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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA SUL-RIO-

GRANDENSE

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LINGUAGENS VERBAIS, VISUAIS E


SUAS TECNOLOGIAS

EVELINE ROSA PERES

O AVESSO DA HISTÓRIA EM HISTÓRIA MEIO AO CONTRÁRIO

PELOTAS

2012

1
EVELINE ROSA PERES

O AVESSO DA HISTÓRIA EM HISTÓRIA MEIO AO CONTRÁRIO

Trabalho apresentado ao Curso de


Pós-Graduação Lato Sensu em
Linguagens Verbais, Visuais e suas
Tecnologias como requisito parcial
para a obtenção do título de
especialista.

Orientadora: Ms. Márcia Froehlich

PELOTAS

2012
2
O AVESSO DA HISTÓRIA EM HISTÓRIA MEIO AO CONTRÁRIO

Eveline Rosa Peres

evelinerosaperes@gmail.com

Resumo

Neste trabalho buscamos verificar na obra História meio ao Contrário (1977),


da escritora Ana Maria Machado, elementos da paródia carnavalesca, a partir
da teoria desenvolvida pelo linguista russo Mikhail Bakhtin. Essa escolha
teórica deveu-se à percepção de que os elementos de comicidade presentes
na obra, além da subversão da tradicional estrutura narrativa dos contos de
fadas, estabeleciam vínculos com o momento histórico no qual esta foi
produzida. Assim, a narrativa configura-se como paródia desse gênero
discursivo, utilizando-se, para isso, de inversões na estrutura narrativa e nas
atitudes costumeiramente adotadas pelas personagens convencionais do
gênero. Na análise, verificou-se que a mudança de personagens focais
também funciona como estratégia carnavalesca para questionar as estruturas
do poder. Por fim, foi possível perceber que o emprego de certos mecanismos
dialógicos e intertextuais reforçam a ideia de que o espaço e os eventos da
narrativa evocam, explicitamente, o contexto histórico do Brasil da época em
que a obra foi produzida.

Palavras-Chave: Literatura Infantil; Paródia; Carnavalização.

Introdução

A partir de 1964 até meados da década de 1980, o Brasil viveu uma das
fases mais sombrias da sua História recente, marcada pelo autoritarismo,
tortura e repressão. Neste período, artistas e intelectuais tiveram suas

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produções cerceadas pelo crivo da censura. Sendo assim, escritores,
teatrólogos, cineastas, compositores, jornalistas, entre outros ligados à arte e à
formação de opinião; precisaram utilizar linguagem figurada para que
pudessem se expressar de modo menos perceptível aos órgãos fiscalizadores.

Na Literatura, vários autores tiveram suas obras censuradas devido ao


seu conteúdo aludir à Ditadura Militar ou a questões não desejáveis ao regime.
Entretanto, a fiscalização era bem mais branda quando se tratava da literatura
infantil, por ser historicamente considerado um gênero marginal, visto como
algo pueril e “sem maldade”.

No entanto, alguns escritores de literatura infantil, não alheios ao curso


da História, e que já tinham suas obras marcadas por uma linha de criação
divergente dos contos de fadas tradicionais, por ir além dos personagens
tipificados dos contos de fadas, e por instigar as crianças a questionar o seu
entorno, passaram a apontar mascaradamente o autoritarismo do regime ou,
ainda, indicar alternativas e/ou desejos sobre como ultrapassar o momento
histórico-político vivido pelo país. Dentre esses autores, podemos destacar:
Lígia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Ana Maria Machado.

Em nosso estudo, iremos analisar a obra História meio ao Contrário, da


escritora Ana Maria Machado. Publicada em 1977, a obra pode ser relacionada
ao período histórico de sua produção.

Ana Maria Machado tem sua formação acadêmica nas áreas de


Jornalismo e Letras, foi professora em colégios e universidades e já atuou em
rádio e jornal impresso. A autora escreveu seus primeiros textos para crianças
em 1969, quando estava exilada na Europa e os enviava diretamente para
Ruth Rocha, que, na época, editava histórias para a revista Recreio.

Machado tem mais de 100 livros publicados no Brasil e em mais de


dezoito países- a maioria no gênero literatura infanto-juvenil- somando mais de
dezoito milhões de exemplares vendidos. Além de livros de Literatura, publicou
vários ensaios teóricos e profere palestras sobre Leitura e Formação do Leitor.
No ano 2000 ganhou o prêmio internacional Hans Christian Andersen e em
2001 o prêmio Machado de Assis, o maior dos concedidos pela Academia

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Brasileira de Letras. Em 2003, assumiu a cadeira número um da Academia
Brasileira de Letras e, no dia sete de dezembro do ano passado, foi eleita
presidente dessa instituição, durante o período 2012-2013. A autora é a
segunda mulher a presidir a casa, sendo Nélida Piñon o primeiro caso em
1997.

Ao desenvolvermos a análise da obra História meio ao Contrário,


buscamos evidenciar as características que possibilitam interpretá-la como
uma paródia carnavalesca dos tradicionais contos de fadas, ressaltando as
estratégias de linguagem utilizadas pela autora para evidenciar o autoritarismo
sem abrir mão do humor e da poeticidade.

Dentre essas estratégias, analisaremos como a Carnavalização e a


exploração da Intertextualidade - presentes na obra - contribuem para
denunciar e ridicularizar o autoritarismo das estruturas de poder, sem deixar de
encantar e divertir os leitores.

O trabalho está dividido da seguinte forma: Conceito e História da


Literatura Infantil, seção em que explicamos a origem do termo e como esse
gênero surgiu; seguida da exposição do conceito e diferenças entre conto de
fadas e conto maravilhoso. A partir daí, após apresentar o modelo de análise
proposto pela crítica Nelly Novaes Coelho, iniciamos a análise da estrutura
narrativa da obra.

Posteriormente, discorremos sobre os conceitos de perspectiva


narrativa, paródia e carnavalização para, então, completarmos a análise,
destacando o dialogismo e a intertextualidade na obra. Para tanto, utilizamos
como base teórica a definição de paródia exposta por Affonso Romano de
Sant’Anna e os conceitos de carnavalização e dialogismo propostos por Mikhail
Bakthin. Por último, chegamos às considerações finais.

1. Conceito e História da Literatura Infantil

A literatura Infantil, de modo diferente de outras expressões artísticas, se


define em relação ao tipo de consumidor que a recebe. Se analisarmos,
podemos perceber que, no espaço de criação literária, os critérios de
5
diferenciação são relativos à linguagem (poesia x prosa), aos modos de
representação (narração x diálogo) ou ainda ao assunto: relato policial,
suspense, romance introspectivo, etc.

Frente a essa particularidade da literatura infantil, vários estudiosos –


entre eles Nelly Novaes Coelho, Regina Zilberman, Lígia Cademartori –
colocam-se veementemente contra esse caráter limitador imposto à literatura
infantil. As autoras ressaltam que os textos para crianças designam
antecipadamente seus leitores, o que não ocorre com outras modalidades da
literatura.

