita a
arte. Aqui, a ênfase retorna à relação entre experiência e representação ou à própria discussão
dos limites do texto ficcional. As inúmeras mortes, os sequestros e as torturas obnublaram os
ares da região. Percebemos, então, que a questão latente, nesse capítulo, é a busca por

72
SAER, 1994, p. 167.
73
Echeverría (1999, p. 16) descreve a violência do homem sobre o animal como cortina de entrada para
demonstrar a reciprocidade que há quando se trata das torturas políticas: “[l]a sala de la casilla tenía en su centro
una grande y fornida mesa de la cual no salían los vasos de bebida y los naipes sino para dar lugar a las
ejecuciones y torturas de los sayones federales del matadero”.
74
Ébelot escreve, no final do século XIX, sobre essa relação dos argentinos com a violência: « [c]ertes, il y a
encore dans la République argentine des assassins de nature, des assassins, pourrait-on dire, spontanés, qui tuent
les gens pour plaisir. J’en ai connu ; j’en ai même eu sous mes ordres tout un peloton, qui me servait d’escorte »
(ÉBELOT, 1992, p. 74). [Tradução nossa: “Certamente, há, ainda, na República Argentina, assassinos de
natureza; assassinos, poderíamos dizer, espontâneos, que matam as pessoas por prazer. Eu os conheci; eu mesmo
tive sob minhas ordens todo um pelotão, que me servia de escolta”].
75
SAER, 1994, p. 175.
43

identidade, o que, de certa forma, sempre norteou discussões e conflitos da região rioplatense.
A própria constituição da sociedade – devido à grande onda imigratória – contribuiu para
distorções e sentimento de “desgarramiento”. A literatura se mostra como espaço para esse
processo de constituição da sociedade, como espaço de busca por identidade. A procura pela
identidade argentina, segundo o narrador, não foi articulada, peremptoriamente, mas
proporcionou ênfase ao problema ou sublinhou o enxergar a própria diversidade.

1.1.5 Última estação: “Primavera”

Primavera − o último capítulo de El río sin orillas – articula um pedido de


abandono do “invierno” ou de tudo que significa essa estação para a Argentina, nesse livro de
Saer. Uma das saídas é a arte, e o narrador retoma os questionamentos levantados sobre a
razão da arte e da própria vida pós Segunda Guerra Mundial. Na abertura do capítulo, o
narrador relembra a pergunta de Theodor W. Adorno: “[...] ¿es posible escribir poesía, es
decir, aceptar la vida, después de Auschwitz?”76. Logo após, o narrador utiliza outros textos
desse filósofo e responde afirmativamente a essa questão. É nessa aproximação entre vida e
arte que o narrador desenvolve as questões desse capítulo, no movimento das sensações e do
vivido. A Literatura, novamente, se apresenta como gesto que potencializa o viver, na medida
em que possibilita que se explorem nuances outras, daquelas inerentes às relações do
indivíduo com mundo. Assim, além de oferecer abertura de um campo para o manuseio das
múltiplas relações com o mundo, a Literatura proporciona a experiência estética.
Visando comprovar essa ideia, o narrador exemplifica como é possível participar
das sensações dos outros, relembrando um episódio que lhe ocorreu em uma das praias do rio.
A experiência é visual, mas o narrador sente o movimento de uma mulher com algumas
crianças, aproveitando-se para se refrescarem do intenso calor nas águas do rio. O narrador
descreve aquilo que presenciou, hipnotizado pelo movimento das crianças e da mulher. No
momento em que a mulher adentra a água, o narrador começa a narrar não mais movimentos,
mas sensações. Mesmo na posição em que o narrador estava − distante da praia e tentando
esquivar-se do sol −, o movimento da mulher em direção à água faz com que as sensações de
contato com a água comecem a invadi-lo.
A possibilidade de se projetar nas sensações do outro é discutida por meio da
sensação de visão do narrador entremesclada pelo contato tátil da mulher com a água: [...] [l]a

76
SAER, 1994, p. 207.
44

mujer que entraba en el río me iba mostrando, a medida que se internaba en el agua, el
espejismo tenue de lo individual”77. O sentimento de espelhamento se mostra como a
possibilidade de sentir além dos limites do contato tátil individual. Não se pode esquecer que
o episódio é trazido pelo narrador, para ilustrar a ideia defendida de que se experimenta pela
mediação da arte: no ato de escrita o ficcionista faz sentir e sente todo o movimento das coisas
e pessoas que narra. Sintetizando essa discussão, o narrador apresenta a função da literatura:
“[...] [c]rear un objeto que apunte a aquello que especialistas y legos tienen en común”78. Na
conclusão da discussão, o narrador finaliza com uma afirmativa cheia de entremez: “[...] [e]l
fin del arte no es representar lo Otro, sino lo Mismo” 79. Essa promoção de “o mesmo” ou de
um projeto especulativo daquele que o arregimenta se apresenta ao narrador como processo
singular da ficção. Essa indagação sobre a funcionalidade do literário serve, também, para que
o narrador referende tanto o imaginário sobre o Río de La Plata quanto as experiências
empíricas com esse objeto.
Abrimos parêntesis: segundo Barbaras, a passagem do pensamento
fenomenológico para o pensamento ontológico em Merleau-Ponty ocorre, principalmente,
quando o filósofo se depara com o problema da alteridade: “[...] [a]vec la description de
l’expérience d’autrui se manifeste, mieux qu’ailleurs, l’insuffisance de la perspective adoptée
dans cet ouvrage [Fenomenologia da Percepção] et, partant, la nécessité d’un passage à
l’ontologie”80 (colchetes nossos). Com o propósito de decifrar esse problema, Merleau-Ponty
percebe a necessidade de se ultrapassar a distância fenomenológica, para que se consiga
reconstruir a relação com o outro. Saer, por seu turno, expõe seu posicionamento afirmando
que a relação com o outro se realiza mediante uma inflação da própria subjetividade: a
personagem projeta em si mesmo aquilo que percebe no outro. Pode-se defender – em muitos
trechos de Saer – um idealismo perspicaz, quando se trata da relação com o mundo e com o
outro. É importante essa posição, por contribuir para coibir a defesa de um objetivismo
acerbado nas narrativas saerianas81. Por outro lado, é importante registrar que esse idealismo é
posto de lado quando a relação espacial se firma concretamente entre a personagem e o
mundo percebido.

77
SAER, 1994, p. 218.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
80
BARBARAS, 1991, p. 36: “Com a descrição da experiência do outro se manifesta, melhor do que em outro
lugar, a insuficiência da perspectiva adotada nessa obra (Fenomenologia da Percepção) e, portanto, a
necessidade de uma passagem à ontologia” (Tradução nossa).
81
Como o defendido quando do cotejo das obras de Saer com o nouveau-roman, tema discutido no início deste
capítulo.
45

A comunhão de perspectivas entre o literário e o empírico é levada a alto grau de


complexidade – no último capítulo de El río sin orillas −, quando o narrador se serve de
imagens literárias para definir o rio. Em diversos matizes, o rio é representado por poetas e
escritores e essas nuanças servem de elemento facilitador para o narrador adentrar-se, mais
profundamente, no objeto. Discute-se, nessas investidas, em que medida a imagem aproxima
o sujeito do objeto ou, ainda, como as descrições poéticas podem condicionar a própria
percepção. O narrador analisa diversos conceitos formulados sobre o rio ou imagens criadas
para representá-lo. Algumas são confrontadas com sua própria experiência e, após isso, são
preteridas, em razão da visão do narrador. As imagens proporcionam esse jogo de
superposição e, depois, o foco é lançado sobre o argentino; elas são construídas e recuperadas
por meio do recurso às tradições literárias e históricas, por exemplo.
O narrador, mergulhado nessa relação – no encalço de surpreender as coisas pelos
sentidos −, pinça um dos mediadores discursivos da experiência: o adjetivo. O narrador
afirma que “[...] servidor ocasional del objeto, no hay función en el idioma más convencional
que el adjetivo” 82
, como articulador de ideias para a criação das imagens. A última dessas
imagens – construída em El río sin orillas – é o assado; esse livro é encerrado com esse ritual
da cultura argentina. A comoção das pessoas ao redor do fogo e toda a preparação da refeição
relembra ao narrador o repetitório encontro do homem com o fogo ou o próprio movimento de
continuidade da relação do homem com o mundo.
Em El río sin orillas, o narrador tem como personagem central o próprio Río de la
Plata. A partir do rio, a lhanura é contrastada e, nesse momento, se encontra a Argentina, o
seu povo e os conflitos que desenharam uma imagem de nação. Do alvorecer de um povo,
contados no caloroso “Verano”, passa-se ao “Otoño” das representações literárias. O
“Invierno” anuvia os ares da nação, trazendo as evidências de algumas de suas chagas: como
os golpes de estado e o período de ditadura. Finaliza-se o livro, com “Primavera”, em um
projeto de renascimento, de busca por consolidação de imagens que retratem o iterativo
movimento do homem no mundo. A imagem final do livro − o homem e o fogo − reencontra
o caminho para a interação ou acentua essa relação de interdependência. É na junção com o
mundo que a experiência empírica se conjuga com vozes advindas de várias fontes
discursivas. Entre o saber e o conhecer é que o homem se insere no mundo das coisas e se
projeta como também pertencente a esse mundo das palavras e das coisas.

82
SAER, 1994, p. 221.
46

Concluindo, é necessário pontuarmos a relevância de El río sin orillas como texto


de abertura da tese: sua importância está no tema ou no enfoque do projeto espacial saeriano.
O espaço é a própria personagem do livro e esse foco central se expande quando a lhanura
entra em cena, assim como, também, o território argentino. O espaço é desenhado por meio da
experiência, mediatizada por pesquisa em “documentos”, bem como pelo imediato contato
com o objeto. Há um confronto entre duas posições principais: entre aquilo que já foi escrito
− em documentos históricos e geográficos e em textos literários − e a percepção do narrador.
É nessa contraposição de forças que a discussão teórica saeriana retorna, problematizando a
interseção entre o comumente aceito como verdade e o texto ficcional. Por outro lado, a
relação temporal é evidenciada pela composição do livro em quatro capítulos, representando
as estações do ano. As estações delimitam intervalos temporais que, juntos, correspondem ao
próprio tempo que o sujeito experiencia. Como se tratadas estações do ano, o mais
interessante é que elas não apenas designam um determinado tempo, mas também se projetam
sobre o espaço. Cada estação do ano germina no espaço determinadas características: as
estações representam a projeção do tempo sobre o espaço ou a interação plena entre esses dois
elementos. Essa constatação se revela útil, para este trabalho, porque possibilita não apenas
identificarmos o espaço como a personagem do livro – o próprio rio −, mas, também,
percebermos que o tempo está sendo demarcado, significativamente, nas estações do ano: o
rio (o espaço) é percorrido dentro das estações ou no interior de limites temporais específicos.
O vínculo entre ficção e realidade é discutido, em El río sin orillas, na própria
forma de construção do livro. A aproximação ao rio e a sua mudez provocante faz com que o
narrador busque palavras que possam mediar essa sua relação com o objeto. Esse gesto é
semanticamente fecundo, mas não exclui a imperiosa necessidade da experiência, do contato
com as coisas. O narrador percebe que há uma distância entre si e o rio, e que somente com
um material “teórico” será capaz de ler os contornos do objeto. O rio, “em si”, é uma força
que emudece, mas a erudição possibilita a interação. A investida nas obras de historiadores e
poetas relativiza esses dois tipos de discursos: a possibilidade de aproximação suplanta as
diferenças entre tipos de conhecimentos. O requerido dos materiais é a sua aderência às coisas
ou a possibilidade de “tradução” da experiência “direta” com os objetos. Essa postura do
narrador se coaduna perfeitamente com as discussões teóricas de Saer a respeito do conceito
de ficção. Saer relativiza o intervalo entre ficção e realidade ou defende que “[...] el concepto
mismo de verdad es incierto y su definición integra elementos dispares y aun
47

contradictorios”83. Com essa citação, chegamos ao ensaio que encabeça a maioria das
discussões sobre a estratégia ficcional saeriana: “El concepto de ficción”, ensaio de 1989,
publicado em 1997, no livro homônimo.

1.2 O ENSAIO “EL CONCEPTO FICCIÓN”

Uma das teses centrais desse ensaio é a questão da subjetividade: para


Saer, o estatuto de realidade ou de ficção se subordina ao posicionamento daquele que
enuncia. A ficção funciona como ferramenta para a especulação sobre o real ou se projeta
como, também, enunciadora de conhecimento. Os limites mais dilatados do texto ficcional
proporcionam que o sujeito experimente outras perspectivas na aproximação com as coisas. O
primeiro ponto sublinhado no ensaio é a relativização da verdade ou sua dependência em
relação ao estatuto que o sujeito lhe confere. Saer se distancia da ideia de que a subjetividade
esteja exclusivamente no ato ficcional e, também, repudia o pensamento que caracteriza a
realidade como o campo da pura objetividade. Tentando deslocar-se dessas duas posições,
Saer defende que a chamada non-fiction apresenta, também, um repertório de subjetividade,
em sua forma e conteúdo:

[...] [a]un cuando la intención de veracidad sea sincera y los hechos


narrados rigurosamente exactos – lo que no siempre es así – sigue existiendo
el obstáculo de la autenticidad de las fuentes, de los criterios interpretativos
y de las turbulencias de sentido propios a toda construcción verbal (SAER,
1997, p. 10).

A mediação do fato – em todos os tipos de relato − gera conflito quanto ao seu valor objetivo.
A própria confluência do acontecimento ao ambiente do relato já possibilita conceituá-lo
como uma construção; Saer sublinha esse fato, quando se posiciona em relação à questão da
interpretação. A subjetividade está presente no relato dito objetivo: o movimento de leitura e a
concatenação dos acontecimentos acentuam o papel do enunciador. Essa discussão era
promissora, na época de publicação do ensaio, e denuncia os paradigmas da ficção saeriana.
A importância do reiterado gesto saeriano, ao pôr em discussão os limites da
ficção, preocupando-se com uma teoria que possa decompor os elementos do objeto ficcional,
justifica-se não pelo fato de o autor querer delimitar os espaços do ficcional e da realidade; ao
contrário, Saer se interessa pela discussão no sentido de relativizar, em determinado grau, o

83
SAER, 1997, p. 10.
48

distanciamento entre essas duas instâncias. A questão é problemática, já que a intenção do


escritor é pôr em evidência a artificialidade dos recursos objetivos dentro do relato ou sua
dependência de uma interpretação. Saer retoma a discussão, em todos os seus escritos, no
sentido de sublinhar o estatuto da ficção e deslindar como um de seus elementos é o próprio
gesto de segmentação da verdade, de apropriação do objetivo:

[...] [a]l dar un salto hacia lo inverificable, la ficción multiplica al infinito las
posibilidades de tratamiento. No vuelve la espalda a una supuesta realidad
objetiva: muy por el contrario, se sumerge en su turbulencia, desdeñando la
actitud ingenua que consiste en pretender saber de antemano cómo esa
realidad está hecha (SAER, 1997, p. 12).

Saer, após esse trecho, decompõe a ficção em dois elementos: “el carácter doble de la ficción,
que mezcla, de un modo inevitable, lo empírico y lo imaginario”84. Quando a ficção põe em
discussão a verdade − o empírico −, o objetivo é promover a si mesma ou estruturar os seus
próprios elementos. A verdade se revela como um conceito problemático, para Saer um lugar
incierto, porque seus limites não são plenamente definíveis. A ficção, por outro lado, é o
espaço da experimentação, ambiente em que se pode jogar com as fissuras do real. A
dificuldade de se conceituar a ficção está na complexidade dos elementos que a compõem ou
no próprio manuseio subjetivo do elemento empírico.
Saer busca redimensionar o conceito de ficção não como espaço exclusivo de
subjetividade e nem mesmo como reduto do falso. A ficção se mostra como espaço de
perspectivação do real ou como forma de “submergir-se na turbulência da realidade
objetiva”85, como o próprio Saer defende no ensaio. É no ambiente ficcional que se procura
superar as diferenças entre o objetivo e o subjetivo ou, também, entre o real e a ficção. O
projeto ficcional se encontra no gesto de que se recorre “[...] a lo falso, lo hace para aumentar
su credibilidad”86. Saer continua, mas “[…] la ficción no solicita ser creída en tanto que
verdad, sino en tanto que ficción”87. Esse é um dos pontos centrais da discussão saeriana ou
aquele que tem maior importância para este trabalho: a questão das instâncias ou dos espaços.
Saer se posiciona afirmando que a ficção não almeja ser recebida como verdade,
apesar de se forjar com os elementos do mundo objetivo. O seu autodesnudamento88 implica
se mostrar como ficção, ao mesmo tempo em que se assume como um espaço de

84
SAER, 1997, p. 12.
85
Ibidem, p. 9.
86
Ibidem.
87
Ibidem.
88
ISER, 2002, p. 955.
49

interdependência com o mundo real. Esse movimento de autorrevelação se mostra como gesto
de apropriação do espaço ficcional ou de liberdade para o “manuseio” do real. Na
impossibilidade de atingir a coisa em si mesma, de recobrir o objeto em sua integralidade, a
ficção se apresenta como o espaço em que se podem reformular as filigranas do real. A ficção
− liberta das cadeias do real ou da imposição a uma verdade – torna-se mais propícia a atingir
esse lugar, na perspectiva conceitual saeriana. Essa contradição é explicada pela capacidade
da ficção de se construir as muitas facetas do real, por meio dos recortes narrativos, na
multiforme representação mediática das coisas pela Arte.
A liberdade de criação é, para Scavino (2004), um ato de nomear, de trazer as
coisas à existência. Pensando a metafísica do texto ficcional, Scavino percebe essa
perspectiva teórica em Saer: “la cuestión del ser y la del nombrar son, para Saer,
equivalentes”89, e:

[p]oco importa entonces que alguien escriba en prosa o en verso, o que sus
textos no formen parte de lo que los suplementos de cultura y las academias
consideran poesía o literatura: el lenguaje poético es un acto cosmogónico y,
en este aspecto, un retorno a esa dimensión de la palabra olvidada por el uso
comunicativo, o funcional, de la sociedad cotidiana. Nombrar originaria o
poéticamente significa extraer una cosa del fondo indiferenciado y caótico
de la materia visible, de manera semejante a como el Golem surgió de una
masa informe cuando el rabino praguense encontró el nombre apropiado
para llamarlo (SCAVINO, 2004, p. 9).

Esse posicionamento é revelado quando Saer defende a relatividade entre diferentes tipos de
textos; a partir dessa discussão, a relação do sujeito com o mundo é posta em debate. A
vivência é equiparada com a experiência artisticamente representada na literatura ou nos
textos ditos verídicos. Assim, como afirma Scavino, em Saer, “pensar a linguagem poética é
pensar a origem da própria objetividade”90. É nesse ínterim que a discussão filosófica adentra
tanto os ensaios teóricos e críticos de Saer quanto seus romances.
O gesto poético de nomear as coisas está em consonância com o processo de
vivência: o nomear é o advento da própria coisa, a palavra traz o ser à existência. A essa
interação profunda com o mundo, Scavino denomina “dimensión poética u ontológica de la
palabra”91. Essa conceituação é interessante, porque responde concretamente às demandas
desta tese, já que identifica em Saer a postura ontológica da relação do sujeito com o mundo.

89
SCAVINO, 2004, p. 11.
90
Ibidem, p. 12.
91
Ibidem.
50

A postura fenomenológica92 das personagens requer um aprofundamento no interior do


próprio mundo; ou seja: as respostas às demandas da vivência podem ser descobertas nas
junturas com o invisível ou com o dizível. Saer pensa, iterativamente, esse movimento das
personagens em direção ao mundo, em esforço para ultrapassar as aparências e alcançar “a
coisa em si mesma”. Dentro dessa discussão, temos, também, a preocupação com o alcance
do horizonte ou a impossibilidade de se consolidar, no visível, interação plena entre o
observador e o observado. Resulta disso a necessidade de partir para uma pesquisa ontológica,
em que o foco se volta para aquilo que ainda não foi nomeado.
Retomando o ensaio de Saer, quando acima se pontuou a centralidade do conceito
de ficção como um lugar, uma instância que se reconhece como tal, a importância disso é que
as pessoas do discurso se posicionam em função do espaço que ocupam: o “[...] autor pide
permiso para tratar el universo a su manera” 93. A ficção se contrasta com os relatos ditos non-
fiction, por seu caráter de autodesnudamento ou por se autodefinir como ficção. Não se pode
esquecer que Saer se recusa a definir o real – posicionando-se contrário até à possibilidade de
se alcançar uma definição nesse sentido − e, por outro lado, defende certo radicalismo em
relação ao texto ficcional: tudo pode ser considerado ficção. Saer reconhece que escreve
ficção e não quer se distanciar dessa posição, mas percebe que os universos da realidade e da
ficção − presentes no interior do texto narrativo − se mostram em função do projeto de
enunciação ou do ato de se designar ou não o texto como ficção. No entanto, no bojo do texto
reconhecidamente ficcional, Saer defende uma relação pujante com a verdade: na liberdade –
ali encontrada − em estruturar traços diversos no desenho do real. O essencial, aqui, é
afirmarmos que, quando Saer discute − dentro dos próprios limites da ficção − a questão do
verdadeiro e do falso, seu objetivo é sublinhar a liberdade de perspectiva dos relatos
ficcionais. O importante nos romances, em particular, não é o estatuto de verdade ou de
mentira, mas a ideia de que é possível aproximar-se do real por meio da narrativa ficcional e,
também, a ideia de que o real se encontra distante de qualquer tipo de apropriação totalizante.

92
Barbaras defende o prosseguimento do pensamento de Merleau-Ponty, na passagem da fenomenologia para a
ontologia: « [...] [a]ussi l’ontologie de Merleau-Ponty ne doit-elle pas être opposée à l’entreprise
phénoménologique : elle en est au contraire l’accomplissement, et il s’agit seulement de reprendre la tâche que
Husserl s’était proposée là où il l’avait abandonnée, c’est-à-dire de penser jusqu’au bout ce « monde de la vie »
auquel une phénoménologie conséquente est nécessairement reconduite » (BARBARAS, 1991, p. 99). [Tradução
nossa: “[...] Também a ontologia de Merleau-Ponty não deve estar oposta ao trabalho fenomenológico: ela é, ao
contrário, o seu cumprimento, e se trata somente de retomar os trabalhos que Husserl, anteriormente, se tinha
proposto, a partir do ponto onde ele havia abandonado; isto é: pensar, até seus limites, esse « mundo da vida » ao
qual uma fenomenologia consequente é necessariamente reconduzida”].
93
SAER, 1997, p. 13.
51

No mencionado ensaio, Saer toma como exemplo daquilo que lhe interessa na
relação entre realidade e ficção a obra de Borges, que “[...] no reivindica ni lo falso ni lo
verdadero como opuestos que se excluyen, sino como conceptos problemáticos que encarnan
la principal razón de ser de la ficción”94. Prestigioso, para Saer, é o ato de pôr em questão a
representatividade, nos limites do próprio romance; discute-se a capacidade de apreensão do
mundo ou a relação com o real, com a totalidade. Essa demanda da ficção – a leitura do
mundo ou a própria receptividade das coisas pelo relato − torna-se uma iterativa preocupação
com os mecanismos da representatividade, um dos temas recorrentes do romance: a questão
da apreensão do mundo é posta a descoberto. Esse eixo metaficcional de discussão
proporciona que a dinâmica entre sujeito e mundo seja tocada ou que as instâncias do mundo
real se mostrem na problemática da percepção. Quando, nos romances, se discute a
representatividade, Saer se aproxima do dilema da apreensão do mundo; essa questão é
acentuada em El río sin orillas, na medida em que é reproduzida como personagem da própria
obra: a problemática de representação do rio se transmuta no dilema do próprio discurso
ficcional. O espaço apresenta-se, ademais, como invólucro e substância que contém as ações e
os personagens, um agente que modula a relação das personagens no mundo.
No final do ensaio, Saer conceitua a ficção como uma “antropologia
especulativa”: “[...] [a] causa de aspecto principalísimo del relato ficticio, y a causa también
de sus intenciones, de su resolución práctica, de la posición singular de su autor entre los
imperativos de un saber objetivo y las turbulencias de la subjetividad”95. A questão do
“aspecto principalísimo del relato ficticio” se relaciona, talvez, com a discussão anterior ou
com a posição do texto em relação à representatividade do mundo. Quando se fala das
intenções do texto – essa questão é intermediária ao problema da representatividade – o foco
se volta para o sujeito e ao conceito final formulado por Saer, que pontua que a ficção, “[...]
aunque se afirmen como ficciones, quieren sin embargo ser tomadas al pie de la letra” 96. Essa
assertiva é um paradoxo, mas resulta da conclusão de que a ficção adquire um papel
importante na problemática do mundo ou enfileira-se a outros tipos de discurso no projeto de
pensar o próprio mundo. O terceiro ponto do conceito se relaciona com o pensamento anterior
– se entendido como aspecto prático aquilo que é integrado ao mundo – e, dada a
interpretação dúbia da noção de “resolución”, pode ser, também, uma investida no projeto
formal do texto. A questão da subjetividade encerra as causas elencadas por Saer no afã de

94
Ibidem, p. 15.
95
SAER, 1997, p. 16.
96
Ibidem.
52

justificar o seu conceito. Na verdade, todas as causas relembram a questão da subjetividade; a


própria expressão “antropologia especulativa” acentua um projeto de busca e investigação do
homem, de um inventariar a si mesmo e sua condição no mundo. A ficção se mostra – por
meio do conceito saeriano − como um espaço de subjetividade e de promoção da relação do
homem com o mundo.

1.3 TIPOS DE DISCURSO EM “LA NARRACIÓN-OBJETO”

Em 1999, Saer publica um dos textos-base de seu pensamento crítico-teórico: “La


narración-objeto”, que está contido no livro homônimo. Esse é o último livro de ensaios que
Saer publica em vida, e a sua importância está na continuidade da discussão do caráter da
narração, principalmente na sua vertente ficcional. Esse ensaio chama atenção,
primeiramente, pela composiçãodo seu título “narración-objeto”, por essa junção de palavras.
Perscrutando essa primeira questão, Saer inicia esse ensaio com a problemática entre “objeto”
e “narração” e trabalha a noção de objeto, defendendo que “[...] [d]e manera implícita o
explícita, la noción de objeto está en el centro de toda filosofía. De manera implícita o
explícita (pero sobre todo implícita), la ficción narrativa comercia con la filosofía”97. Essa
afirmativa é de grande importância para esta tese, porque o cerne da questão, aqui, é o gesto
de leitura do literário por meio da Filosofia. A relevância dessa ideia está no fato de que um
dos grandes problemas da Filosofia e, também, da Literatura, situa-se na relação que se
estabelece entre sujeito e objeto. Essa discussão acompanha toda a discussão filosófica e, no
caso da Literatura, está imbricada na representação daquilo que é investigado pela Filosofia.
O importante de tudo isso é que a concepção de ficção de Saer enxerga a Literatura como um
campo de vivência, acima da mera representação da experiência. Essa ideia é igualmente
encontrada em Merleau-Ponty, quando este faz uso da Arte para exemplificar o alcance da
relação estabelecida entre homem e mundo.
Retomando a afirmativa saeriana – registrada anteriormente –, há, em seguida, a
conclusão de que “[...] la noción de objeto está en el centro de todo relato de ficción” 98. A
relação da Filosofia com a ficção é ratificada por Saer e essa perspectiva está presente,
principalmente, em La grande, quando uma das personagens perscruta o mundo por meio de
um investigar filosófico. Saer defende que a noção de objeto presente na Filosofia também se

97
SAER, 1999, p.17.
98
Ibidem.
53

revela na ficção; mais especificamente, no “modo de ser de la ficción narrativa”99. É esse


modo que será discutido em “La narración-objeto”, ou a própria conceituação do termo
“objeto”. Observamos um giro no sentido daquilo que se concebe como objeto, a noção é
extraída do próprio gesto narrativo. Esse modo de feitura do texto é explorado, por Saer, no
sentido de como se posiciona o escrevente no momento em que captura o mundo pela escrita.
A posição já não engloba apenas a relação primária entre sujeito e objeto, mas o
posicionamento do “narrador” frente ao mundo que discute, investiga e coloreia.
A abrangência do conceito narración-objeto se desenvolve em duas frentes, que
posteriormente se complementam. A primeira está no projeto estrutural de segmentar os
elementos que compõem os textos, em trabalho que objetiva denunciar a singularidade da
ficção. Essa tarefa exaustiva nomeia e classifica os textos, tendo em vista a sua composição.
Nesse polo, o texto é um objeto e, como todos os objetos do mundo, é composto por
elementos. Na segunda perspectiva do conceito, o foco se volta para a funcionalidade do
relato; prioriza-se o aspecto da ficção – da relação com o mundo –, em contraponto com os
outros tipos de discursos. O ensaio de Saer, então, apresenta esse gesto duplo que busca não
somente descrever o texto como objeto, mas, também, defender que o grande projeto dos
relatos está em referenciar, de determinada forma, o mundo. No esquema de envolvimento
entre os dois termos, a narração é a forma em que se referenciam os objetos do mundo.
Adentrando a segunda perspectiva teórica, a discussão saeriana aborda o problema
do texto e de seu referente ou como os objetos do mundo são referenciados. O problema da
linguagem é posto em relevo, a questão medular é sondar os limites das formas de
representação. Ravetti sublinha a postura de Saer de diferenciar tipos de textos – relato e
discurso –, como forma de reclamar uma peculiaridade intrínseca aos relatos ficcionais. Essa
singularidade dos relatos reside na liberdade concedida ao campo da subjetividade:

[p]arte do risco de acabar sendo servente da escrita oficial se apoia na


pretensa necessidade de unir texto e referente, aceitando a condenação a um
realismo estereotipado. Como mercadoria, a prova da qualidade do sentido
está dada, na contemporaneidade, pela funcionalidade, que seria a forma
mais clara da razão de ser de um objeto. É evidente que Saer se rebela contra
esse mandamento. A tarefa de todo narrador, diz, é invalidar essa ordem
decorrente de uma lei sem sujeito explícito... (RAVETTI, 2011, p. 61).

Como reiteradamente se observa, quando Saer se dispõe a discutir a narração, um


dos seus primeiros passos é deformar os limites entre realidade e ficção, defendendo que o

99
Ibidem.
54

que lhe interessa é a forma de transmissão dos acontecimentos e não se eles, de fato,
ocorreram: pensamento que ele anuncia em seus ensaios, como prerrogativa de discussão. É
esse aspecto de construção e de estruturação dos elementos − que compõem o relato − que
cativa Saer, sendo defendido como uma das perspectivas da noção de objeto. Da mesma
forma que outros objetos se formam a partir da reunião de elementos, a narrativa, segundo
Saer apresenta-se como um construto de dois elementos: “[...] una serie de representaciones
estilizadas por los signos arbitrarios del lenguaje y cierto número de marcos convencionales
que suministra el género elegido”100. O primeiro elemento acentua o gesto representacional da
linguagem; o segundo, por seu turno, releva o posicionamento do escrevente em relação à sua
produção. Nesse último, a pergunta que se procura responder é qual a função do texto escrito,
enquanto no primeiro elemento, se acentua a própria produção ou como transformar o sentir –
a vivência − em sentido ou em signos.
A partir disso, Saer apresenta uma das teses do ensaio: a diferença entre discurso e
relato. Segundo ele, o discurso se compõe de uma “serie de universales” e, por outro lado, o
relato se mostra como um processo de “figuraciones particulares”. Observamos, aqui, que o
aspecto subjetivo do conceito ficcional se apresenta, também, no bojo da concepção de relato;
ou seja: sendo o relato o campo do ficcional, a presença da subjetividade é uma certeza. É
como se fosse impossível falar de ficção sem atingir esta nuança da representação: a presença
do homem. No ensaio “El concepto de ficción”, analisado anteriormente, a subjetividade foi
apresentada como o próprio conceito de ficção ou como movimento humano de exploração do
mundo. Por seu turno, aqui, em “La narración-objeto”, o aspecto de construção assinala o viés
da subjetividade, no ato de concatenar, no processo de modulação dos dois elementos da
narrativa. Parece que, diferente do discurso, em que os elementos são mais rígidos, o relato se
descobre por essa estreita dependência de uma significação subjetiva. Enquanto o discurso se
molda dentro de padrões objetivos, o relato apresenta em seu bojo o aspecto individual,
subjetivo.
Na conclusão da diferenciação entre relato e discurso, Saer aceita a ideia de que os
próprios universais possam ser considerados como objetos. Assim, enxergamos, também,
nesse bloco, a dependência do sujeito no sentido de condicionar o discurso. Segundo ele, essa
concepção dos universais favorece sua tese da narração-objeto e, ainda mais, intensifica a
indeterminação entre realidade e ficção, porque intensifica a relação entre esses dois núcleos;
ou seja: na medida em que é indiferenciado o grau de participação do sujeito no texto, releva-

100
SAER, 1999, p. 18.
55

se uma determinada aproximação entre o discurso e o relato. A crítica de que os “universais”


sejam, também, objetos é acompanhada por uma explicação do que seja objeto: “[...]
entidades distintas de la mera subjetividad”101. Apesar de Saer identificar no elemento
“particular” a essência do relato, é no processo de estruturação dos dois elementos
apresentados anteriormente que o conceito de objeto é justificado. Assim, objeto apresenta-se
como um elemento que é disposto de determinada forma. O conceito de objeto depende da
objetivação do sujeito: a questão está no fato de que somente a liberdade do homem
possibilita a objetivação das coisas. Quando Saer cogita que os universais possam ser objetos,
a questão que se desvela é que a apresentação dos universais recebe uma formatação própria
mesmo no interior do discurso. A objetivação da narrativa está na construção, no movimento
de ordenação dos elementos102.
Posteriormente, Saer esclarece, mais pontualmente, a diferença entre discurso e
relato: “[...] [s]i el discurso se presenta a si mismo como abstracto, unívoco e inteligible, el
relato, en cambio, es más bien una simulación de lo empírico […] siempre tendrá tendencia a
constituirse como una especie de construcción sensible”103. O caráter de “simulação do
empírico” evidencia o aspecto ficcional do relato e o processo de objetivação dos elementos
da narrativa põe em relevo o gesto enunciativo. A liberdade que o relato concede à expressão
do enunciador ou ao ato de recortar o empírico não se efetua mediante a promoção da imagem
do enunciador no relato, mas como processo, como articulação de elementos. A escolha e a
seleção são o gesticular subjetivo no projeto de construção do objeto, característica que pende
mais ao ambiente do relato que ao do discurso. Quando se aceita o movimento de objetivação
dos universais – no caso do discurso −, o que se frisa é o gesticular de uma subjetividade.
Essa subjetividade está aquém ou além da progressão de uma subjetividade marcada ou se
distancia da mera manifestação do enunciador no texto. O aspecto de “construcción sensible”
do relato tem por base a estruturação dos materiais, por meio do ato de eleição daquele que
enuncia o texto. Há variantes múltiplas nesse engajamento da subjetividade, porque o ato de
objetivação das coisas é visualizado nas duas formas de apresentação do texto: tanto no relato
como no discurso.
A diferença entre o manuseio dos universais e o estruturar dos elementos do relato
é, assim, desenvolvido por Saer: “[...] [c]uando finge que es verdadera, la ficción finge una
realidad no de discurso, es decir de una concatenación de universales, sino de objeto, o sea

101
Ibidem.
102
Percebe-se que Saer teoriza na busca por balizar aquilo que formaliza como conceito de sua ficção.
103
SAER, 1999, p. 19.
56

una organización singular de atributos particulares”104. A abrangência dos termos “atributos


particulares” é incomensurável, uma vez que não se pode sondar os limites da subjetividade
vinculada ao projeto de execução da obra ou o jogo entre o objetivo e o subjetivo. Essa
relação com o sentido não se limita ao processo de construção, porque a recepção, também, se
favorece da ampla abertura hermenêutica. É na recepção que os elementos do relato se
apresentam como que ordenados e o leitor tem, nesse momento, a abertura para sua tarefa
“especulativa”. Em muitos sentidos, o relato se apresenta com essa vitalidade especulativa:
“[...] el objeto narrativo en cambio vivifica el eterno presente del relato con la sustancia
gruesa de las cosas particulares”105. É impossível equacionar os limites da subjetividade de
um texto, tendo em vista a participação de pelo menos duas pessoas no processo enunciativo:
autor e leitor. Essa promoção das coisas particulares ou do próprio acontecer se dinamiza em
múltiplos vetores, em tentativa receptiva de recobrimento de seu sentido.
O segundo ponto sublinhado por Saer − nessa perspectiva de objetivação − é a
postura do relato frente ao mundo. A questão da representação emerge na reafirmação da
autonomia do relato: essa autonomia é encontrada nas variantes do movimento especulativo
ou da subjetividade. A autonomia se firma na promoção de variantes ou nos chamados
enigmas, que se gesticulam por intermédio das estruturas do relato. É salutar essa
independência do objeto ou sua abertura, em perspectivas, para aqueles que se debruçam
sobre ele. Os enigmas favorecem a autonomia do relato, na medida em que desvelam “os seus
elementos particulares”: é nessa manifestação do “particular” que o relato se exime de uma
variante desprestigiada do conceito de “objeto”. Saer quer se distanciar da vertente, da
concepção de “narração-objeto”, como uma “espécie de produto industrial”. A ausência dos
chamados “elementos particulares” figura como a principal causa do relato ser tomado como
“produto” ou aquilo que é facilmente reproduzido. É a liberdade, presente no gesto
enunciativo, e a realização estética que impedem a reprodução mecânica de sua formatação. A
abertura para “especulação subjetiva” se apresenta como o eixo da singularização do relato,
em todas as esferas das pessoas nele envolvidas. Como Ravetti afirma: “[...] [a]final, a
estratégia para pôr em prática a contradição às leis do mercado passa por alcançar o universal
sem sair do domínio rigoroso do particular”106. Saer coteja alguns romances, que se
assemelham em sua estruturação formal, e mostra como o pendor do “sensible” os torna
inconfundíveis. Assim, o conceito de relato contradiz a veiculação do termo “objeto” com a

104
Ibidem, p. 20.
105
SAER, 1999, p. 22.
106
RAVETTI, 2011, p. 62.
57

“indústria cultural”: o projeto de estranheza (na esfera da autonomia do relato) e de diálogo


com a experiência do real contribui para que o relato seja um sempre metamorfosear107.
No encerramento do ensaio, Saer apresenta, mais diretamente, o conceito de
“narração-objeto”, esclarecendo a concepção do termo “objeto”. A questão está na autonomia
dada à narração, à sua independência em relação a fontes e influências; é sob esse aspecto que
o relato se torna objeto:

[c]obran la misma autonomía que los demás objetos del mundo y algunas de
ellas, las más grandes, las más pacientes, las más arrojadas, no se limitan a
reflejar ese mundo: lo contienen y, más aún, lo crean, instalándolo allí
donde, aparte de la postulación autoritaria de un supuesto universo dotado de
tal o cual sentido inequívoco, no había en realidad nada (SAER, 1999, p.
29).

A princípio, o termo “narração-objeto” parece engessar a própria noção de relato ficcional;


porém, na construção desse conceito, percebe-se o contrário: o apelo à autonomia preserva o
movimento do relato ficcional. Observamos, nesse termo, a preocupação de cortar as amarras
do texto da relação com as pessoas do discurso; por outro lado, essa relação é, também,
amadurecida, na medida em que Saer pontua uma concepção própria para o termo “objeto”. O
movimento de objetivação subjaz à dependência do relato de uma subjetividade: algo é
considerado objeto108 em razão a alguém. É sob essa óptica que o conceito de ficção, nesse
outro ensaio saeriano, sublinha, também, o aspecto da subjetividade. Essa dependência de um
sujeito se descobre não apenas no aspecto “especulativo” – como em “El concepto de ficción”
− mas, também, no viés da autonomia – como em “La narración-objeto” − em relação às
pretensões de um sujeito específico.

107
Saer promove a singularidade da ficção mediante a defesa da presença do enigma no relato: essa condição em
que não se pode medir o grau de subjetividade do texto.
108
Barbaras, em nota número trinta e três de pé de página, citada entre parênteses, explica a singularidade do
conceito de objeto em Merleau-Ponty; ou melhor: pontua que esse filósofo trabalha com uma nomenclatura mais
arrojada; em lugar de objeto, encontra-se o termo coisa: “Il va donc de soi que, pour Merleau-Ponty, « chose »
ne désigne pas ce que l’on entend habituellement par ce terme, à savoir une réalité délimitée, déterminée,
reposant en elle-même, bref un objet. [...] Il appelle chose la réalité phénoménale telle qu’elle se donne
originairement et, précisément, le but de son analyse est de montrer qu’elle ne se donne jamais sous forme de
choses achevées, circonscrites, pleinement déterminées” (BARBARAS, 1991, p. 223). Essa desenvoltura do
conceito de coisa atualiza a sua relação com as outras coisas e com o homem, em um sistema de
interdependência: essa questão é discutida no capítulo 2, dedicado ao estudo de Merleau-Ponty. [Tradução nossa:
“É então que, para Merleau-Ponty, « coisa » não designa o que entendemos habitualmente por esse termo, a
saber, uma realidade delimitada, determinada, repousando nela mesma, resumindo: um objeto. [...] O filósofo
nomeia de coisa a realidade fenomenal tal que ela se apresenta originalmente e, precisamente, o objetivo de sua
análise é mostrar que ela nunca se manifesta na forma de uma coisa terminada, circunscrita, plenamente
determinada”].
58

[o] fundamento materialista da obra repele as convenções de um realismo


simplista e ortodoxo e, pela escrita performática, pode vir a se enraizar na
matéria experiencial para transformar esse magma em figurações e
apresentações, transferíveis como vivências que contagiam mediante a
“desfala” que pode dar início a outras falas, nas quais é necessário nomear,
inventar os referentes para substantivá-los e torná-los verbo inteligível
(RAVETTI, 2011, p. 63).

O ensaio “La narración-objeto” apresenta apuro no trabalho com a subjetividade


em contraponto ao “El concepto de ficción”, na medida em que potencializa esse atributo.
Não querendo aqui reduzir a abrangência do conceito de ficção saeriano, o que percebemos
em “La narración-objeto” é uma releitura da relação antropológica do sujeito com o mundo.
Saer não retoma o ensaio anterior ipsis litteris; contudo, mantém-se a preocupação de
redefinir os horizontes da subjetividade no interior da ficção. A abertura deixada em “El
concepto de ficción” para a projeção do homem é atualizada no conceito de “objeto”. Nesse, a
presença do homem se distancia da “mera subjetividade”, porque o objeto se perfaz pela
autonomia. A dependência em relação ao homem está no seu caráter de objeto, na necessidade
de uma “organización singular de atributos particulares”. Essa presença dos atributos
particulares caracteriza o lugar do homem, na função de seleção e ordenação dos elementos.
Não querendo reduzir-se a uma impactante sujeição aos desígnios do enunciador, Saer
provoca o conceito de ficção, denominando-o “objeto”: relato que depende e independe do
homem, dado o seu caráter autônomo.
Cumpre pontuar que essa recorrente preocupação saeriana com o conceito
ficcional ou com a discussão crítica dos aspectos ficcionais do relato é explicada, pelo próprio
autor, na introdução de La narración-objeto. Como escritor de ficção, Saer defende que o seu
interesse por essa discussão vem do próprio manuseio do texto ficcional:

[...] [n]o es desde luego obligatorio que un autor de ficciones escriba textos
críticos que, a menudo, a pesar de su tono objetivo, no reflejan más que sus
hábitos, e incluso sus prejuicios disfrazados de conceptos. Pero nada ha sido
dado de una vez y para siempre, sobre todo en literatura, lo que puede
permitir – ha ocurrido más de una vez – que esos hábitos y esos prejuicios
transformen, para su autor al menos cuando los pasa en limpio, las premisas
del arte (SAER, 1999, p.11).

A relação de Saer com a crítica literária ultrapassa os limites de seus ensaios. Como
afirmamos inicialmente, os romances e mesmo o seu livro de poesia condensam uma
discussão reiterada do seu envolvimento com a ficção. É como se Saer se provocasse no
59

próprio universo ficcional, ou se questionasse, a respeito dos padrões de formatação do seu


relato. Essa idiossincrasia é apenas de fachada, já que a discussão envolve uma linha de
pensamento teórica e filosófica.

1.4 REUNINDO FENOMENOLOGICAMENTE OS TEXTOS LIDOS

A preocupação recorrente de Saer com o projeto de escrita leva-o a depurar o seu


próprio envolvimento com os mecanismos da ficção. O desafio, aqui, é redimensionarmos o
conceito de ficção de Saer no interior de uma “normatização” da representação espacial. O
esmero em perseguir a consolidação de uma teoria conduz esse discurso ao universo da
prática ficcional. É imerso no ambiente ficcional que Saer trabalha, exaustivamente, o tema
do espaço ficcional, discutindo a representação desse lugar. Essa assertiva justifica a abertura
dada à tematização conceitual da ficção em uma pesquisa que nos propomos a ocupar da
descrição da performance espacial na ficção. Constatamos, neste capítulo, que Saer se
preocupa em redefinir o espaço da ficção (ou de sua ficção) visando transgredir uma
concepção que desnivelaria o seu projeto romanesco. Saer tem por norte discutir os termos ou
os pontos que sedimentam a ficção − o que lhe permite apresentar sua própria visão sobre essa
teoria – por meio, também, de sua prática-teórica. Afastando-se de um projeto linear de escrita
ou sublevando-se contra os mecanismos que tornam esse gesto uma sequencial busca pelo
sentido, Saer redime seu texto da obsessiva temporal, lançando-se em uma estética espacial,
aproveitando-se dos vários gêneros de sua escrita, procurando descrever o espaço da ficção ou
da representação. Esse movimento objetiva redefinir a função da ficção – o seu espaço e a
forma de representação desse lugar − projeto que é desenvolvido em duas frentes: nos textos
críticos-teóricos e no interior da própria ficção.
Retomando, a distorção dos limites entre ficção e crítica ou o autotematismo109
ficcional corrói − como percebemos nesta discussão − as fronteiras entre esses dois universos,
problematizando o lugar do real. Saer, em um primeiro movimento, discute a ficção em
ensaios que visam desmentir a sua diferença com a realidade. No ambiente dos textos
ficcionais, o problema aparece como uma inflação das filigranas da realidade, potencializando
a sua relação com o mundo. A suspensão da diferença entre esses dois tipos de textos
relativiza uma padronização ou um distanciamento entre eles. A importância disso está no
fato de que Saer consegue urdir um universo próprio de conjunção da prática e da teoria. Sua

109
Conceito de Premat (2002, p. 16) a respeito do gesto meta-ficcional de Saer em sua obra.
60

inveterada posição contra purismos objetivo e subjetivo nos ensaios e na ficção,


respectivamente, movimenta a própria noção de realidade. Saer apenas conseguiria realizar
uma poética espacial se renegasse os dualismos que poderiam limitar ou segmentar sua ficção.
Sua preocupação está centrada na abolição das fronteiras, na possibilidade de fugir de uma
relação direta com os sentidos. A ficção de Saer é desenhada como uma fuga da lógica
temporal, em que os elementos dos textos se distanciam de uma posição simplista de busca
por sentido. A circularidade seria a poética saeriana por excelência, um inveterado movimento
de experimentação de ideias, lugares e personagens.
Saer não omite preocupação com o tempo em sua obra ficcional e ensaística,
como é perceptível em La grande, romance que, nesta tese, encabeça a análise do espaço
saeriano. Contudo, defendemos que a postura de se situar temporalmente está associada à
preocupação em corroer essas amarras que, inveteradamente, impede a percepção do espaço
ou a própria imersão no universo dos sentidos. Universo entendido como o movimento de
experimentar o mundo em suas várias aberturas para o sentiente. A promoção dos sentidos é
bem nítida, em Saer, que promove a junção do sentir: os cinco sentidos do homem são
justapostos e se intercambiam no fenômeno da sinestesia. A relação de Saer com os sentidos
das coisas ou com a promoção de uma síntese da percepção é dúbia, ao mesmo tempo em que
visa alcançar o sentido por meio da inveterada imersão nas coisas, esse próprio movimento
impossibilita a retirada de uma conclusão explícita; ou melhor: o gesto de perceber
pontualmente os objetos faz com que o sujeito se distancie da compreensão do seu gesto ou da
formulação cognitiva desse contato. Premat aponta como problemática mais aguda dos textos
saerianos “una relación dramatizada con el sentido”110. É evidente a movimentação da
personagem em busca de consolidar uma ideia. O gesto é estéril, na medida em que, na
mesma proporção em que se estendem os sentidos sobre a matéria, o sujeito é repelido pela
impossibilidade de percepção do todo. Há uma pulsação do sujeito no sentido de se recobrir o
objeto e, por outro lado, há um escoamento da coisa da percepção total, o que acarreta a
própria anulação ou extensão do contato. O sujeito se movimenta entre a imersão e a reversão
no objeto e, por causa disso, o relato se caracteriza entre o apuro descritivo e o escape
narrativo. Esse movimento é descrito, quando da análise dos romances, no terceiro e no quinto
capítulos deste trabalho.
Quando nos propomos, aqui, analisar a relação entre El río sin orillas e os ensaios
“El concepto de ficción” e “La narración-objeto”, o primevo objetivo é sublinhar como o livro

110
PREMAT, 2002, p.14.
61

antecipa as questões teóricas mais importantes da obra de Saer discutidas, potencialmente, nos
ensaios. Essa constatação desvela como o autor articula as nuances do conceito de ficção
dentro do universo do texto literário, ao mesmo tempo em que demonstra a peculiaridade
dessa obra que encena o próprio fazer literário. Esse ato é descoberto quando se articulam
fontes diversas para a confecção do texto, acrescida da participação meticulosa do narrador-
autor. Questões relevantes – como a nuance de subjetividade no interior do texto, a promoção
da relação entre sujeito e objeto e as formas de representação dessa relação – efetivam o
movimento do conceito de ficção. Todas essas facetas do conceito se movimentam, também,
no interior do discurso filosófico presente em La grande. Dessa forma, o conceito de ficção de
Saer está atrelado às estruturas de seu pensamento filosófico.
É nesse movimento do pensamento que percebemos a relação entre teoria literária
e filosofia ou como Saer, dialeticamente, aproxima esses dois campos de conhecimento. Esse
gesto serve para relativizar as distâncias, ao mesmo tempo em que legitima uma discussão
aprofundada de termos literários. O teor filosófico é encontrado, principalmente, no último
ensaio aqui discutido, “La narración-objeto”, que expõe a relação entre sujeito e objeto por
meio da linguagem ou da concepção textual de relato e discurso. Preocupando-se com o relato
da vivência, Saer toma por foco a percepção do mundo e as múltiplas formas de representação
dessa experiência. El río sin orillas prioriza a encenação da vivência, o processo de encontro
do homem com o rio. Há um jogo entre a experiência direta e o emaranhado de relatos que
narraram o Río de la Plata. Saer reclama o direito de equiparação entre os escritos sobre o rio,
sejam eles, históricos, geográficos ou literários. Quando focamos no conceito de ficção – seja
em El río sin orillas ou nos dois ensaios teóricos −, temos que o cerne da questão é a
liberdade que o texto literário propicia para a discussão do próprio mundo.
Esse processo de imersão no mundo e de uma descritiva experiência com as
coisas é que procuramos ler por intermédio da fenomenologia e, principalmente, da fase
ontológica de Merleau-Ponty. Buscamos, por meio de textos desse filósofo, conceituar os
gestos das personagens na relação com os outros e com o mundo ou na densidade da vivência.
Depois de repassada a teoria ficcional saeriana, o próximo passo é discutirmos sobre o espaço
teórico-literário e filosófico. O próximo capítulo trata, então, dessa investida na conceituação
do espaço literário: como representação e como focalização. No primeiro caso, o capítulo que
aqui se encerra é o lócus maior de discussão, em termos da perspectiva saeriana, a respeito do
ato de representação. Mesmo assim, essa perspectiva é também abordada no próximo
capítulo, articulando, em discussão, contribuições de outros pensadores da teoria literária.
Quando se volta para o espaço como focalização, percebemos o benefício de se trazer para o
62

interior da discussão da fenomenologia saeriana os critérios descritivos de envolvimento do


“corpo” merleaupontyano na percepção. Os caminhos interpretativos colidiram no filósofo
depois que percebemos a amplitude do movimento das personagens saerianas em direção ao
mundo. O interessante é que essa segunda parte da discussão teórica sobre o espaço literário –
a parte filosófica – está intrincadamente condicionada à análise posterior que fazemos dos
romances, tendo La grande como texto inicial de análise. Assim, a primeira parte do capítulo
teórico está estritamente ligada ao pensamento teórico de Saer e, a segunda parte, à análise da
ficção. Buscando-se expor esses pressupostos de leitura – a filosofia de Merleau-Ponty como
ferramenta para leitura do espaço saeriano –, que são sustentados pelo gesto de envolvimento
dos sentidos das personagens com o mundo, o próximo passo é introduzirmos o pensamento
desse filósofo e a teoria ficcional do espaço.
63

CAPÍTULO 2

DO ESPAÇO LITERÁRIO À APREENSÃO MÁXIMA EM


MERLEAU-PONTY: UM GIRO ENTRE FILOSOFIA E
TEORIALITERÁRIA SOBRE O ESPAÇO

“O sensível, o visível deve ser para mim a ocasião de dizer o que é o nada -
O nada não é nada mais (nada menos) que o invisível”.
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 232.

O debate a respeito da categoria espacial se ramifica em múltiplos braços


teóricos111 e a noção de espaço literário aqui investigada está relacionada ao espaço como
representação112 − ou à tentativa descritiva de esgotamento dos contornos espaciais – e ao
espaço como focalização, enfatizando-se a experiência. Essa discussão sobre
representatividade do real se relaciona com um dos focos centrais do debate de Saer: a relação
entre ficção e verdade, que adentra toda a sua obra. Dentro dessa perspectiva, Iser (1996)
“rechaça a oposição entre realidade e ficção, que Saer também descarta. Para o primeiro, o
recorte da realidade ganha outro estatuto, quando se apresenta realizado no espaço do texto,
devido aos mecanismos de disposição e de reorganização a que ele está sujeito nesse novo
ambiente”113. Barthes (2007, p. 21) defende ser a representatividade literária a segunda força
da Literatura: “[...] [o] real não é representável, e é porque os homens querem constantemente
representá-lo por palavras que há uma história da literatura”. Em Bakhtin (1988), o espaço se
conjuga com o tempo, sendo que esse último é quem conduz a projeção espacial. A discussão
de Bakhtin acompanha o pensamento de Kant (2012) em relação à divisão dos a priori em
tempo e espaço: o espaço como forma de intuição externa e o tempo como forma do sentido
interno. A proposta de Merleau-Ponty, em sua obra Fenomenologia da Percepção (2006), é

111
No texto “Espaços literários e suas expansões”, o pesquisador brasileiro Luis Alberto Brandão enumera alguns
vieses de abordagem da categoria espaço literário: o espaço como focalização, a espacialidade da linguagem, o
espaço como representação e a estruturação espacial ou “a retirada da primazia de noções associadas à
temporalidade” (BRANDÃO 2007, p. 209).
112
Quando tratamos, aqui, de representação, cumpre precisar o sentido atribuído a esse termo; Brandão (2013)
assim o define: “[...] [n]esse tipo de abordagem, com frequência nem se chega a indagar o que é espaço, pois ele
é dado como categoria existente no universo extratextual. Isso ocorre sobretudo nas tendências naturalizantes, as
quais atribuem ao espaço características físicas, concretas” (p. 59). O espaço como representação interessa, nesta
tese, como gesto de encenação do mundo, como possibilidade de reativar o contato das personagens com o
mundo. É, também, nesse sentido que Merleau-Ponty se interessa pela Arte: como potenciadora da relação do
corpo com o mundo.
113
MOTA, 2011, p. 72.
64

unir o a priori kantiano com ao posteriori ou com as sensações. Fuão (2004) articula essa
relação nestes termos: “Merleau-Ponty nos fez ver que o corpo é a nossa principal referência
espacial e que o espaço deve ser compreendido não só a partir dele, mas também como uma
extensão do próprio corpo”.
Por meio desses contrapontos conceituais, o escopo teórico desta pesquisa se
esclarece, percorremos a categoria espacial aqui em seus dois, já mencionados, vieses
teóricos: o da representatividade e o da focalização. Na análise, subsequente, da obra de Saer
priorizamos os romances em que o espaço da natureza é inventariado pela personagem em
constante busca por sentido. Neles, enfocamos a voz que tenta percorrer os limites do espaço
por meio de apurada descrição das coisas e do movimento. Quando se passar para a Filosofia,
o enfoque espacial, aqui, pode ser designado pelo tema, fenomenológico, de apreensão
máxima. Além desse aspecto da filosofia de Merleau-Ponty, os dois braços teóricos – já
mencionados – são percorridos na discussão literária do espaço, no escopo de pensarmos o
gesto saeriano de recobrir por meio do olhar da personagem, as filigranas do espaço. A
última fase de Merleau-Ponty, tendo como eixo central O visível e o invisível, apresenta-se
como uma forma de leitura do pertencimento do corpo ao espaço 114. Essa imersão na filosofia
de Merleau-Ponty tem por objetivo descrever os gestos das personagens saerianas no encalço
de se confluírem com o mundo, em suposta busca pelo sentido da experiência. O ato de se
recorrer à filosofia de Merleau-Ponty justifica-se pelo fato de nela percebermos uma descrição
proveitosa da relação do corpo com o mundo, o que defendemos, aqui, contribuir para a
discussão teórica literária do espaço ficcional, principalmente em se tratando do eixo da
focalização. Introduzimos, primeiramente, a teoria literária do espaço ficcional, nos âmbitos
da representação e da focalização. Identificamos esses dois vieses da teoria literária espacial
na relação do homem com o mundo ou na insistência de uma interação plena. A ontologia
final de Merleau-Ponty mostra-se como uma chave de leitura da discussão saeriana da
possibilidade de comunhão entre a personagem e o mundo. A investigação do espaço pelas
personagens passa a ser um movimento interrogativo que deixa o mundo revelar-se na
interação com o corpo. A relação entre filosofia e literatura também é trabalhada por Merleau-

114
BARBARAS (1991, p. 238) afirma que “[l]a réflexion de Merleau-Ponty sur l’espace est tout entière centrée
sur une méditation de la profondeur : en elle peut se lire de manière privilégiée une expérience primordiale de la
spatialité. En effet, alors que les autres dimensions sont déployées devant le sujet et semblent appartenir aux
choses mêmes, la profondeur est comptée à partir du sujet, exprime sa perspective sur le monde, correspond au
déploiement même de l’exteriorité”. [Tradução nossa: “A reflexão de Merleau-Ponty sobre o espaço é totalmente
centrada sobre uma meditação da profundidade: nela, pode-se ler, de maneira privilegiada, uma experiência
primordial da espacialidade. Com efeito – já que as outras dimensões são dispostas diante do sujeito e parecem
pertencer às coisas mesmas –, a profundidade é manifesta a partir do sujeito, exprime sua perspectiva sobre o
mundo, corresponde ao desdobramento da exterioridade mesma”].
65

Ponty, quando discute o invisível: a literatura se apresenta como fonte indireta de apreensão
desse tipo de conhecimento.
Buscamos, no primeiro capítulo, conjugar a discussão teórica de Saer – sobre a
possibilidade de representação do mundo − com o fascínio do autor em construir uma imagem
espacial, passível de descrição por uma escrita que privilegia o trabalho com as nuances de
envolvimento das personagens com o mundo. Aqui, percorremos os teóricos, como os já
mencionados no início deste capítulo, no escopo de delinear o espaço nos seus vieses de
representação e de focalização. A relação de Saer com o mundo − principalmente nos
romances que têm como espaço a lhanura, o deserto e o rio − é priorizada, posteriormente, nas
nossas análises teóricas dos romances. A preferência é justificada porque, nesses romances,
percebemos, de forma mais latente, a investida da personagem em direção ao mundo. A
discussão teórica-literária, aqui, é prosseguida por uma pesquisa filosófica baseada na
fenomenologia de Merleau-Ponty. A resistência dessa fenomenologia é testada na última fase
de sua filosofia e o interessante é percorrer os questionamentos desse filósofo acerca de seus
primeiros conceitos: a aplicabilidade e a resistência deles na tentativa de suplantar o
binarismo sujeito e objeto. Essa discussão é de suma importância, porque é uma forma de
decifrarmos o gesto saeriano de fazer colidir o homem com o mundo, em suas apuradas
descrições espaciais. Merleau-Ponty, ciente de que precisa dar um passo maior do que dera
em a Fenomenologia da Percepção, projeta a sua ontologia115. O objetivo é aprofundar-se na
relação do corpo com o mundo, buscando descrever os elementos que constituiriam esse
universo do ver. É na consolidação da experiência, no gesto de busca e aprofundamento da
relação entre o corpo e as coisas, que esse filósofo se fixa.
Posteriormente, analisamos a aplicabilidade dessa filosofia no âmbito das Artes,
sendo, aqui, seguido o eixo da Literatura. Nessa parte do capítulo, demonstramos como esse
pensamento pode ser trazido para potencializar a análise da percepção e da experiência na
obra de arte. Desvinculado de um pensamento exclusivamente estruturalista, o espaço é
pensado na sua realização, na vivência das personagens. É nesse gesto de trazer à discussão a
potencialidade da filosofia de Merleau-Ponty − principalmente nos últimos “conceitos”, para

115
Rosati assim define esse último pensamento de Merleau-Ponty: « [...] [l]a thèse de Merleau-Ponty est que la
chair du monde finit par coïncider avec la chair du corps. La chair du monde est en effet cet empiétement des
choses les unes sur les autres, une promiscuité engendrée par le chiasme entre visible et invisible. C’est la
superposition des choses dans la profondeur, le croisement du devant et du derrière » (ROSATI, 2009, p. 40).
[Tradução nossa: “A tese de Merleau-Ponty é a de que a carne do mundo acaba por coincidir com a carne do
corpo. A carne do mundo é, de fato, esse avanço das coisas umas sobre as outras, em uma promiscuidade gerada
pelo quiasma entre o visível e o invisível. É a superposição das coisas na profundidade, o cruzamento daquilo
que se mostra e daquilo que se esconde”].
66

a leitura da experiência das personagens − que esperamos legitimar esse giro filosófico. Nesse
sentido, este capítulo é dividido em três partes: a primeira apresenta uma entrada na teoria do
espaço literário, nos ramos da representação e da focalização; a segunda parte compreende a
filosofia de Merleau-Ponty, a discussão sobre a apreensão máxima e a experiência no mundo;
a terceira parte apresenta a passagem do pensamento de Merleau-Ponty para a leitura do
espaço literário, uma forma de aplicabilidade teórica da filosofia, por meio do conceito de
“paisagem” de Collot. A ênfase no olhar, tão nítida no pensamento desse filósofo é, assim,
aproximada das teorias espaciais que pensam a focalização e a experiência no mundo.
Quando tratarmos do espaço como representação, o foco incidirá, também, sobre
o pensamento de Saer sobre a representatividade do mundo. O estudo nesse ramo do espaço
literário se justifica por Saer se preocupar, exaustivamente, com a representação da
experiência – em descrever esse contato da personagem com o mundo – e, subsequentemente,
discutir a possibilidade de representar essa experiência. A questão da representatividade é,
então, central em Saer, tanto no gesto lancinante de apreensão do todo como no seu
autotematismo. Em Saer, vemos essa meta de perseguir o sentido da experiência; tanto é
assim, que Premat (2002) percebe esse gesto como um dos temas centrais da saga saeriana. A
experiência é exaurida em seu potencial máximo, para que se percebam os mecanismos de
envolvimento do sujeito com os outros e com o mundo.

2.1 UM GIRO TEÓRICO SOBRE O ESPAÇO LITERÁRIO

Recapitulando: o cerne da discussão sobre o espaço se fixa em dois de seus vieses


literários: espaço como representação e espaço como focalização. Brandão (2013) discute esse
tema por meio de suas ramificações, elencando vários de seus modos de abordagem. Tendo
por primeiro objetivo a definição, Brandão apresenta uma das características importantes da
expressão espaço literário: “[...] [e]m tal expressão a palavra espaço parece veicular tanto o
pressuposto de autoevidência (espaço é noção óbvia, dispensa definição), quanto a
perplexidade diante da imprecisão (há pontos comuns no emaranhado de definições
distintas)”116. O conceito de espaço literário apresenta esse dúbio movimento de revelação e
de encobrimento, devido à remissão que se faz ao espaço próprio do homem – ou ao seu
caráter de autoevidência, já mencionado − e às próprias projeções dessa expressão no âmbito
literário. Esse caráter de autoevidência é potencialmente interessante porque oferece outra

116
BRANDÃO, 2013, p. 3.
67

face para a ideia de espaço, na medida em que relativiza seu aspecto apriorístico, quando
reclama apenas a sua contiguidade com o homem. Aqui, os vieses literários dessa expressão
se fixarão nos espaços de representação e de focalização.
O espaço literário como representação117 se apresenta no afã de se recobrir o
universo narrado, em manifestar seus limites e contornos. O movimento do ficcionista está no
encalço de revelar o cenário da ação, porque, nessa abordagem, o espaço “[...] é dado como
categoria existente no universo extratextual”118. Busca-se a projeção do mundo narrativo na
descrição da cena, na sua conformação com o mundo extratextual. A discussão acerca da
possibilidade de se recobrir os contornos do espaço ou da capacidade de o texto representar o
mundo manifesta-se, também, por meio de uma teorização sobre o próprio conceito de ficção.
Essa nuança teórica se desvela nos questionamentos de adequação do texto ao universo que se
quer representar. O projeto do ficcionista de surpreender o mundo por meio das descrições
minuciosas do espaço se conjuga com a própria discussão acerca da possibilidade de
representação desse mundo. O projeto de escrita de Saer revela-se nesse iterativo gesto de
percorrer os limites do narrado e no esforço para discutir esse processo de representação.
A representação do mundo é tema literário por excelência e, quando pensamos em
representação, pensamos, imediatamente, na noção espacial. O espaço da representação é a
discussão do próprio universo da ficção ou em que medida se pode trazer para a linguagem
aquilo que se encontra no mundo. Barthes assim provoca o tema: “[...] [q]ue não haja
paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa
recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina incessante, a
literatura”119. Barthes defende essa ideia, afirmando “[...] que não se pode fazer coincidir uma
ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem)”120. É o desejo de
reaver, no texto, o plano do sensível – “a posse das coisas” – que motiva a busca pela
decifração dessa relação entre a linguagem e as coisas. A linguagem é uma forma imperfeita
de sintetizar essa ordem do pluridimensional, mas, por outro lado, a linguagem ganha valores
pluridimensionais, porque, também, fala pelo silêncio ou apresenta nuanças múltiplas de
sentido. Essa é uma das teses defendidas por Merleau-Ponty, destrinchada na segunda parte
deste capítulo. Resumindo: não há coincidência entre o real e a linguagem e esses ruídos é que

117
OTTE (2007, p. 238) sublinha a tautologia desse termo: “[...] [o] “espaço da representação”, de certa maneira, é
um pleonasmo, pois pensar nos termos da representação é trabalhar com o paradigma espacial, onde as palavras
se sobrepõem às coisas numa relação de correspondência ou analogia, isto é, numa relação que pertence ao
âmbito estático do espaço”.
118
BRANDÃO, 2013, p. 59.
119
BARTHES, 2007, p. 22.
120
Ibidem.
68

provocam as representações literárias; ou seja: aqui defendemos a tese de Saer e Merleau-


Ponty acerca do papel das artes e da literatura; por exemplo: seu poder de acompanhar
nuanças outras dessa pluralidade de manifestação do mundo. Diferentemente da ciência e do
senso objetivo, a arte tem o potencial de legitimar outras perspectivas que se encontram
perdidas no falso valor unidimensional concedido à linguagem.
Na verdade, percebemos que a própria indefinição do real acarreta a
plurissignificação da linguagem, e a literatura acompanha esse movimento, oferecendo maior
abertura de exposição dos caminhos dos sentidos em direção ao real. Iser, tentando sublinhar
o que seria o “fingir no texto literário”, defende que o real participa do texto de ficção e, dessa
forma, esse teórico se empreende naquilo que é defendido, também, por Saer e Merleau-
Ponty: “o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida”121. Esse vínculo entre realidade
e ficção é importante para legitimar a análise do texto literário, por exemplo, como uma
retomada mais abrangente da realidade exterior. Iser vai mais longe, quando tenta descrever a
natureza dessa realidade que adentra o texto ficcional. Segundo ele:

[a] relação opositiva entre ficção e realidade retiraria da discussão sobre o


fictício no texto uma dimensão importante, pois, evidentemente, há no texto
ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade
social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional (ISER,
2002, p. 958).

Compreendemos que o que Iser expõe como a realidade do texto ficcional é potencialmente
sentimental e emocional ou revela a relação do homem com o mundo. O espaço literário é,
então, esse lugar em que se confere abertura aos sentidos para inventariarem as nuanças do
mundo percebido. O espaço como representação é, também, um espaço humano e, por isso, é
difícil trabalhar o conceito de representação sem se recorrer ao outro espaço aqui abordado, o
da focalização. Antes de debruçarmos sobre este último, é preciso que recorramos a conceitos
de espaço literário elaborados por outros teóricos.
Bakhtin defende o conceito de “cronotopo” como a “[...] interligação fundamental
das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura”122; ou, como
exposto inicialmente, defende a existência de um nó entre tempo e espaço: eles não se
separam, mas são a própria possibilidade de realização da experiência. O espaço, segundo
Bakhtin, está interligado, ao tempo de forma que:

121
ISER, 2002, p. 958.
122
BAKHTIN, 1988, p. 211.
69

[...] o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o


próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e
da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-
se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão
de sinais caracterizam o cronotopo artístico (BAKHTIN, 1988, p. 211).

Percebemos que o espaço, segundo Bakhtin, não pode ser destrinchado sem ênfase no seu
duplo, no tempo. Aqui, o foco é o trabalho com o espaço da experiência; ou seja: posto está o
relevo no cronotopo, já que a progressão do espaço revela o veio temporal. Não podemos,
porém, transgredir a singularidade desses dois a priori; cada um desempenha e formaliza a
experiência de uma forma. Aqui, então, o tempo surge apenas como formatador da própria
experiência, como doador de sentido do vivido. O foco é o espaço ou como, na experiência, se
provoca aquilo que é possível ver e sentir e, também, como se procura ultrapassar os limites
para se alcançar algo que se esconde nas bordas do visível. O gesto está, então, posto na
visibilidade, mais que no projeto de conduzi-la à revelação de um sentido. É o jogo entre o
mostrar e o velar que interessa, potencialmente, a este trabalho.
Bakhtin afirma que tomou de empréstimo o conceito de cronotopo do pensamento
científico e a remissão aos conceitos kantianos é bem identificável. Esse filósofo defende
espaço e tempo como os a priori da experiência, nestes termos:

[...] assim a realidade do sentido externo se liga necessariamente à do interno


com vistas à possibilidade de uma experiência em geral, i. e., eu sou tão
seguramente consciente de que há coisas fora de mim, referidas ao meu
sentido, quanto sou consciente de que eu mesmo existo determinadamente
no tempo (KANT, 2012, p. 42).

O espaço é, então, o sentido externo da experiência e o tempo, o interno: a interdependência


desses conceitos é apresentada na citação acima. O ponto de partida é a experiência e a partir
dela se releva esse conhecimento antipredicativo do mundo, ou melhor: os a priori se dão a
conhecer na experiência, mas independem dela, já que “[...] nos permitem dizer, ou pelo
menos acreditar poder dizer, algo mais sobre os objetos que aparecem aos sentidos do que a
experiência nos ensinaria” (KANT, 2012, p. 65). Kant, então, emoldura a percepção sobre
fundos interno e externo que se revelam por meio da razão pura.
Esse filósofo, então, designa o fenômeno como “objeto indeterminado de uma
intuição empírica”123, sendo que nas sensações encontramos a matéria e aquilo que ordena o
fenômeno, denominado a sua forma. É nesse esquema que a forma é apreendida como o a

123
KANT, 2012, p. 72.
70

priori do fenômeno, como representação pura “alheia” aos fenômenos. Para se ter acesso,
então, a essa “forma”, Kant defende uma “intuição pura” ou uma “forma pura da
sensibilidade”124. O tempo e o espaço se mostram como “duas formas puras da intuição
sensível”125. Focando-se, aqui, o espaço, tem-se que Kant defende que “[p]or meio do sentido
externo (uma propriedade de nossa mente) nós nos representamos os objetos como fora de
nós, e todos eles no espaço”126. Percebemos, nessa última citação, a ênfase kantiana no sujeito
e, por conseguinte, a defesa do tempo – sendo ele a forma interna do fenômeno – como o
fundamento de todas as outras intuições. Essa observação é importante, porque, neste
trabalho, procuramos mostrar como o pensamento merleaupontyano busca relativizar essa
ênfase no sujeito da experiência ou busca redefinir o espaço como uma projeção do próprio
corpo ou como sua extensão.
O espaço da representação está, então, nessa investida para trazer para a
linguagem a pluridimensionalidade do real. É preciso acompanharmos esses ecos que se
produzem na representação do mundo, perseguindo uma conceituação de espaço que
privilegia a abordagem fenomenológica, por exemplo, ou a própria experiência: porque, se
percebemos o mundo como um ativo que sempre se modifica, podemos, então, afirmar que o
real não existe como categoria objetiva. Essa visão é explorada pela fenomenologia e,
tomando-se como exemplo o pensamento de Merleau-Ponty, temos a defesa do conceito de
corpo como elemento que integra a bipartição sujeito-objeto. Segundo Lyotard, a
fenomenologia “[h]a sido ante todo, y continúa siéndolo, una meditación sobre el
conocimiento, un conocimiento del conocimiento; y su célebre ‘poner entre paréntesis’
consiste en primer lugar en dejar atrás una cultura, una historia, en retomar todo saber
remontándose a un no saber radical”127. A fenomenologia interessa na medida em que pensa
radicalmente esse momento da experiência. Essa prevalência da vivência é uma forma de unir
os espaços, aqui, estudados – da representação e da focalização – ou de privilegiar essa
relação da focalização com o mundo vivido.
O espaço como focalização é a segunda categoria do espaço literário discutida
aqui. Nessa categoria, o foco se volta para a visão, para o gesto narrativo ou para o
movimento do olhar, porque:

124
Ibidem.
125
KANT, 2012, p. 73.
126
Ibidem.
127
LYOTARD, 1989, p. 10.
71

[o] espaço se desdobra, assim, em espaço observado e espaço que torna


possível a observação. Observar pode equivaler a mimetizar o registro de
uma experiência perceptiva. Por essa via é que se afirma que o narrador é um
espaço, ou que se narra sempre de algum lugar. Mas observar também pode
equivaler, bem mais genericamente, a configurar um campo de referências
do qual o agente configurador se destaca – o que justifica que se enfatize,
por exemplo, a autorreflexividade da voz poética (BRANDÃO, 2013, p. 62).

Esse movimento do narrador se manifesta no esforço para recobrir o espaço vivido, sendo a
ênfase depositada na experiência do sujeito, na sua capacidade de vivenciar o mundo
representado. A focalização engloba os sentidos do observador − as cores, os sons, os cheiros,
os gostos e os contornos – por meio da experiência daquele que narra. As sensações que o
espaço produz naquele que o vivencia é representado, a partir do seu interior, por meio da
representação dessa vivência.
Quando falamos em focalização, retomamos o problema do narrador ou sob qual
perspectiva o texto se revela ao leitor. O espaço da focalização é o estudo do próprio ver ou
dessa experiência refletida no texto: a ênfase está no movimento do olhar ou de revelação do
mundo. Esse espaço, então, é desvelado por um duplo movimento do vidente em direção ao
mundo, uma forma de sublinhar um desses dois polos. A focalização condiz, então, com o
sujeito que vê e com o movimento de revelação do mundo. A ênfase nesse giro entre sujeito e
mundo reflete o momento da experiência, um espaço que privilegia um ponto de vista
específico ou a participação efetiva do vidente. Didi-Huberman reflete essa ideia, nestes
termos: “[o] que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável
porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso
assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em
dois”128. Riquíssima é essa discussão, porque antecipa uma das grandes ideias
merleaupontyanas: a do vidente-visível, explorada na sua última filosofia.
A questão do ver é central em Merleau-Ponty e, em Saer, é enfatizada na
percepção da personagem ou na prioridade concedida à explanação do mundo. O rigor
descritivo saeriano descobre essa ênfase nos sentidos; principalmente, no ver. A remissão de
Didi-Huberman a Merleau-Ponty é posteriormente desvelada neste trecho:

[j]oyce não fazia aqui senão pôr antecipadamente o dedo no que constituirá
no fundo o testamento de toda fenomenologia da percepção. “Precisamos
nos habituar”, escreve Merleau-Ponty, “a pensar que todo visível é talhado
no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há
invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas

128
DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29.
72

também entre o tangível e o visível que está incrustado nele”. Como se o ato
de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido
diante de nós, obstáculo talvez perfurado, feito de vazios (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p. 31).

O estreitamento entre vidente e visível é sublinhado por meio da própria sinestesia, no


entrecruzamento dos sentires: o ver deixa de ser um sentir à distância para se tornar um
antecipador dos outros sentidos. É como se, podendo-se ver algo, também, fosse possível
senti-lo de outras formas, como, principalmente, pelo tato. Nessa questão, Merleau-Ponty
resume todos os sentidos no ver ou reclama a reversibilidade dos sentidos com o mundo com
a nomenclatura vidente-visível.
A importância do espaço como focalização está no fato de sublinhar esse
intrincado de reversibilidade entre a personagem e o mundo, em pôr em parênteses a própria
experiência. A focalização – na teoria literária – implica pelo menos a ênfase em um ponto,
naquele ao qual se direciona o foco, porque, segundo Genette (1995), há três tipos de
focalização: a focalização-zero, a focalização interna e a focalização externa. A primeira e a
última são gesticuladas, preferencialmente, por um narrador anônimo, e nunca por uma
personagem; por outro lado, a segunda advém dos julgamentos da personagem podendo, no
entanto, essa não se tornar narradora do texto. Dentro desse esquema, podemos afirmar que o
corpus literário aqui examinado prioriza a focalização interna ou a reversibilidade: essa
presença de um vidente – a personagem – que se descobre no mundo. Em Saer, é de suma
importância essa reversão entre aquele que vê e o mundo, e é essa questão-chave que pode ser
lida, potencialmente, por meio das ideias de Merleau-Ponty, como as citadas por Didi-
Huberman.
O enfoque filosófico desta tese visa à consolidação da união entre essas duas
vertentes de estudos sobre o espaço ou à promoção da experiência. A ênfase não se aloca nem
nos limites da própria coisa nem na perspectiva da personagem focalizadora. É quando se
reúne essas duas vertentes que visualizamos a experiência em sua potencialidade. A
representação, então, não pode ser enxergada como o desejo de se esgotar os contornos do
observado, mas como uma amostra da interação entre o vidente e o visível. Da mesma forma,
o espaço como focalização não pode se restringir ao enfoque da personagem, mas a esse
movimento de trocas com o espaço. Na verdade, aquilo que exploramos é o ponto em que a
ênfase está no próprio movimento, no esvaziamento do dualismo sujeito-objeto. Blanchot é
um dos teóricos que, preocupado com o espaço literário, com a relação da linguagem como
73

mediadora do mundo, descreveu essa despolarização potencial da experiência, por meio da


arte:

[q]uando contemplamos as esculturas de Giacometti há um determinado


ponto onde elas deixam de estar submetidas às flutuações da aparência ou ao
movimento da perspectiva. Vemo-las de um modo absoluto. Já não
reduzidas mas subtraídas à redução, irredutíveis e, no espaço, senhoras do
espaço pelo poder que têm de substituí-lo pela profundidade não manejável,
não viva, a do imaginário. Esse ponto, donde as vemos irredutíveis, coloca-
nos no infinito, é o ponto onde o infinito coincide com lugar nenhum.
Escrever é encontrar esse ponto. Ninguém escreve se não produzir a
linguagem apropriada para manter ou suscitar o contato com esse ponto
(BLANCHOT, 1987, p. 42).

Blanchot exemplifica bem algo que é defendido por Merleau-Ponty: a percepção como uma
relação com o silêncio do mundo. Retira-se a prevalência dos polos sujeito e objeto e se
instaura a ênfase no movimento de aberturas perspectivas, como forma de se implementar um
lugar em que o receptor se sinta coparticipante desse momento da experiência. A Arte tem,
então, o poder de multiplicar os fios perceptivos e de sustentar essa relação potencial com
aquilo que ainda não foi revelado, com o próprio silêncio do mundo.

2.2 APREENSÃO MÁXIMA: O ESPAÇO EM MERLEAU-PONTY

2.2.1 A apreensão máxima na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty

Visando descrever o mundo, as personagens saerianas intentam esgotar os


contornos do observado. O mundo rivaliza contra esse gesto, quando a manifestação temporal
sobre as coisas impede que se alcance o seu Em-si129. A passagem do tempo acarreta a
transformação do mundo, impossibilitando que se consiga apreender todas as faces do visível.
A discussão filosófica se justifica nesse gesto saeriano para descrever as coisas, no desejo de
percorrer por completo o espaço observado. Essa engrenagem narrativa é importante para a
criação de um “efeito de real”, recurso que possibilita a visualização do espetáculo visual

129
Merleau-Ponty, segundo Kelly (2004), gira em torno de três mundos: o “Para-si” – da consciência: imanente e
subjetivo −, o “Em-si” – do objeto ideal, transcendente, mas perseguido pela ciência −, e o “Mundo
fenomenológico” – da primazia do fenômeno, considerado como imanente e transcendente. Na verdade,
Merleau-Ponty questiona, a todo tempo, a existência do “Em-si”, a possibilidade do realismo é atacada,
potencialmente, seja na Fenomenologia da Percepção e, muito mais acirradamente, em O visível e o invisível. O
Para-si não recebe a mesma investida, mas, também, é preterido – há recorridas tentativas para se suplantar o
idealismo – em função do mundo fenomenológico.
74

construído pelo texto. Aproximamos, então, o intenso processo descritivo do espaço ficcional
saeriano com a filosofia de Merleau-Ponty, no aspecto da “apreensão máxima”. O objetivo é
compreender as relações das personagens com o espaço por meio das estruturas fenomenais
descritas por Merleau-Ponty. Justificamos a eleição desse pensamento filosófico pelo seu
diferencial em entranhar-se na própria experiência, como bem declara Barbaras: “[...] la
philosophie de Merleau-Ponty vaut avant tout par sa puissance d’interrogation, par cette
exigence incessante et par principe inaccomplie de faire retour à la expérience en son état
brut, à rebours des idéalisations qui y sont sédimentées”130. Percebemos esse gesto de
estruturação da experiência na relação das personagens saerianas com o mundo, na busca por
sentirem-se parte do todo. Saer discute o dilema do homem, buscando o sentido131 da
experiência e a possibilidade de confluir-se com o mundo. Exemplo disso é o seu obstinado
manuseio da imagem do horizonte, em seus romances. Essa relação com algo que sempre
escapa ao esforço de descrição torna-se um dos focos do seu projeto de relação aprofundada
com o espaço narrado.
Nesta segunda parte do capítulo, percorremos, portanto, a discussão do espaço na
obra de 1945, Fenomenologia da Percepção, buscando descrever a relação do sujeito com o
mundo132. Assim, o foco em Merleau-Ponty se inicia no capítulo sobre o espaço, no qual esse
filósofo defende uma nova postura em relação à cisão kantiana de sensação e mundo. Dessa
forma, o trabalho envolve os capítulos: “o espaço”, “o sentir” e “a temporalidade”, temas que
se oferecem, no início do capítulo sobre o espaço, como uma chave para o entendimento da
relação do sujeito com o mundo. Nesse processo inicial de discussão do livro de 1945, além
da leitura de fontes primárias, lançamos mão, principalmente, de textos de dois pensadores de
sua filosofia: Seeing things em Merleau-Ponty, de Sean Kelly (2004), e Merleau-Ponty’s
Ontology, de M.C. Dillon (1998). Entendemos, aqui, portanto, que o pensamento filosófico de
Merleau-Ponty é uma ferramenta de leitura da obsessão do narrador saeriano por apreender o
fenômeno por completo. O objetivo, aqui, e, em toda esta tese, é teorizar sobre essa postura

130
BARBARAS, 1991, p. 11: “[...] a filosofia de Merleau-Ponty é importante, antes de tudo, por seu poder de
interrogação, por essa exigência incessante e, por princípio, interminável de fazer retorno à experiência no seu
estado bruto, em contramão das idealizações que nela são sedimentadas” (Tradução nossa).
131
Essa palavra, sentido, é dilatada na obra de Merleau-Ponty, já que se trata não apenas da relação linguística
entre a coisa e a significação, mas da relação entre os sentidos da percepção.
132
Esse dualismo é combatido, na Fenomenologia da percepção, por intermédio do conceito de corpo: “[...] [c]’est
pourquoi le corps ne peut être finalement décrit qu’à travers l’exclusion symétrique des deux termes de
l’opposition: il n’est pas sujet, il n’est pas objet, mais la médiation du sujet et de l’objet” (BARBARAS, 1991, p.
26). [Tradução nossa: “[...] É devido ao fato de o corpo não poder ser completamente descrito senão por meio da
exclusão simétrica de dois termos de oposição: ele não é sujeito, ele não é objeto, mas a mediação do sujeito e do
objeto”].
75

descritiva do narrador por meio do projeto do filósofo da ênfase dada à primazia do


fenômeno.

