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Literatura

Infantojuvenil
Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Responsável pelo Conteúdo:


Prof.ª Dr.ª Vanessa Regina Ferreira da Silva
Prof.ª Dr.ª Geovana Gentili Santos

Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Selma Aparecida Cesarin
Literatura Infantojuvenil:
Contextualização e Histórias

• Introdução;
• Família, Escola, Infância e Literatura Infantojuvenil;
• Literatura Infantojuvenil:
Sob a Égide da Fantasia;
• Literatura Infantojuvenil Além Atlântico: Os Primeiros Textos para
a Infância em Terras Brasileiras;
• Monteiro Lobato e o Projeto de Uma Literatura Nacional para as Crianças;
• Curadoria e Prática.


OBJETIVOS

DE APRENDIZADO
• Construir novos conhecimentos relativos à Literatura Infantojuvenil no que tange a aspectos
históricos e sociais e à produção literária mundial e brasileira, direcionada à infância e
à adolescência;
• Conhecer e refletir sobre os gêneros literários e as coleções que subjazem à construção
dessa Literatura.
UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Contextualização
Nesta Unidade, vamos entender como e quando surgiu a produção literária des-
tinada a crianças e jovens.

Em seguida, visitaremos histórias já antigas – os conhecidos clássicos da Lite-


ratura Infantojuvenil e, a partir deles, chegaremos aos precursores da Literatura
Infantojuvenil brasileira.

Para finalizar nosso estudo, vamos entender por que Monteiro Lobato se destaca
como referência nesse sistema literário.

Preparem-se!

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Introdução
Quando vemos nos cinemas adaptações como A Garota da Capa Vermelha
(Warner Bros, 2011), Branca de Neve e o Caçador (RothFilms, 2012), Malévola
(Walt Disney Pictures, 2014) e A Bela e a Fera (Walt Disney Pictures, 2017), pron-
tamente associamos essas produções às histórias que povoaram a infância de quase
todos os adultos.

Figura 1
Fonte: Adaptado de Wikimedia Commons

Atualmente, entender que existe um acervo literário que se destina especificamente


ao público infantojuvenil é algo natural na Sociedade. Entretanto, nem sempre foi assim.
Foi necessário um longo processo de mudança na configuração social e nos papéis
desempenhados pelo Estado, pela família e pela Escola para que a Literatura infantoju-
venil se tornasse um sistema literário.

Quando falamos em sistema literário, retomamos as formulações teóricas propostas pelo so-
ciólogo e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), uma das principais vozes nos estudos de
Literatura brasileira. Em especial, para o conceito de sistema literário, é fundamental a leitura
da “Introdução” do livro “Formação da Literatura brasileira”, publicado em 1959.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Ainda sobre Antonio Candido, leia o texto “A Literatura como sistema” da Revista Pesquisa
Fapesp, ed. 257, jul. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3iHwvja
Para saber mais sobre esse crítico e sua representatividade no campo da teoria literária,
recomenrda-se as leituras a seguir:
• E-biografia Antônio Candido. Disponível em: https://bit.ly/3iJLZ6a
• A vida, a obra e o legado de Antônio Candido, Jornal da USP.
Disponível em: https://bit.ly/30TXq5p

É sobre esses aspectos e sobre o processo sócio-histórico que nos dedicaremos


a seguir, refletindo sobre o surgimento da Literatura Infantojuvenil e recuperando
nomes e obras que, ainda que não criadas originalmente para crianças e jovens,
converteram-se em clássicos da Literatura Infantojuvenil.

Família, Escola, Infância


e Literatura Infantojuvenil
Quando falamos de Literatura infantojuvenil, além de nos referirmos a um con-
junto de textos literários, acenamos, também, para o público ao qual essa produção
se destina: crianças e jovens, isto é, trata-se de obras esteticamente produzidas e
pensadas para leitores específicos (ainda que não se restrinja a eles!).

Mas, será que foi sempre assim? A partir de quando se deu essa produção voltada
para esse público específico?

Para tentar responder a essas questões, Regina Zilberman e Ligia Cademartori


Magalhães, em Literatura Infantil: autoritarismo e emancipação (1982), fazem
um recuo histórico mostrando-nos que a eclosão da Literatura infantojuvenil está
intrinsecamente relacionada ao surgimento da família moderna.

Durante a Idade Média, o sistema de linhagens predominou na Europa a fim de


assegurar a manutenção da propriedade e a transmissão de herança.

Para isso, o casamento era um dos principais instrumentos e, por visar primeira-
mente aos interesses do grupo, em sua conjuntura não havia espaço para os laços
afetivos. Nesse período, as crianças tampouco gozavam de qualquer resguardo.

A esse respeito, as autoras citam:


Na sociedade antiga, não havia “infância”: nenhum espaço separado do
“mundo adulto”. As crianças trabalhavam e viviam junto com os adultos,
testemunhavam os processos naturais da existência (nascimento, doença,
morte), participavam junto deles da vida pública (política), nas festas, guer-
ras, audiências, execuções, etc., na narração de histórias, nos cantos, nos
jogos. (RICHETER, 1977 apud ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1982, p. 5)

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No século XVII, devido ao governo absolutista, mudanças começam a acontecer
e as relações por parentesco foram cedendo às alianças entre o poder político
centralizador e a camada burguesa capitalista. Juntamente com a ascensão dessa
classe, deu-se a “expansão de sua ideologia familista, fundada no individualismo, na
privacidade e na promoção do afeto (entre os esposos, estimulando a instituição do
casamento, e entre pais e filhos, por estar interessada na harmonia interior do núcleo
familiar)” (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1982, p. 6).
Nesse período, houve um interesse especial pela criança, fazendo surgir os pri-
meiros tratados de Pedagogia. Entretanto, foi no século seguinte – o século XVIII –
que a infância passou ao centro das considerações. As crianças passam a ser conce-
bidas como um grupo de status especial, distinto do adulto. Segundo as autoras, esse
movimento de preservação da criança teve duas finalidades: a valorização da família
burguesa e, nas camadas pobres, a conservação de futura mão de obra barata.
Na família burguesa, o papel social da mulher ganhou maior relevo no controle
do universo doméstico e na sua função materna. Já nas camadas mais pobres, as
mudanças foram mais lentas, dado que “habituados a abandonar as crianças aos
cuidados de instituições de caridade, mantidas pelo poder público religioso, o casa-
mento não lhes parecia como uma necessidade, menos ainda a educação dos filhos”
(ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1982, p. 7).
O elevado custo social gerado pelos abandonos e, sobretudo, a alta taxa de mor-
talidade infantil diminuíam a mão de obra barata para as indústrias nascentes, no
intenso processo de industrialização e urbanização experimentados no século XVIII.
Por isso, foi necessário estimular e incorporar o trabalhador à concepção da família
moderna, em que a esposa já não devia sair para trabalhar, e sim permanecer em
casa ocupando-se de suas funções domésticas e do cuidado com as crianças.
Nesse processo de privatização da família, em que a figura materna se converteu
no eixo central do universo doméstico e agente de proteção dos filhos, a infância
passou a ser concebida como uma faixa etária especial, que deveria ser resguardada.
Se, por um lado, tal medida assegurou a preservação da criança, por outro, gerou
isolamento, afastando-a tanto do mundo adulto quanto da realidade exterior.
Nesse cenário, mais fortemente experimentado na classe burguesa, a Escola ad-
quiriu nova significação, convertendo-se na ponte entre as crianças e o mundo.
Coube à Escola, como mediadora, reintroduzir a criança burguesa na realidade
externa. Já a criança proletária levava para a Escola toda sua vivência mundana.
Nesse contexto de ascensão e a consolidação da infância com um novo status
social, preservada pela família e mediada pela Escola para nova socialização com
a realidade, é que surgem objetos industrializados, como os brinquedos, e culturais,
como os livros, destinados especificamente às crianças.
Assim, a Literatura Infantojuvenil emergiu tanto como uma mercadoria quanto
se tornou um instrumento pedagógico no processo de escolarização. O livro infantil
caracterizou-se por não possuir um formato ou um tema específico e por incorporar
em sua composição a ilustração.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Ao fato de ser quase nada limitada, somou-se a fantasia, possibilitando a essa


Literatura um livre fluir do realismo ao maravilhoso.

A respeito da natureza da Literatura infantil, Regina Zilberman e Ligia Cademartori


Magalhães reforçam a sua duplicidade:
[...] de um lado, percebida sob a ótica do adulto, desvela-se sua participação
no processo de dominação do jovem, assumindo um caráter pedagógico,
por transmitir normas e envolver-se com sua formação moral. De outro,
quando se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio
de Acesso em: ao real, na medida em que lhe facilita a ordenação de expe-
riências existenciais, através do conhecimento de histórias, e a expansão de
seu domínio linguístico. (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1982, p. 14)

A partir dessa contextualização, podemos compreender que a constituição de


uma produção literária destinada ao público infantojuvenil está relacionada ao con-
ceito inaugural de infância.

Assim, a interdependência “Literatura e público” não só legitima essa produção


artística como também define sua principal especificidade. Essa dependência é tão
categórica que, ao delimitar a natureza desse sistema, o crítico literário Peter Hunt
(1991) evidencia que o único elemento que distingue a Literatura infantil é seu pú-
blico. Dito de outra forma, trata-se de um objeto literário – construído, analisado
e recebido dentro das especificidades desse âmbito – que leva em consideração a
receptividade de seu leitor potencial: o público infantojuvenil.

Agora que já entendemos que o conceito de infância é determinante nessa Literatura,


ainda nos resta outra questão central: compreender como surgiu esse acervo ficcional.

Vejamos.

A produção literária específica para o público infantojuvenil surgiu por meio do pro-
cesso de incorporação, adaptação e recriação de acervos culturais do público adulto.

Como assim?

Como vimos, o conceito de infância data do século XVIII. Nesse caso, antes desse
período, não podemos pensar em livros produzidos especificamente para esse públi-
co, já que ele não era reconhecido em suas particularidades.

Antes disso, eram oferecidos às crianças e aos jovens das classes nobres livros
para a Educação, com caráter formativo.

Por esse motivo, diferente do que acontece atualmente, os primeiros textos ficcio-
nais para o leitor infantojuvenil são oriundos de textos feitos sem distinção de faixa
etária, ou seja, esse acervo compõe-se “[...] da reutilização do material literário oriun-
do de duas fontes distintas e contrapostas: a adaptação dos clássicos e dos Contos de
Fadas de proveniência folclórica (ZILBERMAN, 1987, p. 44)”.

Desse modo, para fins de sistematização, pode-se considerar que esse processo
de “apropriação textual” ocorreu de duas formas:

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1. Gêneros literários adaptados e incorporados ao Sistema Infantojuvenil;
2. Obras da Literatura clássica (adulta) consideradas propícias ao público in-
fantojuvenil, com ou sem adaptações temático-formais.

Nesta Unidade, como estamos conhecendo o momento inicial desta Literatura,


vamos nos ater aos gêneros literários incorporados e adaptados à essa produção.

Agora que já sabemos qual foi o processo literário utilizado para a constituição
desse acervo, podemos pensar: Quais teriam sido os gêneros literários adaptados e
incorporados nesse início?

Certamente, muitos pensaram nas Fábulas e nos Conto de Fadas, não é mesmo?
E acertaram!

Essas duas modalidades constituíram um dos primeiros textos do acervo literário


destinado ao público infantojuvenil!

E, ainda que cada um apresente uma particularidade de contexto e de estrutura,


ambos os gêneros são representativos para o momento inicial desse acervo, já que
são fontes de sabedoria:

Gênero tão antigo como a imaginação humana é o relato de casos fabu-


losos, seja para recrear com sua mera narração, seja para tirar deles um
ensinamento salutar. A parábola, a fábula, os Contos de Fadas e outras
formas de símbolo didático são narrações mais ou menos simples e germes
do conto. Todos têm em suas origens mais remotas certo caráter mítico
e transcendental, cujo sentido foi-se perdendo com a passagem dos tem-
pos, ficando apenas a mera envoltura poética e episódica. (MENENDEZ
PELAYO apud COELHO, 2008)

E as obras clássicas adultas que foram incorporadas na constituição desse acervo,


quais seriam?

Quais títulos e autores vêm à mente?

Na próxima seção, vamos nos dedicar a essas questões e conhecer as principais


características da fábula e do Conto de Fadas, bem como as principais obras e as
vozes desse período inicial (que, sem dúvida, até hoje se perpetuam como leituras
essenciais na infância e adolescência!).

Literatura Infantojuvenil:
Sob a Égide da Fantasia
Fábulas e Infância: Um Gênero Sob Medida
Vamos iniciar esta subseção com a leitura de uma famosa fábula de La Fontaine,
A cigarra e a formiga”

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Figura 2
Fonte: Wikimedia Commons

A cigarra e a formiga
Bocage (Trad.)
Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
“Amiga, – diz a cigarra –
Prometo, a fé d’animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta:
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda hora.
– Oh! Bravo!, torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”

Fonte: In: LA FONTAINE, 2012, p. 13

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Certamente, você já conhecia essa fábula clássica, não é mesmo?

