Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
*Eugênio Bucci
Este é o primeiro de uma série de quatro artigos sob o título geral "A
imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do
jornalismo em nossos dias". O presente texto resulta da edição de uma
entrevista concedida a Veet Vivarta, em dezembro de 2006, transcrita
por Ana Néca, assistente da Coordenação de Relações Acadêmicas da
Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), e transformada em
artigo graças à colaboração do jornalista André Deak. Contribuíram com
sugestões Rodrigo Savazoni e Aloísio Milani. Veet Vivarta, em
interlocução permanente com o autor, em muito contribuiu para o
resultado final. Este artigo comporá o livro Políticas Públicas e
Desenvolvimento Humano: Desafios da Pauta Jornalística, do Programa
InFormação, desenvolvido pela ANDI com apoio da Fundação W.K.
Kellogg, a ser lançado em 2007
Esses breves postulados, que deveriam ser óbvios e batidos para todos,
soam como dissonância na tradição política brasileira e também na
tradição sul-americana. Machucadas pelos períodos de arbítrio e
dopadas pelos rompantes populistas, as duas tradições, que podem ser
vistas como sendo uma só, ainda não assimilaram a noção de que o
jornalismo só tem sentido quando posto a serviço do direito à
informação – de tal modo que qualquer outro interesse que ele abrace o
corrompe. Entre nós, têm prevalecido visões que o reduzem a uma
ferramenta de proselitismo para dominar o público, visões que jamais
aceitaram as páginas dos jornais, por maiores que sejam as distorções
que ali ocorram, como arenas de emancipação. É assim que, na cultura
política média do nosso sub-continente, o que tinha de ser o óbvio é o
oculto. Ou o ocultado. Eis aqui um bom ponto de partida para um
diálogo sobre a responsabilidade social do jornalismo em nossos dias.
É verdade que, hoje, mais do que antes, vigiar o poder significa vigiar
não apenas o poder político em sentido estrito, aquele instalado no
governo e no Parlamento e, em certa medida, moldado na dinâmica dos
partidos: significa, também, vigiar o poder econômico em sentido
amplo, e especialmente o poder dos meios de comunicação, que se
converteram em formas relativamente novas de pressão sobre a
sociedade – promovem ou simulam, no espaço público, a legitimação de
causas próprias ou de causas a que se associam.
Pólos de poder
Papel de árbitro
Verbas públicas
Os motivos para isso são numerosos. Na verdade, não há razão que fale
contra; todos os motivos falam a favor da vigência do que chamo aqui
de protocolo de convivência entre governo e imprensa. Vejamos apenas
um deles, o do conflito de interesses. Entre outras obrigações, compete
ao Estado estabelecer marcos regulatórios para que o setor dos meios
de comunicação opere num ambiente de concorrência comercial justa,
com diversidade de conteúdos e pontos de vistas – tarefa que ainda
hoje o Poder Público no Brasil deve para a sociedade. Ora, se as
autoridades passam a expressar publicamente opiniões peremptórias
sobre "a grande mídia" ou sobre "a imprensa em geral", incorrem em
potenciais conflitos de interesses, pondo em dúvida a impessoalidade
com que tratam ou tratarão – se é que pretendem tratar – da matéria.
Como ficam, por exemplo, os encarregados de conceder ou renovar as
concessões de rádio e televisão caso se posicionem abertamente como
adversários de uma estação e apoiadores ou mesmo sócios de outras?
Será que tal engajamento é compatível com a impessoalidade do regime
democrático?
Os conflitos de interesses não ficam só aí. Eles se agravam quando no
governo, a quem cumpre zelar pela liberdade, surgem personagens que
insinuam a necessidade estabelecer restrições à prática do jornalismo ou
manifestam preferências por um ou outro veículo em particular. Fica no
ar uma interrogação: acalentariam os encarregados de proteger a
liberdade a fantasia de restringi-la, ainda que um pouquinho só, se não
para todos, ao menos para um ou outro? Isso para não tocarmos no
assunto das verbas públicas destinadas a compra de espaços
publicitários nos veículos comerciais, e na forma como essas são
administradas tanto no âmbito federal, como nos âmbitos estaduais e
municipais. Também por isso, governantes e autoridades públicas
deveriam se abster de questionar – ou de dar a impressão de que
questionam – não os erros pontuais que devem ser corrigidos, mas
validade da instituição da imprensa em seu conjunto. [Continua.]