2.2.1.1 O capítulo “o espaço” da Fenomenologia da Percepção

Devemos, inicialmente, pontuar que quando, aqui, se discute a experiência da


personagem no mundo, a questão central − teórica literária e filosófica − é o espaço. Em
estudos realizados sobre o espaço saeriano, percebemos que a abordagem poderia ser
estendida a outros termos ou que o escritor argentino prioriza a vivência. Constatado isso,
justifica-se a aproximação ao pensamento de Merleau-Ponty. As suas “duas” filosofias – a
fenomenologia e a ontologia – balizam-se por meio de estudos englobando vários campos do
pensamento contemporâneo, como: a Psicologia e a Psicanálise, a Arte, a Linguística, a
Antropologia, a História, entre outros vários. Reafirmamos, então, que, como se pretende
perseguir a descrição da experiência − no percurso do filósofo da fenomenologia para a
ontologia −, sempre se prioriza, nesta tese, o pensamento espacial. O objetivo central é o
enfoque, sem precedentes, da relação do sujeito com o mundo; por isso, a ontologia 133 de
Merleau-Ponty é destacada neste trabalho. É a partir do espaço que discutimos a vivência, o
que, fatalmente, traz outras questões, como a temporalidade e o sentir – títulos de capítulos do
livro de 1945 −, abordados neste início de discussão. Outras questões entrarão na abordagem
da experiência; principalmente, quando se fizer o deslocamento para a ontologia como, por
exemplo, a linguagem134. Priorizando-se o espaço como núcleo central de todo o trabalho,
buscamos, então, o diálogo pleno com a teoria literária que fecha a discussão deste capítulo.

133
A sequencialidade do pensamento de Merleau-Ponty é defendida por Barbaras, que chega a afirmar que « [i]l
nous semble que c’est à la lumière du Visible et Invisible que les travaux antérieurs acquièrent cohérence et
consistence, de telle sorte que nous ne pouvons les lire autrement qu’à travers la reprise à laquelle ils donnent
finalment lieu » (BARBARAS, 1991, p.12). Nesta tese, seguimos essa linha de pensamento, já que o nosso
objetivo é seguir o percurso do pensamento fenomenológico de Merleau-Ponty, mesmo no interior da sua última
ontologia; ou melhor: aceitamos a ideia de Barbaras de que a fenomenologia somente se realiza completamente
no último pensamento de Merleau-Ponty. [Tradução nossa da citação anterior: “Parece-nos que é à luz de O
visível e o invisível que os trabalhos anteriores adquirem coerência e consistência, de tal sorte que nós podemos
lê-los por meio dessa retomada a qual eles proporcionam”].
134
A fase intermediária de Merleau-Ponty caracteriza-se por reunir questionamentos sobre a linguagem, e a
importância desse período (1945-1953) é pontuada por Barbaras desta forma: “[...] [l]a philosophie de
l’expression suscite au contraire une démarche régressive qui, partant de la culture et du langage, interroge leur
sol originaire : c’est donc à partir du phénomène de l’expression qu’il faut rendre compte du corps et du monde,
comme ce qui nourrit son mouvement de transcendance” (BARBARAS, 1991, p. 80). [Tradução nossa: “[...] A
filosofia da expressão suscita, ao contrário, uma abordagem regressiva que, partindo da cultura e da linguagem,
interroga sua base originária: é a partir do fenômeno da expressão que se deve tomar consciência do corpo e do
mundo, como aquilo que nutre seu movimento de transcendência”].
76

Merleau-Ponty, no capítulo sobre o espaço135 − da Fenomenologia da Percepção


(2006) –, discute o conceito kantiano de espaço, afirmando que “Kant tentou traçar uma linha
de demarcação rigorosa entre o espaço enquanto forma da experiência externa e as coisas
dadas nessa experiência”136. Retomando essa discussão, cumpre salientar que Kant137descreve
o universo do fenômeno por meio dos conceitos de juízos analíticos e de juízos sintéticos. O
universo do fenômeno é dividido em matéria (limite dos juízos analíticos) e, em forma,
território dos juízos sintéticos. A matéria se revela por meio das sensações ou a posteriori;
por outro lado, a forma se desvela a priori, ou independentemente das sensações. É nesse
segundo polo que se encontram as “intuições puras”138 ou a condição de possibilidade dos
fenômenos: o tempo e o espaço. O tempo e o espaço se revelam unidos como juízos sintéticos
a priori ou como condições de possibilidade dos fenômenos: o espaço, como forma de
intuição externa, e, o tempo, como forma do sentido interno. Merleau-Ponty se propõe realizar
uma investigação que reúna o universo kantiano disperso entre forma e conteúdo.
Merleau-Ponty, então, busca uma terceira espacialidade ou aquela que reúne
forma e conteúdo: espaço caracterizado como o vivido e o espacializado, aquele que abrange
a matéria e a forma ou o sensível e as “intuições puras”, conceituando, nestes termos, essa
terceira espacialidade:

[...] não podemos compreender a experiência do espaço nem pela


consideração dos conteúdos, nem pela consideração de uma atividade pura
de ligação, e estamos em presença desta terceira espacialidade que há pouco
prevíamos, que não é nem a das coisas no espaço, nem a do espaço
espacializante e que, desse modo, escapa à análise kantiana e é pressuposta
por ela. Precisamos de um absoluto no relativo, de um espaço que não
escorregue nas aparências, que se ancore nelas e se faça solidário a elas, mas
que, todavia, não seja dado com elas à maneira realista e possa, como o
mostra a experiência de Stratton139, sobreviver à subversão das aparências.
Precisamos investigar a experiência originária do espaço para aquém da
distinção entre a forma e o conteúdo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 334).

135
Barbaras (1991, p. 28) sintetiza a postura de Merleau-Ponty, no capítulo “O espaço”, da obra de 1945,
Fenomenologia da percepção: “[...] [i]l s’agit, contre la pensée objective, de mettre à jour un espace
anthropologique, existentiel, antérieur à l’espace objectif, et dont ce dernier n’est qu’une détermination”.
[Tradução nossa: “[...] Trata-se, ao contrário do pensamento objetivo, de trazer à luz um espaço antropológico,
existencial, anterior ao espaço objetivo, e do qual esse último é somente uma determinação”].
136
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 327.
137
KANT, 2012, p. 74.
138
Ibidem.
139
Essa experiência de Stratton tinha por objetivo mostrar que o sujeito vai se adaptando aos níveis espaciais: o
sujeito era induzido a ver de cabeça para baixo e, no decorrer dos dias, ele se articulava de forma a conceber essa
inversão como sendo a forma correta de ver.
77

Merleau-Ponty busca encontrar em que ponto houve a ruptura entre esses dois espaços; seu
objetivo é superar a cisão efetuada no sujeito pelo empirismo e pela teoria reflexiva.
Depois de analisadas as possíveis subversões da noção de aparência − nas
experiências analisadas pelo filósofo −, Merleau-Ponty investiga a relação do corpo com o
mundo por meio do conceito de nível espacial e aceita que a disposição do mundo se baliza
por meio dos “pontos de ancoragem” ou que percebemos as coisas em relação a outras coisas.
O nível espacial é esse conhecimento que o “sujeito” passa a adquirir mediante o contato com
o mundo ou pela aderência que se firma entre corpo e o espaço. As investidas do sujeito põem
em movimento o nível espacial ou o conhecimento de mundo progride em conformidade com
os novos pontos de ancoragem conhecidos; esses manifestos em razão da percepção de novos
ângulos espaciais. A percepção acontece graças ao ajustamento entre o plano visual e a
disposição das coisas. É na sucessão dos níveis perceptivos que o corpo se ajusta ao melhor
ângulo de visão do mundo.
A importância desse início de discussão é central para o pensamento
fenomenológico, porque Merleau-Ponty se preocupa em descrever a relação do corpo com o
mundo. O posicionamento é o foco, primevo, do filósofo: a questão é descobrir como se
constroem os ajustes nessa relação e em que medida pode-se suplantar o dualismo kantiano
por intermédio da visualização de uma terceira espacialidade. Nesse escopo, o passo principal
é desvirtuar os inícios – seja ele concebido como partindo do sujeito como do mundo − e se
aprofundar no conceito de origem. A terceira espacialidade se caracteriza por se apresentar
como o lugar anterior ao pensamento dualista, aquém da divisão entre forma e conteúdo. Esse
conceito já desvela as nuanças da ontologia, dentro do pensamento fenomenológico de
Merleau-Ponty. Na esteira de revelar o diferencial do espaço visado, o filósofo prossegue
demonstrando os riscos em se apoiar no dualismo sujeito e objeto, por meio da pesquisa do
primeiro nível espacial.
Merleau-Ponty se detém na discussão sobre o que vem a ser o primeiro nível
espacial ou aquele primeiro plano que possibilita uma sucessão de ajustes perceptivos em
conformidade com novos pontos de ancoragem descobertos. A questão primordial é definir de
onde parte a constituição desse “nível que sempre se precede a si mesmo”: seria o sujeito ou o
mundo que o possibilitaria esse nível. Primeiramente, o filósofo afirma que o nível espacial
não se confunde com a orientação do corpo próprio ou que a posição do corpo não seria o
eixo que definiria como o mundo é percebido, já que o próprio campo visual pode impor o
como ser visto. Por outro lado, o corpo desempenha papel fundamental como campo
78

fenomenal: “meu corpo está ali onde tem algo a fazer”140. Dessa forma, o nível espacial “é
uma certa posse do mundo por meu corpo, um certo poder de meu corpo sobre o mundo”141.
É a partir da ação do corpo ou de sua presença no mundo que se pode conceber que haja uma
sucessão de ajustes de planos visuais. O corpo fenomenal se constitui como a junção do corpo
efetivo e do corpo virtual, sendo esse último entendido como o corpo que é exigido no plano
fenomenal. É nesse envolvimento que se firma um novo nível espacial; ou seja: o espaço
“nasce” nesse ajustamento entre corpo e mundo ou quando o corpo se sente pertencente ao, e
ativo no, mundo.
Retomando a questão inicial − a tentativa de se definir o primeiro nível espacial −,
temos que Merleau-Ponty afirma ser “essencial ao espaço estar sempre já constituído”142.
Barbaras perseguindo, já na obra Fenomenologia da Percepção, o viés da ontologia − afirma,
também, que “[i]l y a donc une spatialité antérieure à la perception objective” 143. A
anterioridade do espaço possibilita expor o fato de o corpo não ter poder sobre o mundo, em
todas as posições. É no ajustamento do corpo em relação à posição das coisas que se extrai
um sentido perceptivo; ou melhor: tem-se que o próprio olhar é condicionado por um sentido
pré-estabelecido. Quando o filósofo trabalha a noção de “sentido”, fica claro o fato de que a
forma como se vai ver uma determinada coisa − como um rosto (exemplo extraído do próprio
texto de Merleau-Ponty), com a boca na posição de baixo e os olhos na posição de cima –
depende de como “aprendemos” a vê-lo. A partir disso, discute-se a concepção do vocábulo
“sentido” que, segundo esse filósofo, pressupõe o entendimento de duas conotações: sentido
como posição e como significação de determinada coisa. Quando Merleau-Ponty contradiz a
ideia de que a posição do corpo seja totalmente responsável pela maneira como se percebe o
mundo, depois de externada essa dupla forma da palavra sentido, conseguimos compreender o
que ele queria problematizar: o sentido como posição está na apresentação visual das coisas –
na direção do movimento –, já o sentido como significação se manifesta como conhecimento
“antipredicativo” do mundo. Ele afirma que vemos as coisas em determinas posições – como
um rosto – de acordo com um poder que temos sobre elas por meio de um saber, de uma
orientação que possibilita a identificação de cada uma delas, porque:

[a]ssim como todo ser concebível se relaciona direta ou indiretamente ao


mundo percebido, e como o mundo percebido só é apreendido pela
orientação, não podemos dissociar o ser do ser orientado, não há motivo para

140
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 336.
141
Ibidem, p. 337.
142
Ibidem, p. 339.
143
BARBARAS, 1991, p. 28: “Há, portanto, uma espacialidade anterior à percepção objetiva” (Tradução nossa).
79

“fundar” o espaço ou para perguntar qual é o nível de todos os níveis. O


nível primordial está no horizonte de todas as nossas percepções, mas em um
horizonte que por princípio nunca pode ser alcançado ou tematizado em uma
percepção expressa (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 341).

Merleau-Ponty reconhece que a primeira percepção é antecedida por um conhecimento que


advém de uma “pré-história”, como retomada de uma tradição “pré-pessoal”144. No capítulo
sobre o cogito esse conhecimento é denominado como pré-reflexivo ou não-tético. Aqui, mais
uma vez, percebemos como o filósofo vislumbra – no interior de sua fenomenologia – o
pensamento ontológico posteriormente desenvolvido.
Frequentemente, Merleau-Ponty traz a debate a questão da profundidade,
problematizando, mais acentuadamente, a relação do sujeito com o mundo. Segundo ele, a
profundidade foi largamente discutida como sendo uma largura considerada de perfil: uma
forma de bidimensionar a sua percepção. Desvencilhando-se dessa posição, Merleau-Ponty
defende que somente na perspectiva de Deus a profundidade pode ser assimilada como
largura; ou seja: apenas alguém capaz de estar em todos os lugares poderia ver a profundidade
como uma segunda largura das coisas. Esse tema é importante, porque esclarece a questão da
relação do sujeito com os objetos, porque, segundo Merleau-Ponty, enquanto a largura pode
ser encontrada nas coisas mesmas, a profundidade depende do posicionamento do
observador145. A profundidade representaria a dimensão mais fenomenológica, aquela que
brota no momento da experiência.
A abertura para se concretizar a terceira espacialidade é enxergada no estudo da
profundidade. É nesse lugar, que se caracteriza pela interseção, que autoriza pensar além do
dualismo cartesiano. A profundidade se manifesta como um espaço que se configura na
experiência com as coisas: é uma “distância” que é construída fenomenologicamente. O
potencial dessa discussão está no fato de que a relação do sujeito com as coisas conduz à
imbricação, porque se constrói uma abertura de acesso às coisas nessa terceira dimensão. A
terceira espacialidade, então, é essa terceira dimensão: um processo em que as coisas são o
próprio espaço, como afirma Barbaras “[...] les choses n’occupent pas un lieu – il faudrait dire
une place −, elles sont au-delà de tout lieu identique. Elles sont le lieu, leur propre lieu; elles

144
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 342.
145
Barbaras afirma sobre a profundidade em Merleau-Ponty: “[...] [l]’expérience de la profondeur révèle l’espace
comme une réalité qui ne « s’étend » pas, qui demeure cachée dans la chose même, ou plutôt se confond avec la
chose même en tant qu’elle est dissimulée, invisible, étante”(BARBARAS, 1991, p. 243). [Tradução nossa: “[...]
A experiência da profundidade revela o espaço como uma realidade que não « se estende », que permanece
escondida na própria coisa; ou melhor: se confunde com a própria coisa dissimulada, invisível e existente”].
80

se spatialisent plutôt qu’elles ne sont situées dans l’espace”146. A profundidade, assim,


representa o espaço das coisas e dos sujeitos, lugar em que se rompem os dualismos.
Essa posição de Merleau-Ponty em relação à profundidade levanta outras questões
que decorrem da distância e da posição entre observador e observado, como o vínculo do
sujeito com as faces ocultas dos objetos e sua relação com o horizonte da visão. Merleau-
Ponty se distancia de uma relação mensurável entre sujeito e objeto ou depõe contra o
pensamento reflexivo, por defender que a profundidade não se relaciona diretamente com
cálculos sobre a posição do observador e a do observado. Nesse plano, Barbaras defende a
singularidade da profundidade no filósofo:

[...] [s]a priorité ne signifie donc pas un privilège qui lui serait accordé, au
sein de l’espace objectif, vis-à-vis de la hauteur et de la larguer car, dans cet
espace, toutes les dimensions sont équivalentes: la profondeur est d’un autre
ordre que la distance effective, elle se situe en-deçà de l’espace métrique et
révèle, en cela, un sens neuf de la dimension (BARBARAS, 1991, p. 241)147.

Para Merleau-Ponty, é na experiência da profundidade que o corpo se comunica,


potencialmente, com as coisas, na medida em que o visível reclama determinado ângulo de
visão. A grandeza aparente dos objetos está em relação direta com o corpo ou em como este
se posiciona visando obter o melhor ponto de visão. A gesticulação entre os elementos da
situação reorganiza-se de acordo com o momento da experiência:

[e]ssa presença simultânea a experiências que todavia se excluem, essa


implicação de uma na outra, essa contração em um único ato perceptivo de
todo um processo possível fazem a originalidade da profundidade, ela é a
dimensão segundo a qual as coisas ou os elementos das coisas se envolvem
uns aos outros, enquanto a largura e a altura são as dimensões segundo as
quais eles se justapõem (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 357).

O engajamento é pressuposto para a apreensão da profundidade ou dessa posse


antecipada do objeto; por isso, discutir a perspectiva requer mais do que descobrir a relação
entre o sujeito e o espaço, porque o caráter de antecipação evidencia tanto o aspecto temporal
da experiência quanto o espacial. No “campo de presença”, em que a profundidade se

146
Ibidem, p. 245: “[...] as coisas não ocupam um lugar – é necessário dizer um espaço –, elas estão além de todo
lugar idêntico. Elas são o lugar, seu próprio lugar; elas estão mais espacializadas do que situadas no espaço"
(Tradução nossa).
147
“[...] Sua prioridade não significa, então, um privilégio que lhe seria destinado, no cerne do espaço objetivo, no
que condiz à altura e à largura, porque, nesse espaço, todas as dimensões são equivalentes: a profundidade é de
outra ordem em relação à distância efetiva; ela se situa além do espaço métrico e revela, nisso, um novo sentido
da dimensão” (Tradução nossa).
81

apresenta, percebemos uma implicação espacial e temporal. O tempo é trazido a debate pelo
filósofo no momento em que discute a possibilidade de sintetizar uma experiência: Merleau-
Ponty afirma que somente na esfera temporal se pode falar de uma conformação do campo
visual. Nesse campo, as relações não se estabelecem de maneira mecânica, porque o tempo é
compreendido como uma reorganização, no presente, de um passado e de um futuro que com
ele estabelecem relações. Merleau-Ponty defende que a dimensão temporal permite que se
compreenda a dimensão espacial ou que o mundo é constituído não apenas por coisas, mas,
também, pelo aspecto de transição; ou, nas palavras do filósofo que “as coisas se definem
primeiramente por seu “comportamento” e não por propriedades estáticas”148. Essa presença
intrínseca do tempo no interior do fenômeno caracteriza a relação entre fundo e movente ou
promove o próprio movimento.
É o olhar que desempenha a função de destacar as coisas por sobre um fundo.
Merleau-Ponty passa da análise da distância das coisas em relação ao observador para o
exame do movimento ou de seu aspecto fenomenal. Nesse vínculo com o móbil149, esse
filósofo estabelece a análise da transição, do aspecto temporal do fenômeno. Desvinculando-
se da análise empirista e reflexiva, que defendia o cálculo da profundidade, Merleau-Ponty
prioriza o trabalho com “o comportamento”, com o seu aspecto temporal, decompondo os
elementos do movimento por meio do ato do olhar, e, dessa forma, enfatiza a experiência
fenomenal. O movimento se apresenta quando se focaliza determinado ponto de visão.
Merleau-Ponty estende o poder dos olhos para além dos limites da visão, quando defende que
o horizonte não é cerceado por aquilo que é visto: “[...] aquilo que vemos é sempre, sob certos
aspectos, não visto: é preciso que existam lados escondidos das coisas e coisas ‘atrás de
nós’”150. O olhar seleciona os pontos de ancoragem que sustentam determinada focalização,
ou o nível em que determinado objeto será melhor apreciado. São esses referenciais que
possibilitam o movimento, conforme anteriormente discutido: a busca por encontrar o
primeiro nível da visão, enfatiza a própria condição da espacialidade.
O fundo do movimento se manifesta, nos pontos de ancoragem, como sendo os
níveis que possibilitam a própria percepção. A relação do sujeito com esses níveis espaciais
pode levar a uma defesa do racionalismo ou do empirismo: na ênfase no sujeito ou na
manifestação das coisas. Revela-se, nessa discussão, a importância do pensamento kantiano
que defende o apriorismo do espaço, que, mormente, é sinalizado como uma condição do

148
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 370.
149
Merleau-Ponty afirma “[o] móbil, ou antes, como dissemos, o movente, não é idêntico sob as fases do
movimento, ele é idêntico nelas” (Ibidem, p. 368).
150
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 372.
82

fenômeno. Merleau-Ponty, ao contrário, procura unir a consciência que se tem do mundo à


consciência que se tem de si ao dizer que “a consciência está distanciada do ser e do seu ser
próprio e ao mesmo tempo unida a eles pela espessura do mundo”151. É no encontro com as
coisas que se realiza essa aproximação ou que se consolida a percepção, o sentir-se no mundo.
Esse filósofo procura unir sujeito e mundo por meio da sensação ou busca sincronizar, no
espetáculo da vivência, a consolidação do espaço por meio do sentir.
A apreensão máxima requer uma tomada de posição frente às coisas; é no plano
fenomenal que o sujeito se ajusta de forma a perceber melhor os objetos. Ver as coisas, como
afirma Merleau-Ponty, requer “ter um certo poder sobre ele(as)”152. Requer, também, o gesto
de reconstruir um “itinerário perceptivo” que não se esclarece reflexivamente, mas no contato
com o objeto. Ele compreende o apriorismo espacial kantiano de outra forma, asseverando
que o espaço se “assenta em nossa facticidade”153, ou no encontro com as coisas. Sean Kelly
(2004), em “Seeing things in Merleau-Ponty”, destaca, como abertura de sua discussão, o
seguinte trecho da Fenomenologia da Percepção:

[v]er é entrar em um universo de seres que se mostram [...] Assim, cada


objeto é o espelho de todos os outros. Quando olho o abajur posto em minha
mesa, eu lhe atribuo não apenas as qualidades visíveis a partir de meu lugar,
mas ainda aquelas que a lareira, as paredes, a mesa podem "ver", o verso de
meu abajur é apenas a face que ele "mostra" à lareira. Portanto, posso ver um
objeto enquanto os objetos formam um sistema ou um mundo e enquanto
cada um deles dispõe dos outros em torno de si como espectadores de seus
aspectos escondidos e garantia de sua permanência (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 105).

A partir dessa citação, Sean Kelly sublinha um dos problemas da relação do sujeito com o
mundo, levantado, primeiramente, por Husserl154: as coisas são vistas bidimensionalmente,
mas são experimentadas tridimensionalmente. Para Sean Kelly, esse é o jogo da percepção: as
características percebidas pelos sentidos são articuladas com um “indeterminado”. Segundo
ele, esse “indeterminado” é definido de várias maneiras pelos filósofos: em Husserl, por
exemplo, ele se apresenta como uma forma ausente; já na concepção de Merleau-Ponty, ele é
descrito como uma presença positiva na experiência, como a profundidade.

151
Ibidem, p. 399.
152
Ibidem, p. 341.
153
Ibidem, p. 342.
154
Edmund Husserl (08/04/1859 – 27/04/1938), filósofo alemão fundador da Fenomenologia: “[...] A partir do
texto A ideia da fenomenologia (composto por cinco palestras ministradas em 1907), Husserl desenvolve a
fenomenologia transcendental, que visa esclarecer de que maneira a possibilidade de conhecer eventos e objetos
mundanos se funda nas estruturas da consciência” (FERRAZ, 2009, p. 52).
83

Sean Kelly aponta o diferencial da fenomenologia de Merleau-Ponty nestes


termos: “[o]nly in doing so will we be able to distinguish Merleau-Ponty’s full-blooded
phenomenology of perception from the more cognitivist accounts of perceptual experience
found in such philosophers as Edmund Husserl and C. I. Lewis”155. Sean Kelly tem por foco,
potencialmente, a percepção tridimensional ou a relação com as partes ocultas do objeto. É aí
que o autor postula que o ponto alto em Merleau-Ponty está na relação com esse
indeterminado:“[t]he relation between the spatial identity of an object and my experience of
its spatial ground is the high point in Merleau-Ponty’s account of seeing things.Unfortunately,
it is at just this point that Merleau-Ponty falters. Let us see precisely how”156. A leitura de
Sean Kelly revela que o ponto de vista daquilo que é percebido se apresenta como um desvio
da norma, representada como o fundo da figura: uma normatividade que possibilita que outras
facetas do objeto sejam reveladas.
Sean Kelly faz essa leitura focando-se na discussão de Merleau-Ponty a respeito
da melhor iluminação para ver as cores ou − nas palavras deste último − como a iluminação
dirige o olhar. Merleau-Ponty afirma: “[p]ortanto, não é porque percebo cores constantes sob
a variedade das iluminações que creio em coisas; e a coisa não será uma soma de caracteres
constantes, ao contrário, é na medida em que minha percepção é em si aberta a um mundo e a
coisas que reconheço cores constantes”157. Sean Kelly discute essa afirmativa argumentando
que:

[…] each presentation of the color in a given lighting context necessarily


makes an implicit reference to a more completely presented real color, the
color as it would better be revealed if the lighting context were changed in
the direction of the norm. This real color, implicitly referred to in every
experience, is the constant color I see the object to be. But it itself is
experienced not as a determinate shade, but rather as the background to the
particular experience I’m having now. It is in other words, like the normal
context that reveals it, indeterminately present in every particular experience
(SEAN KELLY, 2004, p. 13)158.

155
SEAN KELLY, 2004, p. 3: “É apenas em meio ao processo que seremos hábeis para distinguir entre o vigor
(ou o puro-sangue) da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty e os relatos mais ‘cognitivistas’ da
experiência pessoal encontrados no trabalho de filósofos como Edmundo Husserl e C. I. Lewis” (Tradução
nossa).
156
Ibidem, p. 20: “A relação entre identidade espacial de um objeto de minha experiência e seu plano espacial é o
ponto alto nos relatos de Merleau-Ponty da visão das coisas. Infelizmente, é justamente nesse ponto que
Merleau-Ponty falha. Vejamos como, de forma mais precisa” (Tradução nossa).
157
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 420.
158
Tradução nossa: “Cada aspecto de cor em dada iluminação, contextual, faz, necessariamente, uma referência
implícita a uma cor real, mais, completamente, apresentada; a cor seria melhor revelada se a iluminação
contextual fosse desviada em direção à norma. É com essa cor real aludida implicitamente em toda experiência
que, constantemente, observo o objeto “ser”. Mas a mesma não é experimentada em si como uma sombra
determinada, mas, ao contrário, como plano de fundo para a experiência particular que vivencio agora. É como
84

Depois disso, Sean Kelly cita Merleau-Ponty: “[...] [a] cor real permanece sob as aparências
assim como o fundo continua sob a figura, quer dizer, não a título de qualidade vista ou
pensada, mas em uma presença não-sensorial”159. É a partir desse diálogo com o texto de
Merleau-Ponty que Sean Kelly propõe que o indeterminado se apresenta como normatividade
daquilo que é observado, sublinhando que o auge desse pensamento está no fato de Merleau-
Ponty afirmar que a cor real (ou a apresentação do real) é pano de fundo para cada
apresentação contextual desse real. Isso ultrapassa a ideia de que a cor real possa ser revelada
em um contexto de melhor iluminação.
Merleau-Ponty defende ser o indeterminado como uma presença ou como norma
para a própria percepção. A primeira afirmação é claramente articulada no texto desse
filósofo, segundo Sean Kelly – porque a identidade do objeto é garantida pelo horizonte de
pontos de vista –, mas a segunda afirmação suplanta essa ideia e Sean Kelly defende que ele
não chega a articulá-la claramente:

[h]e [Merleau-Ponty] does make the important claim, as we saw above, that
the identity of the object is guaranteed by the horizon of the points of view
on it. But he never seems to state further that this horizon is the norm from
which every perspective is felt to deviate. Indeed, there is no talk of a
“tension that deviates round a norm” anywhere in the vicinity of this
discussion. Worse yet, in some of his less formal work he carelessly posits
just the Husserlian view that he opposes – the view that the real thing is the
sum of the points of view on it, rather than the norm defined by the sum
(SEAN KELLY, 2004, p. 22)160.

O ponto de vista de todos os lugares torna-se pano de fundo para a percepção. Nessa
concepção, a coisa permanece aderente a um fundo – que modula sua própria apresentação – e
nunca é atingida: não há a possibilidade do conhecimento total do objeto. Dessa forma, o
contato com a coisa se dá mediante essa relação de normatividade com o fundo.

se ela fosse, em outras palavras, o contexto normal que a revela presente, indistintamente, em toda experiência
particular”.
159
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 410.
160
Tradução nossa: “Ele fez a importante afirmação, como vimos acima, de que a identidade do objeto é
assegurada pelo horizonte de pontos de vista sobre ele. Mas, parece que ele nunca vai adiante com esta
afirmação, ao ponto de dizer que tal horizonte é a norma pela qual toda experiência é percebida como desvio. De
fato, não há o discurso de “uma tensão que desvia em torno da norma” em lugar algum que circuncide esta
discussão. O pior, até aí, é que, em alguns de seus trabalhos menos formais, ele se descuida e postula exatamente
o mesmo que a visão husserliana, a mesma a que ele se opõe – a visão de que a coisa real é sua soma de pontos
de vista, em vez de a norma definida pela soma”.
85

2.2.1.2 O capítulo “o sentir” da Fenomenologia da Percepção

A questão espacial adentra a discussão sobre “o sentir”, quando Merleau-Ponty


afirma que “todos os sentidos são espaciais”. Uma das consequências dessa afirmativa é que
há um esforço para se unir a sensação como estado de consciência e como consciência de um
estado ou entre a forma e o conteúdo kantianos. Mais do que isso, a espacialidade dos
sentidos provoca uma relação mais pujante entre o corpo e o sensível. Merleau-Ponty sintetiza
essa ideia nestes termos:

[a]quele que sente e o sensível não estão um diante do outro como dois
termos exteriores, e a sensação não é uma invasão do sensível naquele que
sente. É meu olhar que subtende a cor, é o movimento de minha mão que
subtende a forma do objeto, ou antes meu olhar acopla-se à cor, minha mão
acopla-se ao duro e ao mole, e nessa troca entre o sujeito da sensação e o
sensível não se pode dizer que um aja e que o outro padeça, que um dê
sentido ao outro. Sem a exploração de meu olhar ou de minha mão, e antes
que meu corpo se sincronize a ele, o sensível é apenas uma solicitação vaga
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 288).

Esse vínculo entre o que sente e o sensível delineia a forma como o filósofo apresenta a sua
concepção de um sentido como “um pensamento sujeito a um certo campo”161. Essa definição
é construída no exame do sentido da visão, mas abarca os outros sentidos, como o tato, que,
nas análises de Merleau-Ponty, equipara-se à visão. Duas coisas, pelo menos, aqui, destacam-
se: primeiro a espacialização dos sentidos, visando vincular sujeito e objeto; segundo, os
recortes espaciais se manifestam no contato com o mundo. Esse segundo tópico adentra,
acentuadamente, nossa discussão – ou o tema da apreensão máxima − já que, quando o
filósofo propõe que o acesso ao mundo se dá em campos, entendemos que aquilo que é
percebido é apenas uma parcela do mundo.
Merleau-Ponty ressalta a posição de Kant de que o a priori “não é cognoscível
antes da experiência”162; contudo, o primeiro percebe um distanciamento entre o espaço e o
sujeito em Kant, quando este defende a exteriorização do espaço em relação ao sujeito. O
objetivo de Merleau-Ponty é construir o lugar do fenômeno como um espaço em que não haja
contradição entre o a priori e o empírico. O problema se instaura quando se defende que os
vários sentidos projetam espaços específicos na manifestação do fenômeno. A espacialidade
dos sentidos produz campos próprios para cada um deles, o que faz com que sua diversidade

161
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 292.
162
Ibidem, p. 297.
86

consolide uma divisão no processo da experiência. Apontando e evocando esse problema,


Merleau-Ponty defende a comunicação entre os sentidos, já que a separação entre os seus
campos produziria uma limitação do próprio conceito de espaço. É no esforço para reverter
essa mutilação do espaço que o filósofo defende o “fenômeno das sinestesias”.
Merleau-Ponty concebe a percepção sinestésica como um projeto em que os
sentidos se comunicam entre si, havendo um núcleo em que as experiências sensoriais são
reunidas, sendo o multissensorial percebido no corpo. A relação entre os espaços se estabelece
com colaboração pré-lógica dos sentidos. Ele compara esse construto sensorial com a visão
binocular, com a qual não se percebe o mundo como o revezo entre o foco de um olho e o de
outro, mas como uma visão inteiriça. A inter-relação entre os sentidos ocorre no corpo por um
processo anterior à concretização das ideias, dos conceitos. Nesse esquema, o corpo recobre o
mundo atualizando o mecanismo envolvido no processo de percepção, no momento em que
faz uso de um conhecimento antipredicativo desse espaço. Merleau-Ponty defende que a
“síntese perceptiva é uma síntese temporal”163, ou que a subjetividade se confunde com a
temporalidade, e defende que a sensação reúne o sujeito com o mundo, porque o mundo se
apresenta como fundo de toda percepção. Por sua vez, a temporalidade se confunde com a
própria vivência, já que é no momento da experiência que o sujeito tem acesso ao prospectivo
e ao retrospectivo, por intermédio da relação sensorial com o mundo.
A sensação se manifesta como um aprofundamento da subjetividade no mundo e,
também, descortina uma relação antirreflexiva com esse mundo. Nessa dúbia formação da
experiência, Merleau-Ponty desenvolve duas ideias em relação ao envolvimento do sujeito
com o mundo. Primeiramente, defende o conhecimento não-tético como base para a
experiência, o que, de certa forma, sinaliza uma comunhão substancial entre o sujeito e o
mundo, antepredicativa ou anterior a essa própria divisão binária. Por outro lado, quando a
experiência fenomenal se coloca como o projeto do próprio mundo, Merleau-Ponty não
consegue evitar a independência que se estabelece entre sujeito e mundo. O sujeito se
manifesta como protagonista do movimento ou designado como a própria temporalidade que,
segundo Ferraz (2009), é onde se encontra “um padrão de racionalidadeque fundamenta as
descrições da atividade corporal e do mundo percebido”164. A multiplicidade do mundo não é
esgotada na apreensão pelo sujeito, mas é evidenciada, no caráter temporal da experiência,
como recorte que sempre se renova no movimento. Abrimos, aqui, parênteses: uma crítica
aguda é desferida contra o projeto da Fenomenologia da Percepção, por se perceber, nesse

163
Ibidem, p. 321.
164
FERRAZ, 2009, p. 30.
87

projeto de comunhão integral com o mundo, um “idealismo” que faria ruir o projeto inicial de
se reunir espaço e sujeito ou espaço e tempo. Merleau-Ponty, de certa forma, admite,
posteriormente, esse pendor ao sujeito e busca resolver essas questões na sua última filosofia:
reside aí a importância central desse último pensamento, percorrido, posteriormente, nesta
tese, tendo sob foco O visível e o invisível (2012).
O estudo meticuloso do sentir prossegue em trabalhos posteriores de Merleau-
Ponty, nos quais a centralidade é a busca por um sentido originário, em investida contra a
concepção dos sentidos como manifestação a posteriori no espaço já constituído. Seu objetivo
é retomar o sentido por meio das sensações; ou seja: reunir essas duas concepções da palavra
sentir: como posse do mundo e como relação com uma ideia. A segunda concepção se
descobre, mais nitidamente, na passagem da fenomenologia para a ontologia, no delinear da
própria relação com o sentido da experiência: “[...] [c]e sens inscrit dans le sensible n’est pas
fait d’idées claires et distinctes; il s’agit plutôt d’une signification globale et implicite,
inhérente et adhérente à la physionomie des choses”165. Merleau-Ponty procura unir essas
concepções ou o próprio homem, por entender que o sentido como significado das coisas não
se encontra em uma consciência particular, mas na própria relação com o mundo.
Na última fase de Merleau-Ponty, percebemos um desenvolvimento mais
contundente da relação do senciente com o mundo: “[...] [a]u niveau du sentir, le sentent et le
monde constituent encore une sphère close, au sein de laquelle aucun écart, aucune distance
ne peuvent s’insérer”166. O fenômeno é, também, marcado pela sinestesia, entendida, de forma
mais ampla, por meio do conceito de reversibilidade, como bem afirma Barbaras: “[...] toute
sensation, vision ou toucher, s’accorde avec toutes les autres par cette possibilité de réversion.
Tel est le sens de la chair : une unité qui ne se réalise que comme possibilité de passage,
équivalence sans principe entre des sentir singuliers”167. Assim, Merleau-Ponty progride ao
desvendar as sensações − superando a definição kantiana de posteriori –, demostrando como a
relação com o mundo se estabelece por meio do entrelaçamento entre os sentidos e o mundo:
o sentir se manifesta na intersubjetividade e como manifestação de uma relação interna com o
mundo.

165
COLLOT, 2011, p. 24: “[...] Esse sentido inscrito no sensível não é feito de ideias claras e distintas; trata-se
mais de uma significação global e implícita, inerente e aderente à fisionomia das coisas” (Tradução nossa).
166
BARBARAS, 1991, p. 277: “[...] Ao nível do sentir, o sentiente e o mundo constituem ainda uma esfera
fechada, ao interior da qual nenhuma separação, nenhuma distancia pode ser inserida” (Tradução nossa).
167
Ibidem, p. 283: “[...] toda sensação, visão ou tocar se acorda com todas as outras por essa possibilidade de
reversão. Tal é o sentido da carne: uma unidade que se realiza somente como possibilidade de passagem,
equivalência sem princípio entre os sentires singulares” (Tradução nossa).
88

Na leitura da experiência no mundo – como fazemos, aqui, por meio do exame da


vivência das personagens saerianas –, a importância dessa discussão se desvela na tentativa de
compreensão dessa relação elemental entre a personagem e o mundo. No enfoque da
experiência, é imprescindível compreender os sentidos como uma abertura do homem ao
mundo, da mesma forma que a profundidade apresenta-se como o espaço em que as coisas se
oferecem à relação com o homem. Quando Merleau-Ponty espacializa os sentidos,
percebemos sua preocupação de atribuir a essa abertura sensorial as mesmas características da
espacialidade das coisas. Fazendo uma ponte com Saer: é nesse entrecruzamento dos vetores
da experiência – ou dos sentidos espaciais – que se percebem as imagens saerianas como o
confluir da personagem no mundo. As sensações, então, engendram o próprio sentido –
também, no plano das ideias – da experiência em Merleau-Ponty: como lugar de abertura para
o mundo e entrecruzamento deste com o homem.

2.2.1.3 O capítulo “a temporalidade” da Fenomenologia da Percepção

Especificamente, no capítulo sobre “a temporalidade”, Merleau-Ponty discute o


apriorismo kantiano e a relação interna entre o tempo e o sujeito. Ele pressupõe que, nos
capítulos anteriores, sobre a sexualidade e a espacialidade, conseguiu unir interiormente esses
elementos ao sujeito, já que “a existência não pode ter atributo exterior ou contingente”168.
Merleau-Ponty identifica essa dialética interna que contribui para uma nova formatação da
noção de sujeito. O tempo se apresenta como pertencente ao ser, o que contradiz as
considerações de Kant acerca da distância entre forma e conteúdo. Merleau-Ponty afirma que
a temporalidade se representa pelo sujeito ou que o sujeito é o próprio tempo, porque:

[n]ós não dizemos que o tempo é para alguém: isso seria estendê-lo ou
imobilizá-lo novamente. Dizemos que o tempo é alguém, quer dizer, que as
dimensões temporais, enquanto se recobrem perpetuamente, se confirmam
umas às outras, nunca fazem senão explicitar aquilo que estava implicado
em cada uma, exprimem todas uma só dissolução ou um só ímpeto que é a
própria subjetividade. É preciso compreender o tempo como sujeito e o
sujeito como tempo (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 566).

A confluência entre passado, presente e futuro dinamiza uma temporalidade, que é aquela
vivida pelo sujeito. Na atualização dessas instâncias ou na exploração de um ponto de
observação, o sujeito se descobre como pertencente a uma totalidade temporal. Merleau-Ponty

168
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549.
89

retorna à concepção do vocábulo “sentido”, afirmando ser o tempo e o sentido uma única e
mesma coisa, ou que aquilo que ordena o espetáculo do vivido é o tempo. Dessa forma, ele
pretende dinamizar a relação entre o sujeito e o tempo, porque entende que esses dois termos
se confundem, quando ele projeta o tempo como o sentido da própria vida:

[...] [l]a temporalité n’est pas au dehors de la subjectivité. Elle lui est
immanente. Le sujet ne « tombe » pas dans le temps. Il est temps, comme
l’avait déjà reconnu aussi Hegel. Ainsi, le soi d’un sujet incarné est de part
en part temporel. Et la réflexion elle-même ne saurait le soustraire au temps
(VILLELA-PETIT, 2008, p. 95)169.

Identificamos, na citação acima, reajustes na visão da temporalidade: abandona-se a


concepção de sujeito – base para o entrave idealista – e utiliza-se o termo “carne”. Villela-
Petit (2008) está focada na análise da temporalidade na fase ontológica de Merleau-Ponty,
quando a noção de corpo – refém, ainda, de uma relação com a visibilidade − é substituída
pela de carne, como bem pontua Barbaras: “[...] [l]e temps est « matrice symbolique »,
« système qui embrasse tout », Dimension universelle, c’est-à-dire chair”170.
Na Fenomenologia da Percepção, na epígrafe do capítulo “A temporalidade”,
Merleau-Ponty cita a Art Poétique, de Claudel171, visando ratificar sua concepção de tempo:
“[o] tempo172 é o sentido da vida (sentido: como se fala do sentido de um córrego, do sentido

169
“[...] A temporalidade não está fora da subjetividade. Ela lhe é imanente. O sujeito não « cai » no tempo. Ele é
tempo, como já havia reconhecido, também, Hegel. Assim, o em si de um sujeito encarnado é, de parte em parte,
temporal. E a reflexão, nem mesmo saberia subtraí-lo do tempo” (Tradução nossa).
170
BARBARAS, 1991, p. 260: “[...] O tempo é « matriz simbólica », « sistema que contempla tudo », Dimensão
universal, isto é: carne” (Tradução nossa).
171
Merleau-Ponty, Signos, p. 352 (“Sobre Claudel”, março de 1955): “[s]e o gênio e aquele cujas palavras têm
mais sentido do que ele mesmo lhes podia dar, aquele que, ao descrever os relevos de seu universo privado,
desperta nos homens mais diferentes dele uma espécie de rememoração daquilo que está dizendo, como o
trabalho dos nossos olhos desenvolve ingenuamente a nossa frente um espetáculo que é também o mundo dos
outros, Claudel foi às vezes um gênio. Saber se o foi com tanta frequência quanto Shakespeare ou Dostoievski,
dois de seus mestres, ou se, ao contrário, o ronronar claudeliano, como dizia Adrienne Monnier, uma certa
maneira de organizar a def1agração das palavras, não vem amiúde substituir o verbo de Claudel, e uma outra
questão, e que não tem muita importância”.
172
« C’est en 1907 que Claudel publie son « Art poétique », qui est en fait un ensemble de trois traités. Le premier
traité, "Connaissance du temps", avait paru en Chine en 1904. Il est daté de Kouliang, 12 août 1903. Le
deuxième, "Traité de la connaissance du monde et de soi-même", est daté de Foutchéou, 1904. Le troisième
enfin, "Développement de l' église", avait été écrit en France, d'avril à juillet 1900. Les trois traités s'inscrivent
entre la première et la seconde partie de la première des "Cinq grandes Odes", "Les muses". Ce fut une période
particulièrement tragique et déchirée dans l'existence de Paul Claudel, d'où est sorti le "Partage de midi" »
(http://artsrtlettres.ning.com/profiles/blogs/lart-poetique-selon-claudel-ou). [Tradução nossa: “É em 1907 que
Claudel publica sua « Arte poética », que se compõe de três tratados. O primeiro tratado, intitulado
‘Conhecimento do tempo’, foi publicado na China, em 1904. Ele é datado de Kouliang, 12 de agosto 1903. O
segundo, intitulado ‘Tratado do conhecimento do mundo e de si mesmo’, é datado de Foutchéou, 1904. O
terceiro, por fim, intitulado ‘Desenvolvimento da Igreja’, foi escrito na França, de abril a julho de 1900. Esses
três tratados se inscrevem entre a primeira e a segunda parte da primeira das ‘Cinco grandes Odes’, ‘As musas’.
90

de uma frase, do sentido de um tecido, do sentido do olfato)”173. No capítulo sobre o espaço,


Merleau-Ponty procurou reunir a concepção da palavra “sentido” – como posição e como
significado de determinada coisa –; aí, ele intensifica essa relação, distribuindo seu
significado entre os sentidos da percepção humana. O retorno a aquela primeira discussão faz
com que compreendamos a relação que o filósofo desenvolve entre os espaços do sentido ou
como, dentro do universo de todos os sentidos, se consolida a apreensão daquilo que
corresponde ao vivido. É como se o sentido ou o tempo (identificam-se ambos em Merleau-
Ponty) se desse na conjunção de todos os fatores dos sentidos, ou se os seus vários espaços se
apresentassem na manifestação da temporalidade.
Merleau-Ponty defende que a identificação do sujeito com o tempo não
dimensiona um sujeito eterno, porque o mesmo atributo do espaço é encontrado no tempo: a
parcialidade do vivido. É na estreita relação do sujeito com o presente que se instaura a noção
de tempo ou que se inviabiliza a apreensão de toda uma eternidade. A própria noção de tempo
é dada pelo filósofo não como um objeto de nosso saber, ou como o conhecimento de toda
uma temporalidade, mas como uma dimensão de nosso ser, como aquilo que é efetivamente
experienciado, porque, segundo ele: “[...] [a] origem do tempo objetivo, com suas
localizações fixas sob nosso olhar, não deve ser procurada em uma síntese eterna, mas no
acordo e na recuperação do passado e do porvir por meio do presente, na própria passagem do
tempo”174. É no vivido que se recupera o passado e se projeta um futuro, ou que se tem
contato com uma ideia de temporalidade como acordo entre passado, presente e futuro.
Dialogando com Kant, Merleau-Ponty procura reunir a temporalidade na própria
ação do sujeito no mundo. Tendo em vista que Kant já dissera de uma interioridade do tempo,
parece mais fácil conformar a relação sujeito e tempo. No caso do espaço narrativo, há a
dificuldade de se aproximar o seu caráter a priori, de conteúdo externo, com as sensações ou
a sua relação com o sujeito. Merleau-Ponty discute, principalmente, esses três universos –
espaço, tempo e sentir –, como forma de alocá-los no próprio sujeito. Segundo ele, é na
vivência que esses universos de sentido são atualizados: “ser é sinônimo de ser situado”175.
Ele exemplifica a conjunção entre esses três níveis de sentido: “[q]uando digo que vejo um
objeto à distância, quero dizer que já o possuo ou que ainda o possuo, ele está no futuro e no

Esse foi um período particularmente trágico e difícil na vida de Paul Claudel, de onde saiu a ‘Partilha do meio-
dia’”].
173
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549.
174
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 563.
175
Ibidem, p. 339.
91

passado ao mesmo tempo em que no espaço”176. A terceira espacialidade promovida por


Merleau-Ponty é concretizada no “poder do sujeito sobre o mundo” ou na vivência da própria
parcialidade da experiência, porque todos os níveis de sentido se dão mediante o seu
posicionamento no mundo.
A parcialidade do que é apreendido está relacionada ao seu caráter anônimo ou à
sua relação com “um saber originário”, em comunhão com aquilo que é compartilhado por um
todo. Na medida em que se defende que há um conhecimento pré-pessoal, subentende-se que
sua apreensão é sempre limitada. Essa base ontológica para o universo do fenômeno é
sublinhada, por M.C. Dillon, como a tese central da discussão ontológica de Merleau-Ponty:
“[t]he core tenet of Merleau-Ponty’s ontology is the thesis of the ontological primacy of
phenomena”177. Dillon defende que somente em O visível e o invisível Merleau-Ponty nomeia
esse caminho já delineado na Fenomenologia da Percepção. Dessa forma, a busca pela
apreensão máxima e a relação com essa parcialidade do vivido se apresenta como o grande
dilema da percepção:

[q]uando me ponho a perceber esta mesa, contraio resolutamente a espessura


de duração escoada desde que a olho, saio de minha vida individual
apreendendo o objeto como objeto para todos, reúno então de um só golpe
experiências concordantes mas separadas e repartidas em vários pontos do
tempo e em várias temporalidades. Este ato decisivo que desempenha, no
interior do tempo, a função da eternidade spinozista, essa "doxa originária",
nós não censuramos o intelectualismo por servir-se dela, mas por servir-se
dela tacitamente (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 71).

Como afirma Sean Kelly, é a relação com o indeterminado que se mostra como o ponto alto
em Merleau-Ponty, que enfrenta esse problema buscando caracterizar esse lugar e entender
sua relação com o processo de percepção. No capítulo sobre o espaço da Fenomenologia da
Percepção, o indeterminado aparece como o “nível espacial” ou aquilo que permite que o
objeto seja percebido de determinada forma. O trabalho com essa “forma” de apresentação
leva à discussão das concepções da palavra “sentido” ou daquilo que emoldura a percepção
das coisas: assim, o sentido ganha status de espaço. Os sentidos perceptivos são claramente
designados como espaços que se conformam na planificação de um único espaço, o da
experiência. A leitura que Sean Kelly faz da relação figura e fundo − sendo o último termo

176
Ibidem, p. 357.
177
DILLON, 1998, p. 85: “O princípio fundamental da ontologia de Merleau-Ponty é a tese da primazia ontológica
dos fenômenos" (Tradução nossa).
92

considerado a condição de possibilidade de todas as percepções − postula a ideia de que o real


não pode ser totalmente atingido. Sempre há um intervalo que modifica e condiciona a
percepção, revelando novos ângulos da coisa.
Merleau-Ponty busca pensar o espaço como o tempo é definido por Kant (em
relação direta com o indivíduo) ou como o sentido da percepção. É como se Merleau-Ponty
tentasse desestruturar a definição kantiana de que o espaço seja externo aos sentidos ou à
aproximação do sujeito. Em Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty inicia esse projeto,
ao qual dá continuidade em trabalhos posteriores178. Procedemos, aqui, a uma leitura do
espaço, no percurso por sua obra de 1945, ressaltando o envolvimento do sujeito com o
mundo, em esforço por se envolver com ele. Nessa primeira parte, detivemo-nos, sobretudo,
nos capítulos que respondem mais incisivamente ao problema espacial: o sentir, o tempo e o
espaço. O objetivo foi adentrar a discussão merleaupontyana da vivência, destacando como
esse filósofo prepara terreno para o salto ontológico concretizado nos seus últimos trabalhos.
O passo seguinte é abordar a passagem da fenomenologia para a ontologia, tendo por
propósito a concreção da experiência por meio da quebra do dualismo sujeito e objeto.

2.2.2 A apreensão máxima em O visível e o invisível, de Merleau-Ponty

Prosseguimos com o mesmo tema – a apreensão máxima – tendo como objeto de


pesquisa o livro póstumo de Merleau-Ponty intitulado O visível e o invisível (1964). A vasta
obra desse filósofo francês é sequenciada, por seus estudiosos, em três partes179, sendo que, na
primeira parte, tem-se a obra mais importante, Fenomenologia da Percepção (1945); segue-se
uma fase intermediária e, por último, os textos da fase chamada ontológica. Anteriormente,
neste trabalho, percorremos o tema do espaço, na obra de 1945, como forma de mostrar a
sequencialidade do pensamento do filósofo. O objetivo desta tese, no entanto, não é percorrer
a extensa obra do filósofo, mas fixar-se na relação entre o corpo e o mundo focando-se, agora,
na reversibilidade, tema da terceira fase de Merleau-Ponty. Assim, o tema fenomenológico
permanece mesmo quando se faz esse giro para o interior da ontologia. Nesta parte da
discussão, prosseguimos no encalço da relação potencial entre o corpo e o mundo, mas por
178
Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty afirma o seguinte sobre o tempo: “Santo Agostinho dizia do tempo,
que este é perfeitamente familiar a cada um, mas que nenhum de nós o pode explicar aos outros. O mesmo é
preciso que se diga do mundo” (2012, p. 15). Dessa forma, ele aproxima a concepção de tempo da de espaço,
segundo aquilo que defende Kant sobre o primeiro desses conceitos.
179
SAINT-AUBERT (2008, p. 14) afirma que, “[l]es années 1945-1953 constituent en effet une longue phase
intermédiaire entre la période des thèses (1938 – 1945) et celle des derniers écrits (1953 – 1961)”. [Tradução
nossa: “Os anos 1945-1953 constituem de fato uma longa fase intermediária entre o período das teses (1938 -
1945) e o dos últimos escritos (1953-1961)”].
93

intermédio de outros conceitos. Assim, por meio de O visível e o invisível, buscamos


compreender como se pode descrever a experiência das personagens saerianas no mundo da
experiência. Tendo em vista a complexidade dessa obra póstuma, outros textos são trazidos
para tradução e elucidação das questões discutidas. Os textos de transição servem,
principalmente, de material de apoio para a pesquisa, porque neles se encontram os lampejos
de um estudo criterioso sobre os conceitos que serão apresentados na fase ontológica.
A preocupação inicial de Merleau-Ponty, em O visível e o invisível, é
fenomenológica: questionar os mecanismos de um projeto empirista e a consolidação de uma
filosofia reflexiva. O livro fazia parte de um projeto audacioso: os estudiosos acreditam que as
três partes que estruturam O visível e o invisível constituiria apenas a primeira parte do
trabalho proposto pelo filósofo, esquema deixado esboçado em notas de trabalho. A parte que
foi parcialmente concluída e que corresponde quase à totalidade de O visível e o invisível, é
nomeada como “O visível e a Natureza”. É nas segmentações desse capítulo que se observa
como o filósofo investe no pensamento ontológico como estratégia para consolidação de sua
própria fenomenologia. Assim, Merleau-Ponty inicia a discussão revelando os prejuízos do
cientificismo e do racionalismo, visando priorizar a “percepção”. O seu projeto ontológico é
desvelado já no primeiro momento do livro, quando propõe uma relação mais pujante com a
experiência: “[...] é acima da própria percepção que precisamos procurar a garantia e o sentido
de sua função ontológica”180. Nesse momento, o filósofo inicia a discussão sobre a “fé
perceptiva”, abordando a questão da garantia da realidade em paralelo ao problema dos
sonhos. Observamos a exigência de aprofundamento na relação com a realidade, para que se
possa distanciar do empirismo ou da crença no pré-ordenamento do mundo.
É nesse revoltar-se contra os conceitos – principalmente, empiristas e racionalistas
–, que Merleau-Ponty acentua a importância da investigação meticulosa, fora de todo
“preconceito ontológico”. Seguindo essa linha de reflexão, ele ultrapassa as ideias de sua fase
fenomenológica, explicitando um posicionamento mais vibrante do homem com o mundo.
Observamos a tentativa de suplantar qualquer menção idealista, no encalço de fazer coincidir
esses dois espaços − homem e mundo − por meio da elaboração de novos conceitos: “[...]
[e]xprimiria muito mal o que se passa dizendo que “um componente subjetivo” ou uma
“contribuição corporal” passa a recobrir as próprias coisas; não se trata de outra camada ou de
um véu que viria colocar-se entre mim e elas”181. Essas linhas antecipam aquilo que é
discutido no ensaio “O olho e o espírito” ou proclamam uma nova ideia para a leitura do

180
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 18.
181
Ibidem, p.19.
94

espaço: o “conceito” de carne – apresentado naquele ensaio − é, em O visível e o invisível,


descortinado. Desviando-se da ideia de síntese – o que seria a afirmação de uma soma entre
partes distintas −, o filósofo define a percepção como o milagre da totalidade. É como se, no
mecanismo da percepção, fosse desvelado o mistério da relação plena entre o todo. Dessa
forma, Merleau-Ponty manifesta a sua dívida para com a fenomenologia, aproximando-se,
cada vez mais, do pensamento ontológico.

2.2.2.1 A linguagem do ver

Nesse esforço para apreender o mundo, buscamos uma linguagem do ver que
possa mostrar as coisas, ao invés de significá-las. Processamos essa discussão lançando mão
dos ensaios de O olho e o espírito182, como estratégia para elucidação daquilo que se quer
frisar em O visível e o invisível: a potencialidade do ver como procedimento de junção com o
mundo. O objetivo é tão somente pinçarmos, nesses três ensaios, como se aprimora o
pensamento de Merleau-Ponty em relação à apreensão do mundo, como forma de
compreensão da estrutura “visível e invisível”, defendida na obra homônima. Assim, temos
por foco, aqui, a compreensão da relação ontológica entre o visível e o invisível, defendida
por meio da reversibilidade da experiência. É relevante frisarmos a importância dos ensaios
de O olho e o espírito para o tema do capítulo: a apreensão máxima. O foco central desses
ensaios é a pintura183, visando estabelecer um entendimento de mundo que substitua a
linguagem da tradução pela linguagem da visão. Essa questão encabeça uma preocupação
iterativa da filosofia de Merleau-Ponty, que é distanciar-se da linguagem como tradução da
experiência, priorizando a palavra que mostra e, também, aquela que se emudece, que se
esconde nas abas do visível: ambas contribuem para a inserção do corpo no mundo. No início
de O visível e o invisível, ele afirma que “[...] a filosofia não é um léxico, não se interessa
pelas “significações das palavras”, não procura substituto verbal para o mundo que vemos,
não o transforma em coisa dita [...] são as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, que deseja
conduzir à expressão”184; nas palavras de Barbaras:

182
São três os ensaios que compõem O olho e o espírito, título, também, de um dos ensaios do livro, esse
considerado o último escrito que o filósofo concluiu em vida. Os ensaios se focam no potencial da Arte como
linguagem do ver, como gesto filosófico de indagação do mundo.
183
Rosati assim conceitua a pintura, segundo as indagações de Merleau-Ponty, como “[...] un art qui se présente
comme une structure en même temps très médiate et complètement muette” (2009, p. 54). [Tradução nossa: “[...]
uma arte que se apresenta como uma estrutura ao mesmo tempo muito mediata e completamente muda”].
184
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 16.
95

[...] Merleau-Ponty affirme ailleurs qu’il n’y a pas de distinction à opérer


entre le travail de la peinture et l’oeuvre du langage. Celle-là accomplit ce
que la parole effectue de son côté ; elle ne façonne pas un miroir du visible,
un autre monde, imaginaire : elle montre le monde selon des dimensions qui,
au niveau de la perception, ne paraissaient qu’en filigrane (BARBARAS,
1991, p. 342)185.

Em busca dessa linguagem do ver, discutimos, então, O visível e o invisível,


lançando mão dos três ensaios de O olho e o espírito: “A dúvida de Cézanne”, “A linguagem
indireta e as vozes do silêncio” e “O olho e o espírito”. Essa é a ordem diacrônica de escrita
dos ensaios, mas, no livro, eles se apresentam na disposição inversa. A ordem em que eles
foram apresentados é como, aqui, eles adentram a discussão da obra póstuma de Merleau-
Ponty. Essa disposição se justifica em função do aumento da complexidade das ideias em “O
olho e o espírito”; tanto que esse servirá de ponte para a discussão dos conceitos ontológicos
de O visível e o invisível. No próprio título dos ensaios, percebemos uma progressão na
complexidade dos mecanismos do visível para a descoberta de um sentido ainda encoberto.
Na verdade, esses três ensaios são reunidos em livro em razão do tema que discutem, e cada
um deles pertence a uma fase de escrita desse filósofo. Como exemplo, tem-se “A dúvida de
Cézanne”, redigido, por Merleau-Ponty, no mesmo ano da publicação da sua maior obra:
Fenomenologia da Percepção, em 1945.
A importância de O olho e o espírito, no contexto de análise de O visível e o
invisível, é ponto sublinhado por Barbaras (1991), quando da análise das partes finais da obra
póstuma;

[i]l s’agit, en second lieu, de L’oeil et l’esprit qui recoupe, d’un autre point
de vue, Le visible et l’invisible tout entier. L’étude de la peinture permet de
dégager une voie d’accès au terrain préthéorétique que Husserl ne fit
qu’indiquer, et tient donc lieu d’une véritable réduction phénoménologique,
débarrassée de ses implications idéalistes, c’est-à-dire permettant de
restaurer le sol perceptif originaire. Là s’élaborent la plupart des concepts à
l’oeuvre dans l’ontologie du visible (BARBARAS, 1991, p. 176)186.

185
Tradução nossa: “[...] Merleau-Ponty afirma, alhures, que não há distinção a operar entre o trabalho da pintura e
o trabalho da linguagem. Aquele cumpre o que a palavra efetua de seu lado; ela não molda um espelho do
visível, outro mundo, imaginário: ela mostra o mundo segundo dimensões que, no nível da percepção, apareciam
somente em filigrana”.
186
Tradução nossa: “Trata-se, em segundo lugar, de O olho e o espírito, que retoma, de outro ponto de vista, O
visível e o invisível, completamente. O estudo da pintura permite desvencilhar um caminho de acesso ao terreno
pré-teórico que Husserl somente indicou e representa, portanto, uma verdadeira redução fenomenológica, livre
de suas implicações idealistas; isto é: permitindo restaurar as bases perceptivas originárias. Aí se elaboram a
maior parte dos conceitos que compreendem a ontologia do visível”.
96

Essa ontologia do visível que se persegue é a fórmula para que não se caia no dilema entre o
fato e a essência. Põe-se em evidência uma pré-teoria que se realiza nos mecanismos do
próprio visível ou na sua imbricação com as coisas. Em Merleau-Ponty, nunca se abandona o
mundo; a busca pelo terreno perceptivo originário se faz sempre nessa relação. A ontologia de
Merleau-Ponty, então, é desenvolvida com continuado recurso de análise da relação do visível
e do invisível.
A união dessas duas últimas obras de Merleau-Ponty – quando se pensa no ensaio
que intitula O olho e o espírito e na obra póstuma − é estratégia para que consigamos
visualizar esse pensamento do ver ou a estrutura que consolida a sua filosofia da visão. A
expressão “pensamento de ver” é interessante no sentido de que o filósofo busca unir, na
carne, o movimento do ver e do pensar; ou melhor: a própria visão se apresenta como o
entremesclar-se do sensível no mundo. Merleau-Ponty afasta-se da ilusão realista da visão e
defende não a pré-constituição das coisas como que estando à espera do olhar; ao contrário,
enfatiza a proeminência da “visão em ato”, da promoção do ver como estrutura de relação
primordial com o mundo. O ato de visão sintetiza o envolvimento do corpo no mundo ou a
promoção do próprio conceito de carne. Esse conceito será retomado, posteriormente, quando
do desenvolvimento da relação do visível e do invisível. O importante, agora, é mostrarmos
como essas duas obras favorecem o desvendamento do pensamento final de Merleau-Ponty: o
pensamento de ver.
Retomando O visível e o invisível, temos que a busca de Merleau-Ponty está
centrada na leitura de um espaço não-segmentado ou na tentativa de rever o seu desvincular
do corpo. A interioridade do tempo e a exterioridade do espaço – formando os a priori
kantianos – são emendadas, quando Merleau-Ponty se propõe a fazer outra leitura do espaço,
afirmando que “[...] Santo Agostinho dizia do tempo, que este é perfeitamente familiar a cada
um, mas que nenhum de nós o pode explicar aos outros. O mesmo é preciso que se diga do
mundo”187. Esse gesto merleaupontyano se detém no espaço, na interrogação filosófica a
respeito do visível, daquilo que faz, também, parte da interioridade do movimento homem e
mundo. Nessa investigação, o espaço é questionado, já que a sua exterioridade ou
anterioridade não condiz com um posicionamento franco com o homem. Merleau-Ponty busca
descortinar qualquer “véu” que possa obnubilar a percepção, e o seu escopo é atingir uma
interação plena com o mundo. O dilema se instaura nesta questão, registrada em nota de pé de
página: “[...] [t]oda tentativa para reconstituir a ilusão da “coisa mesma” é, na realidade, uma

187
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 16.
97

tentativa para regressar ao meu imperialismo e ao valor da MINHA coisa. Essa tentativa não
nos faz, pois, sair do solipsismo: é uma nova prova dele”188. No encalço de reconstituir o
processo de experiência, percebemos um grande risco de se instaurar o idealismo; o filósofo
busca trilhar caminhos que o levem a ultrapassar esse lugar ou a se deslocar do dualismo
sujeito e objeto. Observamos, nesse gesto, o balanço de um projeto executado e o lance de
vista sobre algo que ainda deveria ser proposto.
A questão de Merleau-Ponty, em O visível e o invisível, está nesse movimento de
deflagrar a parcialidade ou incompletude da Fenomenologia defendida na obra de 1945, ao
mesmo tempo em que se propõe outra visão para o processo. Nessa passagem para uma fase
ontológica, observamos a fuga dos engodos do visível, em tentativa de se alcançar o
invisível189, o que a ciência chama de verdadeiro ou objetivo:

[o] verdadeiro é o objetivo, o que logrei determinar pela medida ou, mais
geralmente, pelas operações autorizadas pelas variáveis ou entidades por
mim definidas a propósito de uma ordem de fatos. Tais determinações nada
devem a nosso contacto com as coisas: exprimem um esforço de
aproximação que não teria sentido algum em relação à vivência, já que esta
deve ser tomada tal qual, não podendo ser considerada “em si mesma”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 25).

Esse desenvolvimento da ideia de invisível é contemplado nos termos daquilo que a Ciência
utiliza para escapar das impropriedades de uma visão solipsista de mundo. A Ciência trabalha
com conceitos ou com ideias expressas em termos de razão objetiva. Esse fechamento das
ideias em conceitos possibilita que se alavanque um processo desenvolvimentista de mundo.
Merleau-Ponty também se posiciona contra o idealismo, buscando caminhos que
redirecionem o seu pensamento. Um desses é o aproveitamento da ideia de “fé perceptiva” 190,
por meio da defesa de que a Ciência utiliza essa expressão para um propósito esterilizante. Ele
afirma, no título da parte anteriormente citada, que “[a] ciência supõe a fé perceptiva e não a
esclarece”, e esse ingresso na discussão possibilita que visualizemos o seu posicionamento em
relação a esse conceito. Percebemos que Merleau-Ponty retoma a relação de fundo e figura
para descrever esse espaço do invisível, que seria tecido pelas proposições ou operações

188
Ibidem, p. 22.
189
FERRAZ (2009, p. 285) afirma que “[...] Merleau-Ponty concebe a noção de invisibilidade como uma
armadura geral de sentido que transcende os eventos e coisas particulares e que seria responsável pela
organização destes”.
190
O duplo sentido da expressão “fé perceptiva” é exposto, por Ferraz (2009, p. 215), nestes termos: “[...] [o]
mundo é aquilo que aparece, mas também é dado por meio do corpo e limitado ao domínio exploratório deste
último”.
98

relativas à participação do homem no mundo, mediante aberturas perspectivas. Dessa forma,


ele contraria a visão da Ciência ou seu conceito de “fé perceptiva” independentemente de uma
relação com o mundo.
É caro a Merleau-Ponty o conceito de “fé perceptiva” para prosseguir com o seu
pensamento ou para descortinar a sua ontologia madura. Esse conceito é apurado, em O
visível e o invisível, no sentido de definir os horizontes de relação com o indeterminado.
Desde sua primeira fase, ele vislumbra esse lugar por meio da análise da relação entre figura e
fundo ou mesmo da discussão acerca da profundidade. Enfocando-se, aqui, o ver − a
percepção máxima −, constatamos, no ensaio “A dúvida de Cézanne” – texto de primeira fase
−, a preocupação de Merleau-Ponty em ultrapassar uma relação imediata com o mundo. Esse
ensaio, como o seu título antecipa, foca-se no trabalho de Cézanne191 como pintor, no
criterioso tempo dispensado para concluir uma obra, buscando refletir, nela, algo além daquilo
que as pessoas conseguiam ver, cotidianamente, em paisagens e objetos. A pintura se
apresenta como um estudo sobre a aparência, no afã de reencontrar aquilo que se pinta, do seu
interior. O projeto de Cézanne é o retorno ao mundo, sendo essa uma das prerrogativas do
pensamento fenomenológico, desde Husserl:

[...] sua pintura seria um paradoxo: buscar a realidade sem abandonar a


sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem
delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a
perspectiva nem o quadro (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 130).

Esse ensaio tem como fundamento o pensamento fenomenológico; Alberto


Tassinari coteja esse ensaio com a obra de 1945 e afirma que “[...] [é] esse inacabado da
percepção, sua abertura, suas falhas, seus brancos, enfim, que possibilita a junção de alguns
temas de Fenomenologia da Percepção com os de “A dúvida de Cézanne””192. Esse trecho é
extraído do posfácio de O olho e o espírito, no qual Tassinari acentua esse aspecto do
movimento da percepção como foco de análise de Merleau-Ponty sobre Cézanne. A questão
central é a busca pelo olhar inocente por encontrar o objeto, como que pela primeira vez
sendo visto193. É por meio da harmonia entre a cor e as formas que Cézanne se dispõe a fazer
esse movimento, como forma de unir, no visível, todos os sentidos do perceber. Esse trabalho
é caracterizado como uma “tarefa infinita”, como uma forma de iluminar o “[...] fundo de

191
Ver Anexos, p. 292-294.
192
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 154.
193
Esse trecho se conjuga, com muita naturalidade, com a discussão do primeiro capítulo desta tese, no qual
abordamos as prerrogativas de uma escrita “literária” descritas em El río sin orillas, de Saer.
99

natureza inumana sobre o qual o homem se instala”194. Uma forma de fazer ver as coisas sem
se estar em suspensão sobre elas: ver as coisas como que em seu interior ou no plano da
própria vivência. Essa postura do pintor, segundo o filósofo, se volta “[...] para a ideia ou o
projeto de um Logos infinito”195. O mais interesse do ensaio está na conjunção do pensamento
fenomenológico com a posição ontológica: ao mesmo tempo em que se defende o retorno às
coisas, requer-se, também, o enxergar do fundo no qual a relação com o mundo se manifesta,
nomeado, acima, como Logos196 infinito.
No início de O visível e o invisível, o interesse de Merleau-Ponty pelo espaço foi
adiantado quando recorreu ao pensamento de Santo Agostinho sobre o tempo: “ninguém o
pode explicar aos outros. O mesmo é preciso que se diga do mundo” 197. O filósofo se esmera
no projeto de compreensão da relação do visível com o invisível, posicionando-se na esteira
de descrever a fé perceptiva ou essa nova visão da própria percepção do mundo: “[...]
‘objetivo’ e ‘subjetivo’ são reconhecidos como duas ordens construídas apressadamente no
interior de uma experiência total cujo contexto seria preciso restaurar com total clareza” 198.
Nessa relação interna entre sujeito e objeto, requisita-se o exame ontológico, para o
estabelecimento de um novo entendimento da vinculação do corpo com o mundo. O primeiro
passo é a urgência de se redefinir a própria noção de corpo, para que se visualize uma nova
relação com as coisas ou o “vínculo vivo com a natureza”. A “fé perceptiva” permite o
abandono do idealismo, por intermédio do fortalecimento da ideia de que há algo
indeterminado que possibilita a percepção; então, não mais se permite o oscilar entre essas
ideias, ora “minha visão está na própria coisa ora que minha visão é minha ou está ‘mim’”199
ao contrário:

[o] segredo do mundo que procuramos é preciso, necessariamente, que esteja


contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo, enquanto o vivo, tenho
diante de mim o sentido, sem o que não o viveria e não posso procurar
nenhuma luz concernente ao mundo a não ser interrogando, explicando
minha frequentação do mundo, compreendendo-a de dentro (MERLEAU-
PONTY, 2012, p. 41).

194
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 135.
195
Ibidem, p. 140.
196
Essa relação da experiência com a linguagem ou a substituição da noção de cogito tácito pela de estrutura da
linguagem é, posteriormente, discutida. Essa mudança de termos é defendida por Rosati (ROSATI, 2009, p. 52).
197
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 16.
198
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 30.
199
Ibidem, p. 38.
100

O problema da união do homem e das coisas apresenta-se, para o filósofo, na


contraposição entre fé perceptiva e filosofia reflexionante. Nessa segunda expressão, o foco
volta-se para o homem, negando-se a relação externa com as coisas. O projeto guarda, então,
em seu interior, o germe da “fé perceptiva” ou da crença em um mundo “pré-constituído”, nos
termos defendidos pela ciência. Da mesma maneira que essa concepção de fé perceptiva
condensa o mundo por meio de conceitos, a filosofia reflexionante postula ser possível
perceber “o mundo como unidade ideal”, desvinculado de um contato imediato; ou seja: em
ambos os pensamentos, o mundo é pré-constituído; no primeiro, quando da entrada de
conceitos que o representam, como um todo, e na filosofia reflexiva no momento em que o
“encontro” se dá por meio da síntese ideal. Além disso, nesse movimento de reflexão
substitui-se o mundo pelo pensamento de perceber, desqualificando-se o processo de
percepção.
Buscando afastar-se desse dualismo, Merleau-Ponty se propõe abarcar a situação
total e, para isso, a questão se coloca sobre a percepção do mundo ou sobre a concretude dessa
experiência. A discussão se processa tendo como foco os índices de realidade daquilo que é
visto ou experienciado: “[...] [o] que posso concluir dessas desilusões ou decepções é,
portanto, que talvez a “realidade” não pertença definitivamente a nenhuma percepção
particular, e que, nesse sentido, está sempre mais longe; isso, porém, não me autoriza a
romper ou silenciar a ligação que as reúne”200. Esse filósofo analisa, nessa parte, os malogros
da visão em sucessivas tentativas de recobrir os objetos à distância. É nesse processo de
investigação, de questionamento, que descobrimos o espaço em que figura a relação plena do
corpo com o mundo, nesse espaço de perspectivação com o mundo.
Desestruturando qualquer tipo de a priori, Merleau-Ponty se depõe contra o
dualismo sujeito e objeto, demonstrando os enganos da “fé perceptiva” – entendida como
pressuposto do realismo − e da filosofia reflexionante:

[d]izíamos que, antes de toda filosofia, a fé perceptiva estava convencida de


lidar com uma totalidade confusa, onde todas as coisas estão juntas, os
corpos e os espíritos, e que ela chama de mundo. Aqui a reflexão só chega ao
rigor destruindo aquilo de que temos experiência: substitui a confusão do
mundo por um conjunto de consciências paralelas, cada uma cumprindo sua
lei, vendo se foi regulada pelo mesmo relojoeiro que as outras, ou cada uma
observando as leis de um pensamento universal imanente a todas. Do ponto
de vista de uma filosofia negativista, o sincronismo das consciências é dado
por sua comum pertencença a um Ser de que nenhuma possui a cifra e cuja
lei é observada por todas... (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 69).

200
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 48.
101

No final dessa citação, ele toca em outra questão central do desenvolvimento da discussão de
O visível e o invisível: a objeção da ideia sartreana201 de contraposição entre o ser e o nada.
Merleau-Ponty percebe, nesse pensamento, a restauração do dualismo, porque se desvela o
ajustamento de opostos absolutos; ele substitui a negação pela interrogação, defendendo a
percepção “como esse pensamento interrogativo que deixa ser o mundo percebido em vez de
pô-lo”202.
Desvinculando-se do pré-ordenamento das coisas – da filosofia reflexiva e, até,
pode-se dizer, da filosofia da negação, quando pensada como dois opostos –, Merleau-Ponty
se propõe discutir a linguagem como postura de investigação filosófica. Antes de retomarmos
O visível e o invisível, trazemos o ensaio, já citado, aqui, “A linguagem indireta e as vozes do
silêncio”, texto da fase de transição de Merleau-Ponty – publicado, originalmente, em 1952 −
que media – na ordem dos conceitos − a passagem para a fase ontológica. A proposta do
filósofo é aproximar conceitos linguísticos203 da apreensão da linguagem pela criança da
operação do pintor, ambos considerados como gestos de decifração da relação do sujeito com
o mundo. Discutindo, inicialmente, conceitos linguísticos de Saussure, Merleau-Ponty se foca
na relação dos signos com os sentidos ou como as partes se relacionam com o todo da língua.
Essa primeira questão é retomada em toda a obra do filósofo: o desejo de delinear os
mecanismos de envolvimento do homem com o todo do mundo; ou melhor: com aquilo que
lhe possibilita a experiência. O filósofo apoia-se na relação dinâmica do signo com o sentido,
defendendo que “[...] o que aprendemos em Saussure foi que os signos um a um nada
significam, que cada um deles expressa menos um sentido do que marca um desvio de sentido
entre si mesmo e os outros”204.
A língua é um jogo em ao qual as crianças lançam-se como que no interior de algo
já em movimento; essa concepção é cara ao filósofo, porque ativa o conceito de conhecimento
antipredicativo, pressuposto e núcleo de sua filosofia. Esse núcleo é consolidado nos termos
de figura e fundo ou na busca de compreensão das partes no interior de um todo. Merleau-
Ponty assim se posiciona quanto ao conceito de linguagem: “[...] [e] essa espécie de círculo

201
FERRAZ (2009, p. 230) afirma que “[...] Merleau-Ponty julga que Sartre não chega realmente a conceber um
campo de relações efetivas entre sujeitos, mas que apenas propõe uma difícil convivência entre vários mundos
privados”.
202
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 102.
203
FERRAZ (2009, p. 98) afirma que “[...] [a]nte a impossibilidade de um acesso direto ao ser, Merleau-Ponty, em
sua investigação ontológica madura, tenta aplicar o potencial indireto da linguagem para explicitar a camada
ontológica da qual o próprio sujeito surgiria. Dessa maneira, as longas reflexões sobre o tema da linguagem não
só ampliam o escopo das análises fenomenológicas iniciais, mas também instituem a orientação metodológica
pela qual a investigação ontológica futura deve se cumprir: expressão indireta, por meio de capacidades
expressivas linguísticas, do ser silencioso que funda tal expressividade”.
204
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 59.
102

que faz com que a língua se preceda naqueles que a aprendem, ensine-se a si mesma e sugira a
própria decifração talvez seja o prodígio que define a linguagem” 205. O ingresso nesse sistema
de coexistência faz com que o aprendizado seja uma antecipação do todo pelo acesso a uma
das partes, sendo essa defendida pelo filósofo também como o próprio todo. Merleau-Ponty
percebe que a língua atrai a si a criança; o aprendizado se consolida na experimentação do
atrito entre os signos e na revelação do sentido. O jogo é mantido graças à volatilidade da
“gênese do sentido”; os signos se juntam e se repelem e “não cessa em parte alguma para dar
lugar ao sentido puro, nunca é limitada senão pela própria linguagem”206:

[...] [s]e o signo só quer dizer algo na medida em que se destaca dos outros
signos, seu sentido está totalmente envolvido na linguagem, a palavra
intervém sempre sobre um fundo de palavra, nunca é senão uma dobra no
imenso tecido da fala (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 63).

O sentido é posto como o movimento da linguagem: as coisas são transformadas


em conceitos dentro do universo da linguagem. O distanciamento constante da decifração de
sentido ou de sua gênese desvela outra importante característica da linguagem: seu poder de
ocultação, ou melhor, sua capacidade de dizer por meio de seu silêncio. Merleau-Ponty afirma
que “[...] toda linguagem é indireta ou alusiva, e é, se se preferir, silêncio” 207. A
impossibilidade de atingir a “expressão completa” valida essa outra nuança da linguagem, que
engloba mais do que a investida do dizer. A palavra é, então, definida como oblíqua e
autônoma, características que podem ser encontradas em outros gestos da linguagem.
Antes de se focar em outras formas de linguagem – ou, propriamente, na pintura
− Merleau-Ponty revela como essa trama entre palavras e sentido possibilita e contribui para a
linguagem como arte ou para o trabalho de escritor, afirmando que o gesto do escritor é
deslocado, já que seu percurso se inicia nas palavras e, então, uma profusão de sentidos acaba
como que mediando e encobrindo as coisas. A operação do pintor é considerada como não
muito diferente da arte da escrita, mas, na primeira, as palavras são substituídas por linhas e
cores.
Essa linguagem do ver exige outros mecanismos de aproximação aos sentidos,
uma iniciação nas estruturas que constitui a própria arte. O pintor 208 persegue o sentido com

205
Ibidem.
206
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 64.
207
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 65.
208
É importante não fiar o sentido da Arte com o gesto da produção ou dependente desse gesto enunciativo; Rosati
recupera essa idéia desta forma: “[...] [u]ne réflexivité qui ne dérive pas de la réflexion de quelqu’un: « c’est
l’Être muet lui-même qui vient manifester son propre sens » ; mais il le manisfeste dans le langage silencieux de
103

outro tipo de material, constituindo uma forma de linguagem, visando, também, aproximar-se
das coisas. O movimento entre o borrão e o traço manifesta, além de um estilo próprio do
artista, o gesto de um dizer. Esses materiais são distintos dos que, corriqueiramente, o sujeito
utiliza na comunicação; dessa forma, a leitura da obra exige uma imersão nas formas. Por
outro lado, esse distanciamento das formas de expressão – do cotidiano − pode facilitar a
imersão nos sentidos, porque é mais propício o encontro da relação primeira ou ingênua entre
forma e sentido. Merleau-Ponty defende essa ideia afirmando que o escritor tem como
obstáculo o trabalho com materiais que são trivialmente articulados no dia-a-dia. A
complexidade desse trabalho está no esquecimento de que a relação entre palavra e sentido é
articulada e, mais que isso, de que há um vazio entre signo e sentido ou que se diz, também,
pelo silêncio:

[...] [s]e quisermos compreender a linguagem em sua operação de origem,


teremos de fingir nunca ter falado, submetê-la a uma redução sem a qual ela
nos escaparia mais uma vez, reconduzindo-nos àquilo que ela nos significa,
olhá-la como os surdos olham aqueles que estão falando, comparar a arte da
linguagem com as outras artes de expressão, tentar vê-la como uma dessas
artes mudas [...] comecemos por compreender que há uma linguagem tácita e
que a pintura fala a seu modo (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 70).