Além de conhecer esse famoso texto, provavelmente, você também reconhece algu-
mas características formais desse gênero literário, ainda que você não o tenha estudado.
Vamos ver?
Releia a fábula A cigarra e a Formiga e fique atento(a) aos seguintes elementos
da narrativa: quem são os personagens e sua caracterização? Qual a extensão e a
camada de complexidade narrativa? E qual a finalidade da mensagem?
Após pensar sobre essas questões, compare suas respostas às definições ofere-
cidas no trabalho O processo estético de reescritura das fábulas por Monteiro
Lobato (2004), de Loide Nascimento de Souza.

A estudiosa Loide Nascimento de Souza tem se dedicado ao estudo da Fábula e do estilo


literário desse gênero nos escritores La Fontaine e Monteiro Lobato. Em seu livro, “Nas raias
de um gênero. A fábula e o efeito fábula na obra infantil de Monteiro Lobato” (UNESP,
2013), tem-se um minucioso estudo sobre esse campo temático.

Para aprofundar as questões apresentadas nessa seção, indicamos a leitura de dois capítulos
de sua Dissertação de Mestrado: O processo estético de reescritura das fábulas por
Monteiro Lobato (UNESP, 2004): “1. A fábula”, no qual a autora aborda a história da fábula
e seus conceitos, conferindo atenção à presença do gênero na Literatura infantil; e “2. La
Fontaine”, espaço em que a estudiosa apresenta o estilo de escritura desse fabulista francês
que serviu de referência a vários autores, por exemplo, Monteiro Lobato.
Disponível em: https://bit.ly/3kJzM3t

Na primeira definição, a pesquisadora cita as observações de um estudioso


desse gênero:
[...] a fábula é uma forma literária específica caracterizada por – uma
narração breve, em prosa ou em verso, cujas personagens são, via de
regra, animais e, sob uma ação alegórica, encerra uma instrução,
um princípio geral ético político ou literário, que se depreende natu-
ralmente do caso narrado. (PORTELLA, 1979 apud SOUZA, 2004,
p. 47) (grifos nossos)

Na segunda definição, por sua vez, Souza sintetiza as considerações oferecidas


agora por um fabulista:
La Fontaine, o grande fabulista do século XVII e um dos maiores de todos
os tempos, também avaliou a fábula. Para ele, a fábula é semelhante
ao apólogo (tipo de texto que encerra uma lição de moral) e é dividida
em duas partes: o corpo e a alma. O corpo é a fábula ou narração e a
alma é a moral. Admite que, em alguns casos, a moral explícita pode
ser dispensada, desde que seja facilmente deduzida pelo leitor no
interior da narrativa. (SOUZA, 2004, p. 41) (grifos nossos)

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

As definições apresentadas permitem que sintetizemos os elementos textuais de


quaisquer fábulas clássicas:
• Texto com extensão curta e sem complexidade interpretativa;
• Texto de natureza narrativa e com a possibilidade de organizá-la ou em verso
ou em prosa;
• Animais, esses personificados, como personagens esperados;
• Mensagem instrutiva, explícita ou implicitamente.

É importante acentuar que, embora reescrita por vários escritores há séculos, a


fábula é uma das formas literárias mais regulares, ou seja, os elementos textuais os
quais caracterizam esse gênero literário são recorrentes.

Essa invariabilidade formal justifica-se pelo processo de composição desse gênero,


a reescritura.

Ao escrever uma fábula, o autor utiliza um texto já escrito e, a partir dele, apresenta a
sua versão. Não é sem motivo que, não importe em qual época, os autores que se dedi-
cam a criação de fábulas mantêm o que se denomina de “tradição secular da fábula”.

Fábulas são provenientes da Antiguidade Clássica:


• Fedro – Esopo (Esopo retoma Fedro);
• Fedro e Esopo – La Fontaine (La Fontaine retoma Fedro e Esopo);
• La Fontaine – Escritores fabulistas modernos.

Fedro Esopo

Fedro e Esopo La Fontaine

La Fontaine Escritores fabulistas modernos


Figura 3

Neste momento, você deve estar se perguntando: mas, quando e quem escreveu
essas antigas fábulas?

Temos essas respostas: as fábulas que conhecemos atualmente foram recuperadas


e reescritas de fábulas da Antiguidade Clássica, especialmente, dos autores Esopo,
fabulista romano, e Fedro, fabulista grego.

Eles serviram como base para o trabalho de reescritura de um dos principais fa-
bulistas da Idade Moderna: La Fontaine, autor que conheceremos a seguir.

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La Fontaine
Antes de conhecermos o fabulista francês La Fontaine, precisamos entender por
que a fábula, esse gênero literário tão antigo, é associada a textos de leitura para
crianças, vez que esse público só passou a “existir” em sua especificidade no século
XVIII, como já vimos nesta Unidade.
Para entender a essa questão, vamos às palavras da estudiosa Loide Nascimento
de Souza:
Entre os diversos tipos de clássicos reutilizados, as fábulas, em con-
sequência de seu tom moralizante, ocuparão um importante papel
nesse momento embrionário da Literatura infantil. Essa Literatura,
como sabemos, nasce como instrumento de uma ação vertical: um adulto
“onisciente e onipotente” pretende transmitir ensinamentos para uma
criança supostamente frágil e passiva. Em casa ou na escola, o adulto
é representado pelos pais ou pelos professores. Mas é na escola que a
Literatura infantil encontrará o seu porto seguro. Se a escola precisa de
textos, a Literatura infantil, por sua vez, precisa de um público consumi-
dor que garanta sua circulação e existência. Há, portanto, nesse sentido,
uma dependência recíproca entre Literatura infantil e escola.

A fábula, por sua brevidade e simplicidade de linguagem como que-


riam os clássicos, foi largamente usada pela escola. Além disso, in-
cutir valores relacionados à ideologia burguesa fazia parte do seu projeto
de ensino. Para o projeto da escola, a fábula então era duplamente
útil: era breve e tinha moral. (SOUZA, 2004, p. 60-1) (grifos nossos)

Como bem acentua Souza, os primeiros textos para o público infantil buscavam
como motivo textual elementos de formação instrutiva aos pequenos leitores.
Assim, devido às próprias características do gênero literário fábula, elas adequa-
vam-se sob medida a esse momento inicial de uma produção literária para o público
infantojuvenil. Para concretizar esse projeto, La Fontaine foi uma voz central.
Agora estamos preparados para conhecer esse “primeiro” fabulista da Literatura
em estudo.

Figura 4
Fonte: Wikimedia Commons

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Jean de La Fontaine nasceu em Chateau-Thierry, na região de Champagne, França,


no dia 8 de julho de 1621. Era filho de Françoise Pidoux e de Charles de La Fontaine,
superintendente da Guarda Florestal e de Caça Real.
Em 1641, ingressou no Oratório de Reims, mas logo viu que a vida religiosa não lhe
agradava. Depois de 18 meses saiu do convento.
Leia mais sobre a biografia de Jean da La Fontaine, na íntegra.
Disponível em: https://bit.ly/3iJWuq6

Como vimos em sua biografia, no século XVII, La Fontaine destaca-se como uma
referência na produção de fábulas.
Além de uma extensa produção – ele publica 12 livros: Fables (1668 a 1694) – o
escritor dedica-se à elaboração de uma linguagem poética para seus textos. E, como
já sabemos, seus textos são reescrituras de fábulas da Antiguidade Clássica, sobretudo,
das fábulas de Esopo.
O francês também escreveu fábulas autorais, mas foram poucas.
No campo da Literatura Infantojuvenil, tema que nos interessa, La Fontaine é
considerado o pai da fábula nessa área, pois, além de oferecer suas fábulas a uma
criança (o filho do rei Luís XIV), ele é o responsável por fazer uma associação direta
entre a Fábula e o público infantil.
Acompanhe suas palavras na defesa desse gênero literário para a formação
das crianças:
[…] Essas fábulas são um quadro onde cada um de nós se encontra
descrito. O que elas representam confirmam as pessoas de idade
avançada nos conhecimentos que o uso lhes deu, e ensinam às crian-
ças o que lhes convém que elas saibam. Como estas últimas são recém-
vindas ao mundo, não conhecem ainda os habitantes; nem conhecem a si
mesmas. Não devemos deixá-las nessa ignorância, por menor que seja: é
mister ensinar o que é um leão, uma raposa, e outros ainda, e porque mui-
tas vezes o homem é comparado a essa raposa, a esse leão. É sobre isso
que as fábulas operam: as primeiras noções destas coisas delas provêm.
(LA FONTAINE (1971?) apud SOUZA, 2004, p. 67) (grifos nossos)

Embora com visão adultocêntrica, habitual na Literatura Infantojuvenil (LIJ), o


fabulista francês é considerado um dos clássicos dessa Literatura.

Desse modo, a recepção de suas fábulas perdura como obras de leitura, especial-
mente, para crianças, como comprovam os estudos de Souza:
Atualmente, as fábulas de La Fontaine, mais do que no tempo em que
foram produzidas, são consideradas um tipo de Literatura apropriada
às crianças. Diferentemente, das de Esopo e Fedro, suas fábulas possuem
maior conteúdo narrativo, o qual é expresso, de forma singular, por meio
de uma linguagem poética. Na França, ainda hoje, as crianças são incenti-
vadas a memorizá-las, a fim de que, desde cedo, aprendam a apreciar o re-
finamento da língua e da Literatura. (SOUZA, 2004, p. 80) (grifos nossos)

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Mas, não é só em sua terra natal que La Fontaine permanece vivo. No Brasil, suas
fábulas também persistem ao tempo, servindo de fonte para a reescritura de outros
autores, como Olavo Bilac e Monteiro Lobato.

Para finalizar nosso estudo sobre esse importante fabulista, vamos ler mais uma
de suas clássicas fábulas, A lebre e a tartaruga. Aproveite a leitura!

A lebre e a tartaruga
Curvo Semedo (Trad.)
“Apostemos, disse à lebre
A tartaruga matreira,
Que eu chego primeiro ao algo
Do que tu, que és tão ligeira!”
Dado o sinal de partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar.
A lebre, tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De peta ou de bengala,
Deita-se, e dorme o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;
Eis deita uma vista d´olhos
Sobre a caminhante sorna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.
Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.
À meta chega primeiro,
Apanha o prêmio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.
Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
Quanto não, atrás ficamos.

Fonte: In LA FONTAINE, 2012, p. 138-9

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Como vimos, embora as fábulas sejam consideradas um dos acervos fundantes da


Literatura Infantojuvenil, elas contribuíram para a visão pedagógica dessa Literatura,
já que primam por uma formação moral.

No entanto, não se pode desconsiderar a sua importância para esse momento


inicial. Outro gênero inaugural dessa Literatura é o Conto de Fadas.

Além dessa coincidência temporal, podem ser observadas outras semelhanças


entre esses gêneros literários: ambos são fruto de um processo de reescritura e con-
tribuem para a formação ética de seus leitores infantis.

Quanto às particularidades do Conto de Fadas, vamos conhecê-las nas próxi-


mas linhas.

Conto de Fadas: O Universo Maravilhoso da Infância


Quando ouvimos o termo “Conto de Fadas” muito provavelmente nossas primei-
ras referências associativas são personagens fantásticos (fadas, bruxas, monstros,
objetos e animais personificados), personagens tipos (princesa, príncipe, campo-
neses, madrastas, irmãs invejosas, crianças boas ou más, reis, rainhas etc.), espaços
recorrentes (castelos, casa abandonada, florestas, campo) e histórias em que ma-
gias, poderes sobrenaturais, grandes desafios, maniqueísmo e final feliz sobressaem.

Isso acontece porque esse campo semântico mobiliza um repertório cultural que
construímos ao longo de nossa existência, especialmente na fase infantil, pois, como
bem sintetizou Hans Dieckmann: “O país dos Contos de Fadas se encontra em nossa
alma” (apud COELHO, 2008).

Desse modo, desde a infância, aprendemos a reconhecer os elementos composi-


tivos desse gênero literário e os preservamos em nosso imaginário cultural.

Mas, se são tão poderosos, de onde surgiram essas mágicas histórias?

Vamos descobrir essa resposta pelas palavras de uma especialista nesse campo,
Sonia Salomão Khéde:
As origens dos Contos de Fadas são as mais diversas. Provenientes de
contos folclóricos europeus e orientais, há neles um interessante cruza-
mento de princípios, entre os quais predominam os judaico-cristãos e os
da vertente mítica da antiguidade greco-latina.

Pode-se dizer que os contos de fadas, na versão literária, atualizam ou


reinterpretam, em suas variantes, questões universais como os conflitos
do poder e a formação dos valores, misturando realidade e fantasia no
clima do “Era uma vez...”.

Os Contos de Fadas vão representar, na conformação de seus persona-


gens, os valores burgueses que surgiram e se consolidaram entre os sé-
culos XVII e XIX, sendo interessante notar a diferença entre os contos do
Perrault (século XVII) e os de Grimm e Andersen. (século XIX) (KHÉDE,
1986, p. 16)

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Assim como Khéde, Nelly Novaes Coelho (2008), outra especialista nessa temáti-
ca, também ratifica que a constituição dos Contos de Fadas é originária de tradições
populares (folclore europeu) e místicas (povos Celtas).