Segundo Cademartori, o adjetivo não importa, mas sim o substantivo. O


infantil, como adjetivo do substantivo literatura, também traz subjacente a
imagem de um leitor em particular, o que significa que já se saberia, de
antemão, o que interessa a esse público. Cademartori (1986) salienta um fator
importante inerente à literatura infantil:

Como geralmente o autor da literatura infantil não é criança e escreve


para criança, a ausência de correspondência entre leitor e autor gera
indagações que se aprofundam quando se considera o lugar de
dependência da criança no mundo social. (p. 8-9)

Além das discussões em torno do destinatário e da amplitude do gênero,


cabe salientar as origens históricas da literatura infantil. O gênero tem suas
raízes vinculadas ao fim do século XVIII, início do século XIX, quando a
sociedade burguesa emergente influencia a legitimação do modelo familiar
fundado na mãe como dona de casa e protetora dos filhos e na instituição da
infância vista como fase da vida a que se destina cuidado e proteção.

Anterior a esse período, a criança era vista como um adulto em


miniatura não havendo diferenciação dos adultos – as crianças participavam
dos mesmos espaços, trabalhavam e não eram afastadas de acontecimentos
como morte, nascimento e doença (CADEMARTORI, 1987).

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Com a instauração da infância e o estímulo à formação da família
nuclear privada, surgem textos destinados às crianças que tinham como
principal função ensinar normas e regras morais aos pequenos, ficando em
segundo plano, nessas histórias, os aspectos estéticos, próprios da arte
literária. É nesse mesmo período, século XIX, que haverá o início da
universalização do ensino, estendido aos filhos dos pequeno-burgueses. Sendo
assim, nesse momento histórico, teremos o reforço do papel da literatura
infantil como meio de ensinar regras e normas.

Muitos dos textos destinados às crianças eram provenientes de


adaptações de contos populares da tradição oral, criados e contados pelas
classes dominadas – camponeses, artesãos, operários. No entanto, foram
apagados desses contos seus aspectos mais perversos e/ou contestatórios.

Esses contos eram caracterizados pela presença do elemento


sobrenatural: fadas, bruxas, duendes, fórmulas mágicas. Zilberman (1984) cita
Richtel e Merkel ao destacar o conceito de imaginário afirmando que, de
acordo com esses autores: “a fantasia tem um nítido caráter compensatório,
legítimo, caso se pense que decorre de uma absoluta depauperização e
impossibilidade de mudar o sistema.” (ZILBERMAN, 1984, p.16-7)

Por ter suas origens ligadas à imposição de normas do mundo adulto à


criança, a literatura infantil, até os dias de hoje, ainda vincula-se a um papel
pedagógico. Porém, várias obras romperam com essa tradição adestradora e
não literária. No cenário internacional, as primeiras obras a cortarem os laços
com a tradição moralizante foram Alice no país das maravilhas, de Lewis
Carrol; A ilha do tesouro, de Robert L. Stevenson e as histórias de Mark Twain:
As aventuras de Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn.

No Brasil, o principal autor a distanciar-se da vertente didática foi


Monteiro Lobato. A obra de Lobato funda um novo padrão estético, e passa a
ser o grande modelo do texto literário destinado à criança. Na obra lobatiana,
os personagens são críticos, formulam hipóteses, discordam. Um grande
símbolo desse tipo de personagem é Emília, lembrada por sua astúcia e
inteligência. Cademartori explica: “O grande desafio das personagens de
Lobato é o conhecimento, é através dele que se impõem” (1987, p.51).
7
Cademartori salienta ainda que as histórias de Lobato trazem uma
ampla interpretação da realidade nacional - tanto cultural e social, quanto
econômica e política. Por essa razão, segundo a autora, a obra também
apresenta brechas para que o leitor questione, discorde e formule suas
próprias hipóteses.

Na obra de Lobato, o imaginário e o real convivem de forma harmoniosa


sem que haja cortes, artifícios ou fórmulas para se passar de um mundo para o
outro. Segundo Ana Maria Machado (1999), essa naturalidade em se passar do
fantástico1 para a problemática social só existia de forma semelhante na
literatura inglesa “infantil”, da Alice de L. Carrol ao Peter Pan de J. M. Barrie.
Entretanto, no caso brasileiro, havia ainda uma preocupação política libertária.

Com a morte de Lobato, os avanços ocorridos na literatura nacional


destinada às crianças retrocederam, e as produções para a infância voltaram a
ter um caráter mais educativo e moralista, sufocando a criticidade e a
imaginação dos pequenos.

Somente após a deflagração do AI5 em 1968, o Golpe dentro do golpe,


a literatura infantil irá tomar novo fôlego, retomando seu caráter contestatório e
libertário. A seguinte afirmação de Machado (1999) salienta esse aspecto:

Os textos da literatura infantil brasileira dessa época (ditadura


militar) eram muito carregados de sentidos. Em termos de conteúdo
tudo foi expresso e discutido, da ‘revolução’ de [19]64 ao exílio, da
luta armada à censura, do autoritarismo ao imaginário mais
obviamente psicanalítico, dos novos padrões de comportamento às
novas realidades familiares e sociais. (p. 18)

Marisa Lajolo (2004) aponta que é na década de 70 do século passado


que a literatura infantil atinge maturidade, reelaborando a problemática

1
Segundo Selma Calasans Rodrigues (1988), o termo fantástico que provém do latim
phantasticu, proveniente por sua vez do grego phantastikós, os dois oriundos de phantasia,
refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o
fabuloso. No fantástico temos uma dupla quebra, tanto na ordem do comum quanto na do
sobrenatural.
8
lobatiana. A estudiosa tece uma comparação entre o contexto histórico em que
a obra de Lobato foi produzida (1920-1948) e o momento histórico de 1970,
apontando que os dois momentos se caracterizam por serem períodos de
grandes transformações nacionais. Lajolo argumenta:

Nos anos 70 do século XX, o esforço pioneiro de Monteiro Lobato


amadureceu seus frutos. A irreverência de sua obra, a solidariedade
que ele estabelece com o mundo infantil, a inteligência tantas vezes
irônica de seu diálogo com os leitores (inclusive os do século XXI), o
esforço empreendido para desliteralizar sua literatura, a irrestrita e
corajosa luta por suas crenças e seu engajamento na construção de
um Brasil melhor, encontraram herdeiros nas novas vozes das quais,
Ana Maria Machado, é emblema com sua obra vasta e variada.
(2004, p.16) (Grifo da autora)

Em um primeiro momento, pode parecer contraditório o período de 1964-


1968 ser palco de várias produções contestatórias, entretanto, nesses
primeiros quatro anos de ditadura militar não existiam critérios claros para a
ação repressora, já que não havia uma regulamentação censória. Fato esse
que fez figurar entre os livros mais lidos em 1968 as obras: Um projeto para o
Brasil, de Celso Furtado - um dos clássicos da literatura de esquerda - e Kama
Sutra - literatura hindu de fisiologia moral e sexual. (REIMÃO, 2009) A censura
só foi arduamente exercida após a deflagração do AI5 (1968) - ato institucional
que só perdeu seu efeito a partir de 1º de janeiro de 1979.

2. Conto de Fadas e Conto Maravilhoso

Quando lemos ou ouvimos falar de contos de fadas e contos


maravilhosos, é comum esses termos- conto de fadas e conto maravilhoso-
aparecerem de forma indistinta. Sendo assim, para fins de estudos, faz-se
necessário diferenciá-los.