Quando ocorre essa aproximação da Pintura da relação do sujeito com o mundo –


ambos na consolidação de uma perspectiva –, alavanca-se uma caríssima conclusão do
filósofo: seu pensamento sobre o estatuto da própria arte. Merleau-Ponty defende o conceito,
de Gaston Bachelard, de “superexistência” ou de que a arte se difere da “existência
arrefecida”, ao mesmo tempo em que ela não é, apenas, ficção. É dentro desse esquema de
relação e distanciamento com o mundo que a arte põe em discussão ou reconstitui o processo
de aproximação com as coisas: “[...] [a] pintura moderna, como o pensamento moderno em
geral, obriga-nos a admitir uma verdade que não se assemelhe às coisas, que não tenha
modelo exterior, nem instrumentos de expressão predestinados, e que seja contudo
verdade”209. Abrimos, aqui, parênteses: apesar de o filósofo não se debruçar, especificamente,
sobre essa questão, o interessante é que essa visão dialoga com os pressupostos teóricos de
Saer, em relação à suas obras ficcionais, na sua relação com o “real”. Rosati discute essa

la peinture, qui présuppose un repliement qui ne dérive pas d’un artiste en tant que conscience constituante, mais
du mouvement médiat de l’Être lui-même (ROSATI, 2009, p.54). [Tradução nossa: “[...] Uma reflexividade que
não deriva da reflexão de alguém: « é o próprio Ser mudo que vem manifestar seu próprio sentido »; mas ele o
manifesta na linguagem silenciosa da pintura, que pressupõe uma dobragem que não deriva de um artista tido
como consciência constituinte, mas do movimento mediato do próprio Ser”].
209
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 85.
104

preferência pela pintura moderna, nas análises merleaupontyanas, nestes termos: “[...] [l]a
peinture incarne chez Merleau-Ponty le « monde primordial » et silencieux: ce dont on fait
expérience dans la peinture – et surtout dans la peinture moderne – est quelque chose de plus
réel que le réel, c’est le dévoilement du monde primordial”210. Posteriormente, Rosati busca
elucidar esses dois últimos termos: « [...] [m]onde primordial, Être muet et expression
artistique viennent coïncider, en s’entrecroisant dans un seul noeud »211. A questão do
indeterminado retorna nesses termos; ou melhor: a relação entre visível e invisível é
destacada, centraliza-se nesse próprio movimento.
Percebemos, nessa discussão, a importância da pintura como espaço em que se
promove o diálogo com uma totalidade. A evidência do todo se faz pela presença de uma
variedade do singular, de pontos de observação do mundo. A arte moderna tem como
diferencial expor mais do que aquilo que é visto – ultrapassa-se a representação –; nela,
evidencia-se a participação do vidente no espetáculo do mundo. Essa valorização do estatuto
da arte − em Merleau-Ponty − possibilita estabelecer um diálogo mais franco com o mundo e,
além disso, perpetua os dilemas que atravessam a própria vida. A temporalidade 212, em “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio”, se apresenta como o sentido da percepção, porque
é por meio dela que é possível pinçar e estabelecer uma relação com o universal. O sentido
está na obra e, também, em conformidade com a totalidade do mundo. A “historicidade da
vida” – expressão cunhada, nesse ensaio, pelo filósofo – está nesse movimento de interseção
com temporalidades passadas e, é precursora de uma nova versão de mundo. Cada obra
apresenta essa discussão intrínseca, capaz, segundo esse filósofo, de ativar a compreensão
viva daquilo que se quis relatar, no gesto de interrogar as coisas. A temporalidade é defendida
como uma interação plena com a tradição, uma consolidação da leitura integral do mundo.
No final desse ensaio, Merleau-Ponty fundamenta a ideia da existência de uma
“linguagem indireta” e, também, de uma voz na pintura, chamada de “voz do silêncio”. O
desenvolvimento dessa tese relembra a discussão da Fenomenologia da Percepção: a ideia de
que é o fundo da figura que possibilita a percepção da própria figura. São de suma
importância, aqui, essas duas ideias: a de uma linguagem que fundamenta o giro em busca de
sentido e a de que a pintura coloreia a uma voz sedimentada no silêncio. Anteriormente, já
210
ROSATI, 2009, p. 54: “[...] [a] pintura encarna em Merleau-Ponty o « mundo primordial » e silencioso; o que
faz a experiência na pintura – e, sobretudo, na pintura moderna – é algo mais real do que o real: é a revelação do
mundo primordial” (Tradução nossa).
211
Ibidem: “Mundo primordial, Ser mudo e expressão artística vêm se coincidir, entrecruzando-se dentro de um só
entroncamento” (Tradução nossa).
212
FERRAZ (2009, p. 41) defende que “[...] [o] apelo à temporalidade pretende esclarecer que não é a totalidade
dos atributos constituintes das coisas a marca da sua realidade, mas sim a parcialidade pela qual eles se
manifestam”.
105

observamos que a linguagem da pintura, avessa ao mecanismo das palavras, beneficia o


universo da pintura, na medida em que se fundamenta de signos que são estranhos ao uso
cotidiano do sujeito; ou melhor: diferentemente da linguagem que o escritor utiliza como
material de sua arte e como falante, a pintura instaura uma nova forma de comunicação com o
mundo. O filósofo aproveita essa ideia para defender que, por outro lado, a linguagem só será
compreendida quando observadas as fissuras existentes entre os signos e os sentidos ou
quando também se perceber o fundo sobre o qual ela se sedimenta: uma linguagem tácita, na
qual repousa toda uma relação com o sentido.
Como podemos observar, as ideias, de fundo, de linguagem indireta e de silêncio
vêm ganhando corporeidade no prosseguimento do pensamento desse filósofo e o objetivo,
aqui, é atingirmos esse conceito na sua formulação como invisível, esquematização realizada
em sua obra póstuma, em O visível e o invisível. O primeiro ensaio de O olho e o espírito −
último, aqui, percorrido − pertencente à última fase de Merleau-Ponty, foi escrito no verão de
1960. Esse ensaio homônimo condensa, em certa medida, as ideias da última fase do filósofo.
O seu primeiro alvo é a ciência, no seu gesto de manipular as coisas por intermédio de
conceitos. Não podemos esquecer que o tema central desse ensaio é a pintura, tema, também,
dos outros dois, anteriormente percorridos. A pintura serve como um contrapeso para a
análise da ciência, viabilizando um encontro sem entremeios do corpo com o mundo. O
idealismo da primeira fase de Merleau-Ponty é combatido por meio do envolvimento entre
esses dois polos. A relação com o “fundo” das coisas − iniciada e desenvolvida em todo o seu
pensamento filosófico – é essencial para que se consiga desestruturar o dualismo. Esse gesto
é, então, iniciado com o estabelecimento de um novo olhar sobre a vida, um olhar filosófico,
que busca habitar as próprias coisas.
Merleau-Ponty percorre a pintura visando encontrar seu papel ontológico em
relação à compreensão do ser. Esse foco no olhar ou na realização da percepção por meio da
pintura se apresenta como uma fórmula para investigação do mundo. O filósofo se propõe a
mostrar que o ser é incognoscível por vias teóricas, que há a necessidade de outro caminho,
para que se alcancem as coisas. Na verdade, o interesse do filósofo não está no decalque −
porque sua concepção de pintura se afasta dessa noção –, mas no gesto que o pintor
empreende para refletir os movimentos do corpo na percepção: “[...] [o]ra, a arte, e
especialmente a pintura, abeberam-se nesse lençol de sentido bruto”213. Como bem expressa o
título do ensaio “O olho e o espírito”, a questão central está no gesto do olhar; ou melhor: não

213
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 17.
106

apenas no sentido de ver − o que reduziria o movimento do corpo na inspeção do mundo –,


mas no “traçado de visão e de movimento”214. É nessa imbricação dos sentidos que o ver se
apresenta como antecipação das coisas, como possibilidade de se juntar a elas. O filósofo
afirma que o ver depende desse movimento do corpo, já que “[...] [s]ó se vê o que se olha”215.
É a partir do movimento do corpo em direção às coisas que o filósofo articula a
ideia de que “o corpo é ao mesmo tempo vidente e visível”. Essa concepção é antecipada pelo
termo enigma; ou seja: a proposta de Merleau-Ponty, nesse ensaio, é percorrer essa
reflexibilidade entre as coisas e o “corpo”. Essa é uma das ideias que perduram em O visível e
o invisível e que antecipa a complexidade do pensamento da terceira fase de sua filosofia:

[...] [v]isível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está
preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê
e se move, ele mantém as coisas em círculo a seu redor, elas são um anexo
ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem
parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo.
Essas inversões, essas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão
é tomada ou se faz do meio das coisas, lá onde persiste, como a água-mãe no
cristal, a indivisão do senciente e do sentido (MERLEAU-PONTY, 2013, p.
20).

Essa ideia do filósofo fixa-se no dilema da percepção, e é articulada com o propósito de


percorrer a relação do vidente e do visível. Sua preocupação central se manifesta na vontade
de destrinchar os meandros do movimento do olhar. Percebemos, nesse momento, a mudança
de rumo que sua filosofia vem sofrendo; compreendemos que o seu pensamento pende mais
para o alcance da ontologia. É como se, para atingir esse nível onde as coisas se encontram,
fosse necessária uma comunhão com elas. A ideia de carne216 – lançada na citação anterior −
é um dos sinais de que o caminho que se toma é, agora, outro.
Merleau-Ponty singulariza o humano por sua capacidade de reversibilidade sobre
si mesmo e sobre o mundo. Nesse poder de tocar e ser tocado – em uma aglomeração dos
sentidos perceptivos e não, apenas, na manifestação do tato –, o homem se concebe como
pertencente ao “estofo do mundo”. O interesse desse filósofo pela Pintura está na

214
Ibidem, p. 18.
215
Ibidem, p. 19.
216
Essa ideia é desenvolvida, em O visível e o invisível, quando Merleau-Ponty afirma que “[...] essa carne que se
vê e se toca não é toda a carne, nem essa corporeidade maciça, todo o corpo. A reversibilidade que define a carne
existe em outros campos, é mesmo incomparavelmente mais ágil, e capaz de estabelecer entre os corpos relações
que desta vez, além de alargarem, irão definitivamente ultrapassar o campo do visível” (2012, p. 140). A carne é,
então, detentora da própria relação ou engloba os termos dela: mais adiante, esse termo será destrinchado.
107

possibilidade de decifração dessa relação, um dos exemplos repetitivos está na postura de


Cézanne, na sua busca por decifrar uma interioridade da natureza. A incógnita se apresenta
nesse espaço de aproximação entre corpo e coisas ou na tentativa de desacreditar o
distanciamento. Nisso, a onipresença, na discussão, da noção de perspectiva, entendida como
essa chamada das coisas em direção ao corpo. Descrever essa “distância” é uma maneira de
compreender e articular o pensamento no sentido decifrar os níveis de envolvimento entre os
“corpos”. A pintura tem o poder de demarcar esse caminho traçado entre o corpo e as coisas,
de pôr essa relação a descoberto. É por meio da discussão do papel da arte – especialmente, da
pintura – que Merleau-Ponty aborda, também, a questão do imaginário.
Como no ensaio “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, em que o filósofo
se aproximou da ficção, quando discutia a Pintura, percebemos que, em “O olho e o espírito”,
novamente, temas vinculados à representação são abordados, no intuito de justificar o próprio
manuseio da arte como forma de se pensar a filosofia. A questão, primeiramente, abordada,
nesse terceiro ensaio, diz respeito à concepção de imagem: o filósofo se afasta de sua
vinculação à ideia de decalque da natureza. A arte é definida, então, como “uma duplicidade
do sentir”, como uma maneira diversificada de se relacionar com o mundo. A partir da
formulação da ideia de imagem, o filósofo conclui seu pensamento, estabelecendo seus
valores para a noção de imaginário. Afastando-se da ordem do falso, Merleau-Ponty articula o
imaginário como uma posse subjetiva do mundo: “[...] o quadro só é um análogo segundo o
corpo, porque ele não oferece ao espírito uma ocasião de repensar as relações constitutivas
das coisas, mas sim ao olhar, para que as espose, os traços da visão do dentro, à visão o que a
forra interiormente, a textura imaginária do real”217. O olhar se torna uma chave de abertura e
antecipação para o todo sensitivo; é por meio do ver que descobrimos as nuances visíveis dos
outros sentidos. É nesse ponto que a ideia de espírito é tocada, primeiramente, como essa
capacidade de atingir as coisas, antecipadamente: “[...] o pintor, qualquer que seja, enquanto
pinta, pratica uma teoria mágica da visão. Ele precisa admitir que as coisas entram nele o que,
segundo o dilema sarcástico de Malebranche, o espírito sai pelos olhos para passear pelas
coisas”218.
É a partir de um posicionamento mais vigoroso em relação ao ver que o filósofo
percebe a reversibilidade das coisas: essa seria a definição mais aproximada do termo “carne”,
como o conjunto dos ajustes entre vidente e visível. Merleau-Ponty chega a afirmar que
alguns pintores relatavam não apenas o que viam, mas, também, “o que as coisas viam deles”,

217
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 22.
218
Ibidem, p. 24.
108

nesse movimento de delinear a totalidade do ver. A perspectiva, novamente, é tratada como


essa entrada do corpo em regiões que são melhor analisadas por um aparato ontológico. A
pintura tem o poder de recobrir o espaço que, corriqueiramente, não é visto: “[...] [o] que
chamo profundidade é nada ou é minha participação num ser sem restrição, e primeiramente
no ser do espaço para além de todo ponto de vista”219. A aderência do corpo ao mundo não é
sentida em uma visão bidimensional, mas a pintura reflete, além disso, nosso posicionamento
no mundo, nossa inscrição no espaço. Essa relação entre corpo e mundo não é precedida pelo
pensamento, Merleau-Ponty desvia-se da tese cartesiana, afirmando que o primeiro nível que
precede toda a percepção nasce no aqui do corpo: a visão é defendida como um pensamento
condicionado220 pelo corpo.
A profundidade se apresenta em todos os modos do espaço, porque ela é, também,
entendida como a “reversibilidade das dimensões” na aderência do homem ao mundo. Há um
jogo de posicionamento das coisas mediante o movimento daquele que as percebe. É nessa
mobilidade entre figura e fundo que as coisas ganham dinamismo e se movimentam com o
olhar. Merleau-Ponty percebe esse jogo de luz nestes termos: “[...] [é] essa animação interna,
essa irradiação do visível que o pintor procura sob os nomes de profundidade, de espaço, de
cor”221. Essa potência da pintura é demonstrada pelo filósofo nas palavras de Rodin, quando
compara um cavalo fotografado com os cavalos de Géricault, como esses últimos correm
sobre a tela: “[...] [é] o artista que é verídico, e a foto é que é mentirosa, pois, na realidade, o
tempo não para”222. O filósofo conclui que a pintura está “sempre no carnal”, no movimento
tempo-espaço.
Na verdade, o dilema do ver não se encontra apenas na profundidade ou não se
manifesta apenas nesse espaço de comunicação entre as coisas, Merleau-Ponty afirma que
“[...] [j]á que profundidade, cor, forma, linha, movimento, contorno, fisionomia são ramos do
ser, e cada um deles pode trazer consigo toda a ramagem, não há em pintura “problemas”
separados”223. Essa capacidade de interação das partes do visível ou de seu movimento em
relação ao vidente permite que sempre haja um rearranjo no todo ou, nas palavras desse

219
Ibidem, p. 33.
220
Rosati propõe um paralelo interessante entre “consciência constituinte” e reflexão nestes termos: « [...] Pour
trouver une médiateté qui n’implique pas nécessairement une conscience constituante il faut renoncer au concept
de réflexion ; ainsi la médiateté est-elle confiée à la structure du langage » (ROSATI, 2009, p. 52). Essa relação
com a linguagem será discutida, posteriormente, neste capítulo. [Tradução nossa: “[...] Para encontrar uma
mediação que não implique necessariamente uma consciência constituinte, é necessário renunciar ao conceito de
reflexão; assim, a mediação é confiada à estrutura da linguagem”].
221
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 45.
222
Ibidem, p. 50.
223
Ibidem, p. 54.
109

filósofo, “[...] que o próprio do visível é ter um forro de invisível em sentido estrito, que ele
torna presente como certa ausência”224. É nessa relação do parcial com uma totalidade, no
movimento de leitura das formas e cores, que se descobrem esses ramos do invisível. O texto
finaliza registrando essa relutância das coisas de se mostrarem, e essa dissidência sinaliza a
manutenção de um diálogo iterativo do corpo com o mundo. O invisível é sinalizado nesses
meandros entre as coisas; ou seja: faz-se ver por intermédio daquilo que se mostra, como
parcela do visível. Focando-se nessa relação entre aquilo que se vê e aquilo que se oculta,
temos a obra póstuma de Merleau-Ponty: O visível e o invisível.
Merleau-Ponty reúne o ser e o objeto em um organismo híbrido: o ser-objeto e o
ser-sujeito. Deslocando-se das antinomias, defende um retorno à ontologia, para que esses
conceitos sejam revistos em uma abordagem sem uso dos sinais de oposição. A relação entre
o corpo e o mundo deixa de se realizar no plano de uma materialidade para se propagar no
movimento vidente-visível, como um diálogo constante com o indeterminado. Buscando
esclarecer esse envolvimento, Merleau-Ponty traz novamente a filosofia reflexionante,
afirmando que sua negativa de que seja possível a relação exterior entre o mundo e o homem
é verdadeira. É nesse clima de reenvios múltiplos entre o ser pensante e o ser pensado que se
constrói uma estrutura de conhecimento. Essa ideia é articulada nestes termos: em meio a uma
ligação pré-lógica, o mundo passa a ser um desconhecido que reclama uma investigação, uma
entrega do corpo. Esse encontro possibilita a indefinição em separado dos dois vetores,
porque se abandona a pré-reflexão daquilo que seja o mundo e do que seja o homem. Esse
paralelo entre reflexão e irrefletido é, posteriormente, substituído225 pelo entrelaçamento entre
linguagem e silêncio: a contraposição dos dois primeiros termos é posta de lado pela relação
carnal entre os dois últimos termos.
O pensamento final de Merleau-Ponty reclama um entrelaçamento genuíno com o
mundo, por intermédio do conceito desenvolvido em “O olho e o espírito”: de carne 226. A
relação plena com as coisas se manifesta na razão de uma interdependência:

224
Ibidem, p. 53.
225
Rosati, assim, trabalha essa ideia: « [d]e cette manière toute la problématique relative au rapport entre réflexion
et irréfléchi est reportée à l’entrelacement du langage et du silence, deux termes qui semblent aussi plus faciles à
gérer, puisqu’ils ne s’opposent pas forcément comme dans le cas de la contradiction absolue entre réflexion et
irréfléchi » (ROSATI, 2009, p. 52). [Tradução nossa: “Desta maneira, toda problemática relativa à relação entre
reflexão e irrefletido é direcionada ao entrelaçamento da linguagem e do silêncio, dois termos que parecem,
também, mais fáceis de gerir, já que eles não se opõem completamente, como no caso da contradição absoluta
entre reflexão e irreflexão”].
226
FERRAZ (2009, p. 252) assim define esse termo: “[...] [e]ssa comunidade sensível entre o mundo e os corpos,
responsável tanto por justificar os conteúdos percebidos quanto a possibilidade de relações intersubjetivas, é
exprimida por Merleau-Ponty pela noção de carne”.
110

[...] [n]ão há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que, em seguida, se


oferecem a quem vê, não há um vidente, primeiramente vazio, que em
seguida se abre para elas, mas sim algo de que não poderíamos aproximar-
nos mais a não ser apalpando-o com o olhar, coisas que não poderíamos
sonhar ver “inteiramente nuas”, porquanto o próprio olhar as envolve e as
veste com sua carne (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 128).

O filósofo propõe-se a consolidar um espaço em que ocorre essa perspectivação do todo, em


que as relações se projetam no âmbito de uma interação plena. Essa razão é equacionada nos
termos de que o corpo e o mundo se constituem de um mesmo estofo227. O giro de Merleau-
Ponty já tinha sido dado, quando agudiza, em “O olho e o espírito” o dilema da visão − como,
também, toda a mobilidade ou sensitividade do corpo − como propiciadora da relação do
corpo com o mundo. A indivisão se processa no meio das coisas ou em ato, e a percepção é
que promove, sobre uma base comum, a plena interação. É na dialética de uma nega-intuição
– no atrito entre o negativo e sua borda de positividade – que se gesticula a relação entre o
visível e o invisível: a seguir, precisamos esses dois termos.

2.2.2.2 Visível e Invisível: uma tentativa de definição

Segundo Barbaras, o texto essencial para que se compreenda os termos – visível e


invisível – está no fragmento de O visível e o invisível intitulado “L’entrelacs, le chiasme”.
Barbaras pontua que «[...] [i]l n’est pas certain, à notre sens, que ce chapitre ait dû faire partie
de l’oeuvre définitive : C. Lefort relève d’ailleurs qu’il n’est pas mentionné dans le dernier
projet de plan dont nous disposons daté de novembre de 1960 »228. Segundo alguns
estudiosos, esse fragmento aparece como um esquema no qual o filósofo testava conceitos
que pretendia desenvolver. Estão aí a riqueza e profundidade dessa última parte da discussão
do livro póstumo. Visando definir o visível e expor sua concretude, Merleau-Ponty
desenvolve outra ideia: a de quiasma, entendido como junta que promove a própria relação do
visível com o invisível. Compreender o quiasma é prerrequisito para que se atinjam essas
noções ou para que se encontre a própria noção de carne. Todas essas ideias
merleaupontyanas serão desenvolvidas no decorrer deste estudo.

227
Em Saer, percebemos a defesa de uma relação consubstancial do homem com o mundo; em La Ocasión, o
protagonista Bianco afirma que “[...] [l]a materia es el corolario del espíritu; lo que creemos percibir no hacemos
más que representárnoslo; nos representamos lo rugoso, y nos representamos las yemas de los dedos con las que
creemos tocar lo rugoso” (SAER, 2003, p.75).
228
BARBARAS, 1991, p. 175: “[...] [n]ão é certo, em nosso entendimento, que esse capítulo faria parte do
trabalho definitivo: C. Lefort sublinha, aliás, que ele não é mencionado no último projeto do plano do livro que
temos à disposição, datado de novembro de 1960” (Tradução nossa).
111

Esse esquema conceitual é compreendido por meio de outro: o de reversibilidade


ou do encontro com a cisão do corpo próprio. Desde a obra de 1945, Merleau-Ponty já discute
a possibilidade de coincidência entre o tocar e o ser tocado ou como se processa a
reversibilidade. Segundo ele, é amplamente discutida a coincidência entre os dois sentidos; na
Fenomenologia da Percepção, ele afirma a impossibilidade de o corpo se apresentar como
objeto: “[...] [o] que o impede de ser alguma vez objeto, de estar alguma vez "completamente
constituído", é o fato de ele ser aquilo por que existem objetos. Ele não é nem tangível nem
visível na medida em que é aquilo que vê e aquilo que toca”229. Essa explicação apresenta os
germes da proeminência do sujeito sobre o mundo; já na obra póstuma, percebemos uma
mudança na formulação da ideia, mas mantém-se negativa de uma coincidência total entre os
termos.
Assim, corrói-se a distinção sujeito e objeto, na última filosofia de Merleau-
Ponty: « [...] [l]’être-touchant et l’être-touché, au niveau de la main, ne sont pas extérieurs
l’un à l’autre – ce serait là restaurer la positivité d’une conscience et, partant, son face-à-face
avec le pur objet : ils sont l’envers l’un de l’autre »230. Mantém-se o pensamento da
reversibilidade incompleta, porque a negativa de coincidência contribui para a experiência
espacial. É no intercâmbio da percepção que a experiência não se estaciona em um monismo:
o que desestruturaria o próprio movimento do visível e do invisível, por exemplo. É na
incompletude que se mantém a relação ou a própria experiência espacial: « [...] l’expérience
originaire de l’espace doit être caractérisée par l’irréversibilité: la profondeur désigne le pôle
d’une orientation qui est en quelque sorte existentielle tout autant que spatiale, qui va d’un ici
vers un là-bas, sans inversion possible »231. A profundidade representa bem o campo da
irreversibilidade, já que, como espaço de junção, sua proposta está, também, na indefinição
entre as coisas e o corpo. A relação com o indeterminado − como se discute desde a obra de
1945 − representa a própria realidade do fenômeno, da experiência. Não há coincidência pelo
fato de a reversibilidade completa representar o fim do comportamento entre o visível e o
invisível, a suspensão da latência entre o determinado e o indeterminado.
É a partir desse movimento da reversibilidade que se lança o conceito de quiasma,
que também intitula a última parte de O visível e o invisível. O quiasma, então, representa a

229
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 136.
230
BARBARAS, 1991, p. 182: “O ser-tocante e o ser-tocado, ao nível da mão (do tocar), não são exteriores um ao
outro – isso seria restaurar a positividade de uma consciência e, portanto, sua face a face com o objeto puro: eles
são o inverso um do outro” (Tradução nossa).
231
BARBARAS, 1991, p. 249: “[...] a experiência originária do espaço deve ser caracterizada pela
irreversibilidade: a profundidade designa o polo de uma orientação que é de alguma forma tanto existencial
quanto espacial, que vai de um aqui em direção a um lá longe, sem inversão possível” (Tradução nossa).
112

reversibilidade ou a própria relação entre o tocar e o ser tocado. Não se pode esquecer que a
reversibilidade nunca é completamente realizada, já que “[...] l’accomplissement de la
réflexivité correspondrait à une scission du corps propre: si une coïncidence effective, une
pure subjectivité, pouvait advenir en lui, ce sujet n’aurait pas de corps, ce corps ne serait pas
le sein, il émigrerait du côté du monde objectif” 232. A filosofia final de Merleau-Ponty pode
ser condensada no conceito de motricidade − próximo tema nesta discussão sobre as
derradeiras ideias do filósofo francês − como movimento que salvaguarda a relação plena do
corpo com o mundo. O processo de reversibilidade se manifesta, então, como que incompleto,
porque a fusão acarretaria a objetividade. Merleau- Ponty afirma que “[a] verdade é que a
experiência de uma coincidência só pode ser, como diz Bergson frequentemente,
“coincidência parcial””233. O filósofo, então, apresenta a coincidência por intermédio da
metáfora do recobrimento, em que os elementos se apresentam como que sempre distintos.
Nesse esforço para definir o quiasma, o filósofo recorre à ontologia da visão como
forma de apresentar a relação entre o visível e o vidente como que encarnada. Essa ideia de
carne, então, retoma o movimento de reversibilidade, como esse ir e vir entre dois termos que
não se unificam: « [...] la vision ne se distingue pas du monde, le monde ne s’en distingue pas
non plus; l’incarnation, qui fonde l’identité de la vision au monde, signifie tout autant
l’identité du monde à la chair »234. Então, a identificação é atingida por intermédio da noção
de carne; ou seja: nesse termo, entremesclam-se a dualidade sujeito e objeto. Merleau-Ponty
privilegia o sentido da visão como forma de encenar esse movimento: aquele que vê participa
do mundo que percebe, está no “mesmo nível do percebido”235. A ontologia do visível está na
proposta de se perseguir as bases de entrelaçamento daquilo que se propaga no visível.
Buscando definir o termo “quiasma”, Barbaras estabelece uma relação com o conceito
esquecimento, que é apresentado como um lugar não-preenchido:

[...] [a]ussi, peut-être est-ce en ayant recours au concept d’oubli que l’on
rejoindrait au plus près ce que Merleau-Ponty tente de nommer à travers la
notion de chiasme. L’oubli peut être caractérisé par une double dimension.
Par opposition à l’ignorance, il ne doit pas être conçu comme la négation ou
l’absence, mais comme un certain mode de présence de ce dont il est l’oubli.

232
BARBARAS, 1991, p. 182: “[...] o cumprimento da reflexividade corresponderia a uma cisão do corpo próprio:
se uma coincidência efetiva, uma pura subjetividade, pudesse advir nele, esse sujeito não teria corpo, esse corpo
não seria o seio, ele emigraria do lado do mundo objetivo” (Tradução nossa).
233
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 120.
234
BARBARAS, 1991, p. 186: “[...] a visão não se distingue do mundo, o mundo, também, não se distingue; a
encarnação, que funda a identidade da visão no mundo, significa tanto quanto a identidade do mundo na carne”
(Tradução nossa).
235
BARBARAS, 1991, p. 187.
113

En tant qu’apparenté à ce qui en lui n’est encore que voilé, incarné, le monde
est bien un lieu d’oubli (BARBARAS, 1991, p. 189)236.

Barbaras contrasta a rememoração ao esquecimento, defendendo que, nos dois termos, a falta
de alguma coisa não é ignorada, mas, no esquecimento ela é apenas latência. Assim, é
impossível que essa falta seja preenchida, porque se desconhece o teor dessa ausência. Esse
espaço vazio está relacionado com um sentido perdido, sendo, então, responsável pelo
movimento no interior do Ser, pelo próprio quiasma.
Essa incapacidade de estabelecer os limites entre a falta e a presença estrutura
uma relação de trocas múltiplas em que o que realmente importa é o movimento. O quiasma é
também nomeado, no texto de Merleau-Ponty, de entrelaçamento: defende-se o recobrimento
das coisas e do corpo que “olha” ou que sente. Essa ideia traz o conceito de carne, na medida
em que as coisas se mostram como que pertencentes ao próprio ato de olhar; ou melhor:
coexistentes em um mesmo elemento, porque:

[n]ão há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que, em seguida, se


oferecem a quem vê, não há um vidente, primeiramente vazio, que em
seguida se abre para elas, mas sim algo de que não poderíamos aproximar-
nos mais a não ser apalpando-o com o olhar, coisas que não poderíamos
sonhar ver “inteiramente nuas”, porquanto o próprio olhar as envolve e as
veste com sua carne (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 128).

O quiasma é essa relação em que as coisas se entregam ao olhar como que pertencentes ao
próprio ato de ver. Esse entrelaçamento só é possível porque o mundo e as coisas se mostram
como que constituídas pelo mesmo “estofo”. O conceito de quiasma assegura que a ontologia
de Merleau-Ponty não caia em um monismo: a noção de esquecimento ou de sentido
irrecuperável – como um todo – assegura o movimento entre as coisas e os corpos.
Pensar que toda a relação se perfaz pela incompletude, pelo movimento de trocas
múltiplas entre as coisas e os corpos, adiantam-nos os conceitos-chave deste capítulo, o de
visível e o de invisível. O processo do olhar – priorizado na análise da relação corpo e mundo
em Merleau-Ponty – se realiza em comunhão com o mundo: o ver se manifesta como o
descobrimento incessante de um sentido sempre mais distante. O filósofo chega a afirmar que

236
Tradução nossa: “[...] Também, talvez seja tendo como recurso o conceito de esquecimento, que se pode
aproximar mais do que Merleau-Ponty tenta nomear por meio da noção de quiasma. O esquecimento pode ser
caracterizado por uma dupla dimensão. Por oposição a ignorância, ele não deve ser concebido como negação ou
falta, mas como certo modo de presença do que é o esquecimento, enquanto que, aparentado ao que nele é ainda
somente escondido, encarnado, o mundo é bem um lugar de esquecimento”.
114

a distância é responsável pelas mudanças de percepção das coisas e que a passagem entre uma
certeza e outra não desautoriza aquilo que, antes, era tido como verdade: todas as nuanças do
ver são autorizadas. Essa incompletude da percepção é assegurada pela relação entre o visível
e o invisível. Segundo Barbaras:

[l]e recours aux notions de visible et d’invisible vise à définir l’être du


monde en-deçà de l’opposition du fait et du sens, à montrer que le propre du
sens c’est de se dissimuler sous la forme du visible, que le propre du visible
est, corrélativement, d’être un mode de présentation du sens. Le sens est
invisible, et le sensible est cette négation, cette invisibilité du sens
(BARBARAS, 1991, p. 191)237.

É possível percebermos a complexidade desses conceitos na exposição de Barbaras: a relação


não se media pela oposição, mas pelo entrelaçamento. O visível não se oferece como o
contrário do invisível, mas como uma dobra que o complementa, por meio de um mecanismo
de interação.
Merleau-Ponty se esmera em desestruturar o pensamento filosófico que se assenta
na reflexão ou na coincidência, afirmando que ele prejulga o que encontrará no mundo. É no
escopo de desvirtuar essa vertente que esse filósofo defende uma “invaginação” dos corpos e
das coisas, por meio do conceito de carne. Essa estrutura é explanada nestes termos: “não há
coisas idênticas a si mesmas”, já que “o próprio olhar as envolve e as veste com sua carne”
238
. Atendo-nos primeiramente ao visível – não subtraindo a diferença de se conceituar em
separado os dois termos –, temos que o filósofo defende o visível como a superfície de uma
profundidade. Tendo em vista a complexidade inerente ao esforço para se definir a
profundidade, tendo em vista que esse espaço se apresenta como a própria possibilidade de
encontro com o mundo, adianta-se, então, a radicalidade do conceito de visível. Salienta-se
seu aspecto de frequente recuo a uma delimitação de espessura, já que sua superfície depende
da relação com o invisível. Merleau-Ponty afirma que “o visível total está sempre atrás, ou
depois, ou entre os aspectos que dele se vêem, só há acesso até ele graças a uma experiência
que, como ele, esteja inteiramente fora de si mesma”239.
O filósofo considera essa característica do visível um paradoxo do Ser, porque o
contato e a aproximação se dão pelo iterativo movimento de recuo. A superfície de

237
Tradução nossa: “O recurso às noções de visível e de invisível visa definir o ser do mundo superando a
oposição do fato e do sentido, mostrar que o próprio do sentido é se dissimular sob a forma do visível, que o
próprio do visível é, correlativamente, de ser um modo de apresentação do sentido. O sentido é invisível, e o
sensível é esta negação, esta invisibilidade do sentido”.
238
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 128.
239
Ibidem, p. 133.
115

profundidade − que é dada como a definição do visível – demonstra uma protuberância


deslocada, que não se manifesta concretamente. Esse retorno à discussão da profundidade diz
muito sobre o entrelaçamento entre os termos visível e invisível e, mais do que isso,
demonstra que seu lugar somente é estabelecido na experiência. O visível, então, se manifesta
em graus em conformidade com o distanciamento daquele que vê. Entre as várias visões que
se instauram de acordo com a distância do observador, percebemos não a redução entre o
falso e o verdadeiro, mas a relação em graus entre o corpo e as coisas. Como o filósofo afirma
na citação acima, o visível nunca se releva em totalidade: a experiência é mantida por
iterativos recuos;

[l]a convenance ontologique de la vision et du visible signifie que le monde


la transcende de toute son opacité, que la vision ne peut percer la texture
ontologique dont elle est faite, et c’est cette transcendance même qui est
condition de la visibilité (BARBARAS, 1991, p. 185)240.

O indeterminado se apresenta, novamente, como condição de possibilidade do


fenômeno. Essa transcendência se revela no intricado posicionamento entre o visível e o
invisível, como bem afirma Zielinski:

[...] [c]’est ce dépassement incessant du monde sur la perception que


Merleau-Ponty développe dans Le visible et l’invisible avec la notion de
chair – c’est « la transcendance du monde comme transcendance » qu’il
s’agit de penser. Ce dépassement, ou encore ce caractère irreductible de
l’invisible appartenant au visible même, c’est cela qu’il faut comprendre
comme transcendance (ZIELINSKI, 2008, p. 219)241.

Percebemos como o conceito de carne se conjuga com o de transcendência ou como o


primeiro termo se manifesta na relação do visível com o invisível. O enfoque é posto no
comportamento entre o ver e o ser visto como que pertencentes ao mesmo ato. Essa
mobilidade preserva a inter-relação e a carne se mostra como o elemento que integra em si o
mundo e aquele que percebe. Nesse ato de entrelaçamento, solapa-se o dualismo sujeito e
objeto: ao mesmo tempo em que o sentido está nas coisas, o mundo se mostra sensível. O
invisível se manifesta como que retido no interior do visível, como um sentido puro: « [...]

240
Tradução nossa: “A conveniência ontológica da visão e do visível significa que o mundo a transcende de toda
sua opacidade, que a visão não pode atravessar a textura ontológica da qual ela é feita, e é essa transcendência
mesmo que é condição da visibilidade”.
241
Tradução nossa: “[...] É este ultrapassar incessante do mundo sobre a percepção que Merleau-Ponty
desenvolve, em O visível e o invisível, com a noção de carne – é « a transcendência do mundo como
transcendência » que se busca pensar. Esse ultrapassar, ou, ainda, este caráter irreduzível do invisível
pertencendo ao visível mesmo, é isso que se deve compreender como transcendência”.
116

[c]haque terme n’est lui-même qu’en passant dans son autre, ou plutôt, il n’y a pas deux
termes mais un lieu où ils sont destinés l’un à l’autre »242.
É nesse esquema de entrelaçamento que falar em carne, “c’est penser la présence
comme horizon”243. Retomamos, então, o conceito de horizonte como esse mundo em
abertura, como a manifestação da própria transcendência. Zielinski (2008) define a
transcendência como a carne – como podemos deduzir da sua citação acima – e defende que
ela se manifesta na experiência da reversibilidade. Esse ajustamento entre o tocante e o tocado
possibilita que se manifeste um espaço de intervalo em que a coincidência é sempre adiada.
Da mesma forma, podemos falar do visível e do invisível como prolongamentos de posições
que nunca se anulam e, assim, “[...] comprendre l’invisibilité comme « puissance » du
visible”244. Esse jogo é mantido pelo quiasma245, pela relação sem limites entre o corpo e o
mundo, em que o sentido está no interior, como que pertencente às coisas e ao corpo:

[u]ne chose parfaitement accomplie, essentiellement individuée cesserait


d’être chose, se dissoudrait dans l’universalité du concept : il n’y a donc
d’unité de la chose qu’en tant que cette unité ne peut être close, confondue
avec une forme tenant lieu de principe et distinguée de l’individu dont elle
assure l’individualité (BARBARAS, 1991, 214)246.

Percebemos, aí, como Barbaras explicita o quiasma como força que consolida a
própria existência das coisas. É um posicionamento que prioriza a experiência, que consolida
a relação do corpo com o espaço como propiciadora da própria materialidade do mundo. As
coisas se apresentam nesse intervalo com o mundo, porque “[...] universalité et indiviadualité
naissent ensemble” e, complementando essa ideia, “[...] il n’y a de totalité que distribuée en

242
BARBARAS, 1991, p. 192: “[...] Cada termo é somente ele mesmo passando dentro de seu outro; ou melhor:
não há dois termos, mas um lugar onde eles são destinados um ao outro” (Tradução nossa).
243
Ibidem, p. 202: “é pensar a presença como horizonte” (Tradução nossa).
244
Ibidem, p. 195: “[...] compreender a invisibilidade como « potência » do visível” (Tradução nossa).
245
Barbaras conceitua o quiasma nestes termos: « [a]insi, il faut caractériser comme chiasme la relation de la
chose au monde: la chose est chose du monde, elle est tout entière en lui, mais le monde est tout entier en elle.
Elle fait paraître le monde, en elle le monde lui-même s’exhibe, de sorte qu’elle se fait monde, n’est rien d’autre
que lui ; mais c’est à la condition que celui-ci ne soit pas un abîme d’en soi, qu’il reflue tout entier en chaque
chose, qu’à son tour il ne soit rien d’autre qu’elle » (BARBARAS, 1991, p. 219). [Tradução nossa: “Assim, é
necessário caracterizar como quiasma a relação da coisa no mundo: a coisa é coisa do mundo, ela está totalmente
nele, mas o mundo está totalmente nela. Ela faz aparecer o mundo, nela o próprio mundo se exibe, de sorte que
ela se faz mundo, não é nada mais do que ele; mas é na condição de que isso não seja um abismo de si que ele
reflua totalmente em cada coisa, que, por sua vez, ele não seja nada menos do que a própria coisa”].
246
Tradução nossa: “Uma coisa perfeitamente completa, essencialmente individualizada, cessaria de ser coisa, se
dissolveria na universalidade do conceito: não há, portanto, unidade da coisa, como unidade fechada, confundida
com uma forma, tendo lugar de princípio e distinguida do indivíduo do qual ela assegura a individualidade”.
117

ses parties”247. Nessa ordem, o visível adquire uma posição menos localizada, em que seus
limites se manifestam como que esparsos, dependentes da relação do interno com o externo
ou do próprio invisível. É nesse momento da experiência que não se divisam as posições do
corpo e do mundo, mas se promove abertura ao horizonte do mundo. Essa dificuldade de
representar o mundo é apontada por Merleau-Ponty como um sinal da pluralidade de sentidos
que lhe é inerente248. É nessa encruzilhada de sentidos que o conceito de carne é manifesto
como o eixo entre o corpo e as variantes de sentidos que são reveladas na relação com o
mundo; ou seja: o corpo se inscreve no mundo como forma de cristalização do universal, de
materialização do próprio mundo: a possibilidade do universal se dá no corpo:

[b]ref, c’est finalement parce que le corps est plus « monde » que les choses
qu’il est plus « soi » que le monde. Il donne à voir les choses devant lui
parce qu’il vient de derrière le spectacle, de sorte que la perception est bien
phénoménalisation du monde, aux deux sens génitif. Comprise jusqu’au
bout, la chair apparaît comme l’unité déhiscente du Fait et de l’Unversel.
Parce que le monde est fait de cette chair, de ces dimensions, de ces axes
dont mon corps est le pivot, il est un monde incarné, c’est-à-dire
transcendant (BARBARAS, 1991, p. 233)249.

A carne é, então, esse lugar em que se cruza a dimensionalidade do mundo no


corpo, em que espaço e tempo se apresentam como que adjuntos em um mesmo esquema de
contiguidade. Essa pregnância é visualizada, principalmente, por meio do conceito de
profundidade, no qual a relação se efetua no entremeio entre as coisas. Merleau-Ponty
sintetiza essa ideia afirmando que as coisas são o próprio lugar, porque trazem em seu bojo a
própria realidade do mundo. A profundidade se apresenta como a materialidade do invisível,
como o espaço em que se faz possível a copresença de todas as coisas. Assim, o invisível se
manifesta como que adjunto ao visível, sendo, portanto, impossível tratar esses conceitos

247
Ibidem, p. 218: “[...] universalidade e individualidade nascem juntos” e complementando a ideia “[...] não há
totalidade a menos que distribuída em suas partes” (Tradução nossa).
248
Barbaras assim desenvolve esse tema: « [...] [r]econnaître qu’une présentation exhaustive et frontale du monde
est impossible, c’est comprendre que la pluralité des sens leur est consubstantielle. Tout comme chaque sens
n’est que comme la différence des sensibles qui sont de son ressort, la sensibilité même n’advient que comme
différence entre les sens » (BARBARAS, 1991, p. 230). [Tradução nossa: “[...] [r]econhecer que uma
apresentação exaustiva e frontal do mundo é impossível é compreender que a pluralidade dos sentidos lhes é
consubstancial. Assim como cada sentido é somente algo como a diferença dos sensíveis que são de sua alçada, a
sensibilidade advém somente como diferença entre os sentidos”].
249
Tradução nossa: “Resumindo, é finalmente porque o corpo é mais « mundo » do que as coisas que ele é mais
« si » do que o mundo. O corpo deixa a ver as coisas diante dele porque ele vem detrás do espetáculo, de maneira
que a percepção é exatamente fenomenalização do mundo, nos dois sentidos genitivos. Compreendida até ao
final, a carne aparece como unidade deiscente do Fato e do Universal. Porque o mundo é feito dessa carne,
dessas dimensões, desses eixos dos quais meu corpo é o pivô, ele é um mundo encarnado; isto é: transcendente”.
118

separadamente. É por meio dessa entrada que passamos, agora, ao exame do invisível e o que
perceberemos é a dificuldade de se desvincular esses dois lugares:

[l]e propos de Merleau-Ponty est de mettre en évidence une articulation


originaire et, finalement, une quasi-identité du visible et de l’invisible.
L’invisible n’est pas l’autre d’un visible conçu comme en soi positif, mais ce
qui, afin de préserver sa distance, sa puissance signifiante, se fait visible; le
visible, à son tour, n’est donc pas la négation de l’invisible mais l’élément de
sa manifestation et, en cela, un mode primitif de l’idéalité (BARBARAS,
1991, p. 273)250.

Essa afirmação resume bem os parâmetros de Merleau-Ponty, ao cunhar esses


dois conceitos. Ele se fixa no visível ou se afasta do chamado “mundo inteligível”,
priorizando a fenomenalização da experiência. Ao mesmo tempo em que o mundo sobrepassa
a percepção, esse mundo é visto como que pertencente à visão do sujeito ou à manifestação do
sensível. Quando o filósofo se põe a tratar do visível e do invisível, sua focalização recai
sobre o quiasma ou sobre a estrutura que mantém a coordenação entre esses dois termos. Essa
relação é bem trabalhada nos termos figura e fundo e Merleau-Ponty, nas notas de trabalho de
O visível e o invisível − quando discute a percepção e o esquecimento −, afirma que “[...]
[c]ompreender que o ‘ter consciência’ = ter uma figura sobre um fundo e que ele desaparece
por desarticulação – a distinção figura-fundo introduz um terceiro termo entre o ‘sujeito’ e o
‘objeto’. É essa distância que é o sentido perceptivo”251. Anteriormente, ele defendera ser o
esquecimento a reorganização entre figura-fundo, “isto é: compreender a percepção como
diferenciação, o esquecimento como desdiferenciação”252. Esse pode ser o perigo do
esquecimento: a desarticulação entre figura e fundo, o que é salvaguardado – como foi
defendido anteriormente por Barbaras – porque “[o] fato de que não se vê mais a lembrança =
não desarticulação de um material psíquico que seria o sensível”253; preserva-se a latência
dessa ausência, a possibilidade de sentir a falta.
Essa interdependência entre o visível e o invisível é estruturada no conceito
merleaupontyano de carne. Barbaras tem o cuidado de esclarecer que « [...] s’il est vrai que la

250
Tradução nossa: “O propósito de Merleau-Ponty é de pôr em evidência uma articulação originária e,
finalmente, uma quase-identidade do visível e do invisível. O invisível não é o outro de um visível concebido
como um ser positivo, mas isso que, a fim de preservar sua distância, o seu poder significante, se faz visível; o
visível, por sua vez, não é, portanto, a negação do invisível, mas o elemento de sua manifestação e, nisso, um
modo primitivo da idealidade”.
251
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 187.
252
Ibidem, p. 186.
253
Ibidem, p. 187.
119

chair est universelle, elle ne doit pas être réduit à la chair strictement corporelle »254. Assim,
os limites dos termos são afrouxados e a posição do invisível é acercada e condicionada pela
do visível. Os laços entre os conceitos se revelam na disposição dos termos em coincidir com
a própria nuança que no outro lhe é própria, assim, o visível encontra uma visibilidade no
invisível a partir do dizível255. Esse tema do dizível é caro ao filósofo, porque é uma forma de
sublinhar esse eixo que sustenta o próprio conceito de carne ou essa relação entre o visível e o
invisível: a linguagem256. Em termos do próprio Merleau-Ponty, é possível percebermos o
visível como a “superfície de uma profundidade”, como “qualidade prenhe de uma textura”
257
; ou seja: com essa pregnância do invisível que é sua própria condição de visibilidade.
Quando focamos no invisível, outro elemento que emerge é a própria nervura que
o liga ao visível: o quiasma. Ambos os conceitos se reúnem formando a carne, identificada
mais claramente, segundo Merleau-Ponty, em O visível e o invisível, na apresentação do
“outro”, – de um terceiro – esta entendida como uma “présentation d’un imprésentable”258.
Então, Merleau-Ponty visualiza, mais claramente, na relação com o outro, a manifestação do
conceito carne. Como observamos, anteriormente, é complicado sintetizar a
intersubjetividade, porque ela se manifesta na interdependência entre os corpos. Barbaras já
defendera a carne como a “décision de penser la visibilité comme être”259 ou como a
conjunção do visível com o invisível. Seguindo-se esse pensamento, percebemos que a carne
é a visibilidade de uma relação que não se equaliza. Quando se traz a relação com o outro
como forma de identificação da carne, sublinha-se, novamente, sua nuança de
intersubjetividade, já que « [...] autrui est un être qui ne se présente que comme absente, ne se
donne que comme son propre retrait, et, dans cette mesure, ce n’est pas à une conscience qu’il
se donne »260. Então, a experiência do outro é apontada como « [...] celle d’un regard, qui n’a

254
BARBARAS, 1991, p. 274: “[...] se é verdade que a carne é universal, ela não deve ser reduzida à carne
estritamente corporal” (Tradução nossa).
255
BARBARAS (1991, p. 275) desenvolve essa questão: « [...] [l]e champ du visible ne peut donc être
rigoureusement circonscrit: dès lors que le visible atteste un invisible, il ne saurait être définitivement fixé
comme le seul mode de donation de l’intelligible, il glisse au-delà de lui-même comme pur visible et s’articule à
une autre « visibilité » de l’invisible, qui est dicibilité ». [Tradução nossa: “[...] O campo do visível não pode,
portanto, ser rigorosamente circunscrito: a partir do momento em que o visível atesta um invisível, ele não
saberia ser definitivamente fixado como o único modo de doação do inteligível, ele desliza para além de si
mesmo como puro visível e se articula a outra « visibilidade » do invisível, que é o dizível”].
256
Essa discussão é desenvolvida, posteriormente, quando se discute a motricidade como base do pensamento
ontológico de Merleau-Ponty.
257
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 133.
258
Ibidem, p. 132: “apresentação de um inapresentável” (Tradução nossa).
259
BARBARAS, 1991, p. 198: “[...] decisão de pensar a visibilidade como ser” (Tradução nossa).
260
Ibidem, p. 58: “[...] o outro é um ser que se apresenta somente como ausência, que se dá somente como sua
própria retirada, e, nessa medida, não é a uma consciência que se entrega” (Tradução nossa).
120

de sens que comme épreuve de l’être-regardé »261. Barbaras, ainda, identifica a possibilidade
da experiência do outro como uma negação interna ou como “[...] mon expérience d’une
négation”262.
Essa confluência do outro no eu faz com que possamos admitir que ele também
seja sujeito da experiência. Retomando o início do raciocínio, a visibilidade da carne – a
membrura entre o visível e o invisível − se mostra, mais acentuadamente, nesse ato de relevar
a experiência do outro. Quando se visualiza essa experiência como a negativa interna de
minha própria experiência, então, percebemos o grau de interligação entre elas ou sua
dependência com relação à nossa própria experiência. Assim, a experiência do outro fere a
própria carne do sujeito, lembrando-o de seu pertencimento ao mundo, ou torna visível a
própria noção de carne, de inter-relação. É, então, dessa forma, que podemos pensar a
intersubjetividade como a realização da carne no corpo que sente:

[l]e passage à l’intersubjectivité constitue bien, au sein du sensible, un


premier pas vers l’invisible, ou plutôt, cette expérience tient lieu
d’articulation entre le plan du visible et celui de l’invisible. En effet, autrui
se constitue au niveau même de l’expérience muette, comme une extension
du rapport charnel, c’est-à-dire tout autant comme dimension de l’Être
sensible lui-même (BARBARAS, 1991, p. 279)263.

Quando discutimos, anteriormente, a profundidade como aderência do corpo ao


mundo, visualizamos esse indeterminado como a própria possibilidade de relação entre as
partes; ou seja: o invisível condiciona a própria experiência na medida em que produz um
espaço de interligação com as coisas. Quando se fala em intersubjetividade, os parâmetros se
tornam mais ontológicos, já que visualizamos, na própria carne do sujeito sentiente, a
experiência do outro ou a realização do conceito merleaupontyano de carne.
Merleau-Ponty, nas notas de trabalho de O visível e o invisível, sintetiza essa
discussão defendendo o quiasma como essa interligação de corpos na formação de uma só
carne; como o filósofo mesmo afirma, uma “unidade através das incompossibilidades”:

261
Ibidem, p. 153: “[...] aquela de um olhar, que somente tem sentido como prova do ser-olhado” (Tradução
nossa).
262
Ibidem: “[...] minha experiência de uma negação” (Tradução nossa).
263
Tradução nossa: “A passagem à intersubjetividade constitui, bem no cerne do sensível, um primeiro passo em
direção ao invisível; ou melhor: essa experiência dá lugar à articulação entre o plano do visível e o do invisível.
De fato, o outro se constitui no mesmo nível da experiência muda, como uma extensão da relação carnal; isto é:
exatamente como dimensão do próprio Ser sensível”.
121

[o] quiasma em lugar do Para Outro: isso quer dizer que não há apenas
rivalidade eu-outrem, mas co-funcionamento. Funcionamos como um único
corpo.
O quiasma não é somente troca eu-outro (as mensagens que recebe, é a mim
que chegam, as mensagens que recebo é a ele que chegam), é também troca
de mim e do mundo, do corpo fenomenal e do corpo “objetivo”, do que
percebe e do percebido: o que começa como coisa termina como consciência
da coisa, o que começa como “estado de consciência” termina como coisa
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 200).

Por outro lado, Merleau-Ponty defende que a inacessibilidade do visível – já que como
totalidade, ele sempre escapa ao olhar − pode ser reunida, no termo carne, como realização
mais pujante do visível no invisível, e vice-versa. A carne é a possibilidade de tratamento da
experiência em sua integralidade, como acercamento das filigranas do visível no plano do
invisível. O quiasma, por sua vez, é a realização da carne, as dobradiças que permitem pensar
a experiência do outro, como que pertencente à experiência do eu: é a própria nuance de
profundidade da intersubjetividade.
Essa relação entre o quiasma e a profundidade pode ser atestada nessas mesmas
notas de trabalho de Merleau-Ponty, quando esse filósofo defende a profundidade como essa
aderência das coisas às coisas, por intermédio do olhar. Da mesma forma que o quiasma
possibilita pensar a totalidade ou confere visibilidade à carne, a profundidade é o espaço em
que as coisas se apresentam em simultaneidade:

[a] profundidade é o meio que têm as coisas de permanecerem nítidas,


ficarem coisas, embora não sendo aquilo que olho atualmente. É a dimensão
por excelência do simultâneo. Sem ela, não existiria um mundo, ou Ser, mas
só uma zona móvel de nitidez que não poderia apresentar-se sem abandonar
todo o resto, - e uma “síntese” destes “pontos de vista”. Ao passo que,
através da profundidade, as coisas coexistem cada vez mais intimamente,
deslizam umas nas outras e se integram. É então ela quem faz com que as
coisas tenham uma carne: isto é, que oponham obstáculos à minha inspeção,
uma resistência que é precisamente a sua realidade, sua “abertura”, o seu
totum simul. O olhar não vence a profundidade, contorna-a (MERLEAU-
PONTY, 2012, p. 203).

Assim, a profundidade confere carne às coisas ou põe em evidência a relação do visível com o
invisível. Constatamos, na citação anterior, que o filósofo aproxima o conceito de carne dos
obstáculos que se apresentam à percepção, defendendo que esses obstáculos são a própria
condição de sua existência. É o retorno à ideia recorrente de Merleau-Ponty de que o invisível
se apresenta como condição de possibilidade do visível e de que apenas assim a visibilidade
se concretiza no conceito de carne ou nesse entrelaçamento.
122

Quando adentramos essa discussão acerca da carne e, por conseguinte, da


intersubjetividade, outro conceito de Merleau-Ponty sempre emerge: o de reversibilidade.
Anteriormente, já abordamos esse tema, mas seu desenvolvimento encontra-se no próximo
tópico deste capítulo, reservado à motricidade. É preciso, porém, antecipar que esse filósofo
procura “reabilitar o mundo percebido com todas as suas consequências para a
‘subjetividade’”264, como ele mesmo afirma em suas notas de trabalho. Seu projeto filosófico
inclui consolidar o visível como que pertencente a um bloco de ausência, essa como um vazio
que possibilita a sua própria realização. Da mesma forma que o visível se apresenta como que
imerso nesse lugar da ausência, o vidente se apresenta, também, como algo visível. É essa
reciprocidade que caracteriza a percepção como o ato de acompanhar esse movimento das
coisas ou de pertencimento ao mundo. Merleau-Ponty, nessas mesmas notas de trabalho,
desvela essa relação entre o visível e o invisível, nestes termos:

[p]rincípio: não considerar o invisível como outro visível “possível”, ou um


“possível” visível para outro: isso seria destruir a membrura que nos une a
ele. [...] O invisível reside aí sem ser objeto, é a pura transcendência, sem
máscara ôntica. E os próprios “visíveis” no final também estão apenas
centrados sobre um núcleo de ausência – (MERLEAU-PONTY, 2012, p.
210).

O invisível se apresenta como essa qualidade de visibilidade do visível, sem, por


isso, ser visível: como qualidade que escapa ao visível, mas que é projetada por ele. Essa
membrura faz com que haja uma interdependência entre eles, já que “[...] o invisível não é
outro visível (‘possível’ no sentido lógico) um positivo somente ausente”265. Nesse esquema
se consolida a diferença entre o pensamento de Merleau-Ponty e a filosofia sartreana. No
primeiro, a oposição – que significaria, em Sartre, a possibilidade de o negativo repelir o
positivo − é anuviada pelo interpenetrar-se do visível e do invisível.
Não há uma positividade no visível; então, se descarta essa característica no
invisível, disso, a dificuldade de se definir em separado esses dois termos. Merleau-Ponty, nas
“Notas de trabalho” de O visível e o invisível, mostra o estranhamento que pode produzir o ato
de pôr entre parênteses um dos termos:

“[o] invisível é

264
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 220.
265
Ibidem, p.227.
123

1) o que não é atualmente visível, mas poderia sê-lo (os aspectos ocultos ou
inatuais da coisa, − coisas ocultadas, situadas alhures – “Aqui” e
“alhures”)
2) aquilo que, relativo ao visível, não poderia, contudo, ser visto como
coisa (os existenciais do visível, suas dimensões, sua membrura não-
figurativa)
3) aquilo que só existe tatilmente ou cinestesicamente etc.
4) os λέϰτα, o Cogito
Estas 4 “camadas”, eu não as reúno logicamente sob a categoria do in-visível

Isso é impossível, primeiramente, pela simples razão de que não sendo o
visível um positivo objetivo, o invisível não pode ser uma negação no sentido
lógico –
Trata-se de uma negação-referência (zero de ...) ou afastamento.
Essa negação-referência é comum a todos os invisíveis porque o visível foi
definido como dimensionalidade do Ser, isto é, como universal, e, portanto,
tudo o que dele não faz parte está necessariamente nele envolvido, e não é
senão modalidade da mesma transcendência” (MERLEAU-PONTY, 2012,
p. 232).

Compreendida a tentativa merleaupontyana de definir o invisível, fica mais fácil


compreendermos a força do quiasma que o prende ao visível ou o prolongamento que um
conceito tem sobre o outro. Essa mediação pela diferença põe em movimento os conceitos:
dizer que o visível é presença objetiva dificulta estabelecer as linhas próprias do invisível. O
visível é esse modo de ser que sempre escapa a uma contemplação total: suas próprias
margens de indeterminado injetam a impossibilidade de estabelecer os seus contornos
precisos.

2.2.2.3 Motricidade como base do pensamento final de Merleau-Ponty

O pensamento final de Merleau-Ponty permanece fenomenológico no sentido de


que o filósofo insiste “sur la complexité passive-active de la chair, à commencer dans les
relations intimes de la perception et de la motricité”266. O esquema entre o visível e o
invisível, a própria necessidade que um termo tem da existência do outro, colabora para que
os opostos não se repilam; ao contrário, se interpenetrem267. A fenomenologia268 se instaura e
persiste por meio desse movimento entre os elementos da carne como que mantidos pela

266
SAINT-AUBERT, 2008, p. 21: “[...] sobre a complexidade passiva-ativa da carne, a começar nas relações
íntimas da percepção e da motricidade” (Tradução nossa).
267
Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty se declara contra o pensamento do negativo, defendendo a ideia de
que, nesse pensamento, os opostos sempre se mantêm como que afastados, repelindo-se mutuamente.
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 72).
268
Ferraz afirma que “[a] ontologia madura de Merleau-Ponty não é fenomenológica, no sentido em que ela não se
limita a analisar o que se manifesta à consciência” (FERRAZ, 2009, p. 208).
124

figura do desejo. Essa primazia da motricidade, do movimento, é atestada nas derradeiras


linhas de O visível e o invisível, onde Merleau-Ponty defende a reversibilidade como verdade
última. A reversibilidade representa mais claramente a motricidade, o movimento que figura
como mantenedor da realidade das coisas e dos corpos ou da própria carne. É preciso
relembrarmos que essa reversibilidade nunca é totalmente realizada, porque isso implicaria a
identificação dos termos em um ou o cessar do próprio movimento.
Essa motricidade é caracterizada por um movimento incessante: « [...] [l]e
mouvement du sujet au sein du monde est tout autant dévoilement du monde par le sujet : le
devenir-monde de la chair est bien devenir-chair du monde »269. Sobre isso e sobre o exposto
no parágrafo anterior são necessárias algumas considerações: uma delas é a de que a própria
realidade da carne depende da motricidade, porque a carne se caracteriza pela
intersubjetividade. Sobre essa questão, Barbaras afirma que « Merleau-Ponty caractérise la
corporéité charnelle par son aptitude à la réversibilité »270. A motricidade é o xeque-mate do
filósofo sobre o dualismo, já que esse movimento representa a própria carne como comunhão
do vidente e do visível. Nessa perspectiva, temos que a reversibilidade põe em evidência uma
distância, o que, por sua vez, representa o próprio movimento “fenomenológico”. É essa
mesma distância que garante que o movimento seja constante ou que não ocorra uma
imbricação de um corpo no outro ou a reversibilidade total271. O próprio sentido de distância
adquire nova conotação na reversibilidade:

[c]ompreende-se então por que, ao mesmo tempo, vemos as próprias coisas


no lugar em que estão, segundo o ser delas, que é bem mais do que o ser-
percebido, e estamos afastados delas por toda a espessura do olhar e do
corpo: é que essa distância não é o contrário dessa proximidade, mas está
profundamente de acordo com ela, é sinônima dela. É que a espessura da
carne entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade para ela,
como de sua corporeidade para ele; não é um obstáculo entre ambos, mas o
meio de se comunicarem (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 131).

Quando falamos em reversibilidade − esse movimento em que as coisas são


vidente-visível −, devemos ter o cuidado de se preservar a distância, ou a coincidência parcial.

269
BARBARAS, 2008, p. 204: “[...] O movimento do sujeito no seio do mundo é bem a revelação do mundo pelo
sujeito: o devir-mundo da carne é bem devir-carne do mundo” (Tradução nossa).
270
BARBARAS, 1991, p. 283: “Merleau-Ponty caracteriza a corporeidade carnal por sua aptidão à
reversibilidade” (Tradução nossa).
271
Merleau-Ponty, assim, defende a não-coincidência:“[...] [é] tempo de sublinhar que se trata de uma
reversibilidade sempre iminente e nunca realizada de fato. Minha mão esquerda está sempre em vias de tocar a
direita no ato de tocar as coisas, mas nunca chego à coincidência; eclipsa-se no momento de produzir-se”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 143).
125

Ao mesmo tempo em que a distância separa as coisas dos corpos, ela provoca a relação entre
as partes ou o próprio movimento. Merleau-Ponty defende que estamos como que afastados
do visível e, também, imersos nele, pela profundidade. Esse avesso da coisa provoca a sua
abertura ou convida o vidente a participar da carne do visível. O filósofo frisa – na citação
anterior – essa característica dúbia da profundidade, como condição de visibilidade da coisa e,
também, de corporeidade para com o vidente. A importância da motricidade é, então, revelada
nesse movimento, que mantém o espaço de provocação entre as coisas: sinal de que o último
pensamento de Merleau-Ponty permanece fenomenológico. Esse filósofo acentua, nos
seguintes termos, essa característica da reversibilidade ou a manutenção da distância:

[...] se tais experiências nunca se recobrem exatamente, se escapam no


momento em que se encontram, se sempre há entre elas “algo que se
mexeu”, uma “distância”, é precisamente porque minhas duas mãos fazem
parte do mesmo corpo, porque este se move no mundo, porque me ouço por
fora e por dentro; sinto, quantas vezes quiser, a transição e metamorfose de
uma das experiências na outra, tudo se passa como se a dobradiça entre elas,
sólida e inabalável, permanecesse irremediavelmente oculta para mim
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 143).

De fato, essas considerações do filósofo acentuam o peso da motricidade para a


compreensão do pensamento da “carne”. Essa filosofia “[...] de la chair a pour conséquence
de faire apparaître la chose et autrui comme des moments abstraits d’une présence plus
profonde, d’un tissu originaire de visibilité acceptant en son sein plusieurs modes de
cristallisation [...] [l]es choses « me parlent des autres »”272. O conceito de carne é levado às
últimas consequências, na medida em que condiciona esse universo de imbricação das coisas
e dos corpos. É central para a motricidade um conceito já mencionado no início dessa
discussão: o de desejo. Barbaras chega a nomear um dos capítulos do De l’être du phénomène
como “Le désir” e postula como entrada o tema “Le désir comme oeuvre de chair”273.
Retomando, registramos, aqui, inicialmente, que é a partir da experiência do outro que a
noção de carne se manifesta no corpo. O desejo é elemento que contrai essa relação
intersubjetiva: « [...] [i]l s’agit là encore de comprendre que le désir, dimension de la
membrure intersubjective, précède la présence de moi et d’autrui : en tant qu’il y a désir, ni

272
BARBARAS, 1991, p. 303: “[...] da carne tem por consequência fazer aparecer a coisa e o outro como
momentos abstratos de uma presença mais profunda, de um tecido originário de visibilidade aceitando em seu
seio vários modos de cristalização [...] As coisas « me falam das outras »” (Tradução nossa).
273
Ibidem, p. 307: “O desejo como obra da carne” (Tradução nossa).
126

l’un ni l’autre n’est lui-même, et c’est plutôt dans et par le désir qu’ils le deviennent, c’est-à-
dire se font un seul »274.
O desejo desempenha, então, o papel da própria motricidade ou provoca o
entrelaçamento entre os corpos. Esse aspecto acentua a reversibilidade e, assim, o desejo se
revela na própria carne, nessa relação do eu com o outro: “[...] le désir est déjà parole adressé
à l’autre, mais silencieusement”275. Essa realidade carnal do desejo é mantida por não se
realizar completamente. As partes do todo permanecem unidas por esse desejo de união, mas,
por meio da reversibilidade carnal, garante-se o movimento constante ou o não-cumprimento
pleno do desejo. Barbaras, no texto “Motricité et phénoménalité chez le dernier Merleau-
Ponty”, defende que « [...] la partie rédigée du Visible et l’invisible est animée par l’exigence
de ressaisir le sens d’être du monde par-delà l’opposition abstraite de l’essence et du fait »276.
A motricidade é, então, identificada nessa relação do visível com sua transcendência. É
necessário precisarmos esse conceito, contextualizando-o dentro dessa discussão sobre a
carne, conforme a concepção merleaupontyana. Zielinski, no texto “La notion de
« transcendance » dans Le visible et l’invisible: de l’indetermination au désir”, situa bem a
abrangência da transcendência :

[d]e quelle transcendance est-il question ? S’il s’agit d’une transcendance


explicitant la profondeur de la chair, les relations du visible et de l’invisible,
il n’est pas question d’une transcendance « au-delà » du monde : nous
sommes toujour sur le plan de l’immanence comme expérience du monde
(ZIELINSKI, 2008, p.218)277.

Depois dessa explicitação sobre o que vem a ser a transcendência em Merleau-


Ponty, recorremos ao próprio texto do filósofo, às suas “Notas de trabalho”, e encontramos
como esse conceito reflete a relação visível-invisível: “[...] [d]izer que há transcendência, ser
à distância, é dizer que o ser (no sentido sartreano) está intumescido de não-ser ou de
possível, que não é somente o que é”278. Ao longo desse texto, o filósofo define
transcendência como “pensamento de distância”; ou seja: sublinha o seu caráter de

274
Ibidem, p. 310: “[...] Ainda é necessário compreender que o desejo, dimensão de membros intersubjetivos,
precede a presença de mim e de outro: enquanto houver desejo, nem um nem outro é ele mesmo, e é
propriamente dentro e pelo desejo que eles se tornam; isto é: se fazem um só” (Tradução nossa).
275
BARBARAS, 1991, p. 312: “[...] o desejo já é palavra endereçada ao outro, mas silenciosamente” (Tradução
nossa).
276
BARBARAS, 2008, p. 192: “[...] a parte redigida de O visível e o invisível é animada pela exigência de se
retomar o sentido do ser do mundo, ultrapassando-se a oposição abstrata da essência e do fato” (Tradução nossa).
277
Tradução nossa: “Sobre qual transcendência se questiona? Trata-se de uma transcendência explicitando a
profundidade da carne, as relações do visível e do invisível; não é o caso de uma transcendência « que
ultrapasse » o mundo: nós estamos sempre sobre o plano da imanência como experiência do mundo”.
278
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 175.
127

pertencimento à própria coisa. A transcendência de Merleau-Ponty não está acima do mundo,


mas no desvendamento daquilo que é visto e observado. A distância como possibilidade de
ver em um plano mais estendido é, por outro lado, indefinição e incerteza dessas coisas que se
veem como que falhadas. É essa falta de clareza que projeta a transcendência como um
excesso das coisas em si mesmas, como manifestação daquilo que se encontra no “avesso” do
mundo. É importante relembrarmos que a relação do visível e do invisível se estabelece com
um copertencimento dos termos. Dessa forma, aquilo que parece mais fácil – como relacionar
a transcendência com aquilo que excede o visível, em termos objetivos – em Merleau-Ponty é
minado. A transcendência está como que no interior daquilo que se mostra visível: “[...] [o]
tecido comum de que são feitas todas as estruturas é o visível, que, ele próprio, não é, de
modo algum, objetividade, em si, mas transcendência”279. Dessa forma, a transcendência seria
o elemento estrutural do visível que o desvincularia de uma objetividade pontual e cerceada.
O título do texto de Zielinski, citado anteriormente, reflete a importância da
transcendência para a compreensão da própria motricidade ou dessa vivacidade do
pensamento final de Merleau-Ponty. É esse conteúdo de indeterminado que gesticula o jogo
de desejo entre os elementos da carne, que faz com que o movimento seja constante entre o
desejo de posse e o aspecto fugidio das coisas. Quando falamos em movimento, outro
conceito que retorna é o de reversibilidade, ou o ser vidente e visível ao mesmo tempo; em
outros termos: o ser carne280. É interessante ressaltarmos como a transcendência desempenha
papel central nesse pensamento, por possibilitar pensar como o visível e o invisível
intercambiam suas funções no ato da percepção. O filósofo chega a afirmar que: “[...]
[m]ostro com a transcendência que o visível é invisível, que a visão é por princípio o que me
convence pela aparência já aí presente de que não há lugar para procurar o ser proximal a
percepção, o que me certifica de um in-apercebido”281. A percepção se mostra como um ato
de movimento, no qual a visão é posta em ato: suas fissuras são descobertas pelo entrevir do
visível e do invisível. A transcendência corrói a possibilidade de pureza dos dois conceitos,
porque o próprio visível desvenda sua natureza por meio dos seus constituintes de caráter
invisível.

279
Ibidem, p. 189.
280
Zielinski assim relaciona esses conceitos em Merleau-Ponty: “[...] [l]a première thématisation de la
transcendance du monde (ou de la chair) apparaît dans l’expérience de la réversibilité du sensible « toujours
imminente, jamais réalisée en fait » (que ce soit le hiatus du toucher, ou la part d’invisibilité du voyant à lui-
même ) » (ZIELINSKI, 2008, p. 228). [Tradução nossa: “[...] A primeira tematização da transcendência do
mundo (ou da carne) aparece na experiência da reversibilidade do sensível « sempre iminente, jamais realizada
de fato » (que essa seja o hiato do toque, ou a parte de invisibilidade do vidente nele mesmo)”].
281
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 204.
128

Essa transcendência pode ser definida de várias maneiras, e Zielinski recorre a três
termos: l’écart, l’excès et la négativité282. No primeiro, identificamos a reversibilidade da
carne, mencionada no parágrafo anterior, ou a impossibilidade de se coincidirem as coisas, a
“non possession d’objet”283. O segundo termo se revela em acordo com o primeiro: « [...]
[s]’il y a écart entre le sensible et le senti, c’est parce que le sensible dépasse, déborde le senti.
Le monde est toujours en excès sur la perception »284. Esse excesso é um dos conceitos que
representa mais concretamente a transcendência; o mundo ultrapassa o sentir e, dessa forma,
há sempre algo que escapa ao olhar. Zielinski combate o erro de se confundir excesso com a
ideia de infinito:

[...] [a]u sens de Merleau-Ponty, il n’est pas un infini en idée, mais infini de
perception. Il n’est pas question d’une idée d’infini qui s’imposerait à moi,
mais de l’expérience de ce qui, à partir de ma chair, ne se réduit pas à elle.
La chair du monde est en excès su ma chair (ZIELINSKI, 2008, p. 233)285.

O corpo, então, encontra o infinito no mundo como aquilo que supera sua própria percepção;
ou melhor: que se esconde nas entrelinhas daquilo que é percebido. Esse excesso é percebido
como latência, como uma abertura para além daquilo que se define no visível.
Finalizando essa tripartição do conceito de transcendência, tem-se a négativité,
palavra que carrega uma referência direta à filosofia de Sartre. O distanciamento entre os dois
filósofos deve ser o primeiro passo para a compreensão dessa acepção como transcendência
em Merleau-Ponty: “[...] [c]ette négativité n’est pas celle du néant sartrien: elle ne se
détermine pas en opposition à l’Être. Le néant est dans l’Être, comme l’invisible appartient au
visible »286. Cumpre sublinharmos a distinção do campo da negatividade em Merleau-Ponty,
já que o filósofo trabalha, também, com esse termo. Anteriormente, tinha-se nomeado a
transcendência como excesso e esse excesso como latência; agora, por meio da negatividade,
classifica-se essa latência como que integrada ao interior do próprio mundo. Resumindo: os
três termos estão em movimento e se complementam na motricidade dessa acepção de
transcendência. L’écart − como essa evasão das coisas à posse − se realiza devido a l’excès do
próprio mundo: o mundo ultrapassa a percepção. O terceiro termo se apresenta como uma
282
ZIELINSKI, 2008, p. 229: “[...] o desvio, o excesso e a negatividade” (Tradução nossa).
283
Ibidem: “[...] não possessão do objeto” (Tradução nossa).
284
Ibidem, p. 231: “[...] Se há desvio entre o sensível e o sentido, é porque o sensível ultrapassa, excede o sentido.
O mundo está sempre em excesso sobre a percepção” (Tradução nossa).
285
Tradução nossa: “[...] No sentido de Merleau-Ponty, ele não é um infinito em ideia, mas infinito de percepção.
Não é caso de uma ideia de infinito que se imporia a mim, mas da experiência do que, a partir de minha carne,
não se reduz a ela. A carne do mundo está em excesso sobre minha carne”.
286
ZIELINSKI, 2008, p. 234: “[...] Esta negatividade não é aquela do nada sartriano: ela não se determina em
oposição ao Ser. O nada está no Ser, como o invisível pertence ao visível” (Tradução nossa).
129

definição desse excesso: négativité, aquilo que está no mundo, mas que se encontra como
ausente.
A transcendência facilita, então, a compreensão da motricidade − conceito que
desvela o pensamento final de Merleau-Ponty –, mas é preciso identificarmos esse
movimento. No texto de Zielinski, a transcendência aparece como um lance capital sobre a
dualidade sujeito e objeto, porque esse conceito representa a relação de desejo que põe esses
termos em movimento, reunindo-os como carne. O desejo é o combustível da relação, já que
« [...] [c]ette transcendance de l’indétermination caractérise profondément l’expérience du
monde chez Merleau-Ponty – et l’expérience du sujet comme non-coïncidence avec soi-
même. À l’excès du monde répond ce mouvement du sujet vers l’extérieur – désir »287. A
própria motricidade é garantida pelo desejo do sentiente de tocar as coisas, um desejo que é
intermediado pela transcendência do mundo. Como apresentamos anteriormente, a
negatividade no interior do mundo se desvenda como impossibilidade de a “nossa carne”
esgotar a carne do mundo. Essa transcendência é posta em debate, também, por Dastur, que
defende a ideia de um “pensée du dedans”; ou seja: “une pensée de l’être dans le monde du
sujet”288, nestes termos:

[...] l’énigme de la transcendance, de ce mouvement par lequel la conscience


sort d’elle-même pour aller vers son autre, alors que pour une pensée qui se
donne pour tâche d’accompagner « la déflagration de l’être », il ne s’agit ni
de construire l’union du Pour Soi et de l’En Soi, ni de poser un être frontal
devant nous, mais uniquement de décrire la structure ou l’articulation par
laquelle l’Être se dédouble infatigablement en dehors et dedans, visible et
invisible (DASTUR, 2008, p. 131)289.

A transcendência é responsável pelo movimento e apresenta uma estrutura de


horizonte. O perceber requisita a motricidade, os arranjos do corpo no mundo, em um jogo
entre luz e sombra. Villela-Petit (2008) percebe um giro conceitual da Fenomenologia da
Percepção para os últimos trabalhos de Merleau-Ponty: a “foi perceptive” substitui a

287
Ibidem, p. 248: “[...] Esta transcendência da indeterminação caracteriza profundamente a experiência do mundo
em Merleau-Ponty – e a experiência do sujeito como não coincidência consigo mesmo. Ao excesso do mundo
responde esse movimento do sujeito em direção ao exterior – desejo” (Tradução nossa).
288
DASTUR, 2008, p. 126: “pensamento de dentro”; ou seja: “um pensamento do ser dentro do mundo do sujeito”
(Tradução nossa).
289
Tradução nossa: “[...] o enigma da transcendência, desse movimento pelo qual a consciência sai dela mesma
para ir em direção ao seu outro, por um pensamento que atribui a si a tarefa acompanhar « a deflagração do ser »,
não se trata de construir a união do Por-Si e do Em-Si, nem de pôr um ser frontal diante de nós, mas unicamente
de descrever a estrutura ou a articulação pela qual o Ser se desdobra, infatigavelmente, no fora e no dentro,
visível e invisível”.
130

percepção; ou seja: enfatiza-se, na primeira, a sua anterioridade a uma “clivage réflexif”290. A


importância está no fato de se acentuar essa parcela do invisível que sempre acompanha a
experiência no mundo. Essa mudança conceitual é significativa, porque :

[...] [a]fin de souligner ce déplacement amenant à pleinement reconnaître la


réceptivité qui englobe tout acte de vision, son enveloppement par le visible,
il emploiera désormais l’expression « foi perceptive » à la place de
« perception ». La modification terminologique se révèle nécessaire du
moment que parler encore de percevoir (le verbe à l’actif) risque d’entretenir
l’illusion d’un sujet percevant en contrôle de sa vision, ce qui n’est qu’une
vérité partielle (VILLELA-PETIT, 2008, p. 104)291.

Segundo essa pesquisadora, a mudança conceitual favorece o pensamento da reversibilidade


ou do vidente-visível. Em se tratando da transcendência é, também, nessa possibilidade de
enxergar um germe “pré-reflexivo” que se instaura a motricidade do visível-invisível.
Merleau-Ponty requer uma percepção “bruta” ou selvagem como forma de visualizar a
experiência por completo ou o mundo vertical. Esse filósofo defende essa percepção
“selvagem” em lugar da “percepção moldada pela cultura”292.
A motricidade, então, sintetiza o pensamento final de Merleau-Ponty, porque
funcionaliza a relação do “nosso corpo” como o corpo do mundo. Uma ideia que desestrutura
o binarismo sujeito-objeto, ao mesmo tempo em que resgata o pensamento de um monismo
ou da reversibilidade total. É o movimento que possibilita compreender a relação visível e
invisível e, assim, a motricidade é gerida pela transcendência do mundo. Retomando o
parágrafo anterior, temos que o filósofo defende uma percepção “bruta” ou “selvagem” como
forma de estabelecer uma nova forma de comunicação com o mundo. Esse pensamento
privilegia a motricidade, já que o movimento é instaurado e mantido pela relação de
encobrimento e desvelamento do visível e do invisível. Como discutimos anteriormente, em
“Visível e Invisível: uma tentativa de definição”, é hercúlea a tarefa de divisar e conceituar
esses dois termos. No final das “Notas de trabalho” de O visível e o invisível, Merleau-Ponty
aborda novamente essa questão e traz à discussão mais alguns ingredientes:

290
VILLELA-PETIT, 2008, p. 104: “clivagem reflexiva” (Tradução nossa).
291
Tradução nossa: “[...] Visando sublinhar esse deslocamento, trazendo plenamente o reconhecer a receptividade
que engloba todo ato de visão, seu envolvimento pelo visível, o filósofo empregará, doravante, a expressão « fé
perceptiva », em lugar de « percepção ». A modificação terminológica se revela necessária no momento em que
falar ainda de perceber (o verbo no ativo) apresenta o risco de conservar a ilusão de um sujeito que se percebe
tendo controle de sua visão, o que é apenas uma verdade parcial”.
292
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 197.
131

[c]omo a estrutura sensível não pode ser compreendida a não ser através da
sua relação com o corpo, com a carne, − a estrutura invisível não pode ser
compreendida sem a relação com o logos, a palavra – O sentido invisível é a
nervura da palavra – O mundo da percepção caminha coincidindo com o do
movimento (que também é visto) e inversamente o movimento tem [olhos?]
Do mesmo modo, o mundo das ideias invade a linguagem (pensamos a
linguagem) que por sua vez invade as ideias (pensamos porque falamos,
porque escrevemos) – (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 206).

É perceptível a estrutura de inacabamento desse trecho, mas é interessante como


outro termo é associado ao invisível: a linguagem. Na verdade, o salto da fenomenologia para
a ontologia é intermediado pela fase denominada “da linguagem”, de período posterior à
publicação de Fenomenologia da Percepção, compreendendo os anos 1945-1953. Não
realizamos, nesta tese, como já afirmamos, exaustivo trabalho com as fases da obra de
Merleau-Ponty. O escopo, aqui, é mostrar como pode ser produtiva a discussão da
fenomenologia de Merleau-Ponty para a leitura do espaço na obra literária ou como sua
acepção de espaço é dinâmica. O próprio filósofo utiliza as artes – como a Pintura e a
Literatura –, para exemplificar seu esforço de ilustração da experiência ontológica. Da fase
intermediária, esta tese passou pelo texto “A linguagem indireta e as vozes do silêncio”, de O
olho e o espírito. O objetivo era construir uma ponte para se chegar à última filosofia de
Merleau-Ponty e mostrar como é significativa, na linguagem, a presença do silêncio. Nesse
mencionado texto, defende-se uma linguagem indireta ou que “temos de considerar a palavra
antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada
diria, ou ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se entremeiam” 293. Nesta tese, frisamos
como o recorrente jogo entre figura e fundo é encenado, também, no plano da linguagem,
como é visualizado um substrato de silêncio e de desvio para a consolidação da comunicação.
Retornando ao trecho de O visível e o invisível, temos que o último termo – o
invisível – é posto como a “nervura da palavra” e que não podemos compreendê-lo a não ser
pelo Logos294. A estrutura do invisível é, então, associada à palavra; Barbaras inicia essa
discussão afirmando que;

[...] [d]ès lors que la parole ne peut être comprise comme le signe indifférent
d’une pensée déjà possédée mais se révèle être au contraire le vecteur d’une
téléologie infinie, l’être du monde dans lequel elle s’enracine ne saurait
s’épuiser dans une présence intuitive : il apparaît plutôt comme une

293
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 59.
294
Merleau-Ponty, nas últimas notas de O visível e o invisível, esforça-se para redefinir em qual âmbito ele pensa o
Logos: “[...] não tomamos o Logos e a verdade no sentido do Verbo (a 3ª Parte não é nem lógica, nem teleologia
da consciência, mas estudo da linguagem que possui o homem)” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 245).
132

profondeur excédant toute mise en présence, profondeur dont l’infinité est à


la mesure de la téléologie expressive (BARBARAS, 2008, p. 192)295.