A pesquisadora ainda acrescenta que o interesse pela recuperação desse saber


popular se deve a um projeto nacional dos escritores, que desejavam valorizar a
cultura popular de seu local de origem. Sendo assim, os primeiros autores que se
dedicaram à criação de Contos de Fadas tiveram o seguinte processo de criação:
• Pesquisaram e registraram, em seu espaço de origem, histórias locais (Litera-
tura oral);
• Transformarem esse relato oral em registro escrito, a partir de sua perspectiva
ficcional e ideológica (Literatura escrita).

Isso explica o motivo de um mesmo Conto de Fadas apresentar versões distintas,


pois, ao registrar essas histórias, cada escritor leva em consideração o seu projeto
literário, ou seja, a sua autoria, como veremos mais adiante.

No Brasil, uma das principais estudiosas de Conto de Fadas é a crítica literária Nelly Novaes
Coelho. Suas principais obras nesse âmbito temático são O Conto de Fadas (Ática, Série
Princípios, 1987) e O Conto de Fadas: símbolos, mitos, arquétipos (Paulinas, 2008).

Figura 5
Fonte: Ed Viggiani/Estadão

Agora que já sabemos de onde surgiram essas histórias e quais as características


formais desse gênero literário, vamos conhecer os três escritores que se imortaliza-
ram como grandes nomes de Conto de Fadas clássicos.

No sistema literário infantojuvenil, considera-se que Charles Perrault, Irmãos


(Jacob e Wilhelm) Grimm e Hans Christian Andersen são nomes fundamentais
do que se considera Contos de Fadas clássicos.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Os três, guardando a particularidade de cada Projeto Literário, compuseram his-


tórias maravilhosas inesquecíveis. Para isso, eles recorreram ao acervo folclórico
(Literatura oral) de seus respectivos locais de origem, processo que já apresentamos
nas linhas anteriores.

Nesse momento, vamos conhecer um pouco da história e das marcas literárias de


cada um.

Vamos ver a seguir.

Charles Perrault
O nome de Charles Perrault é um marco na constituição de uma produção lite-
rária voltada para o público infantojuvenil.

O escritor francês – de alguma forma – é o responsável pela inauguração dessa


Literatura por meio da publicação de seu livro Contes de ma mére l’oye (1697),
tem português: Contos da Mamãe Gansa.

Para entender o porquê de sua crucial participação nesse cenário, vamos conhe-
cer um pouco de sua história.

Figura 6
Fonte: Wikimedia Commons

Charles Perrault (1628-1703) nasceu em Paris, França, no dia 12 de janeiro de 1628.


Filho de Pierre Perrault e de Paquette Le Clerc, descendentes de uma nobre família
de Tours, cidade próxima a Paris.
Em 1637, ingressou no Colégio de Beauvais, onde realizou brilhante estudo literário.
Em 1643, iniciou o curso de Direito, concluído em 1651.
Leia mais sobre a biografia de Charles Perrault. Disponível em: https://bit.ly/2E0ItFZ

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Da biografia de Charles Perrault, que você deve ter lido acima, percebemos que,
durante o reinado de Luís XIV, a prática de contar histórias fazia parte da cultura
dos Palácios e um dos responsáveis por essa contação era Charles Perrault (além de
outros nomes como Mme. d’Aulnoy e Mlle. Lhéritier).

Essa ação do autor reverberou em um verdadeiro movimento literário, pois os con-


tos que circulavam oralmente ganharam forma literária sob a pena de Perrault, opondo
ao conceito de Literatura de seu período que tinha como preceito à volta ao clássico.

Por esse motivo, o escritor francês – sem imaginar – inaugurou o que hoje conhe-
cemos como Literatura infantojuvenil (LIJ).

Vejamos as considerações de Nelly Novaes Coelho sobre essa questão:


Foi nesse momento que Charles Perrault entrou para a história, não como
poeta e intelectual de destaque na corte de Luís XIV, mas como o inicia-
dor da Literatura infantil. Entretanto, quando analisado por meio da ótica
histórica, torna-se evidente que, ao iniciar o resgate da Literatura guar-
dada pela memória popular, sua intenção não era escrever contos para
crianças. Seu principal alvo era valorizar o gênero moderno (francês) em
relação ao gênero antigo (dos gregos e romanos), então consagrado pela
cultura oficial europeia como modelo superior (...)

Perrault volta-se inteiramente para essa redescoberta da narrativa popu-


lar maravilhosa, com um duplo intuito: provar a equivalência de valores
ou de sabedoria entre os antigos greco-latinos e os antigos nacionais, e,
com esse material redescoberto, divertir as crianças, principalmente as
meninas, orientando sua formação moral.

Com a publicação dos Contos da Mãe Gansa nascia a Literatura infantil,


que hoje conhecemos como clássica. A Mãe Gansa era uma personagem
dos velhos contos populares, que contava histórias para seus filhotes fas-
cinados. (COELHO, 2008, p. 81-83) (grifos da autora)

Figura 7
Fonte: Divulgação

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Das considerações de Coelho, podemos inferir que, na historiografia da Literatura


Infantojuvenil, a coleção de Contos da Mamãe Gansa insurge como obra inaugural
no sistema e, por mais que Perrault não idealizasse esse papel, ganhou o título de
“pai da Literatura Infantojuvenil” e lançou as bases para consolidação do que hoje
conhecemos como Contos de Fadas clássicos.

Para finalizar essa subseção, vejamos uma sistematização feita pela crítica literária
Sônia Salomão Khéde sobre o projeto literário do escritor francês para os contos
de fadas:
Assim, Perrault foi denominado “Homero Burguês” pela propriedade
com que retratou a sociedade de sua época a partir da metamorfose de
certos símbolos dos contos populares. Seu trabalho consistiu em trans-
formar os monstros e animais – aos quais os camponeses atribuíram
poderes mágicos – em fadas. Estas eram o retrato das grandes damas que
usavam roupa de boa qualidade e faziam reverências como as preciosas
da corte de Luís XIV. No entanto, suas histórias são diretas e realistas e,
nelas, o maravilhoso ocupa um lugar modesto.

A Borralheira é símbolo de personagem humilhada e maltratada. O Gato de


Botas é o pícaro, a tirar proveito da corrupção social. O Pequeno Polegar é o
anão astuto que vence gigantes bobos. Ou seja: seus personagens se armam
com os atributos da inteligência e perspicácia para vencer a força bruta do
poderoso opressor.

Perrault foi o responsável pela introdução dos desprivilegiados nos sa-


lões, em contos cujos personagens são mais estereotipados: a madrasta,
o lobo e os irmãos mais velhos sempre maus. Os fortes e poderosos são
de nítida descendência canibalesca, de devoração dos mais fracos.

Perrault utiliza o confronto dualista entre bons e maus, feios e belos, fra-
cos e fortes, como exercício de crítica à corte. Não raro os personagens
que representam as classes discriminadas se tornam superiores à nobreza
pela inteligência. (KHÉDE, 1986, p. 17-8)

Irmãos Grimm
A publicação de Contos da Mamãe Gansa repercutiu no cenário literário. No
século XIX, outros escritores – também motivados pela valorização do nacional –
passam a pesquisar e a registrar histórias populares como os conhecidos Jacob e
Wilhelm Grimm (Irmãos Grimm).

Os Irmãos Grimm são dois irmãos alemães que entraram para a história como fol-
cloristas e também por suas coletâneas de contos infantis.
Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1863) nasceu em Hanau, no Grão-ducado de Hesse,
na Alemanha, no dia 14 de janeiro de 1785 e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) também
nasceu em Hanau, no dia 24 de fevereiro de 1786.
Leia mais sobre os Irmãos Grimm, na íntegra. Disponível em: https://bit.ly/3auO831

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A obra Contos de Fadas para Crianças (1812) emerge no período artístico, pos-
teriormente, definido como Romantismo, responsável por colocar em destaque a valo-
rização do nacional e do popular.
Esse espírito de época, igualmente, contribuiu para a recepção e a divulgação dos
contos dos irmãos alemães tanto nacional quanto internacionalmente, garantindo um
espaço importante para a produção literária destinada ao público infantojuvenil.
Ao fazer a reescritura dos contos de fadas, a própria intervenção dos escritores
nesses contos está relacionada a preceitos românticos.

Figura 8 – Irmãos Grimm Figura 9


Fonte: Wikiedia Commons Fonte: Divulgação

Dada à grande repercussão dos contos de fadas, esse gênero literário também não
escapou da caça às bruxas, ou seja, à censura da época.

Por esse motivo, com o intuito de “proteger” os leitores em formação, os escrito-


res alemães fizeram adaptações nas histórias populares.

A esse respeito, Coelho salienta:


Influenciados pelo ideário cristão que se consolidava na época romântica
e cedendo à polêmica, levantada por alguns intelectuais, contra a cruelda-
de de alguns de seus contos, os Grimm, na segunda edição da coletânea,
retiraram episódios de demasiada violência ou maldade, principalmente
aqueles que eram praticados contra crianças. (COELHO, 2008, p. 29)

Constantemente, os contos de fadas, que eram narrativas originárias da tradição


popular, foram passando por um constante tratamento de “dulcificação”, extirpando
dessas histórias cenas de extrema violência.

Os Contos de Fadas passaram a ser estudados não só pela Antropologia ou fol-


cloristas e ganharam bastante importância na área da psicologia, em especial, na
psicanálise, destacando a importância de arquétipos presentes nesse acervo para a
formação do ser humano.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Dentre os estudos categóricos, destaca-se o trabalho de Bruno Bettelheim, inti-


tulado A psicanálise dos Contos de Fadas (1976), no qual o autor apresenta uma
radiografia das famosas histórias para crianças, discutindo as razões, as motivações
psicológicas, os significados emocionais, a função de divertimento, a linguagem sim-
bólica do inconsciente que são subjacentes aos contos infantis.

Figura 10
Fonte: Divulgação

Para finalizar esse estudo sobre os Irmãos Grimm, indicamos o vídeo Literatura Fundamental
93: Irmãos Grimm – Karin Volobuef, em que a pesquisadora apresenta detalhes da vida e do
trabalho desses famosos escritores. Disponível em: https://youtu.be/1lLue7Obokg

Hans Christian Andersen


Para encerrar nosso passeio pelo universo encantado dos contos de fadas, chega-
mos ao último autor desse acervo clássico: Hans Christian Andersen.

Hans Christian Andersen (1805-1875) foi um escritor dinamarquês, autor dos con-
tos infantis, Soldadinho de Chumbo, Patinho Feio, A Pequena Sereia e A Roupa
Nova do Rei, entre outros.
Era filho de um humilde sapateiro, que lutou nas guerras napoleônicas e voltou gra-
vemente doente à sua terra natal, morrendo pouco depois. Leia mais sobre a biogra-
fia de Hans Christian Andersen, na íntegra. Disponível em: https://bit.ly/3hbxRmc

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Figura 11
Fonte: Wikimedia Commons

De forma similar a Perrault e aos Irmãos Grimm, o escritor dinamarquês também


recorreu ao folclore de seu espaço de origem (Dinamarca) e também, da Alemanha
para registrar histórias que encantariam a todos. No entanto, em relação aos seus
precursores, Andersen consegue uma marca individual tanto por sua grande habili-
dade literária quanto por sua sensibilidade artística.

Pode-se acrescentar ainda que, diferente dos autores apresentados anteriormente,


o escritor não utilizou só a Literatura oral para criação de suas histórias. Ao con-
trário, grande parte de suas narrativas são autorais e são representativas de vários
gêneros: Conto de Fadas e Contos Maravilhosos.

Acompanhemos seu espaço na história da produção para crianças:


O acervo da Literatura Infantil Clássica seria completado décadas depois
dos Grimm, no século XIX, início do Romantismo, com os Eventyr (168
contos publicados entre 1835 e 1877) do dinamarquês Hans Christian
Andersen. Sintonizando com os ideais românticos de exaltação da
sensibilidade, da fé cristã, dos valores populares, dos ideais da fraternidade
e da generosidade humana, Andersen se torna a grande voz a falar para
as crianças com a linguagem do coração [...]. A par do maravilhoso, seus
contos se alimentam da realidade cotidiana, na qual imperam a injustiça
social e o egoísmo. Daí que, em geral, os Contos de Andersen sejam
tristes ou tenham finais trágicos [...]. Entre os mais conhecidos, citamos:
O Patinho Feio; Os Sapatinhos Vermelhos; O Soldadinho de Chumbo;
A Pequena Vendedora de Fósforo; O Rouxinol e o Imperador da
China; A Pastora e o Limpador de Chaminés; Os Cisnes Selvagens;
A Roupa Nova do Imperador; Nicolau o Grande e Nicolau Pequeno;
João e Maria; A Rainha de Neve... (COELHO, 2008, p. 30)

Com todo esse destaque, não é sem motivo que o considerado prêmio Nobel
da Literatura infantojuvenil receba o nome do autor: Prêmio Hans Christian
Andersen (1956-).