Segundo Nelly Novaes Coelho (2000), pode-se afirmar que o


maravilhoso está presente na literatura desde seus primórdios. Sendo assim,

9
pertencem ao universo do maravilhoso a ação de deuses ou seres
sobrenaturais na poesia ou na prosa (fadas, bruxas, anjos, etc.).

Podemos dividir o maravilhoso em duas categorias: o maravilhoso pagão


– a presença de seres de uma mitologia não-cristã; e o maravilhoso cristão - na
ocorrência de seres miraculosos cristãos: anjos, demônios, santos, etc. As
literaturas gregas e latinas e a literatura neoclássica do Renascimento, que
retoma os clássicos greco-romanos (Camões, por exemplo) estão repletas de
maravilhoso pagão. Na literatura medieval, predomina o maravilhoso cristão
misturado ao pagão, o celta, por exemplo. No final da Idade Média, Dante
Alighieri já usa, de maneira muito especial, o maravilhoso pagão greco-latino
misturado ao cristão.

São provenientes do maravilhoso os personagens com poderes


sobrenaturais, que podem voar ou caminhar sobre as águas, que têm uma
força descomunal e desafiam as leis da gravidade. Esses personagens
também poderão encarnar as forças do Bem e do Mal, sofrer profecias e
presenciar milagres.

O conto maravilhoso tem raízes em narrativas orientais, difundidas no


ocidente pelos árabes, e cujo modelo mais conhecido é a coletânea As Mil e
Uma Noites.

Já os contos de fadas, segundo Novaes (2000), diferenciam-se dos


contos maravilhosos principalmente por não serem de natureza material, mas
sim espiritual/ética/existencial. Como o próprio nome indica, a principal
característica do conto de fadas é a presença de um ser mágico, isto é,
costumeiramente temos a aparição de fadas, para auxiliar o herói/heroína na
solução de problemas.

Os contos de fadas têm suas origens nos contos maravilhosos, no


entanto, por estarem voltados para o público infantil, foram suprimidos seus
aspectos mais perversos- como cenas de violência e relatos de abusos
sexuais, muito comuns nos contos maravilhosos- os quais eram originalmente
utilizados como meio de entretenimento para adultos.

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3. Estrutura Narrativa

Tradicionalmente, os contos de fadas e os contos maravilhosos


possuem uma estrutura narrativa básica comum. Um dos primeiros estudos a
propor um modelo de análise que parte dessa premissa foi exposto por
Wladimir Propp, em sua Morfologia do Conto em 1928, e até hoje é um dos
modelos mais aceitos. Segundo o linguista russo, todas as histórias podem ser
reduzidas a um conjunto finito de funções, não levando em conta as
particularidades de cada efabulação.

Propp propôs trinta e uma funções para a análise das histórias. No entanto,
seguiremos a proposta – mais concisa – da professora Nelly Novaes Coelho
(2000) destacando cinco invariantes presentes nesses contos: aspiração (ou
desígnio), viagem, obstáculos (ou desafios), mediação auxiliar e conquista do
objetivo (final feliz). Definindo tais invariantes, temos:

1. Toda efabulação tem, como motivo nuclear, uma aspiração ou um


desígnio, que leva o herói (ou a heroína) à ação.

2. A condição primeira para a realização desse desígnio é sair de casa; o


herói inicia uma viagem ou se desloca para um ambiente estranho, não
familiar.

3. Há um desafio à realização pretendida, ou surgem obstáculos


aparentemente insuperáveis que se opõem à ação do herói ou da
heroína.

4. Surge um mediador entre o herói/heroína e o objetivo que está difícil de


ser alcançado; isto é, surge um auxiliar mágico, natural, ou sobrenatural,
que afasta ou neutraliza os perigos e ajuda o herói a vencer.

5. Finalmente o herói conquista o almejado objetivo.

A essas invariantes básicas correspondem inúmeras variantes-


circunstâncias acidentais- que tornam cada conto único ou simplesmente
diferente dos demais.

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Em História meio ao Contrário, Ana Maria Machado parte do gênero2
tradicional dos contos de fadas, que costuma ser um gênero conservador,
reprodutor do discurso ideológico dominante, ou seja, um gênero que
representa a cultura dominante.

Contudo, para quebrar essa tradição conformadora, instaura a


desacomodação por meio da ruptura dos papéis tradicionais desempenhados
pelas personagens, tanto as personagens da realeza, quanto as personagens
do povo - pastores, camponeses. Nas narrativas tradicionais, os personagens
pobres geralmente ou não possuem destaque ou, quando são protagonistas,
acabam se tornando nobres (A Bela e a Fera; Rumpelstiltskin), ou são nobres
postos em situação degradante por alguém com poder e, no final, reconquistam
seu lugar junto à nobreza (Branca de Neve; Cinderela).

A autora desconstrói os estereótipos desses personagens tradicionais,


dando-lhes outras atitudes. Rebaixa o rei, símbolo do poder; e valoriza a ação
popular. Assim, em História meio ao Contrário, é dada voz às classes
dominadas, colocando-as como sujeitos modificadores da História.

Outra característica da obra que é importante salientar é o fato dos


personagens não possuírem nomes, sendo identificados pela sua ocupação:
Rei, Rainha, Camponês, Ferreiro, Pastora. Isso indica que são personagens-
tipo e representam uma coletividade, ou seja, não se refere a um rei específico,
a uma pastora específica, qualquer rei, ou pastora, ou camponês, de qualquer
tempo ou lugar, poderiam encarnar esses personagens não nomeados. Por
outro lado, a tipificação também faz com que esperemos dessas personagens,
comportamentos e ações predefinidos pela tradição narrativa.

2
Neste trabalho, entende-se gênero não como a divisão tradicional em gêneros literários, mas conforme
a definição bakhtiniana para gêneros do discurso: “Qualquer enunciado considerado isoladamente é,
claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2000, p. 279, grifos do
autor)
12
3.1. Análise do enredo segundo o modelo proposto por Coelho

INVARIANTES VARIANTES

1 Desígnio O rei deseja que seja morto “o dragão de um


olho só”, que faz desaparecer o dia e,
para isso, oferece a mão de sua filha em
casamento ao cavaleiro que tiver coragem
para tal ato.

2 Viagem Os mensageiros do rei viajam, levando a


oferta do rei aos pontos mais distantes. Príncipe
de país distante chega para satisfazer o desejo
do rei.
3 Obstáculo
O obstáculo que se coloca frente ao desejo
do rei é a união do povo para impedir que o
príncipe mate o dragão.

3.1 Desígnio Ao contrário do rei, o povo deseja que a noite


seja salva.

O príncipe recém-chegado é o obstáculo ao


3.2 Viagem e obstáculo
desejo do povo. Sendo assim, os populares
viajam em busca do gigante adormecido que
pode impedir a morte do dragão de um olho só
(noite).

4 Mediação Mágica O povo acorda o gigante adormecido para


auxiliá-los a conter os propósitos do príncipe. O
gigante é o mediador mágico que agirá na
história.
5 Conquista do objetivo O povo salva a noite- que é geralmente
representada nos contos de fadas e contos
maravilhosos como algo negativo, momento
do dia em que coisas ruins acontecem.

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Sendo assim, o desígnio efetivamente cumprido não são as aspirações
da realeza, mas as necessidades do povo, que se organiza e salva o dragão,
metáfora para a tensão social e a manifestação da ideia de que, se o povo se
organizar e for à luta, conseguirá despertar o gigante adormecido - metáfora do
nosso país, o gigante, como diz o Hino Nacional, que está “deitado
eternamente”.