A palavra é associada à profundidade ou ao próprio espaço; então, a linguagem


impulsiona a inspeção teleológica expressiva como movimento que põe em evidência seu
aspecto de transcendência. O próprio Barbaras caracteriza o visível e o invisível como uma
busca por ultrapassar a oposição essência e fato, defendendo a relação de imbricação entre
esses termos. O copertencimento entre sujeito e mundo é encenado e mantido pelo quiasma, a
profundidade – ou esses vazios e silêncios – é o locus em que se faz possível essa imbricação.
O indeterminado é, também, encontrado na linguagem: há uma transcendência que
acompanha o processo de comunicação. O interessante é como Merleau-Ponty frisa os vazios
da percepção como podendo ser representados por essa relação entre linguagem e sentido. Ele
defende esse processo como forma de elucidar o esquema do invisível como sendo parelho ao
silêncio que reveste a própria carne da palavra. O movimento da fé perceptiva no mundo – da
percepção – é relacionado à correspondência entre as ideias e a linguagem. Nesse último, a
interferência do segundo elemento sobre o primeiro também é verdade, porque Merleau-Ponty
afirma que nosso pensamento também decorre da fala. A linguagem, como essa potência de
“antecipação” das coisas, é, também, considerada como um espaço em que se faz possível a
relação com o mundo. Ele defende o “sentido invisível como a nervura da palavra” e, assim, a
corporeidade, ou a estrutura da palavra é relacionada ao invisível:

[l]e langage a en effet une structure conceptuelle ambiguë : il peut être


entendu en tant que parole – et dans ce cas l’opposition au silence est
incontournable – mais aussi, de façon plus large, comme expression
structurée ; dans ce second cas on peut clairement identifier un ensemble
intersection de langage et silence, rempli par toutes les expressions qui ne
font pas partie du discours au sens strict. L’idée de Merleau-Ponty semble
être celle-ci : en est témoin son recours fréquent à la peinture en tant qu’
« expression muette » (ROSATI, 2009, p. 52)296.

295
Tradução nossa: “[...] Partindo do pressuposto de que a palavra não pode ser compreendida como o signo
indiferente de um pensamento já possuído, mas se revela ser, ao contrário, o vetor de uma teleologia infinita, o
ser do mundo no qual ela se enraíza não saberia se esgotar em uma presença intuitiva: ela aparece mais como
uma profundidade excedente toda posta em presença, profundidade da qual a infinitude está à medida da
teleologia expressiva”.
296
Tradução nossa: “De fato, a linguagem tem uma estrutura conceitual ambígua: ela pode ser compreendida como
palavra – e, nesse caso, a oposição ao silêncio é incontornável –, mas também, de maneira mais ampla, como
expressão estruturada; no segundo caso, se pode claramente identificar um conjunto de interseção da linguagem
e do silêncio, completo por todas as expressões que não fazem parte do discurso no sentido estrito. A ideia de
Merleau-Ponty parece ser esta: nisso é testemunha o seu recurso frequente à Pintura como « expressão muda »”.
133

Na obra Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty reclama a relação entre


pensamento, linguagem e mundo, defendendo que o pensamento não é interior ou anterior à
experiência no mundo: “[...] [o] que nos engana a respeito disso, o que nos faz acreditar em
um pensamento que existiria para si antes da expressão, são os pensamentos já constituídos e
já expressos dos quais podemos lembrar-nos silenciosamente e através dos quais nos damos a
ilusão de uma vida interior”297. A importância dessa ideia está na prioridade concedida à
experiência. Nesse gesto, acerca-se a percepção da linguagem: ambas são vistas como uma
relação potencial com o mundo em que sempre se descobre um invisível ou um silêncio:

[c]ertes, n’est pas encore acquise ici la réversibilité entre silence et parole
qui sera thématisée lorsque Merleau-Ponty adoptera explicitement la
perspective de l’ontologie, mais les bases de cette orientation semblent dès
maintenant jetées lorsque Merleau-Ponty constate que la perception et le
langage partagent le même pouvoir de différenciation et que, par conséquent,
tout deux expriment de façon indirecte (CARBONE, 2008, p. 422)298.

Dessa forma, defende-se um pensamento produzido no interior da experiência, um « pensée


du dedans ». Françoise Dastur (2008) defende esse conceito299 e sua importância está na
aderência das coisas no interior da própria experiência ou no afastamento do pensamento de
sobrevoo. A partir desse conceito, percebemos uma clara menção ao conceito de carne de
Merleau-Ponty, nessa relação de imbricação entre os corpos. Na citação anterior, a linguagem
é, então, vista como um dos elementos que se somam nessa “intra-ontologie300”: apresentando
os mesmos vazios que se descobrem na percepção ou os silêncios que tornam possível a
própria legibilidade daquilo que é articulado.

297
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 249.
298
Tradução nossa: “Certamente, não é ainda adquirida, aqui, a reversibilidade entre o silêncio e a palavra, que
será temática quando Merleau-Ponty adotar, explicitamente, a perspectiva da ontologia, mas as bases dessa
orientação já parecem lançadas quando Merleau-Ponty constata que a percepção e a linguagem compartilham o
mesmo poder de diferenciação e que, por consequência, todas as duas exprimem de maneira indireta”.
299
Dastur sintetiza, nos seguintes termos, o seu conceito: « [...] [l]a pensée de Merleau-Ponty, surtout dans sa
dernière période, est une pensée de la structure vivant pour laquelle l’intériorité ne renvoie plus à un sujet clos
sur lui-même, mais devient la dimension d’un être qui en perdant sa positivité en vient à se confondre avec le
mouvement même de l’experience » (DASTUR, 2008, p. 127). [Tradução nossa: “[...] O pensamento de
Merleau-Ponty, sobretudo no seu último período, é um pensamento da estrutura viva pela qual a interioridade
não remete mais a um sujeito fechado sobre si-mesmo, mas se torna a dimensão de um ser que perdendo sua
positividade vem a se confundir com o próprio movimento da experiência”].
300
Rosati, assim, articula esse conceito: « [...] L’ontologie doit donc devenir intra-ontologie, une pensée intérieure,
non pas dans le sens d’une pensée qui se fait dans un sujet, mais d’une pensée de la non-extériorité, une pensée
de l’Être qui se fait dans l’Être en tant que coïncidence à lui-même » (ROSATI, 2009, p. 41). [Tradução nossa:
“[...] A ontologia deve, portanto, tornar-se intra-ontologia, um pensamento interior, não no sentido de um
pensamento que se faz em um sujeito, mas de um pensamento da não-exterioridade, um pensamento do Ser que
se faz dentro do Ser, como coincidência consigo-mesmo”].
134

É interessante como Merleau-Ponty persegue uma forma de caracterizar “o mundo


do silêncio” sobre o qual a experiência se realiza. Rosati define esse problema de sua
filosofia: « [...]Merleau-Ponty est ici engagé dans la tentative de définir l’originaire en tant
que tel: le problème dans lequel il se trouve est le problème du commencement »301. Na
Fenomenologia da Percepção, esse filósofo intermedia a relação sujeito e objeto com o
conceito de “cogito pré-reflexivo”, como base para o aspecto mediato da percepção. A
ontologia de Merleau-Ponty se esforça por ultrapassar a inflação do sujeito nessa primeira
filosofia. O “cogito pré-reflexivo” é, então, substituído pelo mundo da linguagem, como uma
forma de injetar ação e independência na relação entre vidente e visível. Essa estrutura
favorece o afastamento de uma consciência constituinte; a linguagem é, então, que intermedia
a relação:

[d]ans cette constatation on peut repérer un abandon du « cogito tacite » que


Merleau-Ponty avait déjà désavoué ouvertement. S’il y a un monde du
silence il est indissociable du monde du langage, le silence est entrelacé avec
la parole et ne peut pas être pensé séparément : on ne doit donc pas
rechercher le silence, ce qui serait une entreprise impossible, mais le silence
de notre langage ; « la passivité de l’activité » (ROSATI, 2009, p. 51)302.

Por meio da linguagem, Merleau-Ponty ultrapassa a oposição reflexão e


irrefletido303, ou apropria-se de um conceito que poderia articular melhor a relação “figura e
fundo”: « [...] [s]’il est en effet vrai qu’il n’y a pas de réflexion sans un irréfléchi qui en soit
l’objet, il est tout de même aussi vrai que l’on ne peut penser l’irréfléchi que de façon
réfléchie »304. A linguagem é – como indica a citação de Merleau-Ponty – reflexão, porque
pensamos a linguagem, e irrefletido, porque também “pensamos porque falamos”. Rosati,
assim, afirma que a linguagem e o silêncio vêm substituir a aporia entre reflexão e irrefletido.

301
ROSATI, 2009, p. 50: “[...] Merleau-Ponty está, aqui, engajado na tentativa de definir o originário como tal: o
problema no qual ele se encontra é o problema do início” (Tradução nossa).
302
Tradução nossa: “Nesta constatação, pode-se identificar um abandono do « cogito tácito » que Merleau-Ponty
já havia contestado abertamente. Se há um mundo do silêncio, ele é indissociável do mundo da linguagem; o
silêncio é entrelaçado com a palavra e não pode ser pensado separadamente: não deve, portanto, buscar o
silêncio, isso seria um empreendimento impossível, mas o silêncio de nossa linguagem; « a passividade da
atividade »”.
303
O problema do irrefletido é abordado por Rosati nestes termos: “[...] On pourrait synthétiser le problème ainsi:
s’il est vrai que la philosophie est par définition réflexion, médiation, et que penser un immédiat irréfléchi
impliquerait aller vers la fin de la philosophie, il est tout de même vrai que l’expérience pure, celle qui dérive de
l’existence perçue, ne peut pas se réduire à une existence idéale » (ROSATI, 2009, p. 22). [Tradução nossa: “[...]
Poderíamos sintetizar o problema assim: se é verdade que a filosofia é por definição reflexão, mediação, e que
pensar um imediato irrefletido implicaria ir em direção ao fim da filosofia, é, portanto, verdade que a experiência
pura, aquela que deriva da existência percebida, não pode ser reduzida a uma existência ideal”].
304
ROSATI 2009, p. 25: “[...] Se é, de fato, verdadeiro que não há reflexão sem um irrefletido que não seja o
objeto, é, por conseguinte, também verdade que somente se pode pensar o irrefletido de maneira refletida”
(Tradução nossa).
135

Concluindo: todo esse giro no interior da filosofia de Merleau-Ponty tem por


objetivo pinçarmos um conceito de espaço que possa ser produtivo para análise literária e que,
também, ultrapasse uma classificação estrutural de lugar. O foco é dinamizarmos um conceito
que dê conta da experiência, da relação sem limites entre o sujeito e o mundo. No
Dictionnaire Merleau-Ponty, de Dupont (2008), o espaço é definido em contiguidade à
profundidade, nestes termos:

[l]es réflexions de Merleau-Ponty sur l’espace s’ordonnent selon trois


thèmes qui ne sont jamais vraiment séparables mais sont plus ou moins
accentués selon les moments de la recherche du philosophe. Le premier
rassemble toutes les analyses sur la spatialité de l’existence comme être au
monde ; le seconde rassemble les analyses questionnant la profondeur dans
l’oeuvre picturale ; le troisième rassemble des analyses sur l’espace
d’empiètement où disparaît l’idée d’emplacement unique (DUPONT, 2008,
p. 65)305.

É possível percebermos a prioridade concedida ao espaço da experiência − nos três temas


elencados − em detrimento ao espaço como localização, sendo essa postura aquilo que move
o nosso interesse para esse pensamento. O primeiro tema, então, releva a existência; o
segundo, a profundidade ou a própria realização do espaço. Esse lugar é definido, por
Merleau-Ponty, na Fenomenologia da Percepção, como: “o que faz a ‘realidade’ da coisa é
justamente aquilo quea subtrai à nossa posse”306. A profundidade é, então, o lugar que permite
a interação dos corpos e que, por outro lado, denuncia a transcendência do movimento. O
terceiro tema acirra a imbricação entre o vidente e o visível por meio de conceitos ontológicos
largamente discutidos, principalmente, na última filosofia de Merleau-Ponty.
Repassando: o giro sobre o pensamento de Merleau-Ponty visa pensarmos a
realização do espaço até os limites de uma plena interação entre o vidente e o visível. É esse
foco que nos possibilita um estudo mais dinâmico do espaço de Saer, da relação das
personagens com o mundo. Antes de debruçarmos sobre La grande, este capítulo apresenta
um giro da filosofia para a teoria do espaço nas artes ou como o pensamento de Merleau-
Ponty, principalmente o da última fase, pode ser proveitoso para a leitura do espaço literário.
Esse terceiro passo teórico é dado no sentido de defendermos o caminho que percorremos
nesta tese.
305
Tradução nossa: “As reflexões de Merleau-Ponty sobre o espaço se ordenam segundo três temas que não são
verdadeiramente separáveis, mas são mais ou menos acentuadas segundo os momentos da pesquisa desse
filósofo. O primeiro agrupa todas as análises sobre a espacialidade da existência como ser no mundo; o segundo
agrupa as análises questionando a profundidade na obra pictural; o terceiro agrupa as análises sobre o espaço de
imbricação onde desaparece a ideia de lugar único”.
306
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 311.
136

2.3 DESDOBRAMENTO DA FILOSOFIA DE MERLEAU-PONTY NO INTERIOR


DE UMA TEORIA DO ESPAÇO LITERÁRIO

No desenvolvimento, anterior, procuramos, além de uma exposição da percepção


em Merleau-Ponty, pinçar elementos que possibilitam utilizá-la como recurso para leitura do
espaço da ficção. Essa tarefa de remanejar ideias filosóficas para o interior de uma análise
literária, por exemplo, é, também, articulada por alguns pensadores que, no âmbito da arte,
perceberam a produtividade do pensamento de Merleau-Ponty como chave de leitura do
espaço. Temos, como exemplo, Michel Collot, que cunha um conceito próprio para a análise
da paisagem na obra de arte: “pensée-paysage”. À primeira vista, parece que se instaura uma
ênfase incabível no pensamento e, por conseguinte, no sujeito, mas o foco está direcionado à
relação antipredicativa do vidente no mundo, com remissão direta à última filosofia de
Merleau-Ponty. Abrimos parêntese: como discutimos anteriormente, Merleau-Ponty
ultrapassa a relação entre reflexão e irrefletido em O visível e o invisível, mas o cerne do
conceito de Collot permanece nessa relação. Retomando: primeiramente, é preciso
conceituarmos o segundo termo do conceito de Collot, que − diferentemente do conceito de
espaço − pré-estabelece a presença do homem ou o movimento fenomenológico:

[...] [l]e paysage se distingue ainsi de l’étendue, objective, géométrique ou


géographique. C’est un espace perçu et/ou conçu, donc irréductiblement
subjectif. L’horizon, qui est constitutif du paysage, en révèle bien la double
dimension : c’est une ligne imaginaire (on ne la trouve reportée sur aucune
carte), dont le tracé dépend à la fois de facteurs objectifs (le relief, les
constructions éventuelles), et du point de vue d’un sujet (COLLOT, 2005, p.
13)307.

Collot trabalha esse espaço ativo, fenomenológico, com a insígnia de paysage, enfatizando
que a consciência do espaço se efetua na própria experiência, na relação de entrecruzamento
do vidente com o mundo. A paisagem é, então, manifesta pelos sentidos do vidente e essa
marca é resguardada, quando se pensa nas descrições literárias do espaço, como, também, em
outras artes, como a pintura.
Essa marca subjetiva do termo “paisagem” é identificada por Collot: « [...] [i]l
n’est pas indifférent que le paysage apparaisse en Europe à la Renaissance, qui voit
l’affirmation de l’individu; en peinture, son essor coïncide avec celui du portrait et avec le

307
Tradução nossa: “[...] A paisagem se distingue, assim, da superfície, objetiva, geométrica ou geográfica. É um
espaço percebido e/ou concebido; portanto, irredutivelmente subjetivo. O horizonte, que é constitutivo da
paisagem, se revela a dupla dimensão: é uma linha imaginária (não se encontra registrado em nenhum mapa),
cujo traçado depende ao mesmo tempo de fatores objetivos (o relevo, as construções eventuais), e do ponto de
vista de um sujeito”.
137

développement de la perspective »308. O termo, então, condiciona o movimento sujeito-


mundo, desvela o ponto de vista, a presença do homem. É, como expusemos anteriormente,
por intermédio de Merleau-Ponty309, que a paisagem desvela os caminhos do olhar: posições
de interação com o mundo são descobertas na sua leitura. A nuança da perspectiva, na pintura,
é, também, uma forma de enxergar essa relação de interação com as coisas, porque essa
dimensão mobiliza a distância que separa o vidente das coisas: « [...] c’est dire que l’objet est
donné à distance, sans que cette distance soit elle-même donnée »310. Com o termo paisagem,
Collot põe em evidência o movimento fenomenológico, da mesma forma que na interação
com o termo pensée se releva a interação plena e antipredicativa com o mundo:

[b]ien qu’antérieure à la réflexion, cette relation “antéprédicative” au monde


est « le milieu et comme la patrie de nos pensées »311 ; à la différence du
cogito réflexif, qui se retranche du monde pour mieux coïncider avec lui-
même, le cogito pré-réflexif ne se sépare pas du contexte où il émerge : c’est
ce que Le visible et l’invisible appelle une « pensée d’horizon » (COLLOT,
2011, p. 24)312.

A influência de Merleau-Ponty é evidente no pensamento de Collot, tanto pela


remissão direta como pelos termos que cunha para estudo da paisagem. O conceito de Collot
apresenta uma equalização da relação entre o observador e o mundo. Tentando afastar-se dos
dualismos, esse teórico defende que a paisagem carrega no seu interior essa relação com o
ponto de vista e intensifica essa vertente por intermédio do termo “pensée”, uma estrutura que
desvela a percepção, como « [...] un mode de penser intuitif, pré-réflexif »313. Devido ao seu
teor subjetivo, o termo paisagem sofreu distanciamentos e aproximações no decorrer da

308
COLLOT, 2005, p. 13: “[...] Não é indiferente o fato de a paisagem aparecer na Europa na Renascença,
momento em que se vê a afirmação do indivíduo; em pintura, seu progresso coincide com o da fotografia e com
o desenvolvimento da perspectiva” (Tradução nossa).
309
Collot afirma que: « [...] [l]e mot paysage n’apparaît pas moins de quatre-vingt-cinq fois dans la
Phénoménologie de la perception, et cette référence au paysage n’est jamais dans ce texte un simple ornement.
Même quand paysage y semble employé dans une acception métaphorique, cette méthaphore joue le rôle d’un
véritable support pour la pensée elle-même, dont elle illustre certains des enjeux fondamentaux » (COLLOT,
2011, p. 23). [Tradução nossa: “[...] A palavra paisagem aparece nada menos que oitenta e cinco vezes na
Fenomenologia da percepção, e essa referência à paisagem não é um simples ornamento do texto. Mesmo
quando paisagem parece ser empregada na acepção metafórica, essa metáfora desempenha o papel de um
verdadeiro suporte para o próprio pensamento, do qual ela ilustra certas questões fundamentais”].
310
BARBARAS, 1991, p. 239: “[...] isso é dizer que o objeto é dado à distância, sem que essa distância seja dada”
(Tradução nossa).
311
Collot retira esse trecho da Fenomenologia da Percepção e a referência é dada na versão que se utiliza nesta
tese: MERLEAU-PONTY, 2006, p. 53.
312
Tradução nossa: “Embora anterior à reflexão, essa relação “antipredicativa” no mundo é « o meio e como a
pátria de nossos pensamentos » à diferença do cogito reflexivo, que se subtrai do mundo por melhor coincidir
com ele-mesmo, o cogito pré-reflexivo não se separa do contexto onde ele emerge: é o que O visível e o invisível
nomeia de um « pensamento de horizonte »”.
313
COLLOT, 2011, p.18: “[...] um modo de pensar intuitivo, pré-reflexivo” (Tradução nossa).
138

história dos movimentos artísticos e literários. Collot faz um levantamento desse processo e
demonstra a resistência do conceito aos reiterativos alardes contra a subjetividade e o
realismo. Na verdade, Collot se preocupa em depurar o conceito, em demonstrar que sua força
se encontra na relação de envolvimento entre o ponto de vista e o mundo: « [...] [d]ans le
paysage semblent s’être investies toutes les composantes subjectives d’une co-naissance au
monde que la conaissance moderne de l’univers ne pouvait plus prendre en charge »314. É esse
copertencimento dos dois vetores que interessa a Collot e que possibilita manter diálogo com
a última filosofia de Merleau-Ponty.
A importância do conceito paisagem − para este estudo do espaço literário − é que
ele condensa as nuanças da própria vivência, instaura o verdadeiro encontro com o mundo. Na
análise da obra de Saer sublinharemos a confluência entre voz e visão, o intrincado que se
produz na experiência do mundo. Collot afirma que a palavra “paisagem” surge em francês
« [...] qu’à l’aube de Temps modernes, peu après l’adjectif moderne lui-même, dont l’usage se
répand vers la fin du XVe siècle »315. O teórico argumenta que desde suas origens a palavra já
designava mais que um recorte topográfico: ela sempre veiculou o aspecto do ponto de vista.
Essa nuança é produtiva para o pensamento do espaço literário, já que desvenda o
envolvimento que se realiza na experiência. Collot, então, persegue a resistência do conceito
às mudanças históricas do pensamento estético, identificando que a crise da paisagem se deve
à crise da representação e a do sujeito. Enquanto a paisagem « [...] dans la littérature
romantiques s’oppose à cette modernisation, et relève d’une tout autre attitude, qui privilégie
l’émotion, la contemplation et le sentiment de la nature » 316
no modernismo e modernidade
« [...] la tendance dominante de ces mouvements a été, on le sait, la contestation et la
destruction de la vieille mimesis »317. É por isso que o filósofo se esmera em pôr a toda prova
o conceito de “pensée-paysage” ou de mostrar como ele resiste às próprias mudanças da
concepção de paisagem, já que não coloca em ênfase um polo da experiência, mas sublinha a
relação sem limites que se firma entre o vidente e o visível. Exemplo disso é quando Collot
discute a abstração na arte: « [...] [j]e rappellerai d’abord que c’est en travaillant sur le

314
COLLOT, 2005, p. 14: “[...] Na paisagem parece ter-se investido todos os componentes subjetivos de um co-
nascimento no mundo que o conhecimento moderno do universo não poderia mais suportar” (Tradução nossa).
315
COLLOT, 2011, p. 57: “[...] que à aurora dos Tempos modernos, pouco após o adjetivo moderno ser
empregado, que o uso se expande em torno do fim do séc. XV” (Tradução nossa).
316
COLLOT, 2011, p. 60: “[...] na literatura romântica, se opõe a essa modernização, e se sublinha outra atitude,
que privilegia a emoção, a contemplação e o sentimento da natureza” (Tradução nossa).
317
Ibidem, p. 62: “[...] a tendência dominante desses movimentos foi, se sabe, a contestação e a destruição da
velha mimese” (Tradução nossa).
139

paysage que de grands précurseurs comme Turner, Mondrian ou Kandinsky ont inventé
l’abstraction »318. Sobre isso, o teórico ainda afirma:

[...] [e]n s’affranchissant des contraintes et des illusions d’une mimesis


prétendument objective, l’art moderne a libéré, par exemple, l’expression
des composantes subjectives du paysage. Si celui-ci n’est plus figuré, il peut
se trouver transfiguré ou refiguré selon le point de vue d’un sujet créateur,
et/ou configuré selon une organisation qui n’a plus rien de « réaliste », mais
s’avoue plus ouvertement lyrique ou esthétique (COLLOT, 2011, p.63)319.

Retomando o conceito de “pensée-paysage”, percebemos como Collot se apropria


da discussão ontológica de Merleau-Ponty, principalmente de O visível e o invisível. No
referido livro de 2011, que tem como título o próprio conceito – La Pensée-Paysage – Collot
discute alguns termos que associam o seu pensamento à filosofia de Merleau-Ponty. Um dos
primeiros é o horizonte, tema que traz no seu ímpeto a relação do visível com o invisível.
Collot defende que « [c]ette activité synthétique est un des aspects de la structure d’horizon
que la phénoménologie a révélée au coeur de l’expérience sensible, et qui fait qu’une chose
n’est jamais perçue que dans son rapport à d’autres à l’intérieur d’un champ, d’un horizon
externe »320. Esse teórico, então, sublinha esse aspecto − já bem discutido, neste capítulo − da
dependência que tem o visível de um fundo de indeterminado. É interessante que o termo
champ é, posteriormente, discutido: Collot relembra que Merleau-Ponty substitui a noção de
sujeito pela de campo321, principalmente em O visível e o invisível. Essa discussão é
importante, porque o conceito pensée-paysage revela esse campo ou a própria indefinição –
entendida como imprecisão de limites – dos termos sujeito e objeto. Collot ainda associa essa
inconstância do horizonte à inesgotabilidade da paisagem, que se apresenta como « [...] une

318
Ibidem, p. 63: “[...] Eu recordarei, de início, que é trabalhando com a paisagem que grandes precursores – como
Turner, Mondrian ou Kandinsky – inventaram a abstração” (Tradução nossa).
319
Tradução nossa: “[...] Libertando-se das obrigações e das desilusões de uma mimese pretensiosamente objetiva,
a arte moderna liberou, por exemplo, a expressão dos componentes subjetivos da paisagem. Se este não é mais
figurado, ele pode se encontrar transfigurado ou refigurado segundo o ponto de vista de um sujeito criador, e/ou
configurado segundo uma organização que não tem mais nada de « realista », mas se mostra mais abertamente
lírica ou estética”.
320
COLLOT, 2011, p. 25: “Esta atividade sintética é um dos aspectos da estrutura do horizonte que a
fenomenologia revelou ao coração da experiência sensível e que faz com que uma coisa nunca seja percebida se
não for por sua relação com outras no interior de um campo, de um horizonte externo” (Tradução nossa).
321
Collot cita Merleau-Ponty: « “Je suis un champ, je suis une expérience” , écrit Merleau-Ponty dans le chapitre
de la Phénoménologie de la perception consacré au cogito, et il ira, dans les notes du Visible et l’Invisible,
jusqu’à “rejeter la notion de sujet, ou à définir le sujet comme champ”; il s’y propose de “décrire” “la pensée, le
sujet” comme situation spatiale, avec sa « localité » » (COLLOT, 2011, p. 35). [Tradução nossa: “‘Eu sou um
campo, eu sou uma experiência’, escreve Merleau-Ponty no capítulo da Fenomenologia da Percepção
consagrado ao cogito, e ele irá, nas notas do O visível e o invisível, até “rejeitar a noção de sujeito, ou a definir o
sujeito como campo”; ele se propõe aí a “descrever” “o pensamento, o sujeito” como situação espacial, com sua
« localização »”].
140

scène mouvant, animée d’un jeu d’ombres et de lumières »322. O teórico, assim, se apropria de
conceitos merleaupontyanos para a defesa de sua ideia de paisagem, como experiência no
mundo.
Ainda, sobre os termos – sujeito e objeto –, Collot retoma outro conceito de
Merleau-Ponty, o de chiasme. Como afirmamos anteriormente, todas as investidas contra o
conceito de paisagem na arte se deram devido à repulsa ao subjetivismo e/ou ao realismo.
Esse teórico, por seu turno, defende que esse conceito está na dependência desses vetores; ou
melhor: que resulta da própria relação dos termos. É nesse esquema que Collot se serve do
conceito de quiasma: « [l]e chiasme souligne ici l’échange entre objet et sujet qui caractérise
une pensée non réflexive et non discursive qui se constitue à même l’expérience sensible »323.
O quiasma sublinha, então, o movimento da experiência no qual se releva « [...] une
coappartenance du sujet et de l’objet, un enveloppement mutuel qui est plus profond que leur
distinction et qui en fonde la possibilité »324. É apenas por intermédio desse conceito –
chiasme – que se pode entender os termos sujeito e objeto como elementos da realização da
paisagem. Collot defende essa atualização por meio do espacement du sujet; ou seja:
revertendo o preconceito do sujeito, esse teórico ilustra o quiasma como esse movimento em
que o próprio sujeito se espacializa como abertura ao mundo.
É desse nó que o outro termo do conceito de Collot é extraído: « [...] [l]’espace est
une dimension essentielle de cette ouverture, dont une des modalités n’est autre que la
pensée »325. O pensamento é defendido, aqui, não como uma adição da subjetividade, mas
como ato pré-reflexivo que emerge na percepção. Buscando exemplificar essa ideia, esse
teórico cita Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção: “[...] [o] pensamento não é nada
de "interior", ele não existe fora do mundo”326; e, nas notas de O visível e o invisível: “[é]
preciso habituarmo-nos a compreender que o « pensamento » (cogitatio) não é contato
invisível de si consigo, vive fora dessa intimidade consigo, perante nós, não em nós, sempre
excêntrico”327. Com essas duas citações, Collot sublinha essa reciprocidade do pensamento e
do mundo no momento da experiência, seguindo as prerrogativas da fenomenologia que

322
Ibidem, p. 25: “[...] uma cena movente, animada de um jogo de sombras e de luz” (Tradução nossa).
323
Ibidem, p. 32: “O quiasma sublinha, aqui, a troca entre objeto e sujeito que caracteriza um pensamento não
reflexivo e não discursivo que se constitui mesmo a experiência sensível” (Tradução nossa).
324
BARBARAS, 2008, p. 193: “[...] um copertencimento do sujeito e do objeto, um envolvimento mutual que é
mais profundo que sua distinção (entre eles) e que nela funda a possibilidade” (Tradução nossa).
325
COLLOT, 2011, p. 34: “[...] O espaço é uma dimensão essencial dessa abertura, da qual uma das modalidades
não é outra coisa senão o pensamento” (Tradução nossa).
326
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 249.
327
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 214.
141

redefine a consciência como “être au monde” 328


. Collot defende que o conceito de paisagem
reúne esses dois vetores: « [...] [m]ieux que la notion de lieu, celle de paysage me semble
réunir ces deux directions de la spatialité humaine, qui est toujours à la fois ici et là-bas.
L’horizon délimite le paysage, mais cette limite est mobile, ouverte à l’appel de l’ailleurs »329.
Com isso, os dois vetores encontram-se abertos, porque a própria consciência se faz no
mundo, o que justifica a afirmação de ocorrência de uma “espacialização do sujeito”:
expressão que possibilita compreender o sujeito como espaço, como o próprio lugar da
experiência.
Na segunda parte deste capítulo, procuramos mostrar como Merleau-Ponty afasta-
se do termo sujeito e utiliza o termo corpo. Esse movimento é conduzido a graus mais
intensos quando, em O visível e o invisível, defende o conceito de chair, que une o nosso
corpo com o corpo do mundo. Relembramos, a seguir, esse movimento de ideias em Merleau-
Ponty:

[l]e corps est le trait d’union entre l’espace et l’esprit, et c’est grâce à cette
médiation que les choses elles-mêmes nous apparaissent « en chair et en os »
(Leibhaftig). C’est de cette distinction entre Körper et Leib que Merleau-
Ponty est parti pour élaborer une conception de la chair qui unit étroitement
le corps, l’esprit et le monde. L’expérience de la perception révèle que le
corps est à la fois voyant et visible, touchant et touché, sujet et objet ; il nous
ouvre à un monde dont il fait lui-même partie (COLLOT, 2011, p. 42)330.

Collot, então, trabalha essa “filosofia da encarnação” com o escopo de descrever o próprio
conceito de paisagem, demonstrando seu aspecto de entrelace entre o vidente e o mundo.
Essa relação de copertencimento que designa a própria chair é, então, sintetizada,
por Collot, no seu conceito de pensée-paysage. Esse seu gesto sublinha a abolição dos limites
ou a relevância do horizonte como « [...] le seuil qui le fait passer de la vue à la vision »331. É
interessante, então, salientarmos que esse conceito não toma a arte como representação; ao
contrário, sublinha o gesto de pôr em evidência a experiência em sua complexidade ou a
conjunção vidente-visível. Abrimos parênteses: quando fazemos, aqui, a leitura da obra de

328
COLLOT, 2011, p. 35: “ser ao mundo” (Tradução nossa).
329
Ibidem, p. 37: “[...] Melhor do que a noção de lugar, a de paisagem me parece reunir essas duas direções da
espacialidade humana, que é, sempre, ao mesmo tempo, aqui e lá. O horizonte delimita a paisagem, mas esse
limite é móvel, aberto ao chamado do alhures” (Tradução nossa).
330
Tradução nossa: “O corpo é a ponte de união entre o espaço e o espírito, e é graças a essa mediação que as
próprias coisas nos aparecem « em carne e osso » (Leibhaftig). É dessa distinção entre Körper e Leib que
Merleau-Ponty partiu para elaborar uma concepção da carne que une estreitamente o corpo, o espírito e o mundo.
A experiência da percepção revela que o corpo é, por sua vez, vidente e visível, tocante e tocado, sujeito e
objeto; ele nos abre a um mundo do qual ele mesmo faz parte”.
331
COLLOT, 2011, p. 98: “[...] o limiar que o faz passar do visto à visão” (Tradução nossa).
142

Saer, o objetivo central é frisarmos como esse romancista articula, por meio de suas
personagens − do ponto de vista –, a relação com o mundo. Percebemos, mais que um apuro
descritivo, as paisagens saerianas deixam à vista o potencial de presença da própria
percepção. Ultrapassando o próprio gesto do ver, as personagens são tomadas pelo espaço que
contemplam e se confluem nele. Esse é o primeiro movimento; posteriormente, é na
linguagem que ocorre o resgate da voz que narra: a impossibilidade de se atingir o todo
reenvia o narrador à tarefa de sondar o seu próprio ato narrativo. Assim, quando se traz esse
conceito de paisagem, o objetivo é descrever esse espaço realizado no plano da experiência.
Retomando: Collot ainda defende essa função da arte na busca por sondar o horizonte;

[...] [l]’art n’est qu’une réponse au défi de cet infigurable qui est au coeur de
toutes les figures du monde et de l’homme. Et qui fait qu’elles appellent non
pas l’image, mais la peinture ; non l’imitation qui les fige, mais le geste, qui
les défigure et les refigure pour les rendre à leur perpétuelle genèse
(COLLOT, 2011, p. 134)332.

Nos romances de Saer, é essa relação de envolvimento entre aquele que narra e o
ponto de vista que faz com que se construa esse esquema em que o texto seja uma tentativa de
encenação do movimento homem-mundo. Um ato de nominação, afirma Scavino: “[...]
[o]frecer algo a la constatación, en esto reside la dimensión poética de la palabra”333 e, por seu
turno, Collot, na citação acima, designa a arte como o desejo de se alcançar a gênese do
próprio movimento vidente-visível. Na verdade, o círculo não se fecha, porque o gesto
artístico se apraz na encenação de um princípio que sempre retorna sobre si mesmo, já que o
ponto de vista se encontra no interior desse mundo-movente: « [...] [c]elui-ci ne se trouve plus
dès lors devant le paysage, mais dedans; il n’est plus un sujet placé en face d’un objet, il est
impliqué dans le même espace que celui de l’oeuvre, qui ne lui donne plus à voir une
représentation, mais à vivre une présence »334. Essa realização da experiência contribui para a
desestabilização de um ponto de vista único, prioriza-se o multiperspectivismo e o movimento
sinestésico: o olhar é assessorado pelos outros sentidos humanos, na tarefa de se sondar o
mundo.

332
Tradução nossa: “[…] A arte é justamente uma resposta ao desafio desse irrepresentável que está no coração de
todas as representações do mundo e do homem. E que fazem que elas chamem não a imagem, mas a pintura; não
a imitação que as congelam, mas o gesto, que as desfigura e que as refigura para torná-las sua perpétua gênese”.
333
SCAVINO, 2004, p. 11.
334
COLLOT, 2011, p. 180: “[...] Isso não se encontra mais desde então diante da paisagem, mas dentro; ele não é
mais um sujeito colocado em face de um objeto, ele é implicado dentro do mesmo espaço que o da obra, que não
lhe dá mais a ver uma representação, mas a viver uma presença” (Tradução nossa).
143

Em Merleau-Ponty, constatamos como o ato de ver é sublinhado na percepção do


homem, e que, na verdade, esse gesto condensa as outras sensações: os outros sentidos se
manifestam, também, como maneiras de se ver o mundo. Collot frisa a característica
principal, do ato de ver: « [...] voir, c’est toujours “voir les choses en relation”, écrivait
Arnheim ; et selon Husserl, une chose n’est jamais perçue independamment de son contexte,
qui constitue son horizon »335. Retomar essa ideia, tão discutida por Merleau-Ponty, é
importante, porque sublinha como a paisagem contém e distende esses chamados caminhos do
olhar ou da percepção. Collot defende esse pensamento afirmando que a arte representa essa
liberdade em revelar a projeção dos sentidos no mundo: « [...] [c]e qui est ici évoqué, c’est
une expérience de l’ordre de la sensation plus que la perception »336. Dentro dessa
perspectiva, a paisagem reclama mais do que a percepção, ou a relação direta com o mundo,
busca-se a liberdade dos sentidos, em esforço para atravessar as nuanças da própria
experiência. Essa afirmação de Collot parece contraditória, mas reflete uma questão aguda na
última filosofia de Merleau-Ponty: o filósofo troca a percepção pela fé perceptiva; ou seja:
acentua o posicionamento do corpo no mundo ou seu aspecto de anterioridade à “reflexão”.
A paisagem, então, condiciona esse movimento entre vidente-visível: « [...] [l]e
paysage est toujours lié au point de vue d’un sujet, et cette solidarité s’inscrit dans son
horizon, qui se confond avec le champ visuel de celui qui le regard »337. Esse trecho se
encontra no epílogo de La Pensée-Paysage e acentua, novamente, o aspecto do ponto de vista
na manifestação da paisagem. Ao mesmo tempo em que se pode visualizar a positividade da
presença do vidente, a pluralidade do mundo também é acentuada pela menção ao horizonte.
Esse lugar, que se apresenta como movente e aberto a novas formas de percepção, dinamiza o
controle do vidente ou possibilita uma relação de via de mão dupla entre o corpo e o mundo.
É esse plano de forças que Colllot defende como “pensée-paysage” : « [l]e expérience
paysagère n’est donc pas uniquement visuelle, et le panorama lui-même comporte une part
d’invisibilité dont l’horizon marque la limite »338. Essa presença do horizonte possibilita que
se enxergue o visível – as coisas – e o sujeito na experiência da paisagem ou esse desejo de
busca por sentido.

335
Ibidem, p. 193: “[...] ver, é sempre « ver as coisas em relação », escreve Arnheim; e segundo Husserl, uma
coisa nunca é percebida independentemente de seu contexto, que constitui seu horizonte” (Tradução nossa).
336
Ibidem, p. 229: “[...] O que está aqui é evocado, é uma experiência da ordem da sensação mais que da
percepção” (Tradução nossa).
337
Ibidem, p. 273: “[...] A paisagem está sempre ligada ao ponto de vista de um sujeito, e essa solidariedade se
inscreve dentro de seu horizonte, que se confunde com o campo visual daquele que o olha” (Tradução nossa).
338
COLLOT, 2005, p. 14: “A experiência paisagística não é, portanto, unicamente visual, e mesmo o panorama
comporta uma parte de invisibilidade cujo horizonte marca o limite” (Tradução nossa).
144

Assim, a paisagem representa esse lugar « [...] d’échange où se rencontrent et se


confrontent différents points de vue »339. Collot delineia, posteriormente − em Pour une
géographie littéraire (2014) −, como é concedida relevância à paisagem ou como se faz o giro
da história da literatura para uma geografia da paisagem, como forma de se priorizar o aspecto
espacial da literatura: « [...] [o]n a pu soutenir que la postmodernité se caractérisait par un
renversement de la hiérarchie entre espace et temps »340. Collot desenvolve essa ideia
afirmando que o século XIX representou essa prevalência do tempo, enquanto que a época
atual a supremacia do espaço. Essa ideia é vislumbrada, pelo teórico, no próprio gesto dos
geógrafos: « [...] [s]i les géographes s’interessent tant aujourd’hui à la littérature, c’est que
celle-ci investit de plus en plus, comme nous allons le voir, non seulement une thématique
géographique mais une forme spatialisée »341. A geografia literária representa, então, por um
lado, preocupação com o estudo do espaço dentro da literatura e, por outro, o da literatura
dentro do espaço; esse último caso vem sendo objeto de estudo, também, por geógrafos.
O interessante, em Pour une géographie littéraire, é como Collot busca
demonstrar a relevância do estudo do espaço e como a paisagem literária − como foco
principal do livro − provoca reenvios múltiplos entre espectador e mundo. Collot frisa esse
potencial da paisagem como abertura a uma experiência “[...] [l]e texte ne renvoie pas
directement au réel mais à «une expérience du réel »”342. Essa questão é importante, porque
sublinha aquilo que Merleau-Ponty defende como primordial na paisagem artística: essa
capacidade de rastrear caminhos da experiência no mundo. Essa linguagem do mundo é
defendida, posteriormente, como o gesto que o artista balbucia em suas obras:

[...][s]i la terre nous parle, et semble nous faire “signe”, c’est qu’elle se
présente à nos yeux selon une « disposition » analogue à celle d’une phrase.
Dans le paysage, les choses se rassemblent selon un jeux complexe de
rapports qui fait sens ; et il appartient au poète de « relever cette topographie
ontologique du visible » (COLLOT, 2014, p. 108)343.

339
Ibidem, p. 441: “[...] de trocas onde se encontram e se confrontam diferentes pontos de vista” (Tradução nossa).
340
COLLOT, 2014, p. 16: “[...] Pôde-se defender que a pós-modernidade se caracterizava por uma inversão da
hierarquia entre espaço e tempo” (Tradução nossa).
341
Ibidem, p. 24: “[...] Se, hoje, os geógrafos se interessam tanto pela literatura, é porque esta investe cada vez
mais, como nós vamos ver, não somente em uma temática geográfica, mas em uma forma espacializada”
(Tradução nossa).
342
COLLOT, 2014, p. 88: “[...] O texto não remete diretamente ao real, mas a « uma experiência do real »”
(Tradução nossa).
343
Tradução nossa: “[...] Se a terra nos fala, e parece nos fazer « sinal », é porque ela se apresenta a nossos olhos
segundo uma « disposição » análoga a de uma frase. Na paisagem, as coisas se juntam segundo um jogo
complexo de relações que faz sentido; e ao poeta cabe a tarefa de « revelar esta topografia ontológica do
visível »”.
145

Assim, o jogo se perfaz no movimento de leitura do mundo e a arte se apresenta como uma
força de decifração dessa experiência. É interessante perceber como Collot retoma a ontologia
da carne de Merleau-Ponty para defender essa relação entre vidente-visível ou o próprio
conceito de paisagem.
Uma segunda questão que pode ser levantada a partir dessa última citação de
Colllot é como as coisas adquirem uma estrutura de coesão entre si. A linguagem, então,
apresenta-se como espelho da própria experiência, como forma de leitura do mundo. A
própria aderência das coisas se consolida como a linguagem: « [...] l’exigence de penser
l’expérience en continuité avec la parole et donc par-delà toute référence à une positivité,
factuelle ou idéelle, conduit Merleau-Ponty à la comprendre comme praxis plutôt que comme
théorie »344. É nesse movimento que a percepção se descobre como reciprocidade entre
vidente e visível, substrato para o pensamento defendido por Barbaras: a motricidade como
chave para entendimento do último pensamento de Merleau-Ponty. A linguagem se apresenta
como decifração dos sentidos encobertos, como capacidade de reordenação das coisas entre o
visível e o indeterminado.
Retomando: temos que essa passagem pelo conceito de paisagem de Collot é uma
mostra de como a filosofia de Merleau-Ponty − principalmente o último pensamento − serve
de leitura para o espaço literário; ou melhor: como pode ser enriquecedor pensarmos o espaço
literário por esse prisma, visualizando, mais do que a sua estrutura, o seu modo de
funcionamento. A experiência adquire relevo: pensa-se sobre como se estabelece a relação
entre o vidente e o mundo ou como o ponto de vista posiciona-se face às coisas e aos outros.
Na primeira parte deste capítulo, defendemos que o espaço literário é, aqui, pensado por meio
do ponto de vista e, também, por seu aspecto de representação do mundo. O primeiro é
potencialmente relevante, porque sublinha a própria relação vidente-visível. O segundo é
pensado como uma forma de se sublinhar o aspecto singular das descrições saerianas ou como
o romancista repudia, de certa maneira, o realismo literário, quando esse é entendido como
sinônimo de identificação. Em outros termos: o realismo, em Saer, é uma forma de se discutir
o aspecto representacional das suas descrições espaciais. A discussão do realismo é, também,
central no pensamento de Merleau-Ponty, segundo atesta, por exemplo, o trecho abaixo:

344
BARBARAS, 2008, p. 197: “[...] a exigência de pensar a experiência em continuidade com a palavra e,
portanto, ultrapassando toda referência a uma positividade, fatual ou ideal, conduz Merleau-Ponty a
compreendê-la como práxis mais que como teoria” (Tradução nossa).
146

[...] [e]n rassemblant sous le titre de réalisme la position scientiste, et


empiriste en général, le philosophe français accuse cette attitude de naïveté :
l’erreur commise par le réalisme est tellement grossière que cette attitude ne
peut même pas être considérée comme proprement philosophique (ROSATI,
2009, p. 20)345.

A crítica do filósofo francês contra o realismo é duríssima; todo o seu pensamento


se debruça sobre a rejeição ao objetivismo. Na verdade, Merleau-Ponty procura demonstrar
como a reversão histórico-filosófica entre realismo e idealismo não pode representar a
verdadeira filosofia. Ainda quanto a esse tema, temos que Rosati sublinha como esse filósofo
é “menos duro” com o idealismo – em relação ao realismo –, por meio de uma crítica
levantada por Barbaras sobre Merleau-Ponty:

[...] [l]e seul reproche que j’aurais à faire à l’auteur, ce n’est pas d’être allé
trop loin, mais plutôt de n’avoir pas été assez radical. Les descriptions
phénoménologiques qu’il nous propose maintiennent en effet le vocabulaire
de l’idéalisme. Elles sont en cela ordonées aux descriptions husserliennes
(BARBARAS, 1991, p. 34)346.

Merleau-Ponty tenta resolver essa questão no seu último pensamento: quando o vidente e o
visível são entrelaçados por meio do quiasma, no conceito de carne, como ele defende em O
visível e o invisível:

[a] única maneira de assegurar meu acesso às próprias coisas seria purificar
inteiramente a minha noção de subjetividade: não há nem mesmo
“subjetividade” ou “Ego”, a consciência não tem “habitante”, é mister que eu
a liberte inteiramente das apercepções segundas que fazem dela o avesso de
um corpo, a propriedade de um “psiquismo”, e que a descubra como o
“nada”, o vazio”, capaz da plenitude do mundo, ou melhor, que dela
necessita para carregar sua inanidade (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 59).

Afastando-se do realismo e do idealismo, Merleau-Ponty assegura a defesa da


interligação do sujeito e do mundo no conceito de carne. Esse conceito possibilita uma análise
mais frontal da experiência no mundo, porque faculta enxergar os intercâmbios realizados
entre o vidente e o visível. Trazendo esse conceito para o interior de uma análise literária, é

345
Tradução nossa: “[...] Reunindo, sob o título de realismo, a posição científica, e empirista em geral, o filósofo
francês acusa essa atitude de ingenuidade: o erro cometido pelo realismo é grosseiro de tal forma que essa
atitude não pode nem mesmo ser considerada como propriamente filosófica”.
346
Tradução nossa: “[...] A única reprovação que eu faria ao autor, não é de ter ido longe demais, mas, sim, de não
ter sido radical o bastante. As descrições fenomenológicas que ele nos propõe mantêm, de fato, o vocabulário do
idealismo. Elas são, por isso, relacionadas às descrições husserlianas”.
147

por meio dessa ideia que o espaço deixa de ser um lugar para ser um campo intricado em que
se releva a vivência do homem, a paisagem. A importância dessa mudança de perspectiva é
central para esta tese, porque o espaço ganha dinamismo na análise. Quando do trabalho com
os romances saerianos, frisaremos esse aspecto da experiência das personagens, como desejo
de coincidência com as coisas. O mundo deixa de ser analisado em separado das personagens
e passa a ser concebido por intermédio delas, como prolongamento de seus próprios sentidos.
Nessa análise nos fixamos nesse movimento do corpo no mundo, nas movimentações entre
vidente e visível. Por seu lado, o conceito de paisagem de Collot serve para comprovar a
produtividade do pensamento de Merleau-Ponty como ferramenta para leitura das
experiências das personagens. Contudo, mesmo Collot negando – no desenvolvimento do seu
conceito de “pensée-paysage” –, é perceptível a positividade do sujeito347, tanto em um termo
do conceito como no outro. A relevância do uso de seu pensamento, aqui, ancora-se no fato de
demonstrar a produtividade das ideias merleaupontyanas para a leitura do espaço literário. Na
verdade, a utilização da filosofia merleaupontyana é um retorno aos próprios parâmetros do
pensamento desse filósofo, já que a arte − principalmente a pintura e a literatura − serve de
exemplo para comprovar suas ideias filosóficas. É como se fizéssemos o mesmo caminho em
sentido inverso: demonstrando como sua filosofia pode dinamizar a compreensão da relação
das personagens com o mundo.

347
Nesta tese, sublinhamos como Merleau-Ponty consegue ativar a relação vidente-visível ou como ele ultrapassa
o binarismo sujeito e objeto. Contudo, apesar de todo esse empenho de Merleau-Ponty em se desvincular de uma
positividade do sujeito – principalmente por meio dessas suas últimas ideias –, uma crítica filosófica defende que
ele não conseguiu concretizar completamente esse feito. Rosati (2009) compartilha essa ideia nestes termos:
« [e]n premier lieu, donc, je crois pouvoir affirmer que le langage et la terminologie utilisés par notre philosophe
dans Le visible et l’invisible sont encore trop liés à la phénomenologie pour arriver à abandonner complètement
le concept de sujet. Le premier pas, le commencement de la philosophie est toujours présenté comme le moment
où un sujet commence à penser, un commencement qui – quoique Merleau-Ponty essaie de le nier – se révèle
semblable à l’autoréflexion de la conscience constituante. Merleau-Ponty ne paraît pas entrevoir d’autres façons
de ‘commencer’ à faire philosophie » (ROSATI, 2009, p. 57). [Tradução nossa: “Em primeiro lugar, portanto,
creio poder afirmar que a linguagem e a terminologia utilizadas por nosso filósofo em O visível e o invisível
estão ainda muito relacionadas à fenomenologia para conseguir abandonar completamente o conceito de sujeito.
O primeiro passo, o início da filosofia é sempre apresentado como o momento em que um sujeito começa a
pensar, um começo que – embora Merleau-Ponty tente negá-lo – se revela semelhante à autorreflexão da
consciência constituinte. Merleau-Ponty não parece entrever outras maneiras de ‘começar’ a fazer filosofia”].
148

CAPÍTULO 3
O ESPAÇO EM LA GRANDE DE JUAN JOSÉ SAER

“[…] a Barco se le ocurrió preguntar: ¿Carlitos, a tu juicio, qué es una novela? Y


Carlitos sin vacilar un segundo y sin siquiera desviar la vista del agua que corría,
arremolinándose contra los pilares del puente, varios metros más abajo, le contestó:
El movimiento continuo descompuesto.” (SAER, La grande, p. 165).

A busca por envolver as personagens de suas obras com o espaço é um gesto


contumaz de Juan José Saer, em toda a sua obra ficcional. La grande, seu último romance, é
abordado, aqui, como fonte para exame das estratégias desse escritor com a engrenagem
composta por sujeito e espaço ou com o movimento da experiência. Justificamos essa escolha
por acreditarmos que esse romance condensa as questões teóricas desenvolvidas em seus
romances anteriores e lança sobre elas uma perspectiva mais filosófica348. La grande
potencializa o teor filosófico das discussões anteriores, quando observamos essa nova
roupagem concedida ao problema da experiência. O espaço narrativo se apresenta em ato ou
no processo da experiência do sujeito: as personagens buscam atingir as coisas e o movimento
do tempo contribui para que haja incessante fuga na apropriação do mundo. A questão central
desta tese é, então, a descrição desse movimento das personagens saerianas no espaço,
enfocando o projeto de Saer na representação da categoria espacial. O espaço é percorrido em
duas vertentes: como representação e como focalização. Justificamos essas duas nuanças
teóricas do espaço literário com amparo no fato de perseguirmos o processo da experiência:
nosso objetivo é descrever a relação da personagem com o mundo e compreender as
estruturas de funcionamento do espaço por meio das estruturas de representação arquitetadas
por Saer.
Em La grande, Saer lança o leitor no interior do relato em movimento: as
personagens já se encontram envoltas no enigma do espaço, ou predispostas a compreender o
seu grau de envolvimento com o mundo. Em muitos dos romances de Saer, como em La
grande, a narrativa inicia em focalização externa, com o narrador por sobre o mundo e por
sobre as personagens; em seguida, o narrador se encontra com a personagem com quem,

348
Ravetti (2011, p. 55) afirma que “[...] [é] evidente que Saer não é um historiador, nem um filósofo, nem
pretende ocupar esse espaço, apesar de ter escrito em primeira pessoa relatos cujo ponto de vista narrativo é,
precisamente, o de um filósofo ou o de um historiador. Como um narrador, em sentido amplo do termo, atuou na
literatura, explicitamente, entregue ao seu exercício balbuciante e indagatório, entre o lance de dados e a mais
premente necessidade”.
149

dialeticamente,349 conduzirá o relato. Saer, preferencialmente, trabalha com um narrador em


terceira pessoa350, que se confunde com a personagem, devido ao recurso do discurso indireto
livre. Os pensamentos da personagem se confundem com as palavras do narrador, porque:
“[o] narrador aproxima tanto o leitor da narrativa que a presença do primeiro se esvai, em
benefício da personagem.”351. La grande – em relação a outros romances de Saer − apresenta
focalização múltipla, sendo que, em grande parte desse relato, o foco se centra na personagem
Nula. Consequentemente, a divisão entre personagem e narrador se mostra complexa, dadas a
constante mudança de perspectiva e a presença da voz do narrador heterodiegético. Por outro
lado, percebemos, na progressão narrativa, certa prioridade dada à perspectiva de Nula: a
focalização de outros personagens, em alguns casos, se detém apenas externamente, o que não
ocorre com a personagem principal.
No início desse romance, o leitor é espectador de uma colagem um pouco
incoerente, apresentada pelo narrador ainda senhor de si mesmo, ou externo às personagens.
Essa incoerência se manifesta na incongruência entre as personagens e o espaço. O narrador
sinaliza que as roupas que Nula e Gutiérrez vestem – de um vermelho e de um amarelo
berrantes – não se conformam com o espaço chuvoso e cinzento do entardecer: essa
desarmonia é salientada pelo narrador. Esse desacordo estaria na suposta apreensão do mundo
– presente, também, em outros romances − como um deslocamento monótono e contínuo352,
defendida ora pelo narrador, ora por meio da voz de uma personagem. É como se as
personagens não se estruturassem harmonicamente com o espaço em que deambulam, porque,
ironicamente, o narrador acentua a disparidade entre a vivacidade das cores dessa
indumentária e o cinzento dia de chuva. Esse descompasso entre o homem e o mundo
sublinha um novo caráter da experiência: seu aspecto singular e, por vezes, inapreensível ou
inalcançável. Essa concepção difere daquela apresentada anteriormente, em que se defende a
monotonia na relação do homem com o mundo. Percebemos, em La grande, essas duas
concepções da experiência, representadas pela atuação das personagens Nula e Gutiérrez. É
visando destrinchar o encontro dessas personagens com o mundo que procuramos perpassar,

349
Frisamos, com esse termo, a participação da personagem e do narrador nesse tipo de narração em terceira
pessoa, utilizada, rotineiramente, por Saer.
350
Perdigón defende que essa preferência pelo narrador de terceira pessoa é uma estratégia de abertura para a
disseminação das concepções saerianas acerca da narrativa no interior do romance: “[t]ambién por esta razón,
sus descripciones no son una enumeración de detalles sino más bien bloques de sensaciones y de ideas, siempre
amarradas a la perspectiva “subjetiva” de su narrador, que es en últimas la perspectiva de la poética de Saer”
(PERDIGÓN, 2011, p. 111).
351
MOTA, 2011, p. 36.
352
Essa perspectiva se apresenta como uma das chaves de leitura do aspecto melancólico da obra de Juan José
Saer, defendida, por Julio Premat, em La dicha de Saturno (2002). Premat analisa a obra de Saer sublinhando o
aspecto melancólico e a preocupação desse autor com seu trabalho de escrita.
150

fenomenologicamente, a experiência. No movimento entre voz e apropriação do espaço –


pelo ver −, percebemos uma tentativa de integração do sujeito com o mundo, promovida em
conformidade com uma dessas duas diretrizes de concepção da experiência.
O interesse nesse dilema do narrador é que a prioridade dada à personagem
contribui para que a experiência seja posta em evidência. Quando Saer destaca o ver da
personagem − por intermédio da focalização interna –, percebemos uma nuança
fenomenológica da experiência. O narrador em terceira pessoa concede espaço para que a
personagem possa ver o mundo e, nesse momento, esquecem-se as amarras do narrador
heterodiegético e a personagem “gerencia” sua relação com o espaço. Essas aspas servem
para frisar que há uma manifestação potencial da personagem, uma quase identificação com o
mundo, o que, sinaliza que as coisas adquirem, também, certa autonomia. A personagem
busca coincidir-se com o mundo, ao mesmo tempo em que se sente como que tocada pelas
coisas. O desejo de tomar posse do visível é coibido pela autonomia que o mundo adquire
frente ao sujeito. Esses momentos da experiência se apresentam como que dispersos no
romance, sujeitos ao controle do narrador de terceira pessoa. Defendemos, aqui, uma relação
fenomenológica nas descrições saerianas, uma quase fusão da personagem com o mundo.
Essa fusão é sempre resgatada pela motricidade do movimento da personagem no espaço, ora
como vidente ora como visível:

Gutiérrez vacía el mate con dos o tres chupadas enérgicas y se inmoviliza:


todo el césped a su alrededor está cubierto de gotitas multicolores en las que
la luz de la mañana se descompone. La gran sustancia blanca, única, a
menudo incolora que, incesante, se propaga hasta en los rincones más
apartados de lo visible, se declina a sus pies, ahora, en un centelleo de gotitas
amarillas, verdes, naranja, rojas, azules, índigo, que, si él mueve ligeramente
la cabeza sin dejar de mirarlas, parecen animadas de movimiento, cambiar de
color, volverse más luminosas, emitiendo unos destellos tornasolados
(SAER, 2005, p. 328).

Nas suas notas de trabalho de O visível e o invisível, Merleau-Ponty defende a


ideia de que “[o] mundo estético deve ser descrito como espaço de transcendência, espaço de
incompossibilidades, de eclosão, de deiscência, e não como espaço objetivo-imanente”353.
Saer se aproxima dessa concepção, quando defende a ficção como um espaço de exploração
do homem pelo homem. O que frisamos, neste capítulo, é o potencial descritivo da relação
personagem-mundo. Há mais do que uma entrada nas filigranas do sentir; a personagem
apresenta o mundo como que deformado ou condicionado pela sua própria experiência. Esse

353
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 201.
151

movimento escapa ao processo de reter as coisas por meio de meticulosa descrição, ou


melhor, esse é o primeiro objetivo, mas a impossibilidade de se alcançar as coisas no
exaustivo movimento de aproximação – descritivo – faz com que o mundo apresente
deformidades e incongruências. Essa é a riqueza da experiência das personagens saerianas,
imbricada na encenação da própria impossibilidade de se atingir a objetividade do mundo. A
experiência − como uma abertura para a exploração das fissuras do mundo no esforço por
perseguir o visível como coisa que sempre se esconde por detrás de outras − se apresenta
como que continuamente incompleta e deformada.
Os atritos na experiência da personagem é tema de discussão de La grande, assim
como a tentativa para se amoldar sujeito e mundo em um mesmo movimento descritivo; como
veremos neste capítulo. Em um tempo em processo, o narrador se acerca das personagens e
aproxima o leitor da história. A entrada do leitor em um tempo que já se escoa é
exemplificada na divisão da história em sete partes − nomeadas com os nomes dos dias da
semana −, sendo que o primeiro capítulo é “Martes”. “Lunes”, o último capítulo desse
romance, não foi redigido, devido à morte do escritor, que o deixou, então, com apenas o
título, o subtítulo e uma única frase354, que iniciaria o capítulo: “[c]on la lluvia, llegó el otoño,
y con el otoño, el tiempo del vino”355. Saer não conclui esse romance, mas deixa, no gesto de
fazer coincidir o narrado com o tempo total – com todos os dias da semana −, o projeto de
envolver o todo, de confluir o mundo em uma totalidade por meio de uma estrutura temporal.
Os ruídos entre tempo e espaço são sentidos no desejo da personagem de atingir
as coisas em sua integralidade, de atravessar o próprio movimento. Essa peleja do homem
com o mundo se apresenta em dois movimentos: na busca de coincidência com as coisas –
que se visualiza nas exaustivas descrições do contato com os outros e com as coisas − e no
posterior resgate narrativo. Esse gesto duplo sublinha o próprio movimento do mundo356 ou a
impossibilidade de se coincidir com as coisas e de uma reversibilidade total. O foco da nossa
discussão sobre o espaço saeriano, então, encontra-se na disposição do homem em

354
No posfácio de La grande há uma advertência ao leitor sobre o último capítulo do romance: “[...] [d]el último
capítulo, Saer escribió en el cuaderno el título y la primera frase. Se sabe que lo había pensado como una coda,
no muy extensa (no más de veinte páginas), y que había decidido terminar la novela con la frase Moro vende. El
lector puede inferir a partir de esa frase el posible final de la novela (quizás Gutiérrez ha decidido vender la
casa), pero no existen indicaciones ni apuntes que permitan asegurar cuál habría sido ese final” (SAER, 2005, p.
376).
355
Ibidem, p. 375.
356
Pode-se visualizar nesse gesto saeriano aquilo que Merleau-Ponty defende como “reversibilidade”, o
movimento no interior da carne: “[...] Abertura pela carne: os dois lados da folha de meu corpo e os dois lados
da folha do mundo visível... É entre esse avesso e esse direito intercalados que há visibilidade. Meu corpo
modelo das coisas e as coisas modelo do meu corpo: o corpo ligado por todas suas partes ao mundo, contra ele
[...] o mundo, a carne não como fato ou soma de fatos, mas como lugar de uma inscrição de verdade”
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 128).
152

surpreender o mundo ou em atingir as coisas. Essa questão é desvelada, principalmente,


quando a “personagem” se detém na descrição pormenorizada do espaço em que se apresenta.
Em romances anteriores, percebemos que a incapacidade de a narrativa absorver a nuance de
apresentação do mundo produz um colapso no texto. Devido a esse fato, ocorre uma fuga da
personagem do espaço vivido para um passado de rememorações. O último romance de Saer
tem por diferencial destrinchar o mundo, percebê-lo por vários olhares, por meio do jogo de
perspectivas das personagens ou da focalização múltipla. É como se houvesse uma recusa da
resistência do mundo ao “conhecimento” ou se as respostas para as questões da apreensão do
espaço estivessem na confluência das percepções.
Nossa proposta, aqui, é ler esse envolvimento das personagens com o espaço −
acentuando-se a questão fenomenológica −, porque é o encontro do homem com o mundo que
permite descrevermos a engrenagem de composição do espaço saeriano. La grande, além de
prosseguir com a discussão da concretude do espaço que envolve as personagens − presente
em toda a obra saeriana −, refaz essa discussão, por meio de um aparato filosófico. Essa
postura é desvelada quando a personagem − que detém grande parte do foco narrativo − tem o
gesto de construir uma “ontología del devenir”. Essa personagem é Nula, que abandonou a
faculdade de Medicina para estudar Filosofia, com esta justificativa:

[…] en la época de la Facultad de Medicina, veía los cuerpos abiertos y las


vísceras expuestas, escuchando las lecciones del profesor de anatomía, y
pensaba no en los órganos ni en las funciones que cumplían, sino en cosas
más abstractas, como, por ejemplo en el hecho de que si bien los cuerpos del
mismo sexo tenían todos los mismos órganos, también cada uno era único,
de modo que lo que a él le interesaba de verdad, no era la función o la
patología específica de esos órganos, sino las relaciones entre lo particular y
lo general (SAER, 2005, p. 68).

Nula projetava construir uma ontologia que retratasse a inconstância das coisas; então, mais
uma vez, acentua-se a questão da motricidade do mundo. Esse movimento é visualizado,
principalmente na temporalidade, como um impedimento de que as coisas sejam
concretamente possuídas. A nomenclatura saeriana “ontología del devenir” retrata a fuga das
coisas do processo de descrição, ao mesmo tempo em que sinaliza o gesto diferencial de Saer,
em La grande, quando apresenta a possibilidade de se deslindar o movimento das coisas ou a
própria ação do tempo.
Essa “ontología del devenir” − que a personagem Nula projeta em todo o decorrer
da narrativa − põe a descoberto o seu desejo de desvendar como se estabelece a relação entre
sujeito e mundo. É interessante sublinhar esse fato, porque Merleau-Ponty defende que a base
153

de sua filosofia está na reversibilidade e defende essa questão como uma verdade última, um
posicionamento que acentua a relação ininterrupta entre as coisas e os corpos. Assim, «[...]
Merleau-Ponty insiste sur cet aspect: l’inachèvement de la perception n’est pas tant un échec
pour la perception que l’occasion pour elle d’aller toujours plus loin dans la découverte d’un
objet inépuisable»357. Essa questão é central na percepção do mundo pelas personagens
saerianas e, no caso de Nula, o foco se centra em acompanhar esse movimento do inacabável.
Do mesmo modo que o filósofo põe em primeiro plano a motricidade na relação com o
mundo, em Saer o projeto das personagens que veem é pôr a descoberto esse movimento das
coisas. Esse indeterminado, perseguido pelo olhar das personagens, é classificado, por
Zielinski, como uma abertura à transcendência: «[...] [c]e qui fait de l’expérience de la
perception par Abschattungen une expérience de transcendance, c’est que l’objet n’est jamais
saisissable en plénitude»358.
Na análise de La grande – que empreendemos neste capítulo e no posterior
deambular sobre outros romances de Saer −, o foco se centra no espaço ou na experiência das
personagens. O grau de envolvimento delas com as coisas e com os outros, narrado por meio
de recalcitrante negação da apreensão total, faz dos relatos de Saer um exemplo dessa
transcendência do mundo. Essa é a peça de maior valor, quando se foca no espaço de Saer,
essa encenação da experiência sempre incompleta e, ao mesmo tempo, sempre desejada. Esse
enigma do mundo, nos termos de Zielinski, é visível, em Saer, principalmente na relação da
personagem com o horizonte: « [...] [u]ne même interprétation guide la notion d’horizon.
L’énigme du monde comme horizon se tient dans cet entre-deux de l’inactualité et de la
présence »359. Saer prioriza, em muitos romances, uma fixação no horizonte do mundo, como
uma parte que sempre escapa à percepção. Essa é uma das insígnias da transcendência do
mundo, como, ainda, afirma Zielinski: “[l]’horizon rend la perception intrinsèquement
inachevée, et le monde inépuisable. Le monde est inconstituable, à la fois du fait de son
essence même, et du côté du sujet : sujet et objet ne s’opposent pas, mais participent du même
horizon (ce que Merleau-Ponty nomine «chair»)”360.

357
ZIELINSKI, 2008, p. 222: “[...] Merleau-Ponty insiste sobre esse aspecto: o inacabamento da percepção não é
tanto um fracasso para a percepção, mas a ocasião para ela ir sempre mais longe, na descoberta de um objeto
inesgotável” (Tradução nossa).
358
Ibidem, p. 222: “[...] [o] que faz da experiência da percepção por Abschattungen uma experiência de
transcendência é o fato de o objeto não ser jamais apreensível em plenitude” (Tradução nossa).
359
Ibidem, p. 223: “[...] [u]ma mesma interpretação guia a noção de horizonte. O enigma do mundo como
horizonte se mantém nesse entremeio da inatualidade e da presença” (Tradução nossa).
360
Ibidem, p. 226: “[o] horizonte torna a percepção intrinsecamente inacabada e o mundo inesgotável. O mundo
não é acabado, simultaneamente pelo fato de sua própria essência e pela do sujeito: sujeito e objeto não se
opõem, mas participam do mesmo horizonte (o que Merleau-Ponty nomeia de ‘carne’)” (Tradução nossa).
154

É importante trazer esses elementos teóricos e filosóficos no sentido de confirmar


a leitura que fazemos, aqui, do espaço saeriano. Temos que, quando as personagens se
embrenham no mundo, quando perfazem caminhos diversos, em esforço para desvendar seu
próprio envolvimento com os outros e com as coisas, o que percebemos é mais do que a
impossibilidade de revelá-los; acentua-se a vinculação desse vidente com a totalidade do
mundo. Posteriormente, destacamos essa discussão em La grande ou como a relação das
partes com o todo é recalcitrante, no romance e em toda a obra saeriana. As personagens se
interrogam, no intuito de desvendarem se o recorte pode condensar, com justeza, a totalidade,
tendo em vista a sua incapacidade de percorrer as minúcias ou a totalidade do mundo. É nesse
universo de incompletude que o indivíduo saeriano se apresenta cindido pelo movimento da
percepção. Focando-se em Nula, personagem do seu último romance, temos que o seu projeto
filosófico sublinha esse desejo de descrever os seus caminhos de encontro com o mundo.
Merleau-Ponty, nas “Notas de trabalho” de O visível e o invisível, posiciona-se concretamente
sobre a percepção: “[...] [o] mundo percebido (como a pintura) é o conjunto dos caminhos de
meu corpo e não uma multidão de indivíduos espácio-temporais”361.
Merleau-Ponty posiciona-se a favor do movimento e, assim, denuncia o
engessamento da experiência, frisa como é múltipla a relação com o mundo. A Pintura é
priorizada na discussão do ver, na medida em que aponta os caminhos do perceber. É
interessante pontuarmos que, nesse exemplo da Pintura – tendo em vista o seu aspecto de
acabamento na tela −, outro ponto de vista podia ser tomado. O filósofo, por sua vez, percebe
o posicionamento do corpo na experiência − acentua os caminhos do olhar em direção ao
mundo – como que projetado na tela. Essa é a riqueza da relação das Artes com a Filosofia,
seu aspecto de desvendar a nossa relação muda com o mundo ou esses itinerários do olhar,
para não dizer de todo o sentir. Há algo parecido no que Saer defende como uma das funções
da ficção, por exemplo. A ênfase de ambos está em enfatizar como a Arte gesticula a
pluralidade da relação do corpo com o mundo. A afirmação desse filósofo acentua o cerne de
seu pensamento em relação à experiência: há variados caminhos percorridos na percepção.
Frisa-se, então, o movimento dos corpos em uma relação aberta com o mundo ou como a
percepção não se projeta em apenas um feixe de luz. Merleau-Ponty sublinha a pluralidade de
caminhos que se abrem à percepção, como que advindos da própria porosidade do mundo em
contato com o corpo. Novamente, destaca-se a incapacidade de se confluir em apenas um

361
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 224.
155

olhar o todo, sublinha-se essa nuance do indeterminado como força motriz que,
reiteradamente, põe a descoberto sempre algo novo.
Retomando La grande, percebemos que é nessa fugidia presença do mundo que as
personagens saerianas se encontram no espaço da ação. A experiência do sujeito é quase
negada, nesse gesto de reversibilidade com as coisas, devido ao processo do devir e à própria
incapacidade de se recobrir, completamente, a experiência. Nesse romance, quando as
personagens se centram no espaço – quando descrevem sua relação com o mundo −, a
tentativa de inventariá-lo pela visão esbarra no seu próprio movimento de transformação:
aquilo que, antes, era visto, torna-se algo novo, diante do seu observador. Essa força do
indeterminado não se aloja exclusivamente no tempo, mas, também, na própria multiplicidade
de apresentação do mundo. A partir dessa constatação, pensamos a riqueza de se relacionar o
conceito de “carne” de Merleau-Ponty – o pensamento da reversibilidade – do que, aqui,
frisamos encontrar-se em Saer: a pluralidade e a minúcia da percepção das personagens. Esse
pensamento do indeterminado pode desvendar, em grande medida, essa perspectiva múltipla
do espaço saeriano.
Em La grande, há um enfrentamento mais pungente desse gesto fugidio do
mundo, por meio das vozes – de diferentes personagens − que ecoam no texto. A perspectiva
múltipla possibilita que haja uma discussão, entre as personagens – por meio daquilo que é
permitido saber delas –, dos conceitos de tempo e de espaço ou como o reflexo do tempo
incide sobre a percepção do mundo. Resumindo: basicamente percebemos duas concepções
que se complementam nesse romance: aquela que enfatiza o mundo ou que as coisas não são
plenamente atingidas − concepção presente, também, em romances anteriores – e um segundo
posicionamento, quando se defende que é o sujeito quem capta as perspectivas do mundo ou
que as coisas não são as mesmas para observadores distintos. A primeira reflete uma ênfase
no mundo; a segunda, por sua vez, acentua a experiência particular do sujeito. Esse último
romance de Saer destaca a intersubjetividade, ao expor as posições de várias personagens
sobre um mesmo acontecimento por meio do intrometimento do narrador heterodiegético
nessas perspectivas. É interessante visualizarmos − nesse modo de narrar − como uma posição
está como que contaminada pela presença “do outro”.
Essas duas perspectivas, presentes em La grande, acerca da relação do sujeito
com o mundo, são asseveradas no jogo de perspectivas entre as personagens, pontuado
anteriormente. Nula, por exemplo, é um inquisidor da aparência das coisas; defende a
transitoriedade do mundo: “somos pastos del devenir y que todo está em movimiento y en
156

cambio constante”362. Como afirmamos anteriormente, essa personagem tem por objetivo
escrever uma “ontología del devenir” ou descrever a fugacidade do mundo, dado o
escoamento temporal que incide sobre o espaço. A tese de Nula é contrastada, principalmente,
pela postura de Gutiérrez, personagem que retorna da Europa depois de três décadas.
Gutiérrez despreza o intervalo de tempo que passou distante de sua pátria e busca se reintegrar
a ela, com a intenção de vivenciar o mundo que já escoara no tempo. Sob a perspectiva dessa
personagem, observamos que as coisas não são descritas em seu conjunto, ou melhor,
Gutiérrez sublinha a singularidade do mundo, como evidencia, por exemplo, este excerto:

—Fíjese como son todas iguales — dice.


Gutiérrez lo mira sorprendido.
—Las olitas — dice Nula —. Cada una de ellas, es la misma convulsión que
se repite.
—La misma no — dice Gutiérrez, sin siquiera mirar la superficie del agua.
(SAER, 2005, p.13).

O embate entre essas duas posturas atravessa o romance; ou melhor: a


singularidade de La grande é a possibilidade de pormos em discussão a própria percepção:
exaurida do jogo de perspectivas das personagens. É essa mistura de uma tese de cunho
objetivo e uma tese de cunho subjetivo – de Gutiérrez e de Nula, respectivamente − que
dialoga, singularmente, com a filosofia de Merleau-Ponty363. Abrimos, aqui, parênteses: a
nuança de subjetividade da perspectiva de Nula se encontra na ênfase dada ao projeto
idiossincrático de ler o mundo. Por outro lado, se verá que Gutiérrez se esmera em acentuar as
minúcias que se fazem perceptíveis no mundo. Buscando compreender essas posições em
relação à experiência, o primeiro passo é contrastarmos essas duas personagens para que,
assim, consigamos perceber a formalização do mundo que cada uma delas projeta. Entender a
abordagem filosófica da categoria espacial defendida nesse romance requer essa abertura para
as diferenças de posicionamentos das personagens diante do mundo. A contraposição de
perspectivas de apreensão do mundo, ou a focalização múltipla, possibilita que a experiência
seja desvencilhada mais concretamente. Outra justificativa para a escolha de La grande é que
esse romance percorre a lhanura364, espaço que repercute, nos romances de Saer, como um

362
SAER, 2005, p. 67.
363
A última filosofia de Merleau-Ponty foca-se na junção entre sujeito e mundo; na verdade, é possível perceber,
mesmo na obra de 1945, Fenomenologia da Percepção, a postura de Merleau-Ponty na tentativa de unir esses
dois universos. Essa perspectiva de continuidade do pensamento merleaupontyano é defendida por M.C. Dillon
(1998).
364
Laurent afirma sobre lhanura: “[...] [l]a zona sería entonces el ‘recuerdo de recuerdo de lectura’ en el que cada
lector va proyectando vivencias personales eminentemente subjetivas. Así, a la pregunta ¿cómo se llama la
157

lugar fecundo para o embate do homem com o mundo. É no olhar sobre a lhanura que as
personagens descobrem o horizonte, como um ponto que sempre escapa à observação.
É fecundo esse tema do horizonte para a filosofia de Merleau-Ponty, porque
suscita o pensamento da reversibilidade ou do vidente e do visível. Esse é um dos pontos em
que a sua filosofia se mostra fecunda para a leitura do espaço saeriano como maneira de
mostrar em que termos se firma a relação das personagens com o mundo. O objetivo, aqui, é
ultrapassarmos uma descrição objetiva do espaço, ao contrário, esmeramos em pôr em
destaque a experiência. A estratégia é mostrarmos como o gesto do vidente está como que
imerso no visível, como se torna difícil separá-los nesses lances do olhar. A transcendência do
ver é descrita por Saer: a nitidez das coisas é borrada pelo recuo constante do mundo. É
interessante pontuarmos como as investidas das personagens se apresentam em múltiplas
formas, na aproximação ao mundo. Esses variados caminhos sinalizam aquilo que Merleau-
Ponty afirma sobre a Arte, como um lugar em que se descobre uma relação múltipla com o
“sentido bruto” do mundo. Em Saer, é patente a constante intromissão das personagens no afã
de atravessar as barreiras que se escondem no além-horizonte.
La grande, então, apresenta as duas personagens principais do romance já no seu
primeiro parágrafo. Nula e Gutiérrez aparecem cruzando a vegetação do campo, que é
margeado pelo rio. A aproximação dos dois espaços mais visitados na obra saeriana (a lhanura
e o rio), já sedimenta esse romance, em um projeto de escrita espacial. A inserção das
personagens no espaço e o próprio desconhecimento delas quanto à aproximação com o rio
projetam a presença do narrador. A performance do narrador denuncia a forma de
apresentação do espaço no narrado. O seu sobrevoo inicial por sobre as personagens, já
imersas no espaço, é uma recorrente formalização do romance saeriano. O “afastamento” do
narrador se processa no momento em que a focalização se instaura sobre a personagem.
Retomando a questão da focalização e do espaço, percebemos, no último romance de Saer,
distribuição da focalização entre os vários personagens, mas, quanto à realização do espaço, o
posicionamento de Nula e de Gutiérrez − ou a perspectiva projetada por eles − é mais
significativo para a análise. Partimos, então, para a análise da deambulação, dessas duas
personagens, no espaço ficcional. É por meio do cotejo entre esses dois olhares que
conseguimos nos movimentar no interior da poética espacial saeriana de La grande.

‘ciudad’?, más de un lector podría contestar ‘Santa Fe’ pero en ningún momento el nombre de la ciudad de Santa
Fe aparece en la ficción saeriana. El único lugar donde aparece es en el prólogo ‘Dos palabras’ que abre En la
zona, es decir en un espacio liminal que da paso a la ficción pero que se queda fuera de la ficción. Y nunca
volverá a aparecer” (LAURENT, 2013, p. 208).
158

A personagem que mais detém o foco é Nula e é por meio dela que percorremos a
primeira posição em relação ao problema espacial. Não podemos renunciar ao fato de o
narrador se manter sempre presente no relato, já que se trata de uma narrativa em terceira
pessoa, mas seu movimento está em possibilitar que a personagem 365 também se revele
ativamente na experiência. Retomando, Nula carrega uma nuança filosófica em seu discurso:
deixou o curso de Medicina para estudar Filosofia, com a justificativa de preferência por
coisas abstratas. Em Saer, muitas das personagens circulam nos meandros de seu mundo
ficcional, movem-se por obras que têm intervalos significativos de tempo entre suas
publicações. A repercussão do sujeito na obra é conceituada, pelos críticos de Saer, como um
projeto coerente de escrita; Premat afirma que: “[...] doy por conocidas las características más
anecdóticas del conjunto, las recurrencias argumentales y espaciales, la reaparición de
personajes, las particularidades a la vez referenciales e imaginarias de la Zona” 366. A
coerência do conjunto se apresenta como uma das dificuldades para se atravessar o sentido do
todo. Esse embaraço é devido à extensa obra publicada por Saer (doze romances, quatro livros
de ensaios, quatro livros de contos e um de poesia); por outro lado, a confirmação da
coerência do conjunto permite que se estabeleça uma leitura relacional por meio da entrada –
por uma das partes − em uma de suas obras ficcionais. É dessa forma, que pretendemos nos
movimentar no trabalho de leitura do espaço saeriano: deslocando-nos a partir de La grande,
o nosso escopo é confirmar os pontos que caracterizam o espaço saeriano desenhado nos
romances. Nesse sentido, o primeiro passo é contrastarmos as duas perspectivas conflitantes
em La grande – em relação à experiência −, representadas por meio das performances das
personagens Nula e Gutiérrez.

3.1 NULA: O APREÇO PELA SUBJETIVIDADE E A TRANSITORIEDADE DAS


COISAS
A personagem Nula aparece, anteriormente a La grande, em um conto de Cuentos
completos (2000) intitulado “Recepción en Baker Street”. Nesse conto, em uma diégesis de
segundo nível, Tomatis conta a seus três amigos – Soldi, Pichón Garay e Nula – como
escreveria uma história policial, na sua forma e no seu conteúdo. É essa história criada
simultaneamente ao narrar que ocupa quase todo o conto. O título desse conto nomeia a rua de

365
MOTA escreve que: “[...] [a] performance do narrador é que corrobora esse efeito, já que o narrador
heterodiegético se eclipsa, gradativamente, com o movimento do texto. Esse narrador, que, teoricamente, se
aloca externamente à personagem, abandona esse perfil e permite que apenas a personagem central dirija o foco
da narrativa. Assim, o leitor é tomado pela perspectiva dessa personagem: vê apenas o que ela vê, ouve apenas
que ela ouve.” (MOTA, 2011, p. 61).
366
PREMAT, 2002, p.18.
159

Londres, da Inglaterra do século XIX, famosa por ser a da residência de Sherlock Holmes,
célebre personagem de Sir Arthur, que reaparece no conto de Saer para solucionar o crime do
poema367 de Tomatis. Antes da chegada de Tomatis, Nula se encontrava na estação rodoviária
de Buenos Aires, esperando a chuva passar, para que pudesse se deslocar até o seu carro, após
deixar o gerente de vendas de Amigos del Vino – empresa na qual trabalha − no ônibus. Com
as informações que são dadas no início do conto, percebemos que essa personagem é a mesma
do último romance de Saer. É nesse intervalo de tempo – de espera para que a chuva cesse −
que o narrador apresenta Nula e o caracteriza de forma peremptória.
Ultrapassando a descrição fisionômica e a narração dos acontecimentos vividos
pela personagem, o narrador interpreta, nesse conto, a postura de Nula em relação ao mundo.
Abrimos, aqui, parêntese: essa circularidade das personagens pode ser analisada, também
tomando-se como exemplo a personagem Nula, como uma experimentação funcional368 das
personagens que podem, ulteriormente, ser deslocadas para os romances. Retomando o cotejo
desses dois ambientes ficcionais, percebemos que, no universo temporal da ficção, há um
intervalo de mais ou menos um ano entre o conto e o romance. Nula está beirando os seus
vinte e oito anos − no conto − e surge, nas primeiras páginas de La grande, com vinte e nove
anos:

[e]n su vida, las cosas siempre ocurren demasiado temprano, y cuando las
posee, al tiempo se da cuenta de que ya no las desea, o más incluso: que
siempre ha perseguido la posesión de cosas que, en el fondo, no deseaba.
Interpretada de esa manera, su corta vida —recién está por cumplir
veintiocho años—, es una mezcla de responsabilidad y de fuga, igualmente
agobiantes y secretas, que le da la impresión de vivir en varios mundos
simultáneamente, y a la cual se adapta bien el corretaje de vino, que le
permite ganarse la vida y a la vez gozar de muchas horas de tiempo libre, de
soledad y de vagabundeo. A los diecinueve años empezó a estudiar
medicina; a los veintitrés, se pasó a la filosofía, y al cumplir los veintiséis,
como ya se había casado y tenía un hijo de un año y el segundo estaba en
camino, se vió obligado a trabajar, y un seminario de iniciación a la enología
en el mismo hotel Iguazú al que, si paraba la lluvia, no iba a quedarle más
remedio que volver, lo lanzó al comercio del vino (SAER, 2000, p. 67).