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Para finalizar, indicamos que assistam ao vídeo Literatura Fundamental 85: Contos de Hans
Christian Andersen. Karin Volobuef. Nele, a pesquisadora apresenta as particularidades
do projeto artístico de Andersen. Disponível em: https://youtu.be/sTDF0YtWRO4

A pesquisadora Geovana Gentili Santos tem se dedicado ao estudo dos Contos de Fadas clássicos
e contemporâneos, especialmente, dos escritores Charles Perrault e Monteiro Lobato. Para
aprofundar as questões apresentadas nesta seção, indicamos a leitura do primeiro capítulo,
1. Os Contos de Fadas na corte de Luís XIV: uma tendência literária do final do século XVII”, de
sua Dissertação de Mestrado: Mamãe Ganso à brasileira: as personagens de Perrault no
Sítio do Picapau Amarelo (UNESP, 2009). Disponível em: https://bit.ly/3kOgDNF

Agora que já conhecemos as especificidades do gênero literário Conto de Fadas e


seus escritores clássicos, vamos ler, a seguir, uma das histórias mais conhecidas desse
acervo: Chapeuzinho Vermelho.

Chapeuzinho Vermelho, por Charles Perrault:

Era uma vez uma pequena aldeã, a menina mais bonita que poderia haver. Sua mãe
era louca por ela e a avó, mais ainda. Esta boa senhora mandou fazer para a menina
um pequeno capuz vermelho. Ele lhe assentava tão bem que por toda parte aonde
ia a chamavam Chapeuzinho Vermelho.
Um dia sua mãe, que assara uns bolinhos, lhe disse: “Vá visitar sua avó para ver como
ela está passando, pois me disseram que está doente. Leve para ela um bolinho e
este potinho de manteiga.”
Chapeuzinho Vermelho partiu imediatamente para a casa da avó, que morava numa
outra aldeia. Ao passar por um bosque encontrou o compadre lobo, que teve muita
vontade de comê-la, mas não se atreveu, por causa dos lenhadores que estavam
na floresta. Ele lhe perguntou para onde ia. A pobre menina, que não sabia que era
perigoso parar e dar ouvidos a um lobo, respondeu:
“Vou visitar minha avó e elevar para ela um bolinho com um potinho de manteiga
que minha mãe está mandando.”
“Sua avó mora muito longe?” perguntou o lobo.
“Ah! Mora sim”, respondeu Chapeuzinho Vermelho. “Mora depois daquele moinho lá
longe, bem longe, na primeira casa da aldeia.”
“Ótimo!” disse o lobo. “Vou visitá-la também. Vou por este caminho aqui e você vai
por aquele caminho ali. E vamos ver quem chega primeiro.”
O lobo pôs-se a correr o mais que podia pelo caminho mais curto, e a menina seguiu
pelo caminho mais longo, entretendo-se em catar castanhas, correr atrás das borbo-
letas e fazer buquês com as flores que encontrava. O lobo não demorou muito para
chegar à casa da avó. Bateu: Toc, toc, toc.
“Quem está aí?”

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É sua neta, Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo, disfarçando a voz. “Estou trazendo
um bolinho e um potinho de manteiga que minha mãe mandou.”
A boa avó, que estava de cama por andar adoentada, gritou: “Puxe a lingueta e o
ferrolho se abrirá.”
O lobo puxou a lingueta e a porta se abriu. Jogou-se sobre a boa mulher e a devorou
num piscar de olhos, pois fazia três dias que não comia. Depois fechou a porta e foi
se deitar na cama da avó, à espera de Chapeuzinho Vermelho, que pouco tempo
depois bateu à porta. Toc, toc, toc.
“Quem está aí?”
Ouvindo a voz grossa do lobo, Chapeuzinho Vermelho primeiro teve medo, mas,
pensando que a avó estava gripada, respondeu:
“É sua neta, Chapeuzinho Vermelho. Estou trazendo um bolinho e um potinho de
manteiga que minha mãe mandou.”
O lobo gritou de volta, adoçando um pouco a voz: “Puxe a lingueta e o ferrolho
se abrirá.”
Chapeuzinho Vermelho puxou a lingueta e a porta se abriu. O lobo, vendo-a entrar,
disse-lhe, escondendo-se na cama debaixo das cobertas:
“Ponha o bolo e o potinho de manteiga em cima da arca, e venha se deitar comigo.”
Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi se enfiar na cama, onde ficou muito es-
pantada ao ver a figura da avó na camisola. Disse a ela:
“Minha avó, que braços grandes você tem!”
“É para abraçar você melhor, minha neta.”
“Minha avó, que pernas grandes você tem!”
“É para correr melhor, minha filha.”
“Minha avó, que orelhas grandes você tem!”
“É para escutar melhor, minha filha”.
“Minha avó, que olhos grandes você tem!”
“É para enxergar você melhor, minha filha.”
“Minha avó, que dentes grandes você tem!”
É para comer você.”
E dizendo estas palavras, o lobo malvado se jogou em cima de Chapeuzinho Vermelho
e a comeu.
Moral
Vemos aqui que as meninas,
E sobretudo as mocinhas
Lindas, elegantes e finas,
Não devem a qualquer um escutar.
E se o fazem, não é surpresa
Que de lobo virem jantar.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Falo “do” lobo, pois nem todos eles


São de fato equiparáveis.
Alguns são até muito amáveis,
Serenos, sem fel nem irritação.
Esses doces lobos, com toda educação,
Acompanham as jovens senhoritas
Pelos becos afora e além do portão.
Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,
São, entre todos, os mais perigosos.

Fonte: PERRAULT. et al. Contos de fadas: de Perrault, Grimm, Andersen & outros.

Chapeuzinho Vermelho, pelos Irmãos Grimm:

Era uma vez uma menininha encantadora. Todos que batiam os olhos nela a adora-
vam. E, entre todos, quem mais a amava era sua avó, que estava sempre lhe dan-
do presentes. Certa ocasião ganhou dela um pequeno capuz de veludo vermelho.
Assentava-lhe tão bem que a menina queria usá-lo o tempo todo, e por isso passou
a ser chamada Chapeuzinho Vermelho.
Um dia, a mãe da menina lhe disse: “Chapeuzinho Vermelho, aqui estão alguns bo-
linhos e uma garrafa de vinho. Leve-os para sua avó. Ela está doente, sentindo-se
fraquinha, e estas coisas vão revigora-la. Trate de sair agora mesmo, antes que o
sol fique quente demais, e quando estiver na floresta olhe para a frente como uma
boa menina e não se desvie do caminho. Senão, pode cair e quebrar a garrafa, e não
sobrará nada para a avó. E quando entrar, não se esqueça de dizer bom dia e não
fique bisbilhotando pelos cantos da casa.”
“Farei tudo o que está dizendo”, Chapeuzinho Vermelho prometeu à mãe.
Sua avó morava lá no meio da mata, a mais ou menos uma hora de caminhada da
aldeia. Mal pisara na floresta, Chapeuzinho Vermelho topou com o lobo. Como não
tinha a menor ideia do animal malvado que ele era, não teve um pingo de medo.
“Bom dia, Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo.
“Bom dia, senhor Lobo”, ela respondeu.
“Aonde está indo tão cedo de manhã, Chapeuzinho Vermelho?”
“À casa da vovó”.
“O que é isso debaixo do se avental?”
“Uns bolinhos e uma garrafa de vinho. Assamos ontem e a vovó, que está doente e
fraquinha, precisa de alguma coisa para animá-la”, ela respondeu.
“Onde fica a casa da sua vovó, Chapeuzinho?”.
“Fica a um bom quarto de hora de caminhada mata adentro, bem debaixo dos três
carvalhos grandes. O senhor deve saber onde é pelas aveleiras que crescem em volta”,
disse Chapeuzinho Vermelho.
O lobo pensou com seus botões: “Esta coisinha nova e tenra vai dar um petisco e
tanto! Vai ser ainda mais suculenta que a velha. Se tu fores realmente matreiro, vais
papar as duas.”

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O lobo caminhou ao lado de Chapeuzinho Vermelho por algum tempo. Depois disse:
“Chapeuzinho, notou que há lindas flores por toda parte? Por que não para e olha
um pouco para elas? Acho que nem ouviu como os passarinhos estão cantando lin-
damente. Está se comportando como se estivesse indo para escola, quando é tudo
tão divertido aqui no bosque.”
Chapeuzinho Vermelho abriu bem os olhos e notou como os raios de sol dançavam nas
árvores. Viu flores bonitas por todos contos e pensou: “Se seu levar um buquê fresquinho,
a vovó ficará radiante. Ainda é cedo, tenho tempo de sobra para chegar lá, com certeza.”
Chapeuzinho Vermelho deixou a trilha e correu para dentro do bosque à procura de
flores. Mal colhia uma aqui, avistava outra ainda mais bonita acolá, e ia atrás dela.
Assim, foi se embrenhando cada vez mais na mata.
O lobo correu direto para a casa da avó de Chapeuzinho e bateu à porta.
“Que é?”.
“Chapeuzinho Vermelho”. Trouxe uns bolinho e vinho. Abra a porta.”
“É só levantar o ferrolho”, gritou a avó. “Estou fraca demais para sair da cama.”
O lobo levantou o ferrolho e a porta se escancarou. Sem dizer uma palavra, foi direto
até a cama da avó e a devorou inteirinha. Depois, vestiu as roupas dela, enfiou sua
touca na cabeça, deitou-se na cama e puxou as cortinas.
Enquanto isso Chapeuzinho Vermelho corria de um lado para outro à cata de flores.
Quando tinha tantas nos braços que não podia carregar mais, lembrou-se de repen-
te de sua avó e voltou para a trilha que levava à casa dela. Ficou surpresa ao encon-
trar a porta aberta e, ao entrar na casa, teve uma sensação estranha que pensou:
“Puxa! Sempre me sinto tão alegre quando estou na casa da vovó, mas hoje estou
me sentindo muito aflita.”
Chapeuzinho Vermelho gritou um olá, mas não houve resposta. Foi então até a cama
e abriu as cortinas. Lá estava sua avó, deitada, com a touca puxada para cima do
rosto. Parecia muito esquisita.
“Ó avó, que orelhas grandes você tem!”
“É para melhor te escutar!”
“Ó avó, que olhos grandes você tem!”
“É para melhor te enxergar!”
“Ó avó, que mãos grandes você tem!”
“É para melhor te agarrar!”
“Ó avó, que boca grande, assustadora, você tem!”
“É para melhor te comer!”
Assim que pronunciou estas últimas palavras, o lobo saltou fora da cama e devorou
a coitada da Chapeuzinho Vermelho.
Saciado o seu apetite, o lobo deitou-se de costas na cama, adormeceu e começou
a roncar muito alto. Um caçador que por acaso ia passando junto à casa pensou:
“Como essa velha está roncando alto” Melhor ir ver se há algum problema.” Entrou
na casa e, ao chegar junto à cama, percebeu que havia um lobo deitado nela.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

“Finalmente te encontrei, seu velhaco”, disse. “Faz muito tempo que ando à sua procura.”
Sacou sua espingarda e já estava fazendo pontaria quando atinou que o lobo devia
ter comido a avó e que, assim, ele ainda poderia salvá-la. E, vez de atirar, pegou uma
tesoura e começou a abrir a barriga do lobo adormecido. Depois de algumas tesou-
radas, avistou um gorro vermelho. Mais algumas, e a menina pulou fora gritando:
“Ah, eu estava tão apavorada! Como estava escuro na barriga do logo.”
Embora mal pudesse respirar, a idosa vovó também conseguiu sair da barriga. Mais
que depressa Chapeuzinho Vermelho catou umas pedras grandes e encheu a barriga
do lobo com elas. Quando acordou, o lobo tentou sair correndo, mas as pedras eram
tão pesadas que suas pernas bambearam e ele caiu morto.
Chapeuzinho Vermelho, sua avó e o caçador ficaram radiantes. O caçador esfolou o
lobo e levou a pele para casa. A avó comeu os bolinhos, tomou o vinho que a neta lhe
levara, e recuperou a saúde. Chapeuzinho Vermelho disse consigo: “Nunca se desvie
do caminho e nunca entre na mata quando sua mãe proibir.”
Há uma história sobre uma outra vez em que Chapeuzinho Vermelho encontrou um
lobo quando ia para a casa da avó, levando-lhe uns bolinhos. O lobo tentou fazê-la
desviar-se da trilha, mas Chapeuzinho Vermelho estava alerta e seguiu em frente.
Mas tinha olhado para ela de um jeito tão mau que “se não estivéssemos num des-
campado, teria me devorado inteira”.
“Pois bem”, disse a avó. “Basta trancar a porta e ele não poderá entrar”.
Alguns instantes depois o lobo bateu à porta e gritou: “Abra a porta, vovó. É Chapeuzinho
Vermelho, vim lhe trazer uns bolinhos.”
As duas não abriram a boca e se recusara a atender a porta. Então o espertalhão
rodeou a casa algumas vezes e pulou para cima do telhado. Estava planejado espe-
rar até que Chapeuzinho Vermelho fosse para casa. Pretendia rastejar atrás dela e
devorá-la na escuridão. Mas a avó descobriu suas intenções. Havia um grande cocho
de pedra na frente de casa. A avó disse à menina: “Pegue este balde, Chapeuzinho
Vermelho. Ontem cozinhei umas salsichas. Jogue a água da fervura no cocho”.
Chapeuzinho Vermelho levou vários baldes d’água ao cocho, até deixa-lo completa-
mento cheio. O cheiro daquelas salsichas chegou até as narinas do lobo. Ele esticou
tanto o pescoço para farejar e olhar em volta que perdeu o equilíbrio e começou
a escorregar telhado abaixo. Caiu bem dentro do cocho e se afogou. Chapeuzinho
Vermelho voltou para casa alegremente e ninguém lhe fez mal algum.