A conquista do objetivo pretendido pelo povo rompe com a estrutura


tradicional dos contos de fadas/maravilhosos, nos quais os desfechos das
narrativas geralmente são casamentos pomposos, através dos quais o
indivíduo de origem popular é integrado à nobreza, sem provocar nenhuma
transformação na estrutura social vigente. Antes de prosseguir a análise, é
necessário, portanto, expor os conceitos de paródia, carnavalização e
perspectiva narrativa o que será feito a seguir.

4. Conceitos Teóricos: Tecendo a análise

4.1. Paródia

Entre as múltiplas possibilidades de relações intertextuais que podem


ser estabelecidas entre discursos, uma de especial interesse para este trabalho
é a paródia. O termo paródia tem origem grega (para-ode) e está relacionado à
música. O seu significado original era o de uma ode que perverte o sentido de
outra ode, era uma canção que era cantada como contracanto de outra.

No entanto, para a teoria literária, o termo passou a ter um significado


mais específico, levando inclusive à constituição de tipologias. Affonso Romano
de Sant’Anna (2007) define três tipos de paródia:

a) Verbal – em que se alteram algumas palavras do texto parodiado,


gerando um sentido totalmente diferente do original;

b) Formal - em que os estilos e efeitos técnicos de um escritor – ou gênero


– são usados como uma forma de zombaria;

14
c) Temática - em que se faz a caricatura da forma e do espírito de um
autor.

Toda a paródia tem como base um texto preexistente ou um gênero


preexistente e é escrita com intenção de subvertê-lo, gerando humor, ironia ou
crítica. A paródia também pode ser definida como uma sobreposição de vozes
na qual o discurso sobreposto subverte o anterior.

Sant’ Anna (2007) diz que:

(...) a ideologia tende a falar sempre do mesmo e do idêntico, a


repetir suas afirmações tautologicamente diante de um espelho. Por
isto é que, assumindo uma atitude contra-ideológica [sic], na faixa do
contra-estilo [sic], a paródia foge ao jogo de espelhos denunciando o
próprio jogo e colocando as coisas fora do seu lugar ‘certo’. (p. 29)

Portanto, a paródia inaugura um novo paradigma por estar do lado do


novo e do diferente. De avanço em avanço, o ato de parodiar constrói a
evolução de um discurso, de uma linguagem.

Em História meio ao contrário, não é uma obra ou um texto específico


que é parodiado, mas sim o gênero conto de fadas; são os elementos e
convenções narrativas previstas para esse gênero que são subvertidos.
Considerando a tipologia de Sant’Anna, trata-se, pois, de uma paródia
predominantemente formal.

Essa paródia da forma dos contos de fadas – iniciando a história pelo


tradicional fim desse gênero - “E eles (rei e rainha) casaram e tiveram uma filha
linda como um raio de sol” (grifo nosso) – e, ao longo da narrativa, invertendo a
perspectiva narrativa - da realeza para o povo - não é feita apenas por
questões estético-literárias, mas também para evidenciar a possibilidade de se
modificar as estruturas do poder e as bases ideológicas da sociedade,
destacando que os papéis sociais não são fixos e podem (e devem) ser
rompidos.

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4.2. Carnavalização. Origem e História.

O teórico russo Mikhail Bakhtin chama de carnavalização a transposição


da linguagem do carnaval para a linguagem da literatura. Em Problemas da
Poética de Dostoievski, após tecer alguns comentários sobre a importância do
carnaval para a cultura, Bakhtin enfatiza que não se deterá no estudo do
carnaval, mas no estudo da carnavalização, que é a influência determinante do
carnaval na literatura, especialmente sobre o aspecto do gênero.

Bakhtin aponta como principal ação carnavalesca a coroação bufa e o


posterior destronamento do rei do carnaval. Ressalta ainda que, na base dessa
ação ritual de coroação e destronamento do rei, reside o próprio núcleo da
cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da morte
e da renovação.

O ritual de coroação-destronamento exerceu grande influência no


pensamento artístico-literário ao longo da história da literatura. No gênero
romanesco, entre outros de menor extensão, ainda podemos encontrar traços
da linguagem carnavalesca.

O linguista russo salienta que a paródia é organicamente estranha aos


gêneros puros, sendo própria dos gêneros carnavalizados. Na antiguidade, a
paródia era indissociável da cosmovisão carnavalesca. Para Bakhtin: “parodiar
é a criação do duplo destronante, do mesmo ‘mundo às avessas’ por isso a
paródia é ambivalente.” (1997, p. 127)

A paródia carnavalesca tem suas origens ligadas à influência do folclore


carnavalesco na produção dos gêneros sério-cômicos. Dentre os gêneros
desse campo, o linguista russo destaca o diálogo socrático e a sátira menipeia.

Bakhtin caracteriza o diálogo socrático não como um gênero retórico,


mas como tendo base carnavalesco-popular e profundamente impregnado da
cosmovisão carnavalesca, principalmente no estágio socrático oral.

Como gênero específico, o diálogo socrático não durou muito. No


entanto, com a desintegração desse gênero, vários gêneros decorrentes
surgiram. Dentre eles, figura como o mais importante para a história e teoria
literária a sátira menipeia. Entretanto, segundo Bakhtin (1997), não devemos
16
considerá-la como puramente o produto do desfalecimento do diálogo
socrático, como muitos teóricos da teoria literária costumam fazer, pois a
menipeia está bem mais ligada ao folclore carnavalesco do que o diálogo
socrático.

Ao estabelecer um paralelo entre a sátira menipeia e o diálogo socrático,


Bakhtin ressalta que, naquele gênero, há um aumento substancial do elemento
cômico. Para Bakhtin, a característica mais importante da sátira menipeia é que
as situações e aventuras mais descomedidas são puramente motivadas pelo
intuito de criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma
ideia filosófica.

Outra característica da menipeia são as cenas de escândalos, de


comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas. Segundo o
teórico:

(...) os escândalos e excentricidades destroem a integridade épica e


trágica do mundo, abrem uma brecha na ordem inabalável, normal
(‘agradável’) das coisas e acontecimentos humanos e livram o
comportamento humano das normas e motivações que o
predeterminam.

[...]

A ‘palavra inoportuna’ é inoportuna por sua franqueza cínica


ou pelo desmascaramento profanador do sagrado ou pela veemente
violação da etiqueta, também bastante característica da menipéia
[sic]. (BAKHTIN, 1997, p.118)

Essas cenas de escândalos são constantes em 3HMC e em todas elas, o


Rei figura como centro desses episódios, que, devido aos seus trocadilhos e à
sua ignorância, torna-se uma personagem eminentemente cômica. Imputar ao
Rei essa posição hilariante faz com que riamos dele para, então, percebermos
a crítica dirigida ao poder. Sendo assim, podemos dizer que a autora parte da

3
Usaremos, ao longo do trabalho, a sigla “HMC” para nos referirmos à obra História meio ao
contrário.
17
famosa frase latina Castigat ridendo mores. Dar ao Rei, figura que deveria
concentrar poder e respeito, traços obtusos é uma forma de atacar o poder,
procedimento da carnavalização destronante.