367
A personagem Tomatis, assim, lança os pressupostos formais de seu relato: “[…] sería un largo poema
narrativo en verso libre, con algunos pasajes rítmicos y ciertos finales de estrofa en versos regulares, alejandrinos
probablemente, y rimas consonantes. De esa manera ocuparía en la historia de la literatura un lugar junto a Edipo
rey, ya que Sófocles y yo seríamos los únicos dos autores que hubiésemos tratado en verso un enigma policial”
(SAER, 2000, p. 70).
368
Claesson afirma que: “[…] [e]n palabras de Gramuglio, ‘los cuentos’ funcionarían como el laboratorio,
anticipado o retrospectivo, donde se precisan las transformaciones temáticas y formales que las novelas realizan
con plenitud” (CLAESSON, 2013, p. 109).
160

É interessante como o narrador resume a relação da personagem com o mundo


nos termos de uma “perseguição para possuir as coisas”. Um dos grandes dilemas da obra
saeriana é a representação do vazio que interfere nessa vivência do homem. A experiência é
narrada como que entremesclada por uma névoa, brotando disso o sentimento de irrealidade
ou mesmo de impossibilidade de concretude. O mundo é percorrido pelo olhar,
principalmente, mas os outros sentidos se juntam, no encalço de surpreender as coisas. A
evasão ou esse próprio excesso do mundo produz na personagem um sentimento de
dependência e incompletude. A experiência, então, apresenta-se como uma tentativa de posse
desse multifacetado mundo. É nesses vários caminhos de aproximação que se processa a
apresentação do espaço saeriano, como a exploração do sentir. As sensações são as vias de
exploração do mundo; cada sentido desenha, em um tom, o tocar nas coisas. Problematizando
essa relação com o mundo, La grande traz à cena o problema do outro, por meio do jogo de
perspectivas. Dando voz a mais de uma personagem, a experiência do outro exemplifica a
própria relação carnal entre as vivências, ao mesmo tempo em que reflete o vazio que se
interpõe na relação com o mundo. Nesse último romance, as personagens se interrogam a
respeito da experiência de Gutiérrez; tentam, de alguma forma, decifrar como essa
personagem sente o seu mundo corroído pelo tempo. A experiência de Gutiérrez é marcada
por distanciamento duplo, porque, além do próprio excesso do mundo, tem-se o anacronismo
do projeto da personagem em retomar o passado que deixara para viver na Europa.
A falta de capacidade para ordenar a experiência do outro se torna um pretexto
para que essa vivência seja retratada, também, sob a ótica da representação. Duas são as
concepções de representação exploradas nesse romance: quando a narração encena o contato
do homem com o mundo, possibilitando, então, enxergar a multiplicidade dessa relação com
as coisas e, em segundo plano, a que se movimenta no sentido inverso ou em um grau
metaficcional, mostrando a experiência como uma encenação – ganha ares de representação −
tendo em vista a impossibilidade de se decifrar os movimentos da personagem no mundo.
Merleau-Ponty se interessa, exclusivamente, pelo primeiro gesto, porque a sua preocupação é
acompanhar os caminhos do olhar que emergem na Arte, como lances da relação vidente-
visível. Em Saer, enfocando-se principalmente o seu último romance, percebemos esse duplo
gesto: no primeiro, busca-se exaurir a vivência, por meio de pormenorizadas descrições, e, em
contrapartida, no segundo gesto ocorre o retorno ao âmbito da representação, quando a
impossibilidade de se coincidir com as coisas faz com que a experiência seja sentida como
deslocada do mundo.
161

Retomando a citação anterior, averiguada a presença de Nula como sendo a


mesma personagem no conto e no romance − dado o mesmo percurso de vida da personagem
nesses dois gêneros ficcionais −, sublinhamos, aqui, as primeiras informações do narrador,
quando desvenda o envolvimento da personagem com o mundo. O trecho, de certa forma,
referenda a tese de Premat (2002) a respeito da melancolia que acompanha as personagens
saerianas: a personagem inventaria o mundo pelos sentidos, com o objetivo de se confluir com
seus objetos de desejo. A fuga das coisas ou, nas palavras de Saer, a intermitência entre o
querer, o possuir e o rejeitar se apresentam como a performance de Nula na sua relação com o
mundo. Em La grande – texto ficcional que explora, em sua maior parte, a trajetória dessa
personagem –, percebemos como Saer potencializa esse jogo do desejo. É na trajetória de
Nula em direção às coisas, desejando se colidir com elas, que se percebem as filigranas da
estrutura do espaço ficcional saeriano. Retornando ao encontro entre Nula e Gutiérrez − a
primeira cena desse romance −, temos que o narrador projeta uma focalização incisiva sobre o
primeiro. Nula se apresenta com a função de ver e sentir o mundo: é para o projeto da escrita
da ontología del devenir que essa personagem toma notas do metamorfosear do espaço. É na
busca por atravessar o devir que ele acredita poder formular uma ontologia do mundo; é,
também, no projeto de compreensão do movimento temporal que essa personagem alcançaria
a descrição da experiência.
Nula empenha-se em seguir os mecanismos de transformação do mundo e, nesse
gesto, a sua “teoria” ultrapassa a conceituação do espaço como lugar. Na obra saeriana,
percebemos essa preferência pela discussão da realização do espaço ou pela vivência das
personagens. Nesse posicionamento, Nula perscruta a mobilidade das coisas em relação aos
sentidos ou perquire de que campo partiriam as mudanças que incidem sobre o espaço: seriam
os sentidos que contribuiriam para os desajustes da percepção ou seria o mundo que
camuflaria no seu sempre devir a possibilidade de retenção da imagem? Pendendo para o
primeiro bloco, é perceptível o potencial sensitivo das descrições saerianas. Há, mesmo, um
envolvimento dos sentidos, o que contribui para a corrosão da gênese do sentir. O fenômeno
da sinestesia se projeta como veículo para envolvimento entre “espectador” e mundo. É como
se a projeção do mundo requisitasse mais do que um sujeito cindido em suas possibilidades de
percepção. Nesse movimento dos sentidos, percebemos que La grande discute a percepção
individual e, aqui, nossa proposta é cotejar as posições perceptivas das personagens Nula e
Gutiérrez. Esse romance apresenta, pelo menos, esse duplo olhar sobre a percepção das
coisas. Pendendo, agora, para o segundo bloco, enxergamos essa posição no romance: em que
o mundo se apresenta como o responsável por coibir uma leitura total de si mesmo. Nesse
162

caso, o eversor da percepção é, também, o devir; o mundo se encontra sempre em fuga, dada a
transitoriedade do seu movimento e a transcendência da sua relação com o vidente. O
empecilho perceptivo, então, é confirmado nos dois vetores: no sujeito e no mundo.

[p]ara Nula, que muchas veces por día se sorprende a sí mismo observando
ejemplos que alguna vez le servirán para sus Notas, la isla de enfrente,
formación aluvional, es una buena prueba del cambio continuo de las cosas:
el mismo movimiento constante que la formó la va erosionando, haciéndola
cambiar de tamaño, de forma, de lugar, y el ir y venir de la materia y de los
mundos que hace y deshace, no es más, según él, que el fluir sin dirección ni
objetivo, ni explicación conocida, del tiempo invisible que, silencioso, los
atraviesa (SAER, 2005, p. 13).

É perceptível a presença do narrador no trecho anterior; dessa forma, o


distanciamento da personagem em relação ao mundo é sentido na leitura. Contudo, esse
distanciamento é apenas inicial, porque, na medida em que as coisas se mostram, perde-se a
referência do narrador e a personagem ganha relevo. O motivo pelo qual a personagem figura
como vidente é a maneira como as coisas se revelam mediante a sua deambulação pelo
espaço. Arce provoca essa característica da relação entre voz e visão na experiência da
personagem:

[…] [e]l tiempo presente hace que el espacio vaya surgiendo a partir de lo
que el narrador ve: en el relato decimonónico, aquello que se describía en el
pretérito presuponía la anterioridad del objeto. Es bien conocido el ejemplo
de Flaubert: la descripción del sombrero de Charles Bovary presupone la
anterioridad por decir así ontológica del objeto (ARCE, 2013, p. 94).

A importância dessa discussão está no fato de, com ela, se resgatar, para o
vidente, o ato de manifestação do mundo, um gesto potencialmente fenomenológico. É na
vivência que o mundo eclode por meio da percepção, como coisa que é permeada pelos
sentidos, atravessada pelo desejo de posse. Há outros trechos desse romance nos quais se
ressalta essa prevalência da focalização sobre a voz do narrador.
As descrições pormenorizadas, em Saer, apresentam essa tentativa de colidir o
vidente com as coisas, no projeto de esgotar o mundo. Na anterior citação de La grande,
apesar de Nula perceber a ação do devir ou o movimento do mundo, sua conclusão posterior é
de que as coisas se apresentam em uma mesmice repetitiva. Essa conclusão é, também,
extraída daquele trecho, anteriormente, citado, em que Nula defende que as ondas do rio se
apresentam sempre idênticas. Nula propõe a ontologia do percurso do tempo, mas é vítima do
engodo de seus próprios sentidos, quando se depara com o mundo em movimento: uma
163

mudança que retraz sempre o mesmo. Essa desproporção da experiência é explicada pela
afirmação de Saer − no conto “Recepción en Baker Street” de Cuentos Completos (2000) de
que Nula persegue as coisas, mas não consegue cessar o desejo, porque a experiência se
apresenta como que incompleta. É como se o desejo não se extinguisse na experiência; ou
melhor: é como se, em certa medida, o objeto escapasse ao enclausuramento dos sentidos. Em
Saer, segundo Premat, representa-se a “dramatização do sentido” e, para esse pesquisador,
“esa negación de sentido que lleva, en muchos casos, hasta una disociación de la forma”369 do
próprio romance, é realizada por meio do recurso do autotematismo 370. Por outro lado, a
linguagem do mundo estaria nas próprias coisas, como que imiscuída no horizonte do mundo.
Decifrar esse sentido torna-se um iterativo processo de nominação, em Saer, uma encenação
da própria transcendência das coisas, e é em decorrência desse evanescente mundo que a
discussão textual – metaficcional – emerge, na exploração fenomenológica, como recurso de
preenchimento dessa ausência.
Esse projeto de nominação é investigado por Scavino, que percebe o gesto na
postura de Saer de inquirir o mundo pela descrição pormenorizada: “[...] [n]ombrar significa
hacer aparecer algo para que, en adelante, podamos referirnos a eso, convertirlo en el sujeto
de varias proposiciones o contar eventualmente su historia”371. Essa postura se coaduna
perfeitamente com o pensamento de Merleau-Ponty, com a defesa de uma linguagem bárbara
– ou muda – compreendida somente na relação do visível com o invisível. Esse encobrimento
das coisas revela a complexidade do movimento entre vidente e visível, conceituado, pelo
filósofo, de quiasma. A característica dessa motricidade é a impossibilidade de coincidência
entre as partes, sendo essa a própria razão do movimento. Scavino se interessa por esse gesto
exaustivo de Saer para nominar as coisas, para descrever o envolvimento com o mundo. Essa
nominação não é castradora, porque a linguagem poética impossibilita cercear o diálogo e a
experiência com o mundo: “[...] [s]ólo que el propio acto de nominación, la propia
constitución poética de la cosa a la cual va a referirse un saber, no va a cesar de sustraerse a
este mismo saber”372. A linguagem poética preserva a experiência vertical com o mundo ou
mantém esse diálogo aberto.

369
PREMAT, 2002, p. 131.
370
Segundo Julio Premat “[...] las ficciones saerianas se caracterizan por un exuberante autotematismo, es decir
que no sólo exponen sus modalidades de construcción, sino que acumulan imágenes de la propia creación,
integran una distancia interrogativa frente a lo dicho, introducen personajes de escritores, citas y una amplia serie
de mecanismos intertextuales y autorreferenciales que son, todos, una ficcionalización del acto de escritura y una
estrategia que convierte cualquier elemento del relato en símbolo reflexivo de su propia génesis o existencia”
(PREMAT, 2002, p. 16).
371
SCAVINO, 2004, p. 2004.
372
Ibidem, p. 11.
164

Ao contrário do que Premat afirma, a negação de sentido é causa da


desestruturação formal – a impossibilidade de alcançar o sentido conduz a narrativa ao
autotematismo ou ao dizer de si mesma −; essa questão é percorrida, aqui, em outro viés: a
busca pelo sentido é vista, em Saer, como uma tentativa de estruturação do relato, porque é na
certeza de que o sentido está, sempre, mais além de uma posse, que o relato mergulha-se na
descrição meticulosa de dois espaços. A impossibilidade de alcançar o sentido está em relação
direta com a fugacidade do tempo; por seu turno, o espaço representa a liberdade ou o gesto
de imersão nesse jogo. Quando Saer se propõe a discutir esteticamente o que escreve – nos
limites da própria ficção −, percebemos que a relação com o espaço é lançada para outro polo:
busca-se um novo ancoradouro para esse olhar descritivo. Essa imersão no ficcional é
marcada pelo “autodesnudamento” do texto ou pela discussão dos seus aspectos formais. O
texto se revela ficção e se analisa a partir do interior, com a estruturação dos seus próprios
mecanismos de representação. Não sendo possível percorrer todos os contornos daquilo que é
experienciado pelas personagens, o narrador aborta o descritivo e discute a formatação do
relato: é nesse duplo gesto de descrição espacial – como representação e como focalização −
que Saer desenvolve a sua estética ficcional. As personagens buscam percorrer,
paulatinamente, o espaço, como forma de apreensão do sentido total; a mutabilidade do
espaço impede que se alcance esse objetivo. O espaço se apresenta como a imersão nas
formas imprevistas e o tempo funciona como a resolução de sentido de um “todo”: o
movimento temporal impossibilita que a enunciação se perca na imersão do espaço.
Retomando La grande, os dois amigos de Nula − Soldi e Tomatis − foram os que
indicaram Gutiérrez como provável cliente de vinhos. No encontro mercantil com Gutiérrez, o
narrador contrapõe os dois personagens, quando discute a experiência:

[…] separados uno del otro por sus propios pensamientos, el tiempo parece
haberse estirado mucho, dando la impresión de transcurrir en el plano, no
únicamente horizontal que el instinto le atribuye, sino también vertical, hacia
un fondo improbable, sugiriendo que incluso el presente, a pesar de su
fugacidad legendaria, y aun en su borde inestable y delgadísimo, puede
resultar infinito (SAER, 2005, p. 20).

Na perspectiva de Nula, o mundo se infla no presente; essa é a justificativa dada a Gutiérrez,


quando os dois emergem de seus pensamentos. Nula afirma que estava “[…] montado en el
presente, tratando de aguantar las sacudidas de ese potro salvaje”373. Nessa imersão na
verticalidade do tempo, percebemos o envolvimento, mais pujante, com a experiência. Nula
373
SAER, 2005, p. 20.
165

representa, de forma mais patente, a relação com o presente, em abertura constante para o
envolvimento com as coisas. Essa desestruturação da diacronia possibilita que a experiência
seja sentida de forma aguda: é como se tratasse de estabelecer um envolvimento mais intenso
com o mundo. Essa postura é aclarada pelo narrador, anteriormente ao trecho citado, quando
afirma que: “[...] con cierta ironía se dice que después de todo hasta de aquello que nos es
familiar sabemos poco, por la simple razón de que nos hemos resignado a olvidarnos de su
parte misteriosa”374. Essa parte misteriosa375 é perseguida pelas personagens saerianas e
exemplificada, no texto, pelo apreço do narrador por descrições pormenorizadas das
experiências das personagens.
Essa “representação literária” da experiência no mundo – no sentido de
demonstrar a relação vidente-visível – torna-se um movimento sem termos, em que as
próprias palavras selecionadas buscam revelar a verticalidade da vivência das personagens. A
parte “misteriosa” é que move a relação da personagem com o mundo, ou que funciona como
um mecanismo de motricidade, conforme discutimos no capítulo sobre a filosofia de Merleau-
Ponty. O trecho citado, anteriormente, esclarece como o espaço saeriano é concebido para o
mister de descrever além daquilo que se apresenta ao olhar cotidiano. No projeto de perpassar
o visível, o olhar encontra sempre algo além daquilo que se apresentava no imediatismo.
Nessa profusão de coisas, a personagem se empenha em confluir o mundo, estabelecendo,
como nova forma de leitura, a centralidade na parte misteriosa. A ênfase nos contornos,
naquilo que escapa aos limites do visível, recolhe o olhar da personagem. O horizonte, então,
é um desses pontos que fascinam a experiência da personagem: um lugar em que a
horizontalidade é atravessada por linhas transversais que encetam uma profundidade sem
limites. Essa profundidade impossibilita a representatividade positiva do mundo ou impede
que se possam demarcar barreiras entre o vidente e as coisas:

[m]atas de pajabrava, grisáceas como todo lo que no sea el suelo amarillento,


se asientan en la tierra arenosa, pero cuando llegan al río la vegetación de la
isla, en la orilla opuesta, a unos cincuenta metros, parece más verde que de
costumbre y la tierra de la barranca más roja, de un rojo ladrillo, casi naranja
a causa de la arena que se mezcla a la arcilla ferruginosa, por contraste con
el gris generalizado: el río, plomizo y escarolado, se está volviendo oscuro
en el atardecer, al final de un día lluvioso en el que no se ha visto un solo
rayo de sol (SAER, 2005, p. 12).

374
Ibidem, p. 13.
375
Merleau-Ponty defende a relação de figura e fundo como a própria possibilidade de apreensão das coisas. Essa
é uma das chaves de leitura da sua fenomenologia e, posteriormente, da suaontologia. Essa questão é explanada
no capítulo anterior, na discussão da última filosofia de Merleau-Ponty, base para essa leitura do espaço
saeriano.
166

A experiência de Nula prioriza o enfoque no presente; a personagem se esmera em


capturar um sentido que consiga preservar a sua experiência ou o seu próprio envolvimento
com o mundo. É como se fosse pensada uma maneira de se entranhar nas coisas, sem que
fosse exigido o retorno para a síntese do que é experienciado. É na verticalidade do tempo que
se torna possível esse tipo de experiência ou essa imersão nas coisas. Nula percebe que o
mundo apresenta resistência à busca por sentidos ou que ele se organiza por meio de uma
ordem que lhe escapa: “[un] orden infinitamente intrincado y por ende impenetrable de las
cosas que, indiferente a sus proyectos y a sus deseos, puso el pocito lleno de agua en la calle,
en el instante y en el lugar mismo en el que su mocasín se apoyaba.” 376. A fuga das coisas,
como uma negativa de serem plenamente interpretadas, não abole o projeto do sujeito de se
confrontar com essa resistência. Não é o sentido que se busca – ou, não é apenas esse o
objetivo – senão, também, um alargamento do espaço da experiência.
O projeto saeriano de busca por sentido esbarra – iterativamente − na
segmentação da experiência, devido à minuciosa descrição das coisas. Por outro lado, essa
projeção descritiva se apresenta como uma possibilidade de ingresso no processo de leitura do
espaço: o sentido está nessa relação entre as coisas. O próprio narrador, performaticamente,
destaca a importância da leitura do espaço: na cena em que Nula e Gutiérrez retornam do
campo à casa de Gutiérrez − o anfitrião convida Nula para os dois jantarem o peixe com que
Escalante, amigo de Gutiérrez, lhe tinha presenteado –, o narrador antecipa que não será
possível esse jantar, devido a algumas pistas que ele próprio lê no espaço que narra. As
personagens encontram a casa iluminada e um veículo estacionado, anunciando a presença de
um visitante. O narrador afirma que “[...] está escrito que esta noche no van a comer
juntos”377. Logo após essa sentença, o narrador descreve o porquê dessa conclusão, tomando
por base a leitura do espaço: as pistas anunciam a presença de alguém.
Percebe-se a vitalidade do espaço de Saer nesse envolvimento mútuo; ultrapassa-
se o dualismo sujeito e objeto e as aproximações permitem que se proceda à promoção da
experiência, mais do que à simples apresentação das coisas. Dentro desse esquema, Nula
insiste em discutir sua experiência, municiado com as informações coletas para a sua
“ontología del devenir”. Em miércoles, segundo capítulo do livro, apresenta-se a família de
Nula: seu avô, Yuself, veio de Damasco, com dezesseis anos, e o nome Nula é uma versão
árabe de Nicolás. Yuself tinha grandes problemas com o pai de Nula, que fora assassinado em

376
SAER, 2005, p. 29.
377
Ibidem, p. 51.
167

1957, com trinta e oito anos. La India, a mãe de Nula − apesar desse apelido, tinha
ascendência calabresa − tinha, também, outro filho, o Chade; ela era proprietária de um
pequeno negócio de venda de livros que, depois, se transferiu para dentro da universidade.
Nesse pertencimento a vários espaços − como filho de imigrantes árabes − Nula
recorda o seu primeiro contato com a lhanura. Essa aproximação com o campo é descrita por
meio dos sentidos da percepção: Nula descreve o seu envolvimento com o espaço percorrendo
o tato, o olfato, o paladar, a audição e a visão, respectivamente. A visão se revela sinestésica,
devido ao seu caráter de antecipação dos outros sentidos. A visão adianta a presença do
mundo e, desse modo, os outros sentidos são ativados para, da mesma forma, decifrar, de
antemão, o seu contato com as coisas que se mostram. É nesse ato de antecipação que se
revela o fenômeno da sinestesia, no recobrimento das coisas pelas várias camadas do sentir.
Trazemos, aqui, um pequeno trecho para exemplificar essa assertiva de como a visão retoma
os outros sentidos, as outras sensações:

[…] el horizonte vacío de la llanura, irreal y, en cualquier punto del campo


que fuese, siempre idéntico a sí mismo; las bandadas de mariposas amarillas
que, volando en grupo, aleteaban todas y se asentaban en las partes húmedas
de la calle de tierra después del paso del regador para levantar vuelo de
nuevo todas a la vez y asentarse en otro charco un poco más lejos; los
canteros florecidos de dalias, conejitos, margaritas y pensamientos; las
afueras del pueblo, que ya eran y a la vez todavía no eran el campo (SAER,
2005, p. 70).

A confluência dos sentidos é a forma utilizada para a experimentação do mundo.


Ao mesmo tempo em que a personagem busca ativar a diversidade do mundo, o sujeito se vê
tolhido pela horizontalidade do tempo378. É na percepção dessa fugacidade que Nula se
questiona “¿cuánto duran, fuera de los relojes, los acontecimientos?”379. Essa pergunta é
articulada pouco antes de Nula se envolver sexualmente com Lucía, mulher que, por longos
anos, ele desejou. É como se Nula quisesse equiparar o longo período de tempo que aguardou
para chegar a esse momento com a própria duração do acontecimento. A personagem reclama
a verticalidade da temporalidade ou sua distensão para pleno ajustamento à passagem
temporal. Nesse processo de questionamento da relação espaço e tempo, Nula tem uma
recordação:

378
Nula percebe o tempo “em plano vertical” (SAER, 2005, p. 20), quando prioriza a sua relação com o presente:
o sentido de transitoriedade é encoberto pela experiência.
379
SAER, 2005, p. 96.
168

[…] en la adolescencia empezó a intrigarlo y, cuando dejó de ir al pueblo, el


recuerdo de esos grupos de mariposas que actuaban sincronizados
sabiamente, sin que pudiera saberse ni cómo ni por qué, representaba para él
la imagen, y la prueba quizás, de un universo planificado y armonioso que
contradecía su concepción de un devenir constante y casual en el que,
gracias al entrechocarse perpetuo de las cosas, en el cóctel de espacio-tiempo
que se sacude solo y continuo, sin la ayuda de ningún barman como le
gustaba decir, van apareciendo, con formas y colores espectaculares pero no
más duraderos que las nubes del atardecer, provisorios, los acontecimientos
(SAER, 2005, p. 106).

O movimento do mundo está assinalado nas duas opções e se discute a


preponderância do caos ou da harmonia. Nula acredita em uma ordem aberta, que o mistério
do espaço se encontra na relação com a temporalidade. Essa personagem, assim, conclui essa
ideia com uma nota para a sua ontología: “[e]l caos percibido como armonía por deficiencia
sensorial. Vuelo de mariposas” (grifo do autor)380. Nula defende a percepção como
conhecimento e centraliza, nos sentidos ou na própria experiência, o processo de
desvendamento da transcendência do mundo.
Nula defende o caos, ao mesmo tempo em que denuncia como as coisas se
mostram previsíveis e repetitivas. Esse pensamento é, em certa medida, contraditório, mas
acentua essa fuga do mundo ao controle de um ponto de vista. A postura de Nula, então, está
na proposta de frisar o afã do homem em se apossar do mundo e, por outro lado, a defesa de
que as coisas não se apresentam completamente. Percebemos esse descompasso entre o
homem e o mundo: Nula põe em relevo sua busca por sentir as coisas, na mesma medida em
que percebe como o tempo torna tudo evanescente. O pendor subjetivo de seu pensamento se
revela no afã de se apossar do mundo tanto pelos sentidos do corpo como pela investida no
sentido de compreender essa relação. Isso não quer dizer que a interação com o mundo não se
efetua, o que seria um contrassenso à tese aqui defendida. O projeto da personagem tem
tonalidades próprias, percebidas quando ela analisa a sua própria experiência. Esse momento
de reflexão não desestrutura o envolvimento com o mundo, apenas frisa essa vontade de
desvendar os meandros dessa motricidade.
Na complexidade e diversidade do mundo, Nula demonstra sua preferência pela
repetição como força de ordenamento das coisas. Essa personagem chega a afirmar que “[…]
[l]o extraño del mundo no son sus confines impensables y distorsionados, sino lo inmediato,
lo familiar. Basta una mirada ajena, que a veces puede provenir de nosotros mismos, por

380
SAER, 2005, p. 107.
169

fugaz que sea, para revelárnoslo”381. É como se o corriqueiro dependesse desse olhar
“virgem”382, para ser desvendado. O ato de ver está posto sobre a base de um pré-
conhecimento, mas a complexidade dessa ideia está no fato de que esse conhecimento se
baliza na relação com a própria investigação383. A percepção pode gerar uma desproporção
entre o percebido e as coisas, o que se conforma com aquilo que afirmamos sobre o engano
sensorial. Essa questão é recorrentemente discutida na obra saeriana, por meio do frisson pela
imagem do horizonte: “[...] Nula piensa: «El horizonte, paradigma de lo exterior, resulta en
realidad de una imposibilidad humana; y las paralelas se juntan no en el infinito, sino en
nuestra imaginación. Buena parte del mundo existe porque yo existo”384. Há, em La grande, a
discussão da experiência por meio desse refletir sobre a parcela de subjetividade presente na
relação com o mundo; parece que Saer, por meio de Nula, afasta-se do realismo e defende
uma positividade do sujeito na percepção.

[t]odo es probablemente real, pero si a veces lo concebimos como irreal, es


porque lo consideramos transitorio. Únicamente a los sueños los vivimos
como absolutos, y de la realidad sabemos que es relativa y transitoria. Así
que mientras soñamos, creemos más en la realidad del sueño que lo que
creemos en la vigilia de la realidad del mundo (SAER, 2005, p. 250).

Nula se centra na tarefa de desvelar o seu contato com o mundo: a entrega da


personagem se mostra como uma maneira de senti-lo, uma forma de reativar o seu
envolvimento com as coisas. Nula conclui acerca da singularidade da experiência e da
positividade do sujeito e, defende que: “[...] la parte no es parte del todo, sino parte sola, y el
todo a su vez es siempre parte. No hay todo”385. É nessa promoção da experiência, no gesto de
enxergar um vínculo interno com as coisas, que Nula se coloca frente ao mundo. Nula se
apresenta como uma das chaves de leitura do espaço de La grande; como foco central da
narrativa, a perspectiva dessa personagem é a do apelo à experiência sem intermediações, pela
vivência em absoluto da vida. A investigação de Nula ou a busca pela ciência da transição das

381
SAER, 2005, p. 117.
382
Esse olhar pode ser entendido como o gesto de desautomatizar a percepção, de ver as coisas como que sendo
vistas pela primeira vez, como diria Saer em El río sin orillas.
383
Merleau-Ponty afirma que “[...] [n]ão se trata de pôr a fé perceptiva no lugar da reflexão mas, ao contrário, de
abarcar a situação total que comporta reenvio de uma a outra. O que se obtém não é um mundo maciço e opaco
ou um universo do pensamento adequado; é uma reflexão que retorna sobre a espessura do mundo para iluminá-
lo, mas que em seguida lhe devolve somente a sua própria luz.” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 44).
384
SAER, 2005, p. 154.
385
Ibidem, p. 272.
170

coisas faz com que a personagem queira “[...] refutar la contradicción entre el ser y el devenir,
así nomás, siendo”386.
Nessa entrada e imersão no mundo, Nula percebe outro caminho do desengano: o
“ópio do mero ser” faz com que se perca a própria consciência do viver “hundiéndose en un
magma animal”387. É como se o escopo de inteiração com o mundo requeresse, por outro
lado, a manutenção da reflexão, visando compreender o próprio caminho em direção à
imersão. O abandono da reflexão a respeito do devir − da discussão filosófica − acarreta a
promoção de um monismo animal. É nessa encruzilhada que Nula percebe uma positividade
do sujeito, porque é necessário o estabelecimento da reflexão ou essa condição de
subjetividade. Essa ideia se ajusta com a defendida por Merleau-Ponty: a impossibilidade de
uma reversibilidade completa na experiência. Na sua última fase filosófica, Merleau-Ponty
abandona a contradição reflexão e irrefletido, visando afastar-se dos dualismos. Essa
contradição é substituída pela relação entre linguagem388 e silêncio, ideia que preserva
concretamente os conceitos de visível e de invisível, o movimento do quiasma. Retomando a
perspectiva de Nula, o capítulo intitulado “Viernes” termina com uma projeção imagética
dessa personagem e de Virginia − mulher que conhece em uma promoção de venda de vinhos
− no espelho: a infinidade de imagens, uma dentro da outra, projeta a ideia de Nula da
singularidade das muitas partes. Na tentativa de aderência das partes a uma totalidade, a
impossibilidade cria essa imagem temporal da infinitude.

3.2 GUTIÉRREZ: A SINGULARIDADE DO ACONTECER E AS EXPERIÊNCIAS


DO PASSADO

Buscando fazer essa mesma explanação das ideias de Gutiérrez, como


anteriormente fizemos com as de Nula, retornamos ao início do romance, quando as duas

386
SAER, 2005, p. 256.
387
Ibidem, p. 257.
388
Rosati assim desenvolve essa ideia: « [o]n est désormais devant un problème terminologique fondamental: il est
nécessaire de faire une distinction entre l’emploi du mot ‘langage’ et celui du mot ‘réflexion’. Il faut remarquer
que Merleau-Ponty tend toujours à parler de langage pour caractériser la médiateté typique de l’être. La raison de
telle terminologie s’avère évidente si l’on considère les autocritiques du philosophe à propos de l’idée de cogito
tacite : parler de cogito tacite est impossible justement parce que cette notion renvoie à l’idée d’une concience
constituante » (ROSATI, 2009, p. 52). [Tradução nossa: “Estamos, doravante, diante de um problema
terminológico fundamental: é necessário fazer uma distinção entre o emprego da palavra ‘linguagem’ e o da
palavra ‘reflexão’. É necessário sublinhar que Merleau-Ponty tende, sempre, a falar de linguagem para
caracterizar a mediação típica do ser. A razão dessa terminologia se mostra evidente, se considerarmos as
autocríticas desse filósofo a respeito da ideia de cogito tácito: falar de cogito tácito é impossível justamente
porque essa noção remete à ideia de uma consciência constituinte”].
171

personagens se encontravam imersas em pensamentos diante do rio. Gutiérrez retorna da


Europa com objetivos considerados esquivos por seus amigos: todos tentam, de alguma
maneira, decifrar os reais motivos que o trouxeram de volta. Nula percebe uma desproporção
entre “a virulência do sentido daquilo que Gutiérrez discursa e a serenidade do seu perfil”389.
O discurso da personagem apresenta acérrima crítica à postura dos europeus e percebemos
quase um arrependimento por ter comungado com eles por mais de trinta anos. Os quase
sessenta anos de Gutiérrez contrastam com a jovialidade de Nula. O contraste entre as duas
personagens supera a idade, Gutiérrez não se fixa na transitoriedade do mundo; para ele o
acontecer é singular. Essa é uma das diferenças mais latentes entre a posição das personagens;
Gutiérrez prioriza o espaço; não se fixa, como Nula, no devir. O contrassenso da ideia
defendida pela primeira personagem está no fato de ela enxergar a singularidade do acontecer,
ao mesmo tempo em que busca reviver as experiências do passado. Gutiérrez explicita as
razões de sua ida ao estrangeiro: “[...] [s]alí en busca de tres quimeras: la revolución
planetaria, la liberación sexual y el cine de autor”390. Ao longo do romance, são reveladas
outras questões que forçaram Gutiérrez a deixar o seu país. No seu retorno, quando do
processo de compra da casa, Moro − o dono da imobiliária que vende a casa a Gutiérrez –
conta a Nula que:

[m]ientras lo iba siguiendo por la calle, tuve una impresión rarísima que
nunca había tenido antes y que, no quiero mentirle, me intranquilizó
bastante. Me parecía que caminábamos por la misma calle, en el mismo
espacio, pero en tiempos diferentes. Se me ocurrió que si me acercaba a él
para saludarlo, a pesar de haber pasado conmigo toda la mañana no me
reconocería, o peor, ni siquiera me vería, porque estábamos moviéndonos en
dimensiones temporales diferentes, como en las series de ciencia-ficción
(SAER, 2005, p. 18).

O anacronismo entre o tempo diacrônico e o tempo realmente experienciado faz com que haja
ruído entre dois mundos ou entre duas temporalidades. Esse saudosismo de Gutiérrez é uma
das chaves de leitura da relação da personagem com o espaço.
Gutiérrez viveu entre a Itália e a Suíça, escrevendo, sob pseudônimo, roteiros de
cinema. Anteriormente, quando ainda estava em seu país, a personagem ingressou na
Faculdade de Direito e tinha como amigos: Escalante, Marcos Rosemberg e César Rey. Os
quatro tornaram-se inseparáveis: “[…] formaron una especie de vanguardia político-literaria
que duró poco porque, aparte de la juventud y de la amistad, no tenían nada en común, ni las

389
SAER, 2005, p. 7.
390
Ibidem, p. 11.
172

ideas políticas ni las literarias”391. Devido aos parcos recursos financeiros de que dispõe,
Gutiérrez começa a trabalhar em qualquer tipo de função, até que consegue que um professor
de Direito Romano, que o apreciava, abra-lhe as portas do seu escritório. Esse professor era
Calcagno, que tinha como sócio Mario Brando, poeta e líder do movimento precisionista392.
Pequenos são esses flashes que o narrador concede à perspectiva de Gutiérrez, no início de La
grande, depois, em alguns momentos, os relances se tornarão uma franca abertura à voz da
personagem; percebemos, então, o seu olhar sobre Nula. Gutiérrez analisa esse vendedor de
vinhos e “lo considera con indulgencia, casi con lástima”393, percebendo que Nula tem
confiança exacerbada em si mesmo, resultado de sua jovialidade. Gutiérrez se compara ao seu
companheiro, analisando e sendo escrutado, por ele, em seus movimentos.
Em direção à casa de Escalante, Gutiérrez e Nula percorrem um trecho a pé, pela
lhanura, e percebem as diferenças sociais. Segundo Gutiérrez, o problema do mundo são os
ricos; o seu discurso gira em torno dessa sua ideia central. Apesar do impetuoso discurso,
Nula o culpa por ter deixado o país na época da ditadura. É como se Nula procurasse um
culpado para a morte do pai: “[...] [a] él lo mataron en el gran Buenos Aires”394. O reencontro
entre Gutiérrez e Escalante é assistido como um retorno no tempo; Nula afirma que se sentia
como se estivesse pisando o chão do passado. Esse foco sobre Nula é importante, porque
analisa, externamente, a interação de Gutiérrez com o seu tempo fraturado, devido aos anos
vividos no exterior. A incompatibilidade de Nula com a dimensão temporal em que Gutiérrez
se encontrava limita a possibilidade de se estabelecer vínculo entre eles. O narrador projeta o
olhar de uma personagem sobre a outra ativando, também, sua suposta análise independente.
É um efeito que redemocratiza a focalização, ao mesmo em que produz um efeito de real, na
medida em que ausenta o narrador do texto, daquilo que as personagens discursam e pensam.
Na última parte do primeiro capítulo de La grande, o narrador direciona o foco a
Gutiérrez: já em casa, depois da deambulação com Nula e do regresso com os peixes que
Escalante lhe dera, Gutiérrez fixa-se em uma fotografia de Leonor Calcagno. A foto retratava
o verão de 1958; Gutiérrez, então, estava com vinte e quatro anos. A mulher de Calcagno,
professor de Gutiérrez, era vinte anos mais nova do que o marido. Foi em um final de semana

391
Ibidem, p. 19.
392
No capítulo “O realismo em Saer: vanguardas e discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable”,
discutiremos o movimento precisionista; essa abertura se justifica pela ênfase que esse movimento recebe em La
grande, como tema literário em que as personagens concorrem com posições diversas. O objetivo dessa
discussão é estabelecer um cotejo com a estética de Lo imborable ou com o realismo que nesse romance é
discutido. Em La grande, as personagens Gabriela Barco e Soldi investigam o movimento literário encabeçado
por Mario Brando – o precisionismo −, trazendo à tona a conturbada interlocução entre estéticas literárias.
393
SAER, 2005, p. 21.
394
Ibidem, p. 28.
173

− em que Calcagno viajava − que as relações de amizade entre Gutiérrez e Leonor se


intensificaram. A recusa de Leonor em deixar o marido e a revelação, para ele, de parte do
que acontecera entre ela e o pupilo de Calcagno, fez com que Gutiérrez abandonasse a cidade
e, depois, o país. É dessa relação de Gutiérrez e Leonor que nasce a dúvida em relação à
paternidade de Lucía Calcagno. Um sentimento nostálgico inunda as reflexões de Gutiérrez,
advindo da divagação motivada pela foto e, também, das rememorações constantes desse
período de juventude, em função do favor concedido a Gabriela Barco e Soldi, que buscavam
material para a pesquisa sobre o movimento precisionista, tendo Gutiérrez como um dos
informantes principais. É nessas conversas que Gutiérrez se expõe, mesclando a história do
precisionismo com a sua própria. Gutiérrez afirma: “[…] [s]i me hice guionista de cine fue
para desaparecer mejor como artista, porque el guionista no tiene existencia propia; y para
desaparecer también como individuo, utilicé un seudónimo que, aparte de mi productor,
nadie conoce”395. É buscando retomar a sua própria existência que Gutiérrez retorna do
estrangeiro; Soldi analisa essa sua postura fria, denunciada pelo seu comportamento:

[…] es una compasión fría, ya desembarazada de las emociones que la


suscitaron, una serenidad última que considera al universo en general y a
cada una de sus partes, por ínfimas que sean, como una causa juzgada y
perdida desde el momento mismo en que, saliendo abruptos no se sabe de
dónde, tan coloridos como ilusorios, incomprensibles, florecieron (SAER,
2005, p. 160).

A perspectiva de Gutiérrez, em La grande, revela seus próprios juízos sobre o seu


passado na Europa e os anos vividos em seu país. É nesse movimento entre passado e
presente que resgatamos o seu envolvimento como o mundo ou o valor concedido à
experiência. Gutiérrez valoriza a memória dos seus anos de juventude, ativando o presente por
meio do passado vivido. A possibilidade de retomar um tempo já ido é um dos grandes
desafios dessa personagem, em sua relação com o mundo. A experiência é vivida na junção
entre dois tempos; assim, Gutiérrez desenvolve uma perspectiva diferente sobre a
temporalidade. Na experiência dessa personagem, o passado se faz presente: a personagem
retoma aquilo que um dia deixara “sem” se dar conta dos trinta e quatro anos que o separam
desse pretérito. A anacronia de seus movimentos − percebida pelas outras personagens − não
é sentida, ordinariamente, por Gutiérrez, porque a sua vivência está baseada nessa relação
com as temporalidades. Gutiérrez, às vezes, percebe o seu movimento dúbio, por meio do

395
SAER, 2005, p. 160.
174

olhar das outras personagens, mas se justifica, defendendo que se fixa na singularidade da
experiência:

[c]uando gira la cabeza, la mirada de Nula se topa con la de Gutiérrez: sus


ojos son serenos, y chispean de una ironía lúcida y benévola: Ya sé lo que
estás pensando. Pero para entender lo que pasa habría que poder vivir la
vida entera de los otros; mi experiencia es intransferible, de manera que es
inútil que pierdas el tiempo preguntándote por qué volví corriendo a esta
ciudad podrida cuando la encontré en Europa y me dijo que yo era el padre
de su hija. ¡Qué me importa que sea cierto o no! De todas maneras, es lo
Exterior lo que vive en tu lugar, el mundo que te lleva y te trae con sus leyes
caprichosas e impenetrables (SAER, 2005, p. 270).

O interessante é que essa fala é atribuída a Gutiérrez, mas a focalização está sobre
Nula. O narrador396 a apresenta, primeiramente, como pensamento de Gutiérrez, mas, em
seguida, como leitura de Nula do olhar de Gutiérrez. Contextualizando o episódio, esse
pensamento de dois homens é construído quando Nula encontra Gutiérrez jantando com
Leonor; a diferença de idade entre os dois – ela era bem mais velha do que ele – gera, em
Nula, certo desconforto em relação à motivação que unia esse casal anacrônico. Arce defende,
como proposta de entendimento de alguns narradores saerianos, a posição de Barthes, que
distingue o narrador como « […] una voz que no se puede localizar, que de repente se
sostiene en un fading y pierde su origen »397. É essa perda de origem que impossibilita a
missão de uma definição peremptória da voz que se ouve no texto. Devido a isso, pensamos
que ouvimos uma personagem e, logo em seguida, a voz ser requerida por outra ou resgatada
pelo narrador. O termo fading é encontrado em Fragmentos de um discurso amoroso (1977),
de Barthes, como bem explica Hoppenot (2007):

[s]egunda obra em que Barthes coloca em cena a fadiga, os Fragmentos de


um discurso amoroso (1977), a fadiga é convocada no capítulo “Fading”,
com que chamada por um tipo de paronomásia, de ressonância fônica:
“fading/fadiga”. O “fading” é a extinção progressiva da voz. O capítulo que
Barthes lhe dedica expõe a maneira como o sujeito apaixonado enfrenta esse
momento doloroso do apagamento da voz amada, o acontecimento do
“fading” deixa o apaixonado de luto (HOPPENOT, 2007, p. 78).

Em nossa dissertação de mestrado sobre o narrador saeriano, defendemos que “[e]sses recursos, que favorecem
396

a transparência do narrador no texto, são utilizados amplamente no romance de Saer. Ao mesmo tempo em que
se prega essa mediatização direta do discurso, todavia, o texto narrativo mostra a inoperância desses mesmos
recursos quanto à apreensão da realidade. É como se Saer conjugasse essas duas faces do estudo sobre o narrador
(concepção mimética e experimentalismo artístico) ou mostrasse, concretamente, a ineficácia da primeira em
benefício do trabalho artístico com as engrenagens do discurso” (MOTA, 2011, p. 29).
397 ARCE, 2013, p. 100.
175

A citação anterior de La grande retrata, de forma mais potente, a


intersubjetividade na focalização do romance. O narrador se mostra indeciso em relação à
perspectiva da fala e, mesmo afirmando, por último, que se trata do olhar de Nula sobre
Gutiérrez, a intensidade da perspectiva dessa última personagem não é abolida. O narrador
saeriano é quem amortiza uma peremptória posição sobre os feixes de luz lançados sobre as
personagens. É nessa indefinição da focalização que o leitor se aproxima mais concretamente
do espaço narrado. Defendemos, aqui, que a vivacidade do espaço de Saer – principalmente
nesse último romance, que apresenta multiperspectivismo – se dá muito em função da atuação
do narrador. É como se o leitor adentrasse o espaço por meio de uma perspectiva situada
sobre determinada personagem e fosse inserido completamente quando da suspensão da
certeza de quem vê. Percebemos, nesse gesto, a quase instauração da perspectiva do leitor,
porque o narrador corrói a dependência em um ponto específico de visão. Essa estrutura
narrativa contribui para que o leitor veja conjuntamente com as personagens, sinta como que
presente no espaço, acompanhe, do interior, a voz narrativa.
Grande parte daquilo que é dito sobre Gutiérrez resulta do olhar das outras
personagens; assim, a perspectiva de Tomatis − no penúltimo capítulo escrito por Saer,
intitulado “Sábado” − é, também, apresentada no romance: para essa personagem, Gutiérrez
retoma novamente o caminho já percorrido, buscando compreender o seu próprio
envolvimento com o mundo. Não era uma simples retomada, mas uma disposição para
atualizar o passado. Tomatis percebe “el placer infantil que le daban las cosas más banales”:
Gutiérrez exultava-se com sua própria imersão no espaço que deixara para atrás por mais de
três décadas. A identificação dos gestos das pessoas ou dos resquícios daquilo que fizera parte
de seu passado faz com que a personagem se sinta ainda partícipe desse mundo. A relação de
cumplicidade com o mundo se estabelece, principalmente, por meio das coisas mais ínfimas.
A performance de Gutiérrez sublinha uma das nuanças de relação do sujeito com o mundo: o
presente é vivido solidificando-se sobre o solo do passado. No reconhecimento daquilo que
um dia fez parte de seu mundo, Gutiérrez consegue retomar os fios de contato com esse lugar
que abandonara. Além de conseguir se lançar no movimento do tempo, ele também se exulta
por reviver aquilo que fizera parte de sua vida. Tomatis chega à conclusão de que Gutiérrez
age no sentido de se reconciliar com o mundo.

[e]l mundo que celebra ahora, con una exaltación discreta y casi constante,
no es para nada el de su juventud, sino uno que fue encontrando a lo largo de
sus transformaciones sucesivas, y el otro en el que él se ha convertido lo ve
ahora por primera vez. No volvió al punto de partida, sino a un lugar distinto
176

en el que todo es novedoso. Y aunque quizá haya perdido la inocencia, ha


acrecentado su capacidad de aceptación, inclinándose ante las cosas simples
sin idealización ni desprecio; debió de pensar que, si lograba reconocer y
apreciar la simplicidad, se reconciliaría con el mundo (SAER, 2005, p. 321).

As considerações de Tomatis apontam o fluxo das mudanças que incidiram sobre


Gutiérrez e sobre a sua vida de outrora: da mesma maneira que o mundo sofreu mudanças,
Gutiérrez se apresenta transformado pelo tempo. No reencontro com o seu país, ocorre uma
tentativa de se ajustar, de reativar o seu envolvimento com o mundo. Devido ao tempo
transcorrido, a personagem se percebe outra e enxerga o mundo como algo distinto. Os ruídos
no plano da vivência são ocasionados pela tentativa de consolidar a experiência. A
personagem se aproxima, mais concretamente, por intermédio das coisas banais, e se justifica
pelo fato de as pequenas coisas preservarem as estruturas de interação com o mundo,
oferecendo-se como chave de entrada no espaço. Tomatis tem consciência de que Gutiérrez
não é inocente ao ponto de pensar que pode simplesmente reviver aquilo que deixara ou, pior,
amarrar os fios rompidos com o seu passado; a questão é outra. O narrador, então, sublinha os
ruídos no plano da experiência, por meio de Gutiérrez: sujeito e espaço sofrem a corrosão do
tempo. Gutiérrez não é o mesmo, o seu país também não; a única certeza que a personagem
carrega é de que, no passado, vivera plenamente. Retomando o primeiro episódio do romance
− quando Gutiérrez e Nula observavam o rio −, a perspectiva do primeiro, articulada por meio
da análise do movimento das águas, era de que havia um entrechocar-se de realidades: as
ondas não se apresentavam da mesma forma, não eram uma e a mesma coisa. Gutiérrez
consolida um embate distinto com o tempo; diferentemente de Nula, ele vive no encalço de
sublinhar as coisas, de singularizar o próprio mundo: as coisas ganham relevância em relação
ao movimento.
Ainda com foco sobre Tomatis, a perspectiva dessa personagem sobre o espaço
ajuda a esclarecer a elucidação anterior do envolvimento de Gutiérrez com o mundo ou, pelo
menos, projeta o seu entendimento acerca da incógnita que permeia a vivência de Gutiérrez.
Tomatis seguia viagem, de Rosario a Buenos Aires − em transporte rodoviário, atravessava a
lhanura −; a personagem percebe, em determinado momento, que alcançou o centro do
universo inteiro. É como se ele se percebesse no permeio entre a terra e o céu ou na imensidão
do nada. Esse é o outro contraste da lhanura, presente nos romances saerianos: a lhanura é
contraposta com o firmamento ou com a abóboda celeste. Tomatis afirma: “[…] el atardecer
que se repite en la llanura tiene algo de grave y de inquietante; una impresión inequívoca
adviene y destruye, de golpe, todas las ilusiones: el lugar en el que creíamos vivir es otro, más
177

grande, y esa evidencia destructora le retira toda acepción conocida al verbo vivir”398. Esse
deslumbramento quanto à imensidão é, por outro lado, mediado pelo horizonte, pela linha
visível entre a terra e o céu. A relação do todo com as partes, discutida iterativamente nos
romances de Saer, é novamente tocada nas meditações perceptivas de Tomatis.
A relação pessoal com o mundo é cindida pela constatação de um possível mundo
além do “vivido”, entranhado na linha do horizonte. Essa afirmação parece postular o
pensamento realista de um mundo anterior a qualquer experiência399. Após o trecho
anteriormente citado, Tomatis percebe o horizonte e vê um homem montado em um cavalo: o
distanciar do ginete provoca a ilusão de que ele possa ultrapassar os limites do mundo visível
em direção, talvez, ao outro mundo, nomeado como o mundo dos mortos. Tomatis, por meio
dessa visão, defende uma ideia contrária ao realismo; quando se aproxima de seu destino, ele
afirma que:

[…] su patria es el lugar a la vez extraño y familiar, inmediato y remoto, en


el que los vivos cargan en sus hombros a los muertos, y únicamente con la
muerte se liberan de la carga: y así va a ser hasta el final del tiempo, que no
tiene nada de infinito, porque está condenado a apagarse cuando pare de
soplar el último aliento humano (SAER, 2005, p. 325).

Tomatis sublinha que é na relação do homem com o espaço que se consolida a


vivência: é no encontro com as coisas que o sujeito toma consciência de si e do mundo.
Segundo essa personagem, o mundo e as culpas decorrentes da vivência não existem para
aquele que abandona esse espaço. É no plano do mundo que o sujeito se realiza e, dessa
forma, a ideia de um infinito é derrocada por Tomatis. O tempo é desfeito, no momento em
que o sujeito abandona o espaço vivido, a relação de temporalidade400 é posta em relevo: o
sujeito é responsável pela existência ou pela sequência da temporalidade.
Essa perspectiva de Tomatis enfatiza, potencialmente, o mundo fenomenológico,
já que a transcendência é deslindada no interior da experiência. A multiplicidade daquilo que
é percebido não significa uma positividade do mundo, mas os movimentos de revelação e

398
SAER, 2005, p. 322.
399
Merleau-Ponty (2012) afirma que “[...] não temos uma consciência constituinte das coisas como acredita o
idealismo ou uma pré-ordenação das coisas à consciência como acredita o realismo, eles são indiscerníveis no
que aqui nos interessa” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 43).
400
Esse pensamento está em acordo com a discussão da temporalidade na Fenomenologia da Percepção (2006),
que é alvo da crítica por revelar um teor idealista, mas o germe ontológico é perceptível nesse pensamento,
nessas ideias da primeira fase de Merleau-Ponty: “[...] [o] que é verdadeiro é apenas que nossa existência aberta
e pessoal repousa sobre uma primeira base de existência adquirida e imóvel. Mas não poderia ser de outra
maneira se somos temporalidade, já que a dialética do adquirido e do porvir é constitutiva do tempo”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 578).
178

encobrimento que caracteriza a própria vivência. Saer projeta esse espaço rico em
perspectivas como uma forma de frisar como a experiência revela caminhos múltiplos de
relação com o mundo. É nesse momento que se evidencia a singularidade do contato com o
espaço, os planos distintos de aproximação são enfatizados. Por outro lado, a positividade do
sujeito pode ser visualizada na perspectiva de Tomatis: a riqueza da relação está em
dependência da própria vivência. É por meio do gesto merleaupontyano de reversibilidade que
se consegue ultrapassar essa força da subjetividade. Perceber a experiência como um conjunto
de forças em que não há um ponto de partida, mas em que se processam as trocas múltiplas, é
a solução para o abandono do realismo e do subjetivismo. Segundo Rosati, nem o próprio
Merleau-Ponty consegue sair dessa claustrofóbica relação sujeito-objeto. O primeiro pontua
que, mesmo na última ontologia, ainda é possível identificar esse dualismo e que é somente
nos limites do pensamento de Merleau-Ponty que se visualiza uma posição satisfatória contra,
principalmente, a positividade do sujeito; como, por exemplo, na noção de passividade, na
qual o corpo se apresenta purificado do conceito de sujeito:

[o]n a ici affaire à une notion fondamentale de la pensée de Merleau-Ponty,


notion qui se trouve, par ailleurs, aux limites de son impensée : celle de
passivité. Le corps est passif par rapport à la pensée et au langage, le corps
est passif par rapport au plan de réflexion. L’enjeu qui réside dans la façon
d’interpréter l’idée de passivité s’avère donc évident : c’est seulement en
repérant le sens le plus pertinent de la passivité que l’on pourra définir le
corps, sans le ramener au concept de sujet et sans retomber dans l’idée d’une
inexplicable pré-réflexivité (ROSATI, 2009, p. 101) 401.

Essa discussão da subjetividade em Saer é promissora para a questão do espaço


articulado em La grande. Excetuando-se Gutiérrez, que sai ao encontro das coisas, que
prioriza o mundo, percebemos, nas outras personagens, uma nuança de subjetividade nas suas
relações com as coisas. Retomando a questão na sua origem, temos que o problema do
narrador saeriano é central para a compreensão do espaço literário. A relação entre a voz e o
ver ou como esse narrador de terceira pessoa distribui a perspectiva é o ponto-chave para se
deslindar esse espaço. Como discutimos anteriormente, o narrador se afasta, quando projeta
luz sobre determinada personagem, mas não abandona a gestão da narrativa. A liberdade
concedida à perspectiva das personagens é significativa no texto de Saer; percebemos o
401
Tradução nossa: Trata-se, aqui, de uma noção fundamental do pensamento de Merleau-Ponty, noção que se
encontra, aliás, nos limites de seu impensado: a de passividade. O corpo é passivo em relação ao pensamento e à
linguagem, o corpo é passivo em relação ao plano da reflexão. A questão que reside na maneira de interpretar a
ideia de passividade mostra-se, portanto, evidente: é somente encontrando o sentido mais pertinente da
passividade que se poderá definir o corpo, sem reconduzi-lo ao conceito de sujeito e sem recair na ideia de uma
inexplicável pré-reflexividade.
179

mundo por meio desses olhares. É nesse momento que a filosofia de Merleau-Ponty pode
servir de instrumento de leitura para essa projeção do mundo. A independência concedida a
esses pontos de visão em Saer ou – complexando essa assertiva – a própria dependência entre
essas perspectivas e a gestão da visão do narrador provocam entrecruzamento de horizontes.
O pensamento de Merleau-Ponty é produtivo para a análise do espaço de Saer,
principalmente, porque a sua última filosofia se apoia no ato de ver.
A complexidade dos conceitos de visível e de invisível retraz a importância do ver
para a última filosofia de Merleau-Ponty. É por meio da gestão desses dois conceitos ou da
imbricação entre eles que se consegue enxergar a defendida reversibilidade ou o conceito de
carne. Esse filósofo desenvolve essas ideias, nestes termos;

[d]e sorte que o vidente, estando preso no que vê, continua a ver-se a si
mesmo: há um narcisismo fundamental de toda visão; daí por que, também
ele sofre, por parte das coisas, a visão por ele exercida sobre elas; daí, como
disseram muitos pintores, o sentir-me olhado pelas coisas, daí, minha
atividade ser identicamente passividade – o que constitui o sentido segundo
e mais profundo do narcisismo: não ver de fora, como os outros veem, o
contorno de um corpo habitado, mas sobretudo ser visto por ele, existir nele,
emigrar para ele, ser seduzido, captado, alienado pelo fantasma, de sorte que
vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e
quem é visto. É a essa Visibilidade, a essa generalidade do Sensível em si, a
esse anonimato inato do Eu-mesmo que há pouco chamávamos carne, e
sabemos que não há nome na filosofia tradicional para designá-lo
(MERLEAU-PONTY, 2012, p. 135).

Percebemos, no trecho anterior, como Merleau-Ponty se afasta do dualismo sujeito-objeto,


por intermédio do conceito de carne. Esse conceito se constrói na mediação sem limites entre
vidente e visível, no pertencimento entre os termos.
Em La grande, os flashes de visão das personagens constroem esse
copertencimento com o espaço e com os outros pontos de vista. A importância do narrador
está no fato de ele pôr em movimento essas perspectivas, de permitir a esses olhares liberdade
de dialogar com o mundo. É na própria indefinição da perspectiva de quem vê que se
descobre um entrelaçamento mais radical com o espaço. Percebemos a centralidade posta no
movimento de ir ao encontro ao mundo, ao invés de uma preocupação peremptória com a
identificação de quem vê. Esse é o dilema e a riqueza do jogo entre voz e visão em Saer; a
promoção de um espaço de entrecruzamentos de promoção da experiência:

[e]l viento calmo del sudeste es únicamente perceptible en el agua. Tal vez
Nula y Gutiérrez lo sienten también en la piel de la cara, pero, habituados ya
180

a la intemperie fresca y lluviosa, no se dan cuenta de que lo sienten. Con la


expresión retraída que hubiesen podido asumir sin la presencia del otro en
ese lugar desierto, contemplan el paisaje cada uno por su cuenta, sin
coincidir en los detalles que observan por separado, y por lo tanto
organizándolo a su manera cada uno, como si se tratase de dos lugares
diferentes, la isla, el cielo, los árboles, la barranca rojiza, las plantitas
acuáticas de la orilla, el agua. Durante unos segundos, la superficie plomiza
y ligeramente crespa absorbe los pensamientos de Nula, y en cada una de las
olitas rugosas, idénticas, en movimiento continuo, que se yerguen formando
un borde que, más que una curva, representaría con mayor precisión un
ángulo obtuso, le parece asistir a la manifestación visible del devenir que,
por exhibirse a veces en el acontecer a través de la repetición o de la
inmovilidad engañosa, le da a los sentidos toscos la ilusión de la estabilidad
(SAER, 2005, p. 13).

A perspectiva que, a princípio, parece difusa entre Nula, Gutiérrez e o narrador, termina por
ser depositada no primeiro. É essa promoção dos sentidos das personagens que contribui para
a relação vidente-visível – entendida como a exploração de todos os sentidos no jogo de
copertencimento entre as partes, porque « [...] o espetáculo visível pertence ao tocar nem mais
nem menos do que as “qualidades tácteis” »402 – descrita, anteriormente pelo filósofo.
No capítulo “Domingo: El colibrí”, o foco é direcionado a Gutiérrez, que reflete
sobre a primeira noite que esteve com Leonor e que foi exatamente nesse dia que sua vida
começou, e terminou quando teve de abandonar a cidade e, posteriormente, o país: “[...] te
dan setenta años para que vivas unas horas, unos minutos, y después no hay nada más que
hacer con el resto; es tiempo gastado en vano”403. Gutiérrez sente que tem uma dívida para
com Leonor, por ela lhe ter proporcionado esses momentos de extremo prazer ou tê-lo feito,
simplesmente, viver. Domingo é, também, o dia do assado na casa de Gutiérrez e, por isso, o
foco narrativo se volta para essa personagem, que aguarda os convivas. O primeiro a chegar é
o aviso da desistência de Escalante, que se diz não afeito às nostalgias. Os convivas chegam;
primeiro Clara e Marcos Rosemberg, seguidos de Tomatis e Violeta, Soldi, Gabriela e José
Carlos, Nula e Diana, o casal Riera e Leonor Calcagno. A preocupação inicial é com uma
possível chuva, que poderia dispersar os comensais; nessa discussão a respeito dos
prognósticos meteorológicos404, a questão se centra no grau do aleatório presente neles.
Ao longo de todo o romance, personagens − de menor ou maior grau de presença
− se manifestam em relação à experiência. No assado, essa postura se acentua, beneficiada
402
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 131.
403
SAER, 2005, p. 327.
404
No romance Cicatrices (1969), esse tema é discutido abertamente por meio da personagem Ángel, que inventa,
segundo conselho de Tomatis, as previsões climáticas para o jornal no qual ambos trabalham. Esse jogo com o
devir se torna algo cômico, quando os leitores começam a se conduzir segundo as previsões, e não de acordo
com o clima.
181

pela reunião das personagens: há quase a tentativa de inventariar o movimento entre sujeito e
mundo, de descrever em que medida ocorre uma interação ou se apenas se pode falar em uma
eterna bipartição. Os pareceres se focam no grau de envolvimento do homem com o mundo.
A opinião frequentemente apresentada é de que, no processo de envolvimento com as coisas,
sempre há uma parte do todo que não é atingida na experiência. É como se o objetivo fosse a
experiência total ou a completa reversibilidade, mas, no processo, surge o horizonte ou o
recuo do próprio mundo. É na expectativa de articular um pensamento que responda ao
movimento entre sujeito e mundo que as personagens se manifestam. Em alguns momentos,
parece haver a defesa da incapacidade do homem para conduzir – ou compreender − essa
relação ou que eles, “[...] [a]unque están parados, plácidos, bajo los árboles, con una copa de
vino fresco en la mano, se sienten atrapados en el torbellino del mundo que hace y deshace los
acontecimientos, parte de los cuales ellos, por costumbre, llaman, con exceso de confianza,
sus vidas”405. É com o intuito de traduzir o processo de experiência que as personagens se
posicionam ora pela comunhão integral, ora pelo distanciamento sempre obstinado do mundo.
Percebemos, então, uma discussão que acompanha a saga saeriana no que diz
respeito à relação do homem com o mundo: somos regidos pelo caos ou pelo deslocamento
monótono, contínuo e harmonioso. Na verdade, há graus entre essas duas posições e as
personagens saerianas, vez por outra, manifestam-se ora por uma posição ora por outra.
Quando se levanta a questão da veracidade das previsões climáticas, o cerne da questão é
perceber em qual dos dois eixos essa “narrativa” se encontra: até que ponto é possível prever
o devir; esse é o dilema. Essa discussão metafísica acompanha o problema do espaço, porque
o que se busca é consolidar a experiência da personagem. Aceitando-se o caos completo, a
possibilidade de relação com o mundo é sentida de um modo, como quase uma fuga das
coisas à experiência. Por outro lado, o mundo, como um movimento contínuo e harmonioso,
pode gerar uma positividade das coisas. É no entorno desse problema da experiência que as
personagens se interpelam, refletindo sobre a distância que as separa do mundo. Por outro
lado, é essa mesma distância que promove a relação com o mundo, porque a identificação dos
dois vetores – personagem e mundo – cessaria o movimento.
O dilema da temporalidade emerge, nessa “irresolução” da experiência, devido à
necessidade de uma distância – de uma saída – e do recorte temporal. A definição da
fotografia serve como pretexto para o entendimento da complexidade do acontecer: “[...] ese
cuadrado de papel brilloso, después de haberla vivido unos minutos antes con la confusión de

405
SAER, 2005, p. 333.
182

sus sentidos inadecuados, en las redes complejas del transcurrir, una parcela infinitesimal y
plana de tiempo disecado”406. Esse posicionamento das personagens se apresenta em um dizer
sem enunciador definido e revestido pela voz do narrador. A personagem que tira as fotos
busca reconstruir a totalidade do acontecer por meio de um grande número de posições
registradas. É como se a própria definição anteriormente dada pelo narrador fosse contrariada
pelos gestos das personagens. O tempo dissecado pelo registro mutila, também, a experiência:
é nesse conflito do viver e do saber-se vivendo que as personagens se posicionam quanto ao
seu envolvimento com o mundo. Ao mesmo tempo em que elas acreditam que pertencem ao
torvelinho do mundo, o recorte temporal as exclui desse movimento. Nessa discussão é
interessante a posição de Collot: « [...] [a] en croire le photographe, ce procédé vise moins à
représenter de façon exhaustive et objective le paysage, qu’à en suggérer la présence
enveloppante, dans laquelle nous sommes immergés sans en avoir nécessairement
conscience »407. Esse teórico, então, sublinha que o recorte pode representar não o desejo de
confluir o todo, mas a própria parcialidade da experiência. Nesse esquema, o foco se projeta
nos acontecimentos em confronto com a complexidade do todo. Collot, em esforço para
defender o conceito de paisagem como relação integral com o mundo, frisa esse componente
no gesto de fotografar: a fotografia seria uma prova da nossa imersão do mundo e, o gesto do
fotógrafo, a capacidade de sublinhar o horizonte do mundo, a sua totalidade.
Na tentativa de abarcar o todo, o recurso da foto é preterido e outra personagem
conduz o registro do assado por meio de filmagem. Gutiérrez percorre a mesa com a
filmadora, recolhendo não apenas as imagens, mas também o próprio movimento ou a
passagem de tempo. No momento em que Gutiérrez aparece com a filmadora, Tomatis, que,
depois de Violeta, se incumbiu de registrar as fotos, se sente acuado pelo movimento do
anfitrião. Os dois se encontram – cada um com seu aparelho nas mãos – e Tomatis se retrai e
guarda a câmara. Depois do ocorrido, há mais uma tentativa da personagem de tirar uma foto
de Gutiérrez, mas, no momento em que ele consegue focalizá-lo, já não havia mais filme.
Essa disputa entre Tomatis e Gutiérrez perfaz o dilema entre tipos de registros ou a
capacidade deles, de inscrever o encadeamento da vida. Esse aspecto é frisado, por Collot,
nestes termos: « [...] [d]e telles scènes donnent à voir cette union du corps humain avec la
chair du monde qui est au coeur de l’expression contemporaine du paysage, et elles lui

406
SAER, 2005, p. 344.
407
COLLOT, 2011, p. 141: “[...] [a] crer no fotógrafo, esse processo visa menos representar de maneira exaustiva
e objetiva a paisagem do que sugerir a presença envolvente, na qual estamos imersos sem termos,
necessariamente, consciência disso” (Tradução nossa).
183

donnent sens, en réactivant les résonances symboliques des rituels d’immersion »408. O
primeiro gesto vem de Violeta, que busca montar o retrato do vivido com múltiplas fotos; em
seguida, Gutiérrez busca recobrir não somente o espaço, mas, também, o tempo, por meio da
gravação.
Soldi pensa o seguinte a respeito da atitude de Gutiérrez: “[...] [n]os guardará a
todos embalsamados en sus cintas de video, en su cuarto de trabajo, que él llama la sala de
máquinas, así como tuvo embalsamada en su memoria durante más de treinta años su
juventud y todo lo que su juventud contenía”409. Soldi desestabiliza o gesto de Gutiérrez ou
mostra a ineficácia da tentativa de se recobrir a totalidade do acontecer. É como se ele
revelasse a precariedade do registro ou que o próprio gesto é um recorte. Nesse dilema entre
registros, Diana, mulher de Nula, também se empenha na tarefa saudosista de gravar “o
assado”; a Arte por ela utilizada é a Pintura410. Sentada, ela desenha os quatorze convidados
de Gutiérrez e o próprio anfitrião, apartado dos outros e caracterizado com uma cor
específica: “[...] eran catorce manchitas de colores puestas en un esquema oval, más una, la
número quince, en la que predominaba el anaranjado, un poco separada de las otras; las
manchas, que eran abstractas, podían sugerir, a pesar de eso, una vaga reminiscencia
humana”411. A pintura de Diana tinha conotação expressionista, com o objetivo de representar
a sua recepção da cena do almoço. O objetivo não era o registro das partes do todo, como
forma de montagem da totalidade, e nem mesmo a reunião do movimento tempo-espaço, mas
o gesto de definir personalidades. Ela queria registrar as personagens do assado no plano de
uma interação com o mundo. O objetivo de Diana suplantava a mera reunião de posições; ela
se fixava na aura dos presentes ou naquilo que os unia aos outros e ao mundo.
O romance se constitui por meio desse multiperspectivismo, com a divisão da
focalização narrativa, sem, contudo, o narrador entregar completamente as rédeas da história.
Uma das funções dessa pluralidade de vozes e perspectivas é a tentativa de se

408
COLLOT, 2011, p. 145: “[...] [t]ais cenas dão a ver essa união do corpo humano com a carne do mundo, que
representa o cerne da expressão contemporânea de paisagem, e elas lhe dão sentido, reativando as ressonâncias
simbólicas dos rituais de imersão” (Tradução nossa).
409
SAER, 2005, p. 345.
410
Em O olho e o espírito (2013), Merleau-Ponty se apropria do gesto do pintor para narrar a experiência.
Fixando-se em Cézanne, no terceiro e último ensaio do livro, esse filósofo afirma que a pintura dele tinha como
alvo “[...] buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão
imediata” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 130). O primeiro ensaio – com o mesmo título do livro – apresenta
uma contraposição entre a pintura – “Os cavalos”, de Géricault – e a fotografia: “[...] Por que o cavalo
fotografado no instante em que não toca o chão, em pleno movimento portanto, com as pernas quase dobradas
embaixo dele, dá a impressão de saltar no lugar? E por que, em contrapartida, os cavalos de Géricault correm
sobre a tela, mas numa postura que cavalo algum a galope jamais assumiu?” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 50).
Os três ensaios de O olho e o espírito foram abordados, no segundo capítulo desta tese, como entrada para a
discussão de O visível e o invisível (2012).
411
SAER, 2005, p. 354.
184

ilustrar a relação das personagens com o mundo. A preocupação geral em desvendar os


motivos pelos quais Gutiérrez retorna ao país é uma tônica importante no livro; as
personagens se revezam no intuito de decifrar esse enigma. Nessa investida, as personagens
analisam o envolvimento dele com o mundo e articulam um discurso que objetiva responder
seus próprios questionamentos em relação à experiência. O projeto de traduzir os atos de
Gutiérrez acarreta a democratização da focalização, mas com incidência maior da perspectiva
de Nula. Essa multidivisão da voz enunciativa provoca valorização das várias nuanças de
envolvimento das personagens com o mundo. É como se a focalização múltipla trouxesse para
o texto o jogo de espelhamento entre as perspectivas. O enigma se torna mais acirrado, porque
não se oferece uma solução única para o problema da experiência. O processo discursivo se
fixa na problematização dos alcances da relação vidente-visível e na tentativa de aprofundar a
“tradução” dessa vivência.
El colibrí − subtítulo desse capítulo que narra o assado – aparece, no final do
capítulo, como imagem que vem para se contrastar com as personagens. A aparição do
“beija-flor”, pairando no ar, com a força do revoltear de suas asas, permite que o narrador
narre os pensamentos razoados por Tomatis em decorrência dessa visão:

[c]omo si se desplazara con movimientos discontinuos, cuya trayectoria


escapase al ojo humano, el pajarito pasa de una flor a otra, sin necesidad de
obedecer a las leyes del espacio para hacerlo, o como si le fuese permitido
viajar por medio de bruscos cortes temporales para compensar el desgaste
que le produce su aleteo constante, hasta que, de golpe, pega un envión hacia
lo alto y desaparece entre los árboles (SAER, 2005, p. 364).

O frenesi dos observadores é acompanhado pelo deslumbramento diante da


performance da ave, devido à sua relação particular com o espaço. O movimento inexplicável
entre temporalidades faz com que as personagens sejam levadas pelo desejo de acompanhar o
movimento, sem se preocuparem com a sua duração. É como se fosse importante apenas a
performance, o gesto de resistência às leis físicas de permanência no espaço. Essa é a imagem
final da obra saeriana e aquela que representa os gestos das personagens em todos os
romances de Saer: promover a experiência sem fazer caso do escoamento temporal. É na
possibilidade de reduzir os ecos temporais ou de visualizar uma mesma relação de
interioridade – o tempo, o espaço e o sujeito – que a experiência se instaura. Saer finaliza o
assado com a imagem do beija-flor; a sua importância está no fato de refletir quase que uma
resposta aos questionamentos das personagens − em relação ao espaço − articulados não
apenas em La grande, mas em toda a obra saeriana. A experiência se firma no entremeio das
185

temporalidades; “Domingo: El colibrí” foi o último capítulo escrito por Saer e,


generosamente, esse autor fundiu, nessa imagem, a sua emblemática relação com o espaço:
um gesto de resistência à horizontalidade do tempo.
A temida chuva se anuncia por meio de ventos e estrondos, servindo para
dispersar os convivas, que se dirigem para dentro da casa. Quando Gutiérrez se dá conta de
que a tempestade se aproxima, ele corre e todos percebem, com um novo olhar, os
movimentos do anfitrião:

[…] cuando el portón de listones blancos se abre para dejar pasar a Gutiérrez
que, después de cerrarlo, se dirige a ellos corriendo pero en cámara lenta,
señalando con el dedo, hacia arriba y hacia atrás, como si algo viniese
persiguiéndolo. Sus invitados lo miran divertidos, pero con cierta sorpresa,
porque no esperaban de él esos movimientos paródicos que parecen
disminuir su misterio y rebajarlo a la banalidad del resto de los mortales.
Únicamente Nula y Tomatis intuyen, de un modo vago todavía, que también
eso es una reconstitución, la puesta en escena de algo perdido y que ni
siquiera intenta recuperar sino que monta, por puro juego íntimo, en el
tablado de su imaginación desencantada (SAER, 2005, p. 369).

As personagens centralizam o foco sobre Gutiérrez, porque sentem que sua


relação com o mundo é destoada, devido ao desajuste entre seus atos e a temporalidade
vivida. O problema da temporalidade é encenado por Gutiérrez; sua ausência por mais de três
décadas provoca involuntário anacronismo em seus mais simples gestos. Buscando revelar a
singularidade das coisas, Gutiérrez traz à tona a desproporção ou a representatividade do
vivido, devido à sua peculiar relação com o tempo: os seus mais simples movimentos são
analisados e o caráter de representação é sublinhado. O anacronismo da personagem se releva
na dissintonia entre o espaço e a temporalidade vivida. O mistério que as personagens buscam
elucidar em Gutiérrez está no seu posicionamento em relação às outras pessoas ou na sua
vivência deslocada, representada pelo acordo com uma temporalidade já escoada. Tomatis e
Nula reconhecem, mesmo em uma atitude corriqueira, esse aspecto representacional dos
movimentos de Gutiérrez.
O capítulo “Domingo: El colibrí” finaliza, então, com o assado e com a
tempestade. Esses dois acontecimentos quase sempre acompanham os finais das histórias de
Saer, como o assado em El río sin orrillas, livro cujo conteúdo discutimos no primeiro
capítulo desta tese. Dois acontecimentos que anunciam, respectivamente, a reunião dos
convivas e o recomeço de uma nova estação, de um novo ciclo. Em La grande, temos,
generosamente, os dois eventos quase que simultaneamente, no capítulo anterior ao do fim do
186

romance. É uma mostra de que mudanças significativas seriam descritas no capítulo final, que
não foi escrito por Saer. Esses ciclos acompanham os desfechos das histórias de Saer,
ingrediente que contribui para o ressurgimento das personagens em outras obras, porque
anunciam prosseguimento de suas histórias.
O potencial de La grande é a insistência que suas personagens demonstram em
relação à discussão da experiência. Ao mesmo tempo em que o narrador projeta lampejos de
luz nos caminhos delineados na relação vidente-visível – uma focalização do interior da
experiência –, as personagens ou o narrador sempre retomam a discussão sobre o grau de
envolvimento do homem com o mundo. O teor filosófico das discussões de La grande
manifesta-se, principalmente, nas posições, muitas vezes, contraditórias de Nula em relação
ao movimento, ao devir. O tempo, como esse movimento da experiência é, por isso, o
ingrediente que possibilita a própria reversibilidade entre os corpos e as coisas. A
dependência do tempo está no seu teor de movimento: a discussão da concretude da
experiência se revela, também, na outra face do tempo, no seu ingrediente de recorte, de
doador de sentido para a própria vivência.

3.3 HORIZONTE E TRANSCENDÊNCIA EM LA GRANDE: CAMINHOS DA


PERCEPÇÃO E OS MOVIMENTOS DO NARRADOR

Defendemos, nesta tese, a possibilidade de leitura do espaço de Saer por meio da


última filosofia de Merleau-Ponty ou de uma concepção de espaço, como um ativo, como o
projetado no conceito de Collot (2011). A perspectiva das personagens principais do romance
– Nula e Gutiérrez – sublinha esse fato. Quando dividimos a experiência dessas personagens
entre uma promoção do sujeito ou das coisas, respectivamente, o que procuramos frisar foi
que Nula e Gutiérrez polemizam esses limites. Nula é exemplo, seu projeto de uma “ontología
del devenir” se constrói no afã de vencer a passagem do tempo em sentir, em potencialidade,
o mundo. A teoria que levanta, inicialmente, de que “as ondas são as mesmas”, é rebatida,
posteriormente, pelo pensamento de que não existe todo, somente as suas partes, aquelas que
são vividas. Essa ideia retoma a “filosofia da situação”,412 sendo promissora para a defesa da

412
Rosati afirma que « [u]ne grande partie de la philosophie du XXe siècle, à partir de Heidegger jusqu’à Sartre,
Levinas ou Merleau-Ponty – pour n’en citer que quelques-uns – peut être caractérisée comme ‘philosophie de la
situation’, la situation étant une notion qui, comme on l’a vu, renverse les structures qui réglaient le rapport entre
le sujet et le monde dans la pensée moderne : le moi qui, déraciné de tout espace, connaissait un monde spatial,
devient un moi immergé dans cet espace même, et qui ne peut que vivre le monde » (ROSATI, 2009, p. 150).
[Tradução nossa: [u]ma grande parte da Filosofia do séc. XX, a partir de Heidegger até Sartre, Levinas ou
Merleau-Ponty – citando apenas alguns – pode ser caracterizada como ‘filosofia da situação’, sendo a situação
187

experiência singular com o mundo. Esse mesmo pensamento é articulado por Tomatis quando
enxerga seu campo de visibilidade e pensa na possibilidade de existência de outros mundos,
no além-horizonte. Essa personagem defende, continuamente, que só existe o mundo que o
sujeito experiencia ou que é nesse espaço que se efetua o copertencimento entre o homem e o
mundo. Com Gutiérrez, temos a defesa da singularidade do acontecer: a personagem se
empenha em sentir potencialmente a sua relação com as coisas. Esse frisar no mundo não
impossibilita a experiência; ao contrário, põe em relevo o gesto da personagem de singularizar
a própria vivência.
O narrador do romance reiteradamente resgata o foco para si mesmo, gesto que, às
vezes, dificulta sentir o grau de envolvimento da personagem com o mundo. Como La grande
apresenta um narrador de terceira pessoa, sua presença é, então, sentida rotineiramente, o que
impede a expressão completa da personagem sobre o momento que vive. Esse recurso,
chamado “objetivismo”, pela crítica saeriana, não impede que consigamos perceber a
presença das personagens ou que nós, leitores, possamos enxergar o mundo por meio delas:

[e]sta cuestión del ver, que en Saer se abre de modo general al percibir, pone
también en cuestión la idea de saber narrativo y, por lo tanto, sitúa la
problemática del narrador lejos de la cuestión del conocimiento y más cerca
del problema del punto de vista. Resulta extraño que en general la crítica
saeriana no vea esta relación o acentúe el problema perceptivo, de prosapia
“objetivista”, sin llegar al fondo del desmantelamiento que el narrador
saeriano hace de la instancia narradora antropomorfa (ARCE, 2013, p. 100).

Essa questão é bem pontuada por Arce: compreender esse narrador difuso torna-se
prerrequisito para que se consiga entender a relação personagem-mundo. O narrador se move
entre temporalidades, demonstrando poder de controle sobre o mundo das personagens.
Entretanto, o poder de sedução da experiência narrada faz com que o narrador se exima e
deixe que a personagem veja por si mesma. Esses relances da personagem são exemplos
promissores para que se sublinhe um conceito mais ativo de espaço, como o de Merleau-
Ponty, no qual a experiência seja posta em primeiro plano.
Principalmente por meio de Nula, o narrador discute a possibilidade de se sentir a
experiência. Dois são, então, os movimentos de exploração da vivência: por meio da
descrição da experiência da personagem e por intermédio da discussão da possibilidade de se
sentir plenamente o mundo. No primeiro movimento, temos que grande parte das descrições

uma noção que, como vimos, inverte as estruturas que ajustam a relação entre o sujeito e o mundo no
pensamento moderno: o eu que, desenraizado de todo espaço, conhecia um mundo espacial, torna-se um eu
imerso nesse mesmo espaço, e que somente pode viver o mundo].
188

das experiências é articulada sob o ponto de vista do narrador e, em outros momentos,


empresta-se o ponto de vista às personagens. No segundo movimento, temos que o narrador
permite ou conduz a interpolação das personagens sobre sua experiência ou sobre a vivência
de seus camaradas. Essa separação entre narrador e personagem parece bem manejável, mas
não é tão simples, como discutimos anteriormente. O narrador saeriano é o responsável pelas
manobras de perspectiva: essa voz, que se revela por intermédio de muitos olhares e
sensações, ultrapassa os limites da vivência de apenas um homem. Explicando de outra forma:
o narrador se imiscui no narrado de forma tal que as experiências das personagens se mesclam
e, em muitos casos, não seja possível saber quem fala ou quem sente aquilo que é narrado:

[u]ne telle abolition de l’écart entre le sujet et le paysage est liée à la remise
en cause du point de vue fixe et unique qui régissait la perspective linéaire.
[...] Immergé dans le paysage et invité à le parcourir, le visiteur en a une
perception globale, mobile et défocalisée : au lieu de se concentrer sur une
zone centrale, son attention s’étend aux marges du champ visuel, qui
incluent même l’espace qui se trouve derrière son dos. Cette perception
élargie mobilise aussi d’autres sens que la vue : l’ouïe, l’odorat, le toucher,
notamment, concourent à cette approche polysensorielle qui favorise
l’immersion du sujet dans le paysage (COLLOT, 2011, p. 181) 413.

O espaço saeriano é complexo devido, principalmente, a essa evasão dos traços do


movimento do narrador. Alguns trechos de La grande são, potencialmente, complexos,
porque é difícil identificar de quem é a perspectiva. Esse “sujeito vazio”414 − como é
identificado o narrador saeriano por Arce − se apresenta abertamente em algumas situações,
mas, na maioria delas, esconde-se no entremeio das perspectivas das personagens que estão
em cena. Ao mesmo tempo em que esse narrador dificulta o trabalho com o ponto de vista e,
por conseguinte, com a análise desse espaço vivido, sua performance enriquece o próprio
movimento “da paisagem”. Como bem afirma Collot, na citação anterior, o ponto de vista
disperso possibilita que a paisagem seja sentida mais profundamente ou que se manifeste a
diversidade do narrado. Esse narrador, então, toma de empréstimo os sentires de vários
homens se deslocando, ao ponto de tentar revelar como as próprias coisas se mostram. Nesse
afã, mesclam-se as sensações; o mundo se revela em todos os sentidos do homem:

413
Tradução nossa: Tal abolição da distância entre o sujeito e a paisagem está ligada a discusão sobre o ponto de
vista fixo e único que regia a perspectiva linear. [...] Imerso na paisagem e convidado a percorrê-la, o visitante
tem uma percepção global, móvel e desfocalizada: no lugar de se concentrar sobre uma zona central, sua atenção
se estende às margens do campo visual, que inclui até o espaço que se encontra atrás de si. Essa percepção
alargada mobiliza, também, os outros sentidos, além da visão: a audição, o olfato, o tato, principalmente,
concorrem para essa aproximação polissensorial que favorece a imersão do sujeito na paisagem.
414
ARCE, 2013, p. 101.
189

[e]l cielo, la tierra, el aire y la vegetación son grises, no con el tinte acerado
que el frío les da en mayo o en junio, sino con la porosidad tibia y verdosa
de las primeras lluvias de otoño que no bastan, en la zona, para abolir el
verano insistente y desmedido: los dos hombres, que caminan, ni lentos ni
rápidos, a poca distancia uno detrás del otro, llevan todavía ropa liviana
(SAER, 2005, p. 5).