Fonte: PERRAULT et al. 2010, p. 145-52.

Gostou da leitura?
Depois desse momento de fruição, compare essas duas versões de Chapeuzinho
Vermelho e fique atento a:
• Qual narrativa é mais detalhista?
• Qual é mais violenta?
• Qual o desfecho de cada uma?
• E qual apresenta uma moral em destaque?
Em sala de aula, trabalhar com os(as) alunos(as) a comparação entre várias ver-
sões dos Contos de Fadas é uma estratégia importante para que eles desenvolvam

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as competências de identificar, comparar, analisar e refletir sobre esses textos, indo
além da superfície linguística na leitura literária.

Finalizamos esse nosso estudo com um dos contos mais famosos desse acervo, O Patinho
Feio, de Hans Christian Andersen. Disponível em: https://bit.ly/313KkTh

Para ampliar seu repertório, você pode escolher outros contos de Charles Perrault, Irmãos
Grimm e Hans Christian Andersen. É possível encontrar vários de seus textos no Portal do
Domínio Público. Disponível em: https://bit.ly/3kZEdr9

Ao apresentar os autores clássicos que se dedicaram ao Conto de Fadas, notamos


que os três recorreram ao folclore local e elaboraram uma estrutura textual atual-
mente reconhecida como “Conto de Fadas”.

Agora que já sabemos que esses contos surgiram na Europa entre os séculos XVII e
XIX, podemos colocar outra questão: e no Brasil, temos Conto de Fadas nesse período?

Curiosos pela resposta?

Esse é o assunto da nossa próxima seção.

Eternos clássicos da Literatura Infantojuvenil


Além das fábulas e dos contos de fadas, outras obras foram incorporadas e pro-
duzidas para leitura na infância e na adolescência.

Essas obras converteram-se em clássicos, dão consistência e conferem um perfil à


Literatura destinada às crianças, garantindo sua continuidade e sua atração.

Nesse processo, tanto a família quanto a Escola desempenham um papel funda-


mental para a manutenção e a solidificação da ideologia da burguesia, pois cabe a
essa instituição a mediação entre a criança e a Sociedade, como também, a habilita-
ção da criança para o consumo de obras impressas:
A Literatura infantil vincula seu aparecimento à emergência de um novo
hábito, o de leitura, e existe para propagá-lo. E a leitura, enquanto prática
difundida em diferentes camadas sociais e faixas etárias, isto é, enquanto
um procedimento de obtenção de informações cotidiano e acessível a
todos, e não raro erudito, é uma conquista da sociedade burguesa do
século 18. A expansão do mercado editorial, a ascensão do jornal como
meio de comunicação, a ampliação da rede escolar, o crescimento das
camadas alfabetizadas – todos esses são fenômenos que se passam du-
rante o Iluminismo, sendo esta filosofia a sistematização e a culminância
teórica que justificará a práxis social, voltada à aceleração do processo
civilizatório. O ler transformou-se em instrumento de instrução e sinal de
civilidade. (ZILBERMAN; CADEMARTORI, 1984, p. 20-1)

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Associado à questão da instrução e da civilidade, o hábito de leitura expande-se.


Ao sucesso dos Contos de Fadas, somam-se outras obras, como Robinson Crusoé
(1719), de Daniel Defoe (1660–1731) e Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan
Swif (1667–1745).

No século XIX, como já assinalamos acima, temos Jacob Grimm (1785–1863) e


Wilhelm Grimm (1786–1859) com os contos fadas Kinder-und Hausmärchen (1812) e,
ainda sob a esfera do maravilhoso, têm-se Contos (1833), de Hans Christian Andersen
(1805-1875).

Somam-se a essas duas importantes coletâneas Alice no País das Maravilhas


(1863), de Lewis Carroll (1832–1898), Pinóquio (1883), de Collodi (1826–1890) e
Peter Pan (1911), de James Barrie (1860–1937).

Na linha das histórias de aventura, surgem: O último dos moicanos (1826),


de James Fenimore Cooper (1789–1851), Cinco semanas num balão (1863), de
Jules Verne (1828–1905), As aventuras de Tom Sawyer (1876), de Mark Twain
(1835–1910) e A ilha do tesouro (1882), de Robert Louis Stevenson (1850–1894).

Há ainda as obras que tratam de aspectos do cotidiano, sem a presença de acon-


tecimentos maravilhosos.

Nesse rol, destacam-se: Ovos de Páscoa (1816), de Cônego von Schmid (1768-1854),
As meninas exemplares (1857), da Condessa de Ségur (1799–1874), Mulherzinhas
(1869), de Louise M. Alcott (1832-1888), Heidi (1881), de Johanna Spyri (1827–1901) e
Coração (1886), de Edmond De Amicis (1846–1908).

Segundo Zilberman e Lajolo (1991, p. 21), esses livros são fundamentais: “São
eles que confirmam a Literatura infantil como parcela significativa da produção lite-
rária da sociedade burguesa e capitalista”.

Literatura Infantojuvenil Além Atlântico:


Os Primeiros Textos para a Infância
em Terras Brasileiras
Agora que já conhecemos como se deu a configuração do sistema literário in-
fantojuvenil europeu, a partir dessa seção, vamos conhecer quando e como surgiu
a Literatura Infantojuvenil brasileira e quem são as principais vozes literárias desse
período, nessas terras além Atlântico.

E no Brasil, temos Fábulas e Conto de Fadas?


Como vimos até este momento, o acervo inicial da Literatura Infantojuvenil foi
constituído (entre os séculos XVII e XIX) especialmente, pela utilização, readaptação
e/ou recriação do acervo antigo e popular: as fábulas, cultura greco-latina, e os con-
tos de fadas, cultura folclórica.

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Nesse aspecto, é importante destacar que a institucionalização de uma produção
literária destinada a crianças e jovens possibilitou, via registro escrito, a recuperação, a
circulação e a preservação de produções culturais pertencentes à oralidade, sobretudo.

Diante desse contexto mundial (europeu), podemos nos questionar: e no Brasil, quan-
do e como foi o início da Literatura Infantojuvenil? Os escritores também recorreram ao
nosso acervo folclórico? Temos Fábulas e Conto de Fadas? O que produzimos para esse
público em termos literários?

Essas e outras questões vamos ver a seguir.

O período inicial de uma produção literária voltada para o público infantojuvenil brasi-
leiro ocorreu entre 1890 e 1920 e ele foi condicionado pela condição colonial do Brasil.

Aqui, cabe destacar que, embora o país tenha conseguido sua independência em
1822, nesse momento, sua condição de colônia incidiu nas duas formas centrais de
produzir e colocar em circulação essa Literatura, como veremos.

O sistema literário infantojuvenil, assim como o adulto, é organizado por marcos


temporais. Seguindo a historiografia literária proposta por Marisa Lajolo e Regina
Zilberman, pode-se sistematizar essa Literatura em 5 períodos:
• 1º: (1890-1920);
• 2º: (1920-1945);
• 3º: (1945-1965);
• 4º: (1965-1985...);
• 5º: (a partir de 2000).
Sobre esse assunto, pode-se recorrer aos livros teóricos e historiográficos das autoras:
Literatura infantil brasileira. Histórias & Histórias (1984), Um Brasil para crianças.
Para conhecer a Literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos (1986) e
Literatura infantil brasileira. Uma nova outra história (2017).

A incorporação direta de textos (sobretudo de Portugal), a tradução e a adapta-


ção do acervo infantojuvenil europeu foram as principais estratégias para a constituição
inicial do sistema literário para crianças e jovens no Brasil.

Dessa maneira, diferente do cenário artístico da Europa, em que os autores mo-


vimentaram um projeto de valorização da Literatura oral de suas respectivas nações
(Perrault – França; Irmãos Grimm – Alemanha, e Andersen – Dinamarca).

Em terras brasileiras, o acervo folclórico desse país não esteve em destaque como
base de criação nessa fase inicial.

Por esse motivo, Zilberman e Lajolo (1986, p. 15) asseveram que “Antes das úl-
timas décadas dos oitocentos, a circulação de livros infantis era precária e irregular,
representada, principalmente, por edições portuguesas”.

Para entender o efeito negativo dessa apropriação de textos portugueses para a


recepção infantil, vale a pena conhecer um texto de Afonso Schmidt.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Vamos ler o texto:

De noite, na mesa de jantar, à luz do lampião belga que pendia do teto, eram fre-
quentes estas conversas:
– Papai, que quer dizer palmatória?
– Palmatória é um instrumento de madeira com que antigamente os mestres-escola
davam bolos nas mãos das crianças vadias...
– Mas aqui não é isso.
O pai botava os óculos, lia o trecho, depois explicava:
– Pelo assunto, este caso deve ser castiçal. Parecido, não? Como um ovo com um espeto!
Minutos depois, a criança interrompia novamente a leitura.
– Papai, o que é caçoula?
– Caçoula, que eu saiba, é uma vasilha de cobre, de prata ou de ouro, onde se quei-
ma incenso.
– Veja aqui na história. Não deve ser isso...
O pai botava os óculos de novo e lia [...]
Depois de matutar sobre o caso, o pai tentava o esclarecimento:
– Caçoula deve ser panela… Parecido, não?
E a mãe, interrompendo o crochê:
– Afinal, por que não traduzem esses livros portugueses para as crianças brasileiras?

Fonte: SCHMIDT apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 31

A fala da mãe expressa a importância que tiveram tanto a tradução quanto a


adaptação de obras infantis no início dessa Literatura.

Não é sem razão que, diante desse estado editorial colonial, Zilberman e Lajolo
(1986, p. 15) reconhecem a importância das “tentativas pioneiras e esporádicas de
traduções nacionais”.

Dentre os tradutores do período, a historiografia literária para crianças e jovens


registra alguns nomes.

Carlos Jansen, responsável por traduzir textos clássicos como: Contos seletos
das Mil e uma noites, As aventuras do celebérrimo Barão de Münchhausen
(Rudolph Erich Raspe) e Robison Crusoé (Daniel Defoe).

João Ribeiro, tradutor de Cuore, famoso livro infantil do escritor italiano Edmondo
de Amicis.

Olavo Bilac que, em 1910, publica – em Língua Portuguesa – um livro clássico da


Literatura infantil alemã, a saber, Juca e Chico, de Wilhem Busch. Em vista dessa
escolha editorial, “O início da Literatura infantil brasileira fica marcado pelo trans-
plante de temas e textos europeus adaptados à linguagem brasileira” (ZILBERMAN,
LAJOLO, 1986, p. 15).

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Uma das vozes que se destacam nesta primeira fase é a de Figueiredo Pimentel,
vez que o escritor inaugura um trabalho literário singular nessa produção, ficando
para a história da infância:
Dentro deste espírito, merece atenção especial a obra de Figueiredo
Pimentel, a quem a Livraria Quaresma confiou a tarefa (aparentemente
pela primeira vez assumida como projeto editorial) de compilar e adaptar
histórias infantis do acervo europeu. Figueiredo Pimentel parece ter-se
desincumbido com grande sucesso da encomenda (...).

Circulam, assim, neste tempo, versões abrasileiradas de textos de Perrault, Grimm


e Andersen (...) que refletem na sua linguagem, as intenções de nacionalização do
acervo europeu (ZILBERMAN, LAJOLO, 1986, p. 17-8).