Além disso, a declaração da personagem Primeiro Ministro desvela o


alheamento do Rei quanto à situação daqueles a quem deveria governar:

Se nós fôssemos trazer a vossos reais ouvidos todos os problemas


do povo, como é que Vossa Majestade ia poder continuar a ser feliz
para sempre? [...] Para que Vossa Majestade quer saber dos
problemas do povo e se arriscar a ter uma real dor de cabeça? (HMC,
p. 16, grifo nosso)

Na declaração do Primeiro Ministro, há um desmascaramento


profanador da autoridade real, destronando-o ao pôr em evidência a falta de
representatividade do poder do Rei, que é completamente alheio ao que
acontece no seu reino.

4.2.1. O rebaixamento através da Linguagem

Conforme já mencionado, é característico da literatura carnavalizada a


inversão do já estabelecido - o rebaixamento do alto e elevação do baixo -
tanto com relação às figuras do poder quanto com a dessacralização do corpo.

No corpus analisado, percebemos esse procedimento nas atitudes do


Rei, na comicidade da repetição do adjetivo real - referente à realeza, na rima e
nas brincadeiras fônico-sonoras, utilizadas com finalidade cômica e na inversão
de papéis entre a nobreza e a plebe: do Príncipe, da Princesa e da Pastora.
Vejamos como isso ocorre.

É marcante, nos trechos da narrativa os quais se referem à nobreza, a


excessiva repetição dos adjetivos real/realeza, permitindo várias
interpretações: referir-se à realeza; à realidade ou, com seu uso exacerbado,
questionar a legitimidade da realeza por não exercer seu poder de governo de
forma adequada.
18
Há uma cena em que o Rei observa o fim do dia - e um criado vai e volta
levando mensagens da Rainha avisando que a água do banho está morna, e
que ela não gosta de dormir com quem não toma banho- na qual temos uma
situação tipicamente carnavalesca: o Rei é rebaixado, posto em uma situação
de intimidade, relacionada à higiene pessoal, incomum à forma como se
costuma representar a realeza nos contos de fadas. A resposta do Rei reforça
o caráter cômico da cena: “Diga à Rainha para ela ir tomar banho, se faz
questão de aproveitar essa água.” (HMC, p.9).

O que gera humor na cena descrita é o fato de, na circunstância em que


o enunciado é dito pelo Rei, ser cabível também uma expressão idiomática
como “mandar alguém ir tomar banho”, já que a rainha mandou várias vezes o
criado importunar o rei pedindo-lhe para ir tomar banho. O uso da vírgula após
a oração “diga à Rainha para ela ir tomar banho” acentua a possibilidade de a
interpretarmos como um xingamento.

Sendo assim, a possibilidade do riso é aí instaurada pelo tom ofensivo


com que o enunciado teria sido dito, com uso de linguagem chula, o que seria
um comportamento inapropriado do personagem real, já que a imagem
tradicionalmente passada em torno da realeza é de pompa e boas maneiras.
Dá-se, portanto, a inversão típica da carnavalização.

Outro exemplo de rebaixamento é o Rei ser caracterizado como guloso:

- Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa


Majestade vir jantar, que a real comida já vai para a real mesa e está
realmente deliciosa.

O Rei era meio guloso e gostava de comer bem, quase entrou


correndo. (HMC, p.9)

Também é possível verificar o procedimento carnavalesco na obra em


análise, no trecho da narrativa em que Rei depara-se com desaparecimento do
dia e a série de xingamentos que ele profere após presenciar tal cena, por
pensar haver um ladrão que rouba o dia:

19
De repente, o Rei entrou aos gritos, fazendo um escândalo real:

- Socorro! Acudam! Ladrões! Bandidos! Facínoras! Biltres!

E continuou a gritar uma porção de palavras que a Princesa


não conhecia, e deviam ser terríveis palavrões. (HMC, p.10)

Quando o rei anuncia sua descoberta sobre o desaparecimento do dia,


ele tem novamente um ataque de raiva e reinicia a gritar uma série de
impropérios:

- Exijo que o culpado seja punido! Onde já se viu? Roubar minha real
luz bem nas minhas reais barbas?

E ficou brabíssimo outra vez, tendo ataques de raiva e dizendo


aqueles nomes que a princesa achava tão divertidos:

- Famigerados! Pulhas! Esbirros! (HMC, p. 14) (grifo nosso)

Sendo assim, podemos desenvolver a seguinte analogia entre o


rebaixamento do Rei em HMC e o destronamento do diabinho em 4François
Rabelais, ao ser enganado por uma velha que lhe mostra seu órgão genital
mentindo ter sido arranhada pelo marido só com o dedo mindinho. O pequeno
diabo havia marcado um arranhamento mútuo com tal dedo e, quem ganhasse,
ficaria com o campo pertencente ao marido da velha:

O diabo, vendo aquela enorme solução de continuidade de todas as


dimensões, exclamou: - Mahon, Demiurgon, Megera, Alecto,
Personfe! Ele não me pega. Vou-me embora. Nunca, eu lhe deixo o
campo. (RABELAIS apud DISCINI, 2010, p.61)

Sobre o trecho, Norma Discini comenta: “Por sua vez hiperbólica a


sequência de blasfêmias, proferida pelo diabinho diante do que vê, mistura o
cômico ao espanto.” (2010, p.62).

4
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Junior. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003.
20
Podemos comparar o não conhecimento da genitália humana por parte
do diabinho com o desconhecimento da noite por parte do rei, já que ambos- o
rei e o diabo- são figuras tradicionalmente investidas de poder e sabedoria. A
sequência de impropérios empregados pelos dois, após depararem-se com o
desconhecido, gera humor, já que tanto existir dia e noite quanto haver orifícios
no corpo humano não são mistérios dignos de espanto, mas sim elementos
naturais que ambos deveriam conhecer. O uso, pelas personagens, de uma
linguagem rebuscada para xingar também acentua o cômico, pois contrasta
com a ignorância de fatos elementares.

Mais adiante, Discini (2010) ainda ressalta que:

No lugar do temor [ao diabinho] está o riso que liberta, para a


composição da imagem de um Lúcifer que sente cólicas e se alimenta
de advogados perversos do direito e espoliadores dos pobres. Seja o
mais experiente, seja o neófito, a imagem da entidade do inferno é
contraditória àquela, assustadora e punitiva, tão cara à ética oficial
cristã. (RABELAIS apud DISCINI, 2010, p. 63)

Outro meio utilizado para rebaixar o Rei é a seleção dos verbos discendi
que se referem à utilização de um tom de voz inadequado: “-Todos os dias
como? - berrou o Rei. – Foi hoje, agora, eu acabo de ver.” (HMC, p.14, grifo
nosso)

Dizer que alguém berrou remete à oralidade, já que empregamos esse


verbo na fala quando queremos salientar que alguém está gritando, o que é
tido como grosseiro socialmente. Este aspecto torna-se mais contundente
porque o verbo anuncia a fala de um rei, e não é costumeiro introduzir a fala da
realeza com verbos desse tipo, porque berrar é um ato animalesco e não um
ato humano.