Esse pequeno trecho é extraído do início do romance, quando o narrador está a


ponto de fazer conhecidas as duas personagens: Nula e Gutiérrez. Percebemos que o narrador
mescla sensações, tentando delinear todo o entorno da cena. Essa profusão do sensível é uma
das armas do narrador para fazer com que o leitor adentre esse mundo narrado, uma forma,
também, de pôr em movimento essas personagens que, primeiramente, são focalizadas
externamente. O narrador de Saer é complexo, na medida em que joga com as perspectivas
interna e externa e, além disso, recobre algumas falas com a perspectiva de duas personagens.
Esse jogo faz com que as coisas se revelem quase que independentemente do ponto de visão,
que o mundo atinja uma reciprocidade em relação ao vidente. Desse fato, atestamos a
importância do narrador para o entendimento do espaço narrativo ou, ainda, do deslindar da
própria experiência. Posteriormente à cena citada anteriormente, a focalização se instaura
sobre Nula:

Nula únicamente pesca palabras sueltas o fragmentos de frases, sin perder


sin embargo el sentido general, aun cuando se trate apenas de la tercera vez
que se encuentra con Gutiérrez, y aun cuando el primer encuentro no haya
durado más de dos o tres minutos: por lo que ha escuchado durante un buen
rato la vez anterior, con sorpresa y curiosidad, el día que le vendió las
primeras tres cajas de vino, cuando Gutiérrez monologa, siempre parece
hacerlo sobre el mismo tema (SAER, 2005, p. 6).

Na continuação desse trecho, temos um exemplo providencial de como o narrador


não se desliga completamente daquilo que é experienciado pela personagem: “[...] [s]i Nula,
imaginando que se los cuenta a un tercero, pudiese resumir esos monólogos en pocas
palabras, serían más o menos las siguientes…” 415
. Esse trecho reflete a dificuldade que se
apresenta à tarefa de desmembrar a perspectiva do narrador daquela que se defende como
sendo a da personagem. Não se pode assegurar que seja Nula que imagina esse resumo das
falas de Gutiérrez, ou se é o próprio narrador que se interpola sobre a possibilidade de que
Nula faça esse resumo. É nesse universo de incertezas − em relação à perspectiva que o
romance entoa − que o espaço de La grande é construído. Uma coisa é patente nas descrições

415
SAER, 2005, p. 6.
190

saerianas: com apuro descritivo, o visível se torna sensível ao toque. Essa mistura de
sensações no plano perceptivo favorece abertura maior à apreciação do espaço. As relações
são aproximadas − esse é o efeito central das descrições de Saer −, percebemos como as
personagens comungam com esse espaço da experiência.
Essa indefinição do ponto de vista contribui para a abertura de uma janela em que
nós, leitores, podemos, também, nos posicionar, imiscuindo-nos no interior dos múltiplos
pontos de foco. Esse efeito é construído quando as coisas são animadas e dispostas para
contato do leitor pelos olhares das personagens. O trunfo de Saer está no encobrimento –
muitas vezes – do ponto de vista, no intuito de sublinhar apenas o contato com o mundo, a
própria vivência:

—Sudeste —dice Nula cuando se paran en la orilla, señalando con el índice


estirado en línea oblicua hacia el agua plomiza, las olitas que encrespan la
superficie en sentido contrario al de la corriente. Igual que si la hubiese
emitido algún otro, su propia voz le ha parecido extraña, no durante su fugaz
existencia sonora, sino en la vibración sin ruido que dejó en la memoria al
desvanecerse, a causa quizás del silencio que se ha instalado desde que el
chasquido de los pasos contra el suelo arenoso dejó de oírse. El viento calmo
del sudeste es únicamente perceptible en el agua. Tal vez Nula y Gutiérrez lo
sienten también en la piel de la cara, pero, habituados ya a la intemperie
fresca y lluviosa, no se dan cuenta de que lo sienten (SAER, 2005, p. 12).

A insistência do narrador de sempre se fazer presente embaça o ponto de visão: as faces das
coisas são desveladas pelas personagens e postas em dúvida pelo narrador. Descrições
pormenorizadas são ativadas nesse esquema de narrar e, em seguida, desdizer. É interessante
a confluência dos sentidos ativados no momento de se sentir esse mundo narrado. É como se
o narrador tentasse abarcar o espaço preenchendo seus vazios por meio de todos os sentidos.
Saer é pródigo em ativar o espaço pelos vários sentires do homem: o resultado é a
vivacidade do mundo narrado. O leitor caminha adjunto às personagens e consegue participar
desse espaço, adentrar as sendas abertas pelos sentidos narrados. É como Merleau-Ponty
defende: a Arte projeta caminhos da percepção, revela dizeres do mundo. Aquilo que, muitas
vezes, é automatizado pela experiência cotidiana ganha roupagem diferente, proporcionando
acentos sobre pontos jamais vislumbrados. Essa promoção da experiência manifesta-se nesse
esquema de narrar o mundo, as nuanças da experiência são expostas e se reproduz a
vivacidade da percepção;

[e]se recuerdo múltiple, hecho de fragmentos de muchos recuerdos


repetidos, difiere de uno más intenso, único, referencia lejana pero nítida de
191

una mañana de noviembre, en la que, durante un buen rato, mientras la canoa


derivaba por pasajes del río que eran a la vez familiares, porque se parecían a
otros, y desconocidos, porque era la primera vez que los atravesaban, la luz
fluyó de tal manera que toda la superficie del agua, del aire y del cielo se
transformó en una incandescencia blanca homogénea y vibrante, mientras
que la tierra rojiza de las islas y la vegetación de un verde azulado parecían
de pronto recubiertas de una especie de laca brillante; las florcitas de la
orilla, acuáticas o terrestres, blancas o de colores vivos, brillaban, esmaltadas
por la luz ubicua y activa que, paradójica, hacía relucir hasta las zonas de
sombra (SAER, 2005, p. 297).

Esse é um dos exemplos de trechos em que La grande prioriza esse olhar lançado como que
pela primeira vez sobre o espaço. A automatização é abandonada, privilegiando-se a real
postura frente à paisagem. Todos os sentidos ganham movimento e, dessa forma, as cores e,
principalmente, as formas ganham vivacidade. Os outros sentidos, também, são perpassados
pelo movimento da percepção.
Essa recordação é de Tomatis; porém, a presença do narrador é atuante, age nos
entremeios da ação da personagem. É como se a recordação fosse extraída do interior da
personagem, para ser sentida pelo olhar e segundo a perspectiva do leitor. O próprio narrador
afirma que: “[...] [f]lamante, el mundo acababa de surgir de su pozo hondo de nada y flotaba
en un cauce de la luz que lo envolvía con su túnica ondulante y aterciopelada: Tomatis,
recostado contra el borde de la canoa que iba a la deriva, lenta, estaba ahí contemplándolo”416.
Esse pequeno trecho dá sequência ao anterior e mostra como as coisas se dinamizam diante do
olhar: o gesto exploratório de Tomatis revela aquilo que escapa ao contato mediato. Essa
personagem rememora um passeio em companhia de seu amigo Barco; a exuberância do
espaço é revelada pelos sentidos. A busca por uma experiência pura, por viver uma relação
bruta, com as coisas é um dos objetivos exploratórios da personagem:

Tomatis pensó que se había quedado dormido, pero más tarde, cuando les
volvieron las ganas de hablar, Barco le dijo que, intrigado por el silencio
súbito que se había instalado en esa parte del río, había tratado de oír algo
que explicara ese silencio, o de escuchar todos los rumores imperceptibles,
del agua o de las islas que habitualmente los ruidos corrientes impiden
escuchar (SAER, 2005, p. 298).

Esses resgates interpretativos da experiência – pelo narrador – não impedem que vejamos as
coisas surgirem como que diante de nós, leitores. A busca por recobrir esse mundo ultrapassa
a relação direta com o mundo: a relação entre o visível e aquilo que se mostra em suas bordas

416
SAER, 2005, p. 297.
192

é perseguida pelos sentidos da personagem. A transcendência do mundo é o objetivo da


personagem, resultando disso o fato de sua relação com o sentido se mostrar iterativamente
fragmentada.
Outro tema presente em La grande é a monotonia: os sentidos das personagens
percebem uma constância naquilo que é “visto”. A importância desses momentos de
repetição é que as personagens podem se colocar, à espreita de um sentido ainda não revelado.
É como discutimos por meio da perspectiva de Nula: a sua preferência pela repetição é uma
abertura para a exploração das coisas que estão encobertas ao olhar automatizado:

[s]ubían a la mañana bien temprano, cuando recién empezaba a clarear y,


turnándose con los remos, se internaban por el laberinto de riachos y de islas
que conocían bien pero no lo suficiente como para no perderse de vez en
cuando en algún recodo, en el que la anchura del cauce, la dirección de la
corriente, la vegetación y la forma de las islitas que cruzaban eran tan
idénticas a todas las otras por las que ya habían pasado, que por momentos
tenían la impresión de haber permanecido en un punto fijo, sin avanzar un
milímetro, del río omnipresente y desmedido. Más de una vez se
encontraban en algún pasaje desconocido y, parando de remar, dejaban ir la
canoa a la deriva, corrigiendo apenas de tanto en tanto el derrotero con un
golpe de remos, sabiendo que en cualquier momento volverían a encontrarse
en algún lugar familiar de esa extensión incesante y desierta de islas y agua
(SAER, 2005, p. 296).

É interessante como a paisagem familiar funciona como um dispositivo de resgate


da personagem dessa imersão na experiência, uma ruptura nesse processo de aprofundamento
nas singularidades do visível. É salutar esse giro, e Saer se ocupa dele quando da discussão do
problema temporal, demonstrando como a repetição é um tipo de suspensão do movimento,
daquilo que caracteriza, mais potencialmente, o tempo. As narrativas saerianas priorizam o
narrador heterodiegético ou esse gesto iterativo de reformulação do sentido daquilo que é
narrado. O problema temporal emerge nesse movimento do narrador e na possibilidade de a
personagem se coincidir com o próprio espaço. Na citação acima, percebemos esse
intercâmbio entre a repetição e o movimento, enfatizando a centralidade do problema
temporal no interior da experiência espacial.
O horizonte apresenta essa mesma corrosão temporal, porque as coisas revelam
uma espessura ou suas partes ocultas. Esse jogo de revelação e encobrimento faz com que o
tempo seja sentido na sua verticalidade ou no interior da própria experiência:

[…] Tomatis tiene la impresión de que, cuando llegue al horizonte la forma


rojiza estará interceptándolo y el jinete entrará en ella sumergiéndose en la
sustancia magnética y vibrátil que la circunferencia perfecta contiene, masa
193

fluida de materia en fusión que lo tragará para siempre, a menos que,


triunfantes, jinete y caballo salgan indemnes del otro lado del camino,
dejando un hueco desgarrado en el centro del disco, desbaratando la
superchería o delatando la ilusión (SAER, 2005, p. 322).

A relação com o horizonte explicita as chamadas ilusões e desilusões da experiência ou o


contato com o lado oculto das coisas. É nesse ambiente que a imaginação deixa de ser vista
como invenção, para se tornar moduladora da própria experiência. O horizonte representa a
profundidade, lugar em que se gesticula a reversibilidade do vidente-visível. Esse espaço
substitui a distância – como grandeza positiva – pela abertura das coisas e dos corpos à
experiência.
Esse é um dos lugares comuns da experiência saeriana, o horizonte se apresenta
como a própria transcendência do mundo: “[...] [l]a notion d’horizon permet de penser le
monde comme ouverture, et apparaît comme « le modèle de toute transcendance » − c’est
effectivement sur ce modèle que Merleau-Ponty présente la transcendance d’autrui, de la
chair”417. Nessa expansão, o espaço deixa de ser um lugar para se tornar experiência, relação
de possibilidade entre o vidente e o visível. O espaço de La grande tem como diferencial essa
análise da experiência do outro: as personagens discutem e se interpelam a respeito da
vivência de Gutiérrez. É nesse ambiente de mediação entre sentires que se torna mais radical
perceber esse espaço da experiência como relação intrincada entre o mundo e as personagens.
Como Merleau-Ponty defende, é na relação com o outro que se pode apreender o conceito de
carne418 ou o pertencimento dos corpos em meio à experiência com as coisas.
Recapitulando, o espaço de La grande apresenta essa promiscuidade entre os
corpos – os sentires – por meio da performance do narrador. As vozes se sobrepõem, de
forma que a experiência é sentida como pertencente a muitos corpos. Essa é a riqueza do
espaço do romance, que pode ser estendida a outros romances do próprio autor, tema que
abordamos no capítulo final desta tese. A aderência aos corpos se apresenta como o aspecto
dificultoso do exame do espaço, ao mesmo tempo em que expande os limites da própria

417
ZIELINSKI, 2008, p. 227: “[...] [a] noção de horizonte permite pensar o mundo como abertura, e aparece como
« o modelo de toda a transcendência » – é efetivamente sobre esse modelo que Merleau-Ponty apresenta a
transcendência do outro, da carne” (Tradução nossa).
418
Retomando o conceito de carne, tem-se esta definição de Rosati: “ [...] le visible est la visibilité de l’invisible,
tout comme l’invisible est la visibilité même du visible. Un terme ne se donne pas sans l’autre. Pour expliquer
cet entrelacement, Merleau-Ponty emploie une expression qui me semble bien décrire cette structure : « la
présence de l’absence ». Merleau-Ponty désigne avec cette expression la complexité de la chair en tant que
visibilité et invisibilité de la visibilité” (ROSATI, 2009, p. 31). [Tradução nossa: “[...] o visível é a visibilidade
do invisível, da mesma forma que o invisível é a visibilidade do visível. Um termo não se mostra sem o outro.
Para explicar esse entrelaçamento, Merleau-Ponty emprega uma expressão que acreditamos descrever bem essa
estrutura: « a presença da ausência ». Merleau-Ponty designa com essa expressão a complexidade da carne como
visibilidade e invisibilidade da visibilidade”].
194

experiência. Pensar o espaço de Saer requer muito mais que uma pontual descrição do lugar
no qual a personagem se movimenta, requer-nos o exame dessa imbricação entre os corpos.
As vozes de Saer revelam a conturbada relação com o visível em radical confluência de
sentires. A riqueza de pensarmos o espaço de Saer por intermédio da filosofia de Merleau-
Ponty está na possibilidade de expandir os limites da cena, de visualizar, nos próprios corpos
das personagens a aderência ao espaço e aos sentires das outras personagens. Esse filósofo
utiliza a Arte para exemplificar a experiência, para mostrar como se processa o movimento
vidente-visível: a corporificação das coisas com os corpos. O conceito de Arte – para
Merleau-Ponty – é, então, central para o entendimento dessa relação: “[...] [a] arte não é
construção, artifício, relação industriosa a um espaço e a um mundo de fora. [...] [e], uma vez
ali, ele desperta na visão ordinária das forças adormecidas um segredo de preexistência” 419.
Essa carne do mundo é, então, o conceito que, além de corroer os dualismos, possibilita que
se instaure um novo nível de relação entre os corpos.
A experiência se apresenta como singular, na medida em que engloba os sentidos
das coisas e dos corpos, provocando uma relação recíproca de correspondência com o mundo.
Essa ideia é sintetizada na definição merleaupontyana da experiência do ver: “[...] [a] visão
não é um certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar
ausente de mim mesmo, de assistir por dentro à fissão do ser, ao término da qual somente me
fecho sobre mim”420. Saer trabalha com a experiência do ver; suas personagens percebem o
mundo e se mesclam com essa visão: é relatado o momento em que a subjetividade daquele
que vê é esquecida, por se privilegiar a singularidade da experiência, da relação vidente-
visível: “[...] [h]acia el oeste, para el lado de la ciudad, el cielo sin nubes es una sola mancha,
de un rojo vivo, como de lava en fusión, y del otro lado, hacia el este, viene subiendo la
noche”421. É essa apurada descrição da vivência que singulariza o espaço de Saer, como uma
fusão dos sentidos, como uma tentativa de pôr em cena a experiência da personagem, de
decompor a sua relação com o mundo, de sublinhar os meandros da experiência.

[e]n el silencio de la costa que la llovizna callada ni siquiera interfiere,


cuando se han alejado lo suficiente del agua como para dejar de escuchar el
chapoteo rítmico de la orilla, es el ruido de sus propios pasos, chasquidos,
roces, golpes, contra arena, agua, yuyos, barro chirle, lo único que se
escucha, con un ritmo complicado pero sostenido, en el que a veces algún
resbalón o alguna interjección involuntaria introducen una disonancia
efímera (SAER, 2005, p. 47).

419
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 45.
420
MERLEAU-PONTY, 2013, p. 51.
421
SAER, 2005, p. 170.
195

O próprio silêncio é permeado pelos outros sentidos, de forma que uma voz sempre ressoa,
como que tornando significativo aquilo que não é imediatamente revelado: é significativa essa
busca de Saer por expressar do interior, a experiência da personagem no mundo.
196

CAPÍTULO 4

O REALISMO EM SAER: VANGUARDAS E DISCUSSÕES


ESTÉTICAS EM LA GRANDE E EM LO IMBORRABLE

“Reales – urge. Y nadie sabe bien dónde está”.


SAER, El arte de narrar, p. 129.

Neste capítulo, caracterizamos o realismo de Saer ou sublinhamos como esse


escritor rejeita um realismo de identificação ou aquele que estagna a relação homem-mundo.
A realidade objetivada é preterida em função do contato entre vidente e visível: Saer reclama
um conceito de ficção – como vimos no primeiro capítulo – que dinamize a especulação do
homem no mundo. O realismo rejeitado é discutido, nos seus romances, pelas próprias
personagens, e trazemos dois desses momentos da obra saeriana para discussão deste capítulo:
o primeiro é o precisionismo em La grande (2005) e, o segundo, a recepção estética de La
brisa en el trigo, metatexto de Lo imborrable (1993). Quanto ao precisionismo, o nosso
objetivo é pinçar suas características, apontadas no relato testemunhal lido e discutido, pela
personagem Tomatis, no quinto capítulo de La grande; ou seja: frisamos como Saer recorre a
esse movimento literário para pôr em discussão seus próprios parâmetros literários. Da mesma
forma, discutimos, posteriormente, a recepção crítica do livro de Walter Bueno La brisa en el
trigo – encenada em Lo imborrable –, como forma de sublinhar as nuanças ficcionais
defendidas por Saer. Mostramos, então, por intermédio dessas duas linhas de discussão, o
manejo de Saer em relação à representação do mundo ou como o realismo é tratado em seus
romances.

4.1 A DISCUSSÃO DO REALISMO A PARTIR DO “PRECISIONISMO” DE LA


GRANDE

O quinto capítulo de La grande, intitulado “Sábado: Márgenes”422 – penúltimo


escrito por Saer −, tem como foco o movimento “precisionista”423. Soldi e Gabriela Barco424

422
Premat, assim, sintetiza o gesto de Tomatis: “[...] [d]esde afuera (desde los “márgenes” como lo indica el
título), Tomatis se interroga sobre el itinerario personal de Gutiérrez, evoca recuerdos de juventud, observa las
transformaciones sensibles de lo real y piensa en la ciudad como en un conjunto. Vista desde afuera por un
personaje que siempre estuvo adentro, la zona cobra así una especie de plenitud y totalidad, que seguramente hay
que poner en relación con uno de los cimientos del proyecto de La grande, que es una gran construcción
panorámica en donde se refleja y prolonga toda la obra precedente” (PREMAT, 2013, p. 222).
197

pesquisam sobre a vanguarda artística na província de Buenos Aires e a atuação de Mario


Brando425 como mentor desse movimento. Gutiérrez foi uma das testemunhas, porque
trabalhava com o Dr. Calcagno, sócio de Mario Brando: ele é um dos informantes de Soldi e
Gabriela Barco. O capítulo se inicia com um narrador não identificado; em meados do
capítulo, o texto se revela como uma leitura que Tomatis faz, em viagem, de uma carta
anônima, de um informante de Gabriela Barco. Tomatis não revela a sua autoria, mas diz
saber quem escreveu a carta. O precisionismo nasce, segundo o relato, em 1945, tendo estas
diretrizes: “[…] el precisionismo debía imponerse no como vanguardia y en oposición a la
época, sino como su reflejo más fiel. Para Brando, los diarios, las radios, las universidades y
las revistas de gran tirada debían ser los medios naturales de expresión y de expansión del
movimiento.”426. A oposição dos neoclássicos arregimenta-se com a dos regionalistas: esses
movimentos não se rendem ao surgimento do precisionismo. A Revista Nexos era o principal
órgão do movimento precisionista; em contrapartida, os neoclássicos editavam,
trimestralmente, na Revista Espiga. O atrito, então, se centraliza entre precisionistas,
regionalistas e neoclássicos427.

423
Também denominado realismo cubista, foi um tipo de modernismo americano dos anos 1920. Nele, há
composição cubista e a estética das máquinas dos futuristas, como vemos neste trecho: “[m]ovimiento surgido
hacia 1915 que se desarrolla en la pintura estadounidense a lo largo de la década de 1920, en el que los temas
urbanos y, sobre todo, industriales se representan con una técnica muy suave y muy precisa creando forma
claras, severamente definidas, a veces casi cubistas. El tema por excelencia de los precisionistas es la
arquitectura representada con precisión casi fotográfica, de donde viene el nombre del movimiento, con una
técnica lisa e impecable. No constituían un grupo formal, pero a veces exponían juntos. Demuth, O´Keeffe y
Sheeler figuran entre sus más destacados miembros también denominados “cubistas-realistas», «inmaculados» y
«esterilistas». En la pintura precisionista la luz suele ser brillantemente clara y frecuentemente se eligen las
formas por su interés geométrico. Está excluida la presencia humana y no hay observación social, tratando con
una clásica perfección temas considerados antiestéticos, como los silos de granos, los rascacielos de Nueva York
o los puentes de los barcos. El precisionismo influye tanto por su imaginería como por su técnica en el realismo
mágico y el arte pop norteamericanos.” (http://weblogs.clarin.com/revistaenie-
elmisteriodelaspalabras/2008/04/03/precisionismo/).
424
Gabriela Barco aparece, também, em um conto de Cuentos completos (2000, p. 93) intitulado “Cosas soñadas”;
Tomatis assim apresenta a filha de seu amigo: “[…] a pesar de su diploma de letras, obtenido en uno de los
establecimientos de la Ivy League, Gabriela, la hija mayor de Barco (la menor se ha aficionado a las disecciones
en la facultad de medicina), "padece una fuerte vocación literaria".”.
425
Gutiérrez assim caracteriza esse movimento: “[...] [e]ra un grupo heterogéneo de juristas ilustres y de
empleados públicos, de liberales y de adictos a la misa de once, de mecenas ignorantes y de profesores
secundarios, de peronistas, de conservadores y de radicales, de pobres y de ricos, capitaneados por un
personaje ambicioso y sin escrúpulos, de una duplicidad visceral, y que hubiese merecido nuestro odio si sus
ambiciones no hubiesen sido tan mezquinas y transparentes: obtener algún ministerio en el gobierno provincial,
un puesto subalterno en alguna embajada y aparecer de tanto en tanto en los diarios nacionales” (SAER, 2005,
p. 146).
426
SAER, 2005, p. 275.
427
A carta que Tomatis lê caracteriza esses movimentos de maneira bem irônica e controversa: “[e]n privado, los
regionalistas trataban a los neoclásicos de beatos y de chupacirios y a los precisionistas de futuristas
trasnochados y de fascistas; los neoclásicos decían que los regionalistas, a fuerza de asados criollos, estaban
devorando poco a poco el tema de su literatura y que los precisionistas, con su absurdo cientificismo, eran los
mucamos del Colegio de Médicos; y los precisionistas, que no se limitaban a la calumnia ocasional sino que
lanzaban, en forma secreta, verdaderas campañas de desprestigio, les atribuían a varios miembros del comité
198

Nesse quinto capítulo de La Grande, observamos que a história do precisionismo


se confunde com a história do seu criador, já que muitas das questões que são discutidas sobre
o movimento estão imbricadas na vida pessoal de Mario Brando. O texto revela que Brando
nasceu em 1920, filho de imigrantes italianos, e que o seu pai chegara a Buenos Aires em
1900. Atilio Brando – o pai de Mario Brando – tinha caráter empreendedor e conseguiu
transformar uma pequena fábrica de massas em uma grande empresa. O sucesso dos negócios
se consolidou e, assim, Atilio retornava frequentemente à Itália, tempo que dedicava a
escrever romances e memórias. Essa inclinação do pai de Brando pelas letras “[...] [e]l
memorialismo y la novela verista eran el norte de su vida”428 é usado como paralelo para se
compreender a estética do movimento literário do filho:

[d]e los dos Brando, el padre era el romántico y el hijo el pragmático; el


padre era generoso y el hijo tacaño; el padre, indiferente a las convenciones
sociales y el hijo, dependiente del qué dirán. El padre andaba desharrapado
y como perdido en sus sueños; el hijo era afecto al chaleco y a la cigarrera
de oro. Como un padre millonario que trata de ocultar a los miembros del
directorio los desvíos de su heredero que podrían hacer peligrar la empresa,
Mario ocultaba a lugartenientes y discípulos los devaneos veristas de su
padre por considerarlos como un escarnio a la exactitud científica del
precisionismo. Por suerte, Atilio Brando escribía en la lengua de Dante [...]
(SAER, 2005, p. 278).

O pragmatismo de Mario Brando contrastava com o romantismo de Atilio Brando.


Brando filho tinha como uma das propostas do precisionismo traduzir o vocabulário poético
em uma terminologia exata ou estabelecer uma relação direta das palavras com a realidade;
Mario Brando buscava uma linguagem científica capaz de sublevar a linguagem das massas
ou a utilizada no cotidiano, a língua viva;

«[e]s muy sencillo, afirmaba Brando: se trata de hablar con precisión. Eso
simplifica mucho las cosas. Fíjese en la etimología de la palabra Precisión,
del latín praecisus, 'recortado, abreviado'. Que cada palabra que utilice el
poeta precisionista corresponda a un hecho verificado o verificable. De ese
modo, todo malentendido desaparece del intercambio social de conceptos y
sentimientos» (SAER, 2005, p. 278).

Percebemos, por outro lado, o contato entre a estética de Mario e a de Atilio


Brando. As novelas veristas do pai apresentam o realismo que o filho busca no pragmatismo

de redacción de Espiga intereses en la Curia, amalgamaban adrede misticismo y mariconería, y decían del
principal escritor del grupo regionalista que su interés por las cosas del campo se explicaba por el hecho de que
era un verdadero caballo” (SAER, 2005, p. 276).
428
SAER, 2005, p. 277.
199

da linguagem. Essa correspondência entre os pensamentos é visualizada na importância


creditada ao reflexo da “realidade”, uma busca por retratar o mundo de forma direta.
Enquanto Atilio é caracterizado como romântico e autor de romances veristas, seu filho busca,
por meio da poesia, um cientificismo da expressão poética. Alguns críticos da época
percebem em Mario uma vocação poética, mas a normatividade do movimento que ele
encabeça impedia liberdade de criação. Os manifestos lançados apresentam uma estética que
era lida como um “absurdo científico” e de forma até irônica pelos rivais de outras escolas
poéticas. Esse dilema entre pai e filho se apresenta como uma forma de Saer pôr em conflito
alguns lastros do pensamento realista ou mesmo o discurso realista mais simplista,
popularesco. Os mecanismos realistas se apresentam, então, de forma absurda, tendo em vista
a estética do precisionismo e a vertente realista que Atilio defendia em italiano.
Saer, então, se posiciona contra o realismo cientificista que procura reduzir as
coisas a conceitos – como Merleau-Ponty denuncia em O visível e o invisível: “[...]
[s]implesmente, essa bárbara convicção de ir às próprias coisas – incompatível com o fato da
ilusão – ela a reduz ao que pretende dizer ou significa converte-a em sua verdade”429 – e
contra o gesto de representação fidedigna do mundo. O tema do realismo sempre repercute
nos romances de Saer, constituindo uma forma de esse escritor defender a ficção como um
espaço em que as disparidades – ou pluralidades – da percepção são vistas como vertentes da
própria experiência. É um posicionamento contra a objetividade pregada pelo “realismo
simplista”; em vez disso, reclama-se a constante abertura do mundo. Nesse debate, percebe-se
o retorno de Saer ao seu conceito de ficção, defendido como mecanismo que privilegia a
relação plural do homem no mundo.
O campo de atuação dos ideais precisionistas foi defendido nos seus manifestos:
“[...] [e]l movimiento precisionista debía ocupar el campo social en totalidad, valiéndose «de
todas sus instancias», para transformarlo”430. A proposta central era corrigir os desvios da
linguagem por meio de um aparato cientificista ou cunhar um vocabulário que pudesse fazer
coincidir a linguagem com as coisas. O precisionismo se caracterizava, então, por essa relação
atípica com a realidade, defendida por seu mentor como um aspecto historicista. O
movimiento era originário da cidade de Buenos Aires, “[...] fue reconocido desde su aparición
como algo más que un simple movimiento literario, como una verdadera Weltanschaung”431.
Por cerca de dois anos, o precisionismo se sobressaiu direcionando os holofotes a Mario

429
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 39.
430
SAER, 2005, p. 278.
431
Ibidem, p. 282.
200

Brando, mentor da escola poética. Nesse processo, Brando se casa com a filha do General
Ponce e essa relação com os militares revela-se importante para a sua carreira política e
literária. Depois da ruptura de Brando com Tardi − seu braço direito no movimento −, o
General Ponce o indica para um cargo de agregado cultural em Roma e Brando parte, com sua
mulher, para a Itália. Os outros precisionistas se dispersam e somente após algumas
temporadas em Roma (1947 a 1951) Brando retorna e busca reunir o séquito do movimento,
para novas publicações. O precisionismo se caracteriza, então, por essa dependência de Mario
Brando: a sua vocação poética e o seu apreço às convenções sociais o levou a conceber esse
movimento, que se caracteriza pela mundanidade, segundo o narrador da carta. Esse caráter
de mundanidade é explicado pelo narrador quando da valorização do imediatismo do mundo,
por meio da defesa de uma linguagem que coincida com as coisas e, também, pela valorização
que Mario Brando dispensava sempre ao ter, ostentando seus bens e conquistas sociais.
O ideal do movimento pode ser sintetizado, então, no criticado “absurdo
científico” – expressão usada pelo narrador –, quando do projeto de depurar a linguagem dos
desvios de significação: a linguagem deveria ser o reflexo da realidade. O precisionismo se
revela como uma técnica conceitual de relação com as coisas que pretende criar uma
linguagem pragmática. A crítica identifica nessa linguagem virtual o barbarismo e Mario
Brando se justifica afirmando que a linguagem poética de sua época se assemelhava ao Latim
do tempo de Dante: uma língua morta. A crítica aponta uma grande incoerência nos princípios
do movimento, porque, ao mesmo tempo, em que se defende a mundanidade, busca-se uma
poesia cientificista e, por tabela, seus “seletos” membros não se afastavam do círculo da elite
iletrada burguesa. Mario Brando era considerado um oportunista, devido a essa dúbia
personalidade: mantinha relação com os militares e com o governo vigente, na mesma medida
em que se associava com intelectuais e poetas. Talvez a discrepância dos ideais precisionistas
− apontada pelos críticos do movimento − explique a dificuldade de aqui elencarmos as
características desse movimento de Mario Brando.
Focando-se no conceito de realismo, defendido pelo movimento precisionista, o
mais excêntrico está no projeto de se criar uma linguagem capaz de amoldar o mundo, ou que
“cada palabra corresponda a un hecho verificado o verificable” – trecho citado anteriormente. Essa
relação direta entre linguagem e mundo corrói a própria ideia de linguagem poética, como vemos
em Todorov: “[...] [o] próprio do discurso literário é ir além da linguagem (senão ele não teria
razão de ser)”432. O pensamento dos precisionistas reduz seu próprio campo de atuação,

432
TODOROV, 1970, p. 165.
201

porque os poemas buscam coibir os ruídos entre linguagem e mundo. O movimento de Mario
Brando, então, pode ser compreendido como uma discussão saeriana dos termos do realismo e
dos limites que essa ideia pode impor à própria experiência. É recorrente, nos romances de
Saer, esse recurso de mostrar – quase de modo jocoso ou em seus termos mais radicais – um
conceito que desfigura aquilo que ele defende como o espaço da ficção.
Saer, dessa forma, defende seus pressupostos ficcionais, demonstrando o valor da
experiência e como a imaginação – entendida como a liberdade concedida aos sentidos do
homem – promove uma relação plena entre o sujeito e o mundo. É a defesa de como os
vazios entre a percepção e o mundo gesticulam a multiplicidade expressiva, financiando a
riqueza da relação com as coisas. O pragmatismo do precisionismo é interessante, aqui, por
mostrar – de maneira inversa – como a nossa eterna cisão com as coisas mantém a própria
percepção, impedindo a fusão do vidente com o visível ou a reclusão do mundo. Essa ideia
retoma o pensamento central desta tese: a importância de pensarmos o espaço como esse lugar
do fenômeno que – seguindo o desenvolvimento da filosofia de Merleau-Ponty – ultrapassa os
limites daquilo que se mostra à consciência. A experiência é estendida – por meio desses
vazios – como forma de se explorar esse momento em que o vidente e o visível se mostram
pertencentes um ao outro.
É aquilo que foi discutido no capítulo “Teoria e Filosofia”, o conceito de quiasma
de Merleau-Ponty responde a essa demanda da pesquisa sobre a experiência:

[...] [l]e chiasme n’est rien d’autre que la tentative de penser l’Être de façon
originale, à savoir, de façon que cette notion n’implique plus l’opposition
entre le sujet et objet qui caractérisait une grande partie des ontologies
précédentes. Dans le chiasme l’Être devient sauvage : il n’est donc plus
‘devant’ un observateur mais, grâce à cette « massive adhésion à l’Être qui
est la chair », il devient une unité avec l’observateur même (ROSATI, 2009,
p. 47)433.

Percebemos como é promissora essa elaboração teórica desse filósofo para se pensar a relação
que se firma entre o vidente e o visível. A experiência provoca essa concomitância entre o
corpo e o corpo do mundo, fazendo com que se perceba uma adesão, mas nunca uma
completa reversibilidade; ou seja: é o pôr em evidência esse momento em que os termos se

433
Tradução nossa: “[...] [o] quiasma não é outra coisa senão a tentativa de pensar o Ser de maneira original, a
saber, de maneira que essa noção não implique mais a oposição entre o sujeito e o objeto que caracterizava uma
grande parte das ontologias precedentes. No quiasma, o Ser torna-se selvagem: ele não está mais, portanto,
‘diante’ de um observador, mas, graças a essa « massiva adesão ao Ser que é a carne », ele se torna uma unidade
com o próprio observador”.
202

deslocam entre em si por intermédio das aberturas perspectivas e sensoriais que se encontram
neles.
Tomatis, ao terminar de ler o texto, pensa nas propostas estéticas defendidas pelo
precisionismo: “[…] [c]ada palabra, por simple y directa que sea, ya es una ficción: ¿qué
esperar entonces del resumen de un supuesto testigo de su tiempo que escribió varios años
después de haber ocurrido los acontecimientos que narra, a la mayoría de los cuales jamás
asistió”434. O conceito de ficção de Tomatis é radical e se volta contra o valor de verdade
concedido ao texto testemunhal que Gabriela Barco apresenta como anônimo. Essa mesma
tese serve de base para deslegitimar o movimento precisionista, porque problematiza a relação
da linguagem com o mundo. O cerne dos ideais precisionistas está na promoção de uma
linguagem capaz de depurar o real; por outro lado, Tomatis identifica um espaço ficcional
entre a língua e aquilo que por ela é representado. A incoerência do movimento, segundo
Tomatis, está no fato de que, com a mesma insistência com que se reclama uma renovação da
linguagem poética, Brando, também, “[...] pasaba todo el tiempo calumniando al verso libre y
asegurando que el metro y la rima tradicionales debían ser el instrumento principal de la
escuela precisionista porque, como la música, constituían una síntesis de la armonía y de las
matemáticas.”435. Além dessa incoerência nos fundamentos ideológicos, Tomatis é advertido,
por um amigo, de que Mario Brando delatava seus inimigos aos militares, com os quais
mantinha relações familiares.
No retorno de Mario Brando de Roma − alguns meses após a morte de seu pai −, o
primeiro ato de Mario foi queimar os exemplares de novelas veristas de Atilio Brando. A
relação pragmática de Mario Brando com o mundo não lhe permitia aceitar esse relato que se
afirma em estreita relação com o dito real. O objetivo de sua poética era a criação de algo
artificial, uma linguagem de caráter de aproximação científica com o real, reduzindo as coisas
a conceitos. As desarmonias entre a estética do pai e a do filho é atestada pela aproximação de
Atilio Brando dos regionalistas, uma estética voltada para a “cor local”. Essa incongruência
entre o pensamento dos Brando recorda outra dissidência estética entre pai e filho, presente
em Lo imborrable (1993), que discutiremos, posteriormente, neste capítulo. Permanecendo,
ainda, em La Grande, temos que essa discussão da estética do precisionismo – com a leitura,
por Tomatis, da carta do informante de Gabriela – ocupa menos da metade do capítulo
“Sábado: Márgenes”. O restante desse capítulo apresenta o posicionamento de Tomatis em

434
SAER, 2005, p. 294.
435
Ibidem, p. 150.
203

relação ao precisionismo, tendo como prosseguimento a discussão a respeito do realismo e,


por tabela, o debate sobre os limites do texto ficcional.
A frequência das idas e vindas de Tomatis à cidade de Rosario promove esse
momento de reflexão e, assim, essa personagem é tomada por recordações que respondem à
visão que tem da lhanura nesse trajeto. É por meio dessa relação com a vivência que a
personagem discute o realismo:

[…] una reminiscencia física de primavera que, por asociación sensorial, lo


devuelve, durante unos segundos de inesperada y violenta felicidad, al que
solía ser muchísimos años atrás, en lo que por costumbre llama su juventud,
de la que no podría decir si se trata realmente de una etapa pasada de su vida,
de una invención en el encadenamiento incesante de sus imágenes interiores,
de una ilusión, o mejor aún, de una leyenda (SAER, 2005, p. 296).

A impossibilidade de se afirmar o que “foi real” ou o que verdadeiramente foi vivido faz com
que Tomatis repense os paradigmas da experiência. É interessante que a própria noção de
passado – como na expressão “aquilo que foi real” – faz ruir, em determinada medida, a
certeza desse contato com as coisas. Por outro lado, temos que Saer dá preferência ao narrador
de terceira pessoa, como forma de sempre polemizar a experiência das personagens. Essa
preferência contribui para que a própria relação com o presente seja preterida em benefício
das recordações das personagens. Essa questão radicaliza a relação homem-mundo: é como se
apenas fosse possível uma experiência mais completa quando não se está mais sob o “calor”
do momento.
Essa última ideia que lançamos no parágrafo anterior parece contraditória, mas
pode ser compreendida nos seguintes termos: a preferência de Saer pelo uso da terceira pessoa
funciona de maneira peculiar. É por meio desse narrador que as recordações ganham mais
força e espaço no texto ou que se pode expor, de forma potencialmente ativa, esse vivido. É
como se, somente assim, nesse divagar sobre o vivido, fosse possível sentir – mais
concretamente – esse tocar nas coisas, destrinchando-lhes as minúcias. O passado tem, então,
um peso diferente, funciona como uma abertura para o ir e o vir sobre o mesmo
acontecimento. Por outro lado, o presente é quase nulo; é perceptível apenas quando a
personagem se perde na contemplação do horizonte do mundo. Nesses casos, é requisitado
outro tipo de presente: um tempo vertical – um aprofundamento na experiência –, no qual a
passagem de tempo seja melindrada pela vivência. O narrador de terceira pessoa, então,
oferece maior liberdade para que a narrativa possa transitar entre temporalidades e tipos de
focalização, beneficiando a análise minuciosa de toda a situação ou o repassar sobre o vivido.
204

Esse é o grande conflito de La Grande: vencer o escoamento temporal ou dar maior vazão à
revelação da experiência em um posicionamento mais próximo com o mundo.
É importante frisarmos que as recordações de Tomatis – advindas da
contemplação da lhanura – não encerram a discussão do precisionismo. Observamos, ao
contrário, tratar-se de um prosseguimento das questões levantadas no relato “anônimo” do
movimento poético de Mario Brando. É como se, por meio das questões levantadas sobre a
experiência de Tomatis – ou aquilo que ele defende como vivência –, fossem desmanteladas
as ideias defendidas pelo precisionismo, principalmente em relação à representação do
mundo. Tomatis recorda tempos de juventude nos quais a experiência fora marcada por uma
linguagem já perdida no passar do tempo: “[...] [e]se momento, lo piensa ahora Tomatis con
palabras de adulto pero entonces era una experiencia sin nombre, cuando la diversidad de la
apariencia en la que el mundo se descomponía era reabsorbida por el flujo”436. Outras
questões emergem desse trecho: o presente tem uma força que ultrapassa o desejo de tradução
e o tempo funciona como aquilo que possibiliza o próprio movimento entre o corpo e o corpo
do mundo. A relação vidente-visível é corroborada pelo fluxo, por essa força que prende e
estende o próprio contato entre os corpos. O ato de percorrer a diversidade – por meio do
sempre movimento – é o gesto que impede uma coincidência completa entre o vidente e o
visível.
Tomatis encontra dificuldade para narrar essas recordações – ou esse pretérito
contato com as coisas –; há perda dos códigos que expressavam essa experiência. Nesse ato
de retomar o passado percebemos a sua relação com o presente: essa viagem se relaciona com
as outras idas e vindas, nas quais a personagem deslocava-se por essa mesma região.
Percebemos a defesa de que é esse contato entre temporalidades que possibilita a narração do
vivido: o passado se solidifica nessa relação com o presente. Tomatis, então, se posiciona a
respeito do presente: “[…] [e]l presente era una ilusión mágica en la que todo lo que cuesta
esfuerzo, desencanto o dolor, había sido neutralizado: las leyes de la física, las pulsiones
incontrolables, los recuerdos corrosivos, el tiempo que pasa, lo exterior indiferente e incluso
adverso a los deseos”437. O presente é definido como um momento-limite no qual tudo é
neutralizado em benefício de “uma ilusão mágica”. Percebemos, então, como o presente é
caracterizado como um quase retirar-se do mundo. Essa impossibilidade de narrá-lo pode
justificar a proeminência, em Saer, das narrações em terceira pessoa: a voz se encontra como

436
SAER, 2005, p. 297.
437
Ibidem, p. 297.
205

que distanciada do momento da ação, o que contribui para o iterativo repassar sobre as
minúcias do vivido:

[e]l último peaje, antes de la salida para el aeropuerto, que obliga al


colectivo a aminorar y a detenerse, introduce unos instantes de presente
rugoso, que, cuando el colectivo vuelve a rodar, acelerando, quedan
irrevocablemente atrás, para seguir circulando incesantes en un pasado cada
vez más arcaico y lejano, hasta arrumbarse en la noche de los tiempos
(SAER, 2005, p. 325).

É potencialmente interessante como o presente apresenta uma forma plástica, na


qual suas porosidades se mostram evidentes. O movimento do ônibus provoca a sensação de
passagem de tempo: o presente é engolido pela metamorfose das coisas e o passado se torna
mais constante nesse processo. O presente é de pequena duração – mas adquire uma forma
mais espessa – e se sucumbe com o processo de deslocamento do coletivo. Contrário a esse
movimento, temos aquilo que é discutido em vários romances: a monotonia se apresenta
como uma sensação de excesso do presente. Quando uma personagem se encontra em um
lugar em que o movimento é quase imperceptível, como na lhanura descampada, a sensação
de monotonia a invade, fazendo com que o tempo seja sentido como um presente estendido. A
monotonia é, então, um exemplo do chamado tempo vertical, a sensação que provoca é de
ruptura na sequencialidade do tempo. Retomando a citação anterior, percebemos como Saer
defende essa ideia de quase impossibilidade de permanência no presente; o que pode ser,
também, uma justificativa para a sua preferência por narrações em terceira pessoa. A
predileção por esse distanciamento é vista como uma forma de exposição mais franca das
experiências das personagens.
O presente se revela como um atordoamento dos sentidos e é na sua dependência
que a relação com outras temporalidades é construída. O presente se apresenta como cifra do
universo e do tempo: se conseguíssemos entendê-lo e percebê-lo, conheceríamos o mundo:

[…] la cifra íntima del mundo empírico, cada uno de cuyos fragmentos, por
alejados y diferentes del presente que puedan parecer — la estrella más
lejana por ejemplo — tendrá exactamente el mismo valor que éste en el que
están ahora y que, si se pudiese desentrañar el sentido de ese presente en
apariencia irrelevante, el resto del universo — tiempo, espacio, materia
inerte o viva — ya no tendría más secretos (SAER, 2005, p. 23).

A relação entre as temporalidades é ressaltada, também, nessa defesa do tempo presente como
nó de sentido daquilo que se encontra anterior e ulterior ao acontecimento. Essa positividade
206

do presente é novamente acentuada e o recuo constante ao passado ou ao futuro se justifica


pela impossibilidade de se percorrer toda a gama de sentidos que dele se dimana. O narrador
chega a afirmar que, se fosse possível desentranhar todas as suas nuances de sentido –
percorrer o presente na sua verticalidade –, não haveria mais mistérios e o recuo ao passado e
ao futuro seria desnecessário.
A partir dessa discussão, ressaltamos dois pontos a respeito do passado:
percebemos maior liberdade de exposição – o acontecimento pode ser tomado em seus vários
ângulos, dado o seu “acabamento” – e, por outro lado, esse mesmo distanciamento pode
ocasionar infidelidade naquilo que é exposto. É interessante que a prioridade da narração em
terceira pessoa é uma forma de pôr em destaque esse acabamento do narrado. Não podemos
nos esquecer, é claro, de que o narrador de Saer é difuso, apresenta-se externamente e
interiormente. Ao mesmo tempo em que narra o passado da personagem, concede espaço para
que ela se expresse diretamente na narrativa. Essa é uma das grandes questões que conturbam
a relação entre voz e visão, que discutimos no capítulo anterior. A proeminência do passado é,
então, fato evidente para a narração saeriana: as personagens sempre retomam o vivido pelo
movimento refletor do presente. O passado facilita controle maior da experiência, já que é
possível perpassar, mais integralmente, suas várias dobras de sentido. O segundo ponto
contradiz, em certa medida, essa facilidade de manuseio, porque o distanciamento dos fatos
gera dúvida acerca da integralidade daquilo que é narrado. Essa é a questão pontual das
narrativas saerianas: discutir e trabalhar com esse distanciamento.
A impossibilidade de se revelar os sentidos do presente ocasiona esse recuo ao
passado e é a partir dele que Tomatis levanta questionamentos a respeito do relato
testemunhal que acaba de ler: “[…] [c]ada palabra, por simple y directa que sea, ya es una
ficción…” – trecho anteriormente citado. A personagem, assim, contradiz, categoricamente, a
possibilidade de se alcançar uma coincidência entre o homem e o mundo, de se deflagrar,
mesmo no momento da experiência, os sentidos – em totalidade – daquilo que se experiencia.
Essa é uma das entradas certeiras no problema da ficção: os desvios de sentidos, devido aos
enganos do olhar – no qual se resumem todos os outros sentidos da percepção –, possibilitam
que a experiência seja invadida por outros componentes, com a imaginação, por exemplo. É a
partir disso que Tomatis defende a ideia – de Saer, dissipada em seus romances – da
impossibilidade de se atingir o objetivismo. Essa posição se apresenta como ponto central
contra esse tipo de realismo: a sua própria ideia de ficção articula os sentidos desse conceito
ou apresenta as estratégias discursivas dos termos “verdade” e “ficção”.
207

Retomando, Tomatis pensa nos seus dias de juventude e a impossibilidade de se


resgatar os sentidos dessa experiência faz com que não se tenha certeza de que se trata de uma
recordação, de uma invenção ou, mesmo, de uma lenda. Esse deslocamento discursivo – do
precisionismo para essas “reminiscências” de juventude – não denigre o cerne da questão
mantida por Tomatis: a relação entre a experiência e sua dicção. Essa questão implica as
diretrizes do próprio movimento precisionista: a criação da linguagem objetiva. Essa
personagem afirma que o distanciamento temporal impede que se consiga alcançar uma
linguagem que expresse aquilo que foi vivido, porque, no presente, as sensações são
traduzidas com “palabras de adulto”. Perde-se, então, o acesso aos mecanismos que
mantiveram essa relação vidente e visível em movimento. Tomatis reafirma a impossibilidade
de se traduzir a experiência, mesmo quando se trata daquilo que se vive na contingência. A
experiência é, então, definida como esse movimento em que os sentidos percorrem o mundo,
ao mesmo tempo em que o fluxo temporal mantém os deslocamentos múltiplos ou impede a
coincidência.
O precisionismo veicula uma ideia de realismo que denigre a própria experiência,
porque coíbe a manifestação das nuanças da relação vidente-visível, por meio da defesa da
relação direta entre a linguagem e as coisas. Tomatis, então, não tem receio de recusar essa
ideia, dado o seu distanciamento da pluralidade da experiência. A personagem polemiza o
conceito de “real”, mostrando como a experiência requer algo mais do que o engessamento
das posições vidente e visível. Tomatis discute o precisionismo, afirmando que Mario Brando
e Atilio Brando se perderam nas próprias coisas, esquecendo-se da questão do posicionamento
do observador no mundo ou dos atritos dessa relação. O repassar de Tomatis pelas suas
próprias experiências acentua esse lugar nebuloso daquilo que se crê como real. A vivência,
então, pode ser deslindada por intermédio do conceito merleaupontyano de quiasma – a
relação vidente-visível –, no qual são as trocas múltiplas entre os corpos que definem a
experiência. Esse conceito de Merleau-Ponty revela o movimento de reversibilidade entre os
corpos: é a impossibilidade de coincidência que mantém a própria experiência. O não
esgotamento dos sentidos que emergem das coisas e dos corpos mantém os laços dessa
relação. Nesse intrincado, a imaginação assume a função de preencher os sentidos que ainda
estão velados e encobertos. Com essa idéia, rompe-se a contradição das instâncias verdade e
ficção; ou melhor: mostra-se como a ideia de “real” está como que nos horizontes das coisas e
pode, assim, ser requerida, em graus diferentes, por uma dessas duas vertentes.
É interessante como Tomatis redireciona a discussão do precisionismo
enfatizando a experiência, o contato com o mundo. O posicionamento do movimento –
208

principalmente em relação à representação – promove um conceito de realismo que congela a


relação entre os corpos e o objetivo da personagem é mostrar como a experiência se sobrepõe
a qualquer cisão ou redução. Em Saer, o principal expoente dessa relação é o tempo: é ele que
gere o fluxo e possibilita as próprias saídas interpretativas. É no interior da experiência que se
encontram os sentidos mais completos, mas a impossibilidade de se sondar todas as
perspectivas fere a carne, revelando o constante distanciamento e o seu copertencimento. Esse
realismo dos Brando é rejeitado, por se mostrar uma ideia que coíbe a relação de
intercambiamento entre os corpos. O precisionismo é, então, um tema tecido por Saer no
intuito de pôr em discussão o realismo – a representação – e, dessa forma, mostrar como a
ficção se apresenta como um espaço de abertura para a pluralidade daquilo que é vivido. Essa
discussão metaficcional é repetida em Lo imborrable, sendo novamente utilizado um gesto
literário para a discussão da ficção, no projeto de revelar as incoerências do objetivismo
realista: esse é o próximo passo desta discussão.

4.2 A DISCUSSÃO DO REALISMO A PARTIR DE LO IMBORRABLE (1993)

Em Lo imborrable (1993), Tomatis é a personagem principal; a estratégia da


narração é, também, surpreendente: a personagem, em focalização interna, mimetiza a própria
função do narrador heterodiegético, nos movimentos de aproximação e distanciamento
daquilo que é relatado. Esse jogo é articulado pela narração em primeira pessoa; porém, a
preferência pelo distanciamento dos acontecimentos projeta quase um narrador
heterodiegético. A focalização de Lo imborrable se estaciona em Tomatis, no período de sua
vida em que saía da depressão e do alcoolismo – a personagem percorre grande parte da “saga
saeriana”438 −, males que o enclausuraram após a morte de sua mãe. A história é um
prosseguimento de Glosa (1985)439:

438
Percebemos, no trecho seguinte, como Saer invade a perspectiva de Tomatis e como se processa a discussão
dessa personagem sobre o precisionismo: “[p]ara Tomatis – el personaje con conocimientos literarios que
fácilmente se pueden identificar con Saer, y a la vez parodiarlo, como cuando se ríe de sus anhelos de ser
Flaubert –, la vanguardia de Brando era una mezcla de la revista“Ciencia popular” y del diccionario de la rima.
El ingreso del tema del Precisionismo es hecho verosímil a través de dos personajes que están estudiándolo y que
consultan a Gutiérrez, y como en el medio en que se mueven son todos más o menos letrados (con excepción de
dos mujeres, que son madre e hija), pueden hablar libremente del asunto sin resultar pedantes.”(La Capital.
Rosario, 04.12.2005) (http://weblogs.clarin.com/revistaenie-elmisteriodelaspalabras/2008/04/03/precisionismo/).
439
Em Glosa, o procedimento narrativo de início do romance e grande parte da estrutura e do que se deduz dessa
estrutura é bem platônica: é exatamente como Platão relata o banquete. Duas personagens, obcecadas por uma
reunião à que faltaram, discutem, em caminhada, sobre a possibilidade de se reconstruir o passado e a fidelidade
da língua ao acontecimento.
209

[l]a novela es el relato de Tomatis acerca de los primeros días de su


recuperación tras el pozo depresivo que lo afectaba en Glosa y del que va
logrando emerger a fuerza de higiene, abstinencia de alcohol y escritura de
sonetos; durante el curso entero de la novela, el narrador lanza todo el
tiempo y a propósito de cualquier banalidad cotidiana, como un automatismo
coloquial, una apuesta repetida que parece el desafío suicida del delirio
militarista: “Que me cuelguen si…”, “que me maten si…”, “que me fusilen
si...” (la gramática de la frase es parienta cercana de una consigna tipo del
acionalismo armado: “Patria o muerte”, “Perón o muerte”) (18, 31, 37). Lo
más íntimo de la vida de Tomatis – nos entera su propia voz - ha sido
violentado definitivamente por la dictadura: se ha divorciado y sufre una
depresión severa porque hace siete meses su esposa no ha querido refugiar
en su casa a “la Tacuara”, una joven revolucionaria, vecina de años, ahora
desaparecida (DALMARONI, “Lo real sin identidades”, 2008, p. 6).

É central, em Lo imborrable, essa problemática dos anos de ditadura na Argentina, mas o


tema aqui proposto é a discussão estética encadeada por meio da análise do livro La brisa en
el trigo, de Walter Bueno440, perpetrada, principalmente, por Tomatis. A importância dessa
discussão é o retorno da questão do realismo, por intermédio da problemática da ficção.
No início desse romance, há o encontro de Tomatis com o editor Alfonso de
Bizancio: ele é convidado a coordenar uma revista quadrimestral financiada pela Bizancio
Libros. O interesse de Alfonso por Tomatis vem desde a época de projeção de La brisa en el
trigo. Nesse período, Tomatis desafiara o governo militar − que financiava a propagação
desse livro −, publicando uma crítica ferrenha ao livro de autoria de Walter Bueno. Ao final
de Lo imborrable é desvencilhado o porquê de Alfonso ter recebido favoravelmente o ensaio
de Tomatis. La brisa en el trigo tem como enredo a história de um trio amoroso (trio que se
corresponderia com os personagens Alfonso, sua mulher e Walter Bueno): uma menção quase
direta ao envolvimento da mulher de Alfonso com Walter Bueno. Alfonso alimenta ódio por
Walter Bueno, porque, após esses acontecimentos, sua mulher se suicida, em decorrência dos
desencantos desse relacionamento extraconjugal. Quando do primeiro encontro de Alfonso
com Tomatis, o escritor e propagandista da ditadura, Walter Bueno, já estava morto. Alfonso
sempre se remete à crítica publicada por Tomatis por ocasião do lançamento do livro de
Bueno e, também, articula seu próprio juízo sobre La brisa en el trigo, sem nunca, é claro,
revelar a remissão autobibliográfica da história ou o envolvimento de sua mulher com o autor
desse livro. Tomatis, a princípio, desconhece esse teor autobibliográfico, mas não economiza

440
Dalmaroni escreve que “[...] [a]ntes de morir en un accidente automovilístico, el deleznable Walter Bueno de
Lo imborrable (1993) ha acariciado el mayor éxito mercantil con su novela best-seller “La brisa en el trigo”, una
grotesca parodia de La maestra normal de Manuel Gálvez (pero que Bueno ha copiado, pueril y literal, de su
propia vida); el mamarracho, cuya prosa torpe y adocenada quiere conmover – pretende Bueno – al “hombre
común”, le abre las puertas de la televisión y lo sienta en la mesa del general Negri, otro exterminador
sanguinario” (DALMARONI, “Lo real sin identidades”, 2008, p. 6).
210

críticas ao realismo de Bueno filho ou ao seu despreparo na condução da trama e na execução


estética da obra.
Tomatis, no retorno às suas deambulações pela cidade – depois de anos recluso
em casa, devido à depressão – é, então, abordado por Alfonso de Bizancio, dono da Bizancio
Libros. A proposta de emprego advinha da declarada admiração de Alfonso por Tomatis,
principalmente, em razão do texto que este escrevera em crítica ao Best-seller de Walter
Bueno, na época de publicação. Alfonso projetava Tomatis como diretor da revista literária da
Bizancio Libros; uma forma, também, de trazer notoriedade para as publicações que fossem
resenhadas por ele. Alfonso lhe apresenta sua assistente, Vilma Lupo; os dois buscam
convencer Tomatis dos benefícios que as duas partes desfrutariam com esse acordo comercial.
Eles entregam a Tomatis uma pasta amarela com todos os documentos que descrevem o
projeto da empresa: o reagrupamento das forças culturais dispersas pela ditadura, com a
criação de uma revista quadrimestral. Posteriormente, Alfonso entrega a Tomatis o livro de
Walter Bueno, com suas anotações críticas: várias observações que revelam a intenção de
desmantelar os argumentos do livro. As anotações de Alfonso confirmam sua execração de La
brisa en el trigo e sua admiração pelo artigo que Tomatis publicara contra o best-seller. É por
meio dessas anotações de Alfonso e da descrição das concepções estéticas de Walter Bueno e
de seu pai, que percebemos como o romance desenvolve o argumento contra, principalmente,
um tipo de realismo. Uma parte significativa desse argumento está embasada, então, na
contraposição da crítica de Tomatis e a de Alfonso sobre o livro de Walter Bueno. O objetivo,
aqui, é percorremos essas ideias, com o objetivo de frisar a posição do romance a respeito do
realismo.
O artigo de Tomatis, publicado no suplemento literário de La Región, tinha, além,
de uma preocupação literária, um teor político: “[...] [e]l libro es tan insignificante que no
hubiese valido la pena ocuparse de él, si Waltercito no se hubiese convertido en el escritor
oficial y, en su trabajo de periodista, en propagandista de la dictadura”441. A crítica de
Tomatis nasce desse revanchismo contra o sistema, que podia transformar um livro
insignificante em um best-seller. Quanto ao teor literário, Tomatis destacava que La brisa en
el trigo carecia de uma estrutura lógica, já que “[...] – [l]a idea que Walter Bueno se forja de
la novela y el camino elegido por toda novela lograda son divergentes”442. É interessante
percorrermos, aqui, essas duas ideias de Walter Bueno: aquilo que ele defendia como teoria
do romance e sua práxis ou aquilo que, realmente, executou no best-seller. Tomatis contribui

441
SAER, 1993, p. 9.
442
Ibidem, p. 7.
211

decisivamente para essa tarefa, com uma descrição dos ideais de Walter Bueno, contrapondo-
os aos de Bueno pai. Em se tratando do artigo que publica contra La brisa en el trigo, poucos
são os pontos expostos em Lo imborrable e é com base nas anotações críticas de Alfonso que
Tomatis expõe mais claramente sua crítica ao livro de Walter Bueno. A seguir, mostramos
como Tomatis desenvolve essa crítica.
Retornemos, então, à divergência apontada por Tomatis entre os ideais e a práxis
de Walter Bueno. Aquilo que o autor de La brisa en el trigo defendia conceitualmente não foi
seguido no desenvolvimento estrutural do livro. Há certa dificuldade em se averiguar a
veracidade dessa crítica, porque as análises de Tomatis se centram, quase que exclusivamente,
nos juízos críticos que os outros personagens elaboraram sobre esse livro. Pouco é revelado a
respeito do pensamento estético de Walter Bueno – a não ser sua filiação à perspectiva de
Bueno pai – e um pouco mais daquilo que ele realiza por intermédio de La brisa en el trigo. A
fala de Tomatis – citada anteriormente – reflete mais a urgência do discurso metaficcional ou
a defesa desse argumento no interior do livro. É como se Saer desvelasse a estrutura de seus
romances, defendendo que a teoria sustenta a prática da escrita ou que a primeira invade a
própria trama, fazendo-se elemento da história contada. Tomatis, então, defende o próprio
conceito de romance e, concomitantemente, alavanca uma crítica pujante contra La brisa en el
trigo: a incapacidade de se sustentar como romance. Comprova-se essa falta de rigor formal
quando Tomatis classifica o livro de Walter Bueno de insignificante.
Como em La Grande, há, em Lo imborrable, uma discordância estética entre pai e
filho, mas, por outro lado, observam-se pontos de contatos entre os pensamentos dos Bueno e
dos Brando, principalmente em se tratando do realismo. Dalmaroni assim sintetiza o conluio
estético entre La Grande e Lo imborrable:

[…] en efecto, La brisa en el trigo, el best-seller dictatorial de Walter


Bueno, copiado de su aventura con la ahora suicidada esposa de Alfonso de
Bizancio […] el propio Alfonso y “Bueno padre”, el progenitor de
Waltercito, que comparten la misma candorosa convicción literal acerca del
problema de la mimesis. Notas parecidas podrían agregarse acerca del asunto
de las vanguardias poéticas en La grande, retrocediendo desde allí a Glosa, a
“Biografía de Higinio Gómez”, a “Sombras sobre un vidrio esmerilado” y a
otros títulos de Saer en que se va hilando un modo histórico de imaginar
estados situables de la república de las letras. En tonos serios o bufos, de
procedencia refinada o pedestre, los libros de Saer prodigan esos indicios
ficcionales de indudable valor documental (DALMARONI, 2011, p. 9).

A poética defendida por Alfonso é, então, aproximada do pensamento de Bueno pai; em se


tratando desse último, tem-se que ele promulgava que: “[...] [r]epresentar la realidad tal cual
212

es resulta tan difícil, ¿qué necesidad hay de deformarla?”443. Percebemos que o realismo
estético de Bueno pai é uma ingênua ideia de mimesis, com a defesa da relação direta que se
estabelece entre o mundo e sua representação. Na verdade, nos Bueno, a própria ideia de
mimesis é solapada pela busca de coincidência.
A perspectiva estética de Bueno, pai, era de identificação; a obra deveria
conformar-se à realidade; pensamento que defendia a consubstanciação entre representado e
representação. A obra estaria completa quando houvesse correspondência direta entre os dois
vetores. A perfeição não era medida pela mera sujeição à realidade, mas pelo apuro da obra,
por meio de uma interlocução de espelhamento em que vigorasse o ideal do artista. Segundo
Tomatis, a perspectiva estética de Bueno pai explicava, hereditariamente, as deformidades
representativas do livro de Walter Bueno. A mediocridade estética apresentada em La brisa
en el trigo se filia ao mesmo engano de Bueno pai em relação ao realismo, como podemos
observar na citação seguinte, em que se discute a estética desse último:

[l]os pintores de la ciudad contaban de él que una vez pintó su propio jardín,
en el que había canteros, bancos y un sauce y que después de haber
estudiado el cuadro durante algunas semanas, porque había algo que no
terminaba de convencerlo, decidió cambiar el color de uno de los bancos –
de verde, como estaba pintado en el jardín y como él lo había reproducido en
el cuadro, lo transformó en ocre, pero como había algo que no lo convencía
del todo todavía cuando comparaba el cuadro con el jardín, un domingo a la
mañana salió con un tarro de pintura al jardín y pintó el banco de ocre.
Según los pintores – fuente, a decir verdad, de lo más sospechosa – si los
bancos pintados de ocre no le disgustaban, el cuadro no le parecía terminado
todavía, y después de estudiarlo con minucia, de sopesar día y noche cada
uno de sus detalles, llegó a la conclusión de que el sauce, que aparecía en el
centro del cuadro, ocupaba demasiado lugar, aplastando el resto y creando
una simetría artificial entre las dos mitades de la tela, de modo que después
de muchas cavilaciones decidió que había que borrar el árbol y dejar en su
lugar cielo abierto y un horizonte de vegetación en el fondo; se puso manos a
la obra y por fin, según los pintores, se sintió realmente satisfecho, así que al
día siguiente se despertó con la convicción íntima de que el cuadro estaba
terminado, y sin la menor vacilación salió al jardín y arrancó el árbol
(SAER, 1993, p. 11).

Essa necessidade de correspondência direta é, também, perceptível nos


comentários de Alfonso sobre La brisa en el trigo. Alfonso repete, várias vezes, uma crítica
ingênua sobre o título do livro: “[...] – [c]ómo va a ponerle a una novela La brisa en el trigo si
en el pueblo donde dice que pasa nunca hubo trigo. Una de dos, si en la novela hay trigo, no

443
SAER, 1993, p. 11.
213

es ese pueblo. Y si el pueblo es ése, no debería haber trigo – dice Alfonso”444. A mesma
“simetria artificial” que Bueno pai buscava reproduzir é requisitada por Alfonso, quando
desaprova o título do livro. É o que Dalmaroni pontua no texto “Cinco razones sobre Saer”
(2011): a relação direta entre as duas concepções estéticas. Bueno pai deforma o real, para
sustentar a correspondência, ao mesmo tempo em que Alfonso requer que o título de La brisa
en el trigo fosse mudado, caso se confirmasse a referência a uma cidade que não produzisse
trigo. As anotações de Alfonso, no livro entregue a Tomatis, também confirmam o vínculo
entre essas perspectivas estéticas:

[...] [e]n repetidas ocasiones, el autor se toma sin el menor tapujo toda clase
de libertades en lo relativo al clima, la fauna, la flora y las costumbres de la
zona, que evidencian un desconocimiento flagrante de los mismos. ¿Dónde
va a parar el pretendido realismo tan mentado por la crítica académica u
oficial? Tal vez en la procacidad a la moda que so pretexto de sensualismo,
linda con la pornografía. Hay que hacer notar también que la heroína, se
anda paseando con hilo de coser en el bolsillo, para poder enhebrar en el
mes de diciembre, flores de paraíso que brotan de los eucaliptus… (SAER,
1993, p. 59).

As concepções representacionais de Walter Bueno são averiguáveis, principalmente,


por intermédio da crítica de Tomatis e das razões que o levaram a escrever o artigo contra La
brisa en el trigo. Essa personagem afirma que “[...] publicó su famosa novela, La brisa en el
trigo, una inepcia que, gracias a la propaganda televisiva, se transformó en el best-seller de la
década – y gracias también, hay que aclararlo, al argumento de la novela”445. A primeira
crítica é aguda, invalida a capacidade de articulação do autor e, também, a estrutura do texto:
o livro se sustenta apenas em função da propagação midiática. O tornar-se um best-seller é
também justificado pelo argumento do livro: “[...] cuenta las aventuras amorosas de un joven
maestro de escuela, en un pueblo de la llanura, con una mujer casada”446. Tomatis centraliza
sua crítica principalmente em função do conluio de Walter Bueno com os militares. Pouco é
falado sobre a estrutura de La brisa en el trigo; em se tratando do argumento do livro, outra
crítica é desferida:

[...] Walter Bueno pretendía escribir para el hombre común, pero sus lugares
comunes se dirigían a lo más común que tiene el hombre común, en tanto
que lo que él llamaba por televisión los intelectualoides de provincia […]

444
SAER, 1993, p. 9.
445
SAER, 1993, p. 9.
446
Ibidem, p. 9.
214

escriben justamente para lo que el hombre común tiene de secreto (SAER,


1993, p. 10).

A crítica de Tomatis centra-se na incapacidade de La brisa en el trigo de


desenvolver o argumento ou a própria trama. A história é bem típica – universal –, razão pela
qual houve grande aceitação desse livro; por outro lado, não há aprofundamento: o conflito
permanece nos lugares comuns. Em contrapartida, Tomatis celebra o engenho sobre os
segredos do homem comum; é na relação com as particularidades que se consegue o
desenvolvimento da trama. Posteriormente, essa personagem associa essa dificuldade artística
de Walter Bueno com a de seu pai, quando renegava os movimentos artísticos abstratos.
Havia, nos Bueno, essa recusa pelo manuseio mais detalhado do objeto artístico, pelo apuro
estético. Essa carência é cobrada por Tomatis que, a todo o momento, desfere sua crítica,
principalmente quanto à relação de Walter Bueno com os militares. Bueno pai, apesar do seu
apreço por uma realidade espelhar, era celebrado por manter um modo de vida modesto, não
afeito ao compadrio. Esse conflito relembra o de La Grande: em ambos os romances,
percebemos afinidades estéticas entre pai e filho e, por outro lado, os filhos empenhados em
tirar proveito de conluios com militares.
Tomatis recebe um exemplar de La brisa en el trigo – com anotações críticas de
Alfonso –, no segundo encontro que tem com o famoso Bizancio. Depois de muito resistir −
devido à insignificância atribuída por Tomatis ao livro de Walter Bueno −, ele o folheia e lê
as observações nas margens do livro. Tomatis está em casa e reflete sobre a crítica de Alfonso
e percebe, também, a relação autobibliográfica do livro. As observações de Alfonso
centravam-se na falta de representatividade do livro ou nas incoerências da narrativa em
relação ao espaço representado. A proposta de Alfonso era de que Tomatis mostrasse essas
dissidências realistas em La brisa en el trigo. Tomatis, como que entregue ao dilema – aceitar
ou não o cargo na Bizancio Libros −, reflete sobre os seus próprios pressupostos ficcionais.
Os questionamentos dessa personagem eclodem na confirmação da estreiteza dos argumentos
críticos de Alfonso, contribuindo para agravar a relutância em se aliar a tal empresa. A
proposta de Alfonso incumbia Tomatis de escrever um artigo − como primeira tarefa –
segundo os ideais de Alfonso, defendidos nas observações rascunhadas nas margens de La
brisa en el trigo. A perspectiva poética de Tomatis ou o seu pensamento sobre a representação
dissemina-se por vários romances nos quais ele é personagem. Em Lo imborrable, Tomatis
revela um pouco de sua convicção estética, no momento em que discute o platonismo ou a
relação entre representação, realidade e idealidade, nestes termos:
215

[p]aso las yemas de los dedos por la superficie lisa de la imagen impresa en
el papel satinado del prospecto, y después, con el sentimiento de estar
realizando un acto vagamente clandestino, me inclino un poco hacia adelante
y, estirando el brazo, hago deslizar las yemas por la madera barnizada de la
cama, y aunque la sensación difiere de la que me ha dejado la fotografía no
es, a pesar de su evidente rugosidad, más convincente que la primera, en lo
relativo a un supuesto aumento de realidad que debiera darse por probado.
Una tercera cama, modelo inquebrantable de las dos e inaccesible a los
sentidos, me viene a la memoria, pero la variedad sin medida de sus
múltiples copias con su procesión efímera de madera, hierro, telas, piedra,
plumas, lana, tierra fría, apareciendo en mi mente con simultaneidad
vertiginosa, barre en un instante la superstición del modelo único y la
arrumba en el desván de lo irrazonable (SAER, 1993, p. 93).

Tomatis destaca a singularidade do acontecer, radicalizando a relação entre


modelo e representação. Há quase uma negativa da preexistência de uma das partes ou o
próprio esvaziamento do conceito de representação e, por tabela, de modelo. A incapacidade
de se alcançar a ideia faz com que a projeção das múltiplas cópias adquira autonomia frente
ao primeiro exemplar. Nesse esquema, a Arte não está subjugada ao modelo, porque Tomatis
defende que a própria vida pode imitar a Arte. Essa concepção é contrária ao ideal realista de
Alfonso e da companhia Bizancio; como também, ao gesto de insignificância representativa,
como é definido por Tomatis La brisa en el trigo. É interessante que Bueno pai forçou essa
correspondência quando arrancou a árvore do jardim, para que seu quadro pudesse refletir
fielmente um ideal. Nos três – em Alfonso e nos Bueno –, percebe-se o apreço por uma
concepção de realismo que cultiva o espelhamento. Em Tomatis, por seu turno, observa-se a
defesa de que a experiência encadeia a multiplicidade de apreensão das coisas ou que o
próprio modelo esteja em um constante processo de se mostrar, de se revelar.
É interessante que o exame de Tomatis – descrito na citação anterior – se inicia na
representação e é definido como um ato clandestino. A personagem sente a necessidade de
ultrapassar os limites da foto, de sentir as rugosidades daquilo que está incrustado no papel.
Apenas nesse ato, já é possível perceber uma concepção diferente de Arte: uma possibilidade
de atualização da própria experiência. Quando Tomatis passa para o exame da própria coisa,
ele percebe as sinuosidades em sua forma e pensa na impossibilidade que uma ideia tem de
condensar essa multiplicidade da apresentação do mundo. É uma releitura do platonismo, a
defesa de que atingimos apenas uma parcela das coisas e, dessa forma, é difícil circundá-la e
representá-la em uma ideia. Tomatis defende o modelo como uma eterna variável, em função
da própria impossibilidade de sua reprodução. Esse pensamento é um inveterado movimento
contra o realismo – entendido como reflexo da realidade –, contra a ideia de que seja possível
216

reduzir as coisas a conceitos fechados. Não há, então, como cessar o movimento da
experiência ou coibir as transformações de paradigma das ideias e da percepção do mundo;
tudo se mostra em função da própria relação vidente-visível.
Essa postura de Tomatis em relação ao esquema – representação, mundo e
conceito – relembra o pensamento de Merleau-Ponty sobre a experiência, sua concepção de
percepção. O ativo vidente-visível no filósofo retrata a posição da personagem de Saer, a
defesa de que não é possível congelar o movimento da experiência. Merleau-Ponty mostra
como a experiência é ativa, tanto no vidente como no visível, ou que não há polarização entre
esses dois campos, mas intercâmbios múltiplos de funções. Essa associação entre o ideal de
representação de Tomatis e a filosofia de Merleau-Ponty comprova a produtividade desse
pensamento para essa leitura do espaço de Saer. É a comprovação do movimento incessante
ou da positividade da experiência que, iterativamente, se constrói e ativa uma nova percepção
das coisas. O visível não é dado como coisa terminada, mas está na interdependência com o
invisível, ou com aquilo que ainda não foi revelado. Essa proeminência da experiência é que
inviabiliza a defesa do realismo esquemático ou reducionista, da pré-constituição do mundo
ou da crença na existência de um modelo único a ser aplicado. A manifestação das coisas
projeta, então, um mundo em movimento, não cerceado por conceitos.
Lo imborrable finaliza sem revelar, peremptoriamente, a decisão de Tomatis a
respeito do cargo na Bizancio Libros. Na noite anterior à reunião com a cúpula da empresa,
essa personagem é sacudida pela indecisão e pelo horror de se aliar a esses ideais realistas.
Tomatis analisa os papéis da Bizancio Libros e, em seguida, copia um soneto com o título The
Black Hole. Esse poema representa o sentimento de apreensão que lhe acomete: é como se um
buraco negro se aproximasse da personagem. Depois de se deitar e no antevir do sono,
Tomatis sente como se Bueno pai estivesse, naquele momento, esculpindo-lhe uma estátua.
Um dos ofícios do pai de Walter Bueno era esculpir em bronze e em mármore: pelas praças,
encontravam-se suas obras em bronze e, nos cemitérios, seus trabalhos em mármore. Nesse
transe, Tomatis busca atrair a atenção de Bueno pai ou se esquivar da obra que estava sendo
esculpida. Alheio ao discurso de Tomatis, Bueno pai prosseguia seu trabalho, até o momento
em que Tomatis é abstraído para outro lugar: imobilizado em uma cama, ele sente a
aproximação do verdugo. A luz da manhã o devolve ao espaço de sua cama, despertando-o de
toda essa apreensão.
Tomatis se dirige ao Salón Capri, ambiente do hotel onde acontecia o evento da
Bizancio Libros. No encontro com Alfonso e Vilma − a cúpula da empresa −, Tomatis
compara o evento com uma festa de casamento, devido à pompa dispensada à sua
217

organização. Alfonso questiona quem seria o noivo, Tomatis não responde, mas percebe
Vilma como a noiva. Tomatis se esquivou da bebida alcoólica, nos encontros anteriores, por
estar em processo de recuperação da dependência. No final do romance, a última fala é a de
Tomatis, que recusa água e pede uma “bebida mais forte”. O romance deixa em suspensão a
decisão de Tomatis, mas sinaliza, nesse gesto, uma mudança de rumo. Esse ingresso de
Tomatis na sociedade pode significar a concretização dos prelúdios dos sonhos da noite
anterior ou uma postura de revanchismo contra todo o sistema que, segundo ele, transformava
as pessoas em répteis, incapazes de voar:

[...] Lo imborrable designa simultáneamente la cristalización de la


negatividad del terror de la dictadura en algo positivo: un proceso de
escritura. Además, se plantean en ella cuestiones como el rechazo de la
literatura como mercancía o la ironía contra los escritores “consagrados”
(LOGIE, 2013, p. 24).

Concluímos que Lo imborrable conta uma história da escrita, da resistência que


esse gesto pode significar. A única arma de que Tomatis pôde lançar mão contra as
impropriedades do regime militar foi o texto que escreveu contra o livro de Walter Bueno.
Após esse gesto, a cúpula da Bizancio Libros o buscava para comandar um novo rearranjo das
forças culturais do país. É um novo projeto de escrita, uma democracia das letras, baseada na
distribuição e circulação de grandes obras. Comprovando essa tese, temos o que Saer diz
sobre o título desse seu romance:

[c]uando en 1993 se le preguntó “¿Qué es `lo imborrable´?”, Saer respondió


asertivamente: “Lo imborrable es lo escrito. Eso que ha sido escrito”
(Speranza, 1995: 155). Como se sabe, Saer usaba la máquina de escribir casi
exclusivamente para pasar en limpio. En cambio, escribía a mano, en
cuadernos, con bolígrafos de tintas de varios colores. Se recordará
seguramente el final de aquella entrevista publicada por primera vez en
1981, cuando Gerard de Cortanze le preguntó “qué lazos establece entre el
cuerpo y lo escrito”. Saer respondió: “Escribo a mano”. Y agregó luego una
de sus minuciosas descripciones, narcótica y lúcida a la vez, una microfísica
de la escritura como un trance del cuerpo y como “traspaso” entre los
cuerpos del que escribe y de quienes lean (DALMARONI, “El grafismo
visible de la voz de lo real. La lección del poema en Juan José Saer”, 2000,
p. 14).

O tema da escrita aparece no título do livro – como podemos ver na definição de


Saer – e pode ser estendido ao significado do próprio vocábulo “imborrable”: aquilo que não
pode ser apagado. O registro escrito apresenta, então, esse sentido de resistência, de gesto
218

ativo do corpo, um registro da própria experiência. É, então, promissor atestar como Saer
projeta a escrita como esse movimento do corpo em direção ao mundo, como um
desdobramento da própria percepção. O ato de escrever à mão promove envolvimento mais
enfático, segundo o escritor, entre o corpo do artista e aquilo que é dito e experienciado. É a
possibilidade de tocar e expandir a própria relação do artista com as coisas: uma projeção da
experiência no mundo. Saer afirma, ao final, que há uma comunhão maior entre a experiência
do escritor e a do leitor, pelo ato de escrever à mão. É como se criasse, por meio desse gesto,
uma extensão mais física entre os sentidos do corpo do artista em direção aos dos leitores. A
escrita deixa de ser vista como um produto para se tornar uma via para acesso aos corpos,
como gesto de expressão do mundo, como abertura ao visitado e tocado pelos corpos.
A fala de Saer – na citação anterior – contribui para a leitura que fazemos, nesta
tese, do espaço saeriano; justifica a entrada, nela, do pensamento filosófico de Merleau-Ponty.
Esse filósofo – discutido no segundo capítulo – articula uma filosofia do corpo, da carne. Esse
pensamento elucida, em grande medida, aquilo que é proferido por Saer; lança luz sobre a
relação da personagem com o mundo, por meio de conceitos que explanam, principalmente, a
experiência, a relação vidente-visível. Merleau-Ponty valida esse paralelo quando requisita a
Arte – principalmente, a Pintura – como meio de acesso à experiência, como forma de revelar
os caminhos do olhar. Na verdade, esses caminhos refletem a multiplicidade da percepção,
dos sentidos de acesso ao mundo. É o que Saer afirma: a escrita como esse braço estendido,
tocando no leitor, como a propagação desses caminhos do sentir, de ação do vidente-visível,
nos âmbitos ficcional e humano.

4.3 O REALISMO447 E O GESTO METAFICCIONAL SAERIANO: A DISCUSSÃO


FICCIONAL COMO PERIPÉCIA DO ROMANCE

O objetivo, agora, é fazermos um ajuste entre essas explanações metaficcionais ou


desenvolver um pensamento conjunto daquilo que foi pinçado em La grande e em Lo
imborrable. Discutir como essas questões metaficcionais discutem o realismo ou como Saer
descarta o objetivismo, privilegiando a experiência. Nesse intuito, o mais significativo, em Lo
imborrable, é a contraposição entre as concepções de representação estética das personagens.
Essa discussão é retomada, em La grande, com o debate e a pesquisa do movimento
precisionista. Nos dois casos, o que se põe em xeque é o realismo, nos moldes de uma

447
O realismo execrado por Saer é aquele defendido pelos Brando e pelos Bueno: como o espelhamento do mundo
na sua representação.
219

representação total e em espelhamento. Saer se debate contra essa postura, buscando outro
tipo de relação com o mundo. Em La grande, há o prosseguimento dessa discussão: enfatiza-
se a interação do homem com o mundo, por intermédio do conflito entre a posição ideológica
das personagens Nula e Gutiérrez. O narrador denuncia a estreiteza de uma postura idealista e,
também, da realista, buscando ultrapassar esses limites, por meio da democratização da
focalização. A postura de Saer, na elaboração de seu espaço ficcional, é uma busca pela
interação plena do homem com os outros e com o mundo.
Retomando: o projeto deste capítulo é redefinirmos o pensamento realista saeriano
por intermédio da discussão ficcional que é articulada em La grande e em Lo imborrable. A
estratégia é, então, tomarmos os romances como entrada da discussão, focando-nos no projeto
metaficcional de Saer. Nessa última parte deste capítulo, concentramos esforços na tarefa de
discutir como esse projeto saeriano desarticula um “realismo simplista”. Logie assim sintetiza
o manejo ficcional de Saer;

[l]a inscripción de su obra en la constelación literaria del litoral argentino, la


deuda con el Nouveau Roman, la distancia con el realismo mágico
latinoamericanista y la problematización de lo real acaban convirtiéndose en
una estética alejada del costumbrismo, que se incluye en la corriente
preocupada por una literatura cuya característica es un cuidadoso trabajo
formal y un extremo rigor en la construcción, rasgos típicos de textos que
perdurarán más allá de las peripecias de su trama (LOGIE, 2013, p. 16).