PIMENTEL, Alberto Figueiredo (1869-1914). Jornalista e frequentador das rodas literárias e boê-
mias de seu tempo, organizou para a Livraria Quaresma vários volumes de contos, poesias e peças
teatrais que fazem parte da Biblioteca Infantil Quaresma: Contos da carochinha (1894), Histó-
rias da avozinha (1896), Histórias da baratinha (1896), Álbum das crianças (1897), Teatrinho
infantil (1897), O livro das crianças (1898), Os meus brinquedos (1898), que incluem textos
da tradição europeia, histórias inspiradas no acervo lendário brasileiro e narrativas escritas pelo
próprio Figueiredo Pimentel (ZILBERMAN, LAJOLO, 1986, p. 55-6).
Para outras informações sobre o autor, consulte o link disponível em: https://bit.ly/2E869rF.
Quanto a suas obras, algumas delas estão no site do Domínio Público.
Disponível em: https://bit.ly/3kZEdr9

Dentre essas obras do escritor, Contos da Carochinha (1894) destaca-se como


o grande livro desse período, pois, por meio dele, muitos leitores conheceram os
clássicos Contos de Fadas.
À guisa de ilustração, leiamos o simbólico relato da poetisa Cora Coralina:
Minhas estórias da Carochinha, meu melhor livro de leitura capa escura,
parda, dura, desenhos preto e branco.
Eu me identificava com as estórias.
Fui a Maria e Joãozinho perdidos na floresta.
Fui a Bela Adormecida no Bosque.
Fui Pele de Burro. Fui companheira de Pequeno Polegar e viajei com o
Gato de Sete Botas. Morei com os anõezinhos. Fui a Gata Borralheira
que perdeu o sapatinho de cristal na correria da volta, sempre à espera
do príncipe encantado, desencantada de tantos sonhos nos reinos da
minha cidade. (CORALINA, 1984 apud ZILBERMAN; LAJOLO, 1986)

Com esse belo e significativo depoimento, podemos constatar que o trabalho de


Figueiredo Pimentel permitiu que as crianças brasileiras entrassem no bosque encan-
tado das clássicas histórias infantojuvenis.
Isso posto, concluímos que embora grande parte dos Contos de Fadas fossem
incorporados da Europa, eles foram (e ainda são) cruciais para a formação do ima-
ginário desse público.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Desse modo, os Contos de Fadas europeus foram crucias para a constituição de


nossa Literatura. Posteriormente, teremos os nossos Contos de Fadas à brasileira.

Conto de Fadas brasileiros


E no Brasil, não temos contos de fadas?
Como estamos discutindo agora, a situação colonial do Brasil reverberou nas estra-
tégias literárias utilizadas para composição do acervo infantil brasileiro como a prio-
ridade pela incorporação de obras europeias. Por esse motivo, inicialmente, os leito-
res brasileiros foram consumidores de Contos de Fadas europeus (e fábulas também).
No entanto, a partir de Monteiro Lobato e especialmente desde a década de 1970, o
acervo do Conto de Fadas brasileiro ganha um destaque considerável, pois, muitos
escritores – em um jogo intertextual original e significativo – trouxeram para essa
Literatura o que atualmente conhecemos como Conto de Fadas contemporâneos.
Leiam as considerações da crítica literária Regina Zilberman sobre essa produção:
“Os Contos de Fadas contemporâneos foram elaborados a partir do modelo tra-
dicional do Conto de Fadas, com o intuito de, valendo-se de uma estrutura e per-
sonagens conhecidos, desmitificar modelos convencionais de comportamento e
discutir temas políticos candentes, num período em que se chocavam a repressão
oriunda do sistema governamental e a aspiração à liberdade e liberação por parte
dos membros da sociedade brasileira, representada, nos livros destinados à infância,
por crianças, principalmente.” (ZILBERMAN, 2014, p. 101)
Como consequência, essa revisitação crítica reverberou em novas estruturas desse
acervo, como, por exemplo, princesa que não deseja casar-se, mas trabalhar e estu-
dar, entre outras modificações temático-estruturais. Podemos ilustrar esse acervo
por meio de alguns livros centrais: História meio ao contrário (1977), de Ana Maria
Machado; Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento (1978), de Marina Colasanti;
Chapeuzinho Amarelo (1979), de Chico Buarque; Uxa, ora fada, ora bruxa, (1985)
de Sylvia Orthof; O fantástico mistério de Feiurinha (1986) de Pedro Bandeira.

Para saber mais sobre Conto de Fadas brasileiros, indicamos a leitura do segundo capítulo
“Os Contos de Fadas no sistema literário brasileiro” presente na Tese de Doutorado, Era uma
vez num reino galaico-português: os Contos de Fadas na Literatura infantojuvenil
brasileira e galega (2014), da pesquisadora Geovana Gentili Santos.
Disponível em: https://bit.ly/3aDKgN5

Igualmente aos contos de fadas, as fábulas também foram incorporadas, via tra-
dução, da Europa e, assim como nesse continente, elas foram amplamente utiliza-
das na Escola com um propósito marcadamente pedagógico, como registra Loide
Nascimento Souza:
Por volta de 1890, aproximadamente, quando a fábula chegou às es-
colas, muito longe de divertir, era usada, assim como na Europa, para
fins didáticos e moralizantes. Exemplo dessa visão são as poucas fábu-
las de Esopo adaptadas por Olavo Bilac em sua obra Poesias Infantis.
Responsável pela organização de livros para leitura nas escolas, o Barão de
Paranapiacaba também adaptou inúmeras fábulas de La Fontaine para
uso escolar. No prefácio afirma:

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Nutro a vaidosa pretensão [...] de que a infância achará nessas fábulas que
se vão ler algumas principais feições da fisionomia literária do fabulista
e aprenderá de cor, sem susto, muitas dessas peças cujo estilo procurei
acomodar aos seus meios de compreensão. (SOUZA, p. 74, 2004)

Diante do exposto, podemos perceber que tanto as fábulas quanto os Contos


de Fadas serviram como o principal corpus artístico da Literatura Infantojuvenil no
Brasil por meio do trabalho de tradução e/ou adaptação dos escritores apresentados,
por ora.

No entanto, não só de textos estrangeiros se alimentaram os leitores infantis nes-


sas terras além Atlântico.

Outra estratégia literária utilizada nesse período inicial para a nacionalização do


acervo infantil foi a produção autoral.

Patriotismo na Literatura Infantojuvenil


Nesta etapa inicial (1890-1920), a produção autoral de uma Literatura destinada
a crianças e jovens incidiu, especialmente, na seguinte finalidade temática-formal: a
representação de elementos brasileiros com uma clara intenção patriótica.

Desse modo, assim como aconteceu na primeira fase do Romantismo, um certo


nacionalismo literário constituiu-se como tônica central para os precursores da
Literatura infantojuvenil.

Sobre o conceito de nacionalismo literário, consultar esse verbete no E-Dicionário de


Termos Literários (EDTL). Disponível em: https://bit.ly/2Q27mng

Ainda que a necessidade de criar textos nacionais para leitores brasileiros pareça
uma tendência estética promissora, no século XIX, a forte dependência do Brasil à
Europa fez com que esse projeto não se destacasse artisticamente, pois:
[...] inserida no bojo de uma corrente mais complexa de nacionalismo, a
Literatura infantil lança mão, para a arregimentação de seu público, do
culto cívico e do patriotismo como pretexto legitimador.

Paradoxalmente, no entanto, a concepção de certos livros como verdadei-


ras cartilhas de nacionalidade têm inspiração em modelos estrangeiros.
Le tour de la France par deux garçons (1877), de G. Bruno, e Cuore
(1886), escrito por De Amicis, parecem constituir matrizes inspiradoras de
obras que, tematizando o civismo e patriotismo, aproximam a Literatura
infantil da postura que, em 1901, levou Afonso Celso a publicar Por que
me ufano de meu país. O título deste livro é eloquente do entusiasmo pa-
triótico de que se revestiram alguns dos mais significativos pronunciamen-
tos e manifestações que, transbordando da cultura institucional, acabavam
contagiando textos infantis. (ZILBERMAN, LAJOLO, 1986, p. 18-19)

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39
UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Com bem sintetizam as pesquisadoras – como criar um projeto estético brasileiro


tendo como imagem sobretudo o estrangeiro?

Consequentemente, a crítica literária observou que os primeiros textos infantis


nacionais resultaram em um culto patriótico e cívico.

Para ilustrar essa argumentação, as autoras chamam a atenção para os títulos dos
livros infantis do período: Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, Histórias
da nossa terra, de Júlia Lopes de Almeida, Através do Brasil, de Olavo Bilac e
Manuel Bonfim (ZILBERMAN, LAJOLO, 1986, p. 19).

E, agora, para finalizar essa subseção, vamos conhecer um dos precursores cen-
trais da Literatura Infantojuvenil brasileira: Olavo Bilac.

Figura 12
Fonte: www.academia.org.br

BILAC, Olavo Brás Martins dos Guimarães (1865-1918). Poeta festejadíssimo da vida
literária brasileira do entre século (séculos XIX e XX), engajou-se, no começo deste sé-
culo, em várias campanhas cívicas, entre as quais a difusão do ensino primário. É talvez,
dentro do espírito dessa Campanha, que se contextualiza mais amplamente sua obra
infantil, representada por livros escritos ora em parceria, ora sozinho: Poesias infantis
(1904), Contos pátrios (com Coelho Neto, em 1904), Teatro infantil (com Coelho Neto,
em 1905), Através do Brasil (com Manuel Bonfim, em 1910) (ZILBERMAN, LAJOLO,
1986, p. 55).

Fonte: https://bit.ly/2DYBLQI

Na página Domínio Público, é possível encontrar textos de Olavo Bilac. Aproveite a leitura!
Disponível em: https://bit.ly/3kZEdr9

Como registra a Bibliografia acima, nota-se que o Projeto Literário de Bilac para
o público infantil está em sintonia com uma missão patriótica.

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A seguir, vejamos alguns de seus famosos poemas infantis.

A casa
Vê como as aves têm, debaixo d’ asa,
O filho implume, no calor do ninho!...
Deves amar, criança, a tua casa!
Ama o calor do maternal carinho!
Dentro da casa em que nasceste és tudo...
Como tudo é feliz, no fim do dia,
Quando voltas das aulas e do estudo!
Volta, quando tu voltas, a alegria!
Aqui deves entrar como num templo,
Com a alma pura, e o coração sem susto:
Aqui recebes da Virtude o exemplo,
Aqui aprendes a ser meigo e justo.
Ama esta casa! Pede a Deus que a guarde,
Pede a Deus que a proteja eternamente!
Porque talvez, em lágrimas, mais tarde,
Te vejas, triste, desta casa ausente...
E já homem, já velho e fatigado,
Te lembrarás da casa que perdeste,
E hás de chorar, lembrando o teu passado...
- Ama, criança, a casa em que nasceste!
Fonte: BILAC, 1949, apud ZILBERMAN; LAJOLO, 1986, p. 44

A Pátria
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com seu suor a fecunda e umedece,
vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!
Fonte: https://bit.ly/3g3Y7gR

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

É curioso notar que ambos os poemas apresentam um tom muito semelhante:


adultocêntrico, ou seja, um eu-lírico mais velho e experiente instruindo uma criança.

No primeiro, “A casa”, trata-se de um conselho familiar: “- Ama, criança, a casa


em que nasceste!”. Já no segundo, com o mesmo tom imperativo, o eu-lírico coloca
em destaque o valor e a beleza da terra natal, como ele já explicita logo no início de
sua interlocução: “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!”.

Note que os elementos valorativos da nação são a exaltação do espaço, sobretudo,


o natural: “Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!/A Natureza, aqui, perpe-
tuamente em festa”.

Bem semelhante aos versos dos escritores românticos da primeira geração, não
é mesmo?

Recomendamos outros textos literários de Olavo Bilac, como o famoso poema A boneca
(Poesia infantil) e o conto A Pátria (Contos pátrios). Disponível em: https://bit.ly/347KniT

Nesse mesmo período, encontram-se, ainda, duas vertentes: o intelectualismo e


o moralismo (ou religiosidade), ambas reforçando uma posição conservadora em
que se pretende instruir o jovem leitor com bons costumes, o culto à língua materna
e à pátria.

Somam-se aos nomes anteriormente mencionados nesse fase inicial – Jansen,


Pimentel e Bilac – outros expressivos da produção literária desse momento: Francisca
Júlia (1871-1920), com a publicação de Alma infantil (1912), Júlia Lopes de Almeida
(1869-1934), com Contos Infantis (1886, em parceria com sua irmã Adelina A.
Lopes Vieira) e História da nossa terra (1907), Viriato Correia (1884- 1934), com
Contos da História do Brasil (1928) e Cazuza (1938), Zalina Rolim (1869-1961),
com O coração (1893) e Livro das Crianças (1897).

Para conhecer fragmentos de algumas dessas obras e outras produções desse período, aces-
se a página Literatura Infantil (1890-1910), disponível em: https://bit.ly/322nLgL

Nesta seção, conhecemos como os textos infantis atravessaram para este lado de
cá do Atlântico.

Como vimos, embora os precursores da Literatura Infantojuvenil brasileira te-


nham realizado um projeto de nacionalização de uma Literatura infantil à brasileira,
esse projeto estético só pode ser concretizado com o pai da Literatura para crianças
e jovens no Brasil, Monteiro Lobato.

Vamos ver a seguir como ele fez sua história.

Preparados?

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Monteiro Lobato e o Projeto de Uma
Literatura Nacional para as Crianças
Como vimos nos itens anteriores, na fase inicial da Literatura Infantil brasileira,
nota-se um cunho fortemente conservador e ainda muito vinculado ao acervo literá-
rio infantojuvenil europeu.