Esse emprego de verbos que caracterizam sons de animais ocorre


também em outros momentos da trama:

21
Tanto ele insistiu que o Rei finalmente, conseguiu urrar:

- Uma coisa horrível! Roubaram o dia! (HMC, p.12)

A postura inadequada do Rei é novamente referida pelo mesmo verbo na fala


do Primeiro Ministro:

- Que é isso?- gritava o Rei. – Então vocês sabem quem é o ladrão e


não querem me dizer? Eu sou o rei de vocês! O Rei! O Rei!

- Não precisa urrar, Majestade- disse o primeiro ministro tentando


acalmá-lo. (HMC, p. 18, grifo nosso)

A ignorância do Rei e seu comportamento inadequado podem ser


relacionados à atitude de muitos membros da Ditadura Militar. A falta de
preparo dos censores e os mandos e desmandos dos governantes da época,
permitiram que o escritor Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte
Preta, em sua obra Festival de Besteiras que Assola o País, contasse/criasse
uma situação em que um censor do regime mandou prender Sófocles,
dramaturgo grego, por considerar subversiva uma peça de sua autoria que
estava em cartaz em São Paulo algum tempo depois da instauração do AI5.

Outra peculiaridade da menipeia, ressaltada por Bakhtin, é o fato desse


gênero jogar com passagens e mudanças abruptas, o alto e o baixo,
ascensões e decadências, aproximações inesperadas do distante e separado,
com toda a sorte de casamentos desiguais. Se considerarmos o sentido
denotativo da expressão “casamentos desiguais”, não podemos deixar de
mencionar aqui a união do Príncipe com a Pastora, sem deixarmos de nos ater
ao agravante: o Príncipe, que se sentia desconfortável com sua posição social,
pois quando queria alguma coisa era prontamente atendido, passa a ser
Vaqueiro, já que assim se sentia mais útil.

O linguista russo também cita como elemento da menipeia a “fusão dos


discursos da prosa e do verso” (Bakhtin, 1997, p. 118). Na narrativa de História
meio ao Contrário, existem vários trechos nos quais há rimas, que acrescentam

22
à narrativa um tom cômico em alguns trechos e, em outros, dão uma descrição
poético-romântica, como na seguinte descrição da paisagem:

O Rei ficou mais um pouco, vendo. Vendo o quê? O céu que


estava mudando. Ficando cor-de-rosa, avermelhado, laranja,
arroxeado... O sol mais baixo a cada instante. As nuvens de um
dourado brilhante. Tudo diferente, fascinante. (p. 10).

A última característica da menipeia apontada por Bakhtin é sua publicística


atualizada, ou seja, literatura político-social - que enfoca temas da atualidade e
trata de forma mordaz, a ideologia vigente, essa crítica pode aparecer de forma
aberta ou velada.

4.3. Perspectivas ou Focalizações Narrativas

Os tipos de narradores existentes: heterodiegético5- narra os fatos de


fora - e homodiegético - narra os fatos de dentro da ficção - nos dizem quem
narra no romance. Já as perspectivas ou focalizações narrativas demonstram
quem percebe no romance. Ao lermos quaisquer gêneros da prosa literária,
podemos perceber que o leitor é apresentado à ficção segundo uma ótica, uma
perspectiva, que irá ser diferente dependendo do centro de orientação que
determina o que ele percebe.
Segundo Yves Reuter (2004), temos, tradicionalmente, três grandes
perspectivas/focalizações:
a) A que passa pelo narrador (“visão por detrás” ou “focalização zero”);
b) A que passa por uma ou várias personagens (“visão com” ou “focalização
interna”);
c) E a que parece neutra, que parece não passar por nenhuma consciência
(“visão de fora” ou focalização externa”).

5
Conforme terminologia adotada por Gérard Genette.
23
É a partir da perspectiva que o leitor irá apreender o mundo da narrativa
e é também a partir dela que será dado grau de profundidade, (a quantidade de
informações), o exterior ou o interior das coisas e dos seres.

Reuter alerta que o termo focalização pode levar ao erro, pois não se
trata apenas de foco/visão, mas também de olfato, paladar, tato; que será dada
conforme a percepção do narrador ou da personagem, por isso considera mais
apropriado o uso do termo perspectiva, que engloba todos os sentidos. Em
História meio ao Contrário, o jogo com a focalização narrativa contribui para a
criação da ótica carnavalizada.

4.3.1. Invertendo Papéis: Focalização Carnavalizada

O narrador começa a contar a história a partir da formação da família do


rei, relata como é o relacionamento entre os membros dessa família e destes
com seus criados; expõe o alheamento do governante frente aos problemas do
povo – este nem mesmo sabe o que é povo - através da metáfora do rei que
desconhece a noite. Após ser instaurado o mistério do desaparecimento do dia,
o Rei pede para um criado chamar o povo com o objetivo de descobrir quem
havia roubado o dia.

Em seguida, a perspectiva narrativa passa a ser dada por meio do


ângulo de visão das pessoas comuns: camponeses, ferreiros, artesãos,
pastores; elas chegam à conclusão de que não querem a extinção da noite
(representada metaforicamente por um dragão negro de um olho só), o que as
leva a se organizarem e lutarem para que o dragão não seja morto, fato que
representaria o fim do descanso deles, já que, sendo sempre dia, teriam que
trabalhar sem parar.

No plano espacial, a narrativa da obra História meio ao contrário se


divide da seguinte maneira: no primeiro momento, a ação se centra no palácio
e, no segundo, na aldeia. Essa mudança espacial é acompanhada por uma
alteração na perspectiva pela qual a história é contada, as personagens focais
passam a ser os membros do povo, através do qual é narrado o mesmo fato
presenciado pelo Rei, só que por outro ângulo de visão.

24
O Dragão Negro de um olho só, para o Rei, é um problema, mas, para o
povo, é um amigo. Quando chega o Príncipe- que segundo a Pastora, era
encantador, mas não era encantado - para matar o dragão, a conversa do povo
é a seguinte:

O Camponês disse:

- É, agora vamos mesmo ter que fazer alguma coisa para defender o
Dragão. Afinal, ele é amigo da gente...

- Isso mesmo! - apoiou o Ferreiro. – Se ele não carregasse o sol todo


dia, garanto que nós íamos ter que trabalhar sem parar, sem poder ir
dormir, sem descansar. (HMC, p.25)

No fim da narrativa, o povo sai vitorioso. Com essa modificação da


perspectiva narrativa - que começa apresentando a realeza, com foco especial
na figura do Rei - para mostrar a ação e as visões do povo, que passa a
protagonizar a história, podemos entender o título como o avesso da História
oficial. A História passa a ser contada por outra perspectiva, a do povo que
toma as rédeas do processo histórico, demonstrando que a História também é
construída pelo povo e não só pelos poderosos, o que está na contramão da
História oficial - sempre escrita de acordo com a ideologia dominante, da forma
como melhor a favoreça.

Também podemos relacionar esse empoderamento dos populares no


segundo momento da narrativa, com o auxílio do Gigante, às aspirações da
esquerda durante o período do regime militar, que intentavam erguer um
movimento de massas capaz de derrubar a ditadura através da “criação de
vínculos de solidariedade dentro da classe trabalhadora como um todo”,
buscando “uma reeducação da burguesia ou, pelo menos, um
redimensionamento das ‘atitudes autoritárias’ dos comportamentos egoísticos
dos extratos dirigentes das classes dominantes”. (FERNANDES, 2007, p.100).
Esse “redimensionamento de atitudes autoritárias” pode ser constatado no fim
da narrativa, através da mudança na postura do Rei, que após toda a luta

25
travada pelo povo, diz que não é mais preciso matar o Dragão, já que o povo é
muito corajoso e consegue conviver com o monstro.