Esse “cuidadoso trabalho formal” é a característica que foi pinçada, anteriormente, por
Tomatis, ou que foi requerida por ele do livro de Walter Bueno. A ausência desse rigor formal
ou de um entrelaçamento entre a trama e a estrutura define La brisa en el trigo como um gesto
de insignificância artística. Saer sublinha, justamente, em seus romances, esse pendor para a
problemática da estrutura, como elemento da própria trama.
Essa abertura para a perspectiva metaficcional desponta no próprio gesto de apuro
descritivo, na incapacidade de circundar o todo. A ênfase descritiva de Saer parece alavancar
o esforço de expressar, em todos os seus contornos, a experiência, de definir, objetivamente, o
mundo. Trata-se de um engano, já que a complexidade da experiência e sua volatilidade
impossibilitam o realismo de identificação, a descrição das minúcias do espaço. Na verdade,
esse projeto de esmiuçar o espaço – como se estivesse congelado – é sempre tolhido pela
presença do homem no processo; ou seja: a engrenagem da experiência – relação vidente-
visível − contribui para o não esgotamento do mundo. É a comprovação de que a relação se
estabelece no intercâmbio entre as partes, na doação entre os termos:
220

[a] partir de la exasperante proliferación de El limonero real, se delimitan


dos opciones cuya tensión seguirá siendo decisiva, con variaciones, en la
narrativa de Saer: por un lado seguir señalando la dificultad del relato para
dar cuenta de la complejidad inagotable del acontecimiento, y por el otro la
propuesta de un triunfo del relato, que por su enorme potencialidad jamás
puede saturarse ni agotarse (LOGIE, 2013, p. 20).

Esse é o esquema que Saer448 apura em seus romances: o rigor estético contribui
para que a relação minuciosa com a descrição do espaço não penda para o realismo de
identificação. É, mesmo, uma investida contra esse pensamento, porque a relação vidente-
visível se descobre como inesgotável: o contato é mantido pela incapacidade de uma das
partes se exaurir na experiência. Esse ajuste é mantido, então, pela copiosa manifestação das
coisas e o pendor estético significa o resgate da narração para o ambiente do próprio texto.
Não podendo cessar a variabilidade de manifestação das coisas, o texto se estende sobre si
mesmo, como forma de legibilidade. O mencionado El limonero real (1974) encontra-se em
um período em que Saer fez notar, mais nitidamente, a sua posição estética, faz parte da sua
etapa dita “experimental”. Esse romance estabelece uma relação peculiar com o mundo − com
descrições minuciosas da experiência das personagens −, ao mesmo tempo em que apresenta
uma estrutura sofisticada da problemática temporal. Essa etapa reúne romances – Cicatrices
(1969), El limonero real (1974) e Nadie nada nunca (1980) – que fizeram expandir o dilema
da própria narração, que se debruçaram, de forma mais nítida, sobre o problema da
narratividade. Logie (2013) problematiza esse período frisando apenas esse teor
metaficcional: “[...] [a] partir de Cicatrices, parece insostenible una identificación de Saer con
el realismo, porque los procedimientos de construcción del relato pasan a ocupar el primer
plano”449.
Estabelecendo um paralelo entre aquilo que discutimos nas duas abordagens
estéticas de Lo imborrable e de La grande, temos que Saer dramatiza o problema estrutural.
Ambos os romances fazem parte da “etapa madura”, apresentam, com mais finura, o
problema estético. É observável a abertura para a discussão literária no interior da própria
trama, uma forma de reafirmação estética do texto. Ao mesmo tempo em que Saer rejeita um
tipo de realismo, sua obra se encontra de costas para as chamadas poéticas antirrealistas,

448
“[...] [s]u literatura, autónoma y extraterritorial, se circunscribe a una tradición anterior a la actual, y, alternativa
a los escritores del boom y del posboom, que pone el énfasis en lo regional o “zonal”, aunque con una matriz
universal” (CUIÑAS, 2013, p. 40).
449
LOGIE, 2013, p. 30.
221

como as representadas pelo boom-latinoamericano450. Arce se posiciona francamente sobre


essa questão, tomando como exemplo El limonero real:

[...] [d]icho sea de paso a modo de digresión: el título El limonero real, en


plena década del setenta, como el mismo Saer lo declaró, fue casi una
provocación contra las poéticas antirrealistas. Se trata probablemente de la
más contundente respuesta a los partidarios del realismo mágico en América
Latina” (ARCE, 2013, p. 98).

Há, então, em Saer, uma relação diferenciada com o mundo: o manejo da


descrição do espaço é correntemente articulado com o retorno ao aspecto estrutural do texto,
privilegiando a literaturalidade: “[...] la narración saeriana exaspera el funcionamento del
aparato óptico para hacerle experimentar su límite: ahí donde el ver no alcanza (esa distancia
que proponía Robbe-Grillet) comienza el decir narrativo451. Esse é o esquema que sintetiza a
estética de Saer: no entremeio do apuro descritivo há saídas para o “dizer narrativo”.
O modus operandi de Lo imborrable e de La grande apresentam suas
singularidades. No primeiro, observamos abertura maior para o dilema da estrutura: a própria
disposição do texto na página do livro apresenta uma formatação estética. A discussão sobre o
livro de Walter Bueno é dissipada, pelo romance, como uma vertente estética que serve de
contraponto para aquilo que é defendido por Tomatis, personagem que dispersa a estética
saeriana na trama. Em La grande, a discussão do precisionismo quase que se restringe ao
capítulo no qual Tomatis lê a carta anônima sobre esse movimento. É a partir dessa
personagem que o romance desenvolve uma posição crítica sobre o movimento encabeçado
por Mario Brando e, assim, um parecer sobre a própria Literatura.
Abrimos, aqui, parênteses: há uma crítica interessante sobre La grande que
merece ser citada nesse momento de discussão:

[...] [l]a recepción de la novela en Argentina tomó en cuenta este doble


aspecto: por un lado, reconoció la dimensión de testamento o de última
página de una obra admirada, pero por el otro contuvo cierta molestia,
cuando no una discreta posición crítica, ante el abandono de la exigencia

450
“Cuando hablamos de literatura latinoamericana es casi imposible no pensar en el llamado Boom
Latinoamericano, ese fenómeno literario y editorial surgido entre los años 1960 y 1970 en América Latina. En
ese periodo, el trabajo de un grupo de cuentistas relativamente jóvenes fue ampliamente distribuido por todo el
mundo. Los autores más representativos del Boom son Gabriel García Márquez, de Colombia, Mario Vargas
Llosa, de Perú, Julio Cortázar, de Argentina, y Carlos Fuentes, de México. Pero el fenómeno del Boom incluye
una lista mucho más larga de escritores latinoamericanos. Estos escritores desafiaron los convencionalismos
establecidos en la literatura latinoamericana a través de obras experimentales de marcado carácter político, cuya
influencia ha marcado generaciones de escritores hasta nuestros días.”
(In: http://www.iberlibro.com/libros/literatura-latinoamericana-boom.shtml).
451
ARCE, 2013, p. 97.
222

formal de textos anteriores, o, inclusive, ante lo que pudo considerarse como


un anacronismo estético (PREMAT, 2013, p. 224).

É potencialmente interessante essa fala, porque inventaria a dupla posição


receptiva de La grande. A “dimensão de testamento” – como o romance é visto pelos críticos
− é uma forma de se perceber o olhar de sobrevoo estético de Saer sobre sua obra, como
afirma Premat: “[...] [l]a extensión (“grande”), anunciada desde el título no logra ocultar con
su ironía, la ambición panorámica”452. Essa posição assegura o itinerário que tomamos para a
análise e a discussão do espaço literário de Saer, já que partimos, também, de La grande. Essa
possibilidade de encetar a análise pelo último romance é justificada pelo fato de nele se
perceber o agrupamento de temas anteriormente discutidos, um viés mais filosófico na leitura
do espaço, um trabalho primoroso com o tempo, o retorno de várias personagens 453 da saga
saeriana, entre outros. Na verdade, La grande retraz aquilo que, iterativamente, ecoa nos
outros romances. A discussão do precisionismo é uma ferramenta utilizada para retomar o
problema do realismo, para destacar o lugar da ficção; é sintomática essa estratégia discursiva
de Saer: a reflexibilidade do tema literário como ingrediente da trama. A citação anterior,
então, põe em evidência o mecanismo saeriano: o projeto de esboçar, com um mesmo fundo –
metaficcional –, suas variadas tramas.
Na verdade os dois pontos assinalados pela crítica estão interligados: a “dimensão
de testamento” reflete, mais potencialmente, o jogo metaficcional de La grande. É no interior
desse jogo que é possível enxergar aquilo que foi nomeado como “anacronismo estético”: o
esfriamento do rebuscamento estético, encetado na etapa dita “experimental”, por exemplo.
Premat, no texto “El desafío de lo clásico”, coteja o tema do romance – o retorno de Gutiérrez
à sua cidade natal – com essa anacronia estética, apontada pela crítica. O crítico defende que
Saer põe a descoberto esse movimento de retorno a uma escrita anterior à supremacia da
forma, à primazia do estético, nestes termos:

[...] en su primera versión, La grande iba a intitularse El intrigante,


refiriéndose irónicamente tanto a la figura del escritor como al acumular
deshonesto de acontecimientos encadenados lógicamente, y haciendo de la
construcción de la trama el equivalente de una intriga palaciega. Por lo tanto,
el regreso, suponemos, no es sólo al espacio de las ficciones de Saer, sino

452
PREMAT, 2013, p. 230.
453
Sarlo nomeia e singulariza esse ir e vir das personagens saerianas, da seguinte forma: “[...] [p]or esa relación
delicada y resistente con el tiempo, los personajes de Saer forman una sociedad novelística que trasmigra de un
texto a otro y reaparece cuando se la cree a punto de extinguirse, formando una comunidad rara en la literatura
posterior a 1930. El saber del tiempo produce personajes y no sólo historias, personajes sostenidos por la
categoría impalpable de la duración” (SARLO, 2013, p. 158).
223

también al proyecto en sí, e incluso a cierta forma novelesca y a cierta


tradición narrativa, de la cual el encadenamiento de peripecias y la
multiplicación de personajes son el emblema (PREMAT, 2013, p. 222).

O retorno das várias já conhecidas personagens contribui para essa ênfase na


intriga, na remissão a toda uma história já encenada no decorrer da saga saeriana. Os dilemas
são postos em evidência por meio da trama maior: a história do regresso de Gutiérrez. Nesse
aspecto, é possível visualizarmos a nuance de “testamento”, de retorno daquilo que já fora
dramatizado pelas personagens. Essa centralidade na intriga é ponto que a crítica pinça para a
defesa ao retorno à estética da “etapa de aprendizaje”, quando a intriga impulsionava outros
arranjos. A própria personagem Gutiérrez é retirada de um “cuento de juventud (“Tango del
Viudo”, En la zona, 1960)”454. Premat lê o retorno dessa personagem como gesto saeriano
para desvelar a própria postura estética do romance, colocando em evidência a valorização
dos primeiros escritos. Essa leitura sublinha outro aspecto da saga saeriana, sua circularidade
ou a possibilidade de estabelecer conexões entre todos os sentidos. La grande, então,
polemiza a sua própria estrutura, por meio do dilema de Gutiérrez, de seu retorno.
A busca pela decifração do retorno de Gutiérrez, orquestrada pelas demais
personagens, apresenta-se como a encenação da própria estética de La grande. Desvendar
esse enigma é uma forma de pôr em evidência o próprio gesto estrutural do romance. O
retorno à estética de juventude é encenado por Gutiérrez e os ruídos nessa engrenagem
eclodem na crítica das outras personagens a respeito desse retorno. Premat, nesse cotejo –
entre a estética do romance e o retorno de Gutiérrez –, sublinha o gesto de Saer;

[...] el regreso a formas clásicas de narración, el regreso a la novela,


denostada y maltratada por las reflexiones críticas y ciertas prácticas en
libros anteriores de Saer, no sería una simple evocación nostálgica o un
intento de recuperar algo del pasado, sino un intento de “considerar de otra
manera” las formas heredadas, lo que supone que la tradición, a la que se
vuelve después del recorrido conflictivo con el género (ese “largo rodeo por
el infierno”), se ha convertido en algo inédito, es un “lugar distinto en el que
todo es novedoso”, a pesar de las apariencias; algo que permite,
desprejuiciadamente, alcanzar “la simplicidad suprema” (PREMAT, 2013, p.
223).

A crítica das outras personagens ao gesto de Gutiérrez – ao seu retorno com o


possível intuito de retomar os fios rompidos pelo afastamento do país – pode representar uma
antecipação irônica de Saer ao próprio movimento de recepção crítica do romance. Contudo,

454
PREMAT, 2013, p. 221.
224

Premat releva que a leitura que Tomatis faz do movimento de Gutiérrez – no próprio capítulo
no qual polemiza o precisionismo (ou seja, no interior da própria discussão literária: gesto que
não pode ser lido fortuitamente) –, sublinha a impossibilidade do retorno. Premat percebe o
giro estético, mas sublinha que não há possibilidade de identificação com a estética de
juventude. La Grande representa uma reconsideração de todo o movimento de Saer; o retorno
é encarado como uma nova roupagem dada a aquilo que tinha sido os vislumbres de sua
grande obra.
A estética de La grande é desvencilhada, por Premat, por meio das palavras de
Tomatis, quando da tentativa de elucidar o gesto de Gutiérrez: uma forma de alcançar “la
simplicidad suprema”. O interessante é que − apesar da abertura dada à profusão das intrigas
− o jogo ficcional de La grande, continua germinando, conjuntamente e por intermédio dessa
valorização das peripécias. Premat desvela essa estrutura: da mesma forma que se observa a
valorização da intriga, o aspecto estrutural é posto a descoberto, principalmente, nessa leitura
do retorno de Gutiérrez. O metaficcional permanece como ingrediente do texto, encenado por
meio das peripécias de Gutiérrez, no seu gesto de retorno. Saer progride a sua estética,
deslindando, na própria trama, a estrutura do romance. A percepção desse jogo – entre forma
e conteúdo – exige uma iniciação na estética de Saer e, talvez, sua personificação – no gesto
de Gutiérrez – facilite a própria visualização desse movimento saeriano de, iterativamente,
discutir a feitura de sua obra. O jogo estético de La grande é, então, performatizado na trama:
o retorno à estética de juventude acaba por ser contrariado, na mesma medida em que
Gutiérrez é impossibilitado de alcançar o tempo já ido.
A análise de Premat prossegue enfatizando esse movimento entre forma e
conteúdo; uma análise estrutural do último romance mediada pelo criticismo de Tomatis. Para
esse crítico, a questão está no movimento entre experimentação e tradição. Como ele afirma,
La grande é tida como uma “[...] apuesta ‘clásica’”455. A crítica, então, percebe que Saer
retoma alguns pontos da estética de juventude e suaviza o jogo estrutural de seus romances
anteriores. Nesse duplo gesto, pode-se compreender o mal-estar em razão do esfriamento da
experimentação estética. Saer, que sempre se manteve sisudo em relação ao mercado, é
acusado, por alguns críticos, de ceder a suas leis nos dois dispositivos contrapostos em La
grande: na prioridade concedida à intriga e na perda de “radicalidade e originalidade
estética”.

455
PREMAT, 2013, p. 226.
225

Essa “aposta clássica”, que Premat discute em seu artigo, é deslindada como recuo
ao estratagema das primeiras obras, no esfriamento do aspecto inovador, aprimorado,
principalmente, na etapa experimental. O próprio desprezo ao precisionismo – movimento
literário apresentado no romance como vanguarda – é uma forma de por em discussão os
chamados experimentos literários: “[...] [l]a vanguardia se ha vuelto superchería e historia, o
sea que se trata de una tradición paralela, pero inoperante. En particular el precisionismo es
una retaguardia disfrazada de vanguardia”456. Essa discussão de ceder ou não ao mercado não
pode ser inconsequente – levantada pela crítica em razão das mudanças estéticas percebidas,
principalmente, em La grande –, já que o próprio Saer discute essa questão, em seus
romances. Em Lo imborrable, por exemplo – outro romance que direciona a discussão deste
capítulo –, fica evidente como a proposta da Bizancio Libros instiga Tomatis ao círculo do
mercado de livros. Esse romance não esclarece qual a posição da personagem em relação à
proposta, mas discute abertamente o problema do livro como mercadoria. Premat dirige um
olhar diferenciado à questão e à posição de Saer, principalmente, em La grande;

[...] [e]l clasicismo revisitado sólo es concebible para aquel que sin
concesiones al mercado y al medio literario ya ha logrado un lugar
reconocido. Sólo en ese momento es concebible adoptar una “negligencia
casi triunfal”, términos que podrían describir la relación de La grande con el
género novelístico (PREMAT, 2013, p. 227).

A questão é, então, abordada de outra maneira por Premat: a prioridade concedida


à intriga, em La grande, e o tratamento de elementos mais romanescos podem não representar
a concessão às leis de mercado457. Esse crítico justifica essa posição devido ao fato de Saer já
ter alcançado um patamar de reconhecimento quando a crítica realiza esse tipo de leitura.
Premat, em outro trecho, esclarece essa vertente do clássico em Saer, fazendo um contraponto
entre duas tendências perceptíveis em sua obra:

[o] sea que, desde sus inicios, la praxis de Saer está atravesada por una
tensión, que es a la vez el imperativo formalista e innovador, el rechazo de la

456
Ibidem, p. 231.
457
Cuiñas contraria essa posição nos seguintes termos: “[...] Saer rechazó todo impacto popular y comercial y se
mantuvo retirado de los medios, sordo a los bemoles de la oferta y la demanda, de la literatura light y el best-
seller [...] [n]unca estuvo de acuerdo con la prioridad que se ha dado en los últimos años al “valor de cambio” de
la obra literaria sobre el “valor de uso” , equiparando arte con entretenimiento: su literatura le ha dado la espalda
a cualquier tipo de posición hegemónica y evasiva […] de apostar por una escritura especular de “calidad
estética” y “complejidad conceptual y literaria” que necesita de un lector competente, muy activo y entregado, ya
que uno de los “valores sólidos” de su narrativa es la invitación continua a la relectura y la reflexión” (CUIÑAS,
2013, p. 44).
226

repetición y la problematización radical de las certezas de lo heredado, y por


el otro un trabajo con lo clásico, con la tradición, con la psicología, con el
realismo, que se intenta de alguna manera retomar y actualizar (PREMAT,
2013, p. 228).

Premat percebe que a estética de Saer permanece em uma mesma dialética: o


trabalho primoroso com as formas estéticas é contrabalanceado por uma valorização da trama.
Percebemos, nesse universo da trama, a proliferação de recursos realistas que se evidenciam
por um trabalho meticuloso com a percepção do mundo pelas personagens. Talvez, em
decorrência do aspecto de “testamento” que La grande representa, os críticos esperassem um
radicalismo maior no primeiro veio ou no aspecto formal do texto. Por outro lado, a posição
de Premat possibilita que o romance seja visto como o prosseguimento do projeto saeriano ou
que confirme seu percurso estético.
As questões levantadas por La grande são diversas, sendo uma delas o tema que
também atravessa Lo imborrable: a sujeição ou não da obra literária ao mercado. Saer
dramatiza essa questão por intermédio de Tomatis – no segundo romance –, sendo que a
decisão dessa personagem – ceder ou não às normas do mercado editorial – não é apresentada
claramente no texto. Quando da análise, por essa mesma personagem, dos reais motivos do
retorno de Gutiérrez, o texto revela a questão do diálogo com as primeiras obras, com retorno
a uma estética que privilegia a trama. É com base nisso que a crítica deduz que La grande
tenha suavizado o viés formal e inovador dos textos experimentais. Temos que, anteriormente
às considerações de Tomatis sobre a questão do retorno de Gutiérrez, observamos a discussão
do precisionismo, da questão da vanguarda. O descrédito depositado nesse movimento é
transferido – por alguns críticos – ao próprio projeto vanguardista. Essa leitura pode reativar o
gesto de Saer, em La grande, como esse descrédito nas estéticas de vanguarda.
Posteriormente, temos a leitura de Tomatis do retorno de Gutiérrez ou da possibilidade de
retomar aquilo que foi abandonado. Tomatis classifica como ingênuo esse pensamento,
afirmando que o objetivo de Gutiérrez é outro: “alcanzar la simplicidad suprema”.
Dois pontos podemos deduzir a partir de toda essa discussão: o primeiro é que,
aceitando esse olhar crítico de Tomatis, podemos afirmar que não há uma tentativa de retomar
a forma dos primeiros romances, o objetivo é outro: alcançar o apuro estético, por meio desse
diálogo com as primeiras obras; temos, então, o segundo ponto: La grande permanece em
comunicação com toda a saga saeriana, porque o jogo entre as duas frentes estéticas é
mantido. Dalmaroni ilustra bem essa estratégia, conforme evidencia uma nota de pé de página
do texto de Cuiñas: “[...] Saer tiene dos grandes líneas: El limonero real y El entenado,
227

aunque tengan puntos en común, podrían ser novelas de dos primos”458. O rigor estético,
então, permanece; é a defesa de um projeto de escrita desenvolvido ao longo de anos. No
interior dos romances, percebemos, também, essas duas opções sendo confrontadas: por um
lado, o dilema entre a dificuldade de narrar e, por outro, o triunfo do relato. É um esquema
que restaura a própria narratividade dos textos ditos mais experimentais, como, por exemplo,
El limonero real. É uma estrutura que acompanha a saga saeriana, sendo que observamos
concessão de prioridade a uma determinada opção, dependendo do romance.
Retomando La grande, observamos o privilégio concedido à profusão das intrigas.
Essa abertura à potencialidade do relato não implica descuido com o trabalho estrutural. O
penúltimo capítulo, escrito por Saer, sublinha esse fato; nele, Tomatis põe a descoberto a
estratégia do romance. Visando discutir o retorno de Gutiérrez, a análise estrutural é
encenada; Saer, possivelmente, antecipa a própria recepção do romance. É cara ao tema desta
tese essa abertura para a narração, para a profusão da intriga, porque é nesse espaço que a
relação da personagem com o mundo se revela:

[...] [l]a crítica ha percibido en las últimas obras de Saer, y sobretodo en los
cuentos de Lugar (2000) y en su novela póstuma La grande (2005), que
puede considerarse su testamento literario, un cambio en cuanto a las
opciones estéticas del autor. La modificación no afectaría tanto a la temática,
sino al espacio de la ficción, que se abre y se universaliza, y al escepticismo
expresivo tan característico del proyecto de Saer, que en La grande se ve
desplazado por una capacidad afirmativa de construir intrigas y de recuperar
recuerdos (LOGIE, 2013, p. 35).

A mudança, então, atinge, potencialmente, a trama: troca-se o ceticismo expressivo pela


abertura à narração, ponto que favorece a manifestação da intriga ou o momento perceptivo
das personagens e suas recordações. É o esquema que privilegia a relação da personagem com
o mundo, que dá margem para que o projeto espacial saeriano seja descortinado.
É, então, na profusão da intriga que percebemos o detalhamento das descrições
espaciais saerianas ou a abertura ao tema do realismo, contribuindo para que vejamos como
Saer perscruta a relação personagem-mundo. A negativa do precisionismo − estética de Mario
Brando − e, também, do verismo de Atilio Brando, apresentam-se como o gesto de reflexão
sobre o realismo em La grande. A solução é apresentada por Tomatis, anacronicamente,
quando, em Lo imborrable, analisa La brisa en el trigo. Essa personagem sublinha como o
livro de Walter Bueno carece de apurado manejo dos aspectos estruturais. La brisa en el trigo

458
CUIÑAS, 2013, p. 45.
228

foi classificada de insignificante, devido ao fato de não coadunar os elementos estruturais com
a intriga. É nesse movimento metaficcional que o “realismo simplista” é ferido. La grande
põe a descoberto o seu gesto estético, quando a intriga central – o retorno de Gutiérrez –
revela os mecanismos formais do texto.
Resumindo: a estética de Saer é voltada ao realismo, no sentido de ser contrária ao
antirrealismo ou de se opor, principalmente, ao boom e ao posboom-latinoamericano459. Esse
esquema acentua primoroso manuseio do espaço, que a crítica aproximou da estética
objetivista do Nouveau-Roman, devido à fixação do olhar pela descrição pormenorizada das
coisas: “[...] la descripción obsesiva significa la destrucción de la confianza en la notación
realista, en la descripción que carga de significados precisos a los objetos”460. Nessas
considerações, percebemos o lugar de estranhamento do chamado “realismo saeriano” ou de
sua relação com o mundo vivido. Ao mesmo tempo em que se busca a aproximação com o
mundo, a obseção descritiva ultrapassa os limites das coisas, esvanecendo-as. Esse inventariar
o espaço representa a busca por sentidos, tão presente na estética saeriana: “[...] [l]a gran
paradoja en la obra de Saer en general es que la narración es una respuesta a la búsqueda de
sentido, pero esa misma búsqueda también revela la falta de sentido en la narración y, por
ende, en la vida”461. O projeto estético saeriano gira em torno dessa descrição pormenorizada
do mundo e, na impossibilidade de se percorrer os seus contornos, emerge-se a discussão
metaficcional. Atendo-nos ao primeiro gesto, temos que essa relação com o espaço aparenta
ser bem realista, mas o segundo gesto aprimora o próprio conceito de realismo em Saer. O
trabalho descritivo é primorosamente executado por intermédio da ênfase na relação da
personagem no mundo da experiência:

[c]omo afirma Edward Casey (1996), uno de los investigadores que más ha
examinado el lugar desde una perspectiva filosófica, es imposible conocer o
sentir un lugar sin estar allí. Por lo tanto, el conocimiento sobre el lugar no
459
“La narrativa hispanoamericana más reciente (de 1975 en adelante), tras haber experimentado innovaciones
vertiginosas en las décadas del sesenta y setenta que le merecieron el nombre de “nueva” ha sido designada, a su
vez, con calificativos como "novísima", "posmoderna” o del "post-boom". Ninguno de los conceptos es preciso y
hay quien dice que todos son malogrados, pero el término "post-boom" ha sido el más usado y el más criticado,
tal vez, porque "tiene la desdicha de ser correlativo de otro movimiento, de hace un cuarto de siglo, que todavía
se discute y cuyo nombre no fue ni muy acertado ni aceptado: el boom" (Giardinelli, 182). La mayoría de los
escritores involucrados en el debate taxonómico optan por autodefinirse como "novísimos" Para ellos, la
asociación con el "post-boom" significaría algo inaceptable - primero, la adopción de un término extranjero que
tiene un matiz peyorativo debido a sus connotaciones comerciales y, segundo, un tácito reconocimiento del
carácter meramente epigónico de su propia obra. La línea divisoria entre la nueva y novísima narrativa suele
ubicarse a mediados de los años setenta: la nueva narrativa es interpretada como producto de la década optimista
de expectativas revolucionarias, mientras la novísima escritura queda estrechamente vinculada a la época de
desilusión con los proyectos de democratización” (http://www.ux1.eiu.edu/~cfcca/novisimanarrativa1.html).
460
LOGIE, 2013, p. 20.
461
CLAESSON, 2013, p. 113.
229

está subordinado a la percepción sino que es parte de la percepción misma.


La dialéctica entre percepción y lugar (y entre éstos y el sentido) es tan
intricada como profunda. El cuerpo está presente en cada momento y nunca
sin percepción, sostiene Casey, lo cual quiere decir que no sólo estamos en
un lugar, sino que somos ese lugar (CLAESSON, 2013, p. 114).

A relação dessas ideias com o pensamento de Merleau-Ponty é direta; podemos


visualizar claramente o conceito de quiasma ou a relação vidente-visível na exposição acima.
O movimento perceptivo integra o corpo ao lugar de tal forma que já não é possível destacá-
los. O realismo de Saer ou essa exposição meticulosa do mundo vivido é, correntemente,
solapado pelo movimento das analepses, pelo recuo temporal. As narrativas saerianas
apresentam esse ir e vir entre percepção e recordação, outra forma de escapar da verticalidade
da experiência ou do aprofundamento em direção ao sentido das coisas, como vemos abaixo:

[...] [p]ara ver cómo Saer entiende los mecanismos de la ficción, es necesario
tener en cuenta la conexión que hace entre percepción y recuerdo. Como ya
se ha dicho, percepción y recuerdo son dos modos, en presente y pasado, de
captar la realidad en su estado bruto, sin la conceptualización de la lógica y
la memoria (CLAESSON, 2013, p. 119).

O realismo de Saer – que pode ser entendido como essa relação peculiar com a
realidade − ultrapassa os limites das coisas e do tempo. Das coisas quando a busca por sentido
sobressai como forma de manutenção do nó que une vidente e visível. Os limites temporais
são transpostos quando a percepção e a recordação renunciam ao movimento do tempo
diacrônico. Na verdade, há intercambiamento entre esses dois tempos: a resistência do
presente provoca essa fuga ao passado ou, na esteira de decifração do mundo bruto, emerge
uma recordação. Essa dialética é interessante porque, ao mesmo tempo em que se provoca o
mundo em busca por sentido bruto, mais intrincada se apresenta a relação do corpo com o
corpo do mundo. É preciso, então, deslindar esse movimento de busca por sentido em Saer ou
responder, com mais precisão, a essa investida. Na verdade, essa busca representa a própria
prega que mantém o contato da personagem com o mundo, desvendando um tempo
descompassado por uma narrativa que privilegia a circularidade e os intercambiamentos. O
sentido se apresenta como que mudo nesse processo, mas a investida em atingi-lo mantém a
própria relação entre os corpos. Como está expresso na citação anterior, a relação entre a
percepção e a recordação suplanta uma lógica conceitual ou a crença em um sentido único e
fechado:
230

[e]ncontramos, entonces, el relato como círculo: es decir como eterno


retorno y como incapacidad de terminar, de resistir a lo infinito; el relato
como una serie de inclusiones que se dirigen siempre más adentro de la
“selva espesa”, que se hunden más todavía en la imposibilidad de enunciar,
de delimitar sentidos, de explicar; el relato como autorreescritura, como un
intento acompañado con numerosas variaciones o de retornos a lo mismo; el
relato como expectativa, es decir como proliferantes recorridos por las
circunstancias que preparan el desenlace, la llegada del sentido, pero de un
sentido que no se produce… (PREMAT, 2002, p. 239).

Nesse mesmo livro, La dicha de saturno (2002), Premat já tinha pontuado que
uma das diretrizes da narrativa saeriana é essa busca por sentido. Um movimento que
funciona fora da lógica de verdade, mas no afã de se ordenarem as suas variantes. É a
gesticulação do próprio conceito de ficção de Saer, como esse espaço de abertura para versões
múltiplas do real. A autorrefencialidade se revela tema do romance, na medida em que o
conceito de ficção se mostra como pano de fundo da própria trama. O sentido funciona como
as amarras da própria relação perceptiva, uma forma de manter a reflexividade da personagem
com o mundo. Outra exigência por sentido está no âmbito da recepção: a circularidade da
obra saeriana ou a negativa de diacronia reclama a concatenação dos textos como forma de
legibilidade da saga saeriana. Retornando: a importância da busca por sentidos, pelas
personagens, está na manutenção da própria relação vidente e visível. As investidas em busca
por sentidos refratam na pluralidade do vivido e, por seu turno, essa busca é que mantém a
própria relação com o mundo. A tradução não se efetua devido à constante distância que se
interpõe na relação, favorecida pela variabilidade daquilo que se mira; ou seja: perde-se a
referência da coisa em benefício desse sentido bruto que se encontra sempre distanciado.
O espaço realista de Saer apresenta-se nos dois eixos: na percepção e na
recordação. Ressaltamos que o seu realismo é entendido nessa relação com o mundo vivido,
na experiência das personagens. A percepção é o giro sobre o presente, a valorização daquilo
que se mostra na vivência. A impossibilidade de se atingir o sentido, que sempre se retrai,
reclama um tempo vertical – segundo Nula, em La grande –, aquele momento em que o
espaço se sobressai sobre o tempo; a linearidade é preterida em favor da simultaneidade.
Quando esse presente se torna mudo, a narração refrata e o passado emerge por meio de
imagens: “[...] la memoria es, pues, la instancia que ordena, interpreta y en cierto sentido
ficcionaliza secuencias del pasado, mientras que los recuerdos son instantes o imágenes
muchas veces sin un sentido aparente, y por lo tanto más fieles a la realidad”462. As

462
CLAESSON, 2013, p. 119.
231

recordações apresentam essa dinâmica de relação com o presente, permitem que se estabeleça
diálogo com a percepção do mundo: “[...] [e]l recuerdo es como una imagen que se proyecta
sobre nuestro cuerpo, según la voluntad externa del proyector; por eso es tan sugerente
buscarse a sí mismo en esa proyección fragmentada y sin conceptualizar”463.
As recordações são abundantes em Saer, sobressaem-se sobre o próprio volume
das percepções, devido ao privilégio concedido ao narrador distanciado. É interessante como
Claesson (2013) defende – na citação anterior – a recordação como detentora de uma
dinâmica com a própria percepção e que independe do gesto de rememoração. Essas imagens
se solidarizam na relação da personagem com o mundo; a própria experiência provoca esse
diálogo com as recordações. As recordações, então, advêm da própria percepção, como
pertencentes ao mesmo espaço, manifestam-se como imagens que complementam a relação
com o mundo. Resulta disso a dificuldade de se estabelecer os limites temporais e espaciais da
narrativa saeriana, porque tudo se coaduna na busca por sentido bruto. A narrativa saeriana
apresenta esse ir e vir sobre o tempo – entre percepção e recordação –, por meio das múltiplas
progressões imagéticas do espaço. Não sendo possível a relação direta com o sentido, a
dialética é a promoção da experiência, da relação com o mundo, como sintetiza Sarlo: “[...] lo
que creo que Saer sostiene con su literatura: que vale la pena intentar la búsqueda, sólo si no
se conoce del todo el objeto buscado ni el mapa del territorio a recorrer. La ficción avanza
contra lo desconocido, como si avanzara contra el viento”464.
Sarlo desenvolve um resumo da estética saeriana – na citação anterior –, da sua
concepção de ficção, como espaço de diálogo ou de exposição das variantes da percepção.
Saer valoriza a busca pelo sentido bruto, obliterado no interior da própria coisa ou entre elas.
O espaço saeriano se descobre nesse iterativo ato de percorrer a distância entre as coisas ou
essa carne do mundo. Uma distância que sempre se estende, revelando a multiplicidade de
facetas daquilo que se pensava ser uma coisa inteiriça e acabada ou isolada do vidente. Essa é
a estrutura que revela o espaço saeriano: a interdependência entre personagem e mundo, seja
na percepção ou na recordação:

[...] [e]l cuestionamiento de la posibilidad de conocer y reconstruir el pasado


histórico, por un lado, y la crisis de representación que anula la verdad, por
el otro, traslapan con dos grandes obsesiones en la obra de Saer: la
imposibilidad de aprehender y conocer cualquier acontecimiento (presente o
pasado, histórico o cotidiano) y la inadecuación del lenguaje que falta en
expresar cualquier hecho o recuerdo (PERKOWSKA, 2013, p. 170).

463
Ibidem, p. 120.
464
SARLO, 2013, p. 153.
232

Perkowska está tratando, especificamente, do romance histórico Las nubes, mas


seus apontamentos valem para elucidar a dinâmica de Saer, na construção de seu mundo
ficcional. Essa obsessão para se descrever algo que sempre se revela outro gera um
sentimento de impotência no narrador. É um ponto que assegura à tese de Premat um aspecto
da melancolia saeriana, do inveterado movimento que não alcança o fim específico para o
qual fora engendrado.
A técnica realista saeriana ultrapassa a descrição meticulosa do mundo, porque,
nesse gesto, deformam-se as coisas de forma tal que a narração evade para a observação do
seu próprio dilema estrutural: “[...] aunque pudiera parecer que se trata de una técnica realista,
sucede lo contrario, porque la descripción reiterativa, compulsiva, significa la crisis a la vez
epistemológica y representacional; por un lado, lo real deja de ser transparente, por el otro se
revela la contingencia del lenguaje”465. Essa é a questão fulcral do realismo de Saer: sublinha-
se a constante distância daquilo que se descreve, por intermédio da própria impossibilidade de
se delimitar as coisas pela linguagem. Não observamos, portanto, o acabamento das coisas e a
subsequente descrição de seu contorno, mas uma relação dinâmica com o mundo em
transformação. Essa estrutura privilegia o movimento, a volatilidade de apresentação das
coisas, e é a partir disso que a narração se volta sobre si mesma, mirando-se na própria
linguagem. O autotematismo saeriano eclode nessa insistência da narração de suplantar a
impossibilidade de se apreender o mundo; é a reação da linguagem que se revolve, mostrando
a sua contingência.
O espaço de Saer apresenta essa estrutura realista e metaficcional, como afirma
Premat: “[...] [e]s conocida la dinámica entre los relatos de Saer y el espacio: el lugar va más
allá del contexto en el que se sitúan las intrigas para convertirse, progresivamente, en una
proyección de la obra en sí misma y en un equivalente de posiciones a la vez literarias,
estéticas y metafísicas”466. Disso resulta a exuberância da escrita saeriana, o primor na escolha
das palavras ou a poeticidade do texto, porque “[...] la manera más apropriada de escribir
poesía hoy, para Saer, es escribir narraciones”467. Delgado, com essa assertiva, busca justificar
o porquê Saer escreveu apenas um livro de poesia. Percebemos na escrita saeriana um traslado
poético para a prosa, uma estrutura que privilegia o apuro estético e, posteriormente, a
revelação desse estratagema pela autorreflexidade narrativa. O jogo com a linguagem
funciona, então, em dois braços, nessa primorosa eleição das palavras – com o cuidado

465
PERKOWSKA, 2013, p. 179.
466
PREMAT, 2013, p. 222.
467
DELGADO, 2013, p. 239.
233

inclusive com a sonoridade do texto – e na revelação desse trabalho formal, pelo


autotematismo.
Retomando a discussão sobre La grande, temos que Premat estabelece um
paralelo entre Nula e Gutiérrez como sendo duas personalidades de Saer:

[...] por un lado Nula Anoch, cuyo nombre, recuerdos de infancia y


personalidad (seductor impertérrito, aficionado al vino y filósofo amateur),
lo convierten en una especie de retrato ficticio del joven Saer, tanto como el
segundo protagonista, Gutiérrez, un escritor salido de un cuento de juventud
(“Tango del Viudo”, En la zona, 1960) que, después de treinta años en
Europa y convertido, no en célebre poeta ni novelista, sino en guionista de
cine exitoso, vuelve a la zona para instalarse definitivamente (PREMAT,
2013, p. 221).

Essa afirmação de Premat assegura a tese que esse crítico desenvolve no seu artigo: por
intermédio da análise de Tomatis sobre o retorno de Gutiérrez, interpreta-se a estética de La
grande como uma nova roupagem dada à estética de juventude. É sondado, então, nesse
romance, um espaço de maior valorização da trama, da relação das personagens com o
mundo. O último romance de Saer privilegia o espaço da experiência, reafirmando a
importância que esse escritor sempre depositou nesse estratagema homem-mundo.
Visualizamos, então, em La grande, a ênfase depositada na relação da personagem com o
mundo, seja no plano perceptivo ou na recordação.
Resumindo, defendemos que o realismo saeriano acompanha o desejo de
apreender a experiência da personagem, de confluir a relação do vidente com o visível; ou
seja: o objetivo não se encontra no projeto de apenas descrever as coisas, mas em acompanhar
a sua revelação pelos olhos do observador. O espaço saeriano revela-se na vivência da
personagem, na relação de duplo sentido entre o corpo e o mundo. Os dois romances que
encabeçam a discussão deste capítulo comprovam essa questão. O precisionismo, em La
grande, é uma mostra de como o defendido pragmatismo da linguagem petrifica a
experiência, por meio da defesa de um mundo objetivo, que deve ser alcançado por uma
linguagem direta. Da mesma forma que o livro de Walter Bueno, La brisa en el trigo,
desconcerta a experiência por não conseguir ultrapassar os limites do senso comum ou por
não se ater às particularidades do mundo vivido. Tomatis analisa esse livro e defende o olhar
sobre os segredos do homem, a fixação nas singularidades da experiência:

[n]arrar es para Saer explorar lo real para abrirlo y suspenderlo en la


incertidumbre, descomponer incesantemente lo compuesto a través de la
234

multiplicación de miradas similares, repetidas pero nunca idénticas, que


exploran el tenor material de lo sensible hasta perturbar los sentidos
mediante los que la cultura impone totalidades y articula relaciones.
(DALMARONI, “Una certidumbre sensorial de permanencia: narración y
pintura en Juan José Saer”, 2008, p. 8).

Percebemos, então, a defesa das vertentes múltiplas da experiência em Saer ou


que o mundo se revela em infinitas formas, mediante os sentidos da personagem. O realismo
de Saer se constitui nas singularidades da experiência, na relação vidente-visível ou no
esquema de ver e do ser visto.
235

CAPÍTULO 5

PERSPECTIVAS OUTRAS SOBRE O ESPAÇO SAERIANO: A


LHANURA, O RIO E AS NUVENS

Férreamente nos sostiene en la ondulación de sus olas ilimitadas


sin que haya antes ni detrás de él nada como no sea el oceáno y el cielo.
SAER, El arte de narrar, p. 87.

Neste último capítulo, o nosso objetivo é percorrer o espaço saeriano em outros


romances e trazer exemplos que comprovam a profusão das experiências em Saer. Dois são
os lugares mais revisitados na saga saeriana: a lhanura e o rio, tendo esses, como contraponto
– em alguns casos –, as nuvens ou a abóboda celeste. Privilegiamos, aqui, romances que
deram abertura maior para a narração da experiência, para o contato vidente-visível. Como
pontuamos no capítulo anterior, “O realismo em Saer: vanguardas e discussões estéticas em
La grande e em Lo imborrable”, a estrutura dos romances saerianos apresenta duas vertentes:
a ênfase no acontecimento – e em razão de a experiência ser inesgotável, passa-se à segunda
vertente – e a reflexividade do ficcional, na medida em que o texto discute a sua própria
estrutura. Mesmo aqueles romances que são considerados amplamente experimentais – como
El limonero real (2002) – apresentam essa dupla estrutura. Prosseguimos, então, com o
exercício de pinçar exemplos que confirmam aquilo que foi discutido nesta tese ou que
afirmam o manejo primoroso de Saer com o espaço da experiência. O corpus dessa análise
resulta de um passeio sobre os seguintes romances: Cicatrices (2003), El limonero real
(2002), Nadie nada nunca (2000), El entenado (2002), La ocasión (2003), Lo imborrable
(1993), La pesquisa (1997), e Las nubes (2000). O objetivo, aqui, não é analisarmos esses
romances – como fizemos com La grande (2005) – mas, explorarmos trechos que comprovam
a estética espacial de Saer.
Este capítulo é, então, dividido espacialmente, privilegiando-se a relação das
personagens com a lhanura468, com o rio e com as nuvens. As nuvens se apresentam,
especificamente, como contraponto da visão do rio e da lhanura, e também se transformam no

468
Premat acentua essa relação da lhanura com o rio: “[l]a tierra pastosa y el agua omnipresente no son los únicos
espacios naturales: la pampa (y más generalmente el “campo”) aparece como la frontera del río; si los personajes
se alejan de la costa, más allá, comienza un espacio vacío, indefinido, que se interroga repetidamente sin obtener
de él ninguna respuesta” (PREMAT, 2002, p. 175).
236

próprio horizonte do mundo. A importância das “nuvens” está em propiciar um dos aspectos
interessantes da experiência das personagens: a monotonia. Esse sentimento nasce quando a
personagem se sente enclausurada pelo firmamento, devido à aparência de imobilidade das
coisas. Esse esgotamento dos sentidos é provocado muito em função da ausência de
movimento ou da busca pelo sentido bruto das coisas. A experiência se aprofunda e sua
verticalidade cria a falsa impressão de que o tempo estacionou, devido à profusão da
experiência espacial. É interessante esse terceiro espaço, porque há um romance que Saer
intitula Las nubes (2000), sendo, então, promissor pensarmos a sua importância no projeto
espacial saeriano. É inquestionável a relação das personagens com a lhanura e com o rio,
sendo o primeiro o espaço definidor das narrativas saerianas e, o rio, o seu prosseguimento ou
a sua extensão rumo ao horizonte.
O projeto espacial saeriano é conduzido no encalço de perpassar a experiência por
inteiro, em plenitude, no sentido de se atingir um sentido que se encontra velado no horizonte
do mundo, como aponta, por exemplo, este trecho:

[...] el drama del hombre saeriano es, ante todo, un drama material (un
“drama de símbolos” diría Bachelard): es la consecuencia de una relación
sufriente con un universo carente de sentido en un plano general y con la
materia, disfórica, indiferenciada, como manifestación nimia pero aguda de
esa relación (PREMAT, 2002, p. 165).

Os sentidos da personagem recobrem as coisas até o limite da própria visão, tendo essa a
função de antecipar a relação dos outros sentidos com o mundo. O esforço de esgotar aquilo
que é percebido se estende para todos os cantos, sejam eles o céu, a lhanura ou o horizonte.
Percebemos, em alguns casos, o engavetamento da experiência – entre céu e terra – ou o
sentimento de monotonia; em outros momentos, a confirmação de que não existem limites
para a experiência ou uma linguagem capaz de traduzir a infinidade de prospecções do real.
Esse é o grande dilema de a obra saeriana percorrer essa relação com o inesgotável ou mostrar
a infinidade de caminhos que se estendem entre a personagem e o mundo. Essa questão retraz
os pressupostos ficcionais de Saer ou demonstram como a experiência não se reduz a um
traçado objetivo, ou que se deve considerar a pluralidade de caminhos dos sentires. O esforço
para examinar as coisas no intuito de lhes extrair seu sentido velado, para decifrar o mundo, é
tolhido pela inesgotabilidade de perspectivas que se revelam na experiência. Fixemos, então,
em perpassar esse universo espacial saeriano por meio de seus contornos; ou seja: da lhanura,
do rio e das nuvens.
237

É imprescindível retomarmos a defesa de que o pensamento merleaupontyano


favorece uma leitura mais dinâmica do espaço saeriano; principalmente, tratando-se da
relação com o ver, na busca por decifrar o sentido bruto das coisas. Saer privilegia a
percepção das personagens, intensifica o jogo entre as sensações; como vimos no capítulo “O
espaço em La grande, de Juan José Saer”, quando exemplificamos o seu manuseio do espaço
e da experiência das personagens. Trazemos, neste último capítulo, outros romances, com o
intuito de atestar essa coerência espacial da saga saeriana. O nosso objetivo, aqui, é mais
expositivo: exemplificar, com trechos dos romances, o seu manejo do espaço literário. É
imperativo, também, retrazermos aquilo que Merleau-Ponty defende e que contribui para a
defesa do pensamento espacial saeriano, ou que: “[...] l’horizon, la perspective ne donne pas
seulement à voir: elle laisse deviner ce qu’elle dérobe à la vue. Or c’est là une qualité
essentielle du regard artistique, qui doit « voir d’abord ce qui se f(ait) voir, mais aussi deviner
ce qui se cach(e) »”469.

5.1 A LHANURA: DESCAMPADO MUNDO SOB MEUS PÉS

A lhanura é o espaço privilegiado da saga saeriana, o lugar por excelência da


experiência personagem-mundo: “[...] [l]a acción y los personajes se sitúan en su entorno
acostumbrado, en el espacio de la ciudad (que indudablemente guarda muchas similitudes con
Santa Fe, pero no se nombra ni aquí ni en ninguna otra parte de la obra saeriana) y el campo
que Saer llama la zona”470. Saer se esmera em descrever esse contato da personagem com o
mundo ou seguir os sentidos de percepção das coisas. Cicatrices (2003) representa um dos
maiores experimentos de Saer, apresentando estrutura temporal habilmente elaborada. Não
por isso, o cuidado com a narratividade da experiência é deixado de lado. Os quatro
narradores do romance confluem suas vozes no episódio de suicídio de Luis de Fiore: “[...]
cuatro relatos autónomos y superficialmente asociados por un crimen narrado en la cuarta
parte, hay que señalar, primero, que el significante “cicatrices”, entre los múltiples sentidos
que sugiere, alude a esos cuatro relatos digresivos […] y circulares”471. Trazemos, então,

469
COLLOT, 2005, p. 72: “[…] O horizonte, a perspectiva não se permite somente ver: ela deixa adivinhar o que
ela esconde à vista. Ora, isso é uma qualidade essencial do olhar artistico, que deve ‘ver de início o que se faz
(tem) a ver, mas, também, adivinhar aquilo que se esconde’” (Tradução nossa).
470
CLAESSON, 2013, p. 113.
471
PREMAT, 2002, p. 229.
238

como primeiro exemplo da relação das personagens com a lhanura, a narração de Luis de
Fiore, sua perspectiva dos acontecimentos que antecederam o assassinato de sua mulher:

[s]e pone a la par mía y caminamos juntos durante un trecho. Por momentos
nos hundimos en el pastizal hasta las rodillas, y a veces chapoteamos entre
los charcos. La luz decae cada vez más rápidamente. Ahora vemos con
claridad únicamente a nuestro alrededor, a unos pocos metros a la redonda.
El resto está envuelto en una penumbra azulada. Los eucaliptus son una
franja negra (SAER, 2003, p. 147).

Fiore conta sua saída com a família para caçar patos, momentos do funesto dia em
que matou a mulher e, posteriormente, no dia do interrogatório, se suicida. É interessante
como o olhar dessa personagem busca recobrir a experiência pessoal, bem como a relação da
sua companheira com o mundo; é uma prova do jogo narrativo de Saer ou de como ele
transmuta as características do narrador homodiegético e heterodiegético. No caso de
Cicatrices, os quatro narradores narram em primeira pessoa, mas percebemos saídas dessa
perspectiva para a apreensão daquilo que acontece com as outras personagens. Essa tentativa
de apreensão do todo é sutil e pode passar despercebida, em razão da focalização interna. É
um modo de fazer com que a narração espacial englobe as miudezas que escapam à relação
direta do sentiente e, mais, que seja consentida com naturalidade pelo leitor. A estrutura é
perceptível quando Fiore narra, como se estivesse ausente, a sua deambulação pela zona de
Colastiné Norte: os sentidos perpassam as coisas, juntando-se a aquilo que é narrado, como
vemos abaixo:

[l]a llovizna cae sobre los árboles mutilados, negros, que están sobre el patio
liso. La luz del patio los ilumina débilmente. Deslumbran, sin embargo. La
corteza atravesada de hendiduras se llena de agua, y también algunas
porciones del patio liso emiten de golpe algunos reflejos. Deslumbran.
Cierro los ojos durante un momento, apretándolos fuertemente. Cuando los
abro, los muñones mojados y el patio liso están todavía ahí (SAER, 2003, p.
153).

Esses últimos instantes da vida de Fiore exemplificam como o olhar dessa personagem
acompanha a revelação das coisas. É a mostra de como o espaço está condicionado à
experiência, como os sentidos da personagem lançam luz por sobre aquilo que por eles é
explorado. Esse movimento sinestésico contribui para que o leitor se sinta como que integrado
a esse espaço e explore, em suas miudezas, a relação homem-mundo.
239

A lhanura adquire maior espaço no outro romance desse período, em El limonero


real, muito em função do questionamento aberto ao realismo. Como discutimos no capítulo
anterior, é provocativo o título desse romance. Em meio ao primoroso trabalho com a
estrutura temporal, o espaço é percorrido na narração da experiência, na abertura concedida à
exposição da intriga. Sobre esse romance, temos que:

[...] [l]a novela se compone de una serie de secuencias jalonadas por un


único dístico (“Amanece/y ya está con los ojos abiertos”), repetido una
decena de veces en el texto. Las secuencias narran obsesivamente un mismo
día: el despertar del protagonista, Wenceslao (llamado también Layo), su
viaje en bote hasta el lugar de una reunión familiar, la comida de fin de año
que se prepara y consume, su regreso a la isla en donde vive solo con su
esposa después de la muerte de un hijo (PREMAT, 2002, p. 221).

É interessante como Saer projeta a revelação da intriga em uma sequência


temporal, que se descobre como um relato de apenas um dia. O leitor percebe uma estrutura
em zigue-zague472 ou a exposição, em conta-gotas, da trama que envolve a família de
Wenceslao. É no entretecido mecanismo temporal que a história é contada: as atividades
cotidianas junto à mulher e a saída para visitar a família na festa de fim de ano.
O detalhamento espacial é meticuloso – em El limonero real –, como forma de
suplantar a estrutura circular da narrativa, da mesma forma que “[...] [a]s analepses473
funcionam como força propulsora do tempo: agem no sentido de resgatar o relato da descrição
espacial para outro polo. Disto, a profusão de analepses nos textos saerianos, como forma de
redenção da narrativa do movimento de imersão no buraco negro do inenarrável ou
invisível”474. Essa circularidade entre descrição e narração é a estrutura que acompanha a saga
saeriana: a impossibilidade de se recobrirem as minúcias do espaço provoca os recuos no
próprio texto ou as analepses. Entre os recuos temporais, desvela-se a tragédia que sucumbiu
sobre o casal, por meio da focalização, prioritariamente, sobre Wenceslao. É por intermédio
dessa personagem que o leitor toma parte do primoroso manuseio do espaço que circunda as
personagens: “[...] [a] mediodía el sol calcinará el aire, lo hará polvo; la arena de la costa se
pondrá blanca, la tierra parecerá cocida y después como encalada, y cruzando el río y a una
hora de a pie desde la otra orilla, el camino de asfalto que lleva a la ciudad se llenará de

472
Premat utiliza esse conceito para explanar a estrutura de El limonero real: “[...] excluye el avance tradicional de
la ficción (el de la cronología), y dramatiza, con los zigzags que la diégesis contiene, la posibilidad de narrar
(PREMAT, 2002, p. 221).
473
Gérard Genette (1995) classifica o recurso das analepses como “[...] toda a ulterior evocação de um
acontecimento anterior ao ponto da história em que está” (GENETTE, 1995, p. 38).
474
MOTA, 2013, p. 1.
240

espejismos de agua”475. A relação espacial ultrapassa aquilo que se apresenta aos olhos, no
imediatismo; a circularidade temporal é refletida nessa antecipação do devir. A personagem
narra, em focalização interna, a mesmice do mundo, sublinhando minúcias de sua
transformação; com neste trecho:

[a]hora no parece ni que se hubiesen levantado, hubiesen tomado el


desayuno magro, dejando a la madre y a los chicos durmiendo en el rancho,
y hubiesen atravesado lentos el río en la oscuridad, un río todavía visible
aunque negro, y hubiesen penetrado en la niebla; y la más inescrutable
oscuridad era toda la vida mejor que eso. Ahora no parece sino que la niebla
hubiese devorado también el tiempo y su depósito, la memoria. El padre
trata de horadar con la mirada la pared compacta de partículas blancas, como
si esperara leer en la niebla un significado escrito en ella, el significado de la
niebla misma, o el que la niebla oculta y ellos han venido a buscar, el
significado de la razón que han tenido para venir a buscarlo (SAER, 2002, p.
13).

Imagens belíssimas são proporcionadas, em El limonero real, pela névoa ou pela


própria inexatidão daquilo que se vê; entendemos esse recurso como uma forma de retratar a
impossibilidade de se circundar a totalidade o mundo. A névoa promove uma narração com
uso do subjuntivo, tempo verbal que sublinha a irrealidade das coisas. A decomposição das
imagens, em função dessa película de fumaça, provoca dúvida em relação a aquilo que se
mira. É promissora, em Saer, essa estrutura de iterativamente corroer a possibilidade de se
alcançar o dito mundo real. A narração é, também, invadida por termos que expressam a
inexatidão, a dúvida e a possibilidade; nunca a certeza. Os intercambiamentos entre
recordação e percepção influem decisivamente para o estabelecimento desse caos “realista”,
já que ambos os vetores são complementados pela imaginação. É essa impossibilidade de se
alcançar as coisas − de descrever, em totalidade, os seus contornos − que enxerta os
elementos da imaginação. A névoa alcança a própria memória da personagem, fazendo com
que o tempo se embace como o espaço, é, então, apresentado. Dessa feita, visualizamos as
aproximações entre recordação e percepção, entre presente e passado.
O limoeiro é, então, visitado pela personagem: a mescla entre as fases de
produção do limão simbolizam o próprio inacabamento do mundo ou o seu devir constante.
Os botões, as flores, os pequenos frutos, os verdes e os maduros, convivem nos braços do
limoeiro; a árvore que intitula o próprio livro apresenta essa diversidade. Situada no meio da
chamada ilha, onde Wenceslao e a esposa moravam, seu porte impressionava a todos. Mesmo
nos anos de luto, pela perda do único filho, quando Wenceslao abandonara o cuidado com a
475
SAER, 2002, p. 13.
241

terra, o limoeiro permaneceu esplendoroso, no meio da ilha. É interessante pensarmos como


Saer provoca o realismo no seu aspecto objetivista, demonstrando, por seu lado, como o
mundo é dinâmico. Esse contato com o limoeiro é assim descrito:

Wenceslao comienza a arrancar limones, cuidando de no sacudir de un modo


demasiado violento las ramas; como el humo del cigarrillo le da en los ojos,
los entrecierra y echa para atrás la cabeza. Cada vez que el tirón con que
Wenceslao arranca un limón sacude las ramas, algunos pétalos blancos caen
lentos al suelo. El limonero real está siempre lleno de azahares abiertos y
blancos, de botones rojizos y apretados, de limones maduros y amarillos y de
otros que todavía no han madurado o que apenas si han comenzado a
formarse. Desde que lo recuerda, Wenceslao lo ha visto siempre igual, pleno
en todo momento, con ese resplandor blanco nimbándolo, el punto más alto
de su ciclo en los grandes limones amarillos, los botones tensos y apretados
a punto de reventar, los limoncitos verdes confundiéndose entre las grandes
hojas, oscuras en el anverso y de un verde más claro en el reverso (SAER,
2002, p. 19).

A beleza descritiva dessa cena está no gesto saeriano de acompanhar o movimento de


transformação das coisas, de repassar a sua vivacidade. É essa estrutura que produz o realismo
saeriano – no sentido de se relacionar com o vivido – e, por outro lado, contradiz a
anterioridade realista das coisas: contra o acabamento e a favor da promoção da experiência.
As imagens em El limonero real são abundantes, elas refletem o gesto de
provocação à questionável ideia de se apreender o mundo por meio de conceitos. Saer
compartilha a posição que Merleau-Ponty defende: a questão não está, simplesmente, na
apresentação das coisas, mas no seu comportamento. Essa é a chave de leitura da
Fenomenologia da Percepção – e pode ser estendida aos seus últimos trabalhos 476 −,
defendida pelo próprio filósofo como estratégia de compreensão da experiência. É
interessante como o ver recebe ênfase na narração; o leitor é conduzido a acompanhar os
progressos de revelação do mundo pelos olhos do observador, como neste trecho:

[a]l atardecer el sol declinará, despacio, hasta desaparecer. Declinará


despacio, hasta desaparecer, y la oscuridad enfriará las paredes del rancho
que emitirán un resplandor fosforescente, lunar. Remará lento en la canoa
amarilla, saltará a tierra, entrará en la casa, se desnudará, se echará en la

476
Collot assim visualiza a relação vidente-visível de Merleau-Ponty: « [l]e sens d’un paysage comme celui d’une
phrase musicale ou d’un tableau, est inséparable de son rythme et de sa courbe mélodique, des valeurs et des
couleurs qui le composent : il s’agit de ce que Merleau-Ponty apelle une «idéalité d’horizon » d’« une idée qui
n’est pas le contraire du sensible, qui en est la doublure et la profondeur »” (COLLOT, 2005, p. 339). [Tradução
nossa: “O sentido de uma paisagem, como o de uma frase musical ou de um quadro, é inseparável de seu ritmo e
de sua curva melódica, dos valores e das cores que o compõem: trata-se daquilo que Merleau-Ponty chama de
uma “idealidade de horizonte”, de “uma ideia que não é o contrário do sensível, que é seu revestimento e sua
profundidade””].
242

cama y el ronroneo continuo se irá cortando cada vez por más largo tiempo y
con menor intermitencia hasta desaparecer (SAER, 2002, p. 47).

Novamente – na citação anterior –, temos a narração daquilo que é esperado, de


um futuro que se mostra previsível. Essa mesmice das coisas é contrastada – em outro
momento – pela presença do homem: “[…] por un lado están los árboles inertes, los espinillos
que bordean el camino amarillo, y por el otro el crecer y disminuir imperceptibles de los
pechos al ritmo de la respiración, la arena amarilla muerta y los brazos que se levantan con el
tenedor en la mano en dirección a la boca”477; e, vez por outra, o contrário, também é verdade;
o movimento do mundo assegura a experiência da personagem, como vemos no excerto
abaixo:

[l]os relámpagos espaciados y el golpe del agua contra su cara y su cuerpo


son la única referencia débil que ayuda a Wenceslao a no creer en su
absoluta irrealidad: lo único visible para él es su propia fosforescencia
interna que palpita en medio de la más ardua oscuridad y que está como
adormecida por el ronroneo monótono, apretado y múltiple de agua, sonido y
oscuridad (SAER, 2002, p. 57).

El limonero real é promissor para mostrarmos essa exuberância do espaço


saeriano. Outros muitos exemplos poderiam ser extraídos do romance, já que uma de suas
propostas é discutir o realismo, por meio da estética saeriana, que privilegia a forma por meio
da revelação da experiência da personagem; ou seja: sem se mostrar vazia de conteúdo.
Percebemos, então, que: “[...] la obra saeriana es realista, pero no descuida el trabajo con la
forma”478. É interesante pensarmos como, em El limonero real – romance potencialmente
experimental –, há esmero na descrição da experiência. Observamos primoroso trabalho
descritivo ou essa positividade da relação vidente-visível. Temos, como último exemplo desse
romance, a narração do acender o fogo: “[...] [p]ero después del silencio se oye una crepita-
ción sorda, espaciada, que viene de la estructura intrincada de ramas y troncos, y de golpe, por
entre los intersticios, aparece la primera llama, débil, azulada, transparente” 479. O rigor
empregado na decifração do visível se assemelha ao trabalho do cineasta que acompanha,
com a câmera, os menores gestos que deseja revelar.
Nadie nada nunca (2000), por sua vez, apresenta uma estrutura que se assemelha
à de El limonero real; a repetição de uma mesma sentença, como abertura de um novo intento

477
SAER, 2002, p. 45.
478
ARCE, 2013, p. 91.
479
SAER, 2002, p. 113.
243

narrativo, aparenta a estratégia narrativa dos dois romances. Como sintetiza Premat: “[...]
[a]unque en menor grado, la estructura narrativa de Nadie nada nunca reúne la dispersión de
Cicatrices y los retornos de lo mismo de El limonero real”480. O coro de Nadie nada nunca é
quase uma retomada do próprio título do romance: “[...] [n]o hay, al principio, nada. Nada”481.
Algumas vezes, o coro é estendido, e esse nada se refere ao rio: “[n]o hay, al principio, nada.
Nada. El río liso, dorado, sin una sola arruga, y detrás, baja, polvorienta, en pleno sol, su
barranca cayendo suave, medio comida por el agua, la isla”482. A lhanura é, também, espaço
do romance, a personagem se emerge nessas paisagens de vasta extensão e quase nenhum
acidente: “[...] [l]a contemplación de la llanura es comparable con los estados de
extrañamiento en donde el desdoblamiento de los gestos, la conciencia exacerbada de los
sentidos, apuntan a una especie de locura, de ruptura con la observación” 483. Temos, então, no
trecho a seguir, um exemplo dessa relação com a lhanura em Nadie nada nunca:

[e]l desplazamiento es tan uniforme que el coche negro parece inmóvil sobre
una cinta sin fin que estuviese corriendo en sentido contrario. En las dos
llanuras que se extienden a los costados del camino los pajonales resecos,
grisáceos, de altura regular, acentúan, a causa de su monotonía, la impresión
de inmovilidad (SAER, 2000, p. 81).

La ocasión (2003) é outro romance que discute abertamente o realismo saeriano,


por meio da relação conturbada do protagonista, Bianco, com o mundo:

[...] [e]n el poder de transmisión telepática, de desplazamiento de objetos, de


distorsión de la materia, de representación de lo oculto (los dibujos por
ejemplo), por parte de Bianco, puede verse una figura del escritor que,
gracias a la ilusión referencial, es capaz de construir otro mundo, tan
evocador y verosímil como el real (en la medida en que el rechazo de la
materia sería, en términos literarios, una negación del referente, del sentido,
de la historia) (PREMAT, 2002, p. 269).

É um dos temas recorrentes em Saer a possibilidade de se narrar a percepção do mundo ou o


esgotamento da experiência. Da mesma forma que o mundo apresenta um invisível escondido
nas dobras do visível, a narração está sempre aquém de revelar completamente as coisas.
Podemos, assim, perceber o primoroso trabalho descritivo de Saer ou como as coisas são
detalhadamente acompanhadas pelos olhos do observador, em suas obras. O excesso

480
PREMAT, 2002, p. 232.
481
SAER, 2000, p. 5.
482
Ibidem.
483
PREMAT, 2002, p. 178.
244

descritivo também denigre a imagem; é uma fórmula que Saer utiliza para pôr a descoberto a
impossibilidade de se revelar todos os lados das coisas. O tempo promove o movimento de
transformação das coisas, contribuindo para que não haja o congelamento da experiência em
uma mesma imagem.
Os supostos dons de Bianco – descritos na citação anterior – é que dão o tom para
a história de La ocasión, já que: “[...] [o] conflito que ordenará o romance [...] será a dúvida a
respeito da possível traição de Gina (mulher que conhece nos pampas argentinos, com quem
se casa) com o amigo de Bianco, Garay López (médico argentino e pertencente a uma família
de latifundiários)”484. Bianco interpela-se a respeito dessa dúvida e lança mão de seus
supostos poderes para decifrar o que, de fato aconteceu, entre sua mulher e seu amigo. É em
meio a muitas dúvidas que a relação com o espaço, principalmente com a lhanura, é
sublinhada:

[...] la tropilla llega a su altura y empieza a alejarse, siempre en línea recta,


hacia el punto opuesto del horizonte, y Bianco alcanza a ver la ondulación de
los lomos oscuros que restallan a causa del sudor o de la llovizna, mientras el
estruendo de sus cascos va disminuyendo, y los caballos mismos perdiendo
nitidez en el agua silenciosa que va haciéndose cada vez más densa, hasta
que el ruido deja por fin de oírse y únicamente queda la mancha oscura,
móvil y anónima, y cuando por fin se pierde más allá del horizonte,
desapareciendo del todo, revela la naturaleza insidiosa de su aparición fugaz
y problemática, de materia rugosa o de visión, y tan inasible ya para la
experiencia, que su pasaje definitivo a los manejos caprichosos e
inverificables de la memoria, no hará sino disminuir sus pretensiones de
realidad (SAER, 2003, p. 31).

Essa relação com os limites do visível retraz o problema de decifrar o horizonte


do mundo, maneira de pôr em discussão a possibilidade de se reter o dito real. A imagem dos
cavalos se movimenta na aproximação e no distanciamento; Bianco percebe uma nitidez que
se esfuma, dependendo da distância que o separa dos cavalos. Esse espaço entre a personagem
e as coisas é que propicia que algumas certezas sejam postas de lado, na medida em que as
coisas se movimentam. Essa relatividade fomenta a negação do dito real – como imagens
acabadas – ou assevera que somente em função da experiência é possível defender uma posse
do mundo. Esse esquema é discutido, iterativamente, nos romances saerianos; em Cicatrices,
um dos narradores afirma: “[...] [l]a cosa grave se me planteaba con la palabra realismo. La
palabra significaba algo: una actitud que se caracteriza por tomar en cuenta a la realidad. De
eso estaba seguro. Me faltaba, únicamente, saber qué era la realidad. O cómo era, por lo

484
MOTA, 2011, p. 29.
245

menos”485. Essa personagem é Sergio Escalante, advogado, que, vez por outra, se projeta
como escritor. Essa irrealidade das coisas fascina Saer e sua escrita está no encalço do
evanescente mundo, como vemos neste trecho de La ocasión:

[...] – es todavía más terrible que en Buenos Aires, dice Garay López, más
terrible que todo lo que usted pueda imaginar, en esos días de enero uno se
siente más abandonado, más perdido, más irreal; si en los días templados ya
la vida parece irrazonable y vacía, en los meses de verano la condición de los
hombres y de las cosas se fragiliza y todo tiende, ligeramente febril y
exhausto, a la aniquilación (SAER, 2003, p. 78).

A irrealidade do mundo sempre retorna à discussão, comprovando como Saer


privilegia o momento de experiência das personagens. O potencial é descrever o ativo
vidente-visível, demonstrando como esses dois termos estão imbricados. A condição de
irrealidade descrita, na citação anterior, refere-se, potencialmente, à impossibilidade de se
extrair o sentido da experiência. É como se a relação fosse sucumbida ao se descobrir a
impossibilidade de se alcançá-lo. O sentido que sempre se ausenta é, ainda, minorado quando
o próprio mundo oferece resistência; Bianco, em outro episódio, destaca como a irrealidade
pode se desvelar nessa relação com o mundo: “[...] [a]ntes de hacer el menor gesto, la vieja
lanza una bocanada de humo, con la pipa aferrada entre los dientes, y la nubecita grisácea se
pierde en el aire gris, no como si se dispersara en él, sino como si el aire fuese una sustancia
porosa que la hubiese absorbido inmediatamente”486.
Outro romance histórico487 que, também, privilegia essa inserção da personagem
na lhanura é Las nubes. Podemos afirmar que esse é o romance que mais descreve esse
espaço; a história pode ser resumida no movimento de travessia desse lugar árido, da llanura:
‘[...] [o] Dr. Real narra, depois de trinta anos, os sucessos e percalços de uma viagem que
fizera, em 1804, atravessando o deserto argentino, por cem léguas, com a missão de levar
alguns doentes até a casa de saúde “Las tres Acacias”488. Essa tentativa de dominar esse

485
SAER, 2003, p. 57.
486
SAER, 2003, p. 205.
487
“En el así llamado “ciclo de las novelas históricas” de Saer, se suelen agrupar las novelas El entenado (2002),
La ocasión (1988) y Las nubes (2000); tres textos que evocan momentos fundacionales en la historia argentina,
como el descubrimiento y la conquista, la Revolución de Mayo, la inmigración europea y el comienzo del
alambrado en la década de 1870” (LOGIE, 2013, p. 34).
488
MOTA, 2012, p. 87.
246

espaço é sucumbida pelos muitos percalços que sobrevêm à personagem-narradora, advindos


do próprio espaço e devido à singularidade da enfermidade dos doentes489 que conduzia:

[e]n Las nubes, una narración extremadamente precisa, lógica, referencial y


detallada, asistimos a una identificación constante entre la principal línea
argumental (el viaje de la Zona a Buenos Aires) y el relato en sí; sobre
ambos pesa la demencia: la de los personajes, la de la naturaleza arcaica, la
del doctor Real que descubre los límites de la razón (PREMAT, 2002, p.
241).

A prevalência da descrição do espaço é proposta do romance: o narrador de


segundo nível, doutor Real, busca apresentar os fatos por meio de nitidez perfeita. O próprio
nome do médico não é fortuito, apresenta o projeto saeriano de discutir o realismo, de
polemizar esse conceito. Em Las Nubes, a relação dessa personagem-narradora com o espaço
é marcada por intensa vontade de ultrapassar os limites daquilo que é percebido pelos
sentidos. O narrador se propõe a percorrer o real e a descrevê-lo, mas a impossibilidade de sua
total apreensão produz um mecanismo que lança o relato a um passado, ou faz com que o
descritivo se transforme em narração de um acontecimento. Essa postura descritiva pode,
também, esbarrar-se na monotonia do espaço, como no trecho abaixo:

[...] [e]sa monotonía adormece. Las cosas que, fuera del avanzar del jinete,
pueden ocurrir a menudo por ser propias del lugar, terminan adaptándose a
esa ilusión de repetición, y si la primera vez que suceden atraen la mirada y
aun la curiosidad del viajero, al cabo de cierto tiempo ya se han vuelto más
que familiares y flotan, fantasmáticas, más allá de la experiencia, y, por
momentos, incluso más allá del conocer (SAER, 2000, p. 79).

O narrador de Las nubes, doutor Real, discute a possibilidade de apreensão do


vivido, colocando-se como voz que intenta suplantar o horizonte dos sentidos. Esse esmero na
descrição das coisas produz uma sensação de presença ou aproxima o leitor desse espaço
narrativo muito em função do entrelaçamento de sensações que eclodem do texto, do recurso
de sinestesia, como vemos no excerto abaixo:

[a]ntes de acostarme, para desembarazarme de los efectos del aguardiente


que, por cortesía, hubiese sido impensable rechazar, salí a refrescarme un
poco en el aire de la noche. Había una luna redonda y clara que,

489
A caravana conduzia alguns enfermos, os chamados loucos, e uma das discussões de Las nubes é que « [...]
Saer deja entrever que la idea de la “normalidad” no es más que un epifenómeno del delirio, y cuestiona una vez
más la frágil consistencia de lo que llamamos “lo real” » (LOGIE, 2013, p. 25).
247

blanqueando la llanura, creaba una ilusión perfecta de continuidad entre el


cielo y la tierra; la luz abundante y pálida producía una penumbra al mismo
tiempo grisácea y brillante y las pocas cosas que, puestas en su lugar por
manos humanas — un árbol, un aljibe, los troncos horizontales, irregulares y
paralelos del corral —, interferían el espacio vacío parecían cobrar en esa
ilusión de continuidad una consistencia diferente de la habitual, igual que si
los átomos, que según el ilustre sabio griego y el meticuloso poeta latino,
maestros de mi maestro y por lo tanto míos, las componen, hubiesen perdido
cohesión, delatando el carácter contingente no únicamente de sus
propiedades, sino sobre todo de mis nociones sobre ellas y quizás de todo mi
ser. De nítidos que podían presentarse a la luz del día, bien perfilados y
constantes en el aire transparente, sus contornos se volvían inestables y
porosos, agitados por un hormigueo blancuzco que parecía poner en
evidencia la fuerza irresistible que inducía a la materia a dispersarse para irse
a mezclar, reducida a su más mínima expresión, con ese flujo impalpable y
grisáceo en el que se confundían la tierra y el cielo (SAER, 2000, p. 34).

Las nubes, como El limonero real, apresenta, de forma mais contundente, a


proposta de se discutir o realismo; o segundo, no próprio nome do romance, e, o primeiro,
quando o narrador se apresenta como um quase agente do realismo, com a proposta de
fidelidade total naquilo que relata. O contraditório é que o doutor Real narra acontecimentos
vividos, trinta anos atrás, e uma experiência de um grupo de pessoas. É o retorno da discussão
a respeito da possibilidade de se narrar a experiência, os fatos passados. Nos dois romances −
que se esmeram em discutir o realismo –, observa-se abertura maior para a relação com o
espaço vivido. Em Las nubes, o espaço da lhanura é privilegiado pelo fato de a caravana do
doutor Real ter por objetivo central a travessia desse lugar. As minúcias descritivas revelam a
relação vidente-visível ou os caminhos da percepção, as vertentes da relação com o espaço;
como afirma Collot: « [...] [c]ar le paysage n’est pas un lieu commun, mais un lieu d’échange
où se rencontrent et se confrontent différents points de vue »490. A estratégia saeriana é revelar
esses caminhos do olhar, condicionada pela decifração da linguagem, pelo dizer do texto.
Dois ruídos se expandem na percepção: quando da visão das coisas – dada a
infinidade de nuanças – e quando da expressão dessa experiência. As descrições saerianas
encenam esses obstáculos por meio da prodigalidade dos caminhos do olhar. É como se a
verdade da experiência estivesse nos múltiplos caminhos encenados, como uma força que
sustenta a própria relação do homem com o mundo. O espaço saeriano apresenta-se nessa
persistência de explorar a experiência em suas minúcias, de mostrar os nós que prendem o
vidente e o visível. A lhanura é um espaço privilegiado, porque apresenta uma solitude, um
lugar escampado que, assim, sublinha a própria relação de interdependência entre o vidente e

490
COLLOT, 2005, p. 441: “[...] [p]orque a paisagem não é um lugar comum, mas um lugar de trocas onde se
encontram e se confrontam diferentes pontos de vista” (Tradução nossa).
248

o visível. Esses lugares vazios, pouco povoados, dão margem para que a proposta de relação
se emancipe sobre a própria descrição dos elementos da experiência. O próximo espaço que
exploramos é o rio, esse lugar que está contíguo à lhanura e que, muitas vezes, se oferece
como espelho do deserto. É outro espaço quase vazio de elementos e sinuosidades, mas que,
justamente por isso, retém o espectador estreitamente a si. A relação ultrapassa a exploração
dos elementos e se perfaz pelo afã de alcançar um sentido que se esconde além das coisas.

5.2 O RIO: O PROSSEGUIMENTO EM DIREÇÃO AO HORIZONTE DO MUNDO

O rio é um lugar que se estende à lhanura, como prosseguimento desse espaço, e


que se interpõe entre ela e o horizonte, sendo esse último o espaço de investigação do sentido
que se perde no infinito das coisas. El río sin orillas (1994) é exemplo da importância do rio
em Saer, quando esse lugar se apresenta como metáfora da própria escritura, como
defendemos no primeiro capítulo desta tese. A falta de limites desse rio demonstra sua relação
de proximidade com os limites da própria ficção ou com o conceito de ficção de Saer. A
extensão do rio sobrepassa, muitas vezes, os limites do ver e se assemelha, então, às sensações
provocadas pela lhanura, como vemos neste trecho:

[a]sí que me instalé en la saliente reducida y me puse a contemplar el río, la


superficie lisa, sin una sola arruga, y, como decía hace un momento, incolora
y vacía; no se veía, en toda esa planicie, un solo barco, una sola vela, una
canoa, una isla, nada, ninguna otra cosa aparte de agua y cielo, a guisa,
como diría el padre Cattáneo, de un vastísimo mar. Un calificativo frecuente
para designarlo, forjado o quizás solo inmortalizado por el escritor Eduardo
Mallea, y que se impone de inmediato a la mente, es el de inmóvil (SAER,
1994, p. 30).

Esse trecho é da introdução de El río sin orillas, ambiente em que Saer defende as
prerrogativas do livro que escreve. Essa falta de movimento do rio condiciona o autor a
procurar imagens que expressem a sua experiência. O rio se apresenta imóvel, regular,
desprovido de sinuosidades aparentes; essa visão provoca o narrador a ultrapassar os limites
do visível, a alcançar aquilo que o horizonte esconde. Mais uma vez, a regularidade é o
combustível que aguça o vidente e que sustenta a investigação do sentido bruto das coisas.
Retomamos, agora, El limonero real, porque esse romance desenha imagens
riquíssimas do rio. A experiência de Wenceslao, quando criança, navegando com seu pai,
retrata um encontro de descobertas e receios entre o menino e o rio. A escuridão e a névoa,
249

que acompanham a viagem, no alvorecer do dia, produziam sentimentos de descoberta e


medo, daquilo que se escondia nas capas do visível. A tentativa de tudo descrever é minada
pela própria indefinição das coisas, no movimento de se mostrar e de se ocultar, devido às
camadas de névoa e de escuridão, como vemos abaixo:

[l]a canoa se ha deslizado el último tramo sin necesidad de los remos, uno de
los cuales yace en el fondo de madera. La canoa toca la costa. La niebla
rodea todo, compacta, húmeda y blanca, y ellos dos y la canoa son lo único
que se ve. No se ve ni el agua, como si la canoa y sus dos ocupantes,
sentados uno frente al otro, constituyesen el único centro móvil y corpóreo
flotando indeciso en la nada (SAER, 2002, p.14).

Essa imagem do movimento da canoa em meio à névoa denota a quase ausência do rio, como
“um nada” que se estende abaixo das personagens: “[...] y mira con ansiedad la cara de su
padre para encontrar en ella la explicación de esa niebla blanca que ha borrado lo que ellos
conocían hasta media hora antes como "el río" y "la isla", pero el padre no ve la mirada de
Wenceslao”491. Como defendemos anteriormente, é essa ausência de visibilidade que provoca
e estende essa relação de maior proximidade com o sentido bruto ou com aquilo que se
estende além das coisas.
Essa recordação de infância apresenta-se como uma dobra do próprio presente; ela
prossegue a descrição dos movimentos de Wenceslao na chamada ilha onde vive. Discutimos
a centralidade das recordações na narrativa saeriana no capítulo anterior, mas é interessante
frisar este gesto saeriano: diferentemente da rememoração, que advém de um querer retomar o
passado, a recordação invade a narrativa de primeiro nível. Não há ruptura na trama, mas um
prosseguimento, devido ao manejo primoroso da descrição espacial. A diferença temporal é
sentida posteriormente, porque as analepses saerianas costuram-se perfeitamente à narrativa
primeira.
Em outro episódio de travessia do rio, percebemos que esse mesmo deslizar-se
sobre uma superfície que quase não apresenta saliência, contribui para a sensação de
monotonia que acompanha a viagem. Esse sentimento é equivalente a aquele experimentado
ao se embrenhar pela lhanura, como vemos abaixo:

[e]staba parado en el centro de la canoa y hundía la pala del remo en el


fondo del río para acabar de alcanzar la orilla. La superficie del río estaba tan
quieta que, al deslizarse, la canoa amarilla dejaba una especie de huella, una
estela de surcos paralelos que apenas si se ensanchaba y que no terminaba
nunca de borrarse. Hasta la sombra ladeada del tripulante parecía dejar

491
SAER, 2002, p.14.
250

huella. El Ladeado parpadeaba de un modo continuo debido a los efectos del


sol, parpadeaba con un ritmo furioso, se abandonaba al parpadeo para no
distraerse de su controversia. Al hundir en el agua la pala del remo, presionar
con ella en el lecho barroso del río y darle envión, sacando después el remo,
el Ladeado efectuaba una serie de movimientos con el cuerpo, movimientos
a los que la costumbre había terminado por otorgarles una armonía propia.
En esa armonía, el esfuerzo constante por mantener el equilibrio no producía
ninguna disonancia (SAER, 2002, p. 20).

A sincronia dos movimentos ou a ausência deles favorece que os sentidos se enganem e que
se “veja” tudo como uma única e mesma coisa. É aquilo que discutimos anteriormente: esses
espaços da monotonia conduzem o olhar para o sentido bruto das coisas, no projeto de
decifração do pertencimento ao mundo.
O interior do rio apresenta essa regularidade; por outro lado, as suas margens
desvelam singularidades no encontro das águas com a praia; como vemos neste trecho:

[e]n la orilla el río tenía algo de vida. La rama del sauce bajo el cual
permanecía la canoa verde del tío Layo tocaba la superficie del agua y
producía unas arrugas fugaces en la superficie. La sombra del sauce
oscurecía el agua; y al chocar contra el costado de la canoa verde del tío La-
yo la corriente imperceptible se podía percibir en las ondas crespas,
delgadas, que se formaban contra la canoa y se iban alejando de ella como
repetidas y haciéndose cada vez más lisas a medida que se alejaban (SAER,
2002, p. 21).