É frente a essa produção literária que Monteiro Lobato (1882-1948) expressa


sua crítica:
Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. [...] É de tal pobreza
e tão besta a nossa Literatura infantil, que nada acho para a iniciação de
meus filhos. Mais tarde só poderei dar-lhes o Coração de Amicis – um
livro tendente a formar italianinhos. (LOBATO, 1969, p. 104-5)

Empenhado em criar livros nos quais as crianças pudessem morar, o primeiro


livro produzido por Lobato foi A Menina do Narizinho Arrebitado, em 1920,
classificado como “livro de figuras”, ajustando-se às novas diretrizes pedagógicas que
enfatizava a importância da imagem no livro infantil.

Figura 13 – A Menina do Narizinho Arrebitado


Fonte: enciclopedia.itaucultural.org.br

A preocupação do escritor em satisfazer esse público específico evidencia-se nas


suas cartas a seu amigo Godofredo Rangel, como a de 9 fev. 1921, em que afirma:
“Mando-te o Narizinho escolar. Quero tua impressão de professor acostumado a
lidar com crianças. Experimente nalgumas, a ver se se interessam. Só procuro isso:
que interesse às crianças” (LOBATO, 1964, p. 228).

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

É a partir dessa experiência de escrita para o público infantil que Monteiro Loba-
to passa a criar outras narrativas com as personagens – Dona Benta, Tia Nastácia,
Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa e Rabicó – criando um universo
literário tipicamente brasileiro: o Sítio do Picapau Amarelo.

Para saber mais sobre Monteiro Lobato, recomendamos dois vídeos:


• Raiva de Monteiro Lobato – Mario Sergio Cortella – Uma fala de Cortella sobre Lobato
e sua produção literária. Disponível em: https://youtu.be/vaPVHe64cvc
• Monteiro Lobato – Furacão na Botocúndia – Com base na obra homônima, um estu-
do biográfico sobre Lobato. Disponível em: https://youtu.be/dlci4_ISXrE

O Projeto Literário Infantojuvenil lobatiano não é algo à parte de todo o engaja-


mento do escritor em diferentes questões de seu tempo.
Lobato luta pelo petróleo, dedica-se à questão sanitária, combate o uso inapro-
priado da terra, opõe-se às queimadas, expande o acesso aos livros e eleva o nível de
sua materialidade por meio de seus empreendimentos editoriais, preocupa-se com a
formação literária das crianças, produzindo uma Literatura que estimula a imagina-
ção infantil, enfim, Lobato procura, de várias maneiras, mostrar à Sociedade brasi-
leira a possibilidade de assumir a sua individualidade e de construir uma identidade
com elementos próprios, sem necessitar “recender a produtos importados”.

Para conhecer mais sobre Monteiro Lobato e seu posicionamento, recomendamos o artigo
“Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato, o público leitor e a formação do campo literário
no Brasil”, de Enio Passiani, disponível na Revista Sociologias.
Disponível em: https://bit.ly/3h76RnD

Esse era um dos grandes desejos de Lobato, tal como se nota, ao declarar: “Ai!
Quando nos virá a esplêndida coragem de sermos nós mesmos, como o francês
em coragem de ser francês, e o inglês a de ser inglês, e o alemão a de ser alemão?
Quando? Quando?”.
Na leitura de suas cartas e artigos – hoje, reunidas na coleção completa adulta
– verificamos um posicionamento crítico de Monteiro Lobato quanto à falta de origi-
nalidade nas artes pelos artistas brasileiros:
O mais especial de Byron, para nós, foi a sedução que exerceu nos nos-
sos revoltados poéticos daquele tempo. Todos byronizaram. Era moda.
Como depois todos hugoaram, quando a moda virou Hugo [...]. Depois
parnasianamos com Raimundo e Alberto. E zolaizamos com Aluisio etc.
Chega. (LOBATO, 1964, p. 58. v. 11)

Leitor voraz, Lobato reconhece as qualidades dos grandes escritores, saboreia a


Literatura, mas demonstra clara consciência de que a cópia do estilo não é um mérito.

Além disso, Lobato revela sua percepção sobre o fazer-se escritor, isto é, da ne-
cessidade de criar o seu próprio estilo, de individualizar-se.

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Em 15 nov.1904, Lobato aconselha a Rangel:
[...]seja você mesmo, porque ou somos nós mesmos ou não somos coisa
nenhuma (...) Há no mundo o ódio à exceção e ser si mesmo é ser exce-
ção. Ser exceção e defendê-la contra todos os assaltos da uniformização:
isto me parece grande coisa. (LOBATO, 1964, p. 83. v. 11)

Nessa busca pela individualização, Lobato, ao longo de suas cartas, troca impres-
sões sobre grandes escritores – Machado de Assis, Camilo Castelo Branco, Zola,
Victor Hugo, Byron etc., e analisa seus fazeres literários, filiando-se a uns e nitida-
mente opondo-se a outros.
Nesse constante processo de se refazer, Lobato foi adquirindo visibilidade no
campo literário brasileiro, com seus artigos em jornais e com seus textos literários,
criando figuras que até hoje povoam nosso imaginário: Jeca Tatu, Emília, Narizinho,
Dona Benta e outros.
Como vimos, Lobato tinha olhar crítico sobre as traduções e produções que eram
oferecidas para as crianças brasileiras, considerando-as “espinhentas”.
E mesmo já tendo criado a sua turma do Sítio do Picapau Amarelo, em suas car-
tas, o escritor expressa um constante movimento de pensar sobre o que era Litera-
tura para as crianças e as suas especificidades estéticas.
Em 19 dez. 1945 (Lobato faleceria em 1948), ele declara:
Para ser infantil tem o livro de ser escrito como o CAPINHA VERME-
LHA, de Perrault. Estilo ultra direto, sem nenhum granulo de “Literatura”.
[...] A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite literário.
O enfeite literário agrada aos oficiais do mesmo ofício, aos que compre-
endem a Beleza literária. Mas o que é beleza literária para nós é maça-
da e incompreensibilidade para o cérebro não envenenado das crianças.
(LOBATO, 1964, p. 372-3. v. 12)

Como se observa, Lobato coloca-se contra a escrita academicista e, em diversas


cartas, mostra-se favorável a um estilo mais simples e direto.
Essa questão da linguagem não fica restrita apenas às suas reflexões em cartas.
Em diversas passagens das aventuras vividas no Sítio, observamos o repúdio das
próprias personagens em relação à linguagem complicada, tal como declara Emília,
em Dom Quixote das Crianças:
Quem riscou o segundo a de Saavedra?
– Fui eu – disse Emília.
– Por quê?
– Porque sou inimiga pessoal da tal ortografia velha coroca que compli-
ca a vida da gente com coisas inúteis. Se um a diz tudo, para que dois?
(LOBATO, 1988, p. 143-4. v. 9)

Pedrinho, em Fábulas, também se opõe ao emprego da forma sugerida pela


gramática normativa:

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45
UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Por mais que os gramáticos insistam na forma “mostrengo”, o povo diz


“monstrengo”. (...)
– Pois eu vou adotar o ‘‘monstrengo’’ – resolveu Pedrinho.
– Acho mais expressivo”. (LOBATO, 1988, p. 173. v. 13)

No universo ficcional criado por Monteiro Lobato, a liberdade e a diversidade são


valores importantes, a ponto de o Sítio do Picapau Amarelo ser um espaço desejado
para morarem também por personagens de outros livros.
É o que se passa em O Picapau Amarelo, de 1939:
Prezadíssima Senhora Dona Benta Encerrabodes de Oliveira: Saudações.
Tem esta por fim comunicar a V. Excia. que nós, os habitantes do Mundo
da Fábula, não agüentamos mais as saudades do Sítio do Picapau
Amarelo, e estamos dispostos a mudarmos para aí definitivamente.
O resto do mundo anda uma coisa das mais sem graça. Aí é que é o bom.
Em vista disso, mudar-nos-emos todos para a sua casa – se a senhora der
licença, está claro [...]. (LOBATO, 1956, p. 5)

Sem que seja nenhum exagero, Lobato com seu Projeto Literário, torna-se um
grande divisor de águas na Literatura infantil brasileira, por oferecer ao público infan-
tojuvenil um conjunto de obras em que há nítida valorização pelo nacional, pela Lín-
gua Portuguesa brasileira, pelo popular, pelo incentivo à leitura e à forma de apren-
dizagem em que o lúdico e a construção coletiva do conhecimento é incentivado.

Em Conferências, artigos e crônicas (1959), Monteiro Lobato declara a impor-


tância de se criar livros que estimulem o interesse pela leitura:
Quem começa pela menina da capinha vermelha pode acabar nos Diálo-
gos de Platão, mas quem sofre na infância a ravage dos livros instrutivos e
cívicos, não chega até lá nunca. Não adquire o amor da leitura. (LOBATO,
1964, p. 253-4. v. 4)

Devido a esses “livros impróprios”, “[...] há homens que passaram a vida sem ler
um livro, fora os escolares, justamente por não terem tido em criança o ensejo de ler
um só livro que lhes falasse à imaginação” (LOBATO, 1964, p. 253-4).

Compreendendo que o apelo à imaginação é fator essencial nas obras para as


crianças, Lobato dedica-se a esse público, criando novas aventuras ambientadas no
Sítio do Picapau Amarelo.

Produção Infantojuvenil De Monteiro Lobato


• 1921 – O Saci
• 1922 – Fábulas
• 1927 – As Aventuras de Hans Staden
• 1930 – Peter Pan
• 1931 – Reinações de Narizinho
• 1932 – Viagem ao céu

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• 1933 – Caçadas de Pedrinho
• 1933 – História do Mundo para as Crianças
• 1934 – Emília no País da Gramática
• 1935 – Aritmética da Emília
• 1935 - Geografia de Dona Benta
• 1935 – História das Invenções
• 1936 – Dom Quixote das crianças
• 1936 – Memórias da Emília
• 1937 – Serões de Dona Benta
• 1937 – O Poço do Visconde
• 1937 – Histórias de Tia Nastácia
• 1939 – O Picapau Amarelo
• 1939 – O Minotauro
• 1941 – A Reforma da Natureza
• 1942 – A Chave do Tamanho
• 1944 – Os doze trabalhos de Hércules (dois volumes)
• 1947 – Histórias Diversas

Tal como afirma Bárbara Vasconcelos de Carvalho: “No plano da fantasia, da


imaginação, Lobato está para nós como Andersen, Perrault, Grimm estão para suas
diferentes pátrias.”
Lobato cria, efetivamente, um universo ficcional no qual as crianças passam a morar.
Nessas aventuras, há riqueza de temas, diálogos com o acervo literário europeu, com a
mitologia greco-latina e com as produções contemporâneas também. O Sítio converte-se
num espaço polifônico, isto é, em que diferentes vozes se manifestam livremente.
O Sítio é um espaço em que a aprendizagem é constante, a cada experiência, a
turma – por meio do trabalho em equipe – avança e amadurece, questiona convenções
e regras. As aventuras são a forma mais lúdica para aprender desde a tradição popu-
lar e a diversidade cultural brasileira até os conceitos de matérias da grade curricular:
folclore, lendas da tradição oral, Mitologia, Literatura, Ciências, Matemática, Língua
Portuguesa, História, Geografia etc.
Monteiro Lobato – apesar de ser um homem de seu tempo – consegue ir além e
abrir caminhos para que a modernidade se efetivasse em nossa Sociedade: as lutas
sanitárias, os empreendimentos no campo editorial, as investidas no petróleo, as
incursões no campo da Arte e da Literatura.
Por mais que, atualmente, seja encaixado no que se denomina “Pré-Modernismo”
nas escolas literárias, Lobato escapa a rotulações e seu legado não se pode apagar!
Quase a totalidade dos escritores atuais da Literatura Infantojuvenil brasileira reco-
nhecem sua força criativa, a potencialidade de sua estética e o divisor de águas que
sua obra representa nesse sistema.
No 32º Congresso Internacional IBBY, celebrado em Santiago de Compostela, a
escritora Lygia Bojunga, em Eu te lendo, faz a seguinte declaração:

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Eu tinha sete anos quando ganhei de presente um livro do Monteiro Lo-


bato chamado Reinações de Narizinho. Um livro grosso assim. Só de
olhar pra ele eu me sentia exausta. Dei um dos muito obrigada mais sem
convicção da minha vida, sumi com o livro num canto do armário e voltei
pras minhas histórias em quadrinho. (...)
Passados uns tempos ele me cobrou outra vez, como é? já leu? Não tinha
outro jeito: tirei o livro do armário, tirei a poeira do livro, tirei a coragem
não sei de onde e comecei a ler: “Numa casinha branca, lá no sítio do Pica
Pau Amarelo...” E quando cheguei no fim do livro eu comecei tudo de
novo, numa casinha branca lá no sítio do Pica Pau Amarelo, e fui indo toda
a vida outra vez, voltando atrás num capítulo, revisitando outro, lendo de
trás pra frente, e aquela gente toda do sítio do Pica Pau Amarelo começou
a virar a minha gente.
Muito especialmente uma boneca de pano chamada Emília, que fazia e
dizia tudo que vinha na cabeça dela. A Emília me deslumbrava! nossa,
como é que ela teve coragem de dizer isso? ah, eu vou fazer isso também!