Essa inversão da perspectiva narrativa é uma focalização carnavalizada,


na qual a visão das classes “superiores” dá lugar à das “inferiores”, tendo o
sentido desmistificador típico do destronamento carnavalesco.

Segundo Bakhtin (1997):

[...] Representar o homem interior, como o entendia Dostoiévski só é


possível representando a comunicação dele com um outro. Somente
na comunicação, na interação do homem com o homem, revela-se “o
homem no homem”, para outros ou para si mesmo.

[...]

Aqui o diálogo não é limiar da ação, mas a própria ação.


Tampouco é um meio de revelação, de descobrimento do caráter
como que acabado do homem. Não, aqui o homem não apenas se
revela exteriormente como se torna, pela primeira vez, aquilo que é,
repetimos, não só para os outros, mas também para si mesmo. (p
256)

O trecho acima pode ser relacionado às modificações ocorridas com a


postura dos trabalhadores - e da Pastora em particular; da Princesa e do
Príncipe, que se desencadeiam por meio do diálogo transformador.

Os trabalhadores, através do diálogo sobre a iminente possibilidade de o


Dragão Negro ser morto, chegaram à conclusão de que precisavam se unir
para evitar essa tragédia, já que o Dragão era amigo deles. Esses camponeses
que só se enxergavam como capazes de apenas trabalhar: “A gente só sabe
mesmo é trabalhar, não entende dessas coisas de lutas e aventuras...” (HMC,
p.26), movidos pela ideia da Pastora de irem se aconselharem com o Gigante,
se unem em torno da causa de salvar o Dragão/garantia dos seus direitos, e
gritam todos juntos, bem alto, para acordar o Gigante. Ou seja, pela troca
dialógica, irá se construindo, ao longo da narrativa, uma nova identidade para o
povo, que se enche do sentimento de autonomia e luta por seus ideais.

26
A Pastora, por meio da conversa com os seus companheiros de
trabalho, passa a impulsionar a luta para proteger o Dragão Negro e, após a
vitória, passa a se sentir autônoma e a olhar os outros de cabeça erguida. Essa
personagem também exercerá influência sobre outras personagens de fora de
seu círculo social, como a Princesa e o Príncipe.

A Princesa, após saber da luta dos aldeões para preservar a vida do


Dragão, percebe o olhar firme e decidido da Pastora. Ao “ver como era bonito
aquela moça de olhar firme e cabeça levantada” (HMC, p. 38), a Princesa
rebela-se e decide não casar com o Príncipe, embora o Rei mantenha a
promessa do casamento mesmo sem a realização da batalha entre o Príncipe
e o Dragão. Argumenta que, se o casamento é dela, a escolha do parceiro só
cabe a ela e, além disso, ela decide conhecer o mundo, outros países, outras
culturas, já que até o dia anterior nem sabia que existia dia e noite.

O Príncipe, no meio do confronto, ao avistar a Pastora, acaba


apaixonando-se pela moça. Em seguida, ambos vão se aconselhar com o
Gigante, já que a Pastora não queria ter que namorar alguém que tivesse de
chamar de Vossa Alteza. Como o Príncipe ficou trabalhando pelos campos em
volta da aldeia como Vaqueiro, “aproveitando sua vontade de fazer alguma
coisa e seu amor pelos cavalos” (HMC, p.40), o Gigante diz ao Príncipe e à
Pastora que achava melhor a Pastora casar com o Vaqueiro e não com o
Príncipe. Conselho que é acatado pelo casal.

Nos contos de fadas tradicionais, muitas vezes os príncipes encantados


também se apaixonam por uma plebeia. No entanto, nessas histórias clássicas,
a personagem feminina encontra-se nesta posição social por algum infortúnio
do destino, pois, em geral, ela faz parte da nobreza.

Em História meio ao contrário, o casamento inesperado entre o Príncipe


e a Pastora rompe com o cânone dos contos de fadas.

Assim, a narrativa inverte o ideal de ascensão social à nobreza presente


nos tradicionais contos de fadas. O Príncipe vê sua posição social como sem
graça, já que, quando ele quer alguma coisa é prontamente atendido, e,
realiza-se ao viver no campo, investido da posição de Vaqueiro. A Pastora não

27
idealiza uma vida palaciana, quer continuar com sua vida, já que se sente bem
em sua ocupação e em sua posição social. Portanto, o trabalho é valorizado
em detrimento do ócio palaciano.

4.4. Dialogismo e Intertextualidade

Diálogo, para Bakhtin, pode ser tanto o diálogo entre textos, entre
diferentes posições sociais- diálogo como tensão entre vozes- como o diálogo
face a face.
Se fizermos uma leitura da vasta obra de Bakhtin, não iremos verificar,
de acordo com José Luiz Fiorin (2010), a ocorrência dos termos intertexto,
interdiscursivo e intertextualidade. Entretanto, Fiorin examina a existência do
conceito de interdiscurso, só que revestido de outra nomenclatura, e a
possibilidade de diferenciação entre interdiscursividade e intertextualidade na
obra do teórico russo.
O autor explica que, na obra bakhtiniana, iremos encontrar o conceito de
interdiscurso com o nome de dialogismo- que é a relação entre os discursos.
Para Bakhtin, o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem. Não
existe objeto que não seja envolvido, imerso em discurso; todo discurso está
em diálogo com outros discursos, toda palavra é cercada de outras palavras.
(BAKHTIN apud FIORIN). “As relações dialógicas não são relações lógicas ou
semânticas, mas relações entre distintas posições.” (BAKHTIN, 1963 apud
FIORIN, 2010, p.169).
Fiorin distingue intertextualidade e interdiscursividade em Bakhtin da
seguinte forma:

Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre


enunciados e aquelas que se dão entre textos. Por isso, chamaremos
qualquer relação dialógica, na medida que é uma relação de sentido,
interdiscursiva- relação entre discursos. O termo intertextualidade fica
reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é
materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade
pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o contrário não
é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não se
28
manifesta no texto, temos interdiscursividade, mas não
intertextualidade. No entanto, é preciso verificar que nem todas as
relações dialógicas mostradas no texto devem ser consideradas
intertextuais. (FIORIN, 2010, p. 181) (grifos do autor)

Bakhtin fala em relações dialógicas entre textos e dentro do texto. As relações


dentro do texto ocorrem quando duas vozes se acham no interior de um
mesmo texto, como é o caso do discurso indireto livre, onde se fundem as
vozes do narrador e da personagem, sem a possibilidade de diferenciar quando
é um ou outro que fala.

Entretanto, há um segundo tipo de diálogo, que é quando o texto


mantém uma relação dialógica com outro texto já existente. Podemos chamar
de intertextualidade, “o processo de relação dialógica não somente entre duas
‘posturas de sentido’, mas também entre duas materialidades lingüísticas”
(FIORIN, 2010, p. 184)

Ainda segundo o linguista brasileiro, o conceito de intertextualidade que


se pode depreender da obra de Bakhtin não é tão vasto quanto os vários
conceitos de intertextualidade que existem no momento, mas também pode
abarcar outras situações, além da anteriormente mencionada.