É interessante relembrar que Saer intitula um de seus livros – citado no início desta seção – de
El río sin orillas, uma forma de destacar a regularidade das coisas ou a falta de limites, de
fronteiras. Nesse livro, o cerne da questão é a relação entre discursos, uma estratégia para
polemizar os limites entre os gêneros ou a proximidade entre os chamados textos ficcionais e
não-ficcionais. Na última citação acima – de El limonero real – a importância é alocada na
pluralidade de coisas que se apresentam no espaço de fronteira. É como se a vida estivesse
restrita a esse local; a variedade de coisas diminui, na medida em que se avança para o interior
do rio.
O rio, como esse espaço da experiência, encadeia sensações múltiplas, tornando-
se, muitas vezes, invisível, regular, e fazendo com que as recordações possam preencher o
espaço da narrativa. Outras vezes, essa invisibilidade do rio acentua as coisas que margeiam
esse espaço: “[...] [s]e queda largo rato indeciso en el hueco de la puerta mirando el sendero
de arena que baja hacia el río invisible. La lluvia endurece la arena, la vuelve férrea y
251

llameante”492. O entrechocar-se de descrição e narração representa uma das estruturas que


compõem o texto saeriano, bem como as permutas entre percepção e recordação. Os romances
saerianos priorizam, na narrativa primeira, as descrições, enquanto o desenvolvimento da
trama se costura, quase que completamente, por meio das recordações; como defendemos no
caso de La ocasión: “[...] [a]s descrições tornam-se elemento crucial na engrenagem dos
deslocamentos da história: elas sinalizam o tempo presente de Bianco (ou a narrativa
primeira). Ao contrário disso, as digressões trazem o movimento do acontecimento ou as
cenas propriamente ditas”493.
A sensação de espelhamento é bem consolidada na saga saeriana; as águas se
juntam e reproduzem as imagens das outras coisas. No caso do rio, essa sensação é gerada
pela própria horizontalidade das águas: uma superfície regular que não apresenta ondas.
Podemos estender essas imagens de espelhamento às águas acumuladas nas tempestades
saerianas. Nos seus romances que não abordam o rio, geralmente, a chuva torrencial faz parte
do desenlace ou do acirramento da trama. Temos, como exemplo, os dois romances históricos
que priorizam a descrição da lhanura – La Ocasión e Las nubes –, que se encerram com uma
tempestade.
Falarmos do rio em Saer é, então, tratarmos de um “río sin orillas”; a importância
das águas, na saga saeriana, é que elas se estendem ao horizonte, produzem, também, capas de
invisibilidade por meio dos chuviscos e espelham o desenho das coisas ou a sua própria
simetria. Os espelhamentos funcionam, também, como uma projeção da visão das águas nas
coisas, como neste trecho de El limonero real:

[e]l sol subirá y subirá hasta el mediodía para caer vertical buscando el
centro de las cosas, borrando durante una fracción de segundo las sombras, y
después empezará a declinar no sin antes llevar por el aire la imagen turbia y
ondulante de ríos y esteros y creando en el camino de asfalto que lleva a la
ciudad espejismos de agua (SAER, 2002, p. 32).

O rio como interposto ao encontro com o horizonte pode ser exemplificado, também, por
meio do romance Cicatrices: [...] [d]espués entro en la costanera nueva, y a mi derecha se
expande el río gris, fundiéndose, más ancho, con el cielo, en el horizonte. Cielo y río parecen
la misma superficie, sin ninguna transición”494.

492
SAER, 2002, p. 27.
493
MOTA, 2011, p. 35.
494
SAER, 2003, p. 117.
252

Em La ocasión, os chuviscos, além de provocarem a invisibilidade do mundo,


impelem as coisas a se aderirem umas às outras e à própria personagem. São as imagens de
fração duvidosa ou de nitidez acentuada que perturbam a percepção ou a noção de real, como
percebemos neste trecho desse romance:

[e]l hombre y los caballos, encastrados en la llovizna, bien nítidos a causa de


los destellos húmedos y grises, tienen sin embargo algo de fantasmáticos en
el campo liso y vacío y tan idéntico a sí mismo en todas sus partes, que a
pesar del trote rápido, ellos parecen estar realizando una parodia de
cabalgata en el centro exacto del mismo espacio circular (SAER, 2003, p.
32).

A tempestade chega, no desfecho de La ocasión, como anúncio de um novo ciclo


de vida; antecedendo o nascimento do “filho” de Bianco e os negócios firmados com o irmão
de Garay, o herdeiro da família; acentua-se, então, a circularidade da história:

[y] a la mañana siguiente, parado en la puerta del rancho, envuelto en un


saco de lana, Bianco contempla la lluvia intensa que desde el mediodía de la
víspera no ha dejado de caer un solo instante. Los relámpagos y los truenos
se han hecho más discretos, más remotos, más espaciados. Una luz verdosa,
que no es ni penumbra ni claridad, se extiende en pliegues cada vez más
apelmazados a medida que se alejan en el espacio, y no hay cielo, ni tierra,
ni horizontes, ni nada, únicamente ese medio verdoso y uniforme en el que el
rancho parece flotar o estar depositado, igual que en el fondo de una pecera
(SAER, 2003, p. 212).

O desenlace de Las nubes também se dá após a tempestade que desaba sobre o


comboio conduzido pelo doutor Real. O comboio, na verdade, é salvo pelas águas, porque,
circundado pelo incêndio que carcomia a lhanura, a lagoa e a tempestade impedem que o fogo
alcance os andantes. Primeiramente, tem-se o abrigo na lagoa e, depois, a chuva restaura a
temperatura da lhanura, consumida pelo fogo; como vemos no trecho a seguir:

[e]ra difícil calcular la anchura de ese muro de fuego; lo cierto es que el


incendio costeó la laguna y siguió extendiéndose hacia el norte, así que en
un determinado momento la superficie oval de la laguna, con nosotros
adentro, los caballos que un grupo de soldados trataban a duras penas de
retener, y que sólo lo lograron porque los habían maneado y atado entre
varios, los perros que se hartaron de ladrar y los animales salvajes que por
nada del mundo querían alejarse del agua, los pájaros que revoloteaban por
el aire rojizo, ese espejo acuático que habíamos visto tan apacible y liso al
atardecer, parecía una pesadilla oval pintada por un artista demente, y
engarzada en un marco de llamas (SAER, 2000, p. 105).
253

A tempestade possibilita que a caravana retome a marcha, porque a chamada


tormenta de Santa Rosa esfria o solo que circunda a lagoa. Essa dupla presença das águas
como refúgio é descrita de forma primorosa no trecho anterior e no que se segue:

[l]a lluvia densa que cayó un día entero, atravesada de relámpagos


aterradores que fueron para nosotros un nuevo motivo de pavor, no
únicamente apagó los rescoldos y enfrió la tierra, sino que incluso restauró el
invierno que habíamos perdido al promediar nuestro viaje, topándonos con
ese verano indebido que trastocó el orden natural de las estaciones. Ahora sí,
con el invierno vuelto a su lugar, se podía esperar la primavera. Durante dos
o tres días viajamos lentos por una tierra negra, muerta, cenicienta, que una
llovizna helada penetraba y volvía chirle, en un amasijo de pasto
carbonizado, barro y ceniza. El cielo era igual de negro que la tierra y el
agua que caía sin descanso, gris y glacial. Galopábamos exhaustos,
reconcentrados, ateridos y lerdos, un poco irreales, habiendo casi olvidado,
después de tantas vicisitudes, la razón de nuestro viaje (SAER, 2000, p.
105).

Não podemos ficar alheios ao “efeito de real” 495


ensejado pelo primoroso
trabalho descritivo dos trechos supracitados. O doutor Real desvela sua proposta de escrita
das memórias sinalizando − desde o início − como pretende retrazer os acontecimentos
vividos, pelo comboio, nesse atravessar a lhanura. A riqueza de detalhes contradiz o próprio
narrador, que se apressa em justificar como pôde, em meio ao turbilhão de vicissitudes, fixar-
se nos detalhes da natureza; é singular a sua explicação, neste trecho:

[s]i alguien puede pensar que la circunstancia que atravesábamos podía


darme tiempo para admirar el atardecer, se equivoca, ya que fue en medio
del ajetreo general, durante el cual cada uno, aparte de los enfermos, tenía
algo que hacer, que esa belleza indiferente y sobrehumana del crepúsculo se
fue formando, alcanzó la perfección, y naufragó en la noche (SAER, 2000, p.
101).

Essa preocupação com a verossimilhança é registrada com esmero: as descrições


são lançadas em sincronia com a narração da história. Ao contrário de outros romances, que
costuram o ir e vir, entre percepção e recordação, Las nubes fixa-se no plano de levar a cabo a
trama. As analepses se fazem presentes, quase que exclusivamente, no início da história,
quando da apresentação dos enfermos. A travessia da lhanura é narrada na conjunção entre o
primor descritivo e o movimento de encadeação dos acontecimentos. A partir disso,

495
BARTHES, 1984, p. 131.
254

percebemos como esse romance privilegia a condução da trama e a riqueza dos detalhes
daquilo que é narrado como proposta da própria história.
Em Cicatrices, o rio margeia o espaço da história, sem se mostrar; as personagens
sentem a sua presença e continuam a sua marcha pela cidade ou pelo campo. Ángel – o
primeiro narrador – dita um encontro quase mudo com o rio; aquilo que é visto não é descrito,
há apenas o gesto de aproximação da personagem: “[…] [c]uando dejaba el diario me daba
unas vueltas por el centro o me iba a ver el río, y si no tenía plata para comer algo volvía a
casa alrededor de las diez y media — hora en que seguro mi madre ya no estaba”496. Sergio
Escalante – o segundo narrador – vê um pouco além, percebe as sinuosidades que o rio
apresenta: “[…] [h]acia el otro lado estaban el puerto, con sus dos diques, paralelos uno al
otro, y más allá el río y todos los riachos que lo entrecruzaban, formando islas bajas en el
medio. La llovizna borraba el horizonte”497. Essa estratégia descritiva é intensificada na
narração do juiz Ernesto López Caray, quando o rio margeia suas andanças pela cidade: “[...]
veo por momentos la refulgencia argéntea del río, en cuya superficie el resplandor gris
pareciera alisar las asperezas que producen la brisa levísima y la llovizna”498. Quando da
aparição do último narrador, o rio apenas margeia o seu percurso: “[...] [a]vanzamos en
dirección contraria al río, hacia la izquierda de los eucaliptus. Ella y la nena vienen detrás.
Puedo sentir el chasquido de sus zapatos contra los pastos”499.
É interessante percebermos como o rio se faz presente na relação espacial das
personagens; mesmo quando não é tocado pelo ver; as outras sensações se incubem de tateá-
lo. Um romance como Cicatrices, no qual a trama se constrói, prioritariamente, no ambiente
da cidade, o rio também pertencente a esse espaço, adentra a história. As personagens
narradoras, embrenhadas num frenético esquema temporal, vez por outra escapam e percebem
o espaço que as rodeia. Nesse gesto de Saer, percebemos a singularidade da imagem do rio
para a saga saeriana: um lugar em que é possível evadir-se do movimento frenético temporal e
compreender, mais pausadamente, a relação do vidente com o visível. É no encalço de revelar
o sentido das coisas que a personagem se fixa no horizonte do mundo. O objetivo é descrever
essa relação, expor os fios de contato que prendem o vidente no visível; como Barbaras
defende:

496
SAER, 2003, p. 10.
497
Ibidem, p. 80.
498
Ibidem, p. 117.
499
SAER, 2003, p. 142.
255

[...] [l]’absence d’extériorité entre la vision et le monde doit donc être saisie
selon toutes ses implications : puisque la vision ne se distingue pas du
monde, le monde ne s’en distingue pas non plus ; l’incarnation, qui fonde
l’identité de la vision au monde, signifie tout autant l’identité du monde à la
chair (BARBARAS, 1991, p. 186)500.

Identificamos, nessas descrições espaciais de Saer, a relação de copertencimento


de personagem e mundo. A personagem sente que integra um circuito bem articulado e,
assim, tenta extrair o sentido dessa relação. Em outros romances – como em La ocasión e Las
nubes –, a chuva é responsável pelo término de um ciclo da história. É a possibilidade de
recomeço, de se instaurar um novo rumo em que a personagem possa ter maior controle sobre
sua relação com o mundo. Em La ocasión, o rio também está presente como uma porta de
entrada para os imigrantes que chegavam para povoar a lhanura, como evidencia este trecho
do romance:

[l]a tierra sin relieves a ras del agua, sin una sola roca, penetrando en el gran
río marrón que prolongaba el mar, la costa desierta, el caserío insignificante,
y, en los puentes inferiores, los inmigrantes arracimados entre bultos
harapientos contemplando como hechizados el borde de lo desconocido,
tratando de adivinar lo que podía haber detrás, con la esperanza de encontrar
todo lo que él, Bianco, yéndolos a buscar a los campos de Piamonte, de
Sicilia o de Calabria, les había prometido, hasta convencerlos de embarcarse,
en una promiscuidad indecible, en tercera clase e incluso en las bodegas,
mientras él viajaba en el puente superior, en un camarote especialmente
preparado, contiguo al del capitán (SAER, 2003, p. 27).

A história, então, se abre e se fecha com as águas: o rio recebe a leva de imigrantes e a chuva
é a consolidação dos projetos, marca o início da integração do imigrante com a nova terra.
O rio está, também, presente em La pesquisa; mais precisamente, na narrativa de
Pichón Garay, aquele que se autonomeia o narrador da história principal: o assassinato das
anciãs em Paris. O rio aparece quando essa personagem se dirige para inspecionar o
manuscrito encontrado nos papéis do defunto Washington Noriega. A passagem pela casa de
sua família, em uma lancha, é o momento de recordação do irmão desaparecido. As águas do
rio são o lugar de procura pelo sentido das coisas, como vemos neste trecho:

500
Tradução nossa: “[...] [a] falta de exterioridade entre a visão e o mundo deve, então, ser compreendida segundo
todas suas implicações: já que a visão não se distingue do mundo, da mesma forma o mundo não se distingue
dela; a encarnação, que funda a identidade da visão no mundo, significa, também, a identidade do mundo na
carne”.
256

[a]penas si ha estado menos caluroso en el medio del río que en las orillas,
pero el desplazamiento de la lancha y la sombra del toldo a rayas gruesas
verdes y blancas, les han permitido aprovechar un vientito fresco. El agua, a
causa del sol que ha estado subiendo, ha cabrilleado en las orillas y todo
alrededor de la lancha que, al internarse en los riachos más estrechos, y al
formar la estela que se desplegaba en ángulos cada vez más abiertos y en
ondas sucesivas, ha ido sacudiendo las plantas acumuladas en las orillas,
helechitos acuáticos, juncos, camalotes y totoras, que forman una transición
inestable y enmarañada, líquida y sólida a la vez, entre la tierra firme y el
agua. Como la distancia entre la ciudad y Rincón Norte no es demasiado
grande, han navegado despacio y dando rodeos por islas y riachos, para no
llegar antes de la hora fijada – las dos y media – con la hija de Washington.
No han podido ver, en todo el cielo, hasta el horizonte visible, ni una sola
nube, ninguna otra presencia aparte del sol árido, centelleante, rodeado de
astillas y manchas en fusión, como si hubiese estado chorreando materia
ígnea a lo largo de su desplazamiento (SAER, 1997, p. 34).

A exuberância na descrição do rio se estende até ao horizonte; as águas são margeadas pelas
árvores que sombreiam a passagem da lancha. O rio é, então, desbravado pela personagem, de
forma que seus limites são descobertos, bem como as sinuosidades de seus braços. Esse
momento de reflexão, que é propiciado pela imagem regular do rio, de encontro com as
particularidades das coisas, encadeia uma profusão de recordações. As minuciosas descrições
retrazem o passado da personagem: Pichón percorre os fios do presente que o conduzem ao
encontro com os anos vividos nas proximidades desse mesmo rio.
É interessante um símile desenvolvido pelo enigmático narrador de La pesquisa,
quando tenta compreender a longevidade das anciãs de Paris. O rio é trazido como forma de
explicação da força inexplicável que preservava a vida das mulheres francesas; como vemos
neste trecho:

[c]omo premio quizás por el trabajo de preservar y aun de multiplicar


hombre y mundo en la red de sus entrañas tan deseadas, o por pura
casualidad, a causa de un ordenamiento aleatorio de tejidos, de sangre y de
cartílagos, les ha sido dado a muchas de ellas persistir un poco más que los
otros, en las márgenes del tiempo, igual que esos remansos en los ríos en los
que el agua parece detenida y lisa, debido a una fuerza invisible que frena la
corriente horizontal, pero tira inexorable y vertical hacia el fondo (SAER,
1997, p. 4).

O rio é, então, trazido como uma imagem, e o seu sentido sobrepassa à sua acepção de
espaço; ele se descobre como engrenagem entre as coisas, algo que escapa a um olhar rasteiro.
É lindíssimo esse desenho matemático do rio como uma força perpendicular que mantém o
plano em direção ao horizonte, sustentada por uma verticalidade insondável.
257

A importância da citação anterior está em desvendar outra faceta do rio, em Saer,


ou descobrir a sua importância como paisagem, como uma força que revela e ativa o sentido
bruto das coisas. Verticalmente, as águas revelam uma coesão que fascina as personagens
saerianas, a própria horizontalidade que some no infinito é sustentada por essa força que se
aprofunda no interior das águas. Esse olhar, focado naquilo que se esconde no vertical, não é
explorado, correntemente, nos romances de Saer, mas, a partir da citação anterior, percebemos
de outra maneira o fascínio das personagens pela lisura do rio. O interesse das personagens
não se fixa, apenas, nessa horizontalidade que escapa em direção ao horizonte, mas naquilo
que sustenta essa própria dimensão do olhar, como bem atesta este trecho:

[y]a iban por un verdadero río, ancho, hondo y correntoso, a pesar de su


superficie lisa – debido al tiempo y a la hora – y casi coagulada, semejante a
un bloque de gelatina en el que la proa afilada de la lancha fue abriendo un
surco que se ensanchaba en la popa y en el que las masas de agua excavada
tenían la consistencia, el color y la textura de vetas rugosas y, por los
borbotones blancos que se formaban en la superficie, hirvientes de caramelo
(SAER, 1997, p. 44).

Em La pesquisa, percebemos o interesse em sublinhar aquilo que se esconde no interior das


águas. O olhar percorre a textura, a cor, e inventaria aquilo que sustenta essa superfície lisa.
Esse infindável mundo desconhecido provoca recordações que, de alguma forma, buscam
explicar essas incógnitas.
O rio é uma das importantes imagens dos romances de Saer, é o espaço no qual a
personagem se vê partícipe do mundo. Percebemos, nessa relação, o conceito
merleaupontyano de vidente-visível ou a reflexividade de um no outro, como esse filósofo
afirma:

[...] sabemos que, sendo a visão palpação pelo olhar, é preciso que também
ela se inscreva na ordem do ser que nos desvela, é preciso que aquele que
olha não seja, ele próprio, estranho ao mundo que olha. Uma vez que vejo, é
preciso (como tão bem indica o duplo sentido da palavra) que a visão seja
redobrada por uma visão complementar ou por outra visão: eu mesmo visto
de fora, tal como se outro me visse, instalado no meio do visível, no ato de
considerá-lo de certo lugar (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 131).

A importância do rio está no alavancar de uma estrutura espacial na qual homem e


mundo são contraídos: a personagem não apenas vê o rio, mas, também, se vê nele. As
emblemáticas imagens saerianas, como a do rio, manifestam esse quiasma, no qual o vidente
se vê imiscuir-se na paisagem. Uma busca por decifração se transforma em uma estrutura de
258

copertencimento entre aquele que busca o sentido bruto das coisas e o próprio mundo que o
integra.
O rio é, então, esse lugar em que o horizonte se torna nítido – mais próximo –, se
estende em direção à personagem por esse caminho de águas. É no horizonte que a
personagem busca o sentido encoberto das coisas e, em contrapartida, se percebe como
integrada ao espaço:

[a] diferencia de la primera vez, me acerqué al río en el atardecer, y de nuevo


tuve la sensación de estar, no en la orilla, sino en el interior de un inmenso
círculo de agua. La superficie incolora de la primera vez se había
transformado en una sustancia pesada y llena de accidentes, en la que la
tonalidad beige amarillenta, casi dorada, combinándose con el reflejo entre
rosa y violeta del cielo, le daba a la enorme masa líquida una apariencia
tornasolada, inestable, donde ningún matiz predominaba mucho tiempo.
(SAER, 1994, p. 40).

Encerramos esta seção com essa explanação sobre o tema do rio, com essa
belíssima imagem saeriana de El río sin orillas, livro que tem por objetivo decifrar esse
espaço. Percebemos como a personagem se sente integrada ao rio e, a partir disso, enceta ver
e sentir sua textura e cor. O processo de percepção das personagens, nesse encontro com o rio,
revela-se, então, como um pensamento espacial bem articulado por Saer. O sentido é, então,
mitigado pela força dessa estrutura, porque “[...] é próprio do visível, dizíamos, ser a
superfície de uma profundidade inesgotável”501.

5.3 AS NUVENS: CONTRAPONTO OU PARALELISMO DA LHANURA E DO RIO

Qual seria a importância de falarmos sobre as nuvens em um capítulo sobre o


espaço? Seria esse um espaço explorado como a lhanura e o rio, nos romances saerianos?
Essas perguntas podem ser articuladas devido ao fato de, a princípio, parecer um pouco
incomum essa abordagem. As nuvens pouco aparecem nos romances saerianos e não podem
ser consideradas um espaço da experiência, mas, por outro lado, revelam-se contraponto ao
espaço da lhanura e ao do rio. A sua importância é, então, proporcionar uma delimitação mais
ampla às nuanças da experiência das personagens; ou seja: as nuvens recobrem e possibilitam
que as personagens se sintam mais integradas ao espaço da experiência. Essa questão é
desenvolvida por meio do conceito de monotonia: sentimento que invade a personagem,

501
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 139.
259

devido ao enclausuramento entre terra e céu. No desenvolvimento deste capítulo, um dos


romances que mencionamos foi Las nubes, que, pelo seu título, encabeça a última parte desta
discussão. Afirmamos que Las nubes privilegia a relação das personagens com a lhanura:
espaço que é percorrido pela caravana do doutor Real. O título do romance é bem enigmático,
já que podemos questionar: o que seriam essas nuvens no romance? Essa é uma das questões
que orienta esta discussão ou que revela a importância do desvendamento desse espaço em
Saer.
O manuscrito da história – escrita e narrada pelo doutor Real – é encontrado e
enviado a Pichón Garay, para análise literária. Marcelo Soldi é quem lhe envia o disquete
contendo a história digitalizada e intitulada por ele, com o segundo argumento: “[...] [y] por
último: "El manuscrito que me dio la anciana no tiene título, pero si entendí bien ciertos
pasajes, creo que a su autor no le parecería inadecuado que le pusiéramos las nubes".502 O
título deriva-se, então, da interpretação de leitura de Soldi e o mais interessante: algo
defendido como muito lógico e próprio à história relatada. Lendo conjuntamente com Pichón
Garay – a história de segundo nível se abre no momento em que Pichón começa sua leitura –,
não percebemos essa apontada relação direta do título com o conteúdo. Pode ser que se refira
às chuvas que caem na abertura e no desfecho da história: posição que não é satisfatória para a
defesa do argumento de Soldi. Esse é um dos entraves para o desvendamento dessa imagem
que aparece em alguns romances saerianos, mas, deixemos de lado, por enquanto, essa
questão.
Las nubes é, então, um romance que privilegia a relação com o espaço da lhanura
e é nesses momentos que a abóboda celeste se interpõe como um novo limite de percepção
das coisas, como se comprova neste trecho:

[d]e nítidos que podían presentarse a la luz del día, bien perfilados y
constantes en el aire transparente, sus contornos se volvían inestables y
porosos, agitados por un hormigueo blancuzco que parecía poner en
evidencia la fuerza irresistible que inducía a la materia a dispersarse para irse
a mezclar, reducida a su más mínima expresión, con ese flujo impalpable y
grisáceo en el que se confundían la tierra y el cielo (SAER, 2000, p. 34).

As nuvens – ou o próprio céu – complementam o desenho do horizonte,


projetando a ideia de infinitude. Antes de prosseguirmos, uma explicação é necessária: por
meio do tema das nuvens, percorremos, aqui, o céu e a névoa. As nuvens representam – como

502
SAER, 2000, p. 7.
260

anuncia o título desta parte – o céu ou o contraste da horizontalidade da lhanura e do rio. Uma
das propriedades das nuvens é o encobrimento das coisas; por isso, a névoa é tratada como
uma de suas progressões. Retomando a citação anterior, Saer enfatiza, também, descrições
minuciosas do céu, como as progressões da luminosidade do sol nas nuvens. O céu aparece,
então, como esse paralelismo da lhanura e do rio e como forma de maior progressão da
imagem do horizonte.
Prosseguindo a teoria de que o título do romance é posto em função das nuvens
que trazem as chuvas, as que antecedem a travessia do deserto e as que possibilitam que as
personagens alcancem as “Tres Acácias” – o hospital ou a casa de saúde –, temos a descrição
da formação das primeiras chuvas nestes termos:

[e]l que no ha visto como yo en un anochecer lluvioso de invierno una de


esas ciudades perdidas de la llanura, cuando las primeras luces vacilantes
comienzan a encenderse, y todo lo visible se iguala enterrado bajo la doble
capa de la noche y de la intemperie, quizás cree haberla experimentado
alguna vez, pero no conoce de verdad la tristeza. Acorralados por la
inundación como estábamos, también la prisión del mundo, reforzada por
ese cerco de agua, férrea, se duplicaba (SAER, 2000, p. 59).

As primeiras chuvas atrasam a viagem de partida e ensejam imagens belíssimas


entre o céu e a lhanura. Na verdade, um dos potenciais espaciais de Las nubes é a reunião da
lhanura, do rio e das nuvens em uma mesma imagem. Na citação anterior, essa imagem traz
um sentimento de prisão, devido à expansão das águas, porque a lhanura se encontrava
inundada e a chuva não cessava de cair sobre as muitas águas. Não se conseguia distinguir
outra coisa, a não ser as águas; a personagem sente-se aprisionada pela manifestação do todo
como uma coisa única que a enclausura.
As nuvens, que trazem as chuvas − quando as personagens se encontravam
encurraladas no árido deserto e, depois, cercadas pelo fogo, no meio da pequena lagoa −, são
descritas de maneira primorosa pelo doutor Real, como neste excerto:

[p]or fin, una tarde, las nubes empezaron a llegar. Como era temprano
todavía, las primeras eran grandes y muy blancas, con los bordes festoneados
en ondas, y cuando pasaban demasiado bajas, su propia sombra las oscurecía
en la cara inferior, visible desde la tierra. Teníamos la esperanza de verlas
ennegrecerse y, partiendo desde el horizonte en una masa gris pizarra
interminable, cubrir al poco rato el cielo entero y derramarse en lluvia. Pero
durante dos días, deshilachadas y mudas, desfilaban en el cielo, viniendo
como creo haberlo dicho desde el sudeste, y desaparecían detrás de nosotros,
en algún punto a nuestras espaldas de un horizonte ya recorrido (SAER,
2000, p. 99).
261

Nessa belíssima imagem, percebemos a chegada das nuvens que cobrem o céu,
esperança de chuva para alívio do calor intenso que se propagava no deserto. A relação das
nuvens com o rio é lembrada pela palavra “onda”, o paralelismo entre o céu e o rio é uma
forma de combater o calor que se exala; podemos dizer que se exala até do texto, tendo em
vista essas minuciosas descrições do doutor Real. As nuvens, porém, apresentam-se mudas,
caladas, porque recobrem o comboio e, em seguida, se escondem, sem se transformarem em
chuva. É somente após o incêndio que elas retornam, esfriando o caminho para o
prosseguimento da travessia da lhanura.
As nuvens que recobrem o céu produzem outro sentimento nas personagens: a
perda de referência de movimento ou a monotonia: “[…] cuando desvié la mirada del caballo
y la posé en el agua celeste, en los pastos grisáceos, viendo la cápsula azul que se cerraba
apoyándose en la línea del horizonte, con nosotros adentro, me di cuenta de que, en ese
mundo nuevo que estaba naciendo ante mis ojos”503. A personagem sente-se presa entre o céu
e a lhanura; o excesso do nada faz com que a personagem perca suas referências de sentido. A
monotonia a invade, quando se perde a certeza de que, efetivamente, se movimenta, como
neste trecho:

[a]penas despuntaba el alba, el aire de un rosa azulado parecía


inmovilizarnos en el interior de una semipenumbra glacial, sensación que
contribuía a acrecentar la monotonía adormecedora del paisaje, pero el sol ya
alto lo volvía cristalino, y todo era preciso, brillante y un poco irreal hasta el
horizonte que, por mucho que galopáramos, parecía siempre el mismo, fijo
en el mismo lugar, ese horizonte que tantos consideran como el paradigma
de lo exterior, y no es más que una ilusión cambiante de nuestros sentidos
(SAER, 2000, p. 30).

O enclausuramento da personagem e a repetição das coisas provocam essa ilusão de repouso


ou esvaziamento da percepção de movimento. Esse sentimento é provocado pela projeção das
duas paralelas – a lhanura e o rio – com a abóboda celeste. O doutor Real chega a afirmar que,
às vezes, sentia que tinha alcançado o centro do universo, devido à formação de um horizonte
infinito, em todas as direções do seu olhar.
Retomando a discussão a respeito do título Las nubes, temos que, além dessa
hipótese de as nuvens se referirem às chuvas, temos a de uma possível intertextualidade

503
SAER, 2000, p.82.
262

bíblica. Essa travessia do deserto pode se referir ao “êxodo”504 do povo hebreu pelo deserto,
em busca de Canãa, a terra prometida. Uma nuvem acompanhou essa travessia bíblica – de
dia, como nuvem comum, e, de noite, com aparência de fogo. De determinada forma, o céu é
sempre parâmetro para a travessia do comboio do doutor Real; as nuvens acompanham sua
marcha pelo deserto. Saer é muito ácido em relação aos textos bíblicos, e os utiliza, quase
sempre, com o intuito de desconstrução da ideia do miraculoso. É possível que o título do
romance tenha essa referência, mas com um ingrediente profano, porque utiliza, abertamente,
como referência à travessia, os versos de Virgílio, como vemos neste trecho:

[c]ada una de las vicisitudes de nuestro viaje está relacionada para mí con
algún verso de Virgilio, y aún hasta el día de hoy las sensaciones ásperas de
la travesía y la música delicada y sabia de los versos se penetran mutuamente
en mi memoria y se confunden en un sabor único, que pertenece de un modo
exclusivo a mi propio ser, y que desaparecerá del mundo conmigo cuando yo
desaparezca. Más de una vez me vi a mí mismo atravesando la llanura como
Eneas el mar adverso y desconocido, y una emoción honda me asaltaba al
vislumbrar para mí, en medio del desierto, un destino semejante al de
Palinuro, el piloto que, dejándose sorprender por el sueño, cae al mar y se
pierde para morir abandonado y desnudo en una arena ignorada. Más de
una vez vi, con más nitidez que las cosas espesas y compactas que me
rodeaban, el montoncito anticipado de mis huesos blancos espejear al sol en
algún rincón remoto de la llanura (SAER, 2000, p. 58).

Posteriormente, o doutor Real afirma que, principalmente, a quarta Bucólica,


acompanhou-o na viagem. A chegada às “Tres acacias” depende do sim das Parcas: “[...] la
nueva edad de oro no será un premio o una conquista, sino un don injustificado del destino y
advendrá, no porque los hombres se la hayan ganado, sino porque las Parcas, un día
cualquiera, por puro capricho, dirán que sí”505.As vicissitudes que acompanham a viagem,
julgadas, algumas vezes, pelo próprio doutor Real, como novelescas, são transpostas pelo
azar, como diria o narrador-personagem. Essa relação, construída na própria história, da
travessia com os versos de Virgílio, com a vontade soberana das Parcas, sobre a travessia do
mar, no caso de Enéias, assegura, também, a possibilidade de leitura do título Las nubes como
intertextualidade bíblica da travessia do deserto.
Como fizemos anteriormente, outros romances são trazidos para discussão,
visando comprovar, com algumas imagens, esse apurado manuseio do espaço das nuvens, do
céu ou da névoa. Retomamos El limonero real, romance que apresenta, de forma fecunda, o

504
Êxodo, segundo livro da Bíblia.
505
SAER, 2000, p. 59.
263

encobrimento da paisagem pela névoa; o céu se apresenta, rotineiramente, aberto e límpido,


em contraposição à névoa, que invade a paisagem percorrida pela personagem, como atesta
este trecho:

[s]us ojos escrutan la masa blanca y espesa de la niebla, entrecerrándose. El


aire líquido ha ido empapándolos, gradual. Wenceslao tiembla aunque en
noviembre no hace frío, y mira con ansiedad la cara de su padre para
encontrar en ella la explicación de esa niebla blanca que ha borrado lo que
ellos conocían hasta media hora antes como "el río" y "la isla", pero el padre
no ve la mirada de Wenceslao; se incorpora, con gran lentitud y cuidado, y
recoge la cadena. La canoa varada apenas si se mueve. El cuerpo del padre
se recorta nítido y lleno de relieves contra ese fondo de niebla que muerde
los contornos de su figura (SAER, 2002, p. 14).

A própria narração encontra como entrave essa névoa, esse encobrimento daquilo que poderia
ser descrito, narrado. A paisagem é, então, maculada e consumida por essa nuvem que se
interpõe ante as coisas. Comprovando esse obstáculo, vemos que Wenceslao sente que a
imagem de seu pai é “mordida” pela névoa, impedindo que ele consiga distinguir
perfeitamente os seus contornos.
O encobrimento das coisas pela névoa é, também, recurso que Saer utiliza para
escapar da exaustão descritiva. Não podendo reter as coisas − nem por meio de apurada
descrição −, a solução é, então, fixar-se naquilo que as encobre ou na impossibilidade de
atravessá-las. Essa é uma das maneiras de, também, ativar a discussão sobre o lugar da ficção,
como já discutimos nesta tese. Por outro lado, a névoa se manifesta, também, como recurso
que estabiliza a própria cena; é como se o movimento fosse congelado – ou se esquecéssemos
dele – e, assim, o foco pudesse interrogar as próprias coisas. A percepção é, então,
complementada pela recordação, como forma de retrazer aquilo que é ocultado pela névoa; o
tempo funciona, então, como modelador do acontecimento. Presente e passado se estruturam
no encalço de remontagem da cena. Exemplo disso é o esforço de Wenceslao para ultrapassar
a névoa pelas rememorações de suas travessias daquele mesmo lugar que conhecia como a
ilha, como vemos neste trecho sobre o seu retorno aos tempos de infância:

[…] cuando Wenceslao mira para atrás la canoa ha desaparecido. En su lugar


queda otra vez la niebla cerrada, la miríada de partículas blancas húmedas
que ha devorado la masa roja de lo que ellos llamaban "la canoa". Un
pequeño fragmento de tierra los acompaña, un manchón amarillento —ese
amarillo sucio y oscuro del humo sucio de las hojas podridas quemándose al
atardecer— sobre el que ellos parecen tratar de avanzar sin resultado, como
una plataforma que estuviese desplazándose horizontal bajo sus pies,
264

bastante rápido como para estar siempre debajo e impedirles caer en el vacío
(SAER, 2002, p. 15).

El limonero real apresenta essa tática de recuos da história, como afirma Premat: “[...]
excluye el avance tradicional de la ficción (el de la cronología), y dramatiza, con los zigzags
que la diégesis contiene, la posibilidad de narrar”506 e, podemos afirmar, sublinha, por meio
de contornos firmes, os limites das coisas.
Podemos sentir a experiência da personagem, porque a narração acompanha o seu
movimento corporal. O olhar da personagem recobre, potencialmente, as coisas, e o tatear do
corpo no mundo desperta-lhe outras sensações. É como se fosse descamando a experiência
por camadas, como se o olhar fosse tentando expandir outras formas de se sentir o mundo.
Saer privilegia o ver, a possibilidade de se recobrir o mundo, enfatizando a aparição das
coisas, como se, antes, tudo estivesse velado ou retido em algum lugar oculto. O olhar é o
grande iluminador das coisas; ele propicia vida ao mundo, que se descobre a partir da
experiência, como discutimos, anteriormente, à luz do pensamento de Merleau-Ponty:

[c]ada “sentido” é um “mundo”, i. e, absolutamente incomunicável para os


outros sentidos, e, no entanto, constrói um algo que, pela sua estrutura, de
imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com eles constitui um
único Ser. A sensorialidade: por ex. uma cor, o amarelo; ultrapassa-se a si
mesma: desde que se torna uma cor iluminante, cor dominante do campo,
cessa de ser determinada cor, tem, por conseguinte, de per si, uma função
ontológica, torna-se apta a representar todas as coisas [...] O “Mundo” é este
conjunto onde cada “parte”, quando a tomamos por si mesma, abre de
repente dimensões ilimitadas, − torna-se parte total (MERLEAU-PONTY,
2012, p. 202).

É fantástico como Merleau-Ponty rejeita a intencionalidade e se fixa na


transcendência do mundo; esse esquema favorece o mostrar ou a relação do visível e do
invisível. A partir da transcendência, podemos compreender as coisas como pertencentes a
outras, que não se mostram efetivamente. Acentua-se esse copertencimento: a relação do
visível com essa dobra que possibilita a sua própria visibilidade, como diria o filósofo. A
névoa, em El limonero real, acentua essa característica de encobrimento das coisas, sublinha
essa impossibilidade de ver e de perceber a totalidade, como atesta este outro trecho:

[l]a niebla envuelve la fronda de los árboles, una fronda de plata, mechada
de flores blancas y negras, los árboles que nadie ha plantado nunca y cuyos
troncos negros, resquebrajados, llenos de marcas rugosas, de cortes y de

506
PREMAT, 2002, p. 229.
265

hendiduras, están mojados y rezuman goterones de un agua ciega, sin


reflejos, surgiendo tétricos y fantasmales en medio de ese vapor envolvente
que se ha comido su color (SAER, 2002, p. 18).

Saer problematiza essa relação com o visível por meio do encobrimento das coisas
pela névoa: aquilo que se encontra velado é redesenhado pela inspeção da personagem. O
copertencimento entre as coisas é sublinhado quando parece que o limite não está bem traçado
ou que há imbricação de uma coisa na outra. A experiência, em Saer, é esse esforço de ver
completamente e, por conseguinte, a certeza de um onipresente distanciamento das coisas. A
aparição das nuvens – nas paisagens saerianas – é, na maioria das vezes, o contraponto do rio
ou da lhanura, como neste trecho de Nadie nada nunca, em que o rio é a referência:

[a] causa de la tormenta, que ennegrece la mañana, el río está como acerado
y tan tranquilo, que la estela que ha venido dejando la canoa verde
permanece, inmutable, en su lugar, mostrando la trayectoria de la canoa.
Puede decirse que no sopla la menor brisa: los árboles, un poco más verdes,
un poco más inmóviles, que medio sumergen la casa, parecen también más
densos y más espesos en el aire ennegrecido. En el cielo bajo nubes gris
humo se acumulan formando cadenas interminables de reborde grueso, como
puntillas de acero (SAER, 2000, p. 35).

O intrincado entre terra e céu contribui para a formação do horizonte, como


prosseguimento dessas duas paralelas. A imutabilidade dessas superfícies produz uma
sensação de imobilidade e, por conseguinte, de monotonia, naquele que experiencia essa
paisagem. Os vestígios da tempestade – no trecho anterior – não conseguem impedir que a
personagem sinta a demarcação, os contornos das coisas. Essa exclusão ou suspensão de
movimento é uma das maneiras de, também, prosseguir, mais acentuadamente, com a
descrição das coisas.
As nuvens têm, então, essa função de expor o paralelismo do céu e, também, de
demonstrar, por meio de seus contornos, a regularidade desse lugar que se apresenta como
contraponto da lhanura e do rio, como vemos, também, em Lo imborrable:

[...] [y] por encima de todo, el ciego negro, de un negro reconcentrado, bajo,
al que el resplandor de las luces, elevándose un poco por encima de la
ciudad, no alcanza a iluminar. No se ve, desde luego, una sola estrella, y la
capa de nubes que oculta al firmamento es demasiado oscura y pareja como
para que algún reborde un poco más espeso sobresalga de la negrura
introduciendo en ella algún accidente. Nada (SAER, 1993, p. 18).
266

O céu noturno está, também, bem presente nas descrições saerianas: o céu manifesta a sua
negrura e as nuvens dão forma e contornam essa profusão do nada. Na citação anterior, é
nítida essa função das nuvens como capa do firmamento, contorno daquilo que se apresenta
uma e mesma coisa; são desenhos que deslizam sob o firmamento e frisam a sua existência,
delineando um vazio acima do vidente.
Essa função das nuvens é desvelada quando de sua ausência total no céu; a
personagem sente como que enlevada pela imensidão do nada. A sensação é de completo
abandono, de solidão em meio a uma coisa regular, que duplica o paralelismo do mar ou da
lhanura; como vemos, também, em El entenado:

[a] los pocos días de zarpar, nos internamos en un mar tórrido. Ahí fue
donde empecé a percibir ese cielo ilimitado que nunca más se borraría de mi
vida. El mar lo duplicaba. Las naves, una detrás de otra a distancia regular,
parecían atravesar, lentas, el vacío de una inmensa esfera azulada que de
noche se volvía negra, acribillada en la altura de puntos luminosos. No se
veía un pez, un pájaro, una nube. Todo el mundo conocido reposaba sobre
nuestros recuerdos. Nosotros éramos sus únicos garantes en ese medio liso y
uniforme, de color azul (SAER, 2002, p. 3).

É interessante como essa regularidade faz com que se perda a referência de mundo – como no
trecho anterior –, parece que as únicas coisas que existem são o barco e seus ocupantes. Os
próprios pensamentos da personagem se debatem, em busca de ancoradouro: as recordações
se apresentam como único lastro do mundo vivido; tudo se limitava à regularidade infinita do
mar e do firmamento. É um vazio que se estende em todas as direções e que contamina a
personagem, renegando-a a um sentimento de abandono frente à monotonia espacial.
O céu desempenha essa função de contorno da paisagem e de encaixotamento da
experiência. A partir disso, percebemos, novamente, a monotonia espacial, provocando
sentimento de vazio, de solidão, também, nesse romance:

[p]arecía no ver ni mar ni cielo, sino algo dentro de sí, como un recuerdo
inacabable y lento; o tal vez el vacío del horizonte se instalaba en su interior
y lo dejaba ahí, durante un buen rato, sin parpadear, petrificado sobre el
puente. A mí me trataba con bondad distraída, como si uno de los dos
estuviese ausente (SAER, 2002, p. 3).

Podemos relacionar essa viagem do “entenado” com a do doutor Real: o primeiro,


na imensidão do mar, e, o segundo, buscando vencer as vicissitudes do deserto, da lhanura.
Foram meses em mar aberto, antes de desembarcar; o sentido dos tripulantes já estava
267

corroído por essa regularidade imobilizadora. Abrimos, aqui, parênteses: é interessante


pensarmos como Saer provoca essa relação com os vazios da paisagem, com esses lugares que
demandam suprassensibilidade; os olhares das personagens direcionam-se às poucas
sinuosidades manifestas no espaço. A citação anterior destaca essa regularidade do espaço; a
personagem-narradora percebe como o seu companheiro de viagem é tocado por essa relação
com o horizonte entre céu e mar. O próprio tratamento entre eles torna-se mecânico,
desprovido de sentido; é como se fossem duas marionetes, comandadas por um gesto
anacrônico.
A vitalidade descritiva de El entenado é incômoda, em alguns momentos, porque
essa história relata episódios de extrema violência, como os rituais antropofágicos. Logie,
assim, sintetiza esse romance:

[...] [e]l entenado puede leerse como gran metáfora del desvanecimiento del
recuerdo y de la imposibilidad de la representación. Lo que se narra allí es
un cuestionamiento de los medios de conocimiento de la realidad empírica
que se manifiesta entre otras cosas en la disolución de la percepción, una
percepción que aparece negando a su sujeto la posibilidad de acceder a la
experiencia vivida entre los indígenas Colastiné y de aprehender su sentido
como totalidad (LOGIE, 2013, p. 11).

O nosso interesse nesse veio descritivo é destacar que o espaço se apresenta bem
marcado, principalmente, na monotonia da viagem e, também, no encontro com a exuberância
das terras costeadas; como evidencia este trecho:

[...] [p]asábamos de lo uniforme a la multiplicidad del acaecer. La lisura del


mar se transformaba ante nuestros ojos en arena árida, en árboles que
iniciaban, desde la orilla del agua, una perspectiva accidentada de barrancas,
de colinas, de selvas; había pájaros, bestias, toda la variedad mineral, vegetal
y animal de la tierra excesiva y generosa (SAER, 2002, p. 4).

El entenado apresenta essa primorosa descrição do espaço; as coisas visualizadas


são requeridas pelo afã de se apossar desse mundo pelo discurso. Tendo em vista que o relato
é registrado na maturidade da personagem, a dificuldade está em retrazer esses
acontecimentos já idos. A distância temporal – como em Las nubes – é problematizada nesse
gesto de contar os dez anos vividos com os índios Colastinés. Essa dificuldade é antecipada,
já nos momentos finais de convivência com esses índios, quando a personagem é libertada e
se afasta em uma canoa: sente-se como se saísse de um sonho. A diferença cultural, somada
268

com o não-domínio da língua dos Colastinés, dificulta essa vontade de traduzir os


acontecimentos para a língua reaprendida, dos europeus, que o recebem de volta.
Retomando a nossa abordagem inicial, o céu é privilegiado com descrições
exuberantes em El entenado. O romance se abre com essa visão, que será, aqui, a última
citação desse lugar privilegiado em Saer:

[d]e esas costas vacías me quedó sobre todo la abundancia de cielo. Más de
una vez me sentí diminuto bajo ese azul dilatado: en la playa amarilla,
éramos como hormigas en el centro de un desierto. Y si ahora que soy un
viejo paso mis días en las ciudades, es porque en ellas la vida es horizontal,
porque las ciudades disimulan el cielo. Allá, de noche, en cambio, dormía-
mos, a la intemperie, casi aplastados por las estrellas. Estaban como al
alcance de la mano y eran grandes, innumerables, sin mucha negrura entre
una y otra, casi chisporroteantes, como si el cielo hubiese sido la pared
acribillada de un volcán en actividad que dejase entrever por sus orificios la
incandescencia interna (SAER, 2002, p. 2).

É o enobrecimento do céu como lugar que retraz, mais efetivamente, a experiência da


personagem-narradora. A imensidão representa aquilo que Logie defende – trecho citado
anteriormente – como sendo a causa da própria impossibilidade de se narrar, de testemunho.
A personagem, por meio da imagem do céu, descobre a sua fragilidade em meio à riqueza da
experiência vivida. É como se o céu que, muitas vezes, apresenta-se nu e vazio, evidenciasse,
mais concretamente, esse sentido que se esconde: essa faixa de invisível que possibilita e
problematiza a experiência.
A conclusão a que podemos chegar é de que o espaço saeriano apresenta-se como
lugar de vivência, de complexas relações sensoriais com o mundo. Percebemos, nessas
descrições, o desvelar de caminhos perspectivos e, como a relação é sustentada por
intercâmbios entre o visível e a aderência a um sentido que sempre se desloca da decifração
completa. A lhanura, o rio e o céu – ou as nuvens – apresentam-se como lugares que
privilegiam um determinado vazio, no qual se evidencia, de forma mais perceptível, como a
personagem se encontra em estreita relação com algo que se encontra além das coisas. Os
flashes de olhar revelam um mundo descampado, mas, nem por isso, a relação é sucumbida;
ao contrário, o horizonte se proclama como força que detém os sentidos da personagem. Saer
privilegia, então, revelar esse contato da personagem com o mundo; a descrição minuciosa
revela o realismo de Saer. A profusão dos sentidos − por meio da sinestesia − provoca
rugosidades nas coisas e, assim, os seus contornos se apresentam intercambiantes. As coisas
se mostram como que inesgotáveis – nunca fechadas em si mesmas –, em estreita relação com
269

o vidente ou dependentes da experiência.


O espaço saeriano é, então, manifesto por meio da exploração sensorial das
personagens. A relação que firmamos, nesta tese, com o pensamento de Merleau-Ponty, é
produtiva, porque esse filósofo defende essa ideia de que o visível está sempre retido no
invisível. O esforço saeriano de descrever o mundo esbarra nessa infinitude perspectiva das
coisas, porque: « [...] [l]a littérature est à sa manière une phénoménologie; elle tente
d’inventer un langage apte à formuler de logos impliqué dans le phénomène »507. O privilégio
que Saer concede ao espaço descampado é, aqui, entendido como uma maneira de sublinhar a
própria relação de interdependência entre a personagem e o mundo. É como se o deserto, o rio
e o céu possibilitassem pôr em evidência essa busca por um sentido encoberto; porque, neles,
releva-se a relação com o horizonte do mundo. Premat, ao final de La dicha de saturno,
defende pontos de comunhão entre a Literatura e a Filosofia, citando o pensamento de
Merleau-Ponty:
[...] Merleau-Ponty postula que la fenomenología cambia la percepción de la
filosofía en la literatura, ya que no se trata de explicar el mundo o descubrir
en él las “condiciones de posibilidad” (como era la intención de la metafísica
clásica) sino formular una experiencia del mundo, un contacto con el mundo
que precede cualquier pensamiento sobre el mundo (PREMAT, 2002, p.
425).

A problemática do espaço saeriano pode ser decifrada no exame da experiência


das personagens. Nessa, o mundo se apresenta múltiplo e evanescente e a personagem revela-
se partícipe de seu desvelar por meio dos seus movimentos perspectivos. Não se podendo
esgotar a experiência, a relação é sustentada pelos próprios vazios, por esse indefinido que se
encontra no horizonte das coisas. O conceito merleaupontyano de vidente-visível é promissor
para desvelar essa relação, porque sublinha o duplo sentido do movimento da experiência. As
coisas e o homem se veem e são vistos, provocam-se na relação com esse sentido presente e
inarticulável. Premat define essa relação com o termo pulsional, que pode ser traduzido – nos
termos merleaupontyanos – por carnal:

[l]a literatura de Saer está fundamentada en una concepción de la experiencia


y de la subjetividad (sobre todo de la experiencia sensible y de la
subjetividad pulsional), que pretende, con la incorporación radical del sujeto
en el mundo, convertirse, también, en literatura metafísica. La
desorientación, la carga afectiva, la dispersión de la verdad, son a su vez los
efectos materiales de una definición existencial del proyecto narrativo.
Porque, y también esto lo afirma Merleau-Ponty, en la perspectiva

507
COLLOT, 2011, p. 202: “[...] [a] literatura é, à sua maneira, uma fenomenologia; ela tenta inventar uma
linguagem apta a formular o logos implicado no fenômeno” (Tradução nossa).
270

fenomenológica, la tarea de la literatura y la de la filosofía no son


disociables (PREMAT, 2002, p. 426).

A experiência, em Saer, é metafísica, nos termos de uma constante recusa ao


sentido imediato, ao mesmo tempo em que é carnal, porque privilegia o entrelaçamento
pulsional com as coisas. A relação com o mundo pode ser resumida nesse desejo ativo de se
apossar do sentido bruto, no gesto de ultrapassar os limites visíveis das próprias coisas. A
descrição minuciosa do mundo apresenta-se, então, com esse esforço de entrelaçamento,
revelando, por outro lado, a impossibilidade de decifração do todo. A estética saeriana
privilegia esses caminhos perceptivos – uma das contribuições da Arte para o pensamento
filosófico, segundo Merleau-Ponty –; as coisas se revelam em variadas formas e ângulos, em
razão dos “olhares” das personagens. O espaço de Saer é o lugar da experiência, da relação
sem limites com as coisas e com a sua dobra de invisível, sendo que o espaço natural – como
a lhanura, o rio e o céu – pode ser definido, como o termo, na acepção que lhe confere Collot,
“paisagem”: lugar onde que se encadeia a relação das personagens com o espaço e com aquilo
que se encontra oculto nas próprias coisas.
271

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O espaço nos romances de Juan José Saer se revela na minuciosa descrição da


experiência das personagens no mundo. No intuito de percorrer esse movimento da vivência,
o primeiro passo, aqui, foi descrever essa instância ficcional por meio de pesquisa sobre o
pensamento do autor ou como se estrutura o seu espaço da ficção. Isso se justifica porque,
para se falar em espaço literário, é importante abordar a questão da representação ou a sua
relação com o mundo físico. Os lugares da ficção e do mundo referencial são magistralmente
discutidos em El río sin orillas – livro considerado ensaístico – e foi a partir dele que, aqui,
iniciamos trabalho com âncora no pensamento desse escritor argentino. Saer tem bibliografia
considerável, também, quando se foca sua crítica ficcional. São quatro os seus livros de
ensaios: El río sin orillas (Tratado imaginário) (1991), El concepto de ficción (1997), La
narración-objeto (1999) e Trabajos (2005). Tendo por objetivo pontuar o lugar da ficção ou o
pensamento de Saer a respeito da representação, escolhemos, como ponto de partida, El río
sin orillas. Essa escolha se deu, principalmente, devido ao fato de esse livro insinuar, até em
seu título, certa indefinição do espaço da ficção, com a ideia de um rio sem margens. A
importância de se buscar compreender o lugar da ficção foi aditada pela necessidade de se
compreender a estrutura do espaço de Saer. Além desse livro – base do capítulo –, abordamos
outros dois ensaios na discussão disponível no primeiro capítulo desta tese: “El concepto de
ficción” e “La narración-objeto”, publicados em livros homônimos.
Essa discussão crítica foi conduzida com o objetivo de se salientar como os
lugares da ficção e da realidade se justapõem na obra saeriana. O primeiro capítulo ensejou a
necessidade de se discutir sobre o realismo em Saer, cujo resultado se consubstancia no quarto
capítulo desta tese. A partir disso, acompanhamos como o pensamento de Saer estabelece
relações com o pensamento merleaupontyano. Na mesma medida em que Saer polemiza o
lugar da ficção, Merleau-Ponty visualiza a sua função como uma abertura para o pensamento
filosófico; ou seja: a ficção é vista como um lugar em que se podem vislumbrar os vários
caminhos da percepção, do olhar. O conceito de ficção de Saer é defendido como uma
“antropologia especulativa”, lugar em que o homem tem o direito de investir e atualizar suas
referências de mundo. Percebemos a intersecção do conceito de Saer com as ideias de
Merleau-Ponty, o que justifica fazer uso do pensamento desse filósofo para leitura do espaço
saeriano.
272

Retomando a crítica saeriana, constatamos que seus ensaios – discutidos nesta tese
– defendem a ficção como esse lugar da experiência, de abertura para relações com o mundo.
Apesar de Saer defender a ficção como esse lugar em que o homem pode especular sobre sua
relação com as coisas, a crítica saeriana defende sua afiliação ao objetivismo do nouveau-
roman. Essa aproximação pode estagnar a participação da personagem ou coibir as relações
do vidente e do visível. Seu criterioso gesto descritivo evidencia os olhares atentos das
personagens que buscam acompanhar os movimentos das coisas. A resposta à qual chegamos,
nesta tese, com amparo no conceito de ficção de Saer, é a de que a confirmação desse gesto
estético não pode reduzir a experiência a uma objetivação do mundo, reduzindo a participação
das personagens. Tendo esta tese por objetivo central mostrar a produtividade da relação
vidente-visível em Saer, discutimos como o relevo concedido ao objetivismo estagna a
participação das personagens. Acreditamos que a própria discussão crítica de Saer – em El río
sin orillas e nos dois ensaios mencionados aqui – já legitima ativar a ideia de potencial
relação entre personagem e mundo.
A possibilidade de leitura do espaço saeriano à luz da filosofia de Merleau-Ponty
nasce da prioridade concedida ao ver. Analisando-se eventos nos romances – a relação das
personagens com o mundo –, percebemos como Saer releva esse mistério da percepção.
Enfatiza-se o tocar as coisas pelo olhar, reunir os sentidos como estratégia para decifração do
mundo. Essa estrutura é intermediada pelo narrador de terceira pessoa e esse é um dos pontos
nos quais a crítica se apoia para a defesa do “objetivismo narrativo”. Nesta tese, discutida essa
questão, defendemos que o narrador de Saer é complexo, supera a classificação baseada
apenas na estrutura verbal do texto. Nos romances, ouvem-se as personagens, mesmo quando
a narração se estrutura em terceira pessoa. Essa discussão foi acompanhada por um giro pelo
tema da nossa dissertação de mestrado intitulada A voz poética dos protagonistas: a
(re)construção do real em La ocasión, de Juan José Saer, e em Dom Casmurro, de Machado
de Assis. Nela, estudamos como a estrutura narrativa desconstrói as ideias fechadas de
narrador heterodiegético e homodiegético, respectivamente. Focando na estrutura
narratológica dos romances saerianos, averiguamos a ênfase no narrador de terceira pessoa, ao
mesmo tempo em que se percebe abertura para atuação das personagens. Os recursos
estruturais – como o discurso indireto livre e, principalmente, a focalização interna –
contribuem para que ouçamos a personagem sem nos lembrarmos de que o texto é
intermediado pelo narrador de terceira pessoa. Podemos ver que essa estrutura se repete na
maioria dos romances, estratégia narrativa para que Saer retome sua relação espaço-temporal.
273

Outra questão de suma importância discutida – principalmente, no capítulo “O


realismo em Saer: vanguardas e discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable” – foi
a prioridade dada à exposição das recordações. O tempo presente é preterido, em função de
retorno a acontecimentos passados, e as recordações complementam a percepção. É o
constante retorno ao passado como forma de exposição integral da experiência, o sentido que
sempre resiste à percepção provoca esse giro temporal pelo espaço. Observamos, nesse gesto,
tentativa de se reunir os sentidos da experiência por meio dessa relação tumultuada com o
tempo; uma forma de leitura do espaço, de reunir os sentidos que atravessam a relação
vidente-visível. Vimos, no decorrer da tese, que o presente se apresenta no movimento
descritivo, no desejo de se alcançar o horizonte do mundo. As analepses saerianas
apresentam-se como ferramentas para decifração do espaço, recurso que busca reunir
temporalidades para elucidação da experiência. No quarto capítulo, principalmente,
discutimos como o passado advém da própria relação com o presente e como Saer prioriza o
movimento das recordações. O passado não é requerido pelo esforço da rememoração; advém
como complementação da vivência.
As questões discutidas no segundo capítulo, intitulado “Do espaço literário à
apreensão máxima em Merleau-Ponty: um giro entre filosofia e teoria literária sobre o
espaço”, lançam mão dos conceitos elaborados por esse filósofo para se fazer uma leitura
mais dinâmica do espaço de Saer. Nossa intenção inicial era trabalhar com a última filosofia
de Merleau-Ponty, mas, no decorrer do estudo, percebemos a necessidade de recorrermos,
principalmente, à Fenomenologia da percepção. Esse gesto é justificado como estratégia para
decifração do pensamento final do filósofo, de compreensão dos conceitos que, nela, são
desenvolvidos. É hercúlea a tarefa de se percorrer toda a filosofia de Merleau-Ponty; por isso,
quando se inicia pela Fenomenologia, o objetivo é tão somente decifrar sua Ontologia final.
Os estudiosos de Merleau-Ponty sempre recorrem a essa obra maior para discutir os conceitos
que esse filósofo elabora em O visível e o invisível. Nesta tese, iniciamos discussão com a
Fenomenologia da percepção tendo por foco a questão do espaço ou os capítulos, dessa obra,
que se focam nessa questão. Percorremos, então, os capítulos: “o espaço”, “o sentir” e “a
temporalidade”, buscando a compreensão da experiência espacial, da relação do corpo com o
mundo.
A dificuldade para se iniciar pesquisa com Fenomenologia da percepção está na
passagem – ou na necessidade de se fazer o giro – da Fenomenologia para a Ontologia.
Decidimos usar como ponte o conjunto de textos de O olho e o espírito, no qual cada um dos
seus três ensaios faz parte de um período filosófico de Merleau-Ponty. Então, a discussão
274

filosófica se iniciou com a discussão espacial, em Fenomenologia da percepção, passando-se


pelos ensaios de O olho e o espírito, visando-se achegar a O visível e o invisível. Então, o
primeiro período foi abordado como forma de “iniciação” ao pensamento de Merleau-Ponty.
O último período interessa para defesa do argumento desta tese: a relação de reciprocidade
entre homem e mundo, na experiência de Saer. A dificuldade está na fase intermediária,
porque não nos fixamos nela e, além disso, ela exige um estudo mais detalhado de outros
textos do filósofo. O problema é que, para se prosseguir na Ontologia de Merleau-Ponty –
para se ir a fundo na “ideia de um Logos infinito508” –, seria necessário um estudo criterioso
do período intermediário da filosofia de Merleau-Ponty, porque é a fase da linguagem que
fundamenta o entendimento daquilo que se vislumbra na sua Ontologia final. Resulta daí a
necessidade de sempre se recorrer aos períodos anteriores, apesar da dificuldade para se dar
conta do todo. Tentando sair desse círculo – impossibilidade e necessidade do todo –,
escolhemos um tema e, a partir dele, intentamos fazer esse pequeno giro pela filosofia de
Merleau-Ponty. O tema é revelado no título do segundo capítulo desta tese: “a apreensão
máxima”.
Focamos, então, na leitura do espaço de Saer – nos gestos das personagens por
elucidarem aquilo que é visto – e recorremos a Merleau-Ponty, como recurso para
compreensão da relação homem-mundo. A “apreensão máxima” é entendida como o desejo
de se apreender o mundo de forma radical, ultrapassando até as barreiras de separação entre o
vidente e o visível. Iniciamos a pesquisa com a descrição dos parâmetros do espaço
merleaupontyano como forma de compreensão dessa estrutura que, em seguida, descrevemos.
O espaço é, então, o lugar da experiência e foi essencial percorrer essa ideia desenvolvida no
capítulo “O espaço” do livro Fenomenologia da percepção. A primeira parte dessa discussão
filosófica consta, então, do exame fenomenológico das relações entre os corpos. Merleau-
Ponty acompanha, em termos radicais, a percepção, e suas ideias manifestam a sua inquietude
com relação ao que é percebido. O pensamento desenvolvido em Fenomenologia da
percepção requer que se elaborem ideias próprias para se descrever as relações de
corporeidade com as coisas: esses “conceitos” são elaborados, principalmente, a partir do
ensaio “O olho e o espírito”. A defesa – desde a Fenomenologia da percepção – de um fundo
que possibilita a percepção do mundo é radicalmente explorada em O visível e o invisível.
O texto da fase intermediária usado como ponte para acesso à ontologia “A
linguagem indireta e as vozes do silêncio” apresenta-se como elucidação diferenciada desse

508
MERLEAU-PONTY, 2012, p. 207.
275

fundo que fundamenta a percepção da figura. A transferência dessa relação para a linguagem
é explorada na última filosofia de Merleau-Ponty, mas escapa ao escopo deste estudo, porque
nos detemos na exploração de “conceitos” que legitimam pensar na experiência de reversão
entre o vidente e o mundo. Focamos no tema da “apreensão máxima”, objetivando a descrição
de ideias que fundamentam essa relação, como as de: “visível e invisível”, “vidente-visível”,
“quiasma” e “carne”. Da Ontologia, priorizamos, nesta tese, a relação de reversibilidade que
fundamenta a percepção. Percebemos, principalmente, nas notas de trabalho de O visível e o
invisível, como esse filósofo descreve e acompanha essa relação do visível com o invisível;
nessa parte, a linguagem é o parâmetro utilizado para esclarecer essa interface: a dependência
desses elementos é descrita mais claramente por intermédio da relação entre a palavra e o
“sentido” que a sustenta. Defendemos que a linguagem é o exemplo que articula e desvela a
relação do visível e do invisível ou a interdependência entre esses termos. A filosofia final de
Merleau-Ponty encontra-se melhor reunida no ensaio “O olho e o espírito” e na obra póstuma
O visível e o invisível. O caráter inconcluso desse livro – devido à morte prematura do filósofo
– suscita muitas dúvidas; principalmente no que tange aos limites desses “conceitos”, razão
pela qual o investigador deve, então, ordenar e estabelecer o seu próprio universo
investigativo. Ciente disso, elegemos como tema “a apreensão máxima”, com o objetivo de
descrever a experiência das personagens saerianas.
Os conceitos de quiasma, de carne e de visível-invisível contribuem, aqui, para
decifração da apreensão máxima ou para entendimento da percepção, da experiência. Na
verdade, a decifração é sempre incompleta, porque a relação estabelecida baseia-se na ideia de
transcendência, movimento interno ao próprio jogo. Todos esses conceitos estruturam a
revelação de copertencimento dos corpos. O desejo de apreender por completo o espaço da
experiência denuncia essa relação de corporeidade entre o vidente e o visível. Quando se
inicia a pesquisa do espaço, pela teoria literária, com abordagem do espaço como
representação e como focalização, visamos promover a reunião dos sujeitos da experiência,
em outros termos, pensar o espaço como elemento de integração entre o vidente e o visível. O
espaço como representação sublinha o desejo de se encenar o próprio mundo, enquanto, como
focalização, instaura-se a visão da personagem. Em esforço para se unir essas perspectivas,
recorremos ao pensamento de Merleau-Ponty, na sua vertente mais radical, na sua última
filosofia. O objetivo, então, foi ler as experiências espaciais das personagens saerianas,
destrinchando os desdobramentos dessa relação com o mundo; intentando acompanhar como
as personagens se projetam no mundo por intermédio da fixação naquilo que as ultrapassa, no
276

próprio horizonte. É, então, nas belíssimas imagens saerianas do horizonte que se descobre o
intricado vidente-visível, a comunhão plena da personagem com o mundo.
O espaço de Saer é, então, a própria realização da experiência, com suas mais
intrincadas nuanças. A ênfase descritiva direcionada à vivência das personagens conflui em
uma narrativa altamente espacial, que busca percorrer o mundo por meio das sensações.
Prioriza-se o ver e, além disso, serve-se dele como ferramenta que antecipa os outros sentires:
a partir daquilo que se vê, as outras sensações se juntam e tentam, também, tatear as coisas.
Saer dinamiza o seu espaço por meio de um ir e vir, entre percepção e recordação. Esse
intrincado entre descrição e narração revela a estrutura de seus romances. A percepção das
personagens é desvelada em descrição minuciosa do mundo: quando as minúcias do espaço
esgotam o próprio dizer, as recordações são acionadas como elemento de complementação do
acontecer. É o desejo de busca por sentido que sempre se esvaem que condiciona esse
intercâmbio entre presente e passado. Quando o espaço resiste a esse movimento, a estética do
autotematismo se revela: passa-se do descritivo ao metaficcional. A linguagem busca encobrir
as coisas e, então, revolve-se sobre si mesma. Essa é a estética saeriana, um giro espaço-
temporal até os limites do dizer; ou seja: quando se esgota a possibilidade de se contar, fala-
se, então, sobre a própria ficção.
Nesta tese, abordamos a preocupação ficcional de Saer, principalmente, no
capítulo sobre El río sin orillas, intitulado “Teoria e imaginação em Saer”. O gesto do autor
argentino é, inicialmente, pontuar os limites da ficção. A inesgotabilidade do tema se
manifesta quando se projeta uma interseção entre os lugares do “real” e da ficção. Na verdade,
Saer se interessa por demonstrar a inadequação do conceito de real desvinculado da vivência
ou da relação com o homem509. Daí resulta o conceito de ficção como uma “antropologia
especulativa”; a prioridade é dada à própria experiência. Saer, então, prescreve o seu espaço
como um mundo em relação com as personagens. Constatamos como a filosofia de Merleau-
Ponty atende à demanda de leitura dessa estrutura, da realização da experiência saeriana,
contribuindo para a compreensão da percepção das personagens, na fixação pelo horizonte do
mundo e, principalmente, nesse intrincado entre o mundo das coisas e o das ideias, das
palavras.

509
Sobre a experiência é interessante o que Richir absorve do último pensamento de Merleau-Ponty: « [...] leçon
plus profonde que nous laisse la dernière pensée de Merleau-Ponty: impossible de philosopher autrement qu’au
singulier [...] le singulier est notre seul mode d’accès à l’universel » (RICHIR, 2008, p.189). [Tradução
nossa: “[...] lição mais profunda que nos deixa o último pensamento de Merleau-Ponty: impossível filosofar se
não for no singular [...] o singular é nosso único modo de acesso ao universal”].
277

Nos capítulos “O espaço em La grande de Juan José Saer” e “Perspectivas outras


sobre o espaço saeriano: a lhanura, o rio e as nuvens”, provamos como é produtivo aplicar a
filosofia de Merleau-Ponty como chave de leitura do espaço saeriano. Procuramos percorrer o
pensamento desse filósofo – no segundo capítulo desta tese –, da Fenomenologia – difundida,
principalmente, em sua obra maior, Fenomenologia da percepção – à Ontologia, ao O visível
e o invisível. Esse percurso foi encetado porque, nas análises da experiência das personagens,
constatamos uma relação potencial entre os corpos, entre o vidente e o visível; ou seja: a
Fenomenologia é ultrapassada510 quando a experiência se estende no entremeio entre os
corpos e a profusão sensorial sobrepassa a consciência das coisas. Constatamos esse
envolvimento ontológico quando os sentidos do homem progridem no esforço para
inventariar o sentido bruto daquilo que é visto; o pensamento é reabsorvido e ultrapassado, no
intuito de se promoverem aproximações múltiplas com as coisas.
A instrumentalização com elementos do pensamento de Merleau-Ponty para
leitura do espaço de Saer potencializa perceber as relações das personagens saerianas com o
mundo. O tema apontado pela crítica saeriana – busca pelo sentido da experiência – é
facilmente descrito por meio da filosofia de Merleau-Ponty; o olhar atento das personagens
rumo ao horizonte do mundo revela insistência em busca por algo que se encontra encoberto,
velado. Esse sentido, que está além das coisas, relembra aquilo que esse filósofo denomina de
sentido bruto das coisas:

[l]a nature, mais aussi la vie, ne pourront donc plus être pensée à partir de
particules spatiales ou temporelles ponctuelles, puisque de telles particules
ne la précèdent en rien, mais sont seulement abstraites : telle est la
conclusion qu’impose la pensée des « faits bruts », des brute facts, de
l’existence, qui me présentent le temps en son épaisseur essentielle
(ROBERT, 2008, p. 381)511.

510
Barbaras descreve assim os limites da fenomenologia: « [...] La vérité de la phénoménologie, en tant que
tentative de porter l’expérience muette encore à l’expression pure de son propre sens, consiste en ceci qu’elle
dévoile une part de non-philosophie, un ordre qui résiste à la conscience constituante ; la vérité de la
phénoménologie réside au lieu même de sa limite, dans ce qui motive et arrête à la fois son entreprise de
compréhension : « la tâche dernière de la phénoménologie comme philosophie de la conscience est de
comprendre son rapport avec la non-phénoménologie » (BARBARAS, 1991, p. 99). [Tradução nossa: “[...] A
verdade da fenomenologia, como tentativa de levar a experiência muda ainda à expressão pura de seu próprio
sentido, consiste em que ela revele uma parte de não-filosofia, uma ordem que resiste à consciência constituinte;
a verdade da fenomenologia reside no lugar mesmo de seu limite, naquilo que motiva e retém ao mesmo tempo
seu intento de compreensão: “a tarefa última da fenomenologia como filosofia da consciência é de compreender
sua relação com a não-fenomenologia”].
511
Tradução nossa: A natureza e, também, a vida não mais poderão, portanto, ser pensadas a partir de partículas
espaciais ou temporais pontuais, já que tais partículas não a precedem em nada, mas são somente abstratas: tal é
a conclusão que impõe o pensamento dos “fatos brutos”, dos brute facts, da existência, que me apresentam o
tempo em sua espessura essencial.
278

Esse conceito de nature ultrapassa a separação entre homem e mundo, porque, segundo
estudiosos da obra de Merleau-Ponty, esse termo busca dar conta do próprio conceito de
être512. É um aglomerado do homem com o mundo, uma relação de interdependência entre a
carne do mundo e a “nossa carne”.
Concluímos que foi produtiva a discussão das últimas ideias de Merleau-Ponty no
intuito de se elucidar a relação ontológica do homem com o mundo e sua aplicação para
leitura do espaço de Saer, como uma forma de descrição e compreensão da experiência das
personagens. O mais interessante é a possibilidade de se pensar, integralmente, a manifestação
do espaço saeriano, visando ler esse constante ir e vir na esteira de busca por sentidos. O
singular, em Saer, é a forma como apresenta o acontecimento ou acompanha o fenômeno de
encontro do vidente com o visível. O escritor provoca a possibilidade de se esgotar e delimitar
o espaço ou a própria experiência. É, mesmo, uma dialética da relação com o mundo e, em
contrapartida, uma medição de força com a própria linguagem. As perguntas que Saer tenta
responder são estas: a) é possível dizer o que se experiencia? e b) a linguagem consegue
acompanhar essa revelação das coisas ou ela retém o próprio sentido bruto que se esconde nas
coisas? Nessa segunda questão, sublinha-se a inversão de princípios: tudo, então, partiria da
linguagem. Esse problema com a linguagem deve ser discutido, porque é, também, a
linguagem que possibilita o encadeamento das coisas.
Antes de abordar a questão da linguagem, sublinhamos outra que é discutida na
tese: onde está o momento em Saer? Esse problema decorre do fato de esse escritor argentino
priorizar uma relação com o passado, com um acontecimento já encerrado. Pode-se afirmar
que, em Saer, a experiência é sempre sentida com mais intensidade quando se podem refazer
os caminhos dos sentidos. Merleau-Ponty, por seu turno, fixa-se no acontecimento, no
fenômeno e na relação estabelecida entre vidente e visível. Em Saer, o ponto central é quase a
negação do presente, porque, nele, os sentidos da personagem não conseguem percorrer o
espaço, não conseguem acompanhar o movimento do mundo. O escritor complementa o
sentido das coisas com o onipresente recurso das recordações, em exercício de revanchismo

512
Saint-Aubert discute esse intrincado entre nature e culture em Merleau-Ponty: « [i]ndissociable de ses enjeux
anthropologiques, la philosophie du dernier Merleau-Ponty prête peu à peu à la chair un visage ontologique,
notamment à travers une réflexion sur le concept de nature. La difficulté est grande de discerner les lignes de
différenciation entre nature et culture, entre la chair du monde et notre chair, tant celles-ci échangent leurs
structures dans une co-institution et une expression mutuelle » (SAINT-AUBERT, 2008, p. 252). [Tradução
nossa: “Indissociável de suas questões antropológicas, a filosofia do último Merleau-Ponty empresta, pouco a
pouco, à carne um aspecto ontológico, principalmente por meio de uma reflexão sobre o conceito de natureza. A
dificuldade é grande em discernir as linhas de diferenciação entre natureza e cultura, entre a carne do mundo e
nossa carne, se considerarmos o quanto essas entrecruzam suas estruturas em uma coinstituição e uma expressão
mútua”].
279

com o tempo, no intuito de se recriar espaço para reconstruir suas multifacetas. As


personagens empenham-se em percorrer as coisas, por intermédio de seus sentidos, para
atingirem, integralmente, o visível. O momento, em Saer, é um persistente movimento contra
o tempo, uma recriação integral da experiência no mundo. A resposta em Merleau-Ponty é
que o visível é complementado pelo invisível e que o sentido está nessa relação, no quiasma,
no copertencimento entre o vidente e o visível.
A filosofia de Merleau-Ponty contribui para se acompanhar os caminhos do olhar
– e de todos os sentidos – em Saer. Merleau-Ponty defende essa contribuição da Arte para o
pensamento filosófico: poder dizer e refletir sobre os vários caminhos dos sentidos. A arte,
então, concorre para não se congelar o acontecimento, despreocupada em condicionar tudo a
uma verdade. Essa performance da Arte é como um processo em câmara lenta para que
Merleau-Ponty possa descrever e acompanhar o evento. O resultado, para seu próprio
pensamento, é que se descortina a relação com as coisas ou se consegue dar ênfase às
variações dos sentidos. O filósofo utiliza a Arte como exemplo do potencial que é a própria
experiência, de como ela se manifesta de maneira diversificada e prolongada. Merleau-Ponty,
então, enxerga o fenômeno como um intrincado harmonioso entre as partes, entre o vidente e
o visível. É essa revelação do filósofo que possibilita, por seu turno, um exame mais criterioso
do espaço saeriano, das experiências das personagens.
Em Saer, sublinha-se a experiência ao ponto de se chegar à conclusão de que é
impossível a sua epistemologia, porque o sentido total é sempre desarticulado pelo seu
constante distanciamento. Essa busca retoma a ideia merleaupontyana de “sentido bruto”, algo
que é inarticulável, mas que se encontra na base da própria relação vidente-visível. É esse
sentido que sustenta ou prolonga a experiência, sendo que, em Saer, essa força de junção é
intensificada pelo tempo; ou seja: Saer defende que o tempo impede a reversibilidade total ou
possibilita que haja reversão entre o vidente e o visível. É como se aquilo que dá cabo da
experiência também possibilitasse o próprio evento, já que é o tempo que concretiza a ideia de
sentido. Essa reversão é base para a elucidação dos conceitos ontológicos merleaupontyanos.
Saer defende – no seu ir e vir entre percepção e recordação – a impossibilidade de se esgotar a
experiência. O passado e o presente se juntam, com o objetivo de preenchimento dos vazios
de sentidos da experiência. A atestação dessa pluralidade – a inesgotabilidade ou as
multifacetas de apresentação do mundo – revela um sentido velado que sustenta a própria
relação com o visível. O evento, em Saer, é a própria revelação da experiência, o gesto de
desvelar, em vários ângulos, aquilo que é sentido pela personagem. As descrições saerianas
negam o realismo de identificação, na medida em que deformam as coisas no esforço de
280

acompanhar a sua manifestação ao vidente. É essa profusão das coisas que alavanca defender
o evento, em Saer, como movimento constante entre temporalidades.
Observamos aquilo que Merleau-Ponty defende como contribuição da arte para o
pensamento filosófico na relação das personagens saerianas com o mundo. A experiência
ultrapassa uma única direção ou a exploração de um só veio de sentido e a sinestesia é uma
das ferramentas para se mostrar os vários lados das coisas ou como a relação vidente-visível é
plural. É nessa profusão das coisas que o mundo é revelado; desvinculando-se de um único
sentido, percorre-se a experiência de tal forma que a sua inesgotabilidade projeta recuos para
outras temporalidades. Sublinhamos, então, neste trabalho, a estética saeriana, na análise de
seus romances, como forma de visualizar o espaço como lugar da experiência. A descrição
não é, então, uma forma de redimensionar a largura e o comprimento das coisas, mas de
destacar a sua profundidade. Focamos nesse espaço de intersecção entre o vidente e o visível,
nesse lugar em que as coisas se refazem pela mediação do “olhar”. A distância é que provoca
e mantém a própria experiência, porque a imprecisão exige recorrente exame das coisas. A
experiência é, então, definida por esse processo de ilusão e desilusão com relação a aquilo que
é visualizado.
A importância do capítulo intitulado “O realismo em Saer: vanguardas e
discussões estéticas em La grande e em Lo imborrable” está, também, em retomar questões
sobre o pensamento ficcional, sobre o espaço da representação. Saer defende – por intermédio
da perspectiva teórica da personagem Tomatis – a ficção como uma experimentação do
próprio mundo. O realismo de identificação é desestruturado mediante a construção de um
pensamento da ficção como ativo, como lugar de exposição das variantes da experiência. Essa
ideia condiz perfeitamente com o que Merleau-Ponty defende sobre a percepção, a
necessidade de retorno ao mundo. A discussão vanguardista em La grande – ou do
precisionismo – foi uma maneira de retomar a perspectiva teórica de Saer discutida no
romance. Da mesma forma, Lo imborrable apresenta as personagens debatendo o metatexto
La brisa en el trigo. Saer concede voz crítica a suas personagens como recurso para relevar os
atributos de sua ficção. A importância desse capítulo está na continuidade da discussão do
espaço como representação ou dos estratagemas de seu pensamento ficcional.
O último capítulo desta tese recobre os espaços “do vazio” nos quais se relevam
mais amplamente as experiências das personagens. A lhanura, o rio e o céu se projetam como
lugares em que a personagem perscruta o horizonte, o sentido da experiência. É neles que se
percebe o intricado homem-mundo ou como Saer revela como a experiência ultrapassa a
busca por sentido ou a reversibilidade completa. Percebemos na primazia concedida a esses
281

lugares, o foco na percepção, na realização da experiência. A lhanura prossegue em direção ao


rio, tendo o céu e a imagem do horizonte por limites. A infinitude do espaço provoca
sensações múltiplas naquele que o contempla, como atordoamento e sentimento de mesmice
das coisas. A potencialidade desse capítulo está no ato de se fixar no espaço, propriamente
dito, e perceber como se estende a relação vidente e visível, mesmo escapando-lhe o alcance
das coisas. Isso atesta quão promissor foi recorrer a Merleau-Ponty para se entender a
experiência em Saer, no sentido de se compreender, por meio de seus conceitos, esse
momento da experiência.
O deambular pelos romances de Saer comprovou uma perspectiva crítica
ficcional, um pensamento da ficção como um ativo. Segundo seu pensamento, a ficção se
apresenta como uma relação potencial com o mundo. Com essa mesma perspectiva, Merleau-
Ponty se aproxima da Arte, visando reativar a percepção ou sublinhar os múltiplos caminhos
dos sentidos. Percebemos, na negativa saeriana de oposição entre ficção e realidade, a mesma
funcionalidade da narrativa. Ambas apontam a Arte como abertura e retorno ao
acontecimento. Essa característica é fundamental para a compreensão do espaço saeriano ou
de como a focalização desvela o mundo, entendido como o mundo vivido ou manifesto na
experiência. A busca das personagens saerianas por desvelar o horizonte demonstra o vínculo
delas com o mundo, os seus movimentos de relação com as coisas. O ponto central desta tese
foi esse enfoque na experiência, na relação do corpo com o corpo do mundo. Compreender o
espaço saeriano é perceber a experiência ou a própria funcionalidade da ficção: como espaço
que assegura especulação acerca do mundo. O pensamento de Merleau-Ponty assegura essa
ideia, além de possibilitar a visualização da experiência como um movimento constante de
reversibilidade. A fixação saeriana no horizonte pode ser descrita pelos conceitos
merleaupontyanos ou desveladas como um constante ir e vir entre o vidente e o visível.
Esta tese deixa em aberto uma exploração mais profunda daquilo que Scavino
(2004) defende ser o ato de nominação das coisas. É possível, então, posteriormente, realizar
um trabalho com a linguagem em Saer, nesse movimento de revelação das coisas aos
sentidos. Podem-se seguir essas ideias com o arcabouço filosófico de Merleau-Ponty ou com
suas ideias finais sobre a radicalidade da experiência. Da mesma forma como Saer recorre à
linguagem ou à narração como escape da descrição meticulosa, Merleau-Ponty persegue a
relação vidente-visível em direção ao chamado “Logos infinito”. Esse filósofo lança essa ideia
em notas de O visível e o invisível sem, no entanto, desenvolvê-la. É possível, porém,
compreendê-la como uma vontade de desvelar o próprio invisível ou suas vinculações com o
visível. É um movimento em busca de sentido, de consolidação da relação entre os corpos ou
282

daquilo que mantém a reversibilidade. Por seu lado, Saer defende, no seu ir e vir entre
descrição e narração, que, talvez, as respostas estejam na própria relação com a linguagem,
nessa busca por nominação do mundo. Esta tese não se fixou no problema da linguagem, mas
esse é um tema que se mostra promissor para a compreensão da própria percepção e dessa
relação com o sentido ainda não articulado.
Contudo, defendemos que esta tese contribui para uma leitura mais dinâmica do
espaço literário por intermédio de vasta bibliografia filosófica pesquisada. O trabalho com a
última filosofia de Merleau-Ponty suscita questões diversas, mas possibilita a discussão de
seus potenciais “conceitos”. Essas ideias merleaupontyanas foram apresentadas e discutidas
com base em textos de reconhecidos pesquisadores e filósofos como Barbaras (1991) e
(2008), Zielinski (2008), Villela-Petit (2008) e Dastur (2008). O material elencado possibilita
não somente acesso à leitura que fazemos nesta tese – do espaço de Saer –, mas ainda
possibilita desvelar essas ideias finais de Merleau-Ponty. Esta tese contribui, então, em duas
frentes: na ativação de um tipo de leitura do espaço e na discussão de ideias da ontologia final
de Merleau-Ponty.
283

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ANEXOS:

ALGUNS FOCOS DE CÉZANNE (1839-1906):

PAUL CÉZANNE (1839-1906)


AUTO-PORTRAIT A LA PALETTE

Peint en 1885-1887.

Collection de la famille de l’artiste, Paris

92 X 73 cm
293

LES OIGNONS ROSES

Peint en 1895 – 1900

Musée du Louvre

66 X 80 cm
294

PLANCHE 15

LES JOUEURS DE CARTES

Peint en 1890 – 1892

Musée du Louvre

45 X 57 cm

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