Mas longe de imaginar que eu estava vivendo o meu primeiro caso de amor.
Apesar da grande acolhida entre os pequenos e jovens leitores, tal como relata o
próprio Lobato em suas cartas finais (2º vol de A Barca de Gleyre) sobre os constan-
tes relatos que recebia sobre suas obras infantis, as obras infantojuvenis de Monteiro
Lobato foram alvo de censura.
Constantemente, num movimento anacrônico, as obras lobatianas são revisitadas
e fragmentos fora de seus contextos são usados para condenar sua produção literária.
Vale dizer que, como professores(as), é muito importante apresentar essa discus-
são às crianças, assim como as histórias de Monteiro Lobato e sua contextualização
sociocultural e histórica, promovendo uma reflexão crítica e o debate sempre bem-
-vindo na sala de aula. É preciso fazer pensar e ouvir as crianças, e os jovens tam-
bém. É possível, inclusive, discutir o tema do racismo a partir das obras de Lobato,
sem condená-lo ou censurar sua leitura.
Para finalizar nossas reflexões e não escapar a essa importante questão em relação à
obra infantojuvenil lobatiana, deixamos as palavras do especialista João Luís Ceccantin.

Assista aos vídeos abaixo sobre Monteiro Lobato:


• Notícias Univesp – Racismo na Obra de Monteiro Lobato – João Luís Cardoso Cec-
cantini. Disponível em: https://youtu.be/p9e1prp-TD8
• Programa Entrelinhas – Monteiro Lobato. Disponível em: https://bit.ly/3iSbWRp

AZEVEDO, C. L. de; CAMARGOS, M.; SACCHETTA, V. Monteiro Lobato furacão na Botocúndia.


São Paulo: SENAC, 1997;
CAVALHEIRO, E. Monteiro Lobato – Vida e obra. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1955. 2 v.;
LAJOLO, M.; CECCANTINI, J. L. Monteiro Lobato livro a livro. São Paulo: Edunesp, 2009.

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HAAG, C. O Brasil visto do sítio, Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo, maio de 2012, p. 253-
257. Disponível em: https://bit.ly/3475hOR

Curadoria e Prática
Ao longo desta Unidade, conhecemos um acervo literário representativo do mo-
mento inicial da Literatura Infantojuvenil.
Dentre os gêneros literários desse período, conferimos destaque à Fábula e ao
Conto de Fadas, considerando a representação de ambos nesse sistema literário,
desde suas origens aos dias atuais.
Nesta seção, “Curadoria e Prática”, vamos apresentar duas obras com exemplos
de atividades atinentes a essas modalidades literárias. Preparem-se!
Como indicação de leitura, apresentamos duas obras clássicas da Literatura infan-
tojuvenil brasileira: Fábulas (1922), de Monteiro Lobato e História meio ao contrário
(1977), de Ana Maria Machado.

Fábulas, de Monteiro Lobato. Disponível em: https://glo.bo/314DGw8


História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. Disponível em: https://bit.ly/3j12J9x

Após o estudo desta Unidade, provavelmente, você reparou que esses livros são
característicos dos gêneros literários fábula (Monteiro Lobato) e Conto de Fadas
(Ana Maria Machado). No entanto, os autores brasileiros trouxeram inovações temá-
ticas-formais em relação aos textos que eles dialogam, não é mesmo?

A partir do século XX, é usual que os escritores revisitem acervos tradicionais e,


a partir deles, criem renovações temático-formais.

Na Literatura Infantojuvenil, especialmente, observa-se que tanto a fábula quanto


o Conto de Fadas são gêneros literários prediletos para essa releitura.

Esse processo de elaboração literária é muito comum e se denomina “intertextu-


alidade”.

Verbete “Intertextualidade”. Disponível em: https://bit.ly/31XCXMd

Proposta de Atividade 1
Para realização de atividades em sala de aula, textos literários que dialoguem com
outros acervos artísticos possibilitam práticas instigantes de leitura e de interpretação
literária, além de ampliação do repertório cultural do leitor.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Como ilustração, pode-se pensar na seguinte atividade para os livros que apre-
sentamos nesta seção:
1. Proponha aos estudantes uma leitura comparativa entre os textos:
“A cigarra e a formiga”, de La Fontaine e “A cigarra e as formigas”, de
Monteiro Lobato;
2. Proponha a leitura de História meio ao contrário, de Ana Maria Machado.
Após a leitura, organize uma conversa sobre os textos lidos. Para essa mediação
leitora, sugerimos a organização de um Clube de leitura. Cabe observar que esse
formato de diálogo tem sido destacado como uma ferramenta significativa para a
prática de mediação literária em diversos espaços envolvidos com o processo de
formação de leitores, tais como Escolas, Bibliotecas, Livrarias etc.

Clube de leitura. Acesse: https://bit.ly/34dR5E5

Ao conversar sobre o texto lido, provavelmente, os leitores vão identificar modifica-


ções temático-estruturais significativas. Por exemplo, na leitura da obra de Ana Maria
Machado, um elemento composicional que vem à tona é a percepção comparativa
entre a caracterização da personagem princesa de um Conto de Fadas clássico e a
personagem princesa do livro História meio ao contrário.

Abrimos parênteses aqui: é importante destacar que o mediador literário deve


ficar atento para não oferecer um víeis ideológico depreciativo para os Contos de
Fadas tradicionais, pois os textos literários estão inseridos dentro de um contexto
sociocultural e histórico e as diferenças ideológicas e estéticas são importantes para
a constituição de uma tradição literária.

Sendo assim, os Contos de Fadas de Perrault não são desprezíveis ou desatualizados


porque não retratam uma caracterização “feminista” de suas princesas. Ao contrário.

Na Literatura, a interpretação textual está inserida em uma tradição literária e,


sendo assim, como podemos entender a princesa de História meio ao contrário
sem conhecer a princesa de um Conto de Fadas tradicional?

Não seria possível.

Para quem tem interesse nessa discussão, indicamos a leitura dos livros: Seis pas-
seios pelos bosques da ficção (1994), de Umberto Eco e Como e por que ler os
clássicos universais desde cedo (2002), de Ana Maria Machado.

Proposta de Atividade 2

Observe a imagem a seguir: Arte de Maurício Azanh. Disponível em: https://bit.ly/320NvKt

Leia a obra Este é o Lobo (DCL, 2016; Pequena Zahar, 2020), de Alexandre Rampazo.

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Figura 14
Fonte: Divulgação

Este é o Lobo. Disponível em: https://bit.ly/3avFnWi

Considerando o acervo clássico dos contos de fadas, lobos e princesas são perso-
nagens arquetípicos do imaginário infantil. Em geral, o primeiro é associado ao mal e
a segunda dependente de um príncipe encantado para a realização de sua felicidade.

Levando em consideração esse contexto, pode-se pensar na seguinte atividade:


• Recuperar Contos de Fadas clássicos em que as personagens mencionadas tan-
to na imagem quanto na obra aparecem (permitir que os estudantes façam essa
busca em seu próprio repertório);
• Fazer uma representação desses personagens delineando, especialmente, sua ca-
racterização e sua função nas histórias lidas (tanto no texto clássico quanto no atual);
• Fomentar a discussão sobre autonomia, independência e dicotomia bem versus
mal, por meio da representação das personagens;
• Solicitar a composição de uma narrativa textual e/ou visual como uma releitu-
ra de um Conto de Fadas, ou seja, propor que os(as) estudantes escolham um
conto de sua preferência e, à luz dos exemplos lidos – a imagem e o livro de
Rampazo, criem suas releituras.

Por fim, desejamos a todos(as) boas leituras e muitas reflexões a partir do que foi
exposto e indicado nesta Unidade.

Esperamos que tenham gostado das obras contempladas e das atividades indica-
das nessa última seção de Curadoria e Prática.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Vídeos
Literatura Fundamental 45 – Robinson Crusoé
Nessa entrevista, a professora comenta sobre: A vida do autor Daniel Defoe; o
sucesso e as características do romance Robinson Crusoé (1719); a adaptação
do livro para o público infantojuvenil, destacando o motivo de esse livro ter sido
incorporado para o leitor jovem; outros detalhes interessantes desse clássico livro.
https://youtu.be/ZaXEkFa3QiE
Selecionando Livros
Assistir ao vídeo Selecionando Livros, com João Luís Ceccantini. Nessa apresentação,
o pesquisador comenta sobre: Alguns critérios para seleção de livros; a seleção do
pesquisador sobre livros juvenis premiados contemporâneos; aspectos temáticos-
formais (gerais) sobre os livros para jovens selecionados; algumas particularidades
da Literatura para crianças e jovens no cenário nacional.
https://youtu.be/oN68RwX73u4

 Leitura
Uma Literatura para jovens – uma produção em destaque
Ler o texto “Uma Literatura para jovens – uma produção em destaque”, de Vanessa
Regina Ferreira da Silva, p. 193. Nesse texto, a autora tece considerações sobre:o
início de uma Literatura destinadas a jovens no Brasil; as primeiras coleções juvenis
brasileiras; a legitimação da Literatura Juvenil no Brasil.
https://bit.ly/315h7qZ
Mais (e melhores) espaços para leitura com jovens
Ler o texto Mais (e melhores) espaços para leitura com jovens, de Macarena Pagels
Soliz. Nele, a autora tece algumas reflexões pertinentes sobre: Alguns aspectos
centrais para o trabalho de mediação leitora para o público jovem; a seleção de
obras para o leitor juvenil; as preferencias literárias do leitor jovem; a importância
da socialização em torna da leitura.
https://bit.ly/2PZBsaP

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Referências
COELHO, N. N. O Conto de Fadas. São Paulo: Ática, 1987 (Série Princípios).
________. O Conto de Fadas: símbolos – mitos – arquétipos. São Paulo: Paulinas,
2008 (Coleção re-significando linguagens).
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
HUNT, P. Crítica, Teoria e Literatura Infantil. Tradução de Cid Knipel. São Paulo:
Cosac Naift, 2010.
KHÉDE, S. S. Personagens da Literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986
(Série Princípios).
LA FONTAINE. Fábulas: antologia. 4.ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. (Coleção
a obra-prima de cada autor).
LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira. Histórias & Histórias.
3. ed. São Paulo: Ática, 1987. (Série Fundamentos).
LOBATO, M. A barca de Gleyre. 11.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras com-
pletas de Monteiro Lobato. v. 11).
________. A barca de Gleyre. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. (Obras comple-
tas de Monteiro Lobato. v. 12).
________. Conferências, artigos e crônicas. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1964.
(Obras completas de Monteiro Lobato. v. 15).
________. O Picapau Amarelo. São Paulo: Brasiliense, 1956.
________. Dom Quixote das crianças. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra
infanto-juvenil de Monteiro Lobato, v. 9).
________. Fábulas. São Paulo: Círculo do livro, 1988. (Obra infanto-juvenil de Monteiro
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MACHADO, A. M. História meio ao contrário. 5.ed. São Paulo: Ática, 1983.
________. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janei-
ro: Objetiva, 2002.
PERRAULT, C. et al. Contos de fadas: de PERRAULT, G., Andersen & outros. Tra-
dução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (Clássicos Zahar).
ROCHA, R. Contos de Perrault. São Paulo: Moderna, 2010.
SANTOS, G. G. Mamãe Ganso à brasileira: as personagens de Perrault no Sítio
do Picapau Amarelo. 2009. 183f. Dissertação (Mestrado em Letras – Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Assis, 2009.
________. Era uma vez num reino galaico-português: os Contos de Fadas na
Literatura infantojuvenil brasileira e galega. 2014. 238f. Tese (Doutorado em Letras)
– Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2014.

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UNIDADE Literatura Infantojuvenil: Contextualização e Histórias

SOUZA, L. N de. O processo estético de reescritura das fábulas por Monteiro


Lobato. 2004. 259f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Pau-
lista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Assis, 2004.
ZILBERMAN, R. Como e por que ler a Literatura infantil brasileira. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2014.
________. Literatura infantil brasileira. Uma nova outra história. Curitiba: PUC-
PRess, 2017.
________; CADEMARTORI, L. M. Literatura Infantil: autoritarismo e emancipa-
ção. São Paulo: Ática, 1982.
________; LAJOLO, M. Um Brasil para crianças. Para conhecer a Literatura
infantil brasileira: história, autores e textos. 2. ed. Rio de Janeiro: Global universi-
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Sites Visitados
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COMPANHIA das Letras. Disponível em: <https://www.companhiadasletras.com.
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DOMÍNIO Público. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
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E-BIOGRAFIA. Disponível em: <https://www.ebiografia.com./>.
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. A Menina do Narizinho
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GLOBO Livros. Fábulas. Disponível em: <http://globolivros.globo.com/livros/fabu-
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LIVRARIA da Vila. História meio ao contrário. Disponível em: <https://www.livra-
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YOUTUBE. Literatura Fundamental 85: Contos de Hans Christian Andersen – Karin
Volobuef. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sTDF0YtWRO4>. Acesso
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YOUTUBE. Literatura Fundamental 93: Irmãos Grimm – Karin Volobuef Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=1lLue7Obokg>. Acesso em: 14/07/2020.

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