Os estilos de autores, de movimentos literários, de grupos sociais,


quando passam por um processo de estilização, também podem ser
considerados como mantendo uma relação intertextual, já que Bakhtin sustenta
que: “quando existe uma vontade consciente de representar uma variedade de
estilos, estabelece-se sempre uma relação dialógica entre eles.” (BAKHTIN,
1992 apud FIORIN, 2010, p.184)

Na obra História meio ao contrário, verificamos o primeiro tipo de


intertextualidade explicado por Fiorin. Podemos perceber tal fenômeno nos
trechos abaixo:

[...]- Você pensa sua boba, que é fácil acordar um Gigante? Se não
formos todos juntos e não gritarmos bem forte e bem alto, não adianta
nada.

29
Por isso foram. Naquela tarde, a aldeia ficou deserta. Todo mundo
saiu das oficinas e das plantações. Foram todos para os montes. E foi
até divertido, um passeio bonito pelos risonhos lindos campos
cheios de flores e pelos bosques cheios de vida. Todo mundo
conversando e cantando. (HMC, p.27) [grifos nossos]

Nesse trecho temos a ocorrência de intertextualidade com excertos do


Hino Nacional Brasileiro, os quais são recobertos de um sentido diferente,
afirmando o reino de História meio ao Contrário como evocação do Brasil.
Vamos comparar o trecho citado com o texto original do Hino Nacional: “Teus
risonhos lindos campos têm mais flores /‘Nossos bosques têm mais vida.’ ”

Ao compararmos o excerto do Hino Nacional com o trecho da obra,


percebemos que as pequenas modificações sintáticas da letra do hino citada
em História meio ao contrário por si só não alteram o significado original do
texto. Isso porque o que irá dar-lhe um novo sentido é a rede de relações
tecida entre esse trecho e o conjunto de enunciados no qual foi empregado. A
próxima oração da narrativa também é uma referência intertextual, desta vez
com a letra da música Pra não dizer que não falei das flores, do cantor e
compositor Geraldo Vandré. Na obra temos o enunciado “Todo mundo
conversando e cantando.” (HMC, p.27)

Podemos relacionar essa apropriação do trecho da música de Vandré


como identificação ideológica e diálogo com as manifestações culturais do
período político do país nos anos 1960. A referida música foi composta em
1968, exatamente no ano em que se institui o AI5, em uma explícita atitude de
protesto. A canção logo se tornou um símbolo dos anseios do período e era
entoada como um hino pelos movimentos políticos da época.

Seguindo essa linha de raciocínio, o Gigante seria uma metáfora do


Brasil, assim retratado também no Hino Nacional: “Gigante pela própria
natureza.” Em página anterior à citada, ocorre a primeira alusão ao Gigante
que nos permite estabelecer um paralelo com a letra do Hino Nacional:

30
- [...] Mas alguém já viu o Gigante acordado? Ele passa o tempo todo
deitado, esse gigante adormecido.

- É mesmo... Deitado eternamente...

O trecho “Deitado eternamente” reforça a hipótese de que a personagem


Gigante seja uma metáfora para o país, o que é confirmado na sequência da
narrativa que caracteriza essa personagem como adormecida, deitada
eternamente, o que nos possibilita a comparação com o contexto de supressão
da democracia, de desrespeito aos direitos, do qual esse país precisa(va)
“acordar”. O enunciado “Deitado eternamente” é exatamente o mesmo do hino
nacional, mas adquire um novo significado ao ser reproduzido em um novo
texto, já que um enunciado nunca é o mesmo, pois depende do contexto em
que é (re) produzido.

Considerações Finais

Ao longo do trabalho pudemos perceber que a obra analisada é uma


paródia carnavalesca dos tradicionais contos de fadas, pois além de alterar a
estrutura narrativa clássica desse gênero, também desloca a perspectiva
narrativa, que no início da história pertencia à nobreza e, em um certo ponto da
obra, passa a ser dada ao povo. Essa modificação da perspectiva narrativa
abre-nos diferentes possibilidades de interpretação para o título:

Se pensarmos em história como o desenrolar da sequência narrativa,


por ser meio ao contrário, o que se espera é a alteração de algum elemento
tradicional dessa sequência que, em qualquer gênero do discurso, tem sua
forma relativamente preestabelecida.

Entretanto, a expressão meio ao contrário não se restringe apenas ao


plano do desenvolvimento temporal das ações na narrativa, com a história
iniciando pelo tradicional fim: “...E eles se casaram e tiveram uma filha linda
como um raio de sol e viveram felizes para sempre...” (HMC, p.4) e terminando
com o início típico dessas histórias: “E o Príncipe? Era uma vez.” (HMC, p.40).
Há inversões também nos clássicos papéis – funções – das personagens dos

31
contos de fadas (rei, rainha, princesa, príncipe, camponeses, dragões,
gigantes).

Nos trechos acima citados- que finalizam e iniciam a narrativa - podemos


verificar uma característica dos gêneros carnavalescos que é a
inconclusividade, o seu caráter cíclico; sendo assim, ao terminar com a clássica
frase que principia as narrativas de contos de fadas “Era uma vez”, a obra
permanece aberta, dando-nos a sensação de constante recomeço.

Outra interpretação possível para o título História meio ao contrário é


entendê-la como o avesso da História Oficial. A obra suscita essa interpretação
porque desenvolve a narrativa em dois planos espaciais: o espaço da realeza e
o espaço do povo e retrata a mobilização das massas através da metáfora da
luta pela preservação da vida do Dragão negro de um olho só/preservação dos
direitos do povo. Assim, o fato da história ser meio ao contrário significa que ela
rompe com a lógica opressora da ideologia dominante, que apaga a classe
dominada como agente de transformação histórica.

Essa mudança de perspectiva e a posterior vitória do povo, que se une


para impedir a morte do Dragão Negro, e passa a ser o protagonista da
história, é o principal elemento inovador da obra, pois rompe com a lógica dos
tradicionais contos de fadas nos quais os heróis são os nobres e o povo é
representado apenas por personagens secundários.

As falas cômicas e inapropriadas do Rei, o desconhecimento da noite


pela família real e a aquisição de autonomia por parte das personagens
Princesa e Pastora, e o “casamento desigual” entre essa e o Príncipe, e a
posterior mudança de “título” do Príncipe- que passa a ser Vaqueiro e vai viver
com os camponeses - são aspectos da narrativa que também nos remetem ao
gênero sátira menipéia e contribuem para compor a Carnavalização da obra.

A ignorância do Rei e suas séries de atitudes inadequadas ao cargo que


ocupa, são passíveis de serem relacionadas à postura de muitos membros da
ditadura militar. A presença da intertextualidade com excertos do Hino Nacional
e com trechos da letra Pra não dizer que não falei das flores, são também

32
características relevantes para tecer as conexões da obra com o Brasil sob a
ditadura.

Os vários elementos analisados na obra nos mostraram a riqueza dessa


narrativa e servem para atestar que Literatura Infantil é um gênero literário que
merece prestígio, pois também pode apresentar, assim como os outros
gêneros, grande qualidade, tanto em seus aspectos estéticos quanto em seus
aspectos de abordagem temática, evidenciando que Literatura Infantil não é só
para criança, mas sim, como nos diz Lígia Cademartori, é feita também para
crianças.

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